Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
O QUE FAÇO EU AQUI 106<br />
107<br />
En Macondo<br />
no ha pasado nada,<br />
ni está pasando nada<br />
ni pasará nunca.<br />
aventura pelo incógnito. Suspeitei então logo ali<br />
que estariam a <strong>de</strong>screr do que nos acontecera porque<br />
vi, sobretudo nele, o Jack, sinais <strong>de</strong> cepticismo.<br />
Mas aceitou escutar o relato narrado com<br />
minúcia, embevecimento e élan. Foi a Joanne quem<br />
lhe ouviu em aparte comentar cepticamente para a<br />
companheira nunca ter ido nisso <strong>de</strong> literatura fantasiosa,<br />
nem mágica, nem fantástica, recusando-se<br />
mesmo a ler um badaladíssimo best-seller em tradução<br />
inglesa <strong>de</strong> latino-americano García-Qualquer-<br />
-Coisa que uma literatonta ex-namorada lhe tentara<br />
impingir.<br />
Hoje reconheço bem a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> García<br />
Márquez em se fazer acreditar. De Macondo, disse<br />
ele, não restou ninguém, talvez só o Gabriel, que<br />
eu suspeito fosse o moço da canoa. O namoro com<br />
a Joanne acabou e ela acusa-me agora <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios<br />
ficcionais, e ficou-me com tanta raiva por ninharias<br />
que se entrepõem nas vidas <strong>de</strong> um par <strong>de</strong><br />
amantes (ninharias que estragam tudo, sobretudo<br />
a alegria das esperadas noites) que, se o leitor porventura<br />
a encontrasse e tentasse indagar da veracida<strong>de</strong><br />
da minha estória, ela teria estômago para lhe<br />
mentir com uma cara tão serena e séria que nem<br />
daria para levantar ponta <strong>de</strong> dúvida sobre a sua<br />
palavra. Po<strong>de</strong>ria sugerir-lhe, mui estimado leitor,<br />
que contactasse o Jack e a Ann – era assim que se<br />
chamava a namorada <strong>de</strong>le, se ainda não lho revelei<br />
– que ao menos ouviram o meu relato no fresquinho<br />
do acontecer. A verda<strong>de</strong> é que – e aposto que<br />
vai com esta convencer-se mesmo <strong>de</strong> que estou a<br />
lançar-lhe patranhas – perdi o contacto com eles e<br />
não lhes <strong>de</strong>scortino o para<strong>de</strong>iro.<br />
A história com o Jack é simples e conta-se em<br />
poucos minutos, se o leitor os tem ainda antes <strong>de</strong><br />
fechar o livro e atirá-lo para um canto com o seu<br />
<strong>de</strong>sencanto. O Jack e a Ann nunca tinham saído dos<br />
States. Calhara por sorte agarrarem como nós <strong>de</strong><br />
uma pechincha em forma <strong>de</strong> pacote <strong>de</strong> férias. Até<br />
ficaram toda a semana no hotel porque não falavam<br />
espanhol, e havia piscina e praia com tudo servido<br />
nas travessas em inglês. O Jack revelou-me uma<br />
manhã ao pequeno-almoço estar fascinado com a<br />
nunca vista generosida<strong>de</strong> do hotel que lhe enchia<br />
todos os dias o bar no frigorífico do quarto. Dezenas<br />
<strong>de</strong> pequenas garrafas das mais variadas bebidas<br />
que ele não conseguia consumir completamente e<br />
por isso ia empacotando para levar <strong>de</strong> regresso.<br />
Expliquei-lhe que receberia a conta por tudo, mas<br />
ele recusou acreditar-me porque não tinha pedido<br />
nada e nada estava no contrato. Que não pagaria<br />
pelo que não solicitara. Eu ainda tentei insistir mas<br />
só quando à saída o presentearam com uma brutal<br />
<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> 550 dólares <strong>de</strong> bar, do que fui testemunha<br />
porque estava na fila à espera <strong>de</strong> vez para o<br />
check out, é que ele me <strong>de</strong>u furiosamente razão. Barafustou<br />
sem qualquer efeito e, <strong>de</strong>sesperado, esvaziou<br />
sobre o balcão a lancheira das garrafas que<br />
não tinha conseguido consumir ainda.<br />
Naquele mesmíssimo momento eu tive uma<br />
i<strong>de</strong>ia perversa. Fui lesto ao quarto (o leitor aguente<br />
um pouquinho mais que verá aon<strong>de</strong> tudo isto vai dar<br />
e, sobretudo, enten<strong>de</strong>rá as razões da minha perda <strong>de</strong><br />
contacto com o Jack) e agarrei <strong>de</strong> uma folha <strong>de</strong> papel<br />
timbrado do hotel que arrumei na mala.<br />
Já <strong>de</strong> casa, umas semanas <strong>de</strong>pois, escrevi ao<br />
Jack (tínhamos os quatro trocado en<strong>de</strong>reços)<br />
dando os parabéns ao casal por ter ganho o prémio<br />
<strong>de</strong> O Melhor Cliente do Hotel Las Velas, graças ao<br />
seu consumo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros campeões do bar.<br />
O prémio seria uma semana <strong>de</strong> hospedagem grátis<br />
quando voltassem a Cartagena.Terminava com mil<br />
agra<strong>de</strong>cimentos, mais parabéns, e a assinatura <strong>de</strong> El<br />
Gerente, para servirlo,Andrés Nacimiento Martínez.<br />
Carta direitinha para o correio, rumo a algures<br />
nas montanhas da Pennsylvania e, em poucos dias,<br />
eis o Jack a telefonar-me eufórico com a notícia da<br />
reviravolta naquela estória <strong>de</strong> provinciano papalvo<br />
que terminara afinal em azul e ouro. Era tão generosa<br />
a oferta do hotel que a Ann e ele queriam<br />
absolutamente aproveitá-la muito em breve, até<br />
porque tinham adorado a Colômbia, quer dizer, o<br />
circuito fechado do Las Velas. Acossou-me o receio<br />
<strong>de</strong> eles irem mesmo.Vai eu enchi-me <strong>de</strong> coragem,<br />
respirei fundo e confessei-lhe a brinca<strong>de</strong>ira.