17.04.2013 Views

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

comunicar o filho, nosso guia (José Arcadio?), que<br />

voltava com um garoto, carregando dois enormes<br />

peixes que entregou à mãe, logo por sua vez lançada<br />

na azáfama <strong>de</strong> os governar e trucidar, acen<strong>de</strong>r<br />

uma fogueira num canto e colocá-los numa grelha.<br />

Eis senão quando o grunhir <strong>de</strong> porcos nos fez<br />

voltar as cabeças e vimos entrarem no nosso espaço<br />

(recinto não era, dada a ausência <strong>de</strong> divisões),<br />

cauda a abanar, encaminhando-se direitinhos para<br />

os restos <strong>de</strong> tubérculos que Úrsula-talvez cortara.<br />

José Arcadio (ou seria José Gabriel, o único que<br />

ficou em Macondo?) <strong>de</strong>u or<strong>de</strong>ns a uma jovem que<br />

passara ao lado, e daba instrucciones para la siembra y consejos<br />

para la crianza <strong>de</strong> niños y animales – <strong>de</strong>sculpe mais<br />

uma vez, benévolo leitor, estes <strong>de</strong>scontrolados tropeços<br />

nas páginas <strong>de</strong> Cien Años <strong>de</strong> Soledad, queria eu<br />

dizer, importunos para a boa marcha da narrativa<br />

<strong>de</strong>sse almoço frugal e bucólico.<br />

Mãe Úrsula produziu diante <strong>de</strong> nós dois<br />

colossais pratos <strong>de</strong> vegetais, sobretudo tubérculos,<br />

<strong>de</strong> que consegui distinguir uma espécie <strong>de</strong> pepino,<br />

coco com arroz e frijoles. No centro <strong>de</strong> cada, um<br />

garboso peixe (mojarra? sábalo?) barrado <strong>de</strong> apetite.<br />

O meu, <strong>de</strong> olhos fixos em mim e a querer falar<br />

papiamento também, os porcos já ao nosso lado<br />

rondando a mesa à espera das espinhas e eu a servir-lhes<br />

<strong>de</strong> bom grado a cabeça e o rabo, e o porco<br />

maior a dar à cauda feliz, bem educado, quase a<br />

pedir licença ou a <strong>de</strong>sculpar-se <strong>de</strong> qualquer gesto<br />

mais <strong>de</strong>satinado, a salivar os beiços como se a<br />

limpá-los antes da refeição, e a Úrsula-talvez com<br />

uma enorme familiarida<strong>de</strong> abrindo caminho entre<br />

aquela vara para nos vir perguntar se <strong>de</strong>sejávamos<br />

mais alguma coisa; ¡No, muchas gracias! e ela <strong>de</strong> volta<br />

a fazer carícias ao porco maior e eu, sem querer,<br />

juro que sem querer, olhei para o garoto a ver se<br />

tinha cola <strong>de</strong> cerdo, mas também confesso que nada<br />

vislumbrei. Mãe Úrsula sempre num vaivém azafamado<br />

e eu a querer meter conversa, que Macondo<br />

parecia un pueblo feliz e ela que en Macondo no ha pasado<br />

nada, ni está pasando nada ni pasará nunca e lengalengou<br />

coisas que não entendi bem mas que traduzi mais<br />

ou menos por hay mucho que cocinar, mucho que barrer,<br />

mucho que sufrir por pequeñeces. Lá me distraí <strong>de</strong> novo,<br />

meu querido leitor, e compreen<strong>de</strong>rei se <strong>de</strong> fúria<br />

não mais me perdoar ainda esta falha, mas juro<br />

que não voltará a acontecer nova mezcla <strong>de</strong> castelhano<br />

na nossa puríssima língua que comungamos.<br />

O resto foi assim, tudo naquele mistério <strong>de</strong><br />

lugar, <strong>de</strong> gente, sem nome e sem nada, apenas com<br />

uma gran<strong>de</strong> paz para os olhos e para as almas dos<br />

viajantes que nós éramos naquele outro mundo.<br />

Só <strong>de</strong>pois, já em casa, a minha curiosida<strong>de</strong> botânica<br />

foi suspeitar nomes colados a figuras e palpitou<br />

termos provavelmente comido patacones,yuca,berenjena<br />

e talvez rábano, mas não juro nem por nada <strong>de</strong>ste<br />

mundo ter acertado num sequer <strong>de</strong>sses vegetais<br />

tornados iguarias.<br />

Chegou o momento da torna (não houve<br />

pagamento, eram contas com o filho), a entrega<br />

certinha <strong>de</strong>ste vosso criado e narrador mais a Joanne<br />

no final da tar<strong>de</strong> ao taxista, que nos esperava <strong>de</strong><br />

regresso daquele além ignoto, tendo agora com<br />

uma preocupação no rosto explicado assim: a<br />

maré estava cheia e ia ser complicado regressar<br />

pela praia, no entanto tinha <strong>de</strong> ser por não existir<br />

melhor alternativa. Lá entrámos no carro-anfíbio<br />

para seguirmos em avanços e recuos, esperando o<br />

retrocesso das ondas para <strong>de</strong> novo avançar uns<br />

metros mais, e sempre nesse pára-avança-pára-<br />

-avança a fazer-me duvidar se os buracos da estrada<br />

estariam assim tão medonhos a ponto <strong>de</strong> tornarem<br />

mais seguro viajar num quase submarino. Uma<br />

onda maior <strong>de</strong>u um safanão no carro e sentimos o<br />

fresco da água nas pernas e o sorver da onda sugadora<br />

a querer arrastar-nos consigo.<br />

Era noite quando chegámos a Cartagena e, à<br />

entrada do hotel, enquanto pagávamos ao nosso<br />

taxista arquitecto <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>svio não anunciado <strong>de</strong><br />

Barranquila para Macondo, eu ia já contando tudo<br />

a um casal americano que conhecêramos dias<br />

antes mas não se atrevera a juntar-se-nos naquela<br />

Eram aves e peixes,<br />

árvores como na narrativa<br />

do Génesis<br />

nos dias da criação.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!