17.04.2013 Views

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

O QUE FAÇO EU AQUI 102<br />

103<br />

Foi com efeito um quase-acaso<br />

a levar-me à Colômbia,<br />

mais precisamente a uma<br />

cida<strong>de</strong>zinha dona do mais<br />

bonito nome <strong>de</strong> lugar –<br />

Cartagena <strong>de</strong> Indias – se for<br />

pronunciado <strong>de</strong>vidamente na<br />

língua e sotaque das nativas.<br />

Já lá vou, sim, que é tempo. Falei em «quaseacaso»<br />

e foi com efeito um quase-acaso a levar-me<br />

à Colômbia, mais precisamente a uma cida<strong>de</strong>zinha<br />

dona do mais bonito nome <strong>de</strong> lugar – Cartagena<br />

<strong>de</strong> Indias –, se for pronunciado <strong>de</strong>vidamente na<br />

língua e sotaque das nativas (bom, Madalena do<br />

Mar não lhe fica atrás, mas aqui para a estória <strong>de</strong>ixemos<br />

que fique). Estava <strong>de</strong>crépita a cida<strong>de</strong> naqueles<br />

anos, como uma mulher que após a sua ida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ouro <strong>de</strong>soladamente passou a <strong>de</strong>scuidar a apresentação<br />

e se habituou mesmo a nem sequer se<br />

pentear. Um banhinho pela Páscoa da Ressurreição<br />

era tudo. As fachadas da arquitectura davam testemunho<br />

<strong>de</strong> anos áureos mas longínquos. Todavia,<br />

mesmo naquele abandono ainda se podia imaginar<br />

assomando às varandas súbditos <strong>de</strong> sua majesta<strong>de</strong><br />

imperial D. Filipe, o Gran<strong>de</strong>, que ali mandou<br />

construir um castelo bem mais imponente do que<br />

o também por sua or<strong>de</strong>m erguido em Angra, esse<br />

palmilhado por mim em antigos anos.<br />

Igualmente por quase acaso, soube ficar Aracataca,<br />

terra natal <strong>de</strong> García Márquez, para lá <strong>de</strong><br />

Barranquilla, esta por sua vez a não exagerados<br />

quilómetros <strong>de</strong> Cartagena. E isso ajudava, aliás, a<br />

cimentar as minhas convicções sobre o irrealismo<br />

do realismo mágico porque, se Macondo não existe<br />

mais, como nos informa o final <strong>de</strong> Cien Años <strong>de</strong><br />

Soledad, e a sua gente não teve outra oportunida<strong>de</strong><br />

sobre a terra, Cartagena <strong>de</strong> Indias, por sua vez, exibia<br />

uma sólida realida<strong>de</strong> que tinha mais a ver com<br />

Lisboa e o Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> antanho do que com<br />

as invenções da tremenda broma literaria <strong>de</strong> García Már-<br />

quez. O terceiro e último quase-acaso aconteceu<br />

dias antes <strong>de</strong> viajar para Cartagena com a chegada<br />

do então mais recente livro do gran<strong>de</strong> Gabi, Crónica<br />

<strong>de</strong> una Muerte Anunciada, remetida por um livreiro<br />

amigo em viagem pela América Latina, entusiasmado<br />

com a edição <strong>de</strong> 800 000 exemplares largamente<br />

publicitada no seu lançamento. Decidi por<br />

isso levá-lo comigo para companheiro <strong>de</strong> praia e<br />

estendi-me, à letra, a lê-lo na areia por trás do<br />

Hotel Las Velas. A verda<strong>de</strong> é que a leitura foi um<br />

acto mecânico quase, porque anunciada estava na<br />

minha mente a ausência <strong>de</strong> entusiasmo por ela. Se<br />

calhar um círculo vicioso, mas dos meus preconceitos<br />

e <strong>de</strong>feitos pré-avisei o leitor.Três quase-acasos,<br />

portanto, trinda<strong>de</strong> nada <strong>de</strong>spicienda mesmo<br />

para quem como eu não é supersticioso.<br />

A Joanne aceitou <strong>de</strong> bom grado a sugestão <strong>de</strong><br />

irmos a Barranquilla e, <strong>de</strong> lá, a Aracataca. O problema<br />

era o transporte. Comigo ficava a incumbência<br />

<strong>de</strong> discernir uma solução através <strong>de</strong> contactos com<br />

os locais. Veio auspiciosa: um taxista levar-nos-ia à<br />

cida<strong>de</strong> por um preço bem módico e trar-nos-ia <strong>de</strong><br />

volta pelo anoitecer. Foi portanto assim, segundo o<br />

plano anunciado <strong>de</strong> véspera, que começou no dia<br />

seguinte o que venho contar neste relato.<br />

Não caí na patetice <strong>de</strong> falar ao taxista em realismo<br />

mágico. Que mais não fosse, por uma razão<br />

vital: ele entendia com lapsos graves o meu portunhol<br />

silabado e eu quase apenas lhe lia os gestos<br />

das mãos. Com o rodar do carro e dos minutos, foi<br />

aumentando o número <strong>de</strong> sons e palavras <strong>de</strong>cifráveis,<br />

mas nunca cheguei muito longe nesse trabalho<br />

insano. De qualquer modo, a meia hora <strong>de</strong> viagem<br />

ele conseguiu transmitir-nos um plano muito<br />

superior ao <strong>de</strong> Barranquilla on<strong>de</strong>, segundo ele (e<br />

os taxistas sabem sempre tudo), não havia nada<br />

melhor do que Cartagena – esa sí, una bella ciudad! – e<br />

on<strong>de</strong> nem sequer se <strong>de</strong>svendam quaisquer rastos<br />

<strong>de</strong> García Márquez. Prometia levar-nos ao início <strong>de</strong><br />

uma floresta tão fascinante como a Amazónia – no<br />

mínimo!, garantia-nos – mas se calhar mesmo<br />

melhor. Desviou o curso, meteu-se por estradas<br />

ainda mais esburacadas e, a dada altura, parou o<br />

carro, inspeccionou as redon<strong>de</strong>zas e, ao regressar,<br />

enrolou um amontoado <strong>de</strong> frases aparentemente<br />

explicando que a estrada se lhe <strong>de</strong>parara inesperadamente<br />

intransitável, mas não valia a pena <strong>de</strong>sistir<br />

do projecto se não nos importássemos <strong>de</strong> ir<br />

pela praia. Eu ainda barafustei que o Amazonas em<br />

nada se parecia com o mar Caribe e que o seu prometido<br />

sósia não po<strong>de</strong>ria ficar naquela direcção. A<br />

verda<strong>de</strong> é que, sem mapa, não tinha argumentos,

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!