17.04.2013 Views

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Em português eu <strong>de</strong>veria escrever «Introdução<br />

ao Realismo Mágico», ou «Realismo Mágico<br />

– I», mais ajustado aos hábitos universitários<br />

lusitanos, mas a verda<strong>de</strong> é que todos estes anos <strong>de</strong><br />

América acabam por cobrar o seu imposto no meu<br />

linguajar. E <strong>de</strong> facto é por estas terras <strong>de</strong> Colombo<br />

que amiú<strong>de</strong> <strong>de</strong> mais tenho encontrado <strong>de</strong>scrições<br />

<strong>de</strong> cursos sobre a tal indústria cunhada no título<br />

<strong>de</strong>sta narrativa, anunciando análises em ladainha<br />

laudatória dos seus pergaminhos inovadores na<br />

literatura com imaginative flights of fancy, o conceito<br />

mítico <strong>de</strong> tempo, a visão animista e vitalista, a simbiose<br />

natural-sobrenatural imano-transcen<strong>de</strong>nte, a<br />

osmose humano-telúrica, o hiperbólico e o<br />

monumental. Como se isso não bastasse, ainda há<br />

a flui<strong>de</strong>z ontológica, o méta-récit, a técnica <strong>de</strong> evasão<br />

semântica e a reticência autoral, a convenção<br />

trans<strong>cultura</strong>da, noções místicas <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> e<br />

essa lengalenga toda a evocar em mim um poeta<br />

guatemalteco hoje <strong>de</strong> nome morto na minha<br />

memória mas que nos meus anos juvenis, via<br />

Livraria Morais, no Largo do Pica<strong>de</strong>iro, 11, em Lisboa,<br />

atravessou o mar e me foi ter às ilhas, um engagé<br />

que bordoava nos intelectuais alienados, a alturas<br />

tantas <strong>de</strong>sancando em verso nos filósofos con su<br />

ontológica manera <strong>de</strong> llegar a las monedas. Estou a ser cruel,<br />

pe<strong>de</strong>stre mesmo, como se a <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar o real<br />

maravilhoso <strong>de</strong> Carpentier, a esquizofrenia <strong>cultura</strong>l<br />

em Miguel Ángel Asturias, o jogo mágico com<br />

o impossível <strong>de</strong> tantos outros autores, para não<br />

falar da etnografia imaginária do omnipresente<br />

García Márquez, en<strong>de</strong>usado esse em coro universal<br />

por o elemento fantástico na sua obra não ser nem<br />

obtrusive nem gratuitous, mas enriching, supporting and<br />

enhancing da narrativa. Em Macondo, um cadáver<br />

incorrupto, o padre que levita, a jovem que sobe<br />

ao céu, o bebé que nasce com cola <strong>de</strong> cerdo, que a<br />

gente diria rabo <strong>de</strong> porco, alfombras que voam,<br />

mortos que ressuscitam, e até chuvas <strong>de</strong> flores,<br />

mexeram com o mundo inteiro nos meus vinte e<br />

tantos anos, mas buliram pouco com a minha<br />

obtusa cabeça <strong>de</strong> basalto. A verda<strong>de</strong> é que nasci<br />

empírico e gostei cedo da repetida frase <strong>de</strong> um<br />

professor <strong>de</strong> música (sim, por incrível que pareça<br />

aprendi, ou melhor, tentaram ensinar-me): As couves<br />

nascem do chão! Nunca fui dado a arroubos teóricos<br />

e interesso-me sobretudo por coisas visíveis e<br />

palpáveis, como o aluno <strong>de</strong> medicina que só gostava<br />

<strong>de</strong> estudar anatomia pelo método <strong>de</strong> Braille.<br />

Quando viajei por Hegel, num curso por acaso<br />

optativo, <strong>de</strong>liciei-me interiormente no instante<br />

em que o Andy, conhecedor do <strong>de</strong>sdém que o filó-<br />

sofo nutria pelos factos (a ponto <strong>de</strong> um dia, confrontado<br />

com um naco <strong>de</strong>les, ter dito arrogantemente<br />

Não me importam os factos!), não se conteve a<br />

meio <strong>de</strong> uma prelecção do professor lançado estratosfera<br />

fora em <strong>de</strong>vaneio <strong>de</strong>lirante e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

esperado ansiosamente por um parágrafo, pois nas<br />

aulas nos States fica muito mal interromper-se<br />

alguém, professor ou aluno, tanto faz, <strong>de</strong>sferiu:<br />

Faça, por favor, um intervalinho para eu estragar essas teorias<br />

com um simples punhado <strong>de</strong> factos.<br />

Quando a gente é como a terra <strong>de</strong>u, nada a<br />

fazer. Por isso me <strong>de</strong>sculpe o leitor este arrazoado<br />

rasteiro que em nada belisca a honra, fama e glória<br />

<strong>de</strong> escritores que, felizmente para a humanida<strong>de</strong>,<br />

nasceram <strong>de</strong> outra estirpe e são por isso capazes<br />

<strong>de</strong> rasgos que transportam os seus leitores para<br />

fora <strong>de</strong>ste mundo mesquinho, chato e patusco<br />

on<strong>de</strong> só acontecem coisas previsíveis como a<br />

morte, as doenças, o casamento, a febre e a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> limpar o quarto. Ah! E os impostos,<br />

como nos lembraria Woody Allen. Se estava o amável<br />

leitor indignado comigo, fique sabendo que<br />

não procuro impor o meu gosto, naturalmente ou<br />

pela natura carimbado, largando-me por aí fora a<br />

aferir tudo o mais por ele. O acima dito teve apenas<br />

a intenção não consciente, e por sinal oriunda<br />

mesmo do quase-acaso, <strong>de</strong> lhe expressar sentimentos<br />

antigos como quem se confessa a um<br />

amigo que espero o leitor seja.<br />

A que vem então este maçudo e inoportuno<br />

prefácio?<br />

Estou a ser cruel, pe<strong>de</strong>stre<br />

mesmo, como se a <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar<br />

o real maravilhoso <strong>de</strong> Carpentier,<br />

a esquizofrenia <strong>cultura</strong>l em Miguel<br />

Ángel Asturias, o jogo mágico<br />

com o impossível <strong>de</strong> tantos outros<br />

autores, para não falar da<br />

etnografia imaginária do<br />

omnipresente García Márquez.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!