17.04.2013 Views

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 98<br />

99<br />

Aí cheguei eu um dia qualquer <strong>de</strong> 1972. Ia por<br />

incas. Fui guiado por um boato. Dizia-se em Cuzco<br />

que os pillpis eram portugueses. E a estranha notícia<br />

estava documentada, não com papéis mas com<br />

abundantes palavras. Por esses anos, a viagem <strong>de</strong><br />

Cuzco a Pillpinto <strong>de</strong>morava oito horas. O autocarro<br />

era pequeno e saía da Praça Limacpampa Gran<strong>de</strong>, às<br />

sete da manhã. Já por alturas da ponte <strong>de</strong> Quiquijana,<br />

subia para as lagoas <strong>de</strong> Pomacanchi para <strong>de</strong>scer<br />

até às paragens <strong>de</strong> Acomayo, as dos moinhos <strong>de</strong> Escalante.<br />

Um salto mais e estávamos em Acos e imediatamente<br />

<strong>de</strong>scia a estrada em ziguezague até às margens<br />

do Apurimác. Lá bem em baixo estavam as<br />

águas que se fingiam paradas e a ponte e as areias<br />

finas das margens e a roupa lavada e a gente.<br />

E a notícia correu em quechúa:<br />

«Chegou o nosso primo <strong>de</strong> Lisboa.»<br />

Apresentei-me ao presi<strong>de</strong>nte da junta <strong>de</strong> freguesia.<br />

«Português?» , «Pois sim...» « Nasceu aqui?» «Não,<br />

em Portugal»... E a notícia correu em quechúa:<br />

«Chegou o nosso primo <strong>de</strong> Lisboa.» O mistério que<br />

ro<strong>de</strong>ava a origem da população não tinha, à primeira<br />

vista, uma solução fácil.A traça era a mais comum<br />

e corrente. A fala era quechúa. E o trato era afável.<br />

Desconfiado mas afável. Do português, nem sombras.<br />

E quanto mais eu cavilava sobre o assunto, em<br />

noite <strong>de</strong> altura <strong>de</strong> frio e geada, com um fundo<br />

musical que vinha das gargantas profundas do Apurimác<br />

– «O senhor falador» –, mais me convencia<br />

que havia aí uma misteriosa coincidência <strong>de</strong> «ditos<br />

e feitos».Vamos aos primeiros.<br />

Se a memória não me atraiçoa, foi no mercado<br />

<strong>de</strong> São Pedro, em Cuzco, que ouvi falar <strong>de</strong> Pillpinto.<br />

Mas já nessa altura me tinham dito que por aí havia<br />

«malta lusa». Depois soube porquê. Era uma velha<br />

tradição ir ao mercado <strong>de</strong> São Pedro comprar folha<br />

<strong>de</strong> coca quando uma arroba não valia gran<strong>de</strong> coisa<br />

– os colombianos ainda não tinham <strong>de</strong>scoberto o<br />

negócio... – e eram precisamente os pillpis que a<br />

comercializavam, ou por dinheiro ou por «troco»,<br />

isto é, por outro produto. E, como era coisa nova<br />

para mim ver comprar e mastigar essa «divina<br />

folha» – a Virgem Maria <strong>de</strong>scansava <strong>de</strong> suas mágoas<br />

trincando a folha <strong>de</strong> coca, diz a lenda –, averiguei<br />

quem a vendia e, como toda a gente faz, comprei<br />

meio quilo para aquecer as frias noites cusquenhas.<br />

Remédio santo!<br />

Feitas as primeiras averiguações, contaram-me<br />

os próprios fregueses que era uma antiga tradição<br />

dos pillpis negociar produtos na região, cobrindo<br />

longas rotas altiplânicas e <strong>de</strong>scendo até às terras<br />

quentes <strong>de</strong> Urubamba e Quilhabamba, on<strong>de</strong> se<br />

abasteciam <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> coca e a transportavam para<br />

os mercados <strong>de</strong> Cuzco e arredores.Tudo isso se fazia<br />

com mulas, com numerosas récuas e dilatados dias<br />

<strong>de</strong> trabalho. Para os vales cálidos levavam carne seca<br />

– o famoso charqui – e aí trocavam a carne por<br />

coca. Eram meses <strong>de</strong> caminhar sem <strong>de</strong>scanso, até<br />

que os trabalhos agrícolas e a festa patronal exigiam<br />

a presença dos caminhantes na al<strong>de</strong>ia. Julho e Agosto<br />

eram obrigatórios. 15 <strong>de</strong> Agosto era a festa da<br />

Nossa Senhora da Assunção. Procissões, missas, baptizados,<br />

matrimónios e muita cerveja e abundante<br />

chicha, a bebida <strong>de</strong> milho fermentado. Com tudo<br />

isso não avançava muito na pesquisa dos rasgos<br />

lusos <strong>de</strong> Pillpinto. A paisagem humana da povoação<br />

mudou com os festejos. Mas o mistério da sua origem<br />

continuava imutável.<br />

O assunto moía-me a cabeça. E <strong>de</strong>cidi entrar<br />

em zonas <strong>de</strong> alfarrábios para <strong>de</strong>svendar o que a<br />

palavra popular escondia. O Arquivo Departamental<br />

<strong>de</strong> Cuzco guardava papéis sobre Pillpinto: transacções<br />

comerciais, proprieda<strong>de</strong>s e umas quantas rixas<br />

legais.Também <strong>de</strong>scobri que a povoação tinha participado<br />

activamente nas revoltas <strong>de</strong> Túpac Amaru,<br />

apoiando os rebel<strong>de</strong>s contra o regime espanhol.<br />

Vencidos os indígenas, executado o chefe, as autorida<strong>de</strong>s<br />

espanholas enviaram a Pillpinto um braço do<br />

infeliz caudilho para que todos soubessem como se<br />

castigam as massas revoltosas. Não foi por serem<br />

portugueses. Os motivos eram outros, e as raízes<br />

<strong>de</strong>les vinham talvez da vizinhança <strong>de</strong> Acos on<strong>de</strong><br />

pontificava a cacique Micaela Bastidas, companheira<br />

<strong>de</strong> infortúnio <strong>de</strong> Túpac Amaru.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!