Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
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<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />
N.º 04 Primavera Verão 2006 15C _ Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />
LUGARES DE PARTIDA<br />
LUANDA<br />
MANUEL RUI<br />
CIDADES INVISÍVEIS<br />
LIMA DO OUTRO LADO<br />
DOS MUROS<br />
DA CIDADE LITERÁRIA<br />
VIDAS CONTADAS<br />
UMA EVOCAÇÃO DE<br />
JOSÉ MARÍA ARGUEDAS<br />
CECILIA BUSTAMANTE<br />
RIOS PROFUNDOS<br />
CÔA, O RIO QUE NUNCA<br />
VIU O MAR<br />
MARIA LÚCIA GARCIA MARQUES<br />
O QUE FAÇO EU AQUI<br />
MAGICAL REALISM – 101<br />
ONÉSIMO TEOTÓNIO DE ALMEIDA<br />
A MARESIA DO MUNDO<br />
PERTO DA RIA<br />
GASTÃO CRUZ
Número 04 Primavera Verão 2006<br />
<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />
3 ENTRE FRONTEIRAS DE SAL João Ventura<br />
4 TODOS OS NOMES<br />
6 HERÓIS DO MAR<br />
Apanhadores <strong>de</strong> algas João Mariano<br />
14 LUGARES DE PARTIDA<br />
Luanda Manuel Rui<br />
16 VAGA GENTE<br />
Esta vida <strong>de</strong> marinheiro… Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
20 TRAVESSIAS<br />
Luanda-Minas-Luanda Ondjaki e Paulinho Assunção<br />
30 SANTOS DA CASA<br />
Vida, paixão, morte e ressurreição da Tirana do Tamarugal<br />
Virgínia Vidal<br />
38 CIDADES INVISÍVEIS<br />
LIMA<br />
40 Lima do outro lado dos muros da cida<strong>de</strong> literária Eva Valero Juan<br />
46 Os Bairros Altos e seus cinemas Alejandro Reyes<br />
50 VIDAS CONTADAS<br />
Uma evocação <strong>de</strong> José María Arguedas Cecilia Bustamante<br />
58 A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />
OS CAMINHOS DA DEMOCRACIA<br />
60 O obstinado retorno da utopia Roberto Ampuero<br />
66 Eixos e paradoxos das mudanças <strong>de</strong> rumo nas <strong>de</strong>mocracias<br />
e governos da América do Sul Gerardo Caetano<br />
74 CEM ANOS DE SOLIDÃO<br />
Os filhos,Tucumán vinte anos <strong>de</strong>pois Julio Pantoja<br />
76 RIOS PROFUNDOS<br />
Côa, o rio que nunca viu o mar… Maria Lúcia Garcia Marques<br />
84 BESTIÁRIO<br />
Do macaco <strong>de</strong> Paimogo ao mico-leão-dourado Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />
88 SABORES PRINCIPAIS<br />
Sabores perdidos Carmen Yáñez<br />
92 ESTÁDIO DE SÍTIO<br />
Quando o futebol era magia Alberto Mosquera Moquillaza<br />
96 ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM<br />
Portugueses nos An<strong>de</strong>s peruanos ou o mistério<br />
da Boca Mina <strong>de</strong> Pillpinto Osvaldo Henrique Urbano<br />
100 O QUE FAÇO EU AQUI<br />
Magical realism – 101 Onésimo Teotónio <strong>de</strong> Almeida<br />
108 A MARESIA DO MUNDO<br />
Perto da ria Gastão Cruz<br />
110 FICÇÕES<br />
A mosca e o ladrão Ondjaki<br />
112 SETE MARES<br />
Mar Portugal Ricardo Diniz<br />
116 A MUDANÇA DA TERRA<br />
Os vilancetes glosados dos foliões das festas<br />
do Espírito Santo <strong>de</strong> Marmelete (Algarve) Aliete Galhoz
Nesta edição mergulhamos, primeiro, com os apanhadores<br />
<strong>de</strong> algas da Costa Vicentina, para, <strong>de</strong>pois, subirmos<br />
à Serra <strong>de</strong> Monchique e, numa errância pela tradição<br />
oral, recuperarmos os vilancetes glosados dos foliões das<br />
festas do Espírito Santo, em Marmelete. Descobrimos,<br />
ainda, o Côa, «correndo teimoso entre invernos e estiagens,<br />
cioso guardador <strong>de</strong> memórias». Mas é <strong>de</strong> Luanda<br />
que nos fazemos <strong>de</strong> novo ao mar oceano, puxando os fios<br />
azuis dos achamentos na outra margem atlântica. Imaginamo-nos<br />
em navios armados com a ma<strong>de</strong>ira da Serra <strong>de</strong><br />
Monchique, cruzando as mesmas rotas da vaga gente lusitana.<br />
Como João Fernan<strong>de</strong>s, marinheiro portimonense e<br />
Fotografia <strong>de</strong> Paulo Barata<br />
Entre fronteiras <strong>de</strong> sal<br />
João Ventura<br />
jventura_atlantica@yahoo.com<br />
negociante em Acapulco. Ou como os mineiros escavando<br />
as entranhas dos An<strong>de</strong>s peruanos. Enchemos <strong>de</strong><br />
sonhos uma embarcação a damos nome <strong>de</strong> Eusebel e partimos<br />
<strong>de</strong> Luanda para Minas guiados pelas estrelas do sul.<br />
Navegamos «sem passaporte entre fronteiras por sentinelas<br />
<strong>de</strong> sal e silêncio», até aportarmos a lugares «mais<br />
remotos que Lima» que apenas vislumbramos nos confins<br />
<strong>de</strong> um mundo, agora, invisível. E, como uma oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> recomeço, reinventamos uma América on<strong>de</strong> se<br />
projectam as utopias da vaga gente <strong>de</strong> há cinco séculos e<br />
dos revolucionários que procuram calar o silêncio dos<br />
«cem anos <strong>de</strong> solidão».
TODOS OS NOMES 4<br />
5<br />
ALBERTO MOSQUERA MOQUILLAZA [Lima, Peru] é antropólogo pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Marcos<br />
(UNMSM) e mestre em História da Filosofia na mesma Universida<strong>de</strong>, tendo exercido o jornalismo e colaborado<br />
em várias publicações periódicas da capital peruana. Actualmente é docente na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Económicas<br />
da UNMSM, on<strong>de</strong> também é o coor<strong>de</strong>nador da edição da sua revista institucional. ALEJANDRO REYES<br />
FLORES [Lima, Peru] é doutorado em História pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Marcos, sendo actualmente <strong>de</strong>cano na<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Sociais da mesma Universida<strong>de</strong>. Tem como trabalhos publicados La esclavitud en Lima. 1800-<br />
-1840,América Latina en la década <strong>de</strong>l 90, Contradicciones en el Perú colonial. 1650-1810, e Hacendados y comerciantes en el norte peruano.<br />
1780-1820. CARMEN YÁÑEZ HIDALGO [Santiago do Chile] viveu o seu exílio na Suécia entre 1981 e 1997. Em<br />
Gijón (Astúrias) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1997, publicou aí o seu primeiro livro <strong>de</strong> poesia Paisaje <strong>de</strong> luna fría. Em 2002, foi-lhe atribuído<br />
o prémio <strong>de</strong> poesia Nicolás Guillén. Alas <strong>de</strong>l viento é o seu último livro.Actualmente, integra o conselho <strong>de</strong> redacção<br />
da revista do Salão do Livro Ibero-Americano <strong>de</strong> Gijón. CECILIA BUSTAMANTE [Lima, Peru] é escritora,<br />
poeta, jornalista, editora e conferencista. Foi a primeira mulher a receber o Prémio Nacional <strong>de</strong> Poesia do Peru<br />
em 1965. Representou o Peru em eventos nacionais e internacionais, na literatura, políticas <strong>cultura</strong>is, <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentável, direito das mulheres e direitos humanos. A sua obra literária foi traduzida e publicada em<br />
vários idiomas. EVA VALERO JUAN [Alicante, Espanha] é professora <strong>de</strong> Literatura Hispano-Americana na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Alicante, on<strong>de</strong> se doutorou em Filologia Hispânica. Dedicou vários trabalhos críticos à literatura peruana e às<br />
relações <strong>cultura</strong>is e literárias entre Espanha e a América Latina. Publicou diversos artigos sobre autores hispano-<br />
-americanos como Ricardo Palma e Pablo Neruda, entre outros. Entre as suas publicações, <strong>de</strong>staca-se o livro Lima<br />
en la tradición literaria <strong>de</strong>l Perú. De la leyenda urbana a la disolución <strong>de</strong>l mito (2003). GASTÃO CRUZ [Faro, Portugal] Poeta e<br />
crítico literário, formou-se em Filologia Germânica pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi professor do ensino secundário<br />
e, entre 1980 e 1986, leitor <strong>de</strong> Português no King’s College, em Londres. Como poeta, o seu nome aparece<br />
inicialmente ligado à publicação colectiva Poesia 61. Como crítico literário, colaborou em vários jornais e revistas<br />
ao longo dos anos sessenta. Além da sua obra poética, <strong>de</strong>staque-se o ensaio A Poesia Portuguesa Hoje (1973).<br />
GERARDO CAETANO [Montevi<strong>de</strong>u, Uruguai] é um dos mais <strong>de</strong>stacados historiadores e politólogos uruguaios.<br />
Director do Instituto <strong>de</strong> Ciência Política da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> la República, é autor <strong>de</strong> numerosos livros e publicações<br />
nas suas áreas <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong>, muitos dos quais premiados. É coor<strong>de</strong>nador do programa <strong>de</strong> investigação<br />
sobre «Estudos Legislativos» do Centro Latino-Americano <strong>de</strong> Economia Humana e docente <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> licenciatura<br />
e pós-graduação em História e Ciência Política. HENRIQUE CAYATTE [Lisboa, Portugal] é presi<strong>de</strong>nte do<br />
Centro Português <strong>de</strong> Design e Professor Convidado da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro. Foi fundador e autor do <strong>de</strong>sign global,<br />
editor gráfico e ilustrador do jornal Público. Consultor para os projectos especiais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign da EXPO'98 e do<br />
respectivo plano <strong>de</strong> pormenor do recinto. Co-autor do sistema <strong>de</strong> sinalética e comunicação da EXPO’98. Co-autor<br />
e responsável pelo <strong>de</strong>sign da revista Egoísta. Comissário e autor do <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> diversas exposições em Portugal e no<br />
estrangeiro. Entre os vários galardões, recebeu em 2003 o Prémio Nacional <strong>de</strong> Design e o Prémio Dibner Award.<br />
JOÃO MARIANO [Aljezur, Portugal] é fotógrafo. Editou e coor<strong>de</strong>nou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o<br />
<strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> fotografia do portal Terravista e actualmente dirige a agência 1000olhos – Imagem e<br />
Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos, e expõe regularmente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993. Colabora eventualmente<br />
com a revista Egoísta e com o semanário Dna. JOÃO VENTURA [Portimão, Portugal] é mestre em<br />
Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e pós-graduado em Ciências Documentais (área <strong>de</strong><br />
Bibliotecas) pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi leitor <strong>de</strong> Língua e Cultura Portuguesas na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris III<br />
e docente convidado na Escola Superior <strong>de</strong> Educação da Universida<strong>de</strong> do Algarve. Entre 1998 e 2003, <strong>de</strong>sempenhou<br />
as funções <strong>de</strong> <strong>de</strong>legado regional do Ministério da Cultura no Algarve. Actualmente <strong>de</strong>senvolve activida<strong>de</strong> na<br />
área da gestão <strong>cultura</strong>l como director do projecto «Fórum Cultural <strong>de</strong> Portimão». JULIO PANTOJA [Tucumán,<br />
Argentina] fotodocumentarista, jornalista, criativo e editor, formou-se como arquitecto e técnico <strong>de</strong> fotografia na<br />
Universida<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Tucumán (Argentina). É docente universitário e dirige, com Gabriel Varsanyi, os Ateliers<br />
<strong>de</strong> Expressão e Fotodocumentalismo. A sua obra integra colecções públicas e privadas, como as do Museu Nacional<br />
<strong>de</strong> Belas-Artes (Argentina) e as da Casa das Américas (Cuba). É membro do Instituto Hemisférico <strong>de</strong> Performance<br />
e Políticas para as Américas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque. As suas fotografias foram expostas em galerias da<br />
Argentina, Venezuela, Brasil, Chile, Nicarágua, El Salvador, Espanha, França, Estados Unidos, Holanda, Alemanha,<br />
Suíça e África do Sul. MANUEL RUI [Huambo, Angola] licenciou-se em Direito pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra<br />
on<strong>de</strong> foi também membro fundador do Centro <strong>de</strong> Estudos Jurídicos. Poeta, ficcionista, ensaísta e cronista, entre<br />
as suas obras possui textos traduzidos para diversas línguas, como checo, servo-croata, romeno, russo, árabe e<br />
hebraico.Tem colaboração dispersa em diversos jornais e revistas lusófonos, entre os quais o jornal Público e o Jornal<br />
<strong>de</strong> Letras. Foi ministro da Comunicação Social do Governo <strong>de</strong> transição que antece<strong>de</strong>u a in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Angola,<br />
director do Departamento <strong>de</strong> Orientação Revolucionária e do Departamento <strong>de</strong> Relações Exteriores do MPLA. É<br />
autor da letra do primeiro Hino Nacional <strong>de</strong> Angola e <strong>de</strong> outros hinos, como o “Hino da Alfabetização, “Hino da<br />
Agri<strong>cultura</strong>” e versão angolana da “Internacional”. Também é autor <strong>de</strong> canções em parceria com Rui Mingas,
André Mingas, Paulo <strong>de</strong> Carvalho e Carlos do Carmo (Portugal) e Martinho da Vila (Brasil), entre outros. Da sua<br />
vastíssima obra, <strong>de</strong>stacam-se os dois últimos títulos: O Manequim e o Piano (2005) e Estórias <strong>de</strong> Conversa (2006).<br />
MARIA ADELINA AMORIM [Lisboa, Portugal] é mestre em História do Brasil e autora <strong>de</strong> vários estudos sobre<br />
a missionação no Brasil e sobre a literatura <strong>de</strong> viagens. Investigadora do CLEPUL e membro da ACLUS, colaborou<br />
na organização do Dicionário <strong>de</strong> Lusofonia (Texto Editora, 2006). MARIA ALIETE GALHOZ [Boliqueime, Portugal] é<br />
licenciada em Filologia Românica pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi professora do ensino<br />
secundário <strong>de</strong> 1953 a 1972. Des<strong>de</strong> estudante que se <strong>de</strong>dica à pesquisa literária, tendo colaborado com Lindley<br />
Cintra, no Centro <strong>de</strong> Estudos Filológicos, e com Viegas Guerreiro, no Centro <strong>de</strong> Estudos Geográficos da FLUL.<br />
Ensaísta e investigadora, é autora <strong>de</strong> numerosos estudos sobre poesia e poetas portugueses, com <strong>de</strong>staque para<br />
Fernando Pessoa e para a literatura popular. Está ligada ao Centro <strong>de</strong> Tradições Populares Portuguesas da<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa e actualmente é vice-directora da <strong>Revista</strong> Lusitana. MARIA DA GRAÇA A. MATEUS<br />
VENTURA [Portimão, Portugal] é doutora em Letras pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Fundadora do ICIA, foi vice-presi<strong>de</strong>nte<br />
da Direcção <strong>de</strong> 1995 a 2002, sendo presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2002. É professora visitante na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências<br />
Humanas e Sociais da Universida<strong>de</strong> do Algarve no âmbito da Cátedra <strong>de</strong> Estudos Ibero-Americanos, da qual é<br />
coor<strong>de</strong>nadora-executiva. Especialista em história da Ibero-América, com numerosos textos publicados nesta área,<br />
com <strong>de</strong>staque para Os Portugueses no Peru ao tempo da união ibérica: mobilida<strong>de</strong>, cumplicida<strong>de</strong>s e vivências (INCM, 2005). MARIA<br />
DE LOURDES CARRASQUINHO GOMES [Lisboa, Portugal] é licenciada em Artes Plásticas-Pintura pela ESBAL.<br />
Professora <strong>de</strong> Educação Visual no ensino básico. Como pintora, participou em várias exposições colectivas.<br />
Associada no ICIA. MARIA LÚCIA GARCIA MARQUES [Lisboa, Portugal] é licenciada em Românicas, doutorou-se<br />
em Linguística Portuguesa Aplicada e <strong>de</strong>dicou-se à investigação sobre o Português Contemporâneo.<br />
Leccionou Análise <strong>de</strong> Texto na Universida<strong>de</strong> Católica Portuguesa. Esteve ligada ao Instituto <strong>de</strong> Cultura e Língua<br />
Portuguesa – ICALP (actual Instituto Camões) – cuja revista lançou e coor<strong>de</strong>nou. Integra actualmente a direcção<br />
da ACLUS (Associação <strong>de</strong> Cultura Lusófona). Para além <strong>de</strong> trabalhos da sua especialida<strong>de</strong> científica, tem dois<br />
livros <strong>de</strong> poesia publicados. ONDJAKI [Luanda, Angola] é licenciado em Sociologia. Ficcionista, poeta, guionista<br />
e artista plástico, recebeu vários prémios literários em Portugal e Angola. Em 2005, o seu livro <strong>de</strong> contos E se<br />
amanhã o medo obteve os prémios Sagrada Esperança (Angola) e António Paulouro (Portugal). Alguns dos seus<br />
livros foram traduzidos para francês, espanhol, italiano e alemão. Actualmente resi<strong>de</strong> em Terra <strong>de</strong> Sauda<strong>de</strong>, a 800<br />
km da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Luanda. ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA [Pico da Pedra, S. Miguel, Açores, Portugal] é doutorado<br />
em Filosofia pela Brown University (EUA) e professor catedrático no Departamento <strong>de</strong> Estudos Portugueses<br />
e Brasileiros da mesma Universida<strong>de</strong>. Escritor com uma vasta obra publicada (conto, ensaio, crónica, teatro). Foi<br />
colaborador regular no DN e escreve com frequência para o Jornal <strong>de</strong> Letras. A sua obra mais recente, publicada em<br />
2004, é Onze Prosemas (e um final merencório). OSVALDO HENRIQUE URBANO [Lima, Peru] foi <strong>de</strong> Aveiro para o<br />
Canadá on<strong>de</strong> obteve o grau <strong>de</strong> PhD em Ciências Sociais (Université Laval, Québec) e foi catedrático <strong>de</strong> Sociologia<br />
da mesma Universida<strong>de</strong>. Daqui partiu para o Peru on<strong>de</strong> fundou o Centro Las Casas (Cuzco, Peru) e a <strong>Revista</strong> Andina.<br />
Actualmente é director do Instituto <strong>de</strong> Investigações da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências da Comunicação, Turismo e<br />
Psicologia (Universida<strong>de</strong> San Martín <strong>de</strong> Porres, Lima, Peru) e director da revista Turismo y Patrimonio. PAULINHO<br />
ASSUNÇÃO [São Gotardo, Minas Gerais, Brasil] é ficcionista, poeta e jornalista profissional. Ganhou dois prémios<br />
literários nacionais no Brasil: o Prémio Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte, em 1983, com Diário do mudo (Poesia), e o<br />
Prémio Guimarães Rosa, em 1998, com Pequeno tratado sobre as Ilusões (contos), este editado em Portugal pela Campo<br />
das Letras. Vive em Belo Horizonte, <strong>de</strong>dicando-se à escrita e a uma pequena editora, a Edições 2 Luas. PAULO<br />
BARATA [Luanda, Angola] é fotógrafo free lancer, trabalha como fotógrafo <strong>de</strong> cena para teatro, cinema e televisão,<br />
e colabora regularmente com o DNA e Sábado. Expõe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999. RICARDO DINIZ [Lisboa, Portugal] Autodidacta<br />
na arte <strong>de</strong> navegar pelos oceanos, é também criador e impulsionador <strong>de</strong> diversos projectos <strong>de</strong> educação, marketing<br />
e gestão. Colabora com escolas, empresários, artistas, escritores e atletas, como catalisador dos seus objectivos<br />
e ambições.Todos as suas iniciativas têm como pano <strong>de</strong> fundo o Projecto «Ma<strong>de</strong> in Portugal» – a promoção<br />
e credibilização <strong>de</strong> Portugal no mundo, transmitindo valores <strong>de</strong> tecnologia, qualida<strong>de</strong> e inovação no maior palco<br />
do mundo – os Oceanos. ROBERTO AMPUERO [Valparaíso, Chile] é um dos romancistas chilenos mais lidos. O<br />
seu recente romance Los Amantes <strong>de</strong> Estocolmo, o maior êxito editorial <strong>de</strong> 2003 no Chile, foi eleito livro do ano pela<br />
prestigiada <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> Libros do Chile. Os seus romances foram traduzidos em alemão, francês, italiano e português.<br />
O livro Encontro no Azul Profundo (Temas e Debates, 2004) relata parte da saga do seu popular investigador chileno-<br />
-cubano Cayetano Brulé. VIRGINIA VIDAL [Santiago, Chile] é escritora e jornalista. Exilada em 1976, viveu na<br />
ex-Jugoslávia e na Venezuela até 1987. Os seus textos foram traduzidos e publicados em diversas línguas. Tem<br />
inúmeros artigos <strong>de</strong> crítica <strong>cultura</strong>l em revistas e diários da Venezuela. A sua novela Cadáveres <strong>de</strong>l incendio hermoso<br />
recebeu o Prémio María Luisa Bombal <strong>de</strong> Viña <strong>de</strong>l Mar em 1989. Trabalhou no programa <strong>cultura</strong>l do Canal 9 da<br />
Universida<strong>de</strong> do Chile. Integrou o conselho <strong>de</strong> redacção da revista Araucária. Actualmente, é directora da revista<br />
Anaquel Austral e directora da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Escritores do Chile.
HERÓIS DO MAR 6 7<br />
Apanhadores <strong>de</strong> algas<br />
João Mariano
HERÓIS DO MAR 8 9
É chegado o mês <strong>de</strong> Julho e os preparativos são iniciados. Preparam-se os barcos,<br />
as pinturas, as limpezas, afinam-se os motores e os compressores, reúnem-se as<br />
companhas e avança-se para mais uma época <strong>de</strong> apanha submarina <strong>de</strong> algas.São<br />
cerca <strong>de</strong> três meses <strong>de</strong> uma activida<strong>de</strong> que, ao longo <strong>de</strong> alguns pontos da costa<br />
portuguesa, se revela como uma das mais duras tarefas executadas sob os auspí-<br />
cios do reino dos mares.<br />
Um ciclo <strong>de</strong> trabalhos que se inicia na Carrapateira e na Azenha do Mar, em<br />
terra, bem cedo pela manhã. E é junto ao «muro das lamentações», como alguns<br />
chamam ao muro que fica virado para o mar da Azenha, que os apanhadores <strong>de</strong><br />
algas olham o mar e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m se o dia é <strong>de</strong> trabalho. É aqui, também, que se reú-<br />
nem quando o mar está mau e é aqui, ainda, que conversam acerca do futuro da<br />
activida<strong>de</strong> e recordam outros tempos <strong>de</strong> safra.<br />
A apanha submarina <strong>de</strong> algas, em todas as suas fases <strong>de</strong> recolha, é uma activi-<br />
da<strong>de</strong> on<strong>de</strong> os limites físicos do ser humano são levados ao extremo. São horas <strong>de</strong><br />
trabalho extenuante, com uma repetição <strong>de</strong> movimentos executados num meio<br />
adverso e sujeito a variações constantes <strong>de</strong> pressão atmosférica em que, frequen-<br />
temente, as regras elementares <strong>de</strong> mergulho não são cumpridas. É um esforço<br />
enorme, em circunstâncias a que o ser humano não está, por natureza, habituado,<br />
que transforma a apanha <strong>de</strong> algas num dos trabalhos mais árduos, duros e arris-<br />
cados que po<strong>de</strong>mos presenciar em território português.
HERÓIS DO MAR 10 11
HERÓIS DO MAR 12 13
LUGARES DE PARTIDA 14 15<br />
Luanda<br />
Manuel Rui<br />
Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Luanda, séc. XVIII. Gravura aguarelada holan<strong>de</strong>sa. Imagem: Arquivo Histórico Ultramarino<br />
Luanda <strong>de</strong>bruçada sobre o mar<br />
on<strong>de</strong> as ondas uma a uma<br />
vêm <strong>de</strong>sfazer-se em espuma<br />
e a tua ilha beijar<br />
(canção <strong>de</strong> Eleutério Sanches)
A <strong>Atlântica</strong> é uma in<strong>de</strong>finição que<br />
ocorre nas algas. Em muitas terras do<br />
mundo on<strong>de</strong> os búzios falam na praia<br />
sobre a paixão das conchas pelos sons.<br />
Os sons sempre foram uma paixão dos<br />
afectos. Os búzios dizem que são a paixão<br />
<strong>de</strong>las, as conchas, pelos sons <strong>de</strong>les. E as<br />
conchas vão conchilando na maneira<br />
fêmea e discreta que são a paixão <strong>de</strong>les<br />
pelo som <strong>de</strong>las porque os búzios andam<br />
sempre inteiros e fechados, e as conchas,<br />
elas <strong>de</strong> patroas do eros, <strong>de</strong>ixando-se na<br />
embalação da maré até na areia revolvida e<br />
praia, se dão mesmo <strong>de</strong> entrega <strong>de</strong> sabida<br />
e fingida nostalgia, semiabertas ou abertas<br />
para se mostrarem nos olhos do sol e doarem<br />
seu sabor <strong>de</strong> inteiro sal. Sal <strong>de</strong> mar.<br />
Esse que andou a misturar tudo em suas<br />
maresias <strong>de</strong> marear as sinas com bué <strong>de</strong><br />
viagens <strong>de</strong>sbussoladas nos pontos car<strong>de</strong>ais<br />
embebedados em azimutes <strong>de</strong> cicatriz e<br />
sofrimento que tatuaram o mundo inteiro<br />
como se <strong>de</strong> marinhagem fossem o ódio, o<br />
amor e as lembranças para misturar os tons<br />
dos sons.<br />
De Luanda. Ninguém cansou maré<br />
por esses baixios e canais sempre cada vez<br />
mais mudados pelas luas <strong>de</strong> ibua e izala e<br />
os ventos do antigamente a repuxarem o<br />
tempo para outras travessias com a memória<br />
sem as tempesta<strong>de</strong>s a dar à costa quando<br />
os homens carregavam nas costas o<br />
mar como se fossem embon<strong>de</strong>iros com<br />
raízes a crescerem mesmo nas viagens<br />
como se fossem ramos e enchiam assim os<br />
porões <strong>de</strong> sonhos amarrados a grilhetas e<br />
agora o mar até dá sonambulações nos<br />
homens que usam ouro em anéis, fios<br />
grossos e pulseiras e olham pelas janelinhas<br />
dos aviões a água salgada sinalizada<br />
por sondas flamejantes <strong>de</strong>marcando os<br />
novos cemitérios da energia dos pássaros e<br />
das flores que andam a per<strong>de</strong>r seu perfume<br />
no petro-aroma.<br />
Luanda abriu muitas linhas para o mar<br />
por nunca ter tido um princípio porque os<br />
homens chegantes dos achamentos jamais<br />
<strong>de</strong>scobriram o que já existia. Só encontraram<br />
por acaso e por mor do mar e, então,<br />
nunca ninguém veio pela Atlântida <strong>de</strong><br />
Lisboa para Luanda ou foi <strong>de</strong> Luanda para<br />
Niterói. Antes pelo contrário, as pessoas<br />
foram pelo mar para o mesmo mar.<br />
Inventaram diferenças como a escravatura<br />
ou a conversão dos índios à cruz com os<br />
donos das roças ou fazendas na aprendizagem<br />
das danças e rituais das febres.<br />
Luanda abriu muitas linhas para o mar<br />
se conhecer nas luzes e nas trevas <strong>de</strong> cada<br />
remo e dongo <strong>de</strong> ximbicar com bordão<br />
saboado <strong>de</strong> espuma na miragem da terra<br />
salpicada <strong>de</strong> fogos-fátuos <strong>de</strong> metralhas e<br />
obuses tracejantes num incêndio que a<br />
cida<strong>de</strong> conseguiu apagar com o sorriso<br />
cansado e chorado dos meninos dos<br />
muceques.<br />
Luanda foi sempre um ponto <strong>de</strong> partida<br />
por causa do horizonte <strong>de</strong> quem a<br />
encontrou em paz consigo própria. E também<br />
foi ponto <strong>de</strong> partida para geografar <strong>de</strong><br />
outra maneira o oceano e levar por ele a<br />
<strong>de</strong>scoberta da Ibéria que se reinventou<br />
com esta parte <strong>de</strong> África no outro lado do<br />
oceano, tangando no tango, sambando e<br />
sobrevivendo nos blues a boiar nos salvados<br />
da tragédia <strong>de</strong> New Orleans.<br />
Luanda continua ponto <strong>de</strong> partida.<br />
Principalmente quando chegam e continuam<br />
a chegar mais pessoas para conhecer<br />
Luanda. Não é a Luanda dos cartazes. Nem<br />
a Luanda das gran<strong>de</strong>s reportagens. É a<br />
Luanda que tem um povo mesmo luan<strong>de</strong>nse.<br />
Que gosta <strong>de</strong> farra. Gosta <strong>de</strong> rir. E <strong>de</strong><br />
falar as coisas essas próprias <strong>de</strong> que Luanda<br />
é um ponto <strong>de</strong> partida que está sempre<br />
esperando todas as pessoas. As que saíram<br />
nas caravelas e sem morrer se infinitam na<br />
<strong>de</strong>scendência multiplicada no topo do basquete<br />
ou futebol mundial ou ainda cantando<br />
blues e sambas, ou, ainda, erguendo<br />
força na construção civil com a recompensa<br />
<strong>de</strong> receberem a con<strong>de</strong>coração <strong>de</strong> problemáticos.<br />
Luanda é muito a sério. É muito atlântica<br />
e como ponto <strong>de</strong> partida quem daqui<br />
sair ou quem lhe vier conhecer, bebendo<br />
água do Bengo, só vai ter o coração cheio<br />
<strong>de</strong>ssa magia <strong>de</strong> não querer sair mais.<br />
Luanda, <strong>de</strong>ste oceano que <strong>de</strong>sencontrou<br />
o encontro, é um ponto <strong>de</strong> partida.<br />
Mas sempre para voltar. Num hungo ou<br />
numa guitarra. É sempre um som <strong>de</strong> um<br />
tom tão viajado com sabor a beijo da boca<br />
tão beijada do mar <strong>de</strong> baçula ou capoeira.
VAGA GENTE 16 17<br />
Esta vida<br />
<strong>de</strong> marinheiro…<br />
Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
Portal tardo-gótico da Igreja Matriz <strong>de</strong> Portimão. Fotografia <strong>de</strong> Paulo Arez
VAGA GENTE 18 19<br />
Vaga gente <strong>de</strong>finida num olhar que<br />
cruzava o oceano projectando na outra<br />
margem a ambição <strong>de</strong> regressar com fama<br />
e muito proveito ou <strong>de</strong> ficar por lá rendida<br />
à riqueza <strong>de</strong> outra terra. Gente do mar que<br />
partiu <strong>de</strong> Vila Nova <strong>de</strong> Portimão, à beira do<br />
rio, para as Índias, cruzando o gran<strong>de</strong> Mar<br />
Oceano em navios <strong>de</strong> negros, e que aportou<br />
a Cartagena das Índias, à terra que o<br />
historiador Pierre Chaunu disse que seria<br />
portuguesa se a unicefalia dos Estados ibéricos<br />
não se tivesse <strong>de</strong>sfeito<br />
tão <strong>de</strong>pressa. Nessa<br />
cida<strong>de</strong>, em 1630, muitos<br />
eram algarvios <strong>de</strong> Portimão<br />
frequentadores dos<br />
portos antilhanos.Tinham<br />
aportado como marinheiros,<br />
pilotos, mestres, pajens.<br />
Deixaram a mulher,<br />
os filhos, os pais e os<br />
irmãos e andavam <strong>de</strong> cá<br />
para lá, a bordo dos galeões<br />
da armada, tripulando<br />
os navios negreiros.<br />
Foram perseguidos por<br />
piratas e corsários que<br />
seguiam no rasto líquido<br />
do ouro e da prata que<br />
jorravam do Peru e do<br />
México.<br />
Habituados à faina,<br />
numa vila muralhada<br />
moldada na sua vocação<br />
marítima, conviviam <strong>de</strong><br />
perto com o contrabando<br />
que se praticava nas<br />
praias recônditas, viajando<br />
pelo Mediterrâneo,<br />
movidos por um dinâmico<br />
comércio <strong>de</strong> pescado<br />
e <strong>de</strong> frutos secos, não resistiram ao<br />
apelo da aventura nesse outro Mediterrâneo<br />
que Colombo inaugurara. Armavam<br />
navios com a ma<strong>de</strong>ira da serra <strong>de</strong> Monchique,<br />
prenhe <strong>de</strong> castanheiros, incentivados<br />
pelos privilégios concedidos por<br />
D. Sebastião aos moradores <strong>de</strong> Portimão<br />
para a construção naval. Iam para Sevilha e<br />
daqui para a América espanhola, como se<br />
fossem naturais <strong>de</strong> Castela, diziam eles.<br />
Mas não eram e, por isso, Filipe II nomeou<br />
Os <strong>de</strong> cá recebiam<br />
lembranças, por vezes visitas<br />
inesperadas, muitas vezes<br />
o resultado <strong>de</strong> um testamento<br />
que restituía a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
aos que, tendo ficado no<br />
silêncio da espera, recebiam<br />
a boa nova da parca fortuna<br />
no ofertório da missa <strong>de</strong><br />
domingo na Igreja Matriz.<br />
um feitor espanhol para coor<strong>de</strong>nar, no<br />
Algarve, a luta contra as falsas arribadas e o<br />
contrabando <strong>de</strong>smesurado praticado pelos<br />
mestres e capitães que vinham das Índias<br />
com os barcos carregados <strong>de</strong> mercadorias<br />
que os oficiais da Casa da Contratação <strong>de</strong><br />
Sevilha teriam <strong>de</strong> onerar com os direitos<br />
reais.<br />
Era vaga gente, como os antepassados<br />
<strong>de</strong> Jorge Luis Borges que, um dia, partiram<br />
<strong>de</strong> Trás-os-Montes rumo ao sul, para<br />
Buenos Aires. As histórias<br />
que nos contam,<br />
embora vagas, traduzem<br />
uma maior familiarida<strong>de</strong><br />
com o mar que os<br />
sustentava e embalava os<br />
seus sonhos do que com<br />
a terra on<strong>de</strong> nasceram.<br />
Talvez por isso a maior<br />
parte não regressasse em<br />
<strong>de</strong>finitivo. Ficavam por<br />
lá numa outra terra que<br />
vivia daquilo que pelo<br />
mar circulava <strong>de</strong> poente<br />
para oriente e <strong>de</strong> cá para<br />
lá. Negros em troca <strong>de</strong><br />
prata. E era <strong>de</strong>ste vaivém<br />
incessante que a vaga<br />
gente que partiu se alimentava<br />
e ganhava alguma<br />
notorieda<strong>de</strong>. Os <strong>de</strong><br />
cá recebiam lembranças,<br />
por vezes visitas inesperadas,<br />
muitas vezes o<br />
resultado <strong>de</strong> um testamento<br />
que restituía a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> aos que, tendo<br />
ficado no silêncio da<br />
espera, recebiam a boa-<br />
-nova da parca fortuna<br />
no ofertório da missa <strong>de</strong> domingo na<br />
igreja matriz. É quando as histórias<br />
ganham contornos que dissipam o anonimato<br />
e os oficiais da Contratação se vingam<br />
dos «ilegais».<br />
Um João Fernan<strong>de</strong>s, marinheiro, <strong>de</strong>ixara<br />
a mulher «emprenhada» quando partiu<br />
para Cartagena. Nunca mais regressou,<br />
mas, em Guayaquil, on<strong>de</strong> redigiu o testamento,<br />
já enfermo e entregue aos cuidados<br />
dos irmãos do hospital <strong>de</strong> Santa Catarina
mártir, ia recebendo notícias da família e<br />
cria que o filho se chamaria André e teria já<br />
doze anos. Era verda<strong>de</strong>, o vigário da vara <strong>de</strong><br />
Portimão, no processo <strong>de</strong> restituição dos<br />
bens do <strong>de</strong>funto, confirmou que João havia<br />
casado, «in facie ecclesiae conforme ao sagrado<br />
concilio tri<strong>de</strong>ntino», com Maria Vaz, filha<br />
<strong>de</strong> mareantes, e que o filho fora baptizado<br />
com o nome <strong>de</strong> André. Esse algarvio aventureiro<br />
estava acompanhado <strong>de</strong> outros conterrâneos<br />
e parentes envolvidos em negócios<br />
da China, através <strong>de</strong> Acapulco. Gostava<br />
<strong>de</strong> jogar xadrez e damas, vestia roupa <strong>de</strong><br />
tafetá, <strong>de</strong> terciopelo, <strong>de</strong> seda, <strong>de</strong> algodão,<br />
usava um palito <strong>de</strong> prata e guardava as moedas<br />
num mealheiro <strong>de</strong> lata.<br />
Um António da Veiga, também natural<br />
<strong>de</strong> Vila Nova, conhecido como o<br />
«Bacalhau», serviu praça <strong>de</strong> marinheiro no<br />
patacho do mestre Manuel Tomé, seu conterrâneo,<br />
que transportava negros <strong>de</strong> registo<br />
<strong>de</strong> Angola para o México. Durante a travessia,<br />
perseguido por inimigos, arribou à<br />
ilha <strong>de</strong> Porto Rico.Aqui, a mando do governador,António<br />
embarcou, com outros mari-<br />
Portimão na Foz do Ara<strong>de</strong>. Foto <strong>de</strong> Paulo Arez Cartagena das Índias. Foto <strong>de</strong> Juan Diego Duque<br />
nheiros <strong>de</strong> Portimão, num navio <strong>de</strong> Bartolomeu<br />
Gonçalves, também <strong>de</strong>sta vila, que<br />
saiu a pelejar os corsários que o mataram<br />
com um balázio. Os 49.480 maravedis que<br />
<strong>de</strong>ixou como herança, alegadamente resultantes<br />
<strong>de</strong> «seus vestidos» e do soldo que<br />
Sua Majesta<strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>via, foram <strong>de</strong>stinados a<br />
sua mãe, mulata muito pobre sem bens para<br />
se sustentar. O prior da igreja <strong>de</strong> Portimão,<br />
na missa da terça <strong>de</strong> um dia festivo, leu o<br />
papel «<strong>de</strong> verbo ad verbum» dos senhores da<br />
Contra-tação para averiguar dos her<strong>de</strong>iros.<br />
Só Catarina Afonso, a mãe, se manifestou.<br />
Mas os senhores da Contratação <strong>de</strong> Sevilha<br />
não consi<strong>de</strong>ravam que a morte por um balázio<br />
ao serviço do rei fosse suficiente para<br />
esclarecer uma história, em seu interesseiro<br />
enten<strong>de</strong>r, mal contada.<br />
E, em geral, era assim a vida <strong>de</strong> marinheiro.<br />
Os pobres, nem mortos tinham <strong>de</strong>scanso.<br />
Vaga gente, raramente afortunada.<br />
Melhor sorte tinham aqueles que, em terra,<br />
lá para as bandas do Peru ou do México, se<br />
<strong>de</strong>dicavam ao trato <strong>de</strong> mercadorias.<br />
Armavam navios com a ma<strong>de</strong>ira da serra <strong>de</strong> Monchique, prenhe <strong>de</strong><br />
castanheiros, incentivados pelos privilégios concedidos por D. Sebastião aos<br />
moradores <strong>de</strong> Portimão para a construção naval. Iam para Sevilha e daqui<br />
para a América espanhola, como se fossem naturais <strong>de</strong> Castela, diziam eles.
TRAVESSIAS 20<br />
Luanda-Minas-Luanda<br />
Ondjaki e Paulinho Assunção<br />
Barcos seduzem o tempo. Fotografia <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>rrahmane Ualibo<br />
21
TRAVESSIAS 22 23<br />
EUZEBEL (1)<br />
Ao meu barco, eu <strong>de</strong>i o nome <strong>de</strong> Euzebel.<br />
Era o mês <strong>de</strong> maio, os céus <strong>de</strong> Minas exibiam azuis <strong>de</strong> profun<strong>de</strong>zas,<br />
tudo era quietu<strong>de</strong> em nosso quintal. E ali, junto com<br />
Lucas Baldus, Rubem Focs e João Serenus, concluí o barco,<br />
embarcação pouco maior do que uma traineira, pintada <strong>de</strong> ver<strong>de</strong><br />
e vermelho, com ma<strong>de</strong>irame polido à mão e o nome Euzebel bem<br />
à vista nos lados da quilha. Barco à vela, sim, mas igualmente a<br />
diesel para que pudéssemos vencer as distâncias pelo Atlântico.<br />
Lembro-me bem que foi logo antes do anoitecer, logo antes<br />
que testássemos nossas lunetas <strong>de</strong> ver estrelas, que nos arrodilhámos<br />
em volta do barco. E ali, com o gozo da tarefa cumprida e os<br />
<strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> milhas navegantes, passámos a imaginar o que embarcaríamos<br />
no Euzebel para a longa travessia, quem iria connosco,<br />
o que levaríamos a bordo e o que sonharíamos durante a viagem,<br />
rumo a Luanda.<br />
1. DE ESTRELAS NA MÃO<br />
[DOS PENSARES DE UM DOS NARRADORES]<br />
A grávida olhou a embarcação pelas laterais brilhantes, areia<br />
do mar incluída na sujida<strong>de</strong> e o sal também, <strong>de</strong>ixou os <strong>de</strong>dos da<br />
mão esquerda roçarem a ma<strong>de</strong>ira em jeito <strong>de</strong> carícia transbordante,<br />
e o que sentiu a<strong>de</strong>nsar-lhe o momento era uma espécie <strong>de</strong><br />
cheiro carregado <strong>de</strong> futuro, o bebé no seu ventre adormeceu e ela<br />
sentiu nítida a sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um enjoo marinho, o vento no rosto<br />
empurrando os meses da espera que a cria leva a estrear-se no<br />
mundo, as velas suaves do barco convidando ao rumo, os búzios<br />
que entretanto se infiltrariam no pequeno porão e, já em alto-mar,<br />
fariam amor em prazer e função <strong>de</strong> reprodução, os olhos da grávida<br />
brilharam um pouco mais, e a embarcação encalhada gemeu<br />
um ruído nenhum, em acalentação da maré que enchia para<br />
humidificar a ma<strong>de</strong>ira do casco, a pintura recente da popa, a frieza<br />
da âncora e a beleza da figura daquela estranha máquina <strong>de</strong> viajar,<br />
a lua escon<strong>de</strong>u-se entre as nuvens voadoras e nenhum caranguejo<br />
se moveu, nenhuma concha voou, nenhuma onda rebentou,<br />
nenhum homem se aproximou, somente ali perto o comandante<br />
esperando o vaticínio da grávida para completar a cerimónia. E<br />
ela falou: o barco vai-se chamar «Estrela-do-mar».<br />
Com um gesto quase brusco, o comandante acen<strong>de</strong>u o<br />
cachimbo, e o cheiro morno atingiu o rosto do grávida que, sem<br />
falar sorriu e olhou para a mão do comandante que apertava a<br />
pipa, sendo que esse percebeu a mulher, era o seu jeito mais alegre<br />
<strong>de</strong> sorrir. A seu modo e ritmo, crê-se, também «Estrela-do-mar»<br />
sorriu.<br />
Era uma noite como outra qualquer, perto da baía <strong>de</strong> Luanda,<br />
num lugar conhecido como «praia da chicala».
BIBLIOTECA DE COISAS (2)<br />
O mar <strong>de</strong> Minas é feito <strong>de</strong> montanhas e serranias e foi em um<br />
<strong>de</strong>svão, lugar entre o que é e o que não é, abertura no horizonte<br />
a meio passo do abismo e da superfície dos morros, que embicámos<br />
o Euzebel. Dali, <strong>de</strong>sse lugar <strong>de</strong> risco, o nosso barco mirou o<br />
leste, o leste das distâncias atlânticas. Até então, pouco tínhamos.<br />
Até então, éramos três marujos <strong>de</strong> palavras, homens da pena e do<br />
cálamo, homens feitos <strong>de</strong> páginas. E foi Rubem Focs quem sugeriu<br />
que alimentássemos o porão do Euzebel com as porções disto<br />
e daquilo, migalhas do nosso convívio, <strong>de</strong>licadas lembranças,<br />
amuletos, biblioteca <strong>de</strong> coisas e imagens. E então passámos a recolher<br />
frutas, como o araticum; pedras, como a carne <strong>de</strong> vaca; flores<br />
como a sempre-viva; lascas, como a do jatobá; pássaros, como o<br />
bem-te-vi; ventos, como o que sopra pelo planalto, pelo cerrado,<br />
pelas altanias do Alto do Paranaíba, caminhos do lobo-guará, trilhas<br />
das siriemas.<br />
Tudo isto, em presença ou efígie, fomos colocando nos<br />
porões do Euzebel. Uns sonhos novos e uns sonhos <strong>de</strong>spedaçados.<br />
Uns amores ainda quentes e outros já tornados cinza em fornalhas<br />
abandonadas. E muito tardámos em semelhante tarefa, um<br />
mês ou mais, enquanto o Euzebel mirava o leste com a sua quilha<br />
lustrada <strong>de</strong> novo e <strong>de</strong> impetuosas vonta<strong>de</strong>s. Nosso Euzebel queria<br />
o oceano, quase nos pedia e implorava fazer-se ao mar. Mas ainda<br />
não era o tempo da navegação. Viria o junho entrante, viriam as<br />
brumas <strong>de</strong> julho. A hora chegaria com a conclusão <strong>de</strong> um mapa,<br />
este a cargo <strong>de</strong> João Serenus.<br />
2. A EMBARCAÇÃO NÃO FALA MAS SENTE<br />
[CONSIDERAÇÕES POUCAS]<br />
A embarcação não tinha hora <strong>de</strong> partir, nem a coisa era tão<br />
combinada ao ponto <strong>de</strong> se saber rumos, crenças ou buscas pessoais<br />
da índole das paixões que fazem mover os homens, as montanhas<br />
e os mares, simplesmente o tal barco <strong>de</strong> nome «Estrela-do-<br />
-mar» repousava com o corpo beijando a maré que, subindo,<br />
subia, sem com essa pressão salgada querer apressar o evento da<br />
partida. Ao largo, peugadas várias brotavam na areia perturbando<br />
a paz dos caranguejos e o sono dos coqueiros, eram pernas que<br />
ajudadas por corpos traziam das casas mantimentos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />
gastronómica, ornamentos minúsculos <strong>de</strong> natureza pessoal,<br />
medicamentos tradicionais no formato <strong>de</strong> folhas e raízes, bem<br />
como os corações repletos <strong>de</strong> um suco antigo a que os mais<br />
velhos chamam «incerteza».<br />
De noite, além do brilho da lua, era fácil <strong>de</strong>tectar, <strong>de</strong> longe<br />
como não, o brilho pueril que cada rosto levava pendurado, e não<br />
eram lágrimas <strong>de</strong> chorar.
TRAVESSIAS 24 25<br />
UM BILHETE (3)<br />
Em meados <strong>de</strong> julho, chegou-nos um bilhete <strong>de</strong> Luanda. Era<br />
meia folha <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rno, com rasgos nos cantos, um tanto amassada.<br />
E, letra a letra, frase a frase, percebemos que o bilhete fora escrito à<br />
beira-mar. Nele havia as marcas <strong>de</strong> sol e <strong>de</strong> sal. E lá estava dito:<br />
«Daqui <strong>de</strong> Luanda, saudamos o Euzebel. Boa viagem.Ao mar, o que<br />
é do mar.»<br />
3. PRIMEIRA CARTA DA GRÁVIDA<br />
[GRÁVIDA OLHA A BAÍA DE NOITE ENQUANTO ESCREVE]<br />
Meu filho com comportamento <strong>de</strong> pássaro que um dia ainda vais nascer:<br />
Escrevo-te <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o brilho bonito da nossa baía da chicala, aqui on<strong>de</strong> os pescadores<br />
<strong>de</strong>ixam os barcos repousar para vir adormecer o corpo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>, <strong>de</strong>sajeitados,<br />
fazerem um amor saboroso com as suas mulheres,donas <strong>de</strong> mãos calejadas em tempo<br />
e memória;<br />
Hoje é tão cedo para saber dizer-te o que te quero contar...<br />
O teu pai já aqui não está, não sei se esteve. E tu a cada movimento me dizes<br />
que queres chegar e eu a cada dia te digo que há um tempo para o ser se <strong>de</strong>scobrir<br />
em pessoa viva, <strong>de</strong>ssas que habitam o mundo social dividido pelos limites a que mais<br />
tar<strong>de</strong> serás forçado a conhecer.Tudo isso são coisas da lógica e da necessida<strong>de</strong>, a que<br />
um dia terás acesso se assim as coisas te ditarem, e que a par <strong>de</strong>ssas virão outras,<br />
hoje apetece-me dizer-te, como os poemas que o cego jeremias gosta <strong>de</strong> recitar, ou<br />
como os poemas que hás-<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir em livros mais antigos que nós e que a cida<strong>de</strong>,<br />
ou em poemas que talvez <strong>de</strong>scubras pela ponta viva dos teus <strong>de</strong>dos, olhando esta baía<br />
que só eu agora miro, inventando palavras <strong>de</strong> constelações ainda não vistas, versos<br />
inaugurais, mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> matérias humanas que eu, a tua mãe, não sei dizer nem esperar<br />
que cheguem. Por isso te espero, meu filho.<br />
Por isso te levo a esta viagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta e errância, para que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim,<br />
e pelos meus olhos, pelo meu corpo <strong>de</strong> enjoo e <strong>de</strong> maresia, te possa chegar ao sangue<br />
o fluxo <strong>de</strong> um vasto oceano chamado atlântico. Porque o futuro também é teu, meu<br />
filho da áfrica das cores, das ternuras e as magias também.<br />
Segura-te, meu filho, que eu te quero ensinar a viajar.<br />
Falava sobre certas palavras da língua portuguesa<br />
que acompanharam as caravelas,<br />
mais precisamente a espuma das caravelas.
NOVAS PALAVRAS (4)<br />
Enquanto nos preparava o mapa <strong>de</strong> navegação e exercitava<br />
compassos e réguas <strong>de</strong> cartógrafo, João Serenus falava sobre certas<br />
palavras da língua portuguesa que acompanharam as caravelas,<br />
mais precisamente a espuma das caravelas, e foram ora para<br />
Angola ora para o Brasil, palavras muitas <strong>de</strong>las hoje em <strong>de</strong>suso,<br />
quase fósseis <strong>de</strong> palavras. Palavras que viraram frutas e viraram<br />
bichos, palavras que viraram sóis e luas, palavras que, em cópulas,<br />
cópulas em praia aberta ou cópulas selva a<strong>de</strong>ntro, geraram<br />
outras palavras, essas palavras ar<strong>de</strong>ntes sob o sol dos trópicos,<br />
milhares <strong>de</strong> sílabas renascidas e <strong>de</strong> frases iluminadas, alaridos <strong>de</strong><br />
vogais e consoantes, tumulto <strong>de</strong> vocábulos em nu<strong>de</strong>z e festa. João<br />
Serenus nos dizia tudo isto, enquanto traçava rotas e caminhos<br />
para o Euzebel.<br />
4. DO TAL HOMEM<br />
[E DOS SEUS PÁSSAROS]<br />
Os pássaros eram transportados numa espécie <strong>de</strong> gaiolas-ao-<br />
-contrário, artefacto <strong>de</strong> difícil construção técnica e <strong>de</strong> mais complicada<br />
manutenção, como uma mini-jaula aberta, com lugar para<br />
as patas dos passarinhos e o recipiente para pouca comida, pois<br />
que estes pássaros, em verda<strong>de</strong>, circulavam livremente e a estas<br />
gaiolas voltavam sem chamamento <strong>de</strong> assobio ou pedido <strong>de</strong><br />
regresso. O homem que as transportava esquecera-se <strong>de</strong> usar <strong>de</strong>ntes<br />
na boca, <strong>de</strong> modo que o seu sorriso era uma varanda bonita sem<br />
ser linda, curiosa sem ser fantasmagórica, e simpática sem nunca<br />
chegar a ser bela.<br />
Caminhava <strong>de</strong>vagar o tal homem-que-vendia-pássaros, fazendo<br />
tanto ou menos ruído que o vento. Era uma espécie <strong>de</strong> pássaro,<br />
também ele, mas sem uma gaiola circundante que se pu<strong>de</strong>sse ver<br />
com olhos <strong>de</strong> olhar ou formato <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r.<br />
PRIMEIROS ASSENTAMENTOS NO DIÁRIO DE BORDO (5)<br />
Na manhã em que ficou pronto o mapa <strong>de</strong> navegação, João<br />
Serenus igualmente nos mostrou um livro enorme, encapado <strong>de</strong><br />
azul, o qual, logo soubemos, seria o nosso Diário <strong>de</strong> Bordo. E ali<br />
mesmo, naqueles <strong>de</strong>svãos do Mar <strong>de</strong> Minas on<strong>de</strong> se equilibrava o<br />
Euzebel, Rubem Focs quis fazer o primeiro registro, o primeiro<br />
assentamento, a primeira garatuja.<br />
Eis o que Focs escreveu: «Logo estaremos ao sabor do<br />
Atlântico. O nosso <strong>de</strong>stino é uma ilha em um ponto secreto do<br />
oceano, entre Angola e Brasil. De Luanda, também está para vir<br />
um barco-irmão, barco igualmente mágico, para esse encontro na<br />
ilha. Quando nos encontrarmos, o barco <strong>de</strong> Luanda virá para<br />
Minas, o Euzebel irá para Luanda. Pelo que sei, o barco-irmão-<br />
-angolano tem o nome <strong>de</strong> Estrela-do-Mar. Belo nome para tão<br />
benfazejos propósitos.»
TRAVESSIAS 26 27<br />
5. OUTRA CHEGADA<br />
[UM HOMEM QUE GOSTAVA DE DIZER POEMAS]<br />
Era uma pessoa acumulada em poesia, <strong>de</strong> sua autoria e <strong>de</strong><br />
autoria vária, com complementos <strong>de</strong> saber tremelicar os olhos e<br />
orelhas enquanto o discurso, fluido, lhe brotava das cordas vocais<br />
plenas <strong>de</strong> acalentamento e prosa corrida. Não tinha um metro e<br />
meio do chão aos cabelos, mas era gran<strong>de</strong> na sua dimensão <strong>de</strong> ser<br />
humano. De ser humano.<br />
Chegou como os outros – com vonta<strong>de</strong> partir.<br />
Ferdinando<br />
FLAUTA MÁGICA (6)<br />
Ferdinando Flauta Mágica, o que viajou pelo mundo e pelas<br />
épocas, fez-nos uma visita na terceira semana <strong>de</strong> julho. A lua estava<br />
<strong>de</strong> namoricos pelos bailes da madrugada, corujas felpudas atravessavam<br />
galhos e sombras, um curiango fez ruído nas copas <strong>de</strong><br />
uma gameleira. Foi aí, enquanto arro<strong>de</strong>ávamos uma fogueira, que<br />
Ferdinando nos apareceu, ele com o seu chapéu, ele com o seu<br />
capote, ele com as suas botas <strong>de</strong> cano alto. Vinha em missão <strong>de</strong><br />
reconhecimento, mas vinha também com <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> embarque.<br />
Puxou histórias com Lucas Baldus, disse bravatas sobre os perigos<br />
do mar. Por fim, sem ro<strong>de</strong>ios, anunciou sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viajar a<br />
Luanda. E até alisou o casco do Euzebel, como quem acaricia o<br />
pescoço <strong>de</strong> um cavalo bravio.<br />
6. MAPAS PROPÍCIOS<br />
[O COMANDANTE ESPERA PACIENTEMENTE]<br />
Explicou que havia uma configuração propícia à movimentação<br />
marinha, e que isso <strong>de</strong> se saber para on<strong>de</strong> se iria era <strong>de</strong> menor<br />
relevância, antes, isso sim, saber <strong>de</strong>cidir em que condições a viagem<br />
po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>correr, não no que a mantimentos se referisse mas<br />
aos materiais humanos, aí sim, incluídos os mantimentos gastronómicos<br />
e medicinais necessários, bem como os da natureza<br />
intrínseca à humanida<strong>de</strong>, os poemas, as vozes, a música e as bússolas<br />
que imitando corações soubessem ditar ritmos e bombear<br />
<strong>de</strong>sejos mais ou menos próximos do instinto.<br />
COLECCIONADOR DE VENTANIA (7)<br />
Foi pelas artes <strong>de</strong> Ferdinando Flauta Mágica que conhecemos<br />
um outro visitante, poucos dias <strong>de</strong>pois, chamado Coleccionador<br />
<strong>de</strong> Ventania. Alegre no falar, alegre no modo <strong>de</strong> ser. Dizia-se português<br />
da região do Minho, mas com algum tempo a mais <strong>de</strong> conversa<br />
logo <strong>de</strong>scobrimos que nascera na Beira Interior, para os lados<br />
da Covilhã. Muito imaginoso, Coleccionador <strong>de</strong> Ventania contava<br />
enoveladas histórias. O nome verda<strong>de</strong>iro era José, José das Dores<br />
Terrenas. O apelido tivera origem, conforme disse, nas li<strong>de</strong>s das<br />
navegações. «Sempre em pequenos barcos pesqueiros», contou.<br />
Ele apareceu numa noitinha que era uma noitinha <strong>de</strong> promessas<br />
<strong>de</strong> luas. O Euzebel pontificava altivo, à espera <strong>de</strong> fazer-se
ao mar. João Serenus ainda media distâncias e latitu<strong>de</strong>s, porém o<br />
mapa já se encontrava pronto. Rubem Focs trouxe um vinho,<br />
Lucas Baldus quis solfejar cançonetas esquecidas. E ali, um tanto<br />
acriançados <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>s inocentes, ficamos ouvindo as histórias<br />
do Coleccionador <strong>de</strong> Ventania. Assim que chegava ao fim um relato,<br />
Ferdinando Flauta Mágica dava o mote para mais uma narrativa<br />
interminável.<br />
E assim estávamos. Um outro bilhete tinha chegado na noite<br />
anterior e dizia: «Em Luanda, o Estrela-do-Mar tem igualmente<br />
ânsias para navegar.»<br />
7. MOMENTOS<br />
[DE COMO O CURIOSO PERGUNTOU E ESCUTOU]<br />
– Mas isto é um navio, um barco, uma traineira?<br />
– Isto é uma embarcação.<br />
– E para on<strong>de</strong> vai?<br />
– Para longe.<br />
– Mas em que direcção?<br />
– Do outro lado <strong>de</strong>ste mar aqui. Para as bandas do Brasil.<br />
– Brasil?<br />
– Sim.<br />
– E param nalgum lugar, <strong>de</strong> caminho para lá?<br />
– É possível. Assim queira a embarcação.<br />
– Você enten<strong>de</strong> <strong>de</strong> navegação científica?<br />
– Eu só arrisco na navegação por estrelas.<br />
– E <strong>de</strong> dia?<br />
– Espero que a noite volte.<br />
UMA HÉLICE PARA O EUZEBEL (8)<br />
Ferdinando Flauta Mágica sugeriu que colocássemos uma<br />
hélice-helicóptera no mastro do Euzebel, <strong>de</strong> modo a que nossa<br />
embarcação pu<strong>de</strong>sse vencer o Mar <strong>de</strong> Minas, o qual, todos sabem,<br />
é um mar seco, mar <strong>de</strong> morrarias e serranias. Com tal instrumento,<br />
em dois ou três dias, pelos ares, po<strong>de</strong>ríamos atingir o<br />
Atlântico e lá nos metermos <strong>de</strong> vez pelo curso das peripécias.<br />
Sugestão dada, sugestão aceita. Logo, mãos exímias no lavrar<br />
e no chanfrar, mãos artífices e engenhosas se puseram na tarefa <strong>de</strong><br />
construir a hélice, <strong>de</strong> polir as suas pás e <strong>de</strong> colocá-la nos altos do<br />
mastro-mestre. E um jogo <strong>de</strong> polias e roldanas fez a hélice se acoplar<br />
ao motor, um pequeno mas vigoroso motor, agora com a<br />
função <strong>de</strong> dar ao Euzebel a condição <strong>de</strong> barco alado.<br />
Nem é preciso dizer que tivemos <strong>de</strong> brindar, e brindar em<br />
brin<strong>de</strong>s e alaridos <strong>de</strong> alegria o novo invento. Houve júbilo. Até<br />
pu<strong>de</strong> ouvir canções e cançonetas entre as mulheres e os meninos<br />
que por ali estiveram, todo o tempo, assistindo a tão doidivanas<br />
cerimónia.
TRAVESSIAS 28 29<br />
8. A MULHER APETITOSA<br />
[ESCREVE AO PADRE]<br />
Querido bartolomeu,<br />
Soube que estás <strong>de</strong> mala feita para um estranho barco e que tudo isso supostamente<br />
é segredo.<br />
O meu corpo também sabe <strong>de</strong> tudo isso, e o que te digo é que não há distância,<br />
nem haverá, que me perturbe neste ritmo <strong>de</strong> encontro ao que for, e há-<strong>de</strong> ser, inevitável.<br />
Nunca te escondi isto, e on<strong>de</strong> cabe um padre cabe uma mulher: se fugires, fujo<br />
contigo.<br />
A verda<strong>de</strong> é que mais cedo ou mais tar<strong>de</strong> hás-<strong>de</strong> fazer amor comigo. Por favor,<br />
digo eu: não faças essa cara, nada disto é uma ameaça. É, tu sabes, uma simples<br />
promessa.<br />
Beijos,<br />
Margarida-em-flor.<br />
LISTA PARCIAL DA CARGA DO EUZEBEL (9)<br />
Água do rio São Francisco (dois tonéis); quarenta quilos <strong>de</strong><br />
polvilho doce e azedo, mais <strong>de</strong>z rodas <strong>de</strong> queijo curado (para o<br />
pão <strong>de</strong> queijo a bordo); vinte quilos <strong>de</strong> fubá (para broas a bordo);<br />
vinte litros <strong>de</strong> caninha alambicada em socavões <strong>de</strong> Minas (para alegrias<br />
a bordo); <strong>de</strong>z quilos <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> sol proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Curvelo<br />
(para assados a bordo); pimentas várias e diversas; feijão roxo e<br />
feijão preto; farinha <strong>de</strong> milho e farinha <strong>de</strong> mandioca; linguiça<br />
<strong>de</strong>fumada; maquineta <strong>de</strong> gelo movida a querosene; duas gela<strong>de</strong>iras<br />
para a conservação das frutas e dos legumes e das hortaliças;<br />
uma sanfona e uma viola <strong>de</strong> <strong>de</strong>z cordas; dois tambores; um baú<br />
para guardar palavras novas; lunetas <strong>de</strong> olhar para fora e lunetas <strong>de</strong><br />
olhar para <strong>de</strong>ntro; binóculos <strong>de</strong> ver estrelas; um bacamarte propulsor<br />
<strong>de</strong> fogos-<strong>de</strong>-artifício; anzóis e caniços; dois livros <strong>de</strong> Ana<br />
Paula Tavares; um <strong>de</strong> Camões e outro <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos; um <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa e outro <strong>de</strong> Luandino Vieira; ramos <strong>de</strong> alecrim e <strong>de</strong><br />
hortelã; um dicionário dos passarinhos <strong>de</strong> Minas e um dicionário<br />
dos passarinhos <strong>de</strong> Luanda; apitos para chamar sereias; vozes gravadas:<br />
<strong>de</strong> sabiás, bem-te-vis, curiós e pintassilgos.<br />
9. DE MÃOS, DE ESTRELAS<br />
[DOS PENSARES DE UM DOS NARRADORES]<br />
No fundo, o que as pessoas e o barco faziam era esperar, em<br />
acumulação e sabedoria, uma boa hora para partir. Alguém no<br />
meio dos já chegados sabia, evi<strong>de</strong>ntemente, o que se iria passar,<br />
sem incluir nesta previsão os ventos, as correntes, as refeições e os<br />
barcos com que se cruzariam. Havia um <strong>de</strong>stino a cumprir, e era<br />
uma viagem. No céu as estrelas estavam prontas, na «praia da chicala»<br />
as mãos estavam salgadas.<br />
E esperaram.
DESEJOS DE NUVENS (10)<br />
O motor do Euzebel solavancou duas, três vezes, tossiu, resfolegou,<br />
imaginamos que fosse parar ou explodir. Foi engano. Ele<br />
ainda sequenciou uns solavancos, fez mimos, quis carinho, mas aí<br />
seguiu, foi adiante, entrou em calma <strong>de</strong> rolamentos e correias, os<br />
pinos se aquietaram, o metal azeitou-se, e o motor suspirou e<br />
produziu música. Ferdinando Flauta Mágica então moveu uma<br />
manopla e l<strong>ibero</strong>u as energias para a hélice. Ela girou, rodopiou,<br />
entrou em re<strong>de</strong>moinhos, colheu vento e agiu como uma dócil<br />
fêmea ventoinha. E nem acreditamos quando, aos poucos,<br />
movendo quadris e carcaças, o barco ganhava altura, elevava-se,<br />
subia um, dois, quatro metros. E lá pairou todo pássaro. O barco<br />
tinha <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> nuvens. Ele tinha vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>s. Aquilo<br />
era apenas um teste, mas o Euzebel estava pronto para a viagem.<br />
10. CORPOS<br />
[& VONTADES]<br />
Não era o ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> pássaros que transportava as gaiolas,<br />
era, mais me parece, as gaiolas-ao-contrário que transportavam ao<br />
homem que, sorri<strong>de</strong>nte, aceitava os <strong>de</strong>stinos que a ma<strong>de</strong>ira aconselhava.<br />
Ele, o homem, elas as gaiolas, e eles os pássaros alegres<br />
aproximaram-se da praia e encontraram uma mulher nitidamente<br />
grávida, nessa imagem que não gera outra coisa que não ternura.<br />
O ven<strong>de</strong>dor sentiu o cheiro da mulher – misto <strong>de</strong> folha-<strong>de</strong>-<br />
-louro, alho recente, óleo-<strong>de</strong>-palma e a fumaça <strong>de</strong> um certo<br />
peixe-grelhado que ele quis imaginar fosse peixe-galo. Veio-lhe<br />
água à boca e uma pontinha <strong>de</strong> fome roçou-lhe o interior do<br />
estômago. Evitou cruzar o corpo ou o olhar com o da mulher.<br />
Passou ao largo e aproximou-se, vagaroso, da embarcação <strong>de</strong>itadiça<br />
junto ao mar.<br />
Era <strong>de</strong> noite.<br />
Havia um <strong>de</strong>stino a cumprir, e era uma viagem.<br />
No céu as estrelas estavam prontas,<br />
na «praia da chicala» as mãos estavam salgadas.
Vida, paixão,<br />
morte e ressurreição<br />
da Tirana do Tamarugal<br />
Virgínia Vidal<br />
SANTOS DA CASA 30 31<br />
«Nascemos sem passaporte<br />
entre fronteiras guardadas<br />
por sentinelas <strong>de</strong> sal e silêncio»<br />
Albano Martins<br />
Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Herman Pereira
SANTOS DA CASA 32<br />
Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal.<br />
Fotografia <strong>de</strong> Montserrat Sáenz. Prochile<br />
33<br />
Após a celebração do chamado ano<br />
<strong>de</strong> 1535 pelos conquistadores, Diego <strong>de</strong><br />
Almagro saiu <strong>de</strong> Cuzco à conquista do Sul<br />
do império. Não conseguia escon<strong>de</strong>r o<br />
orgulho por ter subjugado os incas, mas,<br />
como ia penetrar em territórios difíceis e<br />
<strong>de</strong>sconhecidos <strong>de</strong> um império <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong><br />
tão infinita como a sua ari<strong>de</strong>z, levou como<br />
reféns o sacerdote do Templo do Sol e a sua<br />
filha, a Ñusta Huillac. Creio que, na intenção<br />
<strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> eventuais armadilhas<br />
e para gozar da mais absoluta segurança,<br />
levava consigo Paullo Túpac, irmão do<br />
príncipe Manco Capac, baptizado <strong>de</strong><br />
Paulino, e Huillac Huma, último dignitário<br />
supremo <strong>de</strong> um culto que ele pretendia<br />
dar por extinto. Sua mulher, Malgarida, tão<br />
africana como os seus escravos, envolvia-o<br />
<strong>de</strong> paz, apesar das suas noites <strong>de</strong> pesa<strong>de</strong>lo<br />
e enfermida<strong>de</strong>.<br />
Tão ilustres reféns eram tratados com<br />
respeito, ainda que pesasse sobre as suas<br />
cabeças a ameaça <strong>de</strong> que pagariam com a<br />
vida qualquer tentativa <strong>de</strong> rebelião, na<br />
caravana que integrava cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil<br />
súbditos do império, aborígenes chamados<br />
<strong>de</strong> índios pelos espanhóis. Yanaconas e<br />
escravos africanos. Nela vinham encobertos<br />
alguns wilkas ou capitães, <strong>de</strong> importante<br />
carvina, que já tinham comandado os já<br />
dispersos exércitos incas. Também alguns<br />
acólitos do Sol se encobriam nas filas,<br />
envoltos em míseras roupagens e em aparente<br />
submissão, à espera da ocasião certa<br />
para se rebelarem.<br />
Ñusta Huillac <strong>de</strong>scendia dos senhores<br />
<strong>de</strong> Tahuantisuyu e não se resignava às humilhações<br />
sofridas como consequência da<br />
<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Atahualpa, tão prontamente<br />
disposto a confiar nos conquistadores.<br />
Ñusta conversou, ao largo da travessia,<br />
com Paullo Túpac sobre a forma <strong>de</strong> se separarem<br />
da expedição espanhola. Nenhum<br />
motivo os levava a continuar junto a<br />
Almagro. E foi assim que, sigilosamente,<br />
<strong>de</strong>cidiram abandonar o exército espanhol,<br />
quando a expedição ia na zona <strong>de</strong> Atacama<br />
La Gran<strong>de</strong> (mais tar<strong>de</strong> chamada Calama),<br />
on<strong>de</strong> habitavam os Kunza.<br />
Numa noite <strong>de</strong> espessa neblina, introduziram-se<br />
no <strong>de</strong>serto, até à cordilheira,<br />
em busca <strong>de</strong> um caminho que os levasse à
província <strong>de</strong> Charcas, cumprindo assim o<br />
propósito <strong>de</strong> instigar a rebelião, já promovida<br />
pelo inca Manco Capac, em Cuzco.<br />
No entanto, a neblina, a ausência <strong>de</strong><br />
estrelas, o <strong>de</strong>serto e o horizonte circular <strong>de</strong>sviaram-nos,<br />
fazendo-os seguir para norte,<br />
rumo ao poente.<br />
Quando julgavam ter-se perdido para<br />
sempre, arrastando-se pela areia, avistaram<br />
o paraíso sob a forma do oásis <strong>de</strong> Pica.<br />
Desta vez, Ñusta Huillac, seguida <strong>de</strong><br />
uma centena dos seus melhores guerreiros<br />
e inseparáveis servidores, os wilkas, refugiou-se<br />
num bosque <strong>de</strong> tamarugos, cactos e<br />
alfarrobeiras nativas, que na altura cobriam<br />
o que é actualmente a Pampa do Tamarugal.<br />
Apelidaram essa região <strong>de</strong> Tarapacá,<br />
que em língua quechúa significa bosque<br />
impenetrável (<strong>de</strong>ssa vegetação espessa, restam<br />
apenas hoje vestígios nas imediações<br />
do povoado <strong>de</strong> Tarapacá e dos casarios <strong>de</strong><br />
Canchona e La Tirana).<br />
Durante quatro anos, Ñusta Huillac foi<br />
rainha e senhora <strong>de</strong>sses locais porque<br />
Paullo mostrou uma <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> crescente e<br />
vivia apenas para alimentar a sua nostalgia.<br />
A mando dos seus valentes wilka, Ñusta<br />
organizou as tropas e distribuiu-as <strong>de</strong> tal<br />
modo que esses bosques <strong>de</strong> Tamarugos<br />
constituíram um invencível bastião.<br />
Organizou o resto da população ao<br />
modo incaico, que permitia a exploração<br />
racional da terra e produção <strong>de</strong> vestuário<br />
e alimentação para todos. Pão e justiça era<br />
o lema <strong>de</strong>sta mulher, cuja força <strong>de</strong> carácter<br />
e firmeza das suas <strong>de</strong>cisões lhe conferiram<br />
o título atribuído pelo seu povo,<br />
como um segredo em coro: a Tirana do<br />
Tamarugal.<br />
Bem, Ñusta não se incomodou com o<br />
apelido, pois significava que o seu empenho<br />
em impor disciplina e or<strong>de</strong>m para<br />
combater os conquistadores triunfava. A<br />
melhor prova do sucesso do governo da<br />
Tirana do Tamarugal ia sendo dada pelo<br />
crescente apoio que lhe foram proporcionando<br />
os povos repartidos pelo vasto<br />
<strong>de</strong>serto. De todos os cantos do território <strong>de</strong><br />
Tahuantisuyo, quadrilhas <strong>de</strong> homens dispostos<br />
a dar a vida para acabar com os<br />
invasores acorreram a prestar-lhe homenagem<br />
e a jurar-lhe lealda<strong>de</strong>.<br />
A selva do Tamarugal foi, durante quatro<br />
anos, o baluarte <strong>de</strong> um povo que também<br />
se negou a aceitar a religião imposta<br />
pelos conquistadores. Por esse motivo,<br />
constituiu-se como lei inexorável <strong>de</strong>ssa<br />
comunida<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar à morte todo o<br />
estrangeiro ou aborígene baptizado que<br />
caísse em seu po<strong>de</strong>r.<br />
No entanto, Ñusta Huillac ignorava a<br />
partida que o <strong>de</strong>stino lhe reservava.<br />
Certo dia, levaram-lhe uns prisioneiros<br />
capturados, pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem<br />
fugido <strong>de</strong> uma mina <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> Huantajaya.<br />
Juraram ter partido com a intenção <strong>de</strong><br />
se introduzirem na região em busca da<br />
Numa noite <strong>de</strong> espessa<br />
neblina, introduziram-se<br />
no <strong>de</strong>serto, até à cordilheira,<br />
em busca <strong>de</strong> um caminho<br />
que os levasse à província<br />
<strong>de</strong> Charcas, cumprindo assim<br />
o propósito <strong>de</strong> instigar<br />
a rebelião, já promovida pelo<br />
inca Manco Capac, em Cuzco.<br />
Mina do Sol, que proporcionaria incalculáveis<br />
riquezas à Tirana. Os infelizes não<br />
entendiam que, para esse povo, o ouro não<br />
era nada mais do que «lágrimas do sol»<br />
<strong>de</strong>stinadas a confeccionar objectos preciosos<br />
para o próprio culto <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>us senhor<br />
da vida.<br />
O grupo <strong>de</strong> esfarrapados era comandado<br />
por um estrangeiro, não espanhol<br />
mas sim português, chamado D. Vasco <strong>de</strong><br />
Almeida.<br />
Ao vê-lo ferido, as roupas rasgadas,<br />
envolto em suor e pó, Ñusta sentiu na sua<br />
própria pele os golpes, o cansaço, a <strong>de</strong>rrota<br />
e o orgulho indomável daquele homem.
SANTOS DA CASA 34<br />
35<br />
A selva do Tamarugal foi,<br />
durante quatro anos,<br />
o baluarte <strong>de</strong> um povo<br />
que também se negou<br />
a aceitar a religião imposta<br />
pelos conquistadores.<br />
Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Montserrat Sáenz. Prochile<br />
Sentiu quando o olhar <strong>de</strong>le penetrou nos<br />
seus olhos. Sentiu o mar que o havia agitado<br />
durante meses, antes <strong>de</strong> chegar ao ar<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong>serto. Sentiu a sua se<strong>de</strong> e a sua fome.<br />
Sentiu a nostalgia que ele possuía do calor<br />
da sua casa…<br />
Mas os wilkas e o comité <strong>de</strong> anciãos<br />
acordaram cumprir a lei e aplicar a pena <strong>de</strong><br />
morte ao prisioneiro.<br />
A Tirana do Tamarugal sentiu então<br />
algo que <strong>de</strong>sconhecia: uma terrível dor<br />
perante a simples i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> vê-lo trespassado<br />
por uma lança. Pior ainda: era como<br />
se a ferida <strong>de</strong>le já lhe doesse a ela.<br />
E a ferida imaginária continuou a atormentá-la<br />
dias e dias, e a dor crescia, pois a<br />
execução <strong>de</strong> um prisioneiro não é algo que<br />
se <strong>de</strong>cida <strong>de</strong> bom grado. A morte é recebida<br />
com solenida<strong>de</strong> e respeito. Há que dar<br />
banho ao con<strong>de</strong>nado, alimentá-lo, fornecer-lhe<br />
as roupas a<strong>de</strong>quadas. D. Vasco <strong>de</strong><br />
Almeida <strong>de</strong>veria receber a morte como se<br />
recebe uma noiva.<br />
Entretanto, a Tirana do Tamarugal pensava<br />
dia e noite. Decidiu reunir os dignitários<br />
para adverti-los que, na sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>
sacerdotisa, se inclinaria perante o espelho<br />
<strong>de</strong> pedra e afirmaria o seu rosto no vazio<br />
para contemplar as estrelas. Queria mergulhar<br />
no <strong>de</strong>stino e compreen<strong>de</strong>r o sinal.<br />
Após a consulta aos astros, resolveu<br />
que a execução <strong>de</strong> Almeida <strong>de</strong>veria ser<br />
adiada por quatro luas.<br />
Entretanto, Ñusta e Vasco <strong>de</strong> Almeida<br />
conheceram-se.<br />
Com o passar do tempo, começou a<br />
dizer-se que o português a teria convertido<br />
e que ela, renunciando ao seu credo, se<br />
<strong>de</strong>ixou baptizar. Quem po<strong>de</strong> dar fé do que<br />
o prisioneiro e a Tirana tramaram, planearam<br />
e trocaram naquelas furtivas noites?<br />
O certo é que Ñusta se pôs em fuga mais<br />
uma vez, <strong>de</strong>sta vez com D.Vasco <strong>de</strong> Almeida.<br />
Mas não foram muito longe. Foram perseguidos<br />
pelos wilkas que <strong>de</strong>pressa <strong>de</strong>scobriram<br />
o escon<strong>de</strong>rijo on<strong>de</strong> se refugiavam os<br />
dois amantes, mas a chuva <strong>de</strong> flechas não<br />
conseguiu <strong>de</strong>senlaçar-lhes o abraço.<br />
Os soldados do último baluarte do<br />
império inca colocaram dois paus cruzados,<br />
no lugar on<strong>de</strong> os enterraram, como<br />
símbolo do que consi<strong>de</strong>ravam uma traição.<br />
Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Hernán Pereira<br />
Pouco tempo <strong>de</strong>pois, no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong><br />
1540 a 1550, um espanhol que andava em<br />
evangelização, frei Antonio Rodón, da<br />
or<strong>de</strong>m mercedária, chegou ao bosque dos<br />
Tamarugos 1 , situado a norte do Salar <strong>de</strong><br />
Pintados, a mil metros <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>, entre<br />
Iquique e Pica. Ali conheceu a história da<br />
Tirana.<br />
Vagueando pelo bosque, encontrou<br />
uma cruz numa clareira e consi<strong>de</strong>rou-a<br />
cristã. Escavou e <strong>de</strong>scobriu restos humanos.<br />
Mais tar<strong>de</strong> disse que o esqueleto do<br />
homem conservava em muito bom estado<br />
um escapulário carmelita.<br />
Com o tempo, foi crescendo<br />
a romaria para prestar,<br />
fervorosamente, <strong>de</strong>voção<br />
à virgem do <strong>de</strong>serto.
1 Conjunto <strong>de</strong> árvores da família<br />
das papilionáceas, espécie<br />
<strong>de</strong> alfarrobeira que cresce<br />
na pampa chilena. (N. da T.)<br />
2 Referente a acumulação <strong>de</strong><br />
guano; acumulação <strong>de</strong><br />
excrementos <strong>de</strong> aves<br />
marinhas nas costas do Peru<br />
e do Norte do Chile. (N. da T.)<br />
3 Nome utilizado na Bolívia<br />
e no Peru, referente aos<br />
naturais da região selvagem,<br />
escassamente incorporados<br />
na civilização oci<strong>de</strong>ntal.<br />
(N. da T.)<br />
SANTOS DA CASA 36<br />
37<br />
Todos os humilhados<br />
da terra se vestem <strong>de</strong> gala,<br />
pagam as suas promessas,<br />
gastam o seu dinheiro<br />
e, livres, livres dançam com<br />
orgulho, durante três dias,<br />
perante a Tirana,<br />
a sua virgem adorada.<br />
Com o tempo, foi crescendo a romaria<br />
para prestar, fervorosamente, <strong>de</strong>voção à<br />
virgem do <strong>de</strong>serto. São principalmente os<br />
mineiros provenientes <strong>de</strong> toda a gran<strong>de</strong><br />
região norte do Chile que comparecem, ano<br />
após ano, no dia 14 <strong>de</strong> Julho, a expressar<br />
Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Hernán Pereira<br />
<strong>de</strong>voção absoluta à sua chinita que, segundo<br />
os <strong>de</strong>votos, possui o rosto <strong>de</strong> Ñusta<br />
Huillac.<br />
Após a noite <strong>de</strong> vigília <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />
peregrinos, ao som <strong>de</strong> matracas e pan<strong>de</strong>iretas,<br />
a Tirana avança escoltada pelos chinos<br />
<strong>de</strong> Iquique, os únicos que possuem o<br />
direito <strong>de</strong> tirá-la do templo, por terem sido<br />
humilhados e escravizados nas guaneras 2 .<br />
E dançam os morenos (como são chamados<br />
os africanos) libertados para sempre da<br />
escravidão. E dançam os ciganos, livres <strong>de</strong><br />
toda a suspeita e perseguição. E dançam os<br />
chunchos 3 selvagens, as pastoras e os bolivianos<br />
com lamas, livres como condores.<br />
E dançam os peles vermelhas com seu<br />
bruxo, saídos do cinema mudo, fugindo<br />
dos invasores, e dançam os marinheiros<br />
apaixonados para sempre pelo mar. Todo o<br />
cenário andino e amazónico, todos os<br />
humilhados da terra se vestem <strong>de</strong> gala,<br />
pagam as suas promessas, gastam o seu<br />
dinheiro e livres, livres dançam com orgulho,<br />
durante três dias, perante a Tirana, a<br />
sua virgem adorada.
Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Montserrat Sáenz. Prochile
LIMA<br />
CIDADES INVISÍVEIS 38 39<br />
Lima, 1687. Archivo General <strong>de</strong> Indias, MP, Perú y Chile, 13
CIDADES INVISÍVEIS 40<br />
LIMA DO OUTRO LADO<br />
DOS MUROS DA CIDADE<br />
LITERÁRIA<br />
Eva Valero Juan<br />
Plaza <strong>de</strong> Armas <strong>de</strong> Lima. Fotografia <strong>de</strong> Mylene D’Auriol - Promperú<br />
41<br />
O DITADO POPULAR ESPANHOL «MAIS LONGE QUE<br />
LIMA» É TALVEZ A FRASE MAIS SUGESTIVA PARA EVOCAR<br />
AQUELA CIDADE IMAGINÁRIA QUE, DESDE A SUA FUNDAÇÃO<br />
EM 1535, SE VISLUMBRAVA NOS CONFINS DE UM MUNDO<br />
QUASE INACESSÍVEL.
Casa <strong>de</strong> Torre Tagla. Promperú<br />
Fotografia <strong>de</strong> Coco Martín - Promperú<br />
Balcones, centro <strong>de</strong> Lima. Fotografia <strong>de</strong> Aníbal Solimano - Promperú<br />
Fundada com o nome <strong>de</strong><br />
Ciudad <strong>de</strong> los Reyes, o seu nascimento<br />
como espaço físico requeria<br />
uma nova fundação: aguardava<br />
ser escrita como uma forma<br />
<strong>de</strong> alimentar a sua natural propensão<br />
utópica; necessitava <strong>de</strong><br />
adquirir uma segunda realida<strong>de</strong><br />
que lhe conferiria uma dimensão<br />
perdurável. E efectivamente,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens, a literatura foi<br />
o reflexo fiel da evolução urbana<br />
que, ao largo <strong>de</strong> cinco séculos,<br />
converteu «a triste Ciudad <strong>de</strong> los<br />
Reyes» – como a apelidara César<br />
Moro – na «Lima horrível» traçada<br />
em meados do século XX<br />
por Sebastián Salazar Bondy 1 .<br />
Um factor histórico <strong>de</strong>terminante<br />
nesta evolução foi a inevitável<br />
barreira que cercou a<br />
Lima colonial, separando-a do<br />
resto do país. Esta barreira não<br />
foi somente <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m socio<strong>cultura</strong>l,<br />
uma vez que a sua construção<br />
física data <strong>de</strong> 1685, quando<br />
Lima se converteu no lendário<br />
hortus clausum da Colónia, com a<br />
edificação <strong>de</strong> umas muralhas<br />
enormes que marcavam tanto os<br />
seus limites, como a sua fisionomia<br />
<strong>de</strong> reduto espiritual <strong>de</strong> elite.<br />
Este divórcio entre o país e a sua<br />
capital terá sido fundamental na<br />
evolução das letras peruanas e na<br />
consolidação das suas diferentes<br />
correntes literárias.Talvez a irónica<br />
<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Abraham Val<strong>de</strong>lomar<br />
seja uma das mais eloquentes<br />
para compreen<strong>de</strong>r o momento<br />
anterior à mudança: «Lima é o<br />
Peru, o Jirón <strong>de</strong> la Unión é Lima,<br />
o Palácio Concerto é o Jirón <strong>de</strong> la<br />
Unión, e eu sou o Palácio Concerto!»<br />
À margem da expressão,<br />
a frase é especialmente significativa<br />
na medida em que,com ela,Val<strong>de</strong>lomar<br />
dava significado àquela<br />
Lima da belle époque que, no princípio<br />
do século, mantinha a essência<br />
aristocrática da antiga cida<strong>de</strong><br />
colonial. No entanto, a mudança
CIDADES INVISÍVEIS 42<br />
não se faria esperar, e a prematura<br />
morte <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>lomar não lhe<br />
permitiu comprovar como a sua<br />
frase mudaria radicalmente <strong>de</strong><br />
significado em muito pouco<br />
tempo, dado que a evolução da<br />
cida<strong>de</strong>, durante a primeira meta<strong>de</strong><br />
do século XX, converteria a citada<br />
sentença num paradoxo histórico:<br />
Lima continuou a ser o<br />
Peru, mas já não num sentido <strong>de</strong><br />
centralismo exclusivista e <strong>de</strong><br />
elite, senão o oposto, na perspectiva<br />
da «peruanização» da sua<br />
socieda<strong>de</strong>, resultante da avalanche<br />
migratória das províncias, a<br />
partir da década <strong>de</strong> trinta.<br />
Des<strong>de</strong> o princípio do século,<br />
a Lima vice-reinal tinha começado<br />
a <strong>de</strong>svanecer-se num passado<br />
quase inverosímil, pelo contraste<br />
radical que impôs a transformação<br />
urbana. A constatação <strong>de</strong>sta<br />
profunda mudança teve uma<br />
imagem concreta e real no espaço<br />
da cida<strong>de</strong> e, ao mesmo tempo,<br />
numa construção literária <strong>de</strong>senvolvida<br />
por uma série <strong>de</strong> autores,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais do século XIX. No<br />
ano <strong>de</strong> 1870, «o mandato das<br />
mutações» chegava à aristocrática<br />
Ciudad <strong>de</strong> los Reyes com o objectivo<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o símbolo principal<br />
do seu inabalável elitismo: as<br />
muralhas construídas pelo duque<br />
<strong>de</strong> la Palata. A <strong>de</strong>molição dos<br />
velhos muros marcou um ponto<br />
<strong>de</strong> inflexão transcen<strong>de</strong>ntal na<br />
evolução da cida<strong>de</strong> que abriu as<br />
suas portas à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mas<br />
também ao Peru na sua globalida<strong>de</strong>.<br />
Foi assim que, no século<br />
XX, Lima transformou radicalmente<br />
as suas faces para adquirir<br />
um rosto peruano e, nesse processo,<br />
o divórcio secular do Centro<br />
com o resto do país, que escondia<br />
o drama dos <strong>de</strong>spojados por<br />
<strong>de</strong>trás dos cumes dos An<strong>de</strong>s, e<br />
que se revelou no espaço que<br />
transpunha os limites da cida<strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>rna. Paralelamente, a <strong>de</strong>sa-<br />
43<br />
justada transformação nacional<br />
gerou a <strong>de</strong>cadência física e espiritual<br />
da urbe <strong>de</strong>spoetizada: a<br />
«Ciudad <strong>de</strong> la Gracia», como a<br />
apelidara Ruben Darío, cobria-se<br />
<strong>de</strong> cinzento para <strong>de</strong>svanecer-se<br />
no idêntico e impessoal <strong>de</strong> uma<br />
problemática mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />
Contudo, o lirismo daquele<br />
«horto fechado» que foi a Lima<br />
do passado não cairia no esquecimento:<br />
a literatura encarregar-<br />
-se-ia <strong>de</strong> resgatá-lo quando, <strong>de</strong>pois<br />
do caos revolucionário da in<strong>de</strong>-<br />
NO SÉCULO XX,<br />
LIMA TRANSFORMOU<br />
RADICALMENTE<br />
AS SUAS FACES<br />
PARA ADQUIRIR<br />
UM ROSTO PERUANO<br />
E, NESSE PROCESSO,<br />
O DIVÓRCIO SECULAR<br />
DO CENTRO<br />
COM O RESTO DO PAÍS.<br />
pendência, surgiu a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> recuperar a memória histórica<br />
como forma iniludível <strong>de</strong> incluí-<br />
-la no presente para olhar para o<br />
futuro. Neste âmbito, a recuperação<br />
do passado na literatura<br />
peruana concretiza-se, fundamentalmente,<br />
numa tradição literária<br />
urbana que tem a sua origem nos<br />
finais do século XX, na obra <strong>de</strong><br />
Ricardo Palma. Nas suas Tradiciones<br />
Peruanas, o escritor construiu a<br />
cida<strong>de</strong> mítica da colónia, inaugurando<br />
um discurso evocativo<br />
cujas reminiscências, todavia, se<br />
sentiram em meados do século<br />
XX, na obra literária <strong>de</strong> Julio<br />
Ramón Ribeyro, que assumiu o<br />
<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> criar a geografia literária<br />
da Lima mo<strong>de</strong>rna. Entre<br />
Palma e Ribeyro, a história da<br />
capital na literatura do Peru<br />
<strong>de</strong>senvolveu-se através <strong>de</strong> uma<br />
tradição concreta: a construção<br />
literária <strong>de</strong> «una Lima que se<br />
va», título da obra <strong>de</strong> José Gálvez<br />
na qual este cronista, recorrendo<br />
à semente arraigada nas Tradiciones<br />
Peruanas, consolidou uma literatura<br />
urbana baseada nas recuperações<br />
do passado.<br />
Mas retornemos à origem,<br />
as «tradiciones» palmianas, um<br />
género que, através da inédita<br />
fusão entre história, lenda e literatura,<br />
<strong>de</strong>u lugar a várias séries<br />
<strong>de</strong> relatos nos quais a cida<strong>de</strong><br />
vice-reinal revivia os seus faustos.<br />
Nas Tradiciones, os limenhos<br />
da urbe republicana, saturados<br />
<strong>de</strong> história entre a real e a<br />
inventada, podiam <strong>de</strong>scobrir em<br />
cada rua da sua cida<strong>de</strong> uma<br />
anedota do tradicionista, <strong>de</strong><br />
forma que o hortus clausum vice-<br />
-reinal, em processo <strong>de</strong> extinção,<br />
se impregnou <strong>de</strong> história e <strong>de</strong><br />
lenda, integrando-se <strong>de</strong>cididamente<br />
na consciência republicana<br />
da segunda meta<strong>de</strong> do<br />
século XIX.<br />
Através da visão intra-histórica<br />
do anedotário social e político<br />
dos séculos anteriores, e do<br />
trabalho <strong>de</strong> recuperação da literatura<br />
colonial, Palma restituiu a<br />
consciência histórica que havia<br />
eliminado, num primeiro momento,<br />
o fervor da In<strong>de</strong>pendência.<br />
No problemático ambiente republicano,<br />
esta afirmação das raízes<br />
parecia necessária e <strong>de</strong>la se <strong>de</strong>duz<br />
uma mitificação da cida<strong>de</strong> como
Arcádia, como resposta necessária<br />
<strong>de</strong> um momento histórico<br />
flutuante e instável, que procurava<br />
referentes ou argumentos para<br />
salvaguardar a hesitante utopia<br />
republicana. Emergia assim para<br />
a literatura a cida<strong>de</strong> do passado,<br />
quase invisível em pleno século<br />
XX, mas, em todo o caso, idiossincrasia<br />
da Lima mo<strong>de</strong>rna.<br />
Sobre essa cida<strong>de</strong> invisível que<br />
Palma converteu em mito fundador<br />
<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, meditava<br />
Julio Ramón Ribeyro no artigo<br />
que <strong>de</strong>dicou ao narrador tradicionista,<br />
intitulado «Gracias,<br />
viejo socarrón». Ali, Ribeyro<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que a existência <strong>de</strong><br />
Lima como cida<strong>de</strong> histórica, tal<br />
como se concebe no imaginário<br />
<strong>cultura</strong>l, se <strong>de</strong>via indiscutivelmente<br />
à obra <strong>de</strong> Ricardo Palma:<br />
«O nosso passado seria para nós<br />
terreno baldio, <strong>de</strong>sertificação e<br />
silêncio, não fossem as centenas<br />
<strong>de</strong> Tradiciones que este “cocabichinhos”<br />
escreveu no <strong>de</strong>curso<br />
da sua longa vida.» 2<br />
A influência da obra <strong>de</strong><br />
Palma na literatura que posteriormente<br />
alimentou o mito<br />
arcádico do passado, e que se<br />
<strong>de</strong>u em chamar literatura passadista,<br />
intensificou-se fundamentalmente<br />
após a <strong>de</strong>molidora<br />
Guerra do Pacífico, que aboliu as<br />
esperanças e confirmou a frustração<br />
da «promessa» republicana.<br />
Só uns anos antes, em 1870,<br />
tinham-se <strong>de</strong>struído as muralhas<br />
simbólicas que até ao momento<br />
enclausuravam a consciência <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento urbano. O <strong>de</strong>saparecimento<br />
dos intolerantes<br />
muros, símbolos do obscurantismo<br />
e do centralismo, parecia<br />
confirmar o advento <strong>de</strong>finitivo<br />
da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> urbana – que se<br />
viu truncada após a guerra – e<br />
predizia a iminência <strong>de</strong> uma<br />
futura abertura ao mundo andino.<br />
No entanto, a incorporação<br />
da serra no espaço alienante da<br />
cida<strong>de</strong> tardaria umas décadas a<br />
efectuar-se.<br />
Foi assim que, nos alvores<br />
do século XX, surgiu uma nova<br />
geração <strong>de</strong> escritores, os filhos da<br />
Guerra do Pacífico, que evitaram<br />
a problemática nacional para nos<br />
oferecer essa versão «passadista»<br />
da cida<strong>de</strong>, impregnada <strong>de</strong> nostalgia<br />
e melancolia, gerando, <strong>de</strong><br />
uma forma muito clara, a versão<br />
i<strong>de</strong>alizadora <strong>de</strong> Lima como Arcádia<br />
colonial. Entre eles, José Gál-<br />
EMERGIA ASSIM<br />
PARA A LITERATURA<br />
A CIDADE<br />
DO PASSADO,<br />
QUASE INVISÍVEL<br />
EM PLENO<br />
SÉCULO XX,<br />
MAS EM TODO O CASO<br />
IDIOSSINCRASIA<br />
DA LIMA<br />
MODERNA.<br />
vez escreveu a citada Una Lima que<br />
se va (1921) 3 ; e Luis Alayza, em Mi<br />
país (4.ª serie: ciuda<strong>de</strong>s, valles y playas <strong>de</strong><br />
la costa <strong>de</strong>l Perú), recordou a construção<br />
das muralhas com as<br />
quais o duque <strong>de</strong> la Palata quis<br />
proteger Lima dos piratas que<br />
assediavam as costas – «Noutros<br />
tempos, as muralhas foram sítios<br />
<strong>de</strong> recreio aristocrático e, muitas<br />
vezes, <strong>de</strong> aventuras românticas»<br />
– para logo <strong>de</strong>screver, uma vez<br />
<strong>de</strong>struídas, «a interminável colina<br />
<strong>de</strong> lixeiras em que se chegou a<br />
converter a <strong>de</strong>fesa da “Ciudad <strong>de</strong><br />
los Reyes”» 4 . Esta é a incipiente<br />
«barriada» cujas consequências<br />
dramáticas se encontram analisadas<br />
em algumas obras dos escritores<br />
da <strong>de</strong>nominada geração <strong>de</strong><br />
50.<br />
A opulenta Ciudad <strong>de</strong> los<br />
Reyes, enriquecida graças ao<br />
centralismo que a manteve isolada<br />
da realida<strong>de</strong> andina da qual se<br />
nutria, assistiria por fim à nacionalização<br />
do seu espaço. O processo<br />
da literatura peruana mitificou<br />
um passado quimérico <strong>de</strong><br />
paz e felicida<strong>de</strong>, nas obras que<br />
registam a <strong>de</strong>sintegração da Lima<br />
vice-reinal – Enrique A. Carrillo<br />
«Cabotín», Gastón Roger, José<br />
Gálvez, etc. –; o mesmo passado<br />
que Manuel González Prada,<br />
José Carlos Mariátegui e Sebastián<br />
Salazar Bondy <strong>de</strong>nunciaram<br />
como causa directa da sobrevivência<br />
do sistema <strong>de</strong> classes e<br />
dos problemas globais do país.<br />
Em meados do século, a transformação<br />
urbana impôs uma fisionomia<br />
totalmente renovada da<br />
cida<strong>de</strong>, enclausurou a já cambaleante<br />
exclusivida<strong>de</strong> limenha e<br />
incorporou no seu espaço a imagem<br />
fervorosa do país real.<br />
Esta nova realida<strong>de</strong> foi traçada<br />
pelos escritores neo-realistas<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 50, através <strong>de</strong> uma<br />
perspectiva crítica e analítica das<br />
aceleradas transformações urbanas<br />
ocorridas durante estas décadas.<br />
A dissolução do hortus clausum<br />
vice-reinal era já <strong>de</strong>finitiva na<br />
realida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>, mas, na literatura,<br />
o seu próprio processo<br />
sobreviveu, gerando uma tradição<br />
urbana concreta: o discurso<br />
literário que dramatiza as<br />
mudanças e impõe o contraste<br />
com o presente. Este discurso já<br />
se encontrava nas Tradiciones <strong>de</strong>
CIDADES INVISÍVEIS 44<br />
EM MEADOS DO SÉCULO,<br />
A TRANSFORMAÇÃO<br />
URBANA IMPÔS<br />
UMA FISIONOMIA<br />
TOTALMENTE RENOVADA<br />
DA CIDADE,<br />
ENCLAUSUROU<br />
A JÁ CAMBALEANTE<br />
EXCLUSIVIDADE<br />
LIMENHA E INCORPOROU<br />
NO SEU ESPAÇO<br />
A IMAGEM FERVOROSA<br />
DO PAÍS REAL.<br />
45<br />
Palma e chegou até à narrativa <strong>de</strong><br />
Ribeyro:<br />
Lima ganhou em Civilização, mas<br />
<strong>de</strong>spoetizou-se e, dia após dia, per<strong>de</strong> tudo o<br />
que houve <strong>de</strong> original e típico nos seus costumes<br />
(Ricardo Palma: «Com días<br />
y ollas venceremos») 5 .<br />
O país tinha-se transformado e continuava<br />
a transformar-se,e Lima,em particular,<br />
tinha <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser o «hortus<br />
clausum vice-reinal» para se converter<br />
numa urbe ruidosa, feiíssima e industrializada,<br />
on<strong>de</strong> o mais raro que se podia<br />
encontrar era um limenho (J. R. Ribeyro:<br />
«El marqués y los gavilanes») 6 .<br />
O horto fechado tinha-se<br />
convertido no seu oposto quando<br />
a abertura da capital ao mundo<br />
andino surpreen<strong>de</strong>u os limenhos<br />
<strong>de</strong> antes. Estupefactos, viram cair,<br />
<strong>de</strong>finitivamente, aqueles muros<br />
antigos que, ainda que <strong>de</strong>struídos<br />
tempos atrás, tinham sobrevivido<br />
no mais profundo da cida<strong>de</strong><br />
limenha. A lenda urbana <strong>de</strong><br />
Palma diluía-se assim entre as<br />
novas facções mestiças daquela<br />
Lima transformada que escritores<br />
como Ribeyro souberam <strong>de</strong>scobrir<br />
e revelar, dando lugar aos<br />
novos rumos que, <strong>de</strong> acordo com<br />
a realida<strong>de</strong> social, a literatura<br />
peruana seguiria por volta do fim<br />
do século XX.<br />
1 Lima, la horrible é o título <strong>de</strong> um emblemático ensaio<br />
<strong>de</strong> Sebastián Salazar Bondy (México, Era, 1964).<br />
2 Julio Ramón Ribeyro, “Gracias, viejo socarrón”,<br />
em Antología personal, México, Fondo <strong>de</strong> Cultura<br />
Económica, 1994, p. 127.<br />
3 José Gálvez, Una Lima que se va, Lima, Euforión, 1921.<br />
4 Luis Alayza y Paz Soldán, Mi País (4.ª serie: Ciuda<strong>de</strong>s,<br />
valles y playas <strong>de</strong> la costa <strong>de</strong>l Perú), Lima, Talleres<br />
Gráficos Publicidad-Americana, 1945, pp. 17 e 13.<br />
5 Ricardo Palma, Tradiciones Peruanas, Barcelona,<br />
Montaner y Simón, 1893, tomo I, pág. 387.<br />
6 Julio Ramón Ribeyro, “El marqués y los gavilanes”, em<br />
Cuentos completos, Madrid, Alfaguara, 1994, p. 467.
Alameda <strong>de</strong> Barranco. Fotografia <strong>de</strong> Carlos Sala - Promperú
CIDADES INVISÍVEIS 46 47<br />
OS BAIRROS ALTOS<br />
E SEUS CINEMAS<br />
Alejandro Reyes<br />
Praça Buenos Aires (Bairros Altos). Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Alejandro Reyes
Aproximadamente 70% dos<br />
cine-teatros dos Bairros Altos<br />
começaram a funcionar na<br />
segunda década do século XX,<br />
reflectindo a elevada <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
populacional e o po<strong>de</strong>r económico<br />
dos seus vizinhos. O Lima,<br />
o Mazzi e o Delicias foram cine-<br />
-teatros que fascinaram pela sua<br />
arquitectura mo<strong>de</strong>rna e a sua<br />
elegância interior. Na segunda<br />
década do século XX, o cine-<br />
-teatro Lima, com a administração<br />
<strong>de</strong> Dom Venâncio Rada, oferecia<br />
três sessões diárias, havendo<br />
quatro tipos <strong>de</strong> entradas: balcão,<br />
plateia, galeria e camarotes. As<br />
poltronas do balcão e da plateia<br />
estavam forradas com veludo,<br />
criando-se um ambiente propício<br />
para ver os filmes «mudos»<br />
que eram acompanhados com o<br />
ritmo <strong>de</strong> um piano.<br />
Um exemplo da importância<br />
do público e dos cinemas<br />
dos Bairros Altos foi a apresentação<br />
<strong>de</strong> companhias estrangeiras<br />
como a <strong>de</strong> Margarita Xirgú no<br />
cine-teatro Lima (versão do<br />
meu pai, Alejandro Reyes Verás-<br />
Fachada Cine-teatro Mazzi (Bairros Altos),<br />
in <strong>Revista</strong> Varieda<strong>de</strong>s, Lima, Ano VIII, 17.02.1912, n.º 207<br />
tegui).Também se apoiou a produção<br />
nacional, difundindo a<br />
nossa música crioula, como o<br />
festival que se realizou no teatro<br />
Lima a 8 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1926 «a<br />
favor do músico Nicolás Wetzell,<br />
contando-se com a participação<br />
<strong>de</strong> Felipe Pinglo, o duo<br />
Montes y Manrique, os irmãos<br />
Vilela, Carlos Saco, Guillermo<br />
Acosta, Juan Araújo, além <strong>de</strong><br />
outras figuras do crioulismo<br />
daquela época» (D. Mejía).<br />
A confluência <strong>de</strong> <strong>cultura</strong>s<br />
nos Bairros Altos reflecte-se<br />
nitidamente nos seus cine-teatros.<br />
Os primeiros chineses que<br />
se foram instalando nos Bairros<br />
Altos em 1860, no começo do<br />
século XX já constituíam uma<br />
numerosa colónia com uma<br />
sólida economia, levando a que,<br />
institucionalmente, construíssem<br />
o cine-teatro Delicias na<br />
rua colonial do Rastro <strong>de</strong> la<br />
Huaquilla, junto ao famoso e<br />
BAIRROS ALTOS / CINEMAS 1910-1960<br />
Cinema Rua<br />
Cinelandia Vitervo<br />
América General La Fuente<br />
Bolívar* Plazuela <strong>de</strong> Santa Catalina<br />
Apolo Chirimoyo<br />
Delicias* Rastro <strong>de</strong> la Huaquilla<br />
Francisco Pizarro* Plazuela <strong>de</strong> Santa Ana<br />
(Mazzi) Unión* Plazuela <strong>de</strong> Santa Ana<br />
Continental Plazuela Mercedarias<br />
Buenos Aires Acequia <strong>de</strong> Islas<br />
Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lemos* Plazuela Buenos Aires<br />
Lima* Manuel Morales<br />
(Astor) Huáscar Aromo<br />
* Cine-teatro Fonte: Autor<br />
Sala Cine-teatro Mazzi (Bairros Altos),<br />
in <strong>Revista</strong> Varieda<strong>de</strong>s, Lima, Ano VIII, 17.02.1912, n.º 207
CIDADES INVISÍVEIS 48<br />
As poltronas do balcão<br />
e da plateia estavam<br />
forradas com veludo,<br />
criando-se um ambiente<br />
propício para ver<br />
os filmes «mudos»<br />
que eram<br />
acompanhados com o<br />
ritmo <strong>de</strong> um piano.<br />
49<br />
enorme beco conhecido como<br />
as «Siete puñaladas», <strong>de</strong>molido<br />
no princípio <strong>de</strong> 1950 para dar<br />
lugar a um edifício <strong>de</strong> apartamentos.<br />
Na segunda e terceira<br />
décadas do século XX, o cine-<br />
-teatro Delicias projectou filmes<br />
chineses, «dando-se ao luxo» <strong>de</strong><br />
contratar directamente na China<br />
companhias completas <strong>de</strong> teatro<br />
para oferecer ao seu público.<br />
Também o cinema Apolo, em<br />
dias especiais, projectou películas<br />
chinesas até meados do século<br />
XX. Não obstante, os cinemas<br />
América, Buenos Aires, Astor e<br />
Continental foram mais populares,<br />
não só pela sua estrutura,<br />
como também pelas películas<br />
que projectavam e pelo preço<br />
das suas entradas.<br />
Uma segunda geração <strong>de</strong><br />
cinemas nos Bairros Altos, que<br />
reafirma a elevada <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> e<br />
soli<strong>de</strong>z económica dos seus vizinhos,<br />
é marcada pela construção<br />
do sóbrio edifício do cinema<br />
Bolívar. De igual modo, a elegância,<br />
a amplitu<strong>de</strong>, o ecrã e a iluminação<br />
do Francisco Pizarro sublinharam<br />
o valor imobiliário da<br />
praça Itália, sendo projectados filmes<br />
mo<strong>de</strong>rnos e apresentando-se<br />
anualmente a companhia cubana<br />
<strong>de</strong> «Carlitos» Pons entre 1948 e<br />
1951. Por esta altura, construía-<br />
-se no «coração» dos Bairros<br />
Altos, na praceta <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />
o último cine-teatro, o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Lemos, <strong>de</strong>struindo-se, para a sua<br />
edificação, parte do beco <strong>de</strong> São<br />
José.<br />
À excepção do Continental,<br />
conheci todos estes cinemas,<br />
assistindo a filmes, teatro e varieda<strong>de</strong>s.<br />
A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> da televisão<br />
(1960-1970) começou a<br />
eclipsar os cinemas dos Bairros<br />
Altos, e o público que se havia<br />
<strong>de</strong>leitado com sessões <strong>de</strong> dois filmes<br />
pelo preço <strong>de</strong> uma entrada<br />
ou com as «terças-feiras femininas»,<br />
«pouco a pouco» foi abandonando<br />
as suas poltronas,<br />
algumas <strong>de</strong>las com iniciais que<br />
indicavam «proprieda<strong>de</strong>», e refugiou-se<br />
em suas casas a «ver televisão».<br />
Hoje, os cinemas dos<br />
Bairros Altos, que se iniciaram<br />
com a pré-história do cinema<br />
«mudo», per<strong>de</strong>ram a sua finalida<strong>de</strong><br />
inicial: projectar filmes.<br />
Alguns foram <strong>de</strong>struídos, outros<br />
estão a cumprir outra função<br />
social, e a maioria encontra-se<br />
abandonada «à sua sorte», como<br />
se po<strong>de</strong> verificar no seguinte<br />
quadro:<br />
BAIRROS ALTOS / CINEMAS 2006<br />
Cinema Rua - Lugar Situação actual<br />
Cinelandia Vitervo Feira <strong>de</strong> livros<br />
América General La Fuente Galeria comercial<br />
Bolívar* Plazuela Sta Catalina Galeria comercial<br />
Apolo Chirimoyo Local comercial<br />
Delicias* Rastro <strong>de</strong> la Huaquilla Abandonado<br />
Francisco Pizarro* Plazuela <strong>de</strong> Santa Ana Abandonado<br />
(Mazzi) Unión* Plazuela <strong>de</strong> San Ana Abandonado<br />
Continental Plazuela Mercadarias Abandonado<br />
Buenos Aires Acequia <strong>de</strong> Islas Abandonado<br />
Con<strong>de</strong> Lemos* Buenos Aires Abandonado<br />
Lima* Manuel Morales Abandonado<br />
(Astor) Huáscar Aromo ?<br />
* Cine-teatro Fonte: Autor
O referente popular dos<br />
Bairros Altos não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />
apenas como sinónimo<br />
<strong>de</strong> pobreza, mas também como<br />
uma zona <strong>de</strong> elevada <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
populacional que po<strong>de</strong> explicar<br />
a edificação <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />
número <strong>de</strong> cine-teatros, nas primeiras<br />
décadas do século XX, e<br />
cuja vida se prolongou mais <strong>de</strong><br />
meio século. Este indicador dos<br />
cine-teatros nos Bairros Altos,<br />
com uma afluência massiva <strong>de</strong><br />
público, estaria a <strong>de</strong>monstrar-<br />
-nos que, como «um todo vicinal»,<br />
a economia familiar pô<strong>de</strong><br />
satisfazer um consumo quotidiano<br />
e permanente. Porque se<br />
ia ao cinema «todas as semanas»,<br />
uma ou duas vezes, pais,<br />
filhos, netos, e, quando chegava<br />
um espectáculo «ao vivo» toda<br />
a família assistia. Houve casos<br />
extremos <strong>de</strong> bairroaltinos que<br />
todos os dias iam ao mesmo<br />
cinema, sem conhecer o filme, e<br />
outros que escolhiam um dia<br />
fixo da semana. Dos primeiros<br />
cinemas que apareceram no início<br />
da segunda década do século<br />
XX, o Mazzi mudou para<br />
Unión, no início <strong>de</strong> 1950, e o<br />
Ástor sofreu um incêndio,<br />
sendo substituído pelo Huáscar,<br />
os restantes continuaram a<br />
funcionar normalmente com<br />
outros cinemas que se lhe juntaram,<br />
até que todos encerraram<br />
<strong>de</strong>vido à concorrência da televisão<br />
e do VHS. Não foi por acaso<br />
que, hoje, os cinemas se transferiram<br />
para os conos, que são<br />
zonas «populares».<br />
Na época da construção dos<br />
cinemas, o município <strong>de</strong> Lima<br />
iniciou uma política <strong>de</strong> «abrir»<br />
ruas na cida<strong>de</strong> com a finalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> facilitar a <strong>de</strong>slocação da sua<br />
população que aumentava significativamente.<br />
Nos Bairros Altos,<br />
prolongaram-se os jirones, urbanizaram-se<br />
quarteirões, construíram-se<br />
casas para satisfazer<br />
uma crescente procura da sua<br />
população. O jirón Paruro prolongou-se<br />
até à avenida Grau, e<br />
a rua Chirimoyo (jirón Puno)<br />
avançou para se encontrar com<br />
o jirón Huanaco (Cocharcas). Por<br />
Maravillas, na zona conhecida<br />
como San Isidro, abrem-se o<br />
jirón Manuel Pardo, as ruas<br />
Tenente Arancibia, Rodríguez,<br />
Centro Escolar e outras. Os Barrios<br />
Altos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua origem,<br />
foi uma zona <strong>de</strong> expansão<br />
urbana natural, tendo crescido<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente com o <strong>de</strong>correr<br />
dos séculos. Aqui não se respeitou<br />
a quadrícula do tabuleiro<br />
<strong>de</strong> Pizarro, os seus quarteirões<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> extensão e as suas<br />
ruas prolongavam-se por 200 e<br />
até 300 metros, como a rua Los<br />
Naranjos que abarca, ainda<br />
hoje, três quarteirões; Rufas<br />
atravessava dois quarteirões, e<br />
algo semelhante havia acontecido<br />
com a rua La Confianza,<br />
que começava em Santa Catalina<br />
e terminava na rua Chirimoyo,<br />
sendo cortada para permitir o<br />
prolongamento dos jirones Paruro<br />
e Huanta. Relativamente aos<br />
quarteirões <strong>de</strong> solares ou hortas<br />
que existiam nos Bairros Altos,<br />
o único que <strong>de</strong>safia o tempo e<br />
que é um testemunho da vastidão<br />
<strong>de</strong>stes lugares é o histórico<br />
estádio <strong>de</strong> Buenos Aires.<br />
Em 1909 foi <strong>de</strong>struído o<br />
beco Otaiza, comunicando a<br />
avenida Ucajali com a avenida<br />
Ayacucho (<strong>de</strong>pois Miró Quesada).<br />
Prolongar avenidas e abrir ruas<br />
fez parte <strong>de</strong> uma política estatal<br />
e municipal <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização<br />
do casco urbano <strong>de</strong> Lima. De<br />
acordo com a higiene ambiental<br />
<strong>de</strong> princípios do século XX, em<br />
1909, a azinhaga «Oitaza»,<br />
i<strong>de</strong>ntificada como «foco infeccioso»,<br />
foi <strong>de</strong>struída, permitindo,<br />
ao mesmo tempo, a comunicação<br />
dos jirones Ucayali com Ayacucho<br />
(<strong>de</strong>pois Miró Quesada).<br />
Mas não havia apenas que «limpar»<br />
Lima, como também «oxigenar»<br />
a cida<strong>de</strong>, abrindo «atalhos»<br />
que economizassem tempo<br />
aos limenhos para se <strong>de</strong>slocarem<br />
<strong>de</strong> um lugar para outro. Em<br />
1911, nos Bairros Altos, expropriaram-se<br />
e <strong>de</strong>struíram-se<br />
casas da Beneficência <strong>de</strong> Lima e<br />
do convento da Buena Muerte<br />
situados na rua Carmen Alto <strong>de</strong><br />
um lado, e do outro, a horta<br />
Manuel Morales, situada na rua<br />
Los Naranjos, conseguindo-se o<br />
acesso directo entre ambas as<br />
ruas. Anos <strong>de</strong>pois, numa parte<br />
da nova rua Manuel Morales, a<br />
Beneficência <strong>de</strong> Lima construiu<br />
uma formosa quinta com duas<br />
portas <strong>de</strong> entrada que ainda<br />
hoje existe. De igual modo,<br />
rapidamente se construiu o<br />
cine-teatro Lima que em 1913<br />
anunciava os filmes «El Judio<br />
Errante y Fantomas», cobrando a<br />
entrada <strong>de</strong> um sol para um balcão<br />
<strong>de</strong> quatro lugares e 6 centavos<br />
1 por um camarote.<br />
1 Diário El Comercio, 15 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1913.
VIDAS CONTADAS 50<br />
UMA EVOCAÇÃO<br />
DE JOSÉ MARÍA<br />
ARGUEDAS<br />
Cecilia Bustamante<br />
Arguedas é o escritor dos encontros e <strong>de</strong>sencontros <strong>de</strong> todas as raças, <strong>de</strong> todas<br />
as línguas e <strong>de</strong> todas as pátrias do Peru. A sua vida e a sua criação nutriram-se<br />
da sua terra, do povo peruano, especialmente dos camponeses, artesãos, músicos<br />
e artistas populares. «Recorri los campos e hice las faenas <strong>de</strong> los campesinos<br />
bajo el infinito amparo <strong>de</strong> los comuneros quechuas», contava.<br />
Em 1928, publica na revista Antorcha <strong>de</strong> Huancayo. Em 1931, ingressa na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> S. Marcos <strong>de</strong> Lima e termina os seus estudos <strong>de</strong> literatura em 1937,<br />
ano em que é preso <strong>de</strong>vido às suas activida<strong>de</strong>s políticas.<br />
Em Portugal, o seu mais importante livro, Os Rios Profundos, encontra-se<br />
publicado pela Assírio & Alvim.<br />
Cecilia Bustamante leva-nos ao encontro do gran<strong>de</strong> escritor peruano.<br />
Atrás, Alicia e pessoa não i<strong>de</strong>ntificada. Sentados da esquerda para a direita: Célia, poetisa Blanca Varela e José María Arguedas.<br />
51<br />
Rancho <strong>de</strong>l Puerto <strong>de</strong> Supe, norte <strong>de</strong> Lima. Foto do Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Cecilia Bustamante
«Tú ves, como niño, algunas cosas que los mayores no vemos…»<br />
Os Rios Profundos
VIDAS CONTADAS 52 53<br />
O meu pai tinha viajado para<br />
o Norte do Peru para tentar a<br />
sorte. Regressou a Lima em<br />
1939, com vários filhos e pouca<br />
fortuna. Vínhamos com gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer os avós, tios,<br />
primos, cujas imagens e nomes<br />
meu pai tinha mantido vivos,<br />
para mim, em histórias fantásticas.<br />
À luz do can<strong>de</strong>eiro a petróleo,<br />
na distante fazenda piurana<br />
<strong>de</strong> Parihuanás, escutávamos os seus<br />
relatos sobre os nossos tetravós,<br />
bisavós, avós, <strong>de</strong> vários lugares do<br />
Sul do Peru e do Norte do Chile.<br />
Relatos sobre as figuras mais<br />
próximas das suas irmãs mais<br />
novas,Alicia e Celia – que se apresentavam<br />
na minha imaginação<br />
infantil como duas mulheres<br />
extraordinárias.A voz do meu pai<br />
enchia-se <strong>de</strong> carinho e admiração<br />
ao recordá-las. Chegámos, por<br />
fim, a Callao, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> três dias<br />
<strong>de</strong> viagem por mar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Paita,<br />
Piura, no barco «Rainha do Pacífico».<br />
A minha mãe viajava com<br />
seis filhos, o mais novo com dois<br />
anos, e todos enjoámos.A «nossa<br />
família» foi receber-nos ao porto.<br />
Senti para sempre uma gran<strong>de</strong><br />
admiração por Alicia e Celia. Não<br />
eram como as outras pessoas:<br />
pareciam unidas por um laço especial<br />
<strong>de</strong> força, uma paixão que,<br />
animando-as, lhes concedia singularida<strong>de</strong><br />
e beleza. Mais tar<strong>de</strong><br />
compreendi que essa paixão incluía<br />
o seu i<strong>de</strong>al político e o seu<br />
trabalho a favor dos indígenas do<br />
Peru. Viajavam constantemente<br />
pelos povoados da costa e das<br />
serras reunindo objectos <strong>de</strong> arte<br />
popular que mais tar<strong>de</strong> formariam<br />
a sua famosa colecção <strong>de</strong><br />
«Arte Popular Peruana» 1 .<br />
Nutriam um amor violento<br />
pelo Peru, em <strong>de</strong>fesa do nativo e<br />
pelo reconhecimento dos artistas<br />
populares que constantemente<br />
ajudavam. Era inevitável que conhecessem<br />
José María Arguedas<br />
quando ele chegou a Lima. Alguém<br />
o levou a esse centro peruanista,<br />
indigenista, a «Peña Pancho<br />
Fierro» que elas tinham fundado<br />
(1938?) e que funcionava num recanto<br />
da Praceta San Agustín.<br />
Àquele local afluíram,durante mais<br />
<strong>de</strong> vinte anos, artistas, intelectuais<br />
peruanos e estrangeiros que visitavam<br />
Lima,constituindo a vanguarda<br />
da vida <strong>cultura</strong>l peruana 2 .<br />
Era inevitável que<br />
conhecessem José<br />
María Arguedas<br />
quando ele chegou a<br />
Lima. Alguém o levou<br />
a esse centro peruanista,<br />
indigenista,<br />
a «Peña Pancho Fierro»<br />
que elas tinham<br />
fundado (1938?)<br />
e que<br />
funcionava num<br />
recanto da Praceta<br />
San Agustín.<br />
José María enamorou-se da<br />
bela arequipenha A<strong>de</strong>lita Montesinos,<br />
com a qual me cruzei na<br />
minha adolescência inquieta e<br />
que me contou da sua rivalida<strong>de</strong><br />
com Celia pelo amor <strong>de</strong> José<br />
María com quem se ia casar. José<br />
María enamorou-se <strong>de</strong> Celia, com<br />
quem casou em 1939, uma data<br />
que não recordo mas que <strong>de</strong>ixou<br />
algumas imagens na minha<br />
memória.<br />
Os meus avós, Josefina Vernal<br />
y Luza (nascida em Iquique) e<br />
Carlos Bustamante y Gandarillas,<br />
arequipenho, viviam no segundo<br />
andar <strong>de</strong> uma casa colonial, na<br />
Rua Mariquitas, 336, no centro<br />
antigo <strong>de</strong> Lima. Havia mais gente<br />
que <strong>de</strong> costume, nós os Bustamante<br />
e Moscoso estávamos <strong>de</strong><br />
regresso a Lima e vivíamos em<br />
casa dos avós. A avó estava cega<br />
havia vários anos, Celia era a sua<br />
filha mais nova e a mais querida.<br />
Nesse dia, a avó <strong>de</strong>sejava saber<br />
tudo o que se passava à sua volta:<br />
como estava vestida Celita, que<br />
horas eram, quem ia e vinha. Sabia<br />
que a sua filha iria viajar para<br />
a serra após a cerimónia. Eu tinha<br />
aprendido a ler muito cedo e tinha-me<br />
convertido em sua «leitora<br />
e acompanhante». Desejosa<br />
<strong>de</strong> falar, a avó contava-me longas<br />
histórias da sua infância em<br />
Iquique e, <strong>de</strong>pois, da sua vida <strong>de</strong><br />
colegial na Europa, recordações<br />
<strong>de</strong> um mundo que tinha <strong>de</strong>saparecido.<br />
Falava a uma criança,<br />
como falamos a quem esperamos<br />
que esqueça. Celita, dizia-me, casava-se<br />
com um escritor que falava<br />
quechúa e que escrevia misturando<br />
o castelhano com a língua<br />
nativa. Um rapaz inteligente<br />
que tinha encontrado um posto<br />
<strong>de</strong> professor num povoado perto<br />
<strong>de</strong> Cuzco que se chamava Sicuani.<br />
Para lá levaria a minha tia<br />
Celia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se casarem. Que<br />
pena não terem dinheiro. E <strong>de</strong>ixava<br />
resvalar algumas lágrimas<br />
na sua obscurida<strong>de</strong>.<br />
– Chama-me «Dona Josefina,<br />
a ceguinha»; quem me <strong>de</strong>ra po<strong>de</strong>r<br />
vê-lo! Bom rapaz. Um escritor,<br />
é pena que vão trabalhar para<br />
tão longe, mas assim são os artistas…<br />
Algo mais a <strong>de</strong>ixava triste:<br />
– José não estará aqui. Casaram-se<br />
por procuração, enten<strong>de</strong>s?<br />
– Não, avó.<br />
– Outra pessoa representará<br />
o noivo. Além do mais, não vão
à igreja, eles não acreditam nessas<br />
coisas.<br />
Suspirava, secava as lágrimas<br />
nos seus olhos vazios, com o seu<br />
lencito <strong>de</strong> cheiro a lima, que <strong>de</strong>pois<br />
escondia numa das mangas.<br />
Não me lembro <strong>de</strong> quem representou<br />
José, talvez Carlos Cueto<br />
Fernandini, naquele dia, entre as<br />
malas semifechadas, alguns parentes<br />
próximos, pouquíssimos<br />
amigos. Celia aprumava-se, vestida<br />
com um fato curto branco,<br />
saia-casaco, tricotado, estava<br />
muito linda. Alicia, emocionada<br />
e séria, preparava a partida. As<br />
duas irmãs inseparáveis iam separar-se<br />
pela primeira vez.<br />
José María, Celia e Alicia formaram<br />
uma tría<strong>de</strong> unida pelos<br />
seus i<strong>de</strong>ais e pelo trabalho.<br />
Emilia Barcia, amiga <strong>de</strong> Alicia,<br />
arranjou-lhe um trabalho num<br />
jardim-escola. O que Alicia fez<br />
daquelas activida<strong>de</strong>s com os pequenos,<br />
como artista que era, foi<br />
algo maravilhoso: o papel crepe<br />
em formas fantásticas, as cores<br />
brilhantes, os miúdos pareciam<br />
duen<strong>de</strong>s saídos <strong>de</strong> um conto enquanto<br />
dançavam evocando a<br />
Primavera no parque Neptuno.<br />
Durante pelo menos um quarto<br />
<strong>de</strong> século, a sua casa foi também<br />
pousada dos artistas populares<br />
que chegavam à gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,<br />
vindos do alto dos An<strong>de</strong>s. A sua<br />
conjugação era fecunda e a época<br />
das suas mais profundas buscas e<br />
produções <strong>de</strong>u-se enquanto estiveram<br />
juntos. José escrevia sobre<br />
um mundo que Alicia pintava<br />
nos seus quadros e que Celita<br />
tornava real na colecção nascente.<br />
Celia apoiou e estimulou<br />
vivamente o marido, o escritor<br />
serrano que se impunha num<br />
meio tão classista e superficial<br />
como ten<strong>de</strong> a ser a socieda<strong>de</strong> limenha.<br />
As minhas tias conheciam<br />
esse ambiente e <strong>de</strong>safiaram-no<br />
constantemente à custa<br />
<strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sgostos dos avós,<br />
que as aprovavam em silêncio, e<br />
da censura <strong>de</strong> alguns parentes com<br />
vícios <strong>de</strong> aristocratas falidos.<br />
A tia e o seu escritor foram<br />
para a sua al<strong>de</strong>ia na serra. Às<br />
vezes chegavam cartas e fotos.<br />
Muito campo, sol, trigo, música:<br />
a essência pura daquilo <strong>de</strong> que<br />
gostavam. Viajavam para outras<br />
terras, o seu amigo Emilio Adolfo<br />
José escrevia sobre um<br />
mundo que Alicia<br />
pintava nos seus<br />
quadros e que Celita<br />
tornava real na<br />
colecção nascente.<br />
Celia apoiou e<br />
estimulou vivamente o<br />
seu marido, o escritor<br />
serrano que se<br />
impunha num meio tão<br />
classicista e superficial<br />
como ten<strong>de</strong> a ser a<br />
socieda<strong>de</strong> limenha.<br />
Westphalen juntou-se-lhes numa<br />
viagem, com Celia e José abraçados,<br />
ao sol. Uma fotografia<br />
fixou-os a todos, felizes, em fato-<br />
-<strong>de</strong>-banho.Algum tempo <strong>de</strong>pois,<br />
«o casal», como lhes chamava a<br />
minha avó, regressou <strong>de</strong> visita.<br />
Foi nessa altura que conheci José<br />
María. Era um homem muito<br />
simples, mo<strong>de</strong>sto, doce. Reconheci<br />
nele os amigos <strong>de</strong> província<br />
das serras on<strong>de</strong> tínhamos crescido.<br />
O seu ar infantil convidava-<br />
-nos à brinca<strong>de</strong>ira, aos contos.<br />
Revelou-se muito curioso: queria<br />
saber das nossas histórias, o que<br />
tínhamos conhecido, escutado,<br />
aprendido, comido, brincado; o<br />
que os índios <strong>de</strong>ssas povoações<br />
nos contavam pelas tar<strong>de</strong>s.<br />
Recor<strong>de</strong>i o sabor <strong>de</strong>stas divertidas<br />
conversas, vários anos<br />
<strong>de</strong>pois, quando tive nas minhas<br />
mãos Canciones y cuentos <strong>de</strong>l pueblo<br />
quechua (1947), uma colecção <strong>de</strong><br />
tradições, mitos e lendas que recolheu<br />
junto das alunas do colégio<br />
on<strong>de</strong> eu estudava e <strong>de</strong> outros<br />
lugares do país. Celia e José instalaram-se<br />
em casa dos meus<br />
avós. Trabalhavam muito e nem<br />
sempre era permitido brincar<br />
com ele. O quarto <strong>de</strong>les era, para<br />
mim, um lugar fantástico. Repleto<br />
<strong>de</strong> objectos <strong>de</strong> arte popular<br />
peruana e mexicana, <strong>de</strong> sacolas,<br />
chullos 3 , quenas 4 , llicllas 5 , um charango 6 ,<br />
uma guitarra, papéis, uma máquina<br />
<strong>de</strong> escrever velha e ruidosa,<br />
na qual a minha tia Celia teclava.<br />
Era uma mistura <strong>de</strong> atelier e<br />
«quarto on<strong>de</strong> se vive». José escrevia<br />
à mão. Tinha uma mão<br />
aleijada. Ouvi que, em criança, tivera<br />
uma madrasta muito má que<br />
o maltratava. Supus que teria algo<br />
a ver com os seus <strong>de</strong>dos encolhidos,<br />
o que me dava muita pena.<br />
José María conversava muito<br />
com a minha avó, na penumbra<br />
da sala <strong>de</strong> jantar; eu observava-os<br />
através do biombo, numa tar<strong>de</strong><br />
sombria <strong>de</strong> Inverno limenho que<br />
me apertava o coração com algo<br />
parecido ao medo. Da minha<br />
ca<strong>de</strong>irinha <strong>de</strong> vime via que estavam<br />
juntos, à cabeceira da mesa,<br />
como se ele estivesse a fazer<br />
queixa das suas penúrias <strong>de</strong><br />
criança. A avó abanava a cabeça,<br />
fazia-lhe perguntas, tacteava-lhe<br />
a mão.<br />
Quando ele estava a trabalhar,<br />
não <strong>de</strong>víamos entrar no seu quarto.<br />
Às vezes chamavam-nos para<br />
cumprimentarmos, rapidamente,
VIDAS CONTADAS 54 55<br />
algum amigo ou parente, que<br />
queriam que nos conhecesse.<br />
Assim conheci Alliocha, filho<br />
dos seus amigos Ortiz Rescaniere.<br />
Tinham-lhe especial afeição, era<br />
um miúdo inquieto, vivaço. José<br />
María referia-se a ele na sua carta<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida, ao Reitor da Universida<strong>de</strong><br />
Agrária, como Alejandro<br />
Ortiz, seu discípulo muito<br />
querido. Certa tar<strong>de</strong>, um jovem<br />
alto, magro e narigudo veio buscá-los.<br />
Mãos nos bolsos do gabão,<br />
ar apressado e sorriso simpático.<br />
Era Sebastián Salazar Bondy que<br />
tinha regressado <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />
após o seu divórcio <strong>de</strong> uma actriz<br />
argentina. Entrou para o grupo da<br />
Peña. Não imaginava que a minha<br />
irmã Alicia casaria mais tar<strong>de</strong><br />
com o seu primo-irmão; este<br />
noivado aproximou-nos como<br />
família nos meus anos <strong>de</strong> vida literária<br />
em Lima, e, sem me aperceber,<br />
interferi nos seus amores<br />
com a minha irmã mais nova,<br />
Marcela. (Depois <strong>de</strong> ter partilhado<br />
belos tempos na Lima<br />
crioula <strong>de</strong> então, afastámo-nos.<br />
Sendo um intelectual cada vez<br />
mais influente na <strong>cultura</strong> peruana<br />
da época, a sua inimiza<strong>de</strong> foi um<br />
dos maiores obstáculos na minha<br />
carreira, porque, digamos, her<strong>de</strong>i-a<br />
dos seus solidários discípulos<br />
que Lima chamava «as viúvas<br />
<strong>de</strong> Salazar Bondy».)<br />
Um dia, no mês <strong>de</strong> Outubro,<br />
na casa dos avós, prepararam<br />
as varandas para que chegassem<br />
os seus amigos toureiros<br />
que vinham ver passar a procissão<br />
do Senhor dos Milagres e atirar-lhe<br />
flores <strong>de</strong>sfolhadas enquanto<br />
o incenso se espalhava ao<br />
ritmo da música. Manolete entre<br />
eles, o próprio Dominguín e alguns<br />
outros jovens toureiros que<br />
faziam pegas na fazenda Huando<br />
on<strong>de</strong> vivia a minha tia Rebeca <strong>de</strong><br />
Simpson… Depois arranjaram<br />
uma casita <strong>de</strong> praia no porto <strong>de</strong><br />
Supe, a norte <strong>de</strong> Lima. Era, na<br />
época, um porto bonito e calmo,<br />
sem fábricas <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> peixe.<br />
Para lá convidaram, ano após<br />
ano, os seus amigos da Peña e,<br />
após a temporada, comentavam<br />
com a minha avó os namoricos<br />
e os acontecimentos do Verão: o<br />
<strong>de</strong> Blanca Varela com Gody Szyszlo,<br />
ou Sebastián. O da minha<br />
exótica e sedutora prima Nita,<br />
que era a sua favorita. Uma vez<br />
«O que sou?<br />
Um homem civilizado<br />
que não <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>de</strong> ser, na medula,<br />
um indígena do Peru;<br />
indígena, não índio.<br />
E assim caminhei<br />
pelas ruas <strong>de</strong> Paris<br />
e Roma, <strong>de</strong> Berlim<br />
e Buenos Aires…»<br />
visitei essa casa ou rancho,<br />
quando ainda não estava concluída;<br />
alguns quartos sem tecto,<br />
um pátio com vista para o mar,<br />
vasos por todos os lados, conchas<br />
incrustadas nas pare<strong>de</strong>s das casas-<br />
-<strong>de</strong>-banho e quadros <strong>de</strong> pintores<br />
indigenistas nas pare<strong>de</strong>s da sala <strong>de</strong><br />
jantar. Passaram em Supe verões<br />
inesquecíveis com os seus amigos<br />
pintores, poetas e músicos.<br />
«Ela (Celia), a sua irmã Alicia<br />
e os amigos comuns abri-<br />
ram-me as portas da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Lima, tornaram mais fácil a minha<br />
superficial entrada nela e,<br />
com o meu pai e os livros, o<br />
melhor entendimento do castelhano,<br />
a meta<strong>de</strong> do mundo. E<br />
também com Celia e Alicia começámos<br />
a quebrar o muro que<br />
encerrava Lima e a costa – a<br />
mente dos crioulos todo-po<strong>de</strong>rosos,<br />
colonos <strong>de</strong> uma mescla<br />
bastante in<strong>de</strong>finível <strong>de</strong> Espanha,<br />
França e Estados Unidos e dos<br />
colonos dos seus colonos…» 7 .<br />
Um dia, a minha avó referiu<br />
que José estava a terminar um livro<br />
e que não se podia entrar no<br />
seu quarto, nem tocar em nenhum<br />
papel.<br />
– Vai publicar um livro novo.<br />
A tua tia Alicia fez os <strong>de</strong>senhos,<br />
ou seja, as ilustrações.<br />
Sim, já sabia.Tinha visto Alicia<br />
diante do seu cavalete. Gostava<br />
<strong>de</strong> a ver pintar, mas importunava-a<br />
fazendo-lhe muitas perguntas<br />
que eu não sabia serem<br />
indiscretas, como, por exemplo,<br />
porque eram todos tão amáveis<br />
com os primos ricos. Outra pergunta<br />
irritou-a tanto que me <strong>de</strong>u<br />
com a paleta na cabeça. Saí disparada<br />
e ressentida. Por isso não<br />
contei à minha avó como eram<br />
os seus novos <strong>de</strong>senhos e muito<br />
menos os quadros que estava a<br />
pintar. Geralmente, lia-lhe as notas<br />
sobre as exposições e também<br />
o que era publicado a respeito <strong>de</strong><br />
José María. Eu não entendia<br />
gran<strong>de</strong> coisa, mas reconhecia um<br />
ou outro nome. A minha avozinha<br />
embevecia-se e enchia-se <strong>de</strong><br />
orgulho:<br />
– Lê isso <strong>de</strong> novo, como<br />
diz… excepcional, autêntico?<br />
Pouco <strong>de</strong>pois apareceu Yawar<br />
Fiesta. No dia em que chegaram<br />
alguns embrulhos, nem se podia<br />
caminhar. Alguns amigos, os<br />
meus outros tios e tias, os meus<br />
primos, estava tudo em alvoroço.
A avó chamou-me mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois<br />
do almoço como sempre,<br />
para conversar. Desta vez <strong>de</strong>i-me<br />
conta <strong>de</strong> que, à cabeceira da<br />
enorme mesa, não iria ouvir rádio.<br />
– Vem Yola, lê-me agora o livro<br />
<strong>de</strong> José. Conta-me como são<br />
as ilustrações.<br />
E tirou do seu regaço um<br />
exemplar novinho. Era um livro<br />
<strong>de</strong> muitas páginas que lhe <strong>de</strong>screvi<br />
minuciosamente, as notas<br />
<strong>de</strong> rodapé, tudo. A minha avó,<br />
que tinha crescido na Europa, regressou<br />
ao Peru aos 26 anos para<br />
se casar com o senhor Bustamante,<br />
<strong>de</strong> Arequipa. Ela falava<br />
cinco idiomas mas preferia o alemão.<br />
Sabia <strong>de</strong> cor poemas <strong>de</strong><br />
Göethe, Schiller. Ao ler-lhe Yawar<br />
Fiesta, <strong>de</strong>tínhamo-nos nas palavras<br />
quechúas.<br />
– Parece alemão. Gostarão as<br />
pessoas do uso do quechúa num<br />
livro?<br />
«O que sou? Um homem<br />
civilizado que não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />
ser, na medula, um indígena do<br />
Peru; indígena, não índio. E assim<br />
caminhei pelas ruas <strong>de</strong> Paris<br />
e Roma, <strong>de</strong> Berlim e Buenos<br />
Aires…»<br />
Algumas noites, quando<br />
acabávamos <strong>de</strong> jantar na longa<br />
mesa presidida pela minha avó<br />
e à qual se sentavam os meus<br />
três tios, os sete netos <strong>de</strong> então<br />
e os meus pais, os meus tios escolhiam<br />
alguns <strong>de</strong> nós para<br />
irem com eles à estação central<br />
dos Correios na Praça <strong>de</strong> Armas<br />
meter as suas cartas. Levavam-<br />
-nos <strong>de</strong> mão dada pela névoa<br />
<strong>de</strong> Lima, às vezes sob uma<br />
chuva miudinha. Lima não era<br />
ainda uma gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalizada.<br />
Tinha um discreto<br />
sabor colonial, com as<br />
suas varandas coloniais que se<br />
viam na noite como caixinhas<br />
<strong>de</strong> encaixe recortadas pela luz<br />
interior. Por vezes, comentavam<br />
a última reunião na Peña, o seu<br />
trabalho. Apesar <strong>de</strong> não captar<br />
gran<strong>de</strong> parte das suas conversas,<br />
sentia que os três possuíam algo<br />
que me fazia vê-los <strong>de</strong> forma<br />
diferente.<br />
Outras noites, José falava-nos<br />
em quechúa, fazendo recordar o<br />
que tínhamos aprendido nas<br />
nossas férias em Huariaca, a pequena<br />
povoação na zona mineira<br />
on<strong>de</strong> o meu pai se tinha estabe-<br />
Lima não era ainda<br />
uma gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spersonalizada.<br />
Possuía um discreto<br />
sabor colonial,<br />
com as suas varandas<br />
coloniais que se viam<br />
na noite como<br />
caixinhas <strong>de</strong> encaixe<br />
recortadas pela<br />
luz interior.<br />
lecido para ven<strong>de</strong>r ma<strong>de</strong>ira para<br />
as minas. Ensinava-nos algumas<br />
frases e, quando as estreávamos<br />
com os nossos amigos da povoação,<br />
convertiam-se em piadas picantes<br />
ou palavrões. Ainda hoje<br />
uso algumas <strong>de</strong>las. Os meus tios<br />
também viajaram pelo México e<br />
falaram muito <strong>de</strong>sse país. Fizeram<br />
uma gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> com o<br />
revolucionário mexicano Moisés<br />
Sáenz. Uma fotografia sua estava<br />
em lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, ao lado do<br />
cavalete da minha tia Alicia. Décadas<br />
<strong>de</strong>pois, numa reunião <strong>cultura</strong>l<br />
nos Estados Unidos, cruzei-<br />
-me com uma sobrinha <strong>de</strong> Sáenz<br />
que comigo queria confirmar<br />
<strong>de</strong>talhes daquela relação amorosa.<br />
Os tios falavam da arte popular<br />
peruana e mexicana, ameaçada<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>struição pelo turismo,<br />
pela pobreza e pelo <strong>de</strong>srespeito<br />
pelos índios. Quando se punham<br />
a trabalhar, estavam a uma<br />
gran<strong>de</strong> distância, num mundo<br />
que eu admirava e que os fazia<br />
viver como só eles eram.<br />
Alegres, jovens, apaixonados.<br />
Tudo o que os ro<strong>de</strong>ava adquiria<br />
um tom <strong>de</strong> beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />
As suas roupas, as suas<br />
coisas, a disposição dos móveis,<br />
os souvenirs, algumas plantas, os<br />
gatos, sem os quais José não podia<br />
passar.Ainda os vejo: José <strong>de</strong>dilhando<br />
o seu charango, no ócio<br />
<strong>de</strong> uma tar<strong>de</strong> feliz, cantando suavemente<br />
hinos que me eram familiares,<br />
ou também o refrão<br />
«Wifalalaaaa! Wifalalaaaaa!». De<br />
vez em quando, José começava a<br />
dançar. Era como se fosse mais<br />
uma criança na casa. Admirávamo-lo,<br />
em parte, porque a<br />
minha avó tinha-nos ensinado a<br />
respeitar o talento, a inteligência.<br />
Quando nasceu a minha irmã<br />
Nora, a minha mãe pediu-lhe<br />
que a levasse à pia baptismal.<br />
A José agradou-lhe muito a i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> ser padrinho.<br />
«Des<strong>de</strong> 1943, fui visto por<br />
muitos médicos peruanos… e<br />
dantes sofri muito <strong>de</strong> insónias e<br />
<strong>de</strong>pressões…» 8<br />
Depois <strong>de</strong> terminar o secundário,<br />
via pouco José María.<br />
Uma vez foi buscar-me ao diário<br />
La Crónica, on<strong>de</strong> eu trabalhava, e<br />
pediu-me os meus poemas. José<br />
Flores Araoz tinha-me publicado<br />
na revista Cultura Peruana e isso<br />
provocou-lhe curiosida<strong>de</strong>, por<br />
isso lhe levei um folheto ao seu
VIDAS CONTADAS 56 57<br />
gabinete do Museu. Estava nervoso,<br />
diferente, tenso. Viajava<br />
muito, havia regressado famoso,<br />
e tinha-se mudado várias vezes,<br />
fugindo dos ruídos que o perturbavam<br />
facilmente, o ladrar<br />
dos cães, as brigas dos gatos, a<br />
estridência dos vizinhos, o ruído<br />
das ruas. Algo se <strong>de</strong>smoronava<br />
subtilmente entre ele e Celia, e o<br />
amor pereceu neste caos. Separaram-se<br />
em 1964, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem<br />
partilhado a vida durante<br />
mais <strong>de</strong> vinte anos. Ela não o tinha<br />
acompanhado nas suas viagens.<br />
Ele ia com frequência ao<br />
Chile para acompanhamento psiquiátrico.<br />
A minha numerosa e conservadora<br />
família nunca conseguiu<br />
compreen<strong>de</strong>r por que José<br />
<strong>de</strong>ixou Celia e, muito menos,<br />
que tivessem <strong>de</strong>cidido dar-se até<br />
ao fim.A minha avó, sim, tê-lo-<br />
-ia compreendido. Mas já não<br />
estava viva, na altura. Discordando<br />
da política familiar, eu ia<br />
buscá-lo, às vezes, à Galeria <strong>de</strong><br />
Arte on<strong>de</strong> trabalhava a sua nova<br />
mulher, a chilena Sibila Arredondo.<br />
Uma vez estivemos a tomar<br />
café no «Viena» com Ángel<br />
Rama, ao lado da Galeria. Eu<br />
planeava sair do Peru, já estava<br />
casada e tinha três filhos mas<br />
queria viajar, e disso falámos,<br />
como ao ir ao México havia <strong>de</strong>cidido<br />
regressar. Deu-me o<br />
nome <strong>de</strong> alguns amigos, o<br />
mesmo Ángel que não voltei a<br />
ver senão num congresso em<br />
Austin. Também se queixou da<br />
sua saú<strong>de</strong>, José estava muito<br />
tenso, era verda<strong>de</strong>, estávamos<br />
em finais <strong>de</strong> 1968. Fomos à Galeria<br />
porque me disse que queria<br />
que conhecesse Sibila: era<br />
uma mulher jovem, olhos <strong>de</strong><br />
expressão profunda, perspicaz,<br />
com um véu cálido no olhar.<br />
Fiquei surpreendida, fazia-me<br />
lembrar a minha tia Celia.<br />
Alicia e Celia continuaram a<br />
viver juntas.Alicia sofria <strong>de</strong> uma<br />
doença que a incapacitou fisicamente,<br />
hoje creio que foi a<br />
doença Lou Gherig. Trabalhou até<br />
po<strong>de</strong>r no Museu, e Luis Valcárcel,<br />
ao ver as dificulda<strong>de</strong>s que tinha<br />
para se <strong>de</strong>slocar, ce<strong>de</strong>u-lhe o seu<br />
gabinete <strong>de</strong> director no primeiro<br />
piso. Morreu nos braços <strong>de</strong> Celia,<br />
a 27 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1968.<br />
Alegres, jovens,<br />
apaixonados. Tudo<br />
o que os ro<strong>de</strong>ava<br />
adquiria um tom <strong>de</strong><br />
beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />
As suas roupas, as suas<br />
coisas, a disposição<br />
dos móveis,<br />
os souvenirs, algumas<br />
plantas, os gatos,<br />
sem os quais José<br />
não podia passar.<br />
Recordando-a, José María escreveu<br />
no diário El Comercio aquele<br />
que seria um dos seus últimos<br />
artigos:<br />
«Alicia Bustamante Vernal<br />
fazia parte da elite artística limenha,<br />
teoricamente convencida<br />
do <strong>de</strong>stino ilimitado da arte e da<br />
<strong>cultura</strong> peruanas, a chamada arte<br />
indígena (…) nas suas apaixonadas<br />
viagens pelos povos serranos<br />
chegou a cumprir uma função<br />
inestimável (…) chegou a<br />
ser unicamente o que tantas ve-<br />
zes se disse <strong>de</strong>la: que foi quem<br />
pela primeira vez ofereceu a<br />
Lima uma exposição <strong>de</strong> arte popular<br />
peruana (1939), pela primeira<br />
vez alcançou a façanha <strong>de</strong><br />
expor a arte tradicional peruana<br />
nas capitais europeias (1959),<br />
tudo isto sem nunca ter tido fortuna<br />
pessoal; mas, ainda assim,<br />
esta não foi a melhor obra <strong>de</strong> Alicia<br />
Bustamante. Igualmente importante<br />
foi que ela se convertera<br />
numa ponte viva entre os dois<br />
mundos <strong>cultura</strong>is, ainda que<br />
hoje muito separados, mas que o<br />
estavam muito mais quando ela<br />
partiu para os campos para recompilar<br />
a arte indígena. Consumida<br />
pelas “luzes” e pelo amor<br />
à obra <strong>de</strong> todos os artífices índios<br />
e mestiços <strong>de</strong> quem ela se aproximou,<br />
pô<strong>de</strong>, por sua vez, mostrar<br />
a esses artífices a mudança<br />
que se estava a operar no outro<br />
universo social do país. Ela, Alicia,<br />
tinha o aspecto, o rosto típico<br />
dos menosprezadores que<br />
formavam a casta dos dominadores,<br />
mas Alicia era diferente.<br />
Apesar <strong>de</strong> não falar quechúa, ela<br />
conquistava num instante… a<br />
confiança e o afecto dos oleiros,<br />
tecelães, fazedores <strong>de</strong> imagens…<br />
convencia que nem todos os<br />
“mistis”, nem todos os “brancos”<br />
eram surdos e como que<br />
feitos <strong>de</strong> outros materiais misteriosamente<br />
impenetráveis e<br />
odiosos… Sem dúvida, a difusão<br />
da arte popular e o que este feito<br />
representa para a <strong>cultura</strong> peruana<br />
<strong>de</strong>vem muito a Alicia Bustamante.<br />
Ninguém duvida que o<br />
país lhe <strong>de</strong>va a ela mais do que a<br />
ninguém.»<br />
José Maria suicidou-se finalmente<br />
a 2 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong><br />
1969. No seu leito <strong>de</strong> morte,<br />
mandou chamar Celia, tendo a<br />
seu lado o seu amigo Carlos<br />
Cueto. E havia muitas pessoas, os<br />
meus tios tinham sido do Partido
Comunista, e percebeu-se nestes<br />
dois grupos o divisionismo na<br />
esquerda <strong>de</strong> então. Uns <strong>de</strong>monstravam<br />
simpatia e apoio a Celia,<br />
outros a Sibila. O seu enterro foi<br />
um acto político, não havia dinheiro<br />
suficiente para o seu túmulo<br />
e Alicia Maguiña fez uma<br />
colecta. Não teve filhos. Celia sobreviveu<br />
até 1973, morrendo<br />
tragicamente a 25 <strong>de</strong> Agosto<br />
<strong>de</strong>sse ano, a caminho <strong>de</strong> Supe.<br />
Num artigo do El Comercio, assinado<br />
com as iniciais H.B.G., no<br />
dia 14 <strong>de</strong> Setembro do mesmo<br />
ano, <strong>de</strong>la se diz: «O país per<strong>de</strong>u<br />
uma mulher excepcional que <strong>de</strong>dicou<br />
a sua vida às mais altas manifestações<br />
do espírito.Afirmou-<br />
-se na sua condição <strong>de</strong> incansável<br />
promotora da arte popular…<br />
1 Doada em vida <strong>de</strong> ambas as irmãs à Universida<strong>de</strong><br />
Nacional Mayor <strong>de</strong> São Marcos <strong>de</strong> Lima e ao povo <strong>de</strong><br />
Cuba. Celia viajou para Cuba com esse fim, em 1971.<br />
Confundiram-na comigo no Aeroporto <strong>de</strong> Barajas e<br />
<strong>de</strong>spediram-me do meu trabalho no Consulado dos EUA<br />
em Barcelona. Quando se <strong>de</strong>dicava a entregar a outra<br />
parte da colecção à UNMSM, morreu num aci<strong>de</strong>nte,<br />
a 25 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1973, no povoado <strong>de</strong> Barranca,<br />
o que só se <strong>de</strong>scobriu várias semanas <strong>de</strong>pois.<br />
O seu trabalho ficou por concluir.<br />
2 A escritora porto-riquenha Concha Melén<strong>de</strong>z disse,<br />
num reconto da sua viagem ao Peru: «A Peña Pancho<br />
Fierro é um local <strong>de</strong> reunião das gentes das artes e das<br />
até ao último instante da sua vida,<br />
Celia, como antes a sua irmã Alicia,<br />
esteve <strong>de</strong>dicada à recolha,<br />
cuidado e incremento da «Colecção<br />
<strong>de</strong> Arte Popular Peruana».<br />
Acabaram assim, separados e<br />
vítimas <strong>de</strong> um meio tão inclemente,<br />
como é o Peru, para com<br />
os seus criadores. José María e<br />
Celia não <strong>de</strong>ixaram filhos. Alicia<br />
não se casou, irritou, sim, alguns<br />
convencionalismos limenhos.Deixaram<br />
muitos livros, alguns quadros,<br />
a sua magnífica colecção <strong>de</strong><br />
arte popular. Lamentavelmente,<br />
foi tudo <strong>de</strong>sagregado pela própria<br />
família. Contudo, tinha eu o<br />
propósito <strong>de</strong> reunir os seus documentos<br />
e criar na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Texas, em Austin, um<br />
Centro <strong>de</strong> Documentação e Ar-<br />
letras <strong>de</strong> Lima (…) Dirigem a Peña duas raparigas<br />
jovens, inteligentes, limenhas na graça e no tipo:<br />
Alicia e Celia Bustamante. Vendo-as rir, conversar (…)<br />
recordava as observações <strong>de</strong> Radiguez<br />
(sobre as limenhas), José Sabogal pintou o retrato<br />
das duas irmãs em grupo. Apresentaram-me a Xavier<br />
Abril, Emílio Adolfo Westphalen, Enrique Peña<br />
Barrenechea, José Hernán<strong>de</strong>z, Alberto Tauro,<br />
Orestes Plath, Martín Adan, César Moro,<br />
José María Arguedas, o contador <strong>de</strong> «Agua…»,<br />
Entrada al Peru, Havana, 1941, pp. 48-50.<br />
3 Gorro com orelhas, <strong>de</strong> lã, com <strong>de</strong>senhos multicolores,<br />
usado nas regiões andinas para proteger do frio. (N. da T.)<br />
quivo José María Arguedas, que<br />
não se pô<strong>de</strong> concretizar. José Miguel<br />
Oviedo, que estava então <strong>de</strong><br />
visita a Austin, disse-me sem querer:<br />
«Esquece… é uma tarefa impossível…<br />
sim, parece que nunca<br />
existiram…»<br />
Mas, à medida que os anos<br />
passam, é como se os ouvisse<br />
cantar cada vez com mais força,<br />
com o Mestre Oblitas <strong>de</strong> Os Rios<br />
Profundos:<br />
Aún estoy vivo<br />
El hálcon te hablará <strong>de</strong> mí,<br />
Las estrellas <strong>de</strong> los cielos te hablarán<br />
[<strong>de</strong> mí,<br />
He <strong>de</strong> regresar todavía,<br />
Todavía he <strong>de</strong> volver.<br />
4 Flauta aborígene construída tradicionalmente<br />
com cânhamo, osso ou barro. Me<strong>de</strong> à volta <strong>de</strong> 50 cm<br />
<strong>de</strong> comprimento. (N. da T.)<br />
5 Capa indígena, vistosa, com a qual as mulheres cobrem<br />
os ombros e as costas. (N. da T.)<br />
6 Instrumento musical <strong>de</strong> corda, usado especialmente<br />
na zona andina, semelhante a uma pequena guitarra<br />
<strong>de</strong> cinco cordas duplas e cuja caixa <strong>de</strong> ressonância<br />
é feita com carapaça <strong>de</strong> tatu. (N. da T.)<br />
7 Carta a Gonzalo Losada, <strong>Revista</strong> Oiga, Lima, N.º 353,<br />
1969, pp. 17-18.<br />
8 Carta a Sibila Arredondo, <strong>Revista</strong> Visión <strong>de</strong>l Perú, Lima,<br />
1970. N.º 5, pp. 28-29.
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 58<br />
59<br />
A INVENÇÃO DA AMÉRICA SURGIU<br />
COMO UMA OPORTUNIDADE DE RECOMEÇO<br />
PARA A EUROPA. NELA SE PROJECTARAM<br />
AS UTOPIAS DE HUMANISTAS E<br />
DESCOBRIDORES EUROPEUS NO SÉCULO XVI<br />
E OS SONHOS LIBERTADORES DOS<br />
REVOLUCIONÁRIOS QUE BEBERAM NO<br />
VELHO CONTINENTE O NÉCTAR DE IDEAIS<br />
QUE MOVERAM O MUNDO MAS NÃO<br />
ELIMINARAM AS FRONTEIRAS SOCIAIS.<br />
A IBERO-AMÉRICA INSISTE, PASSADOS 200<br />
ANOS SOBRE A INDEPENDÊNCIA,<br />
NO RETORNO DA UTOPIA.
Organização e tradução <strong>de</strong> Maria da Graça M. Ventura<br />
URGE UMA NOVA ORDEM PÓS-LIBERAL QUE<br />
CONFIRA AOS AVANÇOS DEMOCRÁTICOS<br />
NO CONTINENTE MAIS DESIGUAL<br />
DO PLANETA O CONTEÚDO SOCIAL<br />
QUE ERRADIQUE A POBREZA E RESTITUA<br />
A CONFIANÇA NO PODER DEMOCRÁTICO.<br />
ROBERTO AMPUERO, ESCRITOR CHILENO,<br />
E GERARDO CAETANO, CIENTISTA POLÍTICO<br />
URUGUAIO, UNIDOS NA SUA FÉ INABALÁVEL<br />
NO TRIUNFO DA DEMOCRACIA POLÍTICA<br />
E SOCIAL, ADVERTEM-NOS PARA PERIGOS<br />
DO POPULISMO, DO AUTORITARISMO<br />
E DO NEOLIBERALISMO.
O obstinado retorno<br />
da utopia<br />
Roberto Ampuero<br />
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 60 61<br />
O tormento (o castigo do prisioneiro), (<strong>de</strong>talhe). David Alfaro Siqueiros
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 62<br />
63<br />
Durante estes meses<br />
em que no hemisfério<br />
sul sofremos o<br />
Inverno e a Europa<br />
<strong>de</strong>sfruta do Verão, tive<br />
a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar<br />
nos Estados Unidos<br />
em alguns fóruns<br />
sobre literatura, política<br />
e <strong>cultura</strong>, nos quais<br />
se <strong>de</strong>bateu com paixão,<br />
e <strong>de</strong> que modo, o tema<br />
da utopia na América<br />
Latina. Até há pouco<br />
tempo, a palavra utopia<br />
tinha caído em <strong>de</strong>scrédito,<br />
assemelhava-se à<br />
irresponsabilida<strong>de</strong>, a<br />
uma espécie <strong>de</strong> infantilismo<br />
progressista, e<br />
conceitos como «pragmatismo»,<br />
«realismo»,<br />
«coisismo», haviam perdido<br />
o brilho, e os políticos<br />
renovados, antigos<br />
militantes <strong>de</strong> esquerda, ontem com<br />
botas, boina e barba, hoje com pós-graduação<br />
numa universida<strong>de</strong> dos Estados Unidos,<br />
impecável traje Giorgio Armani e uma barbita<br />
incipiente, com mais <strong>de</strong> cinco dias, os que ao<br />
<strong>de</strong>ixarem o po<strong>de</strong>r passam <strong>de</strong> imediato a abrir<br />
escritórios <strong>de</strong> consultoria e «lobbismo», ou a<br />
ocupar uma cómoda poltrona <strong>de</strong> couro nas<br />
direcções das empresas que há décadas se<br />
haviam proposto expropriar. O lema parecia<br />
ser: If you cannot beat them,join them! Apesar <strong>de</strong>stas<br />
mudanças e do po<strong>de</strong>rio militar dos Estados<br />
Unidos, li<strong>de</strong>rados por um presi<strong>de</strong>nte que crê<br />
possuir uma missão messiânica no mundo, a<br />
pergunta persiste: existe ainda a utopia como<br />
força inspiradora <strong>de</strong> mudanças ou ressaibo<br />
do passado? Ter-se-ão efectivamente os intelectuais<br />
latino-americanos <strong>de</strong>spedido da utopia,<br />
como um horizonte i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um mundo<br />
mais justo, ou preocupam-se hoje apenas<br />
com estabelecer priorida<strong>de</strong>s novas, mais<br />
orientadas para a sua incorporação no mercado<br />
global, para a circulação <strong>de</strong> traduções e<br />
consolidação da sua carreira? Estas questões<br />
não são menores num continente que nasceu<br />
pela mão da utopia e que <strong>de</strong>ve gran<strong>de</strong><br />
parte dos seus dramas e momentos épicos<br />
Ter-se-ão efectivamente<br />
os intelectuais<br />
latino-americanos<br />
<strong>de</strong>spedido da utopia,<br />
como um horizonte i<strong>de</strong>al<br />
<strong>de</strong> um mundo mais justo,<br />
ou preocupam-se hoje<br />
apenas com estabelecer<br />
priorida<strong>de</strong>s novas,<br />
mais orientadas<br />
para a sua incorporação<br />
no mercado global,<br />
para a circulação<br />
<strong>de</strong> traduções e consolidação<br />
da sua carreira?<br />
precisamente à sua<br />
obsessão utópica.<br />
Ao ser «<strong>de</strong>scoberto»,<br />
o Novo Mundo<br />
emerge como possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um novo<br />
começo para a Europa.<br />
A Europa encontra-se<br />
numa etapa <strong>de</strong> saturação,<br />
não <strong>de</strong>scola ainda<br />
completamente para o<br />
Renascimento, e a religião<br />
continua a reprimir<br />
a expressão <strong>de</strong> um<br />
pensamento livre dos<br />
grilhões das escrituras,<br />
esse pensamento que<br />
permitirá o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das ciências e<br />
as posições in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
face à teologia.<br />
A América surge como<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
novo começo. Raramente,<br />
talvez nunca, a<br />
humanida<strong>de</strong> se encontrou em semelhante<br />
circunstância: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> começar <strong>de</strong><br />
novo, como quando o indivíduo, após uma<br />
crise, planeia iniciar uma nova existência. Por<br />
isso Colombo, que era um pragmático e <strong>de</strong><br />
certo modo um oportunista, acredita que o<br />
Paraíso está na <strong>de</strong>sembocadura do Orinoco;<br />
por isso Tomás Moro, procurando dotar a sua<br />
visão <strong>de</strong> realismo, instala a sua socieda<strong>de</strong> utópica<br />
na América; e por isso Ponce <strong>de</strong> León<br />
procura aqui, e com serieda<strong>de</strong> e convicção<br />
plenas, a fonte da eterna juventu<strong>de</strong>. E por isso<br />
Fernando Cortez parte para estas terras em<br />
busca das amazonas, que nunca foram<br />
encontradas, mas que legaram o seu nome à<br />
selva americana, hoje em perigo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sflorestação;<br />
e por isso tantos <strong>de</strong>mandaram o El<br />
Dorado, a Cida<strong>de</strong> dos Césares, dos grifos, dos<br />
tritões, dos dragões, dos anões, das sereias e<br />
dos gigantes. O que na Europa podia ficar<br />
reduzido a folclore, a lenda e relato para ouvir<br />
à volta <strong>de</strong> uma fogueira, na América movia<br />
exércitos, <strong>de</strong>struía vidas, oprimia povos inteiros,<br />
criava fortunas.<br />
Mas a utopia não acaba ali nas nossas terras<br />
latino-americanas. A luta pela in<strong>de</strong>pendência<br />
e a consolidação das nossas nações é
inspirada, mais tar<strong>de</strong>,<br />
pelo sonho <strong>de</strong> uma<br />
América Latina melhor,<br />
por parte dos libertadores,<br />
sonho partilhado<br />
por Miranda, Bolívar,<br />
San Martín, O’Higgins,<br />
Artigas, Hostos, Martí<br />
e tantos outros; e esses<br />
sonhos, reformulados<br />
mas nunca essencialmentemodificados,impulsionaram<br />
também<br />
revoluções sociais ao<br />
longo do século XX.<br />
Ali estão os nomes<br />
<strong>de</strong> Allen<strong>de</strong>, Arbenz,<br />
Castro, J.J. Torres, Che<br />
Guevara. E tudo indica<br />
que, com o fim dos<br />
socialismos reais (China<br />
e Cuba são um caso à<br />
parte), a utopia continua<br />
a palpitar obstinadamente<br />
na região<br />
como força inspiradora, que se nutre <strong>de</strong> uma<br />
tradição <strong>de</strong> longa data, já presente nos relatos<br />
dos povos aborígenes indo-americanos, que<br />
animam os intelectuais progressistas, e que<br />
mantém vigente a iniquida<strong>de</strong> social que<br />
caracteriza a América Latina como a região<br />
mais <strong>de</strong>sigual do mundo e que os meios globalizados<br />
tornam mais evi<strong>de</strong>nte e con<strong>de</strong>nável.<br />
Na América Latina, não é a persistência <strong>de</strong><br />
uma <strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ologia que mantém viva<br />
a utopia, mas sim as condições sociais realmente<br />
existentes, e por isso a utopia não<br />
envelhece, não <strong>de</strong>clina e continua a vibrar<br />
como um <strong>de</strong>sejo em busca <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r, um lí<strong>de</strong>r<br />
que po<strong>de</strong> ser tanto um revolucionário bem<br />
intencionado como um <strong>de</strong>magogo da pior<br />
estirpe. O que mantém vigente a utopia é a<br />
agenda social pen<strong>de</strong>nte que as elites latino-<br />
-americanas mantêm com os seus povos<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o surgimento das pátrias in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,<br />
que arrastavam estas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>siguais<br />
já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Colónia. A emigração para os Estados<br />
Unidos e para a Europa é uma forma <strong>de</strong><br />
fugir <strong>de</strong>ssas condições asfixiantes, nunca aliviadas<br />
pelo êxito da utopia, até a um Norte<br />
cujas fronteiras, por momentos, se tornaram<br />
permeáveis. Neste contexto, cabe-nos per-<br />
Chávez disse<br />
sentir-se Bolívar;<br />
Lula chega ao po<strong>de</strong>r<br />
expressando<br />
as reivindicações históricas<br />
das classes populares,<br />
e Morales, à semelhança<br />
do lí<strong>de</strong>r opositor<br />
Ollanta Humala, no Peru,<br />
é porta-voz dos indígenas<br />
num país on<strong>de</strong> estes<br />
constituem a maioria,<br />
mas nunca governaram.<br />
guntar qual seria a<br />
situação <strong>de</strong> países<br />
como o México ou da<br />
América Central se<br />
não contassem com<br />
milhões <strong>de</strong> cidadãos<br />
seus no coração do<br />
império, don<strong>de</strong> anualmente<br />
enviam remessas<br />
aos seus familiares,<br />
para o outro lado do<br />
rio Bravo, mais <strong>de</strong> 40<br />
mil milhões <strong>de</strong> dólares.<br />
Para o México, as Honduras<br />
ou a Guatemala,<br />
as remessas constituem<br />
uma das principais,<br />
senão a principal, fonte<br />
<strong>de</strong> receitas em divisas,<br />
o que traduz não só as<br />
condições que oferecem<br />
estes países à sua<br />
população, como também<br />
o papel <strong>de</strong>scongestionante<br />
e estimulante<br />
para a economia nacional que a emigração<br />
para o Norte representa para essas nações.<br />
É evi<strong>de</strong>nte que as expectativas populares<br />
<strong>de</strong>spertadas, nos seus países, por Chávez, Lula<br />
ou Evo Morales resultam não apenas do facto<br />
<strong>de</strong> que estes lí<strong>de</strong>res recolhem não só aspirações<br />
e frustrações <strong>de</strong> vastos sectores nacionais<br />
marginalizados, como também utilizam uma<br />
versão reciclada das utopias da América Latina.<br />
Chávez disse sentir-se Bolívar; Lula chega<br />
ao po<strong>de</strong>r expressando as reivindicações históricas<br />
das classes populares, e Morales, à semelhança<br />
do lí<strong>de</strong>r opositor Ollanta Humala, no<br />
Peru, é porta-voz dos indígenas num país<br />
on<strong>de</strong> estes constituem a maioria, mas nunca<br />
governaram. É verda<strong>de</strong> que estes lí<strong>de</strong>res têm<br />
agendas diferentes e que, sob o manto da tradição<br />
utópica, acabam por aplicar políticas<br />
pragmáticas, mas, quando recorrem à utopia,<br />
fazem-no como Fi<strong>de</strong>l Castro que, usando a<br />
imagem <strong>de</strong> Martí e <strong>de</strong> Che, ten<strong>de</strong> a impor<br />
uma versão da utopia revolucionária na qual<br />
esta se torna, supostamente, realida<strong>de</strong> na sua<br />
ilha. Por outro lado, o êxito <strong>de</strong> Michelle<br />
Bachelet no Chile também se <strong>de</strong>ve à persistência<br />
<strong>de</strong> uma aspiração utópica nacional que<br />
ela encarnou melhor que o centro-direita e
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 64<br />
65<br />
que surge da percepção<br />
maioritária <strong>de</strong> que<br />
o país está no bom<br />
caminho, embora haja<br />
problemas sociais <strong>de</strong>licados<br />
que exigem solução<br />
urgente, como a<br />
educação, a saú<strong>de</strong> e o<br />
trabalho digno e que,<br />
no quadro da prosperida<strong>de</strong><br />
económica que<br />
o Chile vive, adquirem<br />
um carácter realmente<br />
escandaloso que <strong>de</strong>veria<br />
cobrir <strong>de</strong> vergonha<br />
uma coligação <strong>de</strong> centro-esquerda<br />
que governa<br />
o Chile <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
1990 e que ainda não<br />
conseguiu tirar o país<br />
<strong>de</strong> um ranking inaceitável:<br />
o <strong>de</strong> país com<br />
a maior <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> rendimentos do<br />
continente.<br />
Suspeito que ao «<strong>de</strong>saparecimento da<br />
utopia», após o fim do comunismo, na qual<br />
também acreditei, aconteceu o mesmo que<br />
ao conceito <strong>de</strong> «fim da história» <strong>de</strong> Fukuyama.<br />
No meio da euforia que se apo<strong>de</strong>rava<br />
dos <strong>de</strong>tractores do socialismo real, Fukuyama<br />
postulou que a actual socieda<strong>de</strong> industrial<br />
oci<strong>de</strong>ntal era uma espécie <strong>de</strong> estado final<br />
do <strong>de</strong>senvolvimento humano. Curiosamente,<br />
como anteriormente Hegel, Fukuyama<br />
não previu a complexida<strong>de</strong> da História nem<br />
a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> metamorfose. A surpreen<strong>de</strong>nte<br />
ebulição que reconquista o continente<br />
e inquieta Washington é prova <strong>de</strong> que<br />
a utopia continua ali, tenaz e obstinada como<br />
sempre, mas metamorfoseada. Já não é uma<br />
utopia concreta como a que pintaram Moro,<br />
Marx, Lenine, Mao ou Castro, mas antes<br />
esfumada e <strong>de</strong> contornos imprecisos, como<br />
os quadros <strong>de</strong> Turner. Paradoxalmente, a<br />
força da utopia renovada emerge da sua<br />
ambiguida<strong>de</strong>, do seu nexo solto com princípios<br />
gerais que exigem equida<strong>de</strong> social, acesso<br />
à educação e à saú<strong>de</strong>, aprofundamento da<br />
<strong>de</strong>mocracia, <strong>de</strong>senvolvimento sustentável e<br />
oposição a um mundo unipolar. A sua convocatória<br />
baseia-se em não ser um corpo<br />
Na América Latina, não é<br />
a persistência <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ologia<br />
que mantém viva a utopia,<br />
mas sim as condições sociais<br />
realmente existentes, e por isso<br />
a utopia não envelhece,<br />
não <strong>de</strong>clina e continua<br />
vibrando como um <strong>de</strong>sejo<br />
em busca <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r,<br />
um lí<strong>de</strong>r que po<strong>de</strong> ser<br />
tanto um revolucionário<br />
bem intencionado<br />
como um <strong>de</strong>magogo<br />
da pior estirpe.<br />
orgânico, coerente e<br />
monolítico, mas antes<br />
vago, contraditório, diverso<br />
e <strong>de</strong>scentrado.<br />
Em sentido estrito,<br />
mais que uma utopia é<br />
um horizonte utópico,<br />
um ponto inspirador<br />
ao qual ninguém po<strong>de</strong><br />
ace<strong>de</strong>r e que, consequentemente,ninguém<br />
po<strong>de</strong> monopolizar.<br />
É, ao mesmo<br />
tempo, uma utopia em<br />
certo sentido, que corre<br />
o risco <strong>de</strong> ser sequestrada<br />
por <strong>de</strong>magogos<br />
ou oportunistas,<br />
por políticos que po<strong>de</strong>m<br />
colocar-se na li<strong>de</strong>rança<br />
<strong>de</strong> causas massivas<br />
sem terem uma<br />
agenda viável e cujo<br />
objectivo real po<strong>de</strong><br />
ser o <strong>de</strong> mero apetite<br />
pelo po<strong>de</strong>r e pelas vantagens que este<br />
comporta.<br />
Esta utopia coloca uma interrogante<br />
questão-chave ao intelectual latino-americano:<br />
qual a sua alternativa se preten<strong>de</strong> comunicar<br />
discursos com conteúdo à população? Procurar<br />
no Estado bolsas, prémios e cargos no<br />
Governo ou embaixadas, convertendo-se<br />
assim no escritor Paniaguado que <strong>de</strong>nuncia<br />
Cervantes como um dos que vive do pão e da<br />
água que lhe dão os patronos? Ou emigrar<br />
para os Estados Unidos ou para a Europa, para<br />
tentar a partir dali, fundamentalmente a partir<br />
da aca<strong>de</strong>mia, uma inserção no circuito internacional<br />
<strong>de</strong> livros como autor globalizado<br />
com voz e prestígio? Ou está con<strong>de</strong>nado a<br />
<strong>de</strong>saparecer como voz crítica, eclipsado pelas<br />
entrevistas aos protagonistas do teatro, dos<br />
reality shows ou das estrelas <strong>de</strong> cinema, todos<br />
eles convertidos hoje nos filósofos mo<strong>de</strong>rnos?<br />
No primeiro caso, corre o risco <strong>de</strong> se<br />
converter em voz provinciana <strong>de</strong>ntro do<br />
gran<strong>de</strong> discurso global, em alguém que, pelo<br />
seu exotismo, talvez possa ser incorporado no<br />
sistema. No segundo caso, enfrenta o perigo<br />
<strong>de</strong> ser arrumado na estante da livraria como<br />
escritor «hispano» ou «latino», como
apêndice do main stream literário, periferia<br />
da Weltliteratur, mais ainda se o seu discurso<br />
ten<strong>de</strong>r a circular fundamentalmente no<br />
âmbito académico, cuja, por vezes, in<strong>de</strong>cifrável<br />
linguagem teórica per<strong>de</strong> cada vez<br />
mais contacto com o mundo real e recepção<br />
entre leitores. Suspeito que uma das<br />
escassas formas <strong>de</strong> que hoje dispõe o intelectual<br />
latino-americano para alcançar uma<br />
certa significação – quer viva sob a protecção<br />
do Estado ou da aca<strong>de</strong>mia – consiste<br />
em regressar à tradição do intelectual continental,<br />
à que foi capaz <strong>de</strong> se libertar da<br />
preocupação pelo texto, pelas traduções e<br />
pelos contratos dos seus romances e procurou<br />
o compromisso com a realida<strong>de</strong> política.Assim<br />
como não existem nem o «fim da<br />
história» nem o «<strong>de</strong>saparecimento da uto-<br />
pia», tão-pouco existe, a meu ver, a morte<br />
forçada do compromisso do intelectual.<br />
Po<strong>de</strong> soar a retro, mas, na realida<strong>de</strong>, o que<br />
na América Latina se quebrou foi o compromisso<br />
sartreano com um projecto utópico<br />
concreto, e não o intelectual que está<br />
atento à realida<strong>de</strong> política e à utopia <strong>de</strong><br />
contornos agora esfumados.A utopia como<br />
inspiração para conseguir um mundo<br />
melhor e o compromisso do intelectual<br />
com causas nobres não estão <strong>de</strong>terminados,<br />
na América Latina, por um voluntarismo<br />
i<strong>de</strong>ológico nostálgico, mas pela porfiada<br />
realida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> um continente que,<br />
celebrando 200 anos <strong>de</strong> vida in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
exibe os maiores índices <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />
e injustiça social do Planeta.<br />
Suspeito que uma das escassas formas<br />
<strong>de</strong> que hoje dispõe o intelectual latino-americano<br />
para alcançar uma certa significação – quer viva sob a protecção<br />
do Estado ou da aca<strong>de</strong>mia – consiste em regressar<br />
à tradição do intelectual continental,<br />
à que foi capaz <strong>de</strong> se libertar da preocupação pelo texto,<br />
pelas traduções e pelos contratos dos seus romances<br />
e procurou o compromisso com a realida<strong>de</strong> política.
Eixos e paradoxos<br />
das mudanças <strong>de</strong> rumo<br />
nas <strong>de</strong>mocracias e governos<br />
da América do Sul<br />
Gerardo Caetano<br />
A greve (<strong>de</strong>talhe). Antonio Ruiz «El Corcito»<br />
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 66 67
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 68<br />
69<br />
INTRODUÇÃO<br />
As discussões sobre o conceito <strong>de</strong><br />
cidadania e <strong>de</strong> representação política ocupam<br />
um lugar central na agenda política e<br />
académica internacional. Na América Latina,<br />
o recolocar <strong>de</strong>stas problemáticas retomou-se<br />
no seu início com os efeitos ainda<br />
persistentes dos processos <strong>de</strong> transição<br />
para a <strong>de</strong>mocracia e dos processos <strong>de</strong><br />
«reacção antipolítica» posteriores ao fracasso<br />
estrondoso <strong>de</strong> vários governos que<br />
aplicaram <strong>de</strong> uma maneira ortodoxa as<br />
receitas e os postulados do chamado neoliberalismo,<br />
em voga no continente durante<br />
gran<strong>de</strong> parte dos anos 90. No entanto, não<br />
há dúvida <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há uns anos, o fenómeno<br />
que mais <strong>de</strong>cisivamente impulsiona<br />
este <strong>de</strong>bate se relaciona com o advento, em<br />
vários países do subcontinente, <strong>de</strong> governos<br />
<strong>de</strong> esquerda ou <strong>de</strong> sentido mais ou<br />
menos progressista (Argentina, Bolívia,<br />
Brasil, Chile, Uruguai, Venezuela) que,<br />
apesar das suas diferenças, em alguns casos<br />
notórias, foram eleitos com base na esperança<br />
<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s que, ao fazerem essas<br />
opções, apostavam claramente na procura<br />
<strong>de</strong> mudanças profundas a diferentes<br />
níveis.<br />
A explosão <strong>de</strong> expectativas que acompanhou,<br />
e ainda acompanha, a sucessão<br />
<strong>de</strong>stes processos, estimulada pela coincidência<br />
<strong>de</strong> novas eleições neste mesmo ano<br />
<strong>de</strong> 2006 noutros países da região, o que<br />
po<strong>de</strong>ria aumentar e consolidar esta tendência<br />
para a mudança começou, no entanto, a<br />
mitigar os seus signos, entre sinais <strong>de</strong><br />
impaciência ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencanto perante o<br />
<strong>de</strong>sempenho dos novos governos. A expectativa<br />
<strong>de</strong> mudança e as realida<strong>de</strong>s críticas<br />
que as socieda<strong>de</strong>s latino-americanas apresentam<br />
tornam absolutamente lógica a<br />
impaciência <strong>de</strong> pessoas cujo objectivo central<br />
po<strong>de</strong>ria muito bem sintetizar-se no<br />
objectivo <strong>de</strong> alcançar, em alguns casos pela<br />
primeira vez, o «direito a ter direitos».<br />
Em suma, tratar-se-ia <strong>de</strong>, efectivamente,<br />
converter pessoas em cidadãos genuínos.<br />
Na nossa opinião, neste ponto resi<strong>de</strong> um<br />
dos eixos fundamentais da encruzilhada<br />
institucional em sentido radical que atravessa<br />
o subcontinente.<br />
O CENÁRIO GLOBAL<br />
DA POLÍTICA SUL-AMERICANA<br />
CONTEMPORÂNEA<br />
Ao comparar o cenário latino-americano<br />
das décadas <strong>de</strong> quarenta ou cinquenta<br />
do século passado – quando apenas dois ou<br />
três países podiam ser qualificados como<br />
<strong>de</strong>mocráticos – com o presente, é impossível<br />
não aceitar o avanço das instituições,<br />
dos valores e dos hábitos da <strong>de</strong>mocracia.<br />
Neste sentido, alguns acontecimentos históricos<br />
específicos e processos políticos<br />
globais ofereceram um último impulso ao<br />
avanço <strong>de</strong>mocrático no continente. É possível<br />
verificar na região uma tendência para a<br />
consolidação, por um lado, dos instrumentos<br />
vigentes em matéria <strong>de</strong> integração política<br />
como alternativa perante os avassalamentos<br />
do formato unipolar e hegemónico<br />
da globalização impulsionada pelos EUA e,<br />
por outro, para a construção <strong>de</strong> novos<br />
governos orientados para transformar (no<br />
quadro <strong>de</strong> fortes restrições internas e externas)<br />
as tendências ultraliberais provenientes<br />
do chamado «Consenso <strong>de</strong> Washington»<br />
em orientações programáticas <strong>de</strong> sentido<br />
progressista, em termos gerais.<br />
Para lá <strong>de</strong> diferenças ou matizes nas<br />
políticas aplicadas, esta é a perspectiva que<br />
se abre com a ascensão <strong>de</strong> governos como<br />
os <strong>de</strong> Lula no Brasil, Kirchner na Argentina,<br />
a consolidação da experiência da Concertação<br />
Democrática no Chile <strong>de</strong> Lago e agora<br />
<strong>de</strong> Bachelet, as oportunida<strong>de</strong>s abertas no<br />
Uruguai através da vitória, na primeira<br />
volta, da esquerda unida na Frente Ampla<br />
com Tabaré Vázquez, o triunfo espectacular,<br />
também na primeira volta, do MAS sob a<br />
li<strong>de</strong>rança do dirigente indígena Evo Morales<br />
num autêntico contexto revolucionário<br />
na Bolívia. Inclusive, apesar da sua locução,<br />
por vezes <strong>de</strong> perfil autoritário e populista, a<br />
própria experiência do Governo <strong>de</strong> Chávez,<br />
na Venezuela, em particular no que<br />
concerne à sua rejeição do intervencionismo<br />
norte-americano e à sua militância<br />
integracionista bolivariana, mostram um<br />
continente que parece mudar política e<br />
i<strong>de</strong>ologicamente, sempre <strong>de</strong>ntro das margens<br />
estreitas <strong>de</strong> um contexto internacional<br />
não <strong>de</strong>masiado favorável. Em algumas <strong>de</strong>stas<br />
experiências, não em todas, e isto con-
figura um profundo <strong>de</strong>safio para as concepções<br />
progressistas na região, o advento<br />
<strong>de</strong>stes governos <strong>de</strong> esquerda ou afins<br />
incorporou, como um dos eixos do seu<br />
trabalho, o aprofundamento <strong>de</strong>mocrático:<br />
o Chile, a Bolívia, o Brasil e o Uruguai são<br />
exemplos claros e <strong>de</strong>finidos nessa situação;<br />
na Argentina <strong>de</strong> Kirchner, persistem dúvidas<br />
a respeito <strong>de</strong>ste ponto, enquanto na<br />
Venezuela <strong>de</strong> Chávez este constitui um dos<br />
calcanhares <strong>de</strong> Aquiles ou, pelo menos, um<br />
dos pontos controversos <strong>de</strong> toda a experiência<br />
chavista, posição assinalada, inclusive,<br />
por sectores e grupos <strong>de</strong> esquerda<br />
<strong>de</strong>sse país.<br />
Em princípio, então, para lá dos matizes,<br />
o balanço que po<strong>de</strong>mos efectuar sobre<br />
a evolução política da região, nos últimos<br />
anos, é positivo e alentador: em primeiro<br />
lugar, pelo retorno à <strong>de</strong>mocracia após o<br />
pa<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> extensos regimes ditatoriais<br />
em países <strong>de</strong> larga tradição <strong>de</strong>mocrática<br />
como o Chile e o Uruguai; em segundo<br />
lugar, pelos avanços da vida <strong>de</strong>mocrática<br />
em sistemas políticos <strong>de</strong> indiscutível gravitação<br />
continental como a Argentina e o<br />
Brasil, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a superação <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>s<br />
profundas e com o sinal sempre alentador<br />
<strong>de</strong> rotações não traumáticas no Governo,<br />
no caso do segundo; em terceiro lugar, pela<br />
incorporação no círculo <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong><br />
outras socieda<strong>de</strong>s que ao longo do século<br />
XX viveram sempre, ou quase sempre, sob<br />
regimes autoritários, como é o caso mexicano;<br />
finalmente, pela revitalização, nuns<br />
casos, ou a criação, noutros, <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong><br />
integração política regional ou sub-regional,<br />
com uma procura acrescida para superar<br />
os seus rasgos <strong>de</strong> «défice <strong>de</strong>mocrático».<br />
Sem <strong>de</strong>sconhecer ou minimizar este<br />
auspicioso avanço da <strong>de</strong>mocracia representativa<br />
no continente, também nos últimos<br />
anos pu<strong>de</strong>ram ser observados alguns outros<br />
sinais no panorama político regional. As<br />
profundas crises políticas e institucionais<br />
que alguns países da região pa<strong>de</strong>ceram nos<br />
últimos anos dão conta <strong>de</strong> muitos fenómenos<br />
já inocultáveis. Observemos alguns<br />
<strong>de</strong>les:<br />
1) Os formatos <strong>de</strong>mocráticos e os seus<br />
actores tradicionais <strong>de</strong>terioraram-se <strong>de</strong><br />
forma profunda e hoje são claramente<br />
As posturas<br />
anti-imperialistas e um<br />
antinorte-americanismo<br />
profundo (entendido não<br />
como uma ruptura<br />
face ao povo <strong>de</strong>ssa nação,<br />
mas como uma rejeição<br />
profunda das práticas<br />
contrárias ao Direito<br />
e à Comunida<strong>de</strong><br />
internacionais, adoptadas<br />
pela administração<br />
ultradireitista<br />
do presi<strong>de</strong>nte Bush),<br />
expan<strong>de</strong>m-se, como há<br />
décadas não ocorria<br />
no continente,<br />
impulsionando<br />
posturas nacionalistas<br />
e <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> soberanias<br />
agredidas.
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 70<br />
71<br />
insuficientes para consolidar verda<strong>de</strong>iras<br />
<strong>de</strong>mocracias no continente; emergem<br />
novos actores sociais e políticos <strong>de</strong> feição<br />
contestatária face a estas «<strong>de</strong>mocracias <strong>de</strong><br />
baixa <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>», através <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s e<br />
li<strong>de</strong>ranças renovadoras que vêm dar voz<br />
aos «invisíveis» ancestrais dos regimes<br />
anteriores (indígenas, pobres, negros,<br />
mulheres, sectores marginalizados em<br />
geral, etc.) e exigir o cumprimento, longamente<br />
adiado, das suas legítimas exigências<br />
<strong>de</strong> justiça, tanto em matéria política e<br />
social como <strong>cultura</strong>l;<br />
2) As posturas anti-imperialistas e um<br />
anti norte-americanismo profundo (entendido<br />
não como uma ruptura face ao povo<br />
<strong>de</strong>ssa nação, mas como uma rejeição profunda<br />
das práticas contrárias ao Direito e à<br />
Comunida<strong>de</strong> internacionais, adoptadas pela<br />
administração ultradireitista do presi<strong>de</strong>nte<br />
Bush), expan<strong>de</strong>m-se, como há décadas não<br />
ocorria no continente, impulsionando posturas<br />
nacionalistas e <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> soberanias<br />
agredidas;<br />
3) O consenso acrítico reinante nos<br />
anos 90 sobre as bonda<strong>de</strong>s pouco menos<br />
que indiscutíveis do receituário liberal ortodoxo,<br />
emanado dos organismos financeiros<br />
internacionais, cada vez gera mais críticas<br />
e contestação, além <strong>de</strong> que muitas <strong>de</strong>las<br />
resultam mais firmes nos discursos <strong>de</strong> oposição<br />
do que nos conteúdos das políticas<br />
implementadas, uma vez chegados ao<br />
exercício do governo; entre outros fenómenos<br />
que po<strong>de</strong>riam ser citados.<br />
ALGUMAS VIAS POSSÍVEIS PARA<br />
UMA NOVA ORDEM PÓS-LIBERAL<br />
NA AMÉRICA DO SUL<br />
As linhas <strong>de</strong> força <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m que<br />
bem po<strong>de</strong>ria classificar-se <strong>de</strong> «pós-neoliberal»,<br />
na região, traduzem-se efectivamente<br />
em triunfos eleitorais tão espectaculares<br />
como impensáveis há alguns anos. As<br />
razões <strong>de</strong>sta viragem histórica po<strong>de</strong>m<br />
encontrar-se em múltiplos factores. Tendo<br />
em conta os eixos anteriormente referidos,<br />
<strong>de</strong>staquemos só três dos mais importantes,<br />
no seio <strong>de</strong> uma ampla série:<br />
1) A rejeição dos efeitos <strong>de</strong> uma política<br />
exterior dos EUA para o continente<br />
caracterizada tanto pela persistência <strong>de</strong> um<br />
intervencionismo <strong>de</strong>senfadado (os exemplos<br />
são múltiplos e não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r-se),<br />
como por um <strong>de</strong>sinteresse efectivo<br />
em planos alternativos <strong>de</strong> cooperação, propícios<br />
a um <strong>de</strong>senvolvimento minimamente<br />
viável para os países do continente. Neste<br />
sentido, concorrem tanto os conteúdos<br />
inaceitáveis da sua proposta da ALCA,<br />
como a sua atitu<strong>de</strong> cada vez mais prescindível<br />
em termos <strong>de</strong> cooperação.<br />
2) O fracasso cada vez mais aceite da<br />
implementação das reformas impulsionadas<br />
pelos organismos financeiros internacionais<br />
durante os últimos anos, pela mão<br />
do receituário emanado do chamado<br />
«Consenso <strong>de</strong> Washington». Neste sentido,<br />
tanto as análises académicas como as provenientes<br />
<strong>de</strong> estudos dos mesmos organismos<br />
financeiros internacionais resultam<br />
consensuais na consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que a<br />
implementação das chamadas «reformas<br />
<strong>de</strong> primeira geração», durante os anos 90,<br />
culminou em <strong>de</strong>sempenhos muito pobres,<br />
em particular nos tópicos fundamentais da<br />
criação <strong>de</strong> emprego genuíno, no combate à<br />
pobreza e à indigência, no crescimento<br />
económico e na construção institucional.<br />
3) O agravamento <strong>de</strong> cenários <strong>de</strong> pauperização<br />
e marginalização social, pela<br />
mão <strong>de</strong> Estados «<strong>de</strong>sertores» ou «suicidas»<br />
como o que alienou Menem durante o seu<br />
longo <strong>de</strong>cénio no governo da Argentina<br />
(postulado pelo FMI em 1998 como o seu<br />
«melhor aluno» na região). Neste quadro,<br />
os processos renovados <strong>de</strong> pauperização<br />
vieram a tornar mais dramáticas e inocultáveis<br />
as injustiças não só sociais e económicas,<br />
como também políticas, <strong>cultura</strong>is e<br />
étnicas em países como o Brasil ou a Bolívia,<br />
para citar apenas dois exemplos particularmente<br />
assinalados. Para ilustrar a gravida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>stes processos e a situação dos<br />
diversos países do continente, basta consultar<br />
os indicadores da evolução do investimento<br />
social na região, assim como as<br />
estatísticas dos relatórios da CEPAL.<br />
O aprofundamento da rejeição popular<br />
nas socieda<strong>de</strong>s sul-americanas da política<br />
exterior norte-americana, em geral, e, em<br />
particular, na região, a crítica crescente às<br />
políticas «neoliberais» e aos seus <strong>de</strong>fensores<br />
no subcontinente e o agravamento dos
quadros <strong>de</strong> pauperização, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e<br />
marginalização constituem, com efeito,<br />
factores não únicos, mas dos mais <strong>de</strong>cisivos<br />
para o advento das mudanças políticas na<br />
região.Também resultam factores <strong>de</strong>safiantes<br />
e problematizadores para a gestão <strong>de</strong>stes<br />
novos governos <strong>de</strong> tipo progressista. Em<br />
suma, os mesmos factores que estimularam<br />
o seu crescimento eleitoral e o seu triunfo<br />
nas urnas ten<strong>de</strong>m a problematizar e a interpelar<br />
a gestão <strong>de</strong>stas forças políticas, uma<br />
vez que se transformem em governo, tendo<br />
<strong>de</strong> lidar com realida<strong>de</strong>s dramáticas que<br />
exigem transformações urgentes e profundas.<br />
AS DEMOCRACIAS DE «BAIXA<br />
INTENSIDADE» NO CONTINENTE<br />
«MAIS DESIGUAL DO PLANETA»<br />
Por outro lado, as sondagens ou inquéritos<br />
<strong>de</strong> opinião pública, como veremos<br />
mais adiante, dão conta <strong>de</strong> uma situação<br />
preocupante: em muitos países, uma percentagem<br />
significativa dos cidadãos não<br />
acredita nas instituições <strong>de</strong>mocráticas,<br />
manifesta não preferir a <strong>de</strong>mocracia face a<br />
qualquer outra forma <strong>de</strong> governo, não se<br />
sente representada pelos partidos políticos<br />
e avalia criticamente o <strong>de</strong>sempenho dos<br />
governos e das instituições públicas (o<br />
po<strong>de</strong>r executivo, o Parlamento, o sistema<br />
judicial e os governos locais), in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
da sua i<strong>de</strong>ologia. Por exemplo, na<br />
Argentina, 46% das pessoas maiores <strong>de</strong> 18<br />
anos diziam estar satisfeitas com o funcionamento<br />
da <strong>de</strong>mocracia no ano <strong>de</strong> 2000;<br />
em 2002, após a crise institucional <strong>de</strong><br />
finais <strong>de</strong> 2001, só 8% dos inquiridos manifestaram<br />
sentir-se satisfeitos com a<br />
<strong>de</strong>mocracia 1 .<br />
Importa também <strong>de</strong>stacar que o avanço<br />
da <strong>de</strong>mocracia no continente não permitiu,<br />
contudo, garantir, nem sequer<br />
aumentar, o respeito pelos direitos humanos,<br />
em particular das mulheres, dos sectores<br />
mais pobres e das minorias (os povos<br />
indígenas, os afro-americanos, etc.). Seguramente,<br />
uma das principais matérias pen<strong>de</strong>ntes<br />
da <strong>de</strong>mocracia é a persistência <strong>de</strong><br />
altos níveis <strong>de</strong> pobreza, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> económica<br />
e carências em termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
humano (<strong>de</strong>snutrição, falta <strong>de</strong><br />
O aprofundamento<br />
da rejeição popular nas<br />
socieda<strong>de</strong>s sul-americanas<br />
da política exterior<br />
norte-americana,<br />
em geral, e, em particular,<br />
na região, a crítica<br />
crescente às políticas<br />
«neoliberais» e aos seus<br />
<strong>de</strong>fensores no<br />
subcontinente e o<br />
agravamento dos quadros<br />
<strong>de</strong> pauperização,<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />
e marginalização<br />
constituem, com efeito,<br />
factores não únicos,<br />
mas dos mais <strong>de</strong>cisivos<br />
para o advento<br />
das mudanças políticas<br />
na região.
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 72<br />
73<br />
acesso à saú<strong>de</strong> e baixa qualida<strong>de</strong> e iniquida<strong>de</strong><br />
educativa), que geraram a circunstância<br />
lamentável <strong>de</strong> a América Latina constituir<br />
o continente mais <strong>de</strong>sigual do Planeta.<br />
O direito dos povos à <strong>de</strong>mocracia também<br />
requer avanços e consolidações efectivas<br />
nestes campos, em resposta à exigência <strong>de</strong><br />
milhões <strong>de</strong> latino-americanos que não<br />
po<strong>de</strong>m esperar, como indicam <strong>de</strong> modo,<br />
em nossa opinião, tão rotundo como indiscutível<br />
as séries estatísticas e os dados oficiais.<br />
A esta enumeração <strong>de</strong> dívidas (como<br />
diria o filósofo político e jurista italiano<br />
Norberto Bobbio, «promessas incumpridas»)<br />
que as <strong>de</strong>mocracias da região ainda<br />
não saldaram com os seus povos, haveria<br />
que adossar alguns défices <strong>de</strong> carácter político<br />
ou institucional, aos que, por outro<br />
lado, nem sequer as socieda<strong>de</strong>s mais<br />
<strong>de</strong>senvolvidas escapam: referimo-nos, por<br />
exemplo, à persistência <strong>de</strong> fenómenos <strong>de</strong><br />
corrupção política e à frequente falta <strong>de</strong><br />
transparência no aparelho do Estado.<br />
Como se sabe, a região, no seu conjunto,<br />
e a maioria dos seus países isoladamente<br />
exibem as piores classificações, comparativamente<br />
a outras áreas do mundo, nos<br />
índices usados para medir a corrupção. Se<br />
se consi<strong>de</strong>rar o índice elaborado pela<br />
«Transparency International», no ano <strong>de</strong><br />
2001, em média, os países das Américas<br />
situam-se no 53.º lugar entre os 91 países<br />
estudados, com um amplo intervalo que ia<br />
do Canadá (7.º país mais transparente do<br />
mundo) à Bolívia (em 85.º lugar, só seis<br />
lugares atrás do país menos transparente do<br />
Planeta). Este fraco <strong>de</strong>sempenho, em matéria<br />
<strong>de</strong> transparência pública e gestão <strong>de</strong>mocrática,<br />
conspira, sem dúvida, contra a credibilida<strong>de</strong><br />
e a legitimida<strong>de</strong> das instituições<br />
políticas, o que, a curto ou médio prazo,<br />
po<strong>de</strong> redundar em crises institucionais. Por<br />
outro lado, a generalização <strong>de</strong> uma <strong>cultura</strong><br />
<strong>de</strong> corrupção afecta o funcionamento da<br />
economia, enquanto os agentes económicos<br />
requerem parâmetros claros, regras<br />
inequívocas e estáveis para operar (investir,<br />
produzir e comercializar) no mercado,<br />
com níveis mínimos <strong>de</strong> previsibilida<strong>de</strong>.<br />
Finalmente, a corrupção política (que,<br />
como lamentavelmente temos podido<br />
constatar, não constitui património da<br />
direita) e, mais em geral, a falta <strong>de</strong> respeito<br />
pela legalida<strong>de</strong> vigente empreen<strong>de</strong>ram o<br />
aparecimento da violência social, o que<br />
acaba por alimentar um círculo vicioso <strong>de</strong><br />
instabilida<strong>de</strong> e fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocráticas,<br />
que incrementa uma agenda <strong>de</strong> «securização<br />
da vida quotidiana» que, geralmente,<br />
gera ensaios e implantações políticas <strong>de</strong><br />
cariz autoritário. Não se trata <strong>de</strong> haver um<br />
contexto favorável ao retorno dos militares<br />
a li<strong>de</strong>rar ditaduras <strong>de</strong> terrorismo <strong>de</strong> Estado,<br />
do género das que assolaram o continente<br />
entre os anos 60 e 70. Hoje, o perigo radica<br />
na ascensão <strong>de</strong> autoritarismos <strong>de</strong> novo<br />
tipo que, inclusive, po<strong>de</strong>riam ace<strong>de</strong>r ao<br />
governo com legitimação eleitoral e que,<br />
sem dúvida, se veriam amplamente favorecidos<br />
por um fracasso dos governos progressistas<br />
perante as complexas agendas<br />
que enfrentam. De tal modo que o <strong>de</strong>scrédito<br />
da política constitui um factor negativo<br />
para a afirmação das esquerdas e das<br />
forças progressistas, tanto em contextos <strong>de</strong><br />
ocupação <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong> oposição, mas,<br />
sobretudo, para o exercício da li<strong>de</strong>rança do<br />
governo.<br />
Se, como se assinalou, a expansão da<br />
<strong>de</strong>mocracia no continente constitui um<br />
sinal alentador dos tempos que correm, o<br />
panorama político mais actual não está<br />
livre <strong>de</strong> sinais preocupantes e, em alguns<br />
casos, verda<strong>de</strong>iramente alarmantes. As<br />
diversas crises que vários países da região<br />
atravessaram nos últimos anos, os escassos<br />
avanços em matéria social, os fenómenos<br />
<strong>de</strong> corrupção e a insegurança física que<br />
afecta importantes segmentos da população<br />
nas gran<strong>de</strong>s metrópoles e nas áreas<br />
rurais, os cenários <strong>de</strong> polarização política e<br />
social, a dificulda<strong>de</strong>, em alguns casos crescente,<br />
em vislumbrar e concretizar um<br />
futuro melhor para os nossos países no que<br />
concerne à sua inserção competitiva nos<br />
novos contextos internacionais configuram<br />
um quadro no qual a afirmação da <strong>de</strong>mocracia<br />
constitui uma tarefa <strong>de</strong> primeira<br />
or<strong>de</strong>m, trabalho, por outro lado, inacabado<br />
e inacabável. Este <strong>de</strong>safio, em particular,<br />
resulta incontornável para os governos <strong>de</strong><br />
esquerda, a partir <strong>de</strong> respostas que não<br />
po<strong>de</strong>m ser restauradoras e que têm <strong>de</strong>
apostar com coragem e criativida<strong>de</strong> em induzir<br />
e contribuir para tornar visíveis novas<br />
formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e organização dos actores<br />
sociais, com capacida<strong>de</strong> efectivamente participativa<br />
na tarefa governamental.<br />
No recente relatório do PNUD intitulado<br />
La Democracia en America Latina 2 , entre<br />
outros dados extraordinariamente preocupantes,<br />
é impossível omitir a referência a<br />
alguns: «No ano <strong>de</strong> 2003, viviam na<br />
pobreza 225 milhões <strong>de</strong> latino-americanos,<br />
ou seja, 43,9%, dos quais 100 milhões<br />
eram indigentes (19,4%)»; «10% da população<br />
mais rica recebe uma quantia 30<br />
vezes superior à da mais pobre», o que<br />
converte a América Latina no continente<br />
mais <strong>de</strong>sigual do Planeta. Por outro lado,<br />
no referido relatório também se mencionava<br />
esta tendência da opinião pública:<br />
«Em 2002, 57% das cidadãs e dos cidadãos<br />
da América Latina preferiam a <strong>de</strong>mocracia<br />
face a qualquer outro regime. Contudo, dos<br />
que dizem preferir a <strong>de</strong>mocracia a outros<br />
regimes, 48,1% preferem o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
económico à <strong>de</strong>mocracia, e 44,9%<br />
apoiariam um governo autoritário se este<br />
resolvesse os problemas económicos do seu<br />
país» 3 . Estes últimos registos e dados corroboram<br />
a preocupação já expressa no diagnóstico<br />
anteriormente apresentado sobre a<br />
realida<strong>de</strong> política das <strong>de</strong>mocracias contemporâneas<br />
do continente.<br />
ALGUNS DESAFIOS PARA<br />
UMA MUDANÇA INADIÁVEL<br />
Em suma, o distanciamento crítico<br />
entre cidadanias e instituições ameaça<br />
transformar-se num dos problemas mais<br />
acutilantes tanto para a saú<strong>de</strong> das <strong>de</strong>mocracias<br />
latino-americanas em geral, como para<br />
a acção dos governos <strong>de</strong> esquerda ou progressistas<br />
da região. As nossas socieda<strong>de</strong>s<br />
inseridas no continente mais <strong>de</strong>sigual do<br />
Planeta apresentam ainda fragmentações e<br />
feridas duríssimas nos seus respectivos<br />
tecidos sociais, o que leva a uma crescente<br />
falta <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> no funcionamento e<br />
nos resultados da acção quotidiana dos<br />
actores e das instituições da política, com<br />
particular ênfase para os partidos e os Parlamentos.<br />
Como vimos, este resultado, que<br />
em boa medida foi impulsionado (ainda<br />
que não exclusivamente) pelo tipo <strong>de</strong><br />
acção pública que caracterizou os governos<br />
sul-americanos, na sua gran<strong>de</strong> maioria<br />
durante os anos 90 (com excepções), converteu-se<br />
num factor que ten<strong>de</strong>u a erodir a<br />
credibilida<strong>de</strong> dos partidos e figuras da<br />
política tradicional na região, assim como a<br />
impulsionar forças políticas renovadoras<br />
com novas li<strong>de</strong>ranças. Com efeito, como<br />
vimos, começou a emergir, como resposta<br />
a esta situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencanto político, uma<br />
viragem relevante na perspectiva da vitória<br />
eleitoral em vários países da região <strong>de</strong><br />
governos <strong>de</strong> centro-esquerda ou «progressistas»,<br />
com programas diferentes, em<br />
muitos casos, mas também com similitu<strong>de</strong>s,<br />
em especial no que concerne à rejeição<br />
das orientações do chamado «Consenso <strong>de</strong><br />
Washington».<br />
Todavia, seria um grave erro para esses<br />
novos governantes ignorarem que os mesmos<br />
factores que os ajudaram a ganhar as<br />
eleições po<strong>de</strong>riam prontamente virar-se<br />
contra a sua legitimida<strong>de</strong> governativa, boicotar<br />
a sua acção transformadora e apoiar o<br />
regresso ao po<strong>de</strong>r dos seus adversários.<br />
Consi<strong>de</strong>rando esta prevenção, há que<br />
advertir que, no primeiro mandato <strong>de</strong>stes<br />
governos, as situações herdadas e o consequente<br />
espaço <strong>de</strong> acção impõem restrições<br />
e potenciam <strong>de</strong>safios muito fortes no que<br />
respeita às verda<strong>de</strong>iras mudanças inadiáveis.<br />
Daí que, em simultâneo com a aplicação<br />
<strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> políticas públicas, a<br />
procura <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> cidadania e <strong>de</strong><br />
instituições renovadas através <strong>de</strong> reformas<br />
<strong>de</strong>mocráticas específicas e profundas constitua<br />
encargos incontornáveis na agenda<br />
<strong>de</strong>stes governos. Sobretudo se se quer efectivamente<br />
a transformação profunda <strong>de</strong><br />
socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>masiado feridas e habituadas<br />
ao fracasso. E é sabido que o fracasso,<br />
sobretudo se provier da inadvertência ou<br />
da soberba, fere muito mais as esquerdas<br />
do que as direitas.<br />
1 Fonte:<br />
www.latinobarometro.org<br />
2 PNUD, La Democracia en<br />
América Latina: Hacia una<br />
<strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> ciudadanos<br />
y ciudadanas, 2004.<br />
3 PNUD, Encuesta,<br />
elaboración propia<br />
con base en<br />
Latinobarómetro 2002.
CEM ANOS DE SOLIDÃO 74 75<br />
Os filhos,<br />
Tucumán vinte anos <strong>de</strong>pois<br />
Julio Pantoja<br />
Com o nome <strong>de</strong> «Operativo In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia», em 1975, lançava-se em Tucumán, a mais pequena província argentina, uma feroz<br />
repressão movida contra as organizações populares, com o pretexto <strong>de</strong> combater a guerrilha.<br />
Com o golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1976, que durou até 1983, a violência estatal aperfeiçoou-se e esten<strong>de</strong>u o seu braço<br />
a todo e qualquer opositor que ousasse levantar a voz.<br />
Esta violência, que logo se generalizou a todo o país, <strong>de</strong>ixou, em Tucumán, um saldo <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecidos, assassinados,<br />
presos, torturados e exilados.<br />
Duas décadas <strong>de</strong>pois, o mesmo militar que dirigiu aquela repressão e que foi interventor <strong>de</strong>ssa ditadura na província, o general<br />
Antonio Domingo Bussi, foi eleito governador nas eleições <strong>de</strong>mocráticas, apesar das acusações <strong>de</strong> genocídio, torturas e rapto <strong>de</strong> bebés.<br />
Com um endémico atraso económico, político e social, face ao resto do país, esta convulsionada província do Noroeste argentino<br />
continua a <strong>de</strong>bater-se, até hoje, entre um tenebroso passado marcado a fogo pelo zumbido das balas dos anos 70 e a formalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>mocrática envenenada pela corrupção da mudança <strong>de</strong> século.<br />
A FOTOGRAFIA E ESTE ENSAIO FOTOGRÁFICO<br />
A partir do triunfo, nas eleições da minha província, do general genocida, conjuntamente com o vigésimo aniversário do<br />
golpe militar, <strong>de</strong>diquei-me sistematicamente a retratar os filhos <strong>de</strong> vítimas da repressão em Tucumán.<br />
A princípio, foi talvez apenas um impulso quase ingénuo <strong>de</strong> resistência conduzido pela indignação, mas, aos poucos, foi-se<br />
consolidando e tomando a forma <strong>de</strong> uma tomada <strong>de</strong> posição lúcida, usando a minha ferramenta: a fotografia.<br />
Um dia, quando estava a começar este trabalho, a curadora <strong>de</strong> fotografia <strong>de</strong> um importante museu dos Estados Unidos fez-me<br />
uma brilhante pergunta que serviu <strong>de</strong> síntese e <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio para este ensaio. Interrogou-me sobre a eventual diferenciação visual<br />
entre um grupo <strong>de</strong> adolescentes cujos pais haviam <strong>de</strong>saparecido e os restantes adolescentes.<br />
A minha hipótese <strong>de</strong> trabalho foi simples. Sempre estive certo <strong>de</strong> que <strong>de</strong>via existir um <strong>de</strong>nominador comum entre aqueles que,<br />
sendo <strong>de</strong> uma mesma geração, tinham passado por tanto sofrimento do mesmo tipo, atormentados pelo Estado terrorista. Se o nexo<br />
partia da mesma experiência <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong>veria existir o seu correlativo no visual. As respostas chegavam à medida que o trabalho<br />
se <strong>de</strong>senvolvia.<br />
Sob o ponto <strong>de</strong> vista estético, encontrei duas linhas sobre as quais seria interessante trabalhar. Uma, po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>nominá-la<br />
horizontal, e está relacionada com o geracional: com um grupo <strong>de</strong> jovens marcado pelo rock, e pela música popular em geral, e por<br />
um importante compromisso social e político. E aqui se produz o cruzamento vertical. Este compromisso não é um signo característico<br />
dos nossos dias, mas relaciona-se com os agitados anos 70 que tiveram os seus pais como protagonistas. Mas aqui surge outra<br />
relação: naquela época, os seus pais teriam aproximadamente as ida<strong>de</strong>s que eles têm hoje.<br />
Outro ponto sempre importante, mas vital neste caso, é a relevância do nome que acompanha cada retrato porque permite preservar<br />
a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a história <strong>de</strong> cada um. As fotos sem nome são fotos <strong>de</strong> «NN», como classificavam os militares as suas vítimas.<br />
Eu <strong>de</strong>veria situar-me nos antípodas.<br />
Simultaneamente, era óbvio que não tinha interesse em retratar estes jovens <strong>de</strong> uma forma fria. A minha i<strong>de</strong>ia era mais profunda.<br />
A intenção era dar uma pincelada muito mais subjectiva e pessoal sobre este grupo humano tão particular.<br />
Tirar cada uma <strong>de</strong>stas fotografias levou horas, até dias, <strong>de</strong> conversas e confidências, com álbuns <strong>de</strong>sbotados e fotos também<br />
<strong>de</strong>scoloridas entre as mãos. Logo a partir dos primeiros contactos, quase sempre telefónicos, propunha-lhes que escolhessem um<br />
local que se relacionasse com as suas histórias, vivências e recordações mais íntimas. Assim, surgem casas <strong>de</strong> avós, pátios <strong>de</strong><br />
escolas, praças e, claro, os quartos da adolescência ainda recente. Deste modo, com este clima e algumas lágrimas que embaciavam<br />
os olhos – <strong>de</strong> ambos –, a pouco e pouco foram-se esboçando, melancolicamente, as imagens <strong>de</strong>ste ensaio.
Para não esquecer os anos <strong>de</strong> solidão que marcaram a ditadura argentina,<br />
publicamos aqui o «ensaio fotográfico» <strong>de</strong> Julio Pantoja<br />
sobre os «filhos dos <strong>de</strong>saparecidos» e, ainda, um texto do mesmo autor<br />
sobre a exposição evocativa do golpe militar, trinta anos <strong>de</strong>pois.<br />
Alejandra Leiva, 22 anos, estudante <strong>de</strong> Psicologia, 1997 An<strong>de</strong>a Vicente Achín, 22 anos, estudante <strong>de</strong> Inglês, 1997 Andrés Jaroslavsky, 27 anos, pianista e ilustrador, 1997<br />
Carla González Medina, 30 anos, artesã, 1997 Lucía Coronel, 20 anos, estudante <strong>de</strong> Teatro, 1996 Martín Suter, 25 anos, empresário, 2001<br />
Natalia Aviñez, 23 anos, estudante <strong>de</strong> Arquitectura, 1999 Tucumán, Argentina, 2000 Viviane Vicente Achín, 20 anos, estudante <strong>de</strong> Direito, 1997
RIOS PROFUNDOS 76<br />
Côa, o rio que nunca<br />
viu o mar…<br />
Maria Lúcia Garcia Marques<br />
Outono. Fim da tar<strong>de</strong>.A estrada velha <strong>de</strong>sce, dormente, até<br />
ao rio. Na penúltima curva, em brutal colisão, extinguira-se,<br />
havia meses, uma vida que me era cara. E esta era uma espécie<br />
<strong>de</strong> romagem, in memoriam, na assunção <strong>de</strong> um luto que o curso<br />
ensombrecido do rio, lá em baixo, parecia acompanhar. No local,<br />
espiava as marcas do <strong>de</strong>sastre quando, vindo do fundo da valeta,<br />
certeiro, direito a mim, um lampejo <strong>de</strong> vidro me fez <strong>de</strong>scobrir<br />
os óculos que minha mãe usara. Parecia que todo aquele tempo<br />
tinham esperado ali por mim para me dizerem que olhasse por<br />
quem ficara. Recolhi-os piedosamente e, numa oração, olhei o rio.<br />
Na quase noite, pressenti-o mais do que o vi e pareceu-me que<br />
o seu marulhar se aquietara, como se, guardião daquela vonta<strong>de</strong><br />
última, cumprida a missão, pu<strong>de</strong>sse seguir mais em paz o seu<br />
caminho. Requiescat...<br />
Bo<strong>de</strong> cuja cabeça se encontra animada, Quinta da Barca (foto CNART), Instituto Português <strong>de</strong> Arqueologia<br />
77
RIOS PROFUNDOS 78<br />
79<br />
Parafraseando Alberto Caeiro, diria<br />
que o Côa «não é como o rio da minha<br />
al<strong>de</strong>ia» porque «Ninguém nunca pensou<br />
no que há para além/ Do rio da minha<br />
al<strong>de</strong>ia// O rio da minha al<strong>de</strong>ia não faz<br />
pensar em nada/ Quem está ao pé <strong>de</strong>le está<br />
só ao pé <strong>de</strong>le».<br />
Ora, o Côa dá que pensar.<br />
Des<strong>de</strong> logo, o seu nome. Os romanos<br />
chamaram-lhe Cuda, <strong>de</strong> coda ou cola, que<br />
significa «ribeira», «caudal». Porém, essa<br />
<strong>de</strong>signação não aparece, tal qual, nos primeiros<br />
documentos, mas tem <strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r do <strong>de</strong>rivado transcudani, o primeiro<br />
<strong>de</strong>signativo a ser registado. De facto,<br />
segundo J. Leite <strong>de</strong> Vasconcelos, o rio Cuda<br />
(Côa) «não se encontra nem na literatura<br />
antiga, nem na epigrafia, mas encontra-se<br />
É um dos poucos rios<br />
em Portugal<br />
que correm <strong>de</strong> sul<br />
para norte,<br />
o que, olhando-o no mapa,<br />
o faz parecer<br />
como que um rio ao invés.<br />
apenas o seu <strong>de</strong>rivado transcudanus = transcud(a)-anus...»<br />
1 .<br />
J. Pinharanda Gomes 2 aduz a este respeito:<br />
«Seria estranho que fossem os romanos<br />
a baptizar o rio. Antes <strong>de</strong>les e mesmo<br />
sem a total visão geográfica do aci<strong>de</strong>nte<br />
hídrico, os povos chamariam a esse curso<br />
<strong>de</strong> água algum nome. Nome esse que seria,<br />
como sempre foi, ribeira, sem mais nada; e<br />
que os romanos traduziriam por coda ou<br />
cola, que significa isso: a ribeira, o caudal. É<br />
inevitável, hoje em dia, dizer Rio Côa; mas<br />
é repetitivo. Côa é ribeira. E a forma cuda<br />
parece espúria. A forma genuína aberta, eila:<br />
coda>côa». Aliás, é assim que se encontra<br />
atestado em documento <strong>de</strong> 1145: «... et<br />
fluvium qui vocatur Côa», citado por Frei<br />
Joaquim Santa Rosa Viterbo 3 .<br />
E quem antes dos romanos – e isto, no<br />
caso, é particularmente importante – se<br />
fixou junto ao rio?<br />
No Portugal Saccro diz J. Bautista <strong>de</strong><br />
Castro: «Pelos annos <strong>de</strong> 550 antes <strong>de</strong><br />
Christo, pouco mais ou menos, <strong>de</strong>ixando<br />
alguns turdulos antigos a costa marítima<br />
em que viviam, foram habitar aquelle<br />
espaço <strong>de</strong> terreno que se esten<strong>de</strong> do norte<br />
a sul entre o rio Côa e o Águeda e, pela<br />
situação em que ficavam além do Côa, se<br />
ficaram chamando transcudanos...»<br />
Na opinião do arqueólogo Dr. Joaquim<br />
Manuel Correia 4 : «Podiam ter vivido<br />
ali os Vetónios, os Váceos, Astures ou<br />
Carpetanos ou outros, talvez mesmo os<br />
Galaicos, que nenhuns ficavam distantes<br />
<strong>de</strong>ste território e po<strong>de</strong>riam tê-lo ocupado.<br />
(...). Não é, porém, <strong>de</strong> crer que estes e os<br />
turdulos fossem os únicos habitantes <strong>de</strong><br />
Riba-Côa.» Como quer que seja, e regres-<br />
… correndo teimoso<br />
entre invernos<br />
e estiagens, ora caudaloso<br />
ora parco, foi cioso<br />
guardador da memória<br />
que os Homens, na aurora<br />
dos seus dias, lhe entregara.<br />
sando a Pinharanda Gomes, o Côa «foi, no<br />
<strong>de</strong>curso do tempo, grave aci<strong>de</strong>nte na geografia<br />
política. Serviu <strong>de</strong> fosso entre ribacudanos<br />
e transcudanos nos tempos tribais<br />
e através da reconquista; serviu <strong>de</strong> raia leonesa,<br />
na parte <strong>de</strong> Cima-Côa, face ao novo<br />
reino português» até que, com as conquistas<br />
<strong>de</strong> D. Dinis 5 , reconhecidas pelo Tratado<br />
<strong>de</strong> Alcanizes, em 1297, que fixou <strong>de</strong>finitivamente<br />
as fronteiras <strong>de</strong> Portugal na zona,<br />
passou a rio interior, transferindo para o<br />
Águeda a sua função limítrofe.<br />
Feita a conquista, D. Dinis tratou <strong>de</strong> a<br />
assegurar e, por isso, construiu castelos,<br />
edificou muralhas em volta das vilas e<br />
levantou pontes sobre o Côa, guarnecendo<br />
fortemente as praças. É assim que a fortaleza<br />
do Sabugal, que vigiava <strong>de</strong> Leão o reino<br />
<strong>de</strong> Portugal, passou, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> recuperada<br />
por D. Dinis, a vigia <strong>de</strong> Portugal face ao<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Castela.
Uma cena do romance regionalista <strong>de</strong><br />
Nuno <strong>de</strong> Montemor, Maria Mim 6 , surpreen<strong>de</strong><br />
o Castelo do Sabugal com gran<strong>de</strong> felicida<strong>de</strong><br />
estética no seu quadro heróico-<br />
-romântico, que vale a pena transcrever:<br />
«Intacto, garboso e sempre vivo, continuamente<br />
embalado pela água azul do<br />
Rio Côa que, em jeitos <strong>de</strong> pajem, graciosamente<br />
se lhe curva, a banhá-lo, dir-se-ia<br />
que os seus fundamentos criaram raízes<br />
vegetais no leito do rio, tão viçosa é a<br />
escarpa íngreme que a ele conduz, e sobre<br />
a qual o castelo assenta enramado <strong>de</strong> heras<br />
e flores, como altar <strong>de</strong> Maio em constante<br />
Primavera. (...) Belo e encantado castelo<br />
das cinco quinas, como, no dizer do povo,<br />
não há outro em Portugal! Que o rio<br />
encurvasse pelo nascente, um braço, a<br />
É um cenário <strong>de</strong> fascínio<br />
da arte rupestre,<br />
«museu <strong>de</strong> história da arte<br />
ao ar livre<br />
como não há outro<br />
no mundo com esta<br />
profundida<strong>de</strong> temporal.<br />
enlaçar a cintura da vila, para a mudar<br />
numa ilha branca e ver<strong>de</strong> e o tão enamorado<br />
Almourol não passaria <strong>de</strong> um pobre e<br />
ressequido esqueleto.»<br />
O apontamento final <strong>de</strong>ste trecho convida-nos<br />
a consi<strong>de</strong>rar mais em <strong>de</strong>talhe o<br />
percurso sinuoso do rio. E também aqui o<br />
Côa se mostra raro: é um dos poucos rios<br />
em Portugal que correm <strong>de</strong> sul para norte,<br />
o que, olhando-o no mapa, o faz parecer<br />
como que um rio ao invés – sobe em vez<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scer, acentuando a imagem <strong>de</strong> um rio<br />
esforçado, no penoso afã <strong>de</strong> levar à foz um<br />
caudal atormentado.<br />
Nasce na freguesia <strong>de</strong> Fóios na serra<br />
das Mesas, também conhecida por serra da<br />
Nave Molhada, pequeno como qualquer<br />
outro, mas o seu caudal vai engrossando<br />
até <strong>de</strong>saguar, majestoso e farto, na margem<br />
esquerda do rio Douro, próximo <strong>de</strong> Vila<br />
Nova <strong>de</strong> Foz Côa (que do facto lhe tira o<br />
nome). Da nascente até à foz são 135 km<br />
<strong>de</strong> tortuoso leito, alimentado por muitos<br />
afluentes (sendo os principais na margem<br />
direita, as ribeiras <strong>de</strong> Alfaiates e Adão e, na<br />
esquerda, as ribeiras <strong>de</strong> Noémi, Gaiteiros,<br />
Cabras, Massucine e Tamegal).<br />
Atravessa, qual espinha dorsal, o concelho<br />
do Sabugal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> próximo da raia,<br />
passa, como se viu, na vila do Sabugal e<br />
segue a este das freguesias <strong>de</strong> Valongo e<br />
Castelo Mendo, a oeste dos concelhos <strong>de</strong><br />
Almeida e <strong>de</strong> Pinhel, até entrar no Douro<br />
em Vila Nova <strong>de</strong> Foz Côa.<br />
Por volta <strong>de</strong> 1800, Frei Bernardo <strong>de</strong><br />
Brito 7 <strong>de</strong>screve-o com pitoresco rigor da<br />
seguinte forma: «É rio <strong>de</strong> muita cópia <strong>de</strong><br />
peixe, como são barbos, bogas, bordalos e<br />
outros modos <strong>de</strong> pescaria. A cor das suas<br />
águas é pouco clara, tirante a ver<strong>de</strong> escuro;<br />
é <strong>de</strong> malíssima digestão, e mui pesada,<br />
causa tristeza, dores <strong>de</strong> barriga e <strong>de</strong> cabeça,<br />
engrossa o entendimento e, para mulheres<br />
formosas, é <strong>de</strong> muito pouco proveito, porque<br />
lhe dana o carão notavelmente: só tem<br />
virtu<strong>de</strong> para tingir lãs e cal<strong>de</strong>ar ferro, que<br />
neste particular é excelente.»<br />
Porém, é sabido que «não há trutas<br />
como as do Côa» e também é verda<strong>de</strong> que<br />
as suas águas serviram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre para<br />
irrigar lameiros e campos <strong>de</strong> cultivo,<br />
fazendo das suas margens viveiros férteis<br />
das localida<strong>de</strong>s por on<strong>de</strong> passa.<br />
Mas a primeira «biografia» total do<br />
rio traça-se pela primeira vez a partir do<br />
«Inquérito do Ministério do Reino dirigido<br />
às Paróquias em 1758». Consta <strong>de</strong><br />
19 perguntas que inci<strong>de</strong>m sobre a origem,<br />
características hídricas, aproveitamentos,<br />
construções, navegabilida<strong>de</strong> e<br />
até eventual mineração no caudal. Assim<br />
se fica a saber do cultivo <strong>de</strong> algumas partes<br />
das margens, das espécies arbóreas<br />
que acompanham o curso do rio que tem<br />
(tinha) muitos moinhos e algumas pontes,<br />
tudo em 10 conjuntos <strong>de</strong> respostas<br />
(tantos quantas as paróquias) <strong>de</strong> análise<br />
<strong>de</strong>veras interessante.<br />
Pelo pormenor e pela curiosida<strong>de</strong> das<br />
observações, não resisto a transcrever o<br />
teor da resposta assinada pelo aba<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Quadrazais, Paulo Correia da Costa, datada<br />
<strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1758:<br />
1 In J. Leite <strong>de</strong> Vasconcelos,<br />
Religiões da Lusitânia<br />
(3 volumes, 1897, 1905, 1913).<br />
2 In J. Pinharanda Gomes,<br />
Geógrafos do Côa, Actas do<br />
Congresso do 7.º Centenário<br />
do Foral – Sabugal, 1996,<br />
págs. 97-108.<br />
3 In Frei Joaquim Santa<br />
Rosa Viterbo, Elucidário<br />
das Palavras, Termos<br />
e Frases que em Portugal<br />
Antigamente se Usavam,<br />
(2 volumes, 1798-99).<br />
4 In Joaquim Manuel Correia,<br />
Terras <strong>de</strong> Riba-Côa<br />
– Memórias sobre o Concelho<br />
do Sabugal, ed. da Fe<strong>de</strong>ração<br />
dos Municípios da Beira-Serra,<br />
Lisboa, 1946, pág. 14.<br />
5 D. Dinis teria conquistado ou<br />
tomado posse efectiva <strong>de</strong>stas<br />
terras, em 1296, <strong>de</strong> regresso<br />
<strong>de</strong> uma mal-sucedida empresa<br />
em terras <strong>de</strong> Leão, ao apoiar<br />
as pretensões ao trono do tio<br />
<strong>de</strong> Fernando IV <strong>de</strong> Castela<br />
(ainda menor ao tempo) e que,<br />
por ilegítimas, se goraram. Diz o<br />
Dr. Joaquim Correia: «O certo é<br />
que D. Dinis invadiu a comarca<br />
<strong>de</strong> Riba Côa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ribeira<br />
<strong>de</strong> Tourões e o Rio Águeda, que<br />
ficou sendo a linha divisória<br />
dos dois países até ao Côa, que<br />
anteriormente separava as duas<br />
nações.» O direito à posse <strong>de</strong>stas<br />
terras por Portugal, anterior<br />
mesmo a esta expedição, parece,<br />
aliás , ser implicitamente<br />
reconhecido pelo texto<br />
do Tratado <strong>de</strong> Alcanizes.<br />
6 Nuno <strong>de</strong> Montemor (pseudónimo<br />
literário <strong>de</strong> Joaquim Augusto Álvares<br />
<strong>de</strong> Almeida), Maria Mim,<br />
1939, 4.ª ed. da Câmara Municipal<br />
do Sabugal, 2003.<br />
7 Frei Bernardo <strong>de</strong> Brito, Geografia<br />
Antiga da Lusitânia (1804), ed.<br />
1957, págs. 22-23.
RIOS PROFUNDOS 80<br />
81<br />
«Resposta sobre a Ribeyra <strong>de</strong>ste Lugar: 1. – Junto a este povo <strong>de</strong> Coadrazaes 8 , como já se disse,<br />
passa huma Ribeyra chamada Côa.Esta nasce,distância <strong>de</strong>ste povo duas légoas,perto <strong>de</strong> huma Al<strong>de</strong>a<br />
chamada Foyos,em hum sítio chamado Currais das Moreyras,<strong>de</strong> fronte <strong>de</strong> hum cabeço que chamam<br />
o Cabeço Vermelho,na distância <strong>de</strong> dous tiros <strong>de</strong> mosquete da Serra já nomeada da Nave Molhada ou<br />
das Mezas. 2. – Nasce a dita Ribeyra dando vista ao Norte, logo bastantemente vigoroza, porque em<br />
menos <strong>de</strong> meyo quarto <strong>de</strong> legoa moem logo nella moinhos.Corre todo anno por estas vizinhanças,em<br />
espaço <strong>de</strong> outo ou nove legoas, sem embargo <strong>de</strong> que, haverá seis annos, secou no tempo <strong>de</strong> Verão, em<br />
muitas partes, mas foy cazo que outro se não conheceu dos nascidos. 3. – As Ribeyras <strong>de</strong> que tenho<br />
noticia entram nella, há uma chamada dos Sargaçais, perto da Villa do Sabugal; outra chamada a<br />
Ribeyra <strong>de</strong> Pega, perto <strong>de</strong> um povo que chamam Rapoula; outra chamada Ribeyra <strong>de</strong> Villar Mayor,<br />
junto a hum povo que chamam Vadamallos. 4. – Nam me consta que a dita Ribeyra seja navegável,<br />
e só tenho notícia que lá perto don<strong>de</strong> se mete no Rio Douro, tem suas barcas <strong>de</strong> passagem. 5. – He<br />
<strong>de</strong> curso arrebatado, em toda a sua distância, menos em algumas partes, mas em muito pouco espaço,<br />
como em alguns açu<strong>de</strong>s ou pedaços <strong>de</strong> terra que chamam veigas. 6. – Tem a dita Ribeyra o seu nas-<br />
cimento ao nascente do Sol, sem embargo, <strong>de</strong> quando nasce dá vista ao Norte como levo dito e leva o<br />
seu <strong>de</strong>curso a Nor<strong>de</strong>ste para o Poente. 7. – Os peixes que cria nestas vizinhanças, por serem aguas<br />
muito frias, san trutas com suficiente abundancia, cria tambem barbos, bordallos e bogas, no espaço<br />
<strong>de</strong> tres legoas <strong>de</strong> distância e no mais espaço do seu <strong>de</strong>curso,já cria poucas trutas,por serem aguas mais<br />
quentes, mas cria mais abundancia dos mais peixes acima nomeados, e mais criaria se o tempo ou<br />
mezes <strong>de</strong>fezos com rigor se observassem, e se prohibissem os materiais que no Rio se lançam para<br />
matar os peixes, com que morrem gran<strong>de</strong>s e pequenos. 8. – Em todo o tempo do anno, há na dita<br />
Ribeyra pescarias, porque se não observam os tempos prohibidos pella ley do Reyno. 9. – Por estas<br />
vizinhanças, em espaço <strong>de</strong> quatro legoas não me consta que na dita Ribeyra haja pesqueyros, porem<br />
mais abaixo,me consta que alguns há <strong>de</strong> pessoas particulares.10.– Em alguns sítios da dita Ribeyra<br />
se cultivam as suas margens como na Villa do Sabugal, e junto a um povo Vadamallos e em outros<br />
sítios mais; mas nam me consta <strong>de</strong> que se valham das aguas <strong>de</strong> tal Ribeyra para a <strong>cultura</strong> dos cam-<br />
pos, o que tudo hé incuria dos habitadores. Athé on<strong>de</strong> chega a minha noticia, nem me consta que
tenha arvores <strong>de</strong> fructo; sem embargo que as po<strong>de</strong>rá ter, em muitas partes, se houvesse curiozida<strong>de</strong>.<br />
De arvores sylvestres tem bastantes,na mayor parte <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>curso,como sam amieyros e outras mais<br />
<strong>de</strong> semelhante qualida<strong>de</strong>.11.– A este nam há que respon<strong>de</strong>r [se têm alguma virtu<strong>de</strong> particular estas<br />
águas]. 12. – Des<strong>de</strong> o seu nascimento athé on<strong>de</strong> morre, sempre conserva o mesmo nome, nem consta<br />
que em tempo algum tivesse outro. 13. – Vay morrer em hum Ryo chamado Douro em distancia <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zasseis legoas nas vizinhanças <strong>de</strong> huma Villa chamada Villanova <strong>de</strong> Foscoa, e naquelle sitio é só que<br />
per<strong>de</strong> o seu nome.14. – Nam tem a tal Ribeyra capacida<strong>de</strong> que admita navegaçoens. Nam me<br />
consta que tenha cachoeyra ou reprezas gran<strong>de</strong>s, e só sim pella mayor parte <strong>de</strong>lla tem quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
assu<strong>de</strong>s e pegos, por razão dos moinhos que nella há. 15. – Athé on<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong> a minha noticia, me<br />
consta que a dita Ribeyra tem sette pontes: duas <strong>de</strong>llas com pilares ou cortamares <strong>de</strong> cantaria; e o<br />
pavimento <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira; huma <strong>de</strong>llas está em huma Al<strong>de</strong>a chamada Val <strong>de</strong> Espinho e outra está neste<br />
povo <strong>de</strong> Coadrasaes.Das cinco <strong>de</strong> cantaria huma está na Villa do Sabugal,outra que chamam a ponte<br />
<strong>de</strong> Sequeyros 9 ,perto <strong>de</strong> um povo chamado Miusella,outra junto a Villa <strong>de</strong> Castello Bom,outra meya<br />
legoa distante da praça <strong>de</strong> Almeyda e outra perto <strong>de</strong> hum povo chamado Sinco Villas. 16. – Só me<br />
consta que a dita Rybeira, pella mayor parte <strong>de</strong>lla, tem moinhos e <strong>de</strong> que tenha lagares ou pizões me<br />
não consta.17.– Conheço-me lembrado <strong>de</strong> que haverá vinte annos,pouco mais ou menos,vieram às<br />
vizinhanças <strong>de</strong>ste povo certos homens, e que com instrumentos que traziam, tiraram nas areas e entre<br />
as pedras <strong>de</strong>sta Ribeyra algum ouro, mas muito pouco, e por tirarem pouco lucro nam repetiram a<br />
vinda mais que em duas ou tres ocazioens.18.– Nam me consta que no uso das aguas <strong>de</strong> tal Ribeyra,<br />
para a <strong>cultura</strong> dos campos, haja pençam alguma nestas vizinhanças, mas antes, <strong>de</strong>llas se uza livre-<br />
mente pelos habitadores, e melhor podiam usar, se nam foram negligentes. 19. – Tem a tal Ribeyra<br />
16 legoas <strong>de</strong> curso, pouco mais ou menos em direytura, que tantas sam as que fazem da Al<strong>de</strong>a dos<br />
Foyos, aon<strong>de</strong> nasce, a Villa Nova <strong>de</strong> Foscoa, on<strong>de</strong> morre; passa por meyo da dita Al<strong>de</strong>a dos Foyos, vem<br />
à vista do Lugar <strong>de</strong> Val <strong>de</strong> Espinho, à vista <strong>de</strong>ste <strong>de</strong> Coadrasaes, à vista do Lugar da Rapoula, à vista<br />
<strong>de</strong> Val Longo e Seixo do Côa, à vista <strong>de</strong> Vadamallos e Porto <strong>de</strong> Ovelha, cujas povoaçoens se acham<br />
na distância <strong>de</strong> quatro legoas em direitura <strong>de</strong> tal Ribeyra, e nam chega a mais a minha notícia<br />
neste particular.»<br />
8 Esta grafia parece preten<strong>de</strong>r<br />
indicar um nexo etimológico<br />
entre o nome do rio e o da<br />
povoação, o que não está<br />
cientificamente provado.<br />
A este topónimo atribui-se<br />
uma possível origem arcaica<br />
leonesa. Terra-mãe <strong>de</strong><br />
contrabandistas, Quadrazais<br />
foi cenário <strong>de</strong> aventuras<br />
e dramas das suas vidas<br />
arriscadas, que o supracitado<br />
romance <strong>de</strong> Nuno<br />
<strong>de</strong> Montemor ilustra<br />
com verda<strong>de</strong> e emoção.<br />
9 Um dos dois únicos exemplos<br />
que ainda subsistem no<br />
nosso país <strong>de</strong> ponte com<br />
habitáculo on<strong>de</strong> se cobrava<br />
a portagem. Ou, como sugere<br />
Joaquim Correia, se<br />
controlava a passagem<br />
<strong>de</strong> portugueses para<br />
Espanha, uma vez que<br />
o torreão posicionado junto<br />
à margem direita do rio<br />
sugere ser uma espécie<br />
<strong>de</strong> posto fronteiriço. A ser<br />
assim, a ponte seria <strong>de</strong><br />
construção anterior<br />
ao domínio português<br />
em Riba Côa.
10 Cancelado <strong>de</strong>finitivamente<br />
o projecto da barragem<br />
do Vale do Côa foram<br />
constituídos o «Parque<br />
Arqueológico do Vale<br />
do Côa», e um projecto<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
para a região, o PROCÔA.<br />
RIOS PROFUNDOS 82 83<br />
E ainda hoje em muito assim é.<br />
Porém, na opinião <strong>de</strong> Pinharanda<br />
Gomes, «o retrato <strong>de</strong> corpo inteiro tirado<br />
do natural» do nosso Côa só ficou disponível<br />
a partir do projecto científico do geógrafo<br />
Carlos Alberto Marques, <strong>de</strong> que nasceram<br />
duas obras indispensáveis (<strong>de</strong> 1936<br />
e 1939), reeditadas pela Assírio & Alvim<br />
(Lisboa, 1995) num único volume intitulado<br />
A Bacia Hidrográfica do Côa seguido <strong>de</strong><br />
Algumas Notas Etnográficas <strong>de</strong> Riba Côa.<br />
Ribacu<strong>de</strong>nse, natural <strong>de</strong> Vale <strong>de</strong> Espinho, o<br />
autor relata, para além da geografia física,<br />
da flora e da fauna, pormenores da vida<br />
dos homens: a caça, a pesca, as touradas, as<br />
festas joaninas, o contrabando, os santos e<br />
as matanças. Dos anos trinta até hoje, com<br />
Como se, na áspera ascese<br />
do seu percurso final, o rio<br />
assumisse o enigmático<br />
sentido da História<br />
e se constituísse sentinela<br />
perene <strong>de</strong> um património<br />
miraculosamente<br />
conservado a transmitir<br />
aos vindouros.<br />
a emigração e as mutações económicas,<br />
parte disto per<strong>de</strong>u expressão ou feneceu,<br />
mas em termos científicos este é, ainda<br />
hoje, um testemunho incontornável para a<br />
história do Rio.<br />
Mas, avaro e secreto, o Côa entesourou<br />
um segredo velho <strong>de</strong> milénios.<br />
Vindo do fundo dos tempos, sisudo e<br />
constante, correndo teimoso entre invernos e<br />
estiagens, ora caudaloso ora parco, foi cioso<br />
guardador da memória que os Homens, na<br />
aurora dos seus dias, lhe entregaram.<br />
São as gravuras rupestres, só verda<strong>de</strong>iramente<br />
<strong>de</strong>scobertas em 1989, aquando <strong>de</strong><br />
um estudo ambiental realizado por exigências<br />
da construção <strong>de</strong> uma barragem a<br />
efectuar junto à sua foz 10 .<br />
Os núcleos conhecidos esten<strong>de</strong>m-se<br />
pelo Vale do Côa e <strong>de</strong> alguns dos seus<br />
afluentes ao longo <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 17 km do<br />
seu percurso final. No entanto, estando<br />
ainda em curso os estudos especializados,<br />
não se conhece por ora o número <strong>de</strong>finitivo<br />
e total das gravuras que enriquecem o<br />
vale, calculadas já em vários milhares. É um<br />
cenário <strong>de</strong> fascínio da arte rupestre,<br />
«museu <strong>de</strong> história da arte ao ar livre<br />
como não há outro no mundo com esta<br />
profundida<strong>de</strong> temporal e on<strong>de</strong> é possível<br />
reconstituir toda a história da região a partir<br />
do comportamento artístico dos povos<br />
que a habitaram». São manifestações artísticas<br />
que atravessam diversas fases da Pré-<br />
-História e da História. Sinais <strong>de</strong> percursos<br />
cinegéticos, vitais para a sua sobrevivência,<br />
<strong>de</strong> estágios ou êxodos do Homem<br />
Paleolítico, elas parecem participar da<br />
natureza simbólica do próprio rio, configurando<br />
a seu modo a existência humana<br />
e o seu curso, com a sucessão dos seus<br />
eventos, sentimentos, intenções, temores e<br />
preitos. De algum modo, a flui<strong>de</strong>z das formas<br />
parece ter a ver com o fluir das águas,<br />
mas, por outro lado, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> marcar,<br />
in<strong>de</strong>levelmente, no Tempo que corre (entre<br />
a Vida e a Morte, como o rio entre a Nascente<br />
e a Foz) a presença do Homem vivo<br />
e universal.<br />
Subindo o rio até ao Douro, vão-se<br />
suce<strong>de</strong>ndo, quais «santuários» apelando a<br />
estudiosa romagem, os sítios da arte rupestre<br />
paleolítica: Faia, Quinta da Barca,<br />
Penascosa, Ribeira <strong>de</strong> Piscos, Vale <strong>de</strong> Figueira,<br />
Vale Vi<strong>de</strong>iro, Canada do Inferno,<br />
Canada do Amendoal e Vale dos Moinhos.<br />
Após a realização <strong>de</strong> trabalhos <strong>de</strong> prospecção<br />
com vista à localização <strong>de</strong> possíveis<br />
sítios <strong>de</strong> habitat humano contemporâneo<br />
das gravuras, chegou-se, em 1995, à i<strong>de</strong>ntificação<br />
dos primeiros sítios arqueológicos<br />
datados do Paleolítico Superior, revelando<br />
um <strong>de</strong>les uma ocupação <strong>de</strong> há cerca<br />
<strong>de</strong> 22 000 anos. A datação <strong>de</strong>ste enorme<br />
património artístico do vale do Côa pressupôs<br />
vários critérios e levou à constatação<br />
<strong>de</strong> que as gravuras foram executadas em<br />
diversas épocas, apresentando-se muitas<br />
vezes em configurações sobrepostas. A<br />
i<strong>de</strong>ntificação das espécies animais figuradas,<br />
como o cavalo, o auroque (antepassado<br />
dos nossos bois domésticos), a cabra<br />
montês e os veados, levou, por exemplo, à<br />
<strong>de</strong>terminação do Paleolítico Superior
(período entre 30 000 e 10 000 anos antes<br />
do presente em Portugal) como data para o<br />
núcleo da Ribeira <strong>de</strong> Piscos, mas, já com<br />
representações humanas estilizadas, serão<br />
datadas do Neolítico ou do Calcolítico as<br />
gravuras do núcleo da Faia, enquanto no<br />
núcleo <strong>de</strong> Orgal, além <strong>de</strong> gravuras <strong>de</strong>sta<br />
época, se <strong>de</strong>scobriram outras já da Ida<strong>de</strong><br />
do Ferro (meados do I milénio a.C.) representando<br />
guerreiros armados a cavalo.<br />
No entanto, parece ser o vale do Côa local<br />
privilegiado na arte da figuração rupestre,<br />
pois <strong>de</strong>la encontramos exemplos <strong>de</strong> representações<br />
religiosas e populares que<br />
quase tocam a actualida<strong>de</strong>, executadas<br />
entre o século XVII e a década <strong>de</strong> 50 do<br />
século passado.<br />
Fruto ou não da atracção do rio, o que<br />
é facto é que todos os conjuntos artísticos<br />
paleolíticos, até ao momento documentados,<br />
se situam nas vertentes viradas ao<br />
Côa (ou aos seus afluentes). É uma rarida<strong>de</strong><br />
sem paralelo na Pré-História recente e,<br />
se tal não for <strong>de</strong>vido apenas a factores rela-<br />
Vista geral do Vale do Côa (foto CNART), Instituto Português <strong>de</strong> Arqueologia<br />
cionados com diferentes condições <strong>de</strong> preservação,<br />
esta distribuição das gravuras<br />
po<strong>de</strong> ser interpretada como um <strong>de</strong>liberado<br />
e consciente comportamento focalizado no<br />
curso <strong>de</strong> água.<br />
Como se, na áspera ascese do seu percurso<br />
final, o rio assumisse o enigmático<br />
sentido da História e se constituísse sentinela<br />
perene <strong>de</strong> um património miraculosamente<br />
conservado a transmitir aos<br />
vindouros.<br />
Algo <strong>de</strong> quase místico, a que Nuno <strong>de</strong><br />
Montemor já fora sensível ao <strong>de</strong>screvê-lo<br />
no citado romance: «O ambiente majestoso<br />
e recolhido daquela paisagem religiosa,<br />
enquadrada por serras <strong>de</strong> pedregulhos<br />
soltos, eriçada, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> em on<strong>de</strong>, por<br />
altas colunas <strong>de</strong> montes, recorda[va] o<br />
recinto <strong>de</strong> imensa catedral <strong>de</strong>smoronada<br />
por cataclismo cósmico.»<br />
Mas é pacificado e generoso que o Côa<br />
se entrega, com o seu precioso tributo, ao<br />
«rio-do-oiro», para, nele transfigurado,<br />
atingir o seu <strong>de</strong>stino último: o mar.
BESTIÁRIO 84 85<br />
Do Macaco <strong>de</strong> Paimogo<br />
ao Mico-Leão-Dourado<br />
Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />
Macacos são personagens <strong>de</strong> romances, <strong>de</strong> contos, <strong>de</strong> lendas,<br />
<strong>de</strong> canções. De José <strong>de</strong> Alencar (O Guarany, 1857)<br />
a Mia Couto (“Fábula do macaco e do peixe”), passando<br />
por Castro Alves (A Cachoeira <strong>de</strong> Paulo Afonso, 1876),<br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (Macunaíma, 1928) ou Graça Aranha<br />
(A Viagem Maravilhosa, 1929), todos se <strong>de</strong>ixam fascinar<br />
pela figura do macaco, relevando-lhe qualida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> entretenimento, diversão e fantasia<br />
ou transmutando-os no papel dos homens.<br />
Alexandre Rodrigues Ferreira, «Guariba Vermelho», in Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuibá (1783-1792),<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Culturas, 1791
BESTIÁRIO<br />
86<br />
87<br />
Jamais se viram. E, provavelmente, nunca se<br />
encontrarão, a não ser pelas fímbrias do imaginário<br />
que povoam as cabeças dos humanói<strong>de</strong>s, seus<br />
primos mais próximos.<br />
Um é matéria rochosa e permanece há milénios<br />
a enfrentar o Oceano-Mar com seu ar <strong>de</strong> lonjura<br />
e altivez infinita. Vive, transformado em<br />
pedra, sentado nas areias da Lourinhã, ainda por<br />
ali habitavam Pterodáctilos e outras animálias<br />
semelhantes. O outro existe apenas na Mata<br />
<strong>Atlântica</strong> junto ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, do outro lado do<br />
mar. Ao contrário do gigante <strong>de</strong> Paimogo 1 , o mico-<br />
-leão-dourado é um pequeno e leve primata com<br />
pelagem da cor do fogo e uma juba à moda do rei<br />
da selva, a quem <strong>de</strong>ve a titulação. Ao sol, o pêlo<br />
brilha tão intensamente que parece saído do próprio<br />
astro para encantar companheiros <strong>de</strong> habitat e<br />
viajantes <strong>de</strong> toda a Orbe:<br />
Há também huns pequeninos pela costa <strong>de</strong> duas castas pouco<br />
mayores que doninhas, a que commumente chamam Sagoís, cõuen<br />
a saber,há huns louros & outros pardos.Os louros tem hum cabello<br />
muito fino, & na semelhança do vulto & feição do corpo quasi<br />
se querem parecer com lião: sam muito fermosos, e nam os há<br />
senam no rio <strong>de</strong> Janeiro. Os pardos se acham apraziueis: mas nam<br />
tam alegres á vista como estes. E assi huns como outros, sam tam<br />
mimosos & <strong>de</strong>licados <strong>de</strong> sua natureza,que como os tiram da patria<br />
& os embarcam pera este Reino, tanto que chegão a outros ares<br />
mais frios quasi todos morrem no mar, & nam escapa senam<br />
algum <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> maravilha.<br />
[Pêro Magalhães <strong>de</strong> Gândavo,História da América Portuguesa a que<br />
Vulgarmente se Chama Brasil, 1576]<br />
Popularmente, é conhecido como sauí, saguí,<br />
saguín, sagûi-piranga, sauí vermelho, mico, entre outras<br />
<strong>de</strong>signações e variantes dos macacos (estes também<br />
conhecidos por símios, bugios, ou cebí<strong>de</strong>os,<br />
no último caso, o palavrão com que baptizaram<br />
esses primatas antropói<strong>de</strong>s do Novo Mundo). Isto<br />
para não falarmos das famílias e das espécies,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as Callitricidae às Cebus apella macrocephalus ou às<br />
Cebus apella tocantinus.<br />
Saguins são bugios pequeninos mui felpudos e <strong>de</strong> cabelo<br />
macio, raiados <strong>de</strong> pardo e preto e branco; tem o rabo comprido e<br />
muita felpa no pescoço a qual trazem sempre arrepiada,e que os faz<br />
muito formosos (…).Do Rio <strong>de</strong> Janeiro vem outros saguins da feição<br />
<strong>de</strong>stes <strong>de</strong> cima [Bahia] que tem o pêlo amarelo muito macio,<br />
que cheiram muito bem; as quais e os <strong>de</strong> trás são mimosos e morrem<br />
em casa, <strong>de</strong> qualquer frio, e das aranhas.<br />
[Gabriel Soares <strong>de</strong> Sousa, Notícia do Brasil, 1587]<br />
Mas voltemos ao nosso Leontopithecus rosalia<br />
ou, mais propriamente, ao mico-leão-dourado<br />
que vive mansamente nas florestas, entre as bromélias<br />
e os cipós, comendo insectos, frutos, ovos<br />
e um ou outro pássaro ou lagarto mais <strong>de</strong>sprevenido<br />
(ninguém é perfeito, e nisto parecem-se<br />
com os mamíferos humanos, pois, como dizem<br />
os antigos, «não há bela sem senão». Especialmente<br />
os macacos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, como os<br />
chimpanzés, os gorilas e os orangotangos, acumulam<br />
tanto <strong>de</strong> beleza, como <strong>de</strong> pequenos <strong>de</strong>feitos,<br />
o que os aproxima dos homens, pois não é<br />
por acaso que se diz «errar é humano», e não<br />
«errar é animal». Perdoem-me os animais humanos,<br />
mas esta tribuna é pelos bichos «à séria»).<br />
Rezam as crónicas que estes micos são<br />
monogâmicos – coisa que eu não comento,<br />
pois não tenho nada a ver com a vida privada<br />
<strong>de</strong> cada um – e levam a paternida<strong>de</strong> muito a<br />
sério. O filhote recém-nascido passa os primeiros<br />
quatro dias pendurado no ventre materno,<br />
mas, passado esse período, é o pai que o transporta,<br />
limpa e penteia os seus pêlos sedosos,<br />
apenas o emprestando à mãe para a mamada,<br />
não se afastando do seu bebé nem durante essas<br />
ternuras maternais. Infelizmente, o nosso<br />
amigo mico-leão-dourado é uma das espécies<br />
em risco <strong>de</strong> extinção, assim como o seu<br />
«primo irmão», o mico-leão-<strong>de</strong>-cara-dourada<br />
(o Leontopithecus chrysomelas), que vive no Sul da<br />
Bahia, sujeitos à captura ilegal <strong>de</strong> inescrupulosos<br />
comerciantes e ao <strong>de</strong>smatamento do seu<br />
habitat. Pior é a situação do mico-leão-<strong>de</strong>-cara-<br />
-preta, <strong>de</strong>scoberto apenas em 1990 na Mata<br />
<strong>Atlântica</strong> do Estado do Paraná – um dos biomas<br />
brasileiros mais ricos em biodiversida<strong>de</strong>, mas<br />
também o mais ameaçado – e <strong>de</strong> que restam<br />
apenas trezentos indivíduos. Estes «caras pretas»<br />
são famosos pelos sons muito agudos que<br />
emitem para comunicarem entre si e pelo<br />
modo como se <strong>de</strong>slocam <strong>de</strong> galho em galho<br />
pendurando-se pela cauda dourada.<br />
Há muito que estes símios suscitam nos viajantes<br />
um gran<strong>de</strong> fascínio, sejam os macacos-<br />
-prego, muito generalizados em todas as florestas<br />
da América do Sul, os macacos-barrigudos da<br />
Colômbia, Peru e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da região<br />
amazónica e que se distinguem pela gran<strong>de</strong><br />
rapi<strong>de</strong>z e espectacularida<strong>de</strong> dos seus saltos, os<br />
macacos-aranha… enfim, uma quantida<strong>de</strong> infinita<br />
<strong>de</strong> bugios e similares, ou seja, uma interminável<br />
macacada:
Outras <strong>de</strong> animaes <strong>de</strong> caça, antas, veados, porcos monteses, &<br />
aquários, pacas, tatus, tamanduás, lebres, coelhos, & estes <strong>de</strong> 5 ou 6<br />
espécies. Outras <strong>de</strong> animaes <strong>de</strong> gosto, & recreação, monos, macacos,<br />
bugios, çaguíz, preguiças, cotias, & outras espécies sem conto.<br />
[Simão <strong>de</strong> Vasconcelos, Coisas do Brasil, 1663]<br />
Mas o que torna o macaco tão famoso e<br />
importante, tornando o seu uso indiscriminado e<br />
eterno? Agora até há o Macaco Photoblog, o<br />
Macaco M4 Robot Head, o Bio Macaco, o Macaco<br />
Capoeira, o Macaco Lyries, os Macaco banda<br />
musical...<br />
Há muito que as expressões populares promovem<br />
o bicho, mesmo que o simiesco politicamente<br />
correcto não esteja presente quando se<br />
manda a um hominí<strong>de</strong>o «pentear macacos»,<br />
sendo mais prazeiroso pôr «cada macaco no seu<br />
galho». Des<strong>de</strong> sempre se viu neste animal uma<br />
espécie <strong>de</strong> alter-ego do homem, usando-o para criticar<br />
o mundo às avessas, para relevar a infantilida<strong>de</strong><br />
perdida («são os animaes que mostrão mais<br />
instincto, pelos brincos, e acções que fazem»,<br />
Sebastião da Rocha Pita, História da América Portugueza,<br />
1730) ou para re<strong>de</strong>scobrir a alegria e a inocência<br />
(«alguns sam do tamanho <strong>de</strong> ratos, lindos, alegres,<br />
e estimados», Casal, Corografia Brazílica, 1817).<br />
Macacos são personagens <strong>de</strong> romances, <strong>de</strong><br />
contos, <strong>de</strong> lendas, <strong>de</strong> canções. De José <strong>de</strong> Alencar<br />
(O Guarany, 1857) a Mia Couto («Fábula do macaco<br />
e do peixe»), passando por Castro Alves (A Cachoeira<br />
<strong>de</strong> Paulo Afonso, 1876), Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
(Macunaíma, 1928) ou Graça Aranha (A Viagem<br />
Maravilhosa, 1929), todos se <strong>de</strong>ixam fascinar pela<br />
figura do macaco, relevando-lhe qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
entretenimento, diversão e fantasia, ou transmutando-os<br />
no papel dos homens («…enquanto A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong><br />
e Azevedo se entretinhão na frívola conversação que acabámos <strong>de</strong><br />
ouvir, os outros estudantes grimpavão pelos galhos da jaboticabeira<br />
como verda<strong>de</strong>iros saguis, e enchião a copa dos chapéos dos<br />
mais doces e sazonados fructos» [Bernardo Guimarães, Rozaura a<br />
Engeitada, 1883]).<br />
E que dizer do uso do termo «macaco» com<br />
conotações pouco abonatórias, carregadas <strong>de</strong> sentidos<br />
infelizes? O próprio José Lins do Rêgo, no<br />
seu Bangué, enuncia este aspecto na fala do seu<br />
personagem: «Veria meu avô os negros do engenho<br />
como bichos? Um saguim, um porco, um<br />
cachorro?» Ainda hoje é vulgar insultar alguém,<br />
apodando-o <strong>de</strong> «seu macaco», repreen<strong>de</strong>r uma<br />
criança com um «não faças macacadas», ou caluniar<br />
o semelhante com o piropo «macaquinho <strong>de</strong><br />
imitação». Afinal, os homens é que querem<br />
mesmo ser macacos. Não imagino tais aproximações<br />
por parte da macacada, nem eles querem<br />
saber do Darwin para nada.<br />
Pior, pior, para o prestígio do símio é quererem<br />
cortar-lhe o rabo para o tornarem «elegante e<br />
gracioso», à boa maneira humana: «Até lhe digo<br />
mais. Se não fosse o seu rabo comprido, que tanto o <strong>de</strong>sfeia, parecia<br />
tão homem como eu», como aconteceu na História do<br />
Macaco <strong>de</strong> Rabo Cortado, enganado com a conversa do<br />
barbeiro. Pior para este que ficou sem a navalha,<br />
mas ainda hoje me pergunto o que teria mesmo<br />
acontecido ao macaco e à sua viola… Terá mesmo<br />
dado um salto para Angola?<br />
Ou ficou empe<strong>de</strong>rnido nas escarpas rochosas<br />
<strong>de</strong> Paimogo, pelas bandas da Lourinhã, on<strong>de</strong> ainda<br />
espera que o seu gran<strong>de</strong> corpo ganhe coragem<br />
para atravessar o oceano? É que à sua espera está o<br />
pequeno mico-leão-dourado, «… nos galhos mais<br />
altos do landí, mal penteado e careteiro, fazendo gatimanhas,<br />
chiando e dando pinotes». (Guimarães Rosa, Sagarana, 1946)<br />
1 Uma jazida situada na praia <strong>de</strong> Paimogo, no concelho da Lourinhã, revelou vestígios <strong>de</strong><br />
uma centena <strong>de</strong> ovos <strong>de</strong> dinossáurios terópo<strong>de</strong>s do Jurássico Superior. É neste anciano<br />
contexto que se distingue o gran<strong>de</strong> afloramento rochoso que conflui no extremo sul<br />
<strong>de</strong>ssa praia, com a forma <strong>de</strong> uma gigantesca cabeça <strong>de</strong> macaco vigilante que mira o<br />
infinito – o Macaco <strong>de</strong> Paimogo.<br />
O mico-leão-dourado<br />
é um pequeno<br />
e leve primata<br />
com pelagem<br />
da cor do fogo<br />
e uma juba à moda<br />
do rei da selva.
Sabores perdidos<br />
Carmen Yáñez<br />
Natureza viva. Frida Khalo<br />
SABORES PRINCIPAIS 88 89<br />
E, no meu sonho, via a mesa repleta<br />
<strong>de</strong> frutos <strong>de</strong> verão: pêssegos amarelos<br />
e vermelhos, damascos, anonas, lúcumas,<br />
nêsperas, papaias, uvas, melões, melancias.
SABORES PRINCIPAIS 90<br />
91<br />
Cheguei a Estocolmo no dia 28 <strong>de</strong><br />
Agosto <strong>de</strong> 1981. Começava o frio Outono e<br />
a luz do dia ia-se retirando até se apagar<br />
quase por completo, como um prelúdio ao<br />
duro Inverno escandinavo.<br />
Tudo era novo, começava uma nova<br />
vida numa <strong>cultura</strong> totalmente <strong>de</strong>sconhecida<br />
para os meus sentidos.<br />
Neófita e analfabeta, percorria os supermercados<br />
e as lojas da cida<strong>de</strong> que me acolhera.<br />
Os meus olhos abriam-se, assombrados<br />
e curiosos, perante as montras e a<br />
exposição dos diversos artigos, suspeitosamente<br />
comestíveis, que ainda não tinham<br />
nome. Recordo uma família latino-americana<br />
que, entusiasticamente, contava ter<br />
<strong>de</strong>scoberto uma saborosa carne enlatada, a<br />
muito bom preço, da marca Kitekat. Os infelizes<br />
consumiam carne para gatos sem o<br />
saber!<br />
Com esta lamentável e vergonhosa<br />
experiência, redobrei o cuidado com as<br />
minhas compras. Consegui um dicionário<br />
sueco-espanhol, e assim começou o meu<br />
amaldiçoado processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong><br />
um idioma com nove vogais e consoantes<br />
impronunciáveis para as minhas cordas<br />
vocais.<br />
Pouco a pouco, fui-me habituando ao<br />
som e à melodia escandinavos. Mas o mais<br />
difícil foi o conhecimento e a adaptação<br />
das minhas papilas gustativas. Como apreciar<br />
umas sardinhas azuis e fritas com marmelada<br />
<strong>de</strong> arandanos 1 , ou um pudim <strong>de</strong><br />
sangre y dulce, acompanhados também <strong>de</strong><br />
marmelada e batatas cozidas, ou o suspeito<br />
arenque do Norte, fermentado em água e<br />
levedura, embalado em boiões, acompanhado<br />
com cerveja, vodca ou licor <strong>de</strong><br />
absinto, e comido no início da Prima-vera,<br />
sem a presença das crianças nos terraços ou<br />
jardins, porque cheira sempre a estrume?!<br />
Como não estranhar, nestas circunstâncias<br />
adversas – quase um atentado terrorista ao<br />
paladar –, os doces pêssegos amadurecidos<br />
pelo Sol e amontoados, todas as sextas-feiras<br />
pela manhã, no mercado <strong>de</strong> frutas e<br />
hortaliças do bairro popular <strong>de</strong> São<br />
Miguel?! Ou os tomates amadurecidos com<br />
a rama, com sabor a tomate, ou os figos a<br />
secarem numa gran<strong>de</strong> cesta <strong>de</strong> vime à espera<br />
do Inverno?!<br />
Recordo um sonho recorrente no meu<br />
exílio: regressava a casa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos<br />
anos, os meus pais tinham envelhecido,<br />
atravessava o guarda-vento ver<strong>de</strong> da porta<br />
principal da minha casa, caminhava pelo<br />
corredor estreito em direcção à cozinha<br />
on<strong>de</strong> havia sempre uma mesa gran<strong>de</strong> e<br />
generosa, as ca<strong>de</strong>iras colocadas para cada<br />
irmão e parentela adjacente, como uma tia<br />
solteirona que nunca soube a diferença<br />
entre o orégão e o orgasmo, mas que sabia<br />
<strong>de</strong> cor os poemas do romântico Becker.<br />
Voltava a cruzar o largo corredor, as portas<br />
<strong>de</strong> dois batentes dos quartos principais, até<br />
ao fundo, on<strong>de</strong> estavam a sala <strong>de</strong> jantar, no<br />
pátio interior, e a cozinha, <strong>de</strong>masiado<br />
pequena para dar <strong>de</strong> comer a tão numerosa<br />
família. E, no meu sonho, via a mesa repleta<br />
<strong>de</strong> frutos <strong>de</strong> Verão: pêssegos amarelos e<br />
vermelhos, damascos, anonas, lúcumas 2 ,<br />
nêsperas, papaias, uvas, melões, melancias.<br />
Ao <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses sonhos,<br />
levantava o meu corpo com esforço e dirigia-me<br />
à minha própria realida<strong>de</strong>, frente à<br />
janela, <strong>de</strong>scascando a ácida laranja universal<br />
como o meu <strong>de</strong>sencanto, enquanto<br />
caíam lentamente os flocos <strong>de</strong> neve, até<br />
formar uma camada <strong>de</strong> distância entre esse<br />
solo e o meu.<br />
Os sonhos são lampejos eléctricos,<br />
<strong>de</strong>sejos incrustados da nossa realida<strong>de</strong>. Era<br />
a minha lista <strong>de</strong> perdas que gotejava como<br />
uma chuva fina e refrescante. Suponho<br />
que, nessas circunstâncias <strong>de</strong> afastamento,<br />
sobredimensionava os afectos e fazia uma<br />
selecção aleatória das memórias. Só <strong>de</strong>ixava<br />
as passagens harmoniosas e benignas para<br />
me reconciliar com tanto sofrimento passado.<br />
A mesa repleta <strong>de</strong> frutos representava<br />
os meus pais, as suas ausências, o lamento<br />
que eu intuía <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a outra margem e o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sobreviver à separação que me<br />
era imposta.<br />
Na longa costa do meu país, abundam<br />
peixes e mariscos, saborosos e apreciados<br />
por isso. A sul, existe um mexilhão chamado<br />
«choro zapato», apelidado assim<br />
pelo seu tamanho gran<strong>de</strong>, como o <strong>de</strong> um<br />
sapato <strong>de</strong> um adulto. Em <strong>de</strong>terminada<br />
época do ano, a sua carne é suave como<br />
manteiga e costuma-se comê-lo cru com<br />
umas gotinhas <strong>de</strong> limão. Foi assim que o
saboreei na meridional<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Concepción<br />
e numa das suas<br />
praias, Dichato.<br />
Mais a sul, na ilha<br />
<strong>de</strong> Chiloé, costuma-se<br />
preparar o «curanto<br />
en olla» 3 ou, na sua<br />
versão <strong>de</strong>scomunal e<br />
chilena, num buraco<br />
cavado na praia. Previamente,<br />
aquecem-se<br />
pedras numa fogueira<br />
gigante e, quando chegam<br />
ao ponto <strong>de</strong> se<br />
partir, <strong>de</strong>positam-se no<br />
fundo do buraco e<br />
sobre elas colocam-se<br />
as carnes vermelhas e<br />
os cor<strong>de</strong>iros abertos,<br />
<strong>de</strong>pois as carnes brancas,<br />
porcos e aves, chouriços,<br />
todos os mariscos<br />
do frio Pacífico e,<br />
por fim, tudo é coberto<br />
com folhas <strong>de</strong><br />
«nalca» 4 e raízes <strong>de</strong><br />
pasto. A cozedura <strong>de</strong><br />
todos estes manjares<br />
leva uma hora e servem-se,<br />
<strong>de</strong>pois, acompanhados <strong>de</strong> um pão<br />
<strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> trigo e batatas chamado<br />
«milcao» e <strong>de</strong> outro chamado «chapalele»,<br />
à base <strong>de</strong> batatas, e a saborosa alga «cochayuyo».<br />
Serve-se com «chicha <strong>de</strong> manzanas»,<br />
uma versão austral da cidra.<br />
Esta comida do Sul está ligada a um<br />
esforço solidário <strong>de</strong> trabalho partilhado,<br />
costumam fazê-lo durante as colheitas ou a<br />
construção <strong>de</strong> uma casa. Esta reunião<br />
<strong>de</strong>signa-se «la Minga» 5 e nela participa<br />
muita gente durante todo o dia.<br />
Costumo ter em algum canto da<br />
minha cozinha um almofariz <strong>de</strong> mármore<br />
on<strong>de</strong> macero com paciência o «cacho <strong>de</strong><br />
cabra», um «ají» 6 vermelho-escuro e seco<br />
que um amigo e compatriota livreiro, que<br />
vive na Suíça, me envia sempre. Deixo por<br />
vários dias o «ají cacho <strong>de</strong> cabra» (chama-se<br />
assim pela sua forma comprida como um<br />
cone), com azeite puro, vinagre e alho. Este<br />
«ají», proveniente do Norte do Chile, acom-<br />
Passaram muitos anos<br />
e, no meu afã<br />
<strong>de</strong> me adaptar<br />
a cada lugar<br />
on<strong>de</strong> me coube viver,<br />
só levo comigo<br />
os sabores perdidos,<br />
como o sabor e o aroma<br />
do cominho, o coentro<br />
e o manjericão.<br />
panha as carnes e as<br />
minhas nostalgias. É um<br />
ingrediente imprescindível<br />
em todas as cozinhas<br />
chilenas: com o<br />
«ají» moído e seco prepara-se<br />
o «pebre», num<br />
molho picante, com<br />
alho, coentro e salsa,<br />
também para acompanhar<br />
as carnes, as batatas,<br />
as beringelas e<br />
acrescentando-lhe<br />
tomates pelados e cortados<br />
aos bocados ou<br />
moídos, mais um fio <strong>de</strong><br />
água da fonte, tem o<br />
nome <strong>de</strong> «chancho en<br />
piedra». De qualquer<br />
modo, nós, os nostálgicos,<br />
«<strong>de</strong>senrascamo-nos»<br />
sempre, para obter os<br />
nossos produtos da<br />
terra distante.<br />
Passaram muitos<br />
anos e, no meu afã <strong>de</strong><br />
me adaptar a cada<br />
lugar on<strong>de</strong> me coube<br />
viver, só levo comigo<br />
os sabores perdidos,<br />
como o sabor e o aroma do cominho, do<br />
coentro e do manjericão, três cheiros que<br />
inundavam a cozinha e as mãos da minha<br />
avó, quando cozinhava almôn<strong>de</strong>gas em<br />
caldo <strong>de</strong> verduras frescas e pés <strong>de</strong> porco na<br />
panela, como encontrei também agradáveis<br />
semelhanças na cozinha do Norte do<br />
mundo – almôn<strong>de</strong>gas acompanhadas <strong>de</strong><br />
batatas e um molho à base <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong><br />
trigo, leite e nata («Köttbullar»).<br />
Por amor à vida, juntei as duas extremida<strong>de</strong>s<br />
da Terra para me sentar à mesa<br />
apátrida, resgatando com ternura rebel<strong>de</strong><br />
os ternos e rebel<strong>de</strong>s sabores perdidos.<br />
1 Fruto da planta ericácea<br />
chamada erva-do-monte.<br />
(N. da T.)<br />
2 Fruto do tamanho <strong>de</strong> uma<br />
maçã pequena, proveniente<br />
<strong>de</strong> uma árvore existente no<br />
Chile e no Peru, da família<br />
das sapotáceas. (N. da T.)<br />
3 Prato que se serve na<br />
Argentina e no Chile,<br />
à base <strong>de</strong> legumes, marisco<br />
ou carne, cozido sobre<br />
pedras muito quentes,<br />
num buraco que se cobre<br />
com folhas. (N. da T.)<br />
4 No Chile, <strong>de</strong>signa o pecíolo<br />
do «pangue», planta<br />
medicinal usada também<br />
em curtumes. (N. da T.)<br />
5 Termo utilizado na Argentina,<br />
Chile, Colômbia, Equador,<br />
Paraguai e Peru para<br />
<strong>de</strong>signar uma reunião<br />
<strong>de</strong> amigos e vizinhos com<br />
o propósito <strong>de</strong> realizar<br />
algum trabalho gratuito<br />
em comum. O mesmo termo<br />
também se utiliza em<br />
referência a um trabalho<br />
agrícola colectivo e gratuito<br />
com fins sociais. (N. da T.)<br />
6 Pimento picante chileno.<br />
(N. da T.)
ESTÁDIO DE SÍTIO 92<br />
Quando o futebol era magia<br />
Alberto Mosquera Moquillaza<br />
Ao contrário do que possam pensar os a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> futebol <strong>de</strong> hoje,<br />
houve um tempo em que os magos <strong>de</strong>ixavam o fraque<br />
e a cartola, se vestiam <strong>de</strong> calções e iam para o relvado,<br />
93<br />
como qualquer mortal, tirar coelhos, pombas, panos multicolores,<br />
serpentinas, e vá-se lá saber que outras coisas mais, enquanto<br />
as multidões, <strong>de</strong> pé, se divertiam e a bola, como dizia o poeta,<br />
ria e cantava, bem aninhada nos pés <strong>de</strong>sses malabaristas da bola.<br />
Barro <strong>de</strong> Zé Caboclo, <strong>de</strong> Pernambuco, Brasil
Há que acariciar a redondinha, dar-lhe ritmo<br />
<strong>de</strong> samba, candombe, milonga, ou marinera<br />
para que ela se ajuste ao que o ilusionista <strong>de</strong>seja.
ESTÁDIO DE SÍTIO 94<br />
«La pelota<br />
ríe y canta!<br />
¡La pelota<br />
zumba y vuela!» 1<br />
Juan Parra <strong>de</strong>l Riego 2<br />
95<br />
Isabelino Gradín 3 , um negro<br />
<strong>de</strong> ascendência africana, possivelmente<br />
congolês, angolano<br />
ou, porventura, mandinga, foi<br />
um <strong>de</strong>sses primeiros magos.<br />
Bastou que se aproximasse dos<br />
marinheiros ingleses que levaram<br />
o futebol a Montevi<strong>de</strong>u<br />
para, com os seus feitiços, se<br />
apropriar do ir e vir da bola e,<br />
<strong>de</strong>pois, ao ritmo dos endiabrados<br />
tambores do candombe,<br />
<strong>de</strong>spedaçar as cinturas dos seus<br />
adversários brancos.<br />
Ágil,<br />
sagaz,<br />
veloz,<br />
eléctrico,<br />
repentino,<br />
fulminante<br />
Este é Gradín aos olhos do<br />
surpreendido Parra <strong>de</strong>l Riego.<br />
Negro víbora que <strong>de</strong>saparece por<br />
momentos: esquiva-se, curva-se,<br />
flutua, para voltar a sair com a<br />
bola, e lá vai o fulgurante espadachim.<br />
E vai um, e vão dois, e vão<br />
três, quatro, cinco, sete jogadores<br />
estoqueados para, finalmente,<br />
chutar a bola com o pé, a alma, o<br />
peito, com a vida inteira, para<br />
que <strong>de</strong>scanse no fundo da re<strong>de</strong>.<br />
Gradín!, Gradín!, Gradín!,<br />
gritava o soberano, enquanto o<br />
mago, sorri<strong>de</strong>nte e prazenteiro,<br />
se dispunha a mostrar novos sortilégios:<br />
<strong>de</strong>ixou as cartas, agora<br />
tira os lenços…<br />
Senhores, é chegada a hora<br />
do hipnotismo. Ninguém melhor<br />
nesses momentos <strong>de</strong> transe que o<br />
peruano José María Lavalle. Nada<br />
por aqui, nada por lá. E ali está a<br />
bola: acaricia-a, beija-a, namora-a,<br />
uma finta, uma evasiva, sempre à<br />
margem direita, sempre à beira<br />
da linha <strong>de</strong> cal, lenço branco<br />
alçado e chuta! Ali vai o nené,<br />
cantando e rindo, prazenteiro<br />
pelo trato, à procura <strong>de</strong> outros<br />
malabaristas que o continuem a<br />
mimar; ou, se o mago assim o<br />
dispôs, directo, a colocar-se no<br />
fundo das re<strong>de</strong>s.<br />
Porque, isso sim, os magos<br />
nunca tratam a bola aos pontapés<br />
já que a diversão não passa pelo<br />
pontapé ardiloso. Há que acariciar<br />
a redondinha, dar-lhe ritmo <strong>de</strong><br />
samba, candombe, milonga 4 ,ou<br />
marinera 5 para que ela se ajuste ao<br />
que o ilusionista <strong>de</strong>seja. Recordam-se<br />
<strong>de</strong> Didi e sua folha seca?<br />
A bola ia on<strong>de</strong> esse negro admirável<br />
queria que fosse. Se não acreditam<br />
em mim, perguntem a Dom<br />
Rafael Asca, o guarda-re<strong>de</strong>s peruano<br />
que, em Abril <strong>de</strong> 1957, só<br />
conseguiu ver a trajectória <strong>de</strong> uma<br />
bola que foi colar-se exactamente<br />
no ângulo inalcançável da sua<br />
baliza, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um raro efeito<br />
em pleno voo. O Peru inteiro<br />
emu<strong>de</strong>ceu. Morriam as ilusões do<br />
Mundial da Suécia, mas o próprio<br />
Maracanã também se calou <strong>de</strong><br />
espanto. «É coisa <strong>de</strong> bruxas», disse<br />
um a<strong>de</strong>pto, estupefacto.<br />
O próprio Waldir Pereira <strong>de</strong>u<br />
uma explicação para esse estranho<br />
idílio com a bola: «Se alguém não<br />
a trata com carinho, ela não obe<strong>de</strong>ce…<br />
Às vezes ela ia por aí e eu:<br />
“vem filhota”, e trazia-a. Dava-<br />
-lhe <strong>de</strong> calcanhar, <strong>de</strong> joanete e ela<br />
estava ali, obediente.»<br />
No entanto, não se pense<br />
que os magos só marcavam<br />
golos, também os evitavam, plantados<br />
sob as traves da baliza, sempre<br />
prontos a voar mesmo não<br />
tendo asas, a transformar os seus<br />
corpos em muralhas ou a converter<br />
as suas mãos em pinças. Nem<br />
o ar conseguia penetrar nas suas<br />
barreiras.<br />
O húngaro Franz Platko 6 foi<br />
um <strong>de</strong>sses ilusionistas. Rafael<br />
Alberti, o saudoso poeta espanhol,<br />
fala <strong>de</strong>le:
Nadie se olvida, Platko,<br />
no, nadie, nadie, nadie<br />
oso rubio <strong>de</strong> Hungría<br />
Ni el mar,<br />
que frente a ti saltaba<br />
sin po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rte<br />
Ni la lluvia. Ni el viento,<br />
que era el que más regía<br />
Alberti escreveu esta o<strong>de</strong> a<br />
Platko após uma memorável partida<br />
entre bascos e catalães. Nesse<br />
dia, o guarda-re<strong>de</strong>s foi uma verda<strong>de</strong>ira<br />
muralha humana, um<br />
pára-raios, um polvo <strong>de</strong> mil tentáculos,<br />
um touro disposto a <strong>de</strong>ixar-se<br />
matar, mas não disposto a<br />
ver vencida a sua cerca. Em cima,<br />
em baixo, à direita, à esquerda,<br />
em todos os sítios estava Platko. E,<br />
mesmo sem sentidos, com a<br />
cabeça exausta, simulou, para não<br />
<strong>de</strong>ixar a bola na posse <strong>de</strong> ninguém,<br />
apertada como estava nos<br />
seus braços.<br />
A lista dos mágicos guarda-<br />
-re<strong>de</strong>s não é pequena. Ricardo<br />
Zamora, o «Divino», e Lev Yashin,<br />
a «aranha negra», são os primeiros<br />
da lista. E, no Peru, Juan Valdivieso,<br />
o inesquecível «Mago»,<br />
integra a história como o «genial<br />
pára-penalties» que num instante,<br />
em segundos, com a bola dominada<br />
entre as suas mãos, convertia<br />
a tristeza em alegria transbor-<br />
1 Texto lido no encontro <strong>de</strong> narradores e poetas organizado<br />
pela revista Ciberayllu, 9 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 2005,<br />
na Casa <strong>de</strong> Mariátegui, em Lima.<br />
2 Poeta peruano que nasceu em Huancayo, em 1984,<br />
e morreu em Montevi<strong>de</strong>u, em 1925. Foi o criador do<br />
poli-ritmo, um canto dinâmico à vida. A epígrafe<br />
correspon<strong>de</strong> à sua «Loa al fútbol», inicialmente publicada<br />
como «Elogio lírico <strong>de</strong>l football», enquanto o seu canto a<br />
Gradín tem o título <strong>de</strong> «Polirritmo dinâmico a Gradín,<br />
jugador <strong>de</strong> fútbol». Ambos os trabalhos foram publicados<br />
na Antologia General <strong>de</strong> la Poesia Peruana, <strong>de</strong><br />
Alejandro Romualdo e Sebastián Salazar Bondy (1957).<br />
dante. Só com o olhar intimidava<br />
o atacante. Y a gozar se há dicho señores!<br />
Porque o futebol é antes <strong>de</strong><br />
tudo festa e diversão. Assim o<br />
sentiam os prestidigitadores da<br />
bola, assim o celebravam freneticamente<br />
as bancadas. Uma, duas,<br />
três evasivas, e aí vai a velha,<br />
como no bilhar, <strong>de</strong> um lado ao<br />
outro. E chegam os toques <strong>de</strong><br />
salão, o drible ziguezagueante pela<br />
direita, pela esquerda, o chapéu<br />
presunçoso, o túnel liquidador, o<br />
sonho do tacão, a majestosa chalaça.<br />
Um verda<strong>de</strong>iro trabalho <strong>de</strong><br />
joalharia. Aplausos, senhores, já<br />
aí vem o golo e, se não vem, que<br />
importa! A vista arregalou-se, a<br />
alegria transbordou e o estádio<br />
veio abaixo com a paixão <strong>de</strong>scontrolada<br />
da torcida.<br />
Quem não se <strong>de</strong>leitou com o<br />
trio Sotil-Perico-Cubillas, no<br />
Mundial <strong>de</strong> 70, no encontro com<br />
os seus pares brasileiros? Quem<br />
não recorda esse negrito vaidoso,<br />
Victor «Pitín» Zegarra, que,<br />
perante 40 mil almas, fazia o que<br />
queria com a bola? Ou, só para<br />
citar mais um nome, não nos<br />
inva<strong>de</strong> a nostalgia quando recordamos<br />
um Miguelito Loayza,<br />
borboleta <strong>de</strong> Surquillo, que com<br />
os seus truques e piruetas fez o<br />
que quis com os argentinos, brasileiros<br />
e uruguaios no Sul-Americano<br />
<strong>de</strong> 1959, para <strong>de</strong>pois, já<br />
3 Isabelino Gradín nasceu em Montevi<strong>de</strong>u a 8 <strong>de</strong> Julho<br />
<strong>de</strong> 1897 e faleceu a 21 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1944. Foi um<br />
extraordinário jogador <strong>de</strong> futebol e o atleta mais rápido<br />
da América do Sul. Entre 1915 e 1921, jogou no Peñarol<br />
e, durante a primeira edição da Copa América,<br />
em 1916, na Argentina, foi um dos artífices das vitórias<br />
uruguaias que permitiriam a este país conquistar o título.<br />
Retirado do futebol, chegou a ser campeão<br />
da América do Sul dos 200 e 400 metros planos.<br />
4 Composição musical argentina <strong>de</strong> ritmo vivo e marcado<br />
em compasso <strong>de</strong> dois por quatro, que se parece<br />
com o tango. (N. da T.)<br />
em Lima, dar aos fleumáticos<br />
ingleses o baile das suas vidas?!<br />
Lamentavelmente, esse futebol<br />
praticamente já não existe. O<br />
«turbocapitalismo» dos nossos<br />
dias, que arrasa tudo, está a liquidá-lo.<br />
Os magos, com o seu fraque<br />
e cartola, foram esquecidos no<br />
banco. Aos negociantes da bola só<br />
interessam os resultados e não a<br />
magia, ou a diversão libertária.<br />
Agora procuram-se atletas, velocistas,<br />
sem imaginação nem verso,<br />
mas prontos a tatuarem o corpo e<br />
a encherem as orelhas <strong>de</strong> argolas.<br />
Metrossexuais são apelidados por<br />
uns, galácticos por outros. Quem<br />
sofre é a branca e negra que, <strong>de</strong><br />
pontapé em pontapé, já não ri<br />
nem canta e, quiçá, agora chora à<br />
espera <strong>de</strong> melhores dias.<br />
Mas nem tudo está perdido. Já<br />
o disse Jorge Valdano: o futebol<br />
tem algo <strong>de</strong> erva daninha, porque<br />
sempre sobrevive a tudo. Amantes<br />
do futebol <strong>de</strong> todo o mundo, uni-<br />
-vos! Para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a arte e a paixão<br />
pelo futebol, a sua magia, a sua<br />
beleza, a sua alegria. Que não nos<br />
tirem as ruas, que não nos arrebatem<br />
os <strong>de</strong>scampados, que nos <strong>de</strong>ixem<br />
os terrenos baldios livres,<br />
porque aí, no meio das rosas e dos<br />
cravos, das hortênsias e das flores<br />
<strong>de</strong> açafrão, aí, meus senhores, florescerá<br />
o futebol dos bons.<br />
Punta Piedra,Agosto <strong>de</strong> 2005<br />
5 Dança popular do Chile, do Peru e do Equador. (N. da T.)<br />
6 Nasceu na Hungria em 1898 e morreu em Santiago do Chile<br />
em 1982. Após ser titular indiscutível no Barcelona, em<br />
Espanha, dirigiu a mesma equipa, para <strong>de</strong>pois assumir as<br />
funções <strong>de</strong> treinador nos clubes sul-americanos <strong>de</strong> Colo Colo,<br />
River Plate, Wan<strong>de</strong>rers e Boca Juniors. O jogo que comoveu<br />
Rafael Alberti ocorreu a 20 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1928, on<strong>de</strong> o Barcelona<br />
enfrentou a Real Sociedad para a Taça <strong>de</strong> Espanha.
ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 96<br />
Portugueses nos An<strong>de</strong>s<br />
peruanos ou o mistério<br />
da Boca Mina<br />
<strong>de</strong> Pilipinto<br />
Osvaldo Henrique Urbano<br />
97<br />
A uns 30 quilómetros a oeste da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cuzco,<br />
antiga capital do império incaico, está Pillpinto,<br />
junto às margens do rio Apurimác. É uma povoação<br />
com umas mil e tal almas, sem muito espaço para<br />
alargar as suas estreitas fronteiras, <strong>de</strong>finidas por<br />
altas montanhas e majestosos cumes <strong>de</strong> rocha viva.<br />
As águas do rio abriram aí uma profunda garganta<br />
para <strong>de</strong>slizarem alegremente em direcção à<br />
Amazónia, entre três mil e dois mil e quinhentos<br />
metros <strong>de</strong> altura. O sol é ar<strong>de</strong>nte, e da vegetação<br />
abundante das margens do rio saem milhares<br />
<strong>de</strong> borboletas <strong>de</strong> todas as cores e feitios. Pillpinto<br />
é uma palavra quechúa que significa «borboleta».<br />
An<strong>de</strong>s peruanos. Fotografia <strong>de</strong> João Ventura
ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 98<br />
99<br />
Aí cheguei eu um dia qualquer <strong>de</strong> 1972. Ia por<br />
incas. Fui guiado por um boato. Dizia-se em Cuzco<br />
que os pillpis eram portugueses. E a estranha notícia<br />
estava documentada, não com papéis mas com<br />
abundantes palavras. Por esses anos, a viagem <strong>de</strong><br />
Cuzco a Pillpinto <strong>de</strong>morava oito horas. O autocarro<br />
era pequeno e saía da Praça Limacpampa Gran<strong>de</strong>, às<br />
sete da manhã. Já por alturas da ponte <strong>de</strong> Quiquijana,<br />
subia para as lagoas <strong>de</strong> Pomacanchi para <strong>de</strong>scer<br />
até às paragens <strong>de</strong> Acomayo, as dos moinhos <strong>de</strong> Escalante.<br />
Um salto mais e estávamos em Acos e imediatamente<br />
<strong>de</strong>scia a estrada em ziguezague até às margens<br />
do Apurimác. Lá bem em baixo estavam as<br />
águas que se fingiam paradas e a ponte e as areias<br />
finas das margens e a roupa lavada e a gente.<br />
E a notícia correu em quechúa:<br />
«Chegou o nosso primo <strong>de</strong> Lisboa.»<br />
Apresentei-me ao presi<strong>de</strong>nte da junta <strong>de</strong> freguesia.<br />
«Português?» , «Pois sim...» « Nasceu aqui?» «Não,<br />
em Portugal»... E a notícia correu em quechúa:<br />
«Chegou o nosso primo <strong>de</strong> Lisboa.» O mistério que<br />
ro<strong>de</strong>ava a origem da população não tinha, à primeira<br />
vista, uma solução fácil.A traça era a mais comum<br />
e corrente. A fala era quechúa. E o trato era afável.<br />
Desconfiado mas afável. Do português, nem sombras.<br />
E quanto mais eu cavilava sobre o assunto, em<br />
noite <strong>de</strong> altura <strong>de</strong> frio e geada, com um fundo<br />
musical que vinha das gargantas profundas do Apurimác<br />
– «O senhor falador» –, mais me convencia<br />
que havia aí uma misteriosa coincidência <strong>de</strong> «ditos<br />
e feitos».Vamos aos primeiros.<br />
Se a memória não me atraiçoa, foi no mercado<br />
<strong>de</strong> São Pedro, em Cuzco, que ouvi falar <strong>de</strong> Pillpinto.<br />
Mas já nessa altura me tinham dito que por aí havia<br />
«malta lusa». Depois soube porquê. Era uma velha<br />
tradição ir ao mercado <strong>de</strong> São Pedro comprar folha<br />
<strong>de</strong> coca quando uma arroba não valia gran<strong>de</strong> coisa<br />
– os colombianos ainda não tinham <strong>de</strong>scoberto o<br />
negócio... – e eram precisamente os pillpis que a<br />
comercializavam, ou por dinheiro ou por «troco»,<br />
isto é, por outro produto. E, como era coisa nova<br />
para mim ver comprar e mastigar essa «divina<br />
folha» – a Virgem Maria <strong>de</strong>scansava <strong>de</strong> suas mágoas<br />
trincando a folha <strong>de</strong> coca, diz a lenda –, averiguei<br />
quem a vendia e, como toda a gente faz, comprei<br />
meio quilo para aquecer as frias noites cusquenhas.<br />
Remédio santo!<br />
Feitas as primeiras averiguações, contaram-me<br />
os próprios fregueses que era uma antiga tradição<br />
dos pillpis negociar produtos na região, cobrindo<br />
longas rotas altiplânicas e <strong>de</strong>scendo até às terras<br />
quentes <strong>de</strong> Urubamba e Quilhabamba, on<strong>de</strong> se<br />
abasteciam <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> coca e a transportavam para<br />
os mercados <strong>de</strong> Cuzco e arredores.Tudo isso se fazia<br />
com mulas, com numerosas récuas e dilatados dias<br />
<strong>de</strong> trabalho. Para os vales cálidos levavam carne seca<br />
– o famoso charqui – e aí trocavam a carne por<br />
coca. Eram meses <strong>de</strong> caminhar sem <strong>de</strong>scanso, até<br />
que os trabalhos agrícolas e a festa patronal exigiam<br />
a presença dos caminhantes na al<strong>de</strong>ia. Julho e Agosto<br />
eram obrigatórios. 15 <strong>de</strong> Agosto era a festa da<br />
Nossa Senhora da Assunção. Procissões, missas, baptizados,<br />
matrimónios e muita cerveja e abundante<br />
chicha, a bebida <strong>de</strong> milho fermentado. Com tudo<br />
isso não avançava muito na pesquisa dos rasgos<br />
lusos <strong>de</strong> Pillpinto. A paisagem humana da povoação<br />
mudou com os festejos. Mas o mistério da sua origem<br />
continuava imutável.<br />
O assunto moía-me a cabeça. E <strong>de</strong>cidi entrar<br />
em zonas <strong>de</strong> alfarrábios para <strong>de</strong>svendar o que a<br />
palavra popular escondia. O Arquivo Departamental<br />
<strong>de</strong> Cuzco guardava papéis sobre Pillpinto: transacções<br />
comerciais, proprieda<strong>de</strong>s e umas quantas rixas<br />
legais.Também <strong>de</strong>scobri que a povoação tinha participado<br />
activamente nas revoltas <strong>de</strong> Túpac Amaru,<br />
apoiando os rebel<strong>de</strong>s contra o regime espanhol.<br />
Vencidos os indígenas, executado o chefe, as autorida<strong>de</strong>s<br />
espanholas enviaram a Pillpinto um braço do<br />
infeliz caudilho para que todos soubessem como se<br />
castigam as massas revoltosas. Não foi por serem<br />
portugueses. Os motivos eram outros, e as raízes<br />
<strong>de</strong>les vinham talvez da vizinhança <strong>de</strong> Acos on<strong>de</strong><br />
pontificava a cacique Micaela Bastidas, companheira<br />
<strong>de</strong> infortúnio <strong>de</strong> Túpac Amaru.
Sem saber on<strong>de</strong> encontrar a chave do mistério<br />
das origens <strong>de</strong> Pillpinto, a paciência e a vida bucólica<br />
iriam, pouco a pouco, dar conta dos «ditos» e<br />
passar aos «feitos». E, como acontece em muitos<br />
casos, o azar acabou por <strong>de</strong>sempenhar um papel<br />
importante. Passava eu as horas a recolher notas<br />
sobre usos e costumes <strong>de</strong> Pillpinto, indagando sobre<br />
os lugares e nomes que os <strong>de</strong>signavam, com a i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> que as pedras e caminhos escondiam feitos que<br />
os olhos esqueceram. E nessas tar<strong>de</strong>s perdidas <strong>de</strong><br />
Primavera mediterrânica, em direcção do caminho<br />
que ia para o santuário do Senhor <strong>de</strong> Pampacucho,<br />
na antiga estrada ou carreiro <strong>de</strong> pedras que ligava<br />
Pillpinto a Rondocan e Paruro, <strong>de</strong>tectei uma caverna<br />
cuja abertura tinha jeitos <strong>de</strong> ter funcionado como<br />
boca mina. A palavra popular confirmou-me essa<br />
hipótese. Umas historiazinhas relacionadas com<br />
esse lugar contavam que a mina escondia lobisomens<br />
e outras nefastas espécies <strong>de</strong> personagens nocturnos.Tomei-as<br />
a sério.<br />
Os argumentos po<strong>de</strong>m resumir-se em umas<br />
quantas frases. Primo: os fantasmas que povoavam as<br />
mentes dos pillpis – lobisomens ou duen<strong>de</strong>s – pertencem<br />
a uma raça imaginária que atormenta os<br />
povos obcecados com a chegada <strong>de</strong> pestes, fomes e<br />
<strong>de</strong>sgraças. E, claro, alguém tem <strong>de</strong> pagar por isso.<br />
Ora, precisamente houve certos grupos <strong>de</strong> excluídos<br />
pela socieda<strong>de</strong> cristã que serviram <strong>de</strong> bo<strong>de</strong><br />
expiatório, entre eles os ju<strong>de</strong>us. Secundo: nos An<strong>de</strong>s e<br />
em zonas afastadas dos centros urbanos, houve<br />
uma gran<strong>de</strong> febre mineira que teve como protagonistas<br />
algumas figuras portuguesas que assinalaram<br />
com notável ousadia a busca da prata e o tratamento<br />
<strong>de</strong>la com mercúrio. E os ju<strong>de</strong>us portugueses<br />
estavam bem metidos nesse negócio peruano e<br />
andino. Tertio: e, vai daí, as povoações que num<br />
dado momento intentaram a sorte escavando as<br />
entranhas da serrania assumiam a crença popular<br />
que as i<strong>de</strong>ntificavam como portuguesas. «Mina»,<br />
«mineiro», «prata», «banqueiro» eram palavras<br />
que os séculos XVI e XVII associavam no Peru a<br />
«português». E os ju<strong>de</strong>us ou judaizantes pagaram<br />
caro por isso. Muitos foram parar aos calabouços da<br />
Inquisição e <strong>de</strong>pois à fogueira ritual. E <strong>de</strong> tudo isso<br />
dá ainda conta a palavra popular em forma <strong>de</strong><br />
mistério.<br />
«Mina», «mineiro»,<br />
«prata», «banqueiro»<br />
eram palavras<br />
que os séculos XVI e XVII<br />
associavam no Peru<br />
a «português».<br />
Quechúas. Fotografia <strong>de</strong> João Ventura.<br />
Dizia-se em Cuzco<br />
que os pillpis<br />
eram portugueses.
O QUE FAÇO EU AQUI 100 101<br />
Magical Realism – 101<br />
Onésimo Teotónio <strong>de</strong> Almeida
Em português eu <strong>de</strong>veria escrever «Introdução<br />
ao Realismo Mágico», ou «Realismo Mágico<br />
– I», mais ajustado aos hábitos universitários<br />
lusitanos, mas a verda<strong>de</strong> é que todos estes anos <strong>de</strong><br />
América acabam por cobrar o seu imposto no meu<br />
linguajar. E <strong>de</strong> facto é por estas terras <strong>de</strong> Colombo<br />
que amiú<strong>de</strong> <strong>de</strong> mais tenho encontrado <strong>de</strong>scrições<br />
<strong>de</strong> cursos sobre a tal indústria cunhada no título<br />
<strong>de</strong>sta narrativa, anunciando análises em ladainha<br />
laudatória dos seus pergaminhos inovadores na<br />
literatura com imaginative flights of fancy, o conceito<br />
mítico <strong>de</strong> tempo, a visão animista e vitalista, a simbiose<br />
natural-sobrenatural imano-transcen<strong>de</strong>nte, a<br />
osmose humano-telúrica, o hiperbólico e o<br />
monumental. Como se isso não bastasse, ainda há<br />
a flui<strong>de</strong>z ontológica, o méta-récit, a técnica <strong>de</strong> evasão<br />
semântica e a reticência autoral, a convenção<br />
trans<strong>cultura</strong>da, noções místicas <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> e<br />
essa lengalenga toda a evocar em mim um poeta<br />
guatemalteco hoje <strong>de</strong> nome morto na minha<br />
memória mas que nos meus anos juvenis, via<br />
Livraria Morais, no Largo do Pica<strong>de</strong>iro, 11, em Lisboa,<br />
atravessou o mar e me foi ter às ilhas, um engagé<br />
que bordoava nos intelectuais alienados, a alturas<br />
tantas <strong>de</strong>sancando em verso nos filósofos con su<br />
ontológica manera <strong>de</strong> llegar a las monedas. Estou a ser cruel,<br />
pe<strong>de</strong>stre mesmo, como se a <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar o real<br />
maravilhoso <strong>de</strong> Carpentier, a esquizofrenia <strong>cultura</strong>l<br />
em Miguel Ángel Asturias, o jogo mágico com<br />
o impossível <strong>de</strong> tantos outros autores, para não<br />
falar da etnografia imaginária do omnipresente<br />
García Márquez, en<strong>de</strong>usado esse em coro universal<br />
por o elemento fantástico na sua obra não ser nem<br />
obtrusive nem gratuitous, mas enriching, supporting and<br />
enhancing da narrativa. Em Macondo, um cadáver<br />
incorrupto, o padre que levita, a jovem que sobe<br />
ao céu, o bebé que nasce com cola <strong>de</strong> cerdo, que a<br />
gente diria rabo <strong>de</strong> porco, alfombras que voam,<br />
mortos que ressuscitam, e até chuvas <strong>de</strong> flores,<br />
mexeram com o mundo inteiro nos meus vinte e<br />
tantos anos, mas buliram pouco com a minha<br />
obtusa cabeça <strong>de</strong> basalto. A verda<strong>de</strong> é que nasci<br />
empírico e gostei cedo da repetida frase <strong>de</strong> um<br />
professor <strong>de</strong> música (sim, por incrível que pareça<br />
aprendi, ou melhor, tentaram ensinar-me): As couves<br />
nascem do chão! Nunca fui dado a arroubos teóricos<br />
e interesso-me sobretudo por coisas visíveis e<br />
palpáveis, como o aluno <strong>de</strong> medicina que só gostava<br />
<strong>de</strong> estudar anatomia pelo método <strong>de</strong> Braille.<br />
Quando viajei por Hegel, num curso por acaso<br />
optativo, <strong>de</strong>liciei-me interiormente no instante<br />
em que o Andy, conhecedor do <strong>de</strong>sdém que o filó-<br />
sofo nutria pelos factos (a ponto <strong>de</strong> um dia, confrontado<br />
com um naco <strong>de</strong>les, ter dito arrogantemente<br />
Não me importam os factos!), não se conteve a<br />
meio <strong>de</strong> uma prelecção do professor lançado estratosfera<br />
fora em <strong>de</strong>vaneio <strong>de</strong>lirante e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />
esperado ansiosamente por um parágrafo, pois nas<br />
aulas nos States fica muito mal interromper-se<br />
alguém, professor ou aluno, tanto faz, <strong>de</strong>sferiu:<br />
Faça, por favor, um intervalinho para eu estragar essas teorias<br />
com um simples punhado <strong>de</strong> factos.<br />
Quando a gente é como a terra <strong>de</strong>u, nada a<br />
fazer. Por isso me <strong>de</strong>sculpe o leitor este arrazoado<br />
rasteiro que em nada belisca a honra, fama e glória<br />
<strong>de</strong> escritores que, felizmente para a humanida<strong>de</strong>,<br />
nasceram <strong>de</strong> outra estirpe e são por isso capazes<br />
<strong>de</strong> rasgos que transportam os seus leitores para<br />
fora <strong>de</strong>ste mundo mesquinho, chato e patusco<br />
on<strong>de</strong> só acontecem coisas previsíveis como a<br />
morte, as doenças, o casamento, a febre e a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> limpar o quarto. Ah! E os impostos,<br />
como nos lembraria Woody Allen. Se estava o amável<br />
leitor indignado comigo, fique sabendo que<br />
não procuro impor o meu gosto, naturalmente ou<br />
pela natura carimbado, largando-me por aí fora a<br />
aferir tudo o mais por ele. O acima dito teve apenas<br />
a intenção não consciente, e por sinal oriunda<br />
mesmo do quase-acaso, <strong>de</strong> lhe expressar sentimentos<br />
antigos como quem se confessa a um<br />
amigo que espero o leitor seja.<br />
A que vem então este maçudo e inoportuno<br />
prefácio?<br />
Estou a ser cruel, pe<strong>de</strong>stre<br />
mesmo, como se a <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar<br />
o real maravilhoso <strong>de</strong> Carpentier,<br />
a esquizofrenia <strong>cultura</strong>l em Miguel<br />
Ángel Asturias, o jogo mágico<br />
com o impossível <strong>de</strong> tantos outros<br />
autores, para não falar da<br />
etnografia imaginária do<br />
omnipresente García Márquez.
O QUE FAÇO EU AQUI 102<br />
103<br />
Foi com efeito um quase-acaso<br />
a levar-me à Colômbia,<br />
mais precisamente a uma<br />
cida<strong>de</strong>zinha dona do mais<br />
bonito nome <strong>de</strong> lugar –<br />
Cartagena <strong>de</strong> Indias – se for<br />
pronunciado <strong>de</strong>vidamente na<br />
língua e sotaque das nativas.<br />
Já lá vou, sim, que é tempo. Falei em «quaseacaso»<br />
e foi com efeito um quase-acaso a levar-me<br />
à Colômbia, mais precisamente a uma cida<strong>de</strong>zinha<br />
dona do mais bonito nome <strong>de</strong> lugar – Cartagena<br />
<strong>de</strong> Indias –, se for pronunciado <strong>de</strong>vidamente na<br />
língua e sotaque das nativas (bom, Madalena do<br />
Mar não lhe fica atrás, mas aqui para a estória <strong>de</strong>ixemos<br />
que fique). Estava <strong>de</strong>crépita a cida<strong>de</strong> naqueles<br />
anos, como uma mulher que após a sua ida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ouro <strong>de</strong>soladamente passou a <strong>de</strong>scuidar a apresentação<br />
e se habituou mesmo a nem sequer se<br />
pentear. Um banhinho pela Páscoa da Ressurreição<br />
era tudo. As fachadas da arquitectura davam testemunho<br />
<strong>de</strong> anos áureos mas longínquos. Todavia,<br />
mesmo naquele abandono ainda se podia imaginar<br />
assomando às varandas súbditos <strong>de</strong> sua majesta<strong>de</strong><br />
imperial D. Filipe, o Gran<strong>de</strong>, que ali mandou<br />
construir um castelo bem mais imponente do que<br />
o também por sua or<strong>de</strong>m erguido em Angra, esse<br />
palmilhado por mim em antigos anos.<br />
Igualmente por quase acaso, soube ficar Aracataca,<br />
terra natal <strong>de</strong> García Márquez, para lá <strong>de</strong><br />
Barranquilla, esta por sua vez a não exagerados<br />
quilómetros <strong>de</strong> Cartagena. E isso ajudava, aliás, a<br />
cimentar as minhas convicções sobre o irrealismo<br />
do realismo mágico porque, se Macondo não existe<br />
mais, como nos informa o final <strong>de</strong> Cien Años <strong>de</strong><br />
Soledad, e a sua gente não teve outra oportunida<strong>de</strong><br />
sobre a terra, Cartagena <strong>de</strong> Indias, por sua vez, exibia<br />
uma sólida realida<strong>de</strong> que tinha mais a ver com<br />
Lisboa e o Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> antanho do que com<br />
as invenções da tremenda broma literaria <strong>de</strong> García Már-<br />
quez. O terceiro e último quase-acaso aconteceu<br />
dias antes <strong>de</strong> viajar para Cartagena com a chegada<br />
do então mais recente livro do gran<strong>de</strong> Gabi, Crónica<br />
<strong>de</strong> una Muerte Anunciada, remetida por um livreiro<br />
amigo em viagem pela América Latina, entusiasmado<br />
com a edição <strong>de</strong> 800 000 exemplares largamente<br />
publicitada no seu lançamento. Decidi por<br />
isso levá-lo comigo para companheiro <strong>de</strong> praia e<br />
estendi-me, à letra, a lê-lo na areia por trás do<br />
Hotel Las Velas. A verda<strong>de</strong> é que a leitura foi um<br />
acto mecânico quase, porque anunciada estava na<br />
minha mente a ausência <strong>de</strong> entusiasmo por ela. Se<br />
calhar um círculo vicioso, mas dos meus preconceitos<br />
e <strong>de</strong>feitos pré-avisei o leitor.Três quase-acasos,<br />
portanto, trinda<strong>de</strong> nada <strong>de</strong>spicienda mesmo<br />
para quem como eu não é supersticioso.<br />
A Joanne aceitou <strong>de</strong> bom grado a sugestão <strong>de</strong><br />
irmos a Barranquilla e, <strong>de</strong> lá, a Aracataca. O problema<br />
era o transporte. Comigo ficava a incumbência<br />
<strong>de</strong> discernir uma solução através <strong>de</strong> contactos com<br />
os locais. Veio auspiciosa: um taxista levar-nos-ia à<br />
cida<strong>de</strong> por um preço bem módico e trar-nos-ia <strong>de</strong><br />
volta pelo anoitecer. Foi portanto assim, segundo o<br />
plano anunciado <strong>de</strong> véspera, que começou no dia<br />
seguinte o que venho contar neste relato.<br />
Não caí na patetice <strong>de</strong> falar ao taxista em realismo<br />
mágico. Que mais não fosse, por uma razão<br />
vital: ele entendia com lapsos graves o meu portunhol<br />
silabado e eu quase apenas lhe lia os gestos<br />
das mãos. Com o rodar do carro e dos minutos, foi<br />
aumentando o número <strong>de</strong> sons e palavras <strong>de</strong>cifráveis,<br />
mas nunca cheguei muito longe nesse trabalho<br />
insano. De qualquer modo, a meia hora <strong>de</strong> viagem<br />
ele conseguiu transmitir-nos um plano muito<br />
superior ao <strong>de</strong> Barranquilla on<strong>de</strong>, segundo ele (e<br />
os taxistas sabem sempre tudo), não havia nada<br />
melhor do que Cartagena – esa sí, una bella ciudad! – e<br />
on<strong>de</strong> nem sequer se <strong>de</strong>svendam quaisquer rastos<br />
<strong>de</strong> García Márquez. Prometia levar-nos ao início <strong>de</strong><br />
uma floresta tão fascinante como a Amazónia – no<br />
mínimo!, garantia-nos – mas se calhar mesmo<br />
melhor. Desviou o curso, meteu-se por estradas<br />
ainda mais esburacadas e, a dada altura, parou o<br />
carro, inspeccionou as redon<strong>de</strong>zas e, ao regressar,<br />
enrolou um amontoado <strong>de</strong> frases aparentemente<br />
explicando que a estrada se lhe <strong>de</strong>parara inesperadamente<br />
intransitável, mas não valia a pena <strong>de</strong>sistir<br />
do projecto se não nos importássemos <strong>de</strong> ir<br />
pela praia. Eu ainda barafustei que o Amazonas em<br />
nada se parecia com o mar Caribe e que o seu prometido<br />
sósia não po<strong>de</strong>ria ficar naquela direcção. A<br />
verda<strong>de</strong> é que, sem mapa, não tinha argumentos,
tanto mais que não sabia on<strong>de</strong> estava, condição sine<br />
qua non para, se tivesse mapa, discernir para que<br />
banda virá-lo.Assim, fiquei ali mais a Joanne totalmente<br />
à mercê do nosso taxista. Que não mentiu,<br />
pois <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> algum tempo <strong>de</strong>saguava no areal<br />
imenso <strong>de</strong> uma praia a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista. ¡Mira, señor,<br />
mucho mejor, mucho mejor! Sim, o piso não tinha buracos<br />
e nem sequer havia tráfego. Tínhamos aquela<br />
pista enorme toda por nossa conta, o que, retrospectivamente<br />
falando, dá para pensar em coisas<br />
ruins que na altura não nos ocorreram. De Amazónia<br />
ou algo semelhante, todavia, nicles.<br />
O homem não parava <strong>de</strong> elogiar o piso do<br />
areal duro e liso a ponto <strong>de</strong> lhe permitir acelerar.<br />
Depois <strong>de</strong> uns avantajados quilómetros virou para<br />
a esquerda e meteu <strong>de</strong> novo terra <strong>de</strong>ntro por mais<br />
atalhos e curvas, canadas a a<strong>de</strong>nsarem-se e a<br />
<strong>de</strong>sembocarem em espesso mato ver<strong>de</strong>.A Joanne e<br />
eu entreolhámo-nos. O taxista era franzino e exalava<br />
uma bonomia inassociável à personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
cultivador <strong>de</strong> artes marciais. Fisicamente não constituía<br />
ameaça. Além disso, ele sabia que o dinheiro<br />
que levávamos era quase só o estritamente necessário<br />
para lhe pagarmos a viagem. Um assalto não<br />
lhe obteria qualquer mais-valia <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar.<br />
Um solavanco e o carro estancou. Bonito serviço!<br />
– pensei. Mas nem tive tempo <strong>de</strong> dizer nada<br />
porque o condutor exibia-nos um sorriso eufórico:<br />
¡Llegamos! E eu <strong>de</strong> novo a pensar: Aon<strong>de</strong>?<br />
Um moço negro, estátua grega em versão africana,<br />
veio abrir-nos a porta. Alto, proporcionado,<br />
musculoso, não sorria. Conversou com o taxista e<br />
<strong>de</strong>u para <strong>de</strong>cifrar que combinavam uma hora para<br />
este último nos vir buscar. Agora tínhamos <strong>de</strong><br />
seguir a pé o nosso guia umas centenas <strong>de</strong> metros,<br />
por supostamente ser impossível o carro continuar.<br />
Lá fomos então os dois, sem comunicar um<br />
ao outro a apreensão que começava a assaltar-nos.<br />
Estupi<strong>de</strong>z ingénua <strong>de</strong> turistas parvinhos, ou<br />
receios irrealistas <strong>de</strong> americanizados medrosos das<br />
<strong>cultura</strong>s estranhas? O melhor era silenciar as dúvidas<br />
e abafar os medos.<br />
A verda<strong>de</strong> é que, não galgado ainda um quilómetro<br />
<strong>de</strong> atalho mal calcorreado entre intenso<br />
arvoredo com abertas ao alto aqui e ali, arribámos<br />
a uma corrente <strong>de</strong> água, meio estagnada e salpicada<br />
<strong>de</strong> folhas e raízes, diga-se porém que <strong>de</strong> um<br />
ver<strong>de</strong> límpido. Uma aberta <strong>de</strong> céu soalheiro mas<br />
filtrado pela grelha <strong>de</strong> neblina cinzenta. O rapaz<br />
mandou-nos saltar. Para on<strong>de</strong>? Estava ali um barco e<br />
eu não via. Eu disse um barco? Nada! Uma canoa.<br />
Cavada num tronco negro com espaço para o guia,<br />
em pé, a Joanne sentada no meio a fazer lastro e eu<br />
atrás, <strong>de</strong> plantão também, num tem-te-não-caias.<br />
Iniciámos uma viagem entra canal sai canal, penetrando<br />
mais e mais a floresta, por vezes a ter<br />
mesmo <strong>de</strong> me baixar para não bater com a cabeça<br />
ou até o peito contra grossos ramos atravessados<br />
que o nosso condutor evitava com naturalida<strong>de</strong><br />
congénita e a mim quase me colhiam <strong>de</strong> surpresa,<br />
em risco sério <strong>de</strong> me fazerem cair e – quem sabe?<br />
– servir <strong>de</strong> almoço a algum crocodilo.<br />
A serenida<strong>de</strong> da água e do ar era apenas perturbada<br />
pelo ritmo da vara à procura do fundo do<br />
canal para impulsionar o avanço da embarcação<br />
que aquele gondoleiro trasladado fazia <strong>de</strong>slizar.<br />
Tudo o mais era ruído suave <strong>de</strong> folhagem, gorjeios<br />
<strong>de</strong> aves sem nome, saltos inesperados <strong>de</strong> sapos ou<br />
familiares seus, patos bravos <strong>de</strong> repente em <strong>de</strong>bandada,<br />
bandos <strong>de</strong> pássaros esvoaçando em espessas<br />
nuvens, aves, peixes, árvores, fauna e flora anónimos<br />
para mim, irreconhecíveis no meu catálogo<br />
ilhéu feito vulgar <strong>de</strong> Lineu on<strong>de</strong> nada existia <strong>de</strong><br />
tropical figura. Tudo uma sucessão <strong>de</strong> telas, cores,<br />
arvoredo sem etiqueta numa espécie <strong>de</strong> documentário<br />
da National Geographic em versão muda.<br />
O guia não explicava nicles, nem falava sequer.<br />
Nada tinha ali nome, apenas imagem. Eram aves e<br />
peixes, árvores como na narrativa do Génesis nos<br />
dias da criação. Ele ia concentrado lá na proa e<br />
nem sei se se preocupava se ainda estávamos a<br />
bordo ou se caíramos à água. Talvez a sua atenção<br />
se concentrasse a vigiar jacarés ou, sei lá, parentes<br />
Igualmente por quase acaso<br />
soube ficar Aracataca,<br />
terra natal <strong>de</strong> García<br />
Márquez, para lá<br />
<strong>de</strong> Barranquilla, esta por<br />
sua vez a não exagerados<br />
quilómetros <strong>de</strong> Cartagena.
O QUE FAÇO EU AQUI 104<br />
105<br />
Prometia levar-nos<br />
ao início <strong>de</strong> uma floresta<br />
tão fascinante como<br />
a Amazónia – no mínimo!,<br />
garantia-nos – mas se calhar<br />
mesmo melhor.<br />
<strong>de</strong> hipopótamos para se precaver a si e aos anónimos<br />
passageiros à sua responsabilida<strong>de</strong>. Múmia<br />
egípcia, espécie <strong>de</strong> um livremente-con<strong>de</strong>nado-à-<br />
-canoa a fazê-la vogar, em ritmo compassado, num<br />
intrigante e misterioso silêncio.<br />
Juro que cheguei a avistar ao longe cabeças<br />
bem <strong>de</strong>finidas <strong>de</strong> bichos semelhantes a hipopótamos,<br />
que <strong>de</strong>pois, numa espécie da síndroma <strong>de</strong><br />
Sancho Panza, sempre se transmutavam, como se<br />
fossem <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> Escher, em troncos <strong>de</strong> árvore<br />
ou pedregulhos que o timoneiro contornava com<br />
perícia. O matagal ver<strong>de</strong> a<strong>de</strong>nsava-se, um túnel por<br />
vezes escuro avivava os ruídos <strong>de</strong> viventes nas<br />
águas mais e mais impenetráveis à luz, e eu suspeitava<br />
<strong>de</strong> espíritos do outro mundo a escon<strong>de</strong>rem-se<br />
naqueles entrelaçados ramos e raízes, troncos<br />
e folhedo, e passeando-se certamente durante<br />
as noites. O certo é que abundavam por ali borboletas<br />
semelhantes às feiticeiras dos meus Açores,<br />
esvoaçando sobre nós e salpicando <strong>de</strong> furtivas<br />
cores as margens dos canais.<br />
De súbito, o guia volta-se e diz que temos <strong>de</strong><br />
saltar. Pensei, mas não me autorizei o pensamento<br />
e por isso não o revelo. Apenas obe<strong>de</strong>ci, mais a<br />
Joanne, enquanto ele agarrava da canoa para a pôr<br />
às costas e <strong>de</strong>pois, à Hércules, com os dois braços<br />
soerguê-la à altura da cabeça. Subiu um penedo e<br />
<strong>de</strong>sceu <strong>de</strong> novo para o canal que, ao final <strong>de</strong> contas,<br />
continuava mais adiante, chamando-nos para<br />
embarcar <strong>de</strong> novo e prosseguir viagem.<br />
O guia quase-mudo falou então: No tienen hambre?<br />
Pensei nos milagres que iria ele fazer. Agarrar<br />
<strong>de</strong> um peixe e oferecê-lo cru, cortar raízes e, <strong>de</strong><br />
mistura com folhas, presentear-nos com uma salada?<br />
Mas o seu plano era outro.A mãe tinha um restaurante<br />
e po<strong>de</strong>ríamos lá ir comer por uma magra<br />
quantia. Novo assentimento da parte dos seus<br />
pouco exigentes passageiros. Dali a um naco <strong>de</strong><br />
tempo <strong>de</strong>saguávamos num areal imenso, com o<br />
mar longe, como longe estava eu <strong>de</strong> saber se aquela<br />
tinha sido a nossa auto-estrada <strong>de</strong> horas antes.<br />
O cenário acinzentara-se. Não chovia, mas abundavam<br />
sinais <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>sabado muita água dos céus.<br />
Não diria que chovera durante quatro anos e seis<br />
meses, como em Macondo, mas o céu era na verda<strong>de</strong><br />
una substancia gelatinosa y gris e no ar pairava una<br />
humedad caliente y pastosa. Na distância da orla havia<br />
sinais <strong>de</strong> barcos e, nas bandas para on<strong>de</strong> nos encaminhava<br />
o moço, leves sinais <strong>de</strong> habitações que, à<br />
medida que nos aproximávamos, se revelavam<br />
simples caramanchões urdidos <strong>de</strong> troncos e<br />
ramos. De <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses emergiu uma<br />
negra corpulenta, fresca e saudável com quem o<br />
guia trocou conversa – <strong>de</strong>duzimos que seria a mãe<br />
– antes <strong>de</strong> se encaminhar na direcção <strong>de</strong> um dos<br />
barcos. A mulher sem nome (Úrsula? Não sei;<br />
tudo prossegue, aliás, sem nome nesta estória,<br />
nesse mundo on<strong>de</strong> havíamos aos poucos entrado<br />
muchas cosas carecían <strong>de</strong> nombre y para mencionarlas había que<br />
señalarlas con el <strong>de</strong>do) chamou precisamente com o<br />
<strong>de</strong>do um garotito, negro também, que num ápice<br />
produziu dois caixotes usados, em obediência ao<br />
sinal <strong>de</strong> Úrsula, para nos sentarmos junto a tosca<br />
mesa <strong>de</strong> canas amarradas sobre um grosso tronco,<br />
enquanto ela ia <strong>de</strong>ntro e regressava com um facalhão<br />
luzidio e um molho <strong>de</strong> tubérculos e outros<br />
vegetais que mergulhou e retirou no mesmo instante<br />
num tanque <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíram a pingar. Ficámos<br />
ali a observar a laboriosida<strong>de</strong> daquela mulher<br />
activa,a menudo severa naquele paraíso <strong>de</strong> humedad y silencio<br />
anterior al pecado original, espacio <strong>de</strong> soledad y <strong>de</strong> olvido. Ela<br />
<strong>de</strong>scascou, <strong>de</strong>cepou, truncou com energia e foi<br />
enchendo dois pratos, mas logo <strong>de</strong>sapareceu e <strong>de</strong><br />
novo voltou com uma vassoura e começou barriendo<br />
la casa, voltou a sumir-se y volvió a hundirse en el trabajo,<br />
<strong>de</strong>sculpe, leitor, lá me distraía <strong>de</strong> novo pois<br />
não sei quem me traz este castelhanar ao ecrã.<br />
Interroguei-me, sempre sem dizer nada à Joanne,<br />
que me censurava qualquer reparo etnocêntrico,<br />
europeu ou americano, será que este é el único rincón<br />
<strong>de</strong> seguridad establecido por los pacíficos negros antillanos que<br />
construyeron una calle marginal (sim, calle era mesmo<br />
aquela praia, se eu até viajara nela <strong>de</strong> táxi) e que<br />
falavam un farrogoso papiamento? Em papiamento parecia
comunicar o filho, nosso guia (José Arcadio?), que<br />
voltava com um garoto, carregando dois enormes<br />
peixes que entregou à mãe, logo por sua vez lançada<br />
na azáfama <strong>de</strong> os governar e trucidar, acen<strong>de</strong>r<br />
uma fogueira num canto e colocá-los numa grelha.<br />
Eis senão quando o grunhir <strong>de</strong> porcos nos fez<br />
voltar as cabeças e vimos entrarem no nosso espaço<br />
(recinto não era, dada a ausência <strong>de</strong> divisões),<br />
cauda a abanar, encaminhando-se direitinhos para<br />
os restos <strong>de</strong> tubérculos que Úrsula-talvez cortara.<br />
José Arcadio (ou seria José Gabriel, o único que<br />
ficou em Macondo?) <strong>de</strong>u or<strong>de</strong>ns a uma jovem que<br />
passara ao lado, e daba instrucciones para la siembra y consejos<br />
para la crianza <strong>de</strong> niños y animales – <strong>de</strong>sculpe mais<br />
uma vez, benévolo leitor, estes <strong>de</strong>scontrolados tropeços<br />
nas páginas <strong>de</strong> Cien Años <strong>de</strong> Soledad, queria eu<br />
dizer, importunos para a boa marcha da narrativa<br />
<strong>de</strong>sse almoço frugal e bucólico.<br />
Mãe Úrsula produziu diante <strong>de</strong> nós dois<br />
colossais pratos <strong>de</strong> vegetais, sobretudo tubérculos,<br />
<strong>de</strong> que consegui distinguir uma espécie <strong>de</strong> pepino,<br />
coco com arroz e frijoles. No centro <strong>de</strong> cada, um<br />
garboso peixe (mojarra? sábalo?) barrado <strong>de</strong> apetite.<br />
O meu, <strong>de</strong> olhos fixos em mim e a querer falar<br />
papiamento também, os porcos já ao nosso lado<br />
rondando a mesa à espera das espinhas e eu a servir-lhes<br />
<strong>de</strong> bom grado a cabeça e o rabo, e o porco<br />
maior a dar à cauda feliz, bem educado, quase a<br />
pedir licença ou a <strong>de</strong>sculpar-se <strong>de</strong> qualquer gesto<br />
mais <strong>de</strong>satinado, a salivar os beiços como se a<br />
limpá-los antes da refeição, e a Úrsula-talvez com<br />
uma enorme familiarida<strong>de</strong> abrindo caminho entre<br />
aquela vara para nos vir perguntar se <strong>de</strong>sejávamos<br />
mais alguma coisa; ¡No, muchas gracias! e ela <strong>de</strong> volta<br />
a fazer carícias ao porco maior e eu, sem querer,<br />
juro que sem querer, olhei para o garoto a ver se<br />
tinha cola <strong>de</strong> cerdo, mas também confesso que nada<br />
vislumbrei. Mãe Úrsula sempre num vaivém azafamado<br />
e eu a querer meter conversa, que Macondo<br />
parecia un pueblo feliz e ela que en Macondo no ha pasado<br />
nada, ni está pasando nada ni pasará nunca e lengalengou<br />
coisas que não entendi bem mas que traduzi mais<br />
ou menos por hay mucho que cocinar, mucho que barrer,<br />
mucho que sufrir por pequeñeces. Lá me distraí <strong>de</strong> novo,<br />
meu querido leitor, e compreen<strong>de</strong>rei se <strong>de</strong> fúria<br />
não mais me perdoar ainda esta falha, mas juro<br />
que não voltará a acontecer nova mezcla <strong>de</strong> castelhano<br />
na nossa puríssima língua que comungamos.<br />
O resto foi assim, tudo naquele mistério <strong>de</strong><br />
lugar, <strong>de</strong> gente, sem nome e sem nada, apenas com<br />
uma gran<strong>de</strong> paz para os olhos e para as almas dos<br />
viajantes que nós éramos naquele outro mundo.<br />
Só <strong>de</strong>pois, já em casa, a minha curiosida<strong>de</strong> botânica<br />
foi suspeitar nomes colados a figuras e palpitou<br />
termos provavelmente comido patacones,yuca,berenjena<br />
e talvez rábano, mas não juro nem por nada <strong>de</strong>ste<br />
mundo ter acertado num sequer <strong>de</strong>sses vegetais<br />
tornados iguarias.<br />
Chegou o momento da torna (não houve<br />
pagamento, eram contas com o filho), a entrega<br />
certinha <strong>de</strong>ste vosso criado e narrador mais a Joanne<br />
no final da tar<strong>de</strong> ao taxista, que nos esperava <strong>de</strong><br />
regresso daquele além ignoto, tendo agora com<br />
uma preocupação no rosto explicado assim: a<br />
maré estava cheia e ia ser complicado regressar<br />
pela praia, no entanto tinha <strong>de</strong> ser por não existir<br />
melhor alternativa. Lá entrámos no carro-anfíbio<br />
para seguirmos em avanços e recuos, esperando o<br />
retrocesso das ondas para <strong>de</strong> novo avançar uns<br />
metros mais, e sempre nesse pára-avança-pára-<br />
-avança a fazer-me duvidar se os buracos da estrada<br />
estariam assim tão medonhos a ponto <strong>de</strong> tornarem<br />
mais seguro viajar num quase submarino. Uma<br />
onda maior <strong>de</strong>u um safanão no carro e sentimos o<br />
fresco da água nas pernas e o sorver da onda sugadora<br />
a querer arrastar-nos consigo.<br />
Era noite quando chegámos a Cartagena e, à<br />
entrada do hotel, enquanto pagávamos ao nosso<br />
taxista arquitecto <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>svio não anunciado <strong>de</strong><br />
Barranquila para Macondo, eu ia já contando tudo<br />
a um casal americano que conhecêramos dias<br />
antes mas não se atrevera a juntar-se-nos naquela<br />
Eram aves e peixes,<br />
árvores como na narrativa<br />
do Génesis<br />
nos dias da criação.
O QUE FAÇO EU AQUI 106<br />
107<br />
En Macondo<br />
no ha pasado nada,<br />
ni está pasando nada<br />
ni pasará nunca.<br />
aventura pelo incógnito. Suspeitei então logo ali<br />
que estariam a <strong>de</strong>screr do que nos acontecera porque<br />
vi, sobretudo nele, o Jack, sinais <strong>de</strong> cepticismo.<br />
Mas aceitou escutar o relato narrado com<br />
minúcia, embevecimento e élan. Foi a Joanne quem<br />
lhe ouviu em aparte comentar cepticamente para a<br />
companheira nunca ter ido nisso <strong>de</strong> literatura fantasiosa,<br />
nem mágica, nem fantástica, recusando-se<br />
mesmo a ler um badaladíssimo best-seller em tradução<br />
inglesa <strong>de</strong> latino-americano García-Qualquer-<br />
-Coisa que uma literatonta ex-namorada lhe tentara<br />
impingir.<br />
Hoje reconheço bem a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> García<br />
Márquez em se fazer acreditar. De Macondo, disse<br />
ele, não restou ninguém, talvez só o Gabriel, que<br />
eu suspeito fosse o moço da canoa. O namoro com<br />
a Joanne acabou e ela acusa-me agora <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios<br />
ficcionais, e ficou-me com tanta raiva por ninharias<br />
que se entrepõem nas vidas <strong>de</strong> um par <strong>de</strong><br />
amantes (ninharias que estragam tudo, sobretudo<br />
a alegria das esperadas noites) que, se o leitor porventura<br />
a encontrasse e tentasse indagar da veracida<strong>de</strong><br />
da minha estória, ela teria estômago para lhe<br />
mentir com uma cara tão serena e séria que nem<br />
daria para levantar ponta <strong>de</strong> dúvida sobre a sua<br />
palavra. Po<strong>de</strong>ria sugerir-lhe, mui estimado leitor,<br />
que contactasse o Jack e a Ann – era assim que se<br />
chamava a namorada <strong>de</strong>le, se ainda não lho revelei<br />
– que ao menos ouviram o meu relato no fresquinho<br />
do acontecer. A verda<strong>de</strong> é que – e aposto que<br />
vai com esta convencer-se mesmo <strong>de</strong> que estou a<br />
lançar-lhe patranhas – perdi o contacto com eles e<br />
não lhes <strong>de</strong>scortino o para<strong>de</strong>iro.<br />
A história com o Jack é simples e conta-se em<br />
poucos minutos, se o leitor os tem ainda antes <strong>de</strong><br />
fechar o livro e atirá-lo para um canto com o seu<br />
<strong>de</strong>sencanto. O Jack e a Ann nunca tinham saído dos<br />
States. Calhara por sorte agarrarem como nós <strong>de</strong><br />
uma pechincha em forma <strong>de</strong> pacote <strong>de</strong> férias. Até<br />
ficaram toda a semana no hotel porque não falavam<br />
espanhol, e havia piscina e praia com tudo servido<br />
nas travessas em inglês. O Jack revelou-me uma<br />
manhã ao pequeno-almoço estar fascinado com a<br />
nunca vista generosida<strong>de</strong> do hotel que lhe enchia<br />
todos os dias o bar no frigorífico do quarto. Dezenas<br />
<strong>de</strong> pequenas garrafas das mais variadas bebidas<br />
que ele não conseguia consumir completamente e<br />
por isso ia empacotando para levar <strong>de</strong> regresso.<br />
Expliquei-lhe que receberia a conta por tudo, mas<br />
ele recusou acreditar-me porque não tinha pedido<br />
nada e nada estava no contrato. Que não pagaria<br />
pelo que não solicitara. Eu ainda tentei insistir mas<br />
só quando à saída o presentearam com uma brutal<br />
<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> 550 dólares <strong>de</strong> bar, do que fui testemunha<br />
porque estava na fila à espera <strong>de</strong> vez para o<br />
check out, é que ele me <strong>de</strong>u furiosamente razão. Barafustou<br />
sem qualquer efeito e, <strong>de</strong>sesperado, esvaziou<br />
sobre o balcão a lancheira das garrafas que<br />
não tinha conseguido consumir ainda.<br />
Naquele mesmíssimo momento eu tive uma<br />
i<strong>de</strong>ia perversa. Fui lesto ao quarto (o leitor aguente<br />
um pouquinho mais que verá aon<strong>de</strong> tudo isto vai dar<br />
e, sobretudo, enten<strong>de</strong>rá as razões da minha perda <strong>de</strong><br />
contacto com o Jack) e agarrei <strong>de</strong> uma folha <strong>de</strong> papel<br />
timbrado do hotel que arrumei na mala.<br />
Já <strong>de</strong> casa, umas semanas <strong>de</strong>pois, escrevi ao<br />
Jack (tínhamos os quatro trocado en<strong>de</strong>reços)<br />
dando os parabéns ao casal por ter ganho o prémio<br />
<strong>de</strong> O Melhor Cliente do Hotel Las Velas, graças ao<br />
seu consumo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros campeões do bar.<br />
O prémio seria uma semana <strong>de</strong> hospedagem grátis<br />
quando voltassem a Cartagena.Terminava com mil<br />
agra<strong>de</strong>cimentos, mais parabéns, e a assinatura <strong>de</strong> El<br />
Gerente, para servirlo,Andrés Nacimiento Martínez.<br />
Carta direitinha para o correio, rumo a algures<br />
nas montanhas da Pennsylvania e, em poucos dias,<br />
eis o Jack a telefonar-me eufórico com a notícia da<br />
reviravolta naquela estória <strong>de</strong> provinciano papalvo<br />
que terminara afinal em azul e ouro. Era tão generosa<br />
a oferta do hotel que a Ann e ele queriam<br />
absolutamente aproveitá-la muito em breve, até<br />
porque tinham adorado a Colômbia, quer dizer, o<br />
circuito fechado do Las Velas. Acossou-me o receio<br />
<strong>de</strong> eles irem mesmo.Vai eu enchi-me <strong>de</strong> coragem,<br />
respirei fundo e confessei-lhe a brinca<strong>de</strong>ira.
Suicídio imediato. Tudo terminou ali com o<br />
Jack a <strong>de</strong>sligar ríspido e eu a ouvir apenas o retinir<br />
da fúria, o embate do telefone no seu poiso.<br />
Eis aí, meu caro leitor, a razão da não existência<br />
<strong>de</strong> testemunhas da minha viagem real e autên-<br />
Vila à margem do rio. Roberto Burle-Marx, 1932<br />
tica àquele mágico sítio on<strong>de</strong> todo lo escrito era irrepetible<br />
para siempre e on<strong>de</strong> me parece que também eu não terei una<br />
segunda oportunidad sobre la tierra.
Perto da ria<br />
Gastão Cruz<br />
A MARESIA DO MUNDO 108 109<br />
O Pescador, Ria <strong>de</strong> Alvor. Es<strong>cultura</strong> <strong>de</strong> João Cutileiro. Foto <strong>de</strong> Paulo Arez
O sol dilata as praças on<strong>de</strong> outrora<br />
chegava água, ainda <strong>de</strong>signadas<br />
por palavras na água começadas<br />
chão empedrado agora on<strong>de</strong> antes fora<br />
o que dizem os nomes, <strong>de</strong>smentidos<br />
pelo movimento da realida<strong>de</strong>
A mosca e o ladrão<br />
Ondjaki<br />
FICÇÕES 110 111<br />
Ilustração <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Carrasquinho Gomes
Uma mosca lânguida dançava. O som chegava<br />
libertino do mar – como um vento adocicado.<br />
A mosca exercitava movimentos concisos, rápidos,<br />
frenéticos. Transe ou passe <strong>de</strong>sajeitado. O seu<br />
corpo obe<strong>de</strong>cia a uma melodia ou a uma interferência<br />
magnética não perceptível. Mas que dançava<br />
a mosca, dançava.<br />
As nuvens embalavam a madrugada. A brisa<br />
fraca trazia em si restos <strong>de</strong> sal, e memórias, e sorrisos<br />
<strong>de</strong> vidro que a todo momento se podiam<br />
quebrar. Talvez o amor seja isso: restos <strong>de</strong> vidro e<br />
belas cicatrizes.<br />
Ele dormia no quarto. O aquário dormia na<br />
sala. Os peixes não.<br />
Uma <strong>de</strong>stas noites…, dizia-lhe eu às vezes. Ele<br />
dormia, sob o mosquiteiro encarnado. Quero que me<br />
ofereças um mosquiteiro, mas que seja encarnado.<br />
Distingui com niti<strong>de</strong>z os passos do ladrão na<br />
cozinha. Calculei até o seu peso. Afligia-me não<br />
<strong>de</strong>tectar nenhum odor. Pousou o que fosse um<br />
saco ou uma mochila pequena. Foi acumulando<br />
objectos. Talvez a minha colher preferida. O meu<br />
prato fundo trazido da Argélia com os seus <strong>de</strong>senhos<br />
finos, feitos à mão, lembrando estrelas no<br />
céu <strong>de</strong> um <strong>de</strong>serto frio. As minhas chávenas <strong>de</strong><br />
todos os cafés tomados. Tudo o que or<strong>de</strong>nava a<br />
minha escuridão numa pauta <strong>de</strong> gestos quotidianos.<br />
A minha escuridão. A escuridão da sala.<br />
Era uma janela enorme. Cabiam nela a madrugada<br />
e a mosca. A mosca era, como outras, pequena.<br />
Outrora, o amor tinha sido enorme. Do tamanho<br />
<strong>de</strong> uma obsessão. Uma <strong>de</strong>stas noites tudo vai mudar.<br />
Ele dormia sob a paz encarnada do mosquiteiro.<br />
Deslocou-se, o ladrão, da cozinha para a sala. Sem<br />
hesitação. A mosca parou a sua dança.<br />
Viu-me. Compreen<strong>de</strong> que, não o tendo visto,<br />
eu já sabia da sua presença. Não tendo gritado, já<br />
não o faria. O ladrão não podia gritar. Pousou a<br />
mochila no chão, em gesto <strong>de</strong> entrega. Olhou a<br />
sala, o armário <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Tocou os livros como<br />
se soubesse <strong>de</strong>les. Olhou a mulher na sala. Era eu.<br />
Viu a janela. A mosca ainda lá estava. A madrugada<br />
também. Trazia nos pés um par <strong>de</strong> sandálias dotadas<br />
<strong>de</strong> uma simplicida<strong>de</strong> comovedora, e os pés<br />
limpos, e nem aproximando-se pu<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o<br />
seu odor. Talvez algum resto <strong>de</strong> incenso. Talvez<br />
ma<strong>de</strong>ira já esculpida.<br />
O que leva <strong>de</strong>sta casa que não encontrou nas outras?<br />
O ladrão sentou-se no sofá comigo. Mas não<br />
chegou perto.<br />
Comida.<br />
Cruzou as pernas como se não tivesse pressa.<br />
Eu olhava alternadamente o ladrão e a mosca. Ele<br />
dormia lá <strong>de</strong>ntro, no quarto. A janela acolhia a<br />
mosca.<br />
Também tem os livros <strong>de</strong> poesia reunida, isso poupar-lhe-á<br />
algum trabalho. Leve pelo menos a poesia oriental e a brasileira.<br />
Ele ace<strong>de</strong>u com a cabeça. Fechou os olhos, respirando<br />
fundo, libertando-se não tanto do cansaço,<br />
mas <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> futuro. Olhou <strong>de</strong> novo para<br />
mim. O ladrão emanava uma certa culpa. Atrapalhado<br />
por não ter mais que dizer, sentia cada oferta<br />
como um dardo doloroso.<br />
Leve-me consigo, ladrão.<br />
Não posso.Vou para muito longe.<br />
Era esse o meu <strong>de</strong>sejo.<br />
Levantou-se. Alcançou os dois livros <strong>de</strong> poesia<br />
reunida.<br />
Levo uma vida já ocupada. Mulher e dois filhos. Não me<br />
leve a mal.<br />
Esten<strong>de</strong>u-me a mão.Tocaram-se os corpos. Era<br />
mão não <strong>de</strong> homem mas <strong>de</strong> pessoa. Trazia nela,<br />
confirmei, um cansaço para além das activida<strong>de</strong>s<br />
diurnas ou das coisas materiais. E, nessa proximida<strong>de</strong>,<br />
constatei, não possuía odor algum.<br />
A mosca voltou aos seus movimentos <strong>de</strong>sajeitados.<br />
No seu bailado havia algo <strong>de</strong> caos organizado.<br />
Contudo, o tempo <strong>de</strong> exposição da dança não me<br />
permitiria <strong>de</strong>tectar um padrão. O corpo do ladrão<br />
obe<strong>de</strong>cia a uma melodia <strong>de</strong> retirada que não sofreria<br />
nenhuma interferência feminina.<br />
A madrugada continha em si restos <strong>de</strong> sal, e<br />
sorrisos, e memórias <strong>de</strong> vidro que a todo momento<br />
se podiam quebrar. Talvez o passado seja somente<br />
uma bela cicatriz.<br />
Regressei ao quarto. Havia um mosquiteiro.<br />
Era encarnado. No mosquiteiro, havia uma fresta<br />
aberta. Ninguém dormia na cama. Não houve,<br />
nunca, um homem adormecido na minha cama.<br />
Difícil é aceitar lembranças: sei <strong>de</strong> um ladrão<br />
que não liberta odor algum. E nunca tinha visto<br />
uma mosca dançar.
Mar Portugal<br />
Ricardo Diniz<br />
SETE MARES 112 113<br />
Treinos no Atlântico. Fotografia <strong>de</strong> Sérgio Dionísio - Ocean Fashion
Aos 21 anos, o sonho comandava a vida.<br />
Era comandante <strong>de</strong> um enorme veleiro<br />
nas Caraíbas.
SETE MARES 114<br />
115<br />
É daquelas coisas... Na altura custava muito.<br />
A todos. Várias <strong>de</strong>spedidas por ano, muitas lágrimas,<br />
um estranho país frio e cinzento on<strong>de</strong> falavam<br />
uma língua que não era a minha e que<br />
<strong>de</strong>morava a compreen<strong>de</strong>r. Mas antes assim.Valeu a<br />
pena. Ensinou-me muito e <strong>de</strong>u-me estofo emocional<br />
para <strong>de</strong>safios futuros. Acima <strong>de</strong> tudo<br />
expôs-me a uma outra visão do mundo e a um<br />
gosto natural pela in<strong>de</strong>pendência. Mas não foi<br />
fácil ir para Inglaterra com cinco anos, <strong>de</strong>ixando<br />
em Portugal a minha mãe, os meus avós, os meus<br />
amigos. O meu Mar.<br />
Sempre fez parte da minha vida, o Mar.<br />
«Hey man, where are you from?» – Adorava<br />
esta pergunta. Era uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar da<br />
minha terra, das suas gentes, do seu Mar.Viver Portugal<br />
<strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro puxa pelo orgulho, pelo<br />
carinho, mas também pela exigência. Ficava triste<br />
quando não sabiam <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu era, mas também<br />
éramos todos miúdos e com outras priorida<strong>de</strong>s que<br />
não a geografia mundial! Mas Portugal é já ali tão<br />
perto.Tão bonito. «Como é que é possível não saberem<br />
on<strong>de</strong> fica?»... Estava plantada a semente.<br />
Recebi o meu primeiro Atlas com 8 anos. Foi<br />
uma prenda fantástica! Era um livro pequeno e<br />
robusto mas suficientemente flexível para andar<br />
sempre comigo, ora na mochila, ora no bolso.<br />
Como eu adorava aquele livrinho <strong>de</strong> bolso! Ao<br />
folhear as suas coloridas páginas sonhava e viajava,<br />
tentando imaginar como seriam aquelas ilhas no<br />
meio do Oceano Atlântico ou a vastidão do <strong>de</strong>serto<br />
gelado da Antárctida. Conseguia passar horas ali<br />
<strong>de</strong>ntro, entretido com novos e curiosos dados.<br />
Fiquei intrigado ao reparar que o Brasil tinha um<br />
gran<strong>de</strong> rio com um nome do mês em que a minha<br />
mãe fazia anos! O meu Pai lá me explicou que<br />
«aquilo» não era bem um rio...<br />
Passadas duas décadas, ainda tenho esse Atlas.<br />
Quando o retiro da prateleira reparo que ele se abre<br />
com naturalida<strong>de</strong> na página 30 e, em poucos<br />
segundos, revivo as emoções que justificam esse<br />
vício das folhas soltas. Reparo que o canto da folha<br />
já fora dobrado em tempos, talvez para rápida referência.<br />
Em pequeno olhava para o mapa do meu<br />
país e chorava com um misto <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s, paixão e<br />
orgulho. Era a minha terra, ali tão perto mas ainda<br />
a tantos meses <strong>de</strong> me voltar a acolher. Impossível<br />
ficar indiferente, ainda hoje.<br />
Aos 21 anos, o sonho comandava a vida. Era<br />
comandante <strong>de</strong> um enorme veleiro nas Caraíbas,<br />
ganhava muito dinheiro para fazer o que adorava,<br />
mas vivia uma vida simples e <strong>de</strong>sprendida. Duran-<br />
te cerca <strong>de</strong> nove meses an<strong>de</strong>i <strong>de</strong>scalço e sem nunca<br />
passar o corpo por água doce. Mergulhava num<br />
incrível mar azul todos os dias e comia a fruta doce<br />
das generosas árvores <strong>de</strong>sse mundo preguiçoso.<br />
Conhecia centenas <strong>de</strong> pessoas por mês e ouvia a<br />
célebre pergunta que sempre me acompanhou. Já<br />
não éramos miúdos, mas a situação mantinha-se;<br />
«Portugal? That’s nice. I was in South America last<br />
year. Lovely place...» O mesmo acontecia nos EUA<br />
quando por lá passava. As pessoas pura e simplesmente<br />
não sabiam on<strong>de</strong> ficava Portugal.Associavam<br />
o nome «Portugal» a um território anexo a um<br />
país qualquer num continente que não o nosso.<br />
Com sorte, lá apanhava um raro ser iluminado que<br />
timidamente sugeria que Portugal tinha qualquer<br />
coisa a ver com Espanha. Great!..<br />
Nesse mesmo ano, a CNN <strong>de</strong>scobriu que<br />
havia «... um jovem velejador que estava a retraçar<br />
a história do seu país». Numa simples peça <strong>de</strong> seis<br />
minutos, a ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Portugal foi vista por um<br />
universo <strong>de</strong> 800 milhões <strong>de</strong> pessoas em todo o<br />
mundo. Falou-se <strong>de</strong> Portugal. Falou-se do nosso<br />
Mar. Falou-se da nossa História. Recebi perto <strong>de</strong><br />
mil e-mails e passei semanas a respon<strong>de</strong>r a cada um!<br />
Todos tinham algo em comum: orgulho em ser<br />
Português. Foi aqui que percebi que os meus projectos<br />
como velejador eram um potente e relevante<br />
veículo com uma capacida<strong>de</strong> além do meu<br />
sonho <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> fazer a volta ao mundo à vela<br />
sozinho.<br />
Em 2003, lancei o Projecto «Ma<strong>de</strong> in PORTU-<br />
GAL» com o claro objectivo <strong>de</strong> promover Portugal<br />
no mundo, associando-o a valores essenciais <strong>de</strong><br />
qualida<strong>de</strong>, inovação, tecnologia e <strong>de</strong>sign. Queria<br />
posicionar Portugal como um país dinâmico, <strong>cultura</strong>lmente<br />
rico, mas mo<strong>de</strong>rno e ambicioso. Passei a<br />
ser apenas o homem do leme num projecto amplo<br />
que trabalha áreas tão diferentes como a construção<br />
naval e a educação. É com muito orgulho que vejo<br />
cada vez mais escolas a usarem as minhas viagens<br />
para, <strong>de</strong> forma mais interessante e directa, ensinarem<br />
geografia, história, português e matemática. É<br />
talvez a vertente mais importante do meu trabalho<br />
como velejador. É fantástico ver o entusiasmo das<br />
crianças quando partilho com elas as minhas viagens<br />
e vivências, tentando transmitir lições <strong>de</strong><br />
garra, perseverança e empreen<strong>de</strong>dorismo. Mostro-<br />
-lhes o que significa isto <strong>de</strong> sermos Portugueses e<br />
que todo aquele Mar é nosso.<br />
Afinal <strong>de</strong> contas, Portugal é um apenas um<br />
bocadinho <strong>de</strong> terra com algumas pequenas ilhas,<br />
mas muito, muito Mar. O futuro <strong>de</strong> Portugal
passa, obrigatoriamente, pelo nosso Mar. O Mar<br />
Português é o principal factor que nos diferencia<br />
como nação e é a nossa maior e mais rica herança.<br />
Não somos conhecidos no mundo por termos<br />
uma magnífica indústria <strong>de</strong> vinhos, sermos lí<strong>de</strong>res<br />
mundiais na produção <strong>de</strong> cortiça ou pela qualida<strong>de</strong><br />
das nossas loiças ou cristais. O mundo não<br />
associa Portugal a excelência técnica nem a qualida<strong>de</strong>.<br />
Ainda. Mas temos uma ligação histórico-<br />
-<strong>cultura</strong>l com os Oceanos e é essa a nossa melhor<br />
carta trunfo que já estamos a saber jogar. Há sectores<br />
óbvios que beneficiarão, como o turismo e<br />
a oceanografia. Mas o mar também é fonte <strong>de</strong><br />
energia e tela <strong>de</strong> ligação entre países.<br />
Portugal é um país fantástico, com um povo<br />
único.Temos tantas coisas boas, mas também um<br />
enorme potencial para fazermos mais e melhor.<br />
Vale a pena sonhar e sermos ambiciosos e arregaçarmos<br />
as mangas. O Mar <strong>de</strong> Portugal lá estará<br />
para quando o soubermos aproveitar ao máximo.<br />
Hoje, felizmente, as perguntas já começam a<br />
ser outras. «Não te sentes só quando estás sozinho<br />
no mar?» Como é que me posso sentir só<br />
num mar salgado tão imensamente bonito e azul,<br />
tão vasto e tão nosso? Comigo navegam os verda<strong>de</strong>iros<br />
heróis do mar e suas histórias. As suas<br />
aventuras e conquistas são hoje a história <strong>de</strong><br />
todos nós.<br />
Ao folhear as suas coloridas páginas<br />
sonhava e viajava, tentando imaginar<br />
como seriam aquelas ilhas no meio<br />
do Oceano Atlântico ou a vastidão<br />
do <strong>de</strong>serto gelado da Antárctida.
A MUDANÇA DA TERRA 116 117<br />
Os vilancetes glosados<br />
dos foliões das festas<br />
do Espírito Santo<br />
<strong>de</strong> Marmelete (Algarve) 1<br />
Aliete Galhoz<br />
Para construir um diálogo, uma ponte, uma errância a que se <strong>de</strong>seja a culminação<br />
em périplo feliz, parte-se <strong>de</strong> algum lugar, chega-se (ou não) ao rumo<br />
<strong>de</strong>sejado, transita-se, regressa-se (ou não), transporta-se, traz-se. O património<br />
criado pelos homens é perecível, irrisório, <strong>de</strong>struído e recomeçado, espantoso<br />
<strong>de</strong> frágil e tenaz. Um pequeno património espiritual, viajando em memória,<br />
aprendido, ensinado pela voz, po<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r o abraçar o mundo, a ecúmene,<br />
«a nossa casa». O texto que se segue é uma malha num tecido ou num sistema<br />
conotado em re<strong>de</strong>. «A» Festa e Folia do Espírito Santo, <strong>de</strong> raiz medieval,<br />
inspiração joaquimita, no que toca a Portugal, disseminou-se para as ilhas<br />
atlânticas, sobretudo as dos Açores, com os povoadores, no século XV,<br />
e foi levada até ao Brasil, à Índia e a Goa com as Descobertas, no século XVI.<br />
Banda Filarmónica <strong>de</strong> Marmelete, 1950. Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Aldina Duarte
1 Servimo-nos, para elaborar<br />
este artigo, <strong>de</strong> parte do<br />
material e estudo presentes<br />
nestes dois trabalhos nossos:<br />
«Cantigas Paralelísticas <strong>de</strong><br />
Tradição Oral <strong>de</strong> Trás-os-<br />
-Montes e do Algarve»,<br />
in Literatura Medieval, vol.<br />
IV, Actas do IV Congresso<br />
da Associação Hispânica<br />
<strong>de</strong> Literatura Medieval<br />
(Lisboa, 1-5 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong><br />
1991), organização <strong>de</strong> Aires<br />
A. Nascimento e Cristina<br />
Almeida Ribeiro. Lisboa,<br />
Edições Colibri, 1993,<br />
pp. 11-17, principalmente<br />
pp. 14-15; «Cantigas<br />
Paralelísticas na Tradição<br />
Oral Portuguesa –<br />
Trás-os-Montes: cantigas<br />
das mondas, das malhas,<br />
das trilhas. Algarve:<br />
os vilancetes glosados dos<br />
foliões das festas do Espírito<br />
Santo <strong>de</strong> Marmelete. Açores:<br />
estruturas paralelísticas<br />
nos cantos dos foliões<br />
das festas do Espírito Santo».<br />
Lisboa, Ed. Apenas Livros,<br />
2006, pp. 19-21.<br />
A MUDANÇA DA TERRA 118<br />
Marmelete – um recanto da al<strong>de</strong>ia, 1960<br />
Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Aldina Duarte<br />
119<br />
Marmelete, povoado rural incrustado<br />
na vertente atlântica da serra <strong>de</strong> Monchique,<br />
possui um valioso património a nível<br />
da etnografia e da literatura oral, com <strong>de</strong>staque<br />
para os vilancetes glosados dos<br />
foliões das festas do Espírito Santo.<br />
Além do «corpus» <strong>de</strong> cantigas <strong>de</strong> trabalho,<br />
paralelísticas, da tradição <strong>de</strong> Trás-os-<br />
-Montes, e que se po<strong>de</strong>m, a esta altura,<br />
cifrar em 20 matriciais, outro valioso contributo<br />
há a apontar, neste campo, e vindo<br />
também <strong>de</strong> uma área lateral do país e até à<br />
década <strong>de</strong> 60 do século XX zona fortemente<br />
isolada – refiro-me às «cantigas<br />
paralelísticas» <strong>de</strong> Marmelete.<br />
Em 1921-1922, o etnógrafo local José<br />
Guerreiro Gascon publica, na <strong>Revista</strong> Lusitana,<br />
num capítulo <strong>de</strong> uma monografia sobre<br />
Monchique 2 , trinta e cinco cantigas <strong>de</strong> tradição<br />
das Festas do Espírito Santo na pequena<br />
freguesia <strong>de</strong> Marmelete. São, tal como as<br />
reveladas por José Leite <strong>de</strong> Vasconcellos para<br />
Trás-os-Montes, paralelísticas <strong>de</strong> acentuado<br />
cunho ancestral. Passaram, contudo, então<br />
<strong>de</strong>sapercebidas; José Leite <strong>de</strong> Vasconcellos,<br />
em nota <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> página, no artigo do próprio<br />
J.G. Gascon, aproxima-as apenas <strong>de</strong><br />
giros linguísticos do «romanceiro» 3 . Sobre<br />
elas viemos nós a chamar a atenção, em<br />
1959, numa comunicação apresentada ao IX<br />
Congresso Internacional <strong>de</strong> Linguística<br />
Românica e que intitulámos <strong>de</strong> «Chansons<br />
Parallélistiques dans la Tradition <strong>de</strong> l’Algarve;<br />
genres, structure, langage» 4 . Alertada pela<br />
nossa comunicação, interessou-se por elas a<br />
gran<strong>de</strong> especialista da lírica tradicional hispânica<br />
Margit Frenk, que apresentou, por sua<br />
vez, sobre elas, uma comunicação, «Permanencia<br />
Folklórica <strong>de</strong>l Villancico Glosado», ao<br />
IV Congresso Internacional <strong>de</strong> Hispanistas,<br />
Salamanca, 1971 5 ; entravam assim, por sua<br />
singularida<strong>de</strong> conservadora <strong>de</strong> formas e<br />
sentidos da poética medieval, no circuito da<br />
lírica tradicional hispânica <strong>de</strong> cariz similar<br />
mais arcaico.<br />
Estas «cantigas <strong>de</strong> Marmelete» recolhidas<br />
por Guerreiro Gascon em 1918 da<br />
boca <strong>de</strong> um velho «folião» da Confraria do<br />
Espírito Santo, <strong>de</strong> Marmelete, não se cantavam<br />
publicamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1903, data da<br />
última celebração, aí, das «Festas do Santo<br />
Espírito».<br />
Chamavam-se «cantigas do Santo Espírito»<br />
ou «cantigas <strong>de</strong> Santa Isabel», pois foi<br />
a rainha D. Isabel, mulher <strong>de</strong> el-rei D. Dinis,<br />
que incrementou a cerimónia do culto<br />
(«império e coroação») do Espírito Santo<br />
em Portugal a partir da festivida<strong>de</strong> que instituiu<br />
solenemente na sua vila <strong>de</strong> Alenquer<br />
em 1295 6 . Eram cantadas por um grupo <strong>de</strong><br />
«foliões», <strong>de</strong>signação que não é sem<br />
importância correlativa. Como paradigma,<br />
apresentam uma estrutura matriz que é<br />
uma espécie <strong>de</strong> mol<strong>de</strong>: uma cabeça dística<br />
e 2 quadras em que o 1.º e o 3.º versos são<br />
invariavelmente o 1.º e o 2.º da cabeça dística,<br />
isto é: AB// AcBc/ AdBd.Variam o 2.º<br />
e o 4.º versos, mantendo, todavia, estrito<br />
paralelismo semântico. Encontrámos esta<br />
estrutura empregue por Afonso X, o Sábio,<br />
em duas das Cantigas <strong>de</strong> Santa Maria 7 e, do<br />
mesmo Afonso X, numa cantiga <strong>de</strong> escárnio,<br />
476 do Cancioneiro da Biblioteca Nacional,e,<br />
ainda, numa cantiga <strong>de</strong> escárnio <strong>de</strong> Pero da<br />
Ponte contra o jogral Pero <strong>de</strong> Burgos, 1173<br />
do Cancioneiro da Vaticana 8 e 1639 do Cancioneiro<br />
da Biblioteca Nacional.
O campo lexical é o característico,<br />
sobretudo, das «cantigas <strong>de</strong> amigo» medievais,<br />
embora com a mutação <strong>de</strong> que a<br />
cantiga, e o elogio, é posta em boca <strong>de</strong><br />
homem e se dirige à donzela, como nestas<br />
duas cantigas (apresentada, aliás, uma sem<br />
a cabeça) e on<strong>de</strong> se encontram vestígios,<br />
também, da fraseologia das cantigas <strong>de</strong><br />
amor numa <strong>de</strong>las (não normalizamos os<br />
textos):<br />
Moças <strong>de</strong> Lagos,<br />
Em Lagos nascidas<br />
Brancas e vermelhas<br />
E tam floridas.<br />
E moças <strong>de</strong> Lagos,<br />
Em Lagos criadas,<br />
Brancas e vermelhas,<br />
E tam clòradas.<br />
<strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV, p. 280<br />
Moças do Tolêdo,<br />
Chêra la sua roupa.<br />
Moças do Tolêdo,<br />
Vão lavar ò rio,<br />
Chêra la sua roupa<br />
A trevo florido.<br />
Moças do Tolêdo,<br />
Vão lavar ò alto,<br />
Chêra la sua roupa<br />
A trevo granado.<br />
<strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV, p. 280<br />
O que se <strong>de</strong>duz da leitura <strong>de</strong>stas cantigas,<br />
quer as <strong>de</strong> Trás-os-Montes, quer as do<br />
Algarve, é a aproximação a mo<strong>de</strong>los que os<br />
poetas dos cancioneiros medievais galaico-<br />
-portugueses atestam, mantendo, estas cantigas<br />
tradicionais populares, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a<br />
estruturas, a «jargão poético» das «cantigas<br />
<strong>de</strong> amigo», principalmente, mas com um<br />
ou outro afloramento do das «cantigas <strong>de</strong><br />
amor» e, ainda, com passar <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong><br />
irónica que lembra as <strong>de</strong> escárnio. Não faço<br />
qualquer conjectura sobre fontes e origens,<br />
para que não tenho bagagem erudita que<br />
mo permitisse, nem é o meu campo <strong>de</strong> estu-<br />
do; apenas chamei a atenção, novamente,<br />
para uma sobrevivência <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los e formulação<br />
<strong>de</strong> longa veiculação e similitu<strong>de</strong> a<br />
mo<strong>de</strong>los e figuração poéticos medievais,<br />
mas com características mais primárias na<br />
utilização das estruturas. Esten<strong>de</strong>m-se, sim,<br />
na performance do canto, com hábil técnica<br />
matemática, pela reiteração e pelo refrão (as<br />
<strong>de</strong> Marmelete eram cantadas «muito repisadinhas»,<br />
como informa Guerreiro Gascon e<br />
se po<strong>de</strong> imaginar pelas suas congéneres das<br />
«folias do Espírito Santo» nos Açores gravadas<br />
com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>), sendo no entanto<br />
ausentes <strong>de</strong> artifícios adicionais na própria<br />
composição. Por outro lado, o inventário<br />
lexical, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser económico, como<br />
é regra das «cantigas <strong>de</strong> amigo», faz ressaltar<br />
uma diversida<strong>de</strong> regionalizada, embora<br />
ténue. Adstritas à ruralida<strong>de</strong>, revelam referência<br />
a «caça» e «pesca» no rio e «romaria»<br />
no Norte e a uma natureza mais tratada<br />
no Sul remanescente da moçarabização (as<br />
cantigas <strong>de</strong> Marmelete alu<strong>de</strong>m a «olival», a<br />
«meimendro», a «laranjeira», a «lima» e<br />
«limonas», por exemplo) 9 . Citamos uma<br />
(não normalizamos o texto):<br />
D’on<strong>de</strong> vêm estes senhores e mais senhoras<br />
Que me vêm cheirando a limas mais<br />
[a limonas?<br />
D’on<strong>de</strong> vêm estes senhores e mais senhoras<br />
Qu’ê bem le digo,<br />
Vêm-me cheirando a limas mais a limonas<br />
E a trevo florido?<br />
D’on<strong>de</strong> vêm estes senhores e mais senhoras,<br />
Ê bem le falo,<br />
Vêm-me cheirando a limas mais a limonas<br />
E a trevo granado?<br />
<strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV, p. 278<br />
O «corpus» das «cantigas dos foliões»,<br />
<strong>de</strong> Marmelete, alcançou, discreta e tenazmente,<br />
o seu lugar no acervo da lírica tradicional<br />
ibérica, nos seus testemunhos <strong>de</strong><br />
veiculação oral e persistência memorial,<br />
sobretudo no que respeita ao mo<strong>de</strong>lo cancioneiril<br />
do «vilancete glosado», tão em<br />
moda, e tornadas cortesãs nos fins do século<br />
XV, parte do século XVI. Sobre tal, referin-<br />
2 Editada postumamente:<br />
José António Guerreiro<br />
Gascon, Subsídios<br />
para a Monografia <strong>de</strong><br />
Monchique. Edição da viúva<br />
do autor, Maria C. R. Guerreiro<br />
Gascon, Lisboa, Composto<br />
e impresso na Gráfica Sepol,<br />
1955.<br />
3 <strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV,<br />
p. 276, nota 1.<br />
4 Publicada no vol. II das<br />
Actas, Ed. do Centro <strong>de</strong><br />
Estudos Filológicos, Lisboa,<br />
1960, pp. 5-10.<br />
5 Publicada in Nueva <strong>Revista</strong><br />
<strong>de</strong> Filologia Hispánica,<br />
tomo XXIX, 1980, n.º 2,<br />
México, D.F., El Colegio <strong>de</strong><br />
México, pp. 404-411.<br />
6 Ver Maria Aliete Galhoz,<br />
«Une Note <strong>de</strong> plus pour<br />
L’Étu<strong>de</strong> du petit Corpus<br />
<strong>de</strong> Chansons Parallélistiques<br />
<strong>de</strong> Marmelete», Actes du<br />
Colloque, Paris, Fondation<br />
Calouste Gullbenkian, Centre<br />
Culturel Portugais, 1987,<br />
pp. 39-58.<br />
7 Cantiga 90, pp. 360-361, vol. I,<br />
e 320, pp. 181-182, vol. II;<br />
in Afonso X, o Sábio,<br />
Cantigas <strong>de</strong> Santa Maria,<br />
edição crítica <strong>de</strong> Walter<br />
Mettman, tomos I e II, Vigo,<br />
Edicións Xerais <strong>de</strong> Galicia,<br />
1981.<br />
8 Cancioneiro Português<br />
da Biblioteca Vaticana<br />
(Códice 4803), Lisboa, Ed.<br />
do Centro <strong>de</strong> Estudos<br />
Filológicos/Instituto <strong>de</strong> Alta<br />
Cultura, MCMLXXIII.<br />
(Fac-símile). Introdução<br />
<strong>de</strong> Luís F. Lindley Cintra.<br />
9 Cf. também Eugenio Asensio,<br />
Poética y Realidad en<br />
el Cancionero Peninsular<br />
<strong>de</strong> la Edad Media, Madrid,<br />
Ed. Gredos, 1957, pp. 95-98.
10 José Manuel Pedrosa,<br />
«Reliquias <strong>de</strong> Cantigas<br />
Paralelísticas <strong>de</strong> Amigo y<br />
<strong>de</strong> Villancicos Glosados en la<br />
Tradición Oral Mo<strong>de</strong>rna», in<br />
Lírica Popular/Lírica<br />
Tradicional – Lecciones<br />
en homenaje a Don<br />
Emídio García Gómez.<br />
Edición <strong>de</strong> Pedro M. Piñero<br />
Ramírez. Universidad <strong>de</strong><br />
Sevilla/Fundación Machado,<br />
1998, pp. 183- 213,<br />
particularmente pp. 200-201.<br />
11 Margit Frenk, Nuevo<br />
Corpus <strong>de</strong> la Antigua<br />
Lírica Popular Hispânica<br />
(siglos XV a XVII), 2 vols.<br />
Faculdad <strong>de</strong> Filosofía y<br />
Letras/Universidad Nacional<br />
Autónoma <strong>de</strong> México.<br />
El Colegio <strong>de</strong> México – Fondo<br />
<strong>de</strong> Cultura Económica, 2003.<br />
12 Conhecido por Chansonnier<br />
Masson 56, é um<br />
cancioneiro luso-espanhol<br />
quinhentista, ms. 56 do fundo<br />
da Bibliothèque <strong>de</strong> l`École<br />
Supérieure <strong>de</strong>s Beaux-Arts<br />
<strong>de</strong> Paris.<br />
A MUDANÇA DA TERRA 120 121<br />
do este «corpus», escreve, sumariando,<br />
José Manuel Pedrosa, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Alcalá <strong>de</strong> Henares, e um dos melhores<br />
especialistas nesta área, em 1998, num<br />
Colóquio Internacional sobre Lírica Popular/<br />
/Lírica Tradicional:<br />
«Otro “corpus” importantísimo <strong>de</strong> villancicos<br />
glosados que han llegado a la tradición<br />
oral mo<strong>de</strong>rna es el <strong>de</strong> las “cantigas dos<br />
foliões”, que se cantaban, hasta 1903, en las<br />
fiestas “do Santo Espírito” <strong>de</strong> Marmelete,<br />
pequeño pueblo <strong>de</strong>l Algarbe portugués.<br />
Nada menos que casi cuarenta <strong>de</strong> estos villancicos<br />
fueron recogidos y publicados por<br />
José António Guerreiro Gascon a comienzos<br />
<strong>de</strong> la década <strong>de</strong> 1920. Posteriormente,<br />
diversos artículos <strong>de</strong> Aliete Galhoz y <strong>de</strong><br />
Margit Frenk han llamado la atención sobre<br />
este extraordinario tesoro, cuyos ecos tendrán<br />
la suerte <strong>de</strong> escuchar las generaciones<br />
futuras, porque tengo noticia <strong>de</strong> que, a<br />
comienzos <strong>de</strong> la década <strong>de</strong> 1960, el folclorista<br />
Michel Giacometti alcanzó a grabar<br />
estos villancicos <strong>de</strong> boca <strong>de</strong>l anciano sacristán<br />
<strong>de</strong> Marmelete que aún recordaba las<br />
“fiestas do Santo Espírito”» 10 .<br />
Além do estudo <strong>de</strong> Margit Frenk sobre<br />
as «Cantigas <strong>de</strong> Marmelete», há outras<br />
referências a este acervo, com <strong>de</strong>staque<br />
para o Nuevo Corpus <strong>de</strong> la Antigua Lírica Popular<br />
Hispánica (Siglos XV a XVII) 11 , on<strong>de</strong> a colecção<br />
recolhida por Guerreiro Gascon tem <strong>de</strong>z<br />
referências, quer no item «Supervivencias»,<br />
quer no item «Correspon<strong>de</strong>ncias».<br />
Transcrevemos uma «cantiga <strong>de</strong> Marmelete»<br />
que Frenk indicia com duas referências:<br />
uma como «supervivencia», a «cabeça»<br />
do vilancete glosado, e outra como<br />
«correspon<strong>de</strong>ncia», a glosa (não normalizamos<br />
o texto):<br />
Chovia e anevava<br />
pela noite escura<br />
e a ná que vai no porto<br />
corre la fortuna<br />
Frenk, 942 B «Supervivencias»<br />
– Que me digas, marinhêro,<br />
que navegas no rio,<br />
na qual daquelas naus<br />
vai o seu diamigo.<br />
Frenk, 942 B «Correspon<strong>de</strong>ncias»<br />
– Que naquela <strong>de</strong>antêra<br />
mastro erguido.<br />
– Que me digas, marinhêro,<br />
que navegas no alto,<br />
na qual <strong>de</strong> aquelas naus<br />
vai o seu diamado?<br />
– Na sua <strong>de</strong>antêra<br />
mastro alçado.<br />
Guerreiro Gascon, <strong>Revista</strong> Lusitana, XXIV, p. 279.<br />
(Lhueve) a menudo<br />
y haze la noche escura,<br />
la nave a el puerto,<br />
el viento a la fortuna.<br />
Frenk, 942 B<br />
– Digasme, marinero,<br />
que andas por la mar,<br />
si me traes nuevas<br />
d’amador leal.<br />
– Darlas hé, señora,<br />
<strong>de</strong> tu <strong>de</strong>sventura.<br />
La nave en el puerto<br />
Y el vento a la fortuna.<br />
Fontes: Cancionero Musical Masson 56, f. 35<br />
(ms. Do século XVI) 12<br />
Ao contrário do que acontece para<br />
Trás-os-Montes, <strong>de</strong> que há vários registos<br />
em suporte sonoro para estas suas «cantigas<br />
<strong>de</strong> trabalho» (Kurt Schindler, 1928/1931;<br />
Michel Giacometti, 1960; Anne Caufriez,<br />
princípios <strong>de</strong> 1980, Domingos Morais,<br />
1985, e outros, para o «corpus» <strong>de</strong> Marmelete<br />
apenas existe o registo gravado por<br />
Michel Giacometti.<br />
Com efeito, Michel Giacometti logrou<br />
ainda registar uma execução cantada <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> parte das «cantigas <strong>de</strong> Marmelete»<br />
da boca <strong>de</strong> um velho sacristão que havia<br />
fixado o repertório e as melodias. Fez uma<br />
primeira gravação em Abril <strong>de</strong> 1961,<br />
obtendo o registo <strong>de</strong> 15 «cantigas». Em<br />
Abril <strong>de</strong> 1970, efectuou novamente um<br />
«inquérito acerca da Festa do Espírito<br />
Santo», e o velho sacristão, então octogenário,<br />
recordou o cerimonial e entoou 14<br />
cantigas. A memória da execução cantada<br />
está portanto preservada e é um contributo
precioso, pois nenhum apontamento<br />
musical existia, até então, <strong>de</strong>ssas cantigas.<br />
O espólio etnomusicológico <strong>de</strong> Michel<br />
Giacometti está <strong>de</strong>positado (é património<br />
nacional) no Museu Nacional <strong>de</strong> Etnologia,<br />
em Lisboa.Todos os espécimes já estão<br />
digitalizados.<br />
É, pois, indubitável a rarida<strong>de</strong> e o testemunho<br />
patrimonial <strong>de</strong>ste acervo do<br />
repertório dos «foliões» das Festas do<br />
Santo Espírito <strong>de</strong> Marmelete cujos passos<br />
ritualizados acompanhavam, quer com<br />
cantos mais profanos (as «alvoradas», as<br />
«marchas» <strong>de</strong> rua), quer com cantos alusivos<br />
a cada momento das cerimónias religiosas<br />
e para-religiosas. Assim, po<strong>de</strong>mos<br />
afirmar que o «corpus» dos vilancetes<br />
glosados <strong>de</strong> Marmelete é uma pequena<br />
jóia da lírica tradicional cancioneiril ibérica!<br />
Acerca <strong>de</strong>les escreve Antonio Sánchez<br />
Romeralo nas Actas <strong>de</strong>l Congreso Romancero –<br />
Cancionero, UCLA (1984) 13 numa comunicação<br />
com o título «El villancico, como<br />
texto oral»:<br />
«También pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cirse esto <strong>de</strong> otras canciones,<br />
<strong>de</strong> cuya existencia antigua no queda testimonio<br />
escrito, pero que, por la factura, muestran claramente<br />
su entronque con la antigua tradición;así,<br />
esa sorpren<strong>de</strong>nte colección <strong>de</strong> 35 villancicos portugueses<br />
glosados recogidos por José Guerreiro Gascon<br />
en Marmelete,lugar <strong>de</strong> la sierra <strong>de</strong> Monchique,<br />
en el Algarbe, hacia 1918.»<br />
13 Edição <strong>de</strong> Enrique Rodríguez<br />
Cepeda, colaboração especial<br />
e bibliografia crítica<br />
<strong>de</strong> Samuel G. Armistead,<br />
tomo I, II, Madrid. Ediciones<br />
José Porrua Turanzas, 1990;<br />
tomo I, pp. 59-80,<br />
particularmente p. 68.
<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana Número 01 Outono Inverno 2004 15C _<br />
LUGARES DE PARTIDA<br />
SAGRES LÍDIA JORGE<br />
CIDADES INVISÍVEIS<br />
FERVOR DE BUENOS AIRES<br />
VIDAS CONTADAS<br />
ENTREVISTA COM VOLODIA TEITELBOIM<br />
A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />
NO RASTO DE CABRAL ANTÓNIO BORGES COELHO<br />
CRUZEIRO DO SUL<br />
NERUDA E UMA PEDRA<br />
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<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />
N.º 03 Outono Inverno 2005 | 2006 18C_<br />
SETE MARES<br />
O MAR DE ULISSES<br />
EDUARDO LOURENÇO<br />
CIDADES INVISÍVEIS<br />
RIO DE JANEIRO<br />
VIDAS CONTADAS<br />
UMA ENTREVISTA IMAGINÁRIA<br />
COM ERICO VERÍSSIMO<br />
JOÃO VENTURA<br />
CAMINHOS CRUZADOS<br />
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO<br />
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A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />
SIMÃO BOLÍVAR E A<br />
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LUIZ FELIPE SCOLARI<br />
CRUZEIRO DO SUL<br />
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EM PORTUGAL<br />
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