17.04.2013 Views

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />

N.º 04 Primavera Verão 2006 15C _ Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

LUGARES DE PARTIDA<br />

LUANDA<br />

MANUEL RUI<br />

CIDADES INVISÍVEIS<br />

LIMA DO OUTRO LADO<br />

DOS MUROS<br />

DA CIDADE LITERÁRIA<br />

VIDAS CONTADAS<br />

UMA EVOCAÇÃO DE<br />

JOSÉ MARÍA ARGUEDAS<br />

CECILIA BUSTAMANTE<br />

RIOS PROFUNDOS<br />

CÔA, O RIO QUE NUNCA<br />

VIU O MAR<br />

MARIA LÚCIA GARCIA MARQUES<br />

O QUE FAÇO EU AQUI<br />

MAGICAL REALISM – 101<br />

ONÉSIMO TEOTÓNIO DE ALMEIDA<br />

A MARESIA DO MUNDO<br />

PERTO DA RIA<br />

GASTÃO CRUZ


Número 04 Primavera Verão 2006<br />

<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />

3 ENTRE FRONTEIRAS DE SAL João Ventura<br />

4 TODOS OS NOMES<br />

6 HERÓIS DO MAR<br />

Apanhadores <strong>de</strong> algas João Mariano<br />

14 LUGARES DE PARTIDA<br />

Luanda Manuel Rui<br />

16 VAGA GENTE<br />

Esta vida <strong>de</strong> marinheiro… Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

20 TRAVESSIAS<br />

Luanda-Minas-Luanda Ondjaki e Paulinho Assunção<br />

30 SANTOS DA CASA<br />

Vida, paixão, morte e ressurreição da Tirana do Tamarugal<br />

Virgínia Vidal<br />

38 CIDADES INVISÍVEIS<br />

LIMA<br />

40 Lima do outro lado dos muros da cida<strong>de</strong> literária Eva Valero Juan<br />

46 Os Bairros Altos e seus cinemas Alejandro Reyes<br />

50 VIDAS CONTADAS<br />

Uma evocação <strong>de</strong> José María Arguedas Cecilia Bustamante<br />

58 A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

OS CAMINHOS DA DEMOCRACIA<br />

60 O obstinado retorno da utopia Roberto Ampuero<br />

66 Eixos e paradoxos das mudanças <strong>de</strong> rumo nas <strong>de</strong>mocracias<br />

e governos da América do Sul Gerardo Caetano<br />

74 CEM ANOS DE SOLIDÃO<br />

Os filhos,Tucumán vinte anos <strong>de</strong>pois Julio Pantoja<br />

76 RIOS PROFUNDOS<br />

Côa, o rio que nunca viu o mar… Maria Lúcia Garcia Marques<br />

84 BESTIÁRIO<br />

Do macaco <strong>de</strong> Paimogo ao mico-leão-dourado Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />

88 SABORES PRINCIPAIS<br />

Sabores perdidos Carmen Yáñez<br />

92 ESTÁDIO DE SÍTIO<br />

Quando o futebol era magia Alberto Mosquera Moquillaza<br />

96 ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM<br />

Portugueses nos An<strong>de</strong>s peruanos ou o mistério<br />

da Boca Mina <strong>de</strong> Pillpinto Osvaldo Henrique Urbano<br />

100 O QUE FAÇO EU AQUI<br />

Magical realism – 101 Onésimo Teotónio <strong>de</strong> Almeida<br />

108 A MARESIA DO MUNDO<br />

Perto da ria Gastão Cruz<br />

110 FICÇÕES<br />

A mosca e o ladrão Ondjaki<br />

112 SETE MARES<br />

Mar Portugal Ricardo Diniz<br />

116 A MUDANÇA DA TERRA<br />

Os vilancetes glosados dos foliões das festas<br />

do Espírito Santo <strong>de</strong> Marmelete (Algarve) Aliete Galhoz


Nesta edição mergulhamos, primeiro, com os apanhadores<br />

<strong>de</strong> algas da Costa Vicentina, para, <strong>de</strong>pois, subirmos<br />

à Serra <strong>de</strong> Monchique e, numa errância pela tradição<br />

oral, recuperarmos os vilancetes glosados dos foliões das<br />

festas do Espírito Santo, em Marmelete. Descobrimos,<br />

ainda, o Côa, «correndo teimoso entre invernos e estiagens,<br />

cioso guardador <strong>de</strong> memórias». Mas é <strong>de</strong> Luanda<br />

que nos fazemos <strong>de</strong> novo ao mar oceano, puxando os fios<br />

azuis dos achamentos na outra margem atlântica. Imaginamo-nos<br />

em navios armados com a ma<strong>de</strong>ira da Serra <strong>de</strong><br />

Monchique, cruzando as mesmas rotas da vaga gente lusitana.<br />

Como João Fernan<strong>de</strong>s, marinheiro portimonense e<br />

Fotografia <strong>de</strong> Paulo Barata<br />

Entre fronteiras <strong>de</strong> sal<br />

João Ventura<br />

jventura_atlantica@yahoo.com<br />

negociante em Acapulco. Ou como os mineiros escavando<br />

as entranhas dos An<strong>de</strong>s peruanos. Enchemos <strong>de</strong><br />

sonhos uma embarcação a damos nome <strong>de</strong> Eusebel e partimos<br />

<strong>de</strong> Luanda para Minas guiados pelas estrelas do sul.<br />

Navegamos «sem passaporte entre fronteiras por sentinelas<br />

<strong>de</strong> sal e silêncio», até aportarmos a lugares «mais<br />

remotos que Lima» que apenas vislumbramos nos confins<br />

<strong>de</strong> um mundo, agora, invisível. E, como uma oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> recomeço, reinventamos uma América on<strong>de</strong> se<br />

projectam as utopias da vaga gente <strong>de</strong> há cinco séculos e<br />

dos revolucionários que procuram calar o silêncio dos<br />

«cem anos <strong>de</strong> solidão».


TODOS OS NOMES 4<br />

5<br />

ALBERTO MOSQUERA MOQUILLAZA [Lima, Peru] é antropólogo pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Marcos<br />

(UNMSM) e mestre em História da Filosofia na mesma Universida<strong>de</strong>, tendo exercido o jornalismo e colaborado<br />

em várias publicações periódicas da capital peruana. Actualmente é docente na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Económicas<br />

da UNMSM, on<strong>de</strong> também é o coor<strong>de</strong>nador da edição da sua revista institucional. ALEJANDRO REYES<br />

FLORES [Lima, Peru] é doutorado em História pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Marcos, sendo actualmente <strong>de</strong>cano na<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Sociais da mesma Universida<strong>de</strong>. Tem como trabalhos publicados La esclavitud en Lima. 1800-<br />

-1840,América Latina en la década <strong>de</strong>l 90, Contradicciones en el Perú colonial. 1650-1810, e Hacendados y comerciantes en el norte peruano.<br />

1780-1820. CARMEN YÁÑEZ HIDALGO [Santiago do Chile] viveu o seu exílio na Suécia entre 1981 e 1997. Em<br />

Gijón (Astúrias) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1997, publicou aí o seu primeiro livro <strong>de</strong> poesia Paisaje <strong>de</strong> luna fría. Em 2002, foi-lhe atribuído<br />

o prémio <strong>de</strong> poesia Nicolás Guillén. Alas <strong>de</strong>l viento é o seu último livro.Actualmente, integra o conselho <strong>de</strong> redacção<br />

da revista do Salão do Livro Ibero-Americano <strong>de</strong> Gijón. CECILIA BUSTAMANTE [Lima, Peru] é escritora,<br />

poeta, jornalista, editora e conferencista. Foi a primeira mulher a receber o Prémio Nacional <strong>de</strong> Poesia do Peru<br />

em 1965. Representou o Peru em eventos nacionais e internacionais, na literatura, políticas <strong>cultura</strong>is, <strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável, direito das mulheres e direitos humanos. A sua obra literária foi traduzida e publicada em<br />

vários idiomas. EVA VALERO JUAN [Alicante, Espanha] é professora <strong>de</strong> Literatura Hispano-Americana na Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Alicante, on<strong>de</strong> se doutorou em Filologia Hispânica. Dedicou vários trabalhos críticos à literatura peruana e às<br />

relações <strong>cultura</strong>is e literárias entre Espanha e a América Latina. Publicou diversos artigos sobre autores hispano-<br />

-americanos como Ricardo Palma e Pablo Neruda, entre outros. Entre as suas publicações, <strong>de</strong>staca-se o livro Lima<br />

en la tradición literaria <strong>de</strong>l Perú. De la leyenda urbana a la disolución <strong>de</strong>l mito (2003). GASTÃO CRUZ [Faro, Portugal] Poeta e<br />

crítico literário, formou-se em Filologia Germânica pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi professor do ensino secundário<br />

e, entre 1980 e 1986, leitor <strong>de</strong> Português no King’s College, em Londres. Como poeta, o seu nome aparece<br />

inicialmente ligado à publicação colectiva Poesia 61. Como crítico literário, colaborou em vários jornais e revistas<br />

ao longo dos anos sessenta. Além da sua obra poética, <strong>de</strong>staque-se o ensaio A Poesia Portuguesa Hoje (1973).<br />

GERARDO CAETANO [Montevi<strong>de</strong>u, Uruguai] é um dos mais <strong>de</strong>stacados historiadores e politólogos uruguaios.<br />

Director do Instituto <strong>de</strong> Ciência Política da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> la República, é autor <strong>de</strong> numerosos livros e publicações<br />

nas suas áreas <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong>, muitos dos quais premiados. É coor<strong>de</strong>nador do programa <strong>de</strong> investigação<br />

sobre «Estudos Legislativos» do Centro Latino-Americano <strong>de</strong> Economia Humana e docente <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> licenciatura<br />

e pós-graduação em História e Ciência Política. HENRIQUE CAYATTE [Lisboa, Portugal] é presi<strong>de</strong>nte do<br />

Centro Português <strong>de</strong> Design e Professor Convidado da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro. Foi fundador e autor do <strong>de</strong>sign global,<br />

editor gráfico e ilustrador do jornal Público. Consultor para os projectos especiais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign da EXPO'98 e do<br />

respectivo plano <strong>de</strong> pormenor do recinto. Co-autor do sistema <strong>de</strong> sinalética e comunicação da EXPO’98. Co-autor<br />

e responsável pelo <strong>de</strong>sign da revista Egoísta. Comissário e autor do <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> diversas exposições em Portugal e no<br />

estrangeiro. Entre os vários galardões, recebeu em 2003 o Prémio Nacional <strong>de</strong> Design e o Prémio Dibner Award.<br />

JOÃO MARIANO [Aljezur, Portugal] é fotógrafo. Editou e coor<strong>de</strong>nou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o<br />

<strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> fotografia do portal Terravista e actualmente dirige a agência 1000olhos – Imagem e<br />

Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos, e expõe regularmente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993. Colabora eventualmente<br />

com a revista Egoísta e com o semanário Dna. JOÃO VENTURA [Portimão, Portugal] é mestre em<br />

Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e pós-graduado em Ciências Documentais (área <strong>de</strong><br />

Bibliotecas) pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi leitor <strong>de</strong> Língua e Cultura Portuguesas na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris III<br />

e docente convidado na Escola Superior <strong>de</strong> Educação da Universida<strong>de</strong> do Algarve. Entre 1998 e 2003, <strong>de</strong>sempenhou<br />

as funções <strong>de</strong> <strong>de</strong>legado regional do Ministério da Cultura no Algarve. Actualmente <strong>de</strong>senvolve activida<strong>de</strong> na<br />

área da gestão <strong>cultura</strong>l como director do projecto «Fórum Cultural <strong>de</strong> Portimão». JULIO PANTOJA [Tucumán,<br />

Argentina] fotodocumentarista, jornalista, criativo e editor, formou-se como arquitecto e técnico <strong>de</strong> fotografia na<br />

Universida<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Tucumán (Argentina). É docente universitário e dirige, com Gabriel Varsanyi, os Ateliers<br />

<strong>de</strong> Expressão e Fotodocumentalismo. A sua obra integra colecções públicas e privadas, como as do Museu Nacional<br />

<strong>de</strong> Belas-Artes (Argentina) e as da Casa das Américas (Cuba). É membro do Instituto Hemisférico <strong>de</strong> Performance<br />

e Políticas para as Américas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque. As suas fotografias foram expostas em galerias da<br />

Argentina, Venezuela, Brasil, Chile, Nicarágua, El Salvador, Espanha, França, Estados Unidos, Holanda, Alemanha,<br />

Suíça e África do Sul. MANUEL RUI [Huambo, Angola] licenciou-se em Direito pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra<br />

on<strong>de</strong> foi também membro fundador do Centro <strong>de</strong> Estudos Jurídicos. Poeta, ficcionista, ensaísta e cronista, entre<br />

as suas obras possui textos traduzidos para diversas línguas, como checo, servo-croata, romeno, russo, árabe e<br />

hebraico.Tem colaboração dispersa em diversos jornais e revistas lusófonos, entre os quais o jornal Público e o Jornal<br />

<strong>de</strong> Letras. Foi ministro da Comunicação Social do Governo <strong>de</strong> transição que antece<strong>de</strong>u a in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Angola,<br />

director do Departamento <strong>de</strong> Orientação Revolucionária e do Departamento <strong>de</strong> Relações Exteriores do MPLA. É<br />

autor da letra do primeiro Hino Nacional <strong>de</strong> Angola e <strong>de</strong> outros hinos, como o “Hino da Alfabetização, “Hino da<br />

Agri<strong>cultura</strong>” e versão angolana da “Internacional”. Também é autor <strong>de</strong> canções em parceria com Rui Mingas,


André Mingas, Paulo <strong>de</strong> Carvalho e Carlos do Carmo (Portugal) e Martinho da Vila (Brasil), entre outros. Da sua<br />

vastíssima obra, <strong>de</strong>stacam-se os dois últimos títulos: O Manequim e o Piano (2005) e Estórias <strong>de</strong> Conversa (2006).<br />

MARIA ADELINA AMORIM [Lisboa, Portugal] é mestre em História do Brasil e autora <strong>de</strong> vários estudos sobre<br />

a missionação no Brasil e sobre a literatura <strong>de</strong> viagens. Investigadora do CLEPUL e membro da ACLUS, colaborou<br />

na organização do Dicionário <strong>de</strong> Lusofonia (Texto Editora, 2006). MARIA ALIETE GALHOZ [Boliqueime, Portugal] é<br />

licenciada em Filologia Românica pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi professora do ensino<br />

secundário <strong>de</strong> 1953 a 1972. Des<strong>de</strong> estudante que se <strong>de</strong>dica à pesquisa literária, tendo colaborado com Lindley<br />

Cintra, no Centro <strong>de</strong> Estudos Filológicos, e com Viegas Guerreiro, no Centro <strong>de</strong> Estudos Geográficos da FLUL.<br />

Ensaísta e investigadora, é autora <strong>de</strong> numerosos estudos sobre poesia e poetas portugueses, com <strong>de</strong>staque para<br />

Fernando Pessoa e para a literatura popular. Está ligada ao Centro <strong>de</strong> Tradições Populares Portuguesas da<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa e actualmente é vice-directora da <strong>Revista</strong> Lusitana. MARIA DA GRAÇA A. MATEUS<br />

VENTURA [Portimão, Portugal] é doutora em Letras pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Fundadora do ICIA, foi vice-presi<strong>de</strong>nte<br />

da Direcção <strong>de</strong> 1995 a 2002, sendo presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2002. É professora visitante na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências<br />

Humanas e Sociais da Universida<strong>de</strong> do Algarve no âmbito da Cátedra <strong>de</strong> Estudos Ibero-Americanos, da qual é<br />

coor<strong>de</strong>nadora-executiva. Especialista em história da Ibero-América, com numerosos textos publicados nesta área,<br />

com <strong>de</strong>staque para Os Portugueses no Peru ao tempo da união ibérica: mobilida<strong>de</strong>, cumplicida<strong>de</strong>s e vivências (INCM, 2005). MARIA<br />

DE LOURDES CARRASQUINHO GOMES [Lisboa, Portugal] é licenciada em Artes Plásticas-Pintura pela ESBAL.<br />

Professora <strong>de</strong> Educação Visual no ensino básico. Como pintora, participou em várias exposições colectivas.<br />

Associada no ICIA. MARIA LÚCIA GARCIA MARQUES [Lisboa, Portugal] é licenciada em Românicas, doutorou-se<br />

em Linguística Portuguesa Aplicada e <strong>de</strong>dicou-se à investigação sobre o Português Contemporâneo.<br />

Leccionou Análise <strong>de</strong> Texto na Universida<strong>de</strong> Católica Portuguesa. Esteve ligada ao Instituto <strong>de</strong> Cultura e Língua<br />

Portuguesa – ICALP (actual Instituto Camões) – cuja revista lançou e coor<strong>de</strong>nou. Integra actualmente a direcção<br />

da ACLUS (Associação <strong>de</strong> Cultura Lusófona). Para além <strong>de</strong> trabalhos da sua especialida<strong>de</strong> científica, tem dois<br />

livros <strong>de</strong> poesia publicados. ONDJAKI [Luanda, Angola] é licenciado em Sociologia. Ficcionista, poeta, guionista<br />

e artista plástico, recebeu vários prémios literários em Portugal e Angola. Em 2005, o seu livro <strong>de</strong> contos E se<br />

amanhã o medo obteve os prémios Sagrada Esperança (Angola) e António Paulouro (Portugal). Alguns dos seus<br />

livros foram traduzidos para francês, espanhol, italiano e alemão. Actualmente resi<strong>de</strong> em Terra <strong>de</strong> Sauda<strong>de</strong>, a 800<br />

km da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Luanda. ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA [Pico da Pedra, S. Miguel, Açores, Portugal] é doutorado<br />

em Filosofia pela Brown University (EUA) e professor catedrático no Departamento <strong>de</strong> Estudos Portugueses<br />

e Brasileiros da mesma Universida<strong>de</strong>. Escritor com uma vasta obra publicada (conto, ensaio, crónica, teatro). Foi<br />

colaborador regular no DN e escreve com frequência para o Jornal <strong>de</strong> Letras. A sua obra mais recente, publicada em<br />

2004, é Onze Prosemas (e um final merencório). OSVALDO HENRIQUE URBANO [Lima, Peru] foi <strong>de</strong> Aveiro para o<br />

Canadá on<strong>de</strong> obteve o grau <strong>de</strong> PhD em Ciências Sociais (Université Laval, Québec) e foi catedrático <strong>de</strong> Sociologia<br />

da mesma Universida<strong>de</strong>. Daqui partiu para o Peru on<strong>de</strong> fundou o Centro Las Casas (Cuzco, Peru) e a <strong>Revista</strong> Andina.<br />

Actualmente é director do Instituto <strong>de</strong> Investigações da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências da Comunicação, Turismo e<br />

Psicologia (Universida<strong>de</strong> San Martín <strong>de</strong> Porres, Lima, Peru) e director da revista Turismo y Patrimonio. PAULINHO<br />

ASSUNÇÃO [São Gotardo, Minas Gerais, Brasil] é ficcionista, poeta e jornalista profissional. Ganhou dois prémios<br />

literários nacionais no Brasil: o Prémio Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte, em 1983, com Diário do mudo (Poesia), e o<br />

Prémio Guimarães Rosa, em 1998, com Pequeno tratado sobre as Ilusões (contos), este editado em Portugal pela Campo<br />

das Letras. Vive em Belo Horizonte, <strong>de</strong>dicando-se à escrita e a uma pequena editora, a Edições 2 Luas. PAULO<br />

BARATA [Luanda, Angola] é fotógrafo free lancer, trabalha como fotógrafo <strong>de</strong> cena para teatro, cinema e televisão,<br />

e colabora regularmente com o DNA e Sábado. Expõe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999. RICARDO DINIZ [Lisboa, Portugal] Autodidacta<br />

na arte <strong>de</strong> navegar pelos oceanos, é também criador e impulsionador <strong>de</strong> diversos projectos <strong>de</strong> educação, marketing<br />

e gestão. Colabora com escolas, empresários, artistas, escritores e atletas, como catalisador dos seus objectivos<br />

e ambições.Todos as suas iniciativas têm como pano <strong>de</strong> fundo o Projecto «Ma<strong>de</strong> in Portugal» – a promoção<br />

e credibilização <strong>de</strong> Portugal no mundo, transmitindo valores <strong>de</strong> tecnologia, qualida<strong>de</strong> e inovação no maior palco<br />

do mundo – os Oceanos. ROBERTO AMPUERO [Valparaíso, Chile] é um dos romancistas chilenos mais lidos. O<br />

seu recente romance Los Amantes <strong>de</strong> Estocolmo, o maior êxito editorial <strong>de</strong> 2003 no Chile, foi eleito livro do ano pela<br />

prestigiada <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> Libros do Chile. Os seus romances foram traduzidos em alemão, francês, italiano e português.<br />

O livro Encontro no Azul Profundo (Temas e Debates, 2004) relata parte da saga do seu popular investigador chileno-<br />

-cubano Cayetano Brulé. VIRGINIA VIDAL [Santiago, Chile] é escritora e jornalista. Exilada em 1976, viveu na<br />

ex-Jugoslávia e na Venezuela até 1987. Os seus textos foram traduzidos e publicados em diversas línguas. Tem<br />

inúmeros artigos <strong>de</strong> crítica <strong>cultura</strong>l em revistas e diários da Venezuela. A sua novela Cadáveres <strong>de</strong>l incendio hermoso<br />

recebeu o Prémio María Luisa Bombal <strong>de</strong> Viña <strong>de</strong>l Mar em 1989. Trabalhou no programa <strong>cultura</strong>l do Canal 9 da<br />

Universida<strong>de</strong> do Chile. Integrou o conselho <strong>de</strong> redacção da revista Araucária. Actualmente, é directora da revista<br />

Anaquel Austral e directora da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Escritores do Chile.


HERÓIS DO MAR 6 7<br />

Apanhadores <strong>de</strong> algas<br />

João Mariano


HERÓIS DO MAR 8 9


É chegado o mês <strong>de</strong> Julho e os preparativos são iniciados. Preparam-se os barcos,<br />

as pinturas, as limpezas, afinam-se os motores e os compressores, reúnem-se as<br />

companhas e avança-se para mais uma época <strong>de</strong> apanha submarina <strong>de</strong> algas.São<br />

cerca <strong>de</strong> três meses <strong>de</strong> uma activida<strong>de</strong> que, ao longo <strong>de</strong> alguns pontos da costa<br />

portuguesa, se revela como uma das mais duras tarefas executadas sob os auspí-<br />

cios do reino dos mares.<br />

Um ciclo <strong>de</strong> trabalhos que se inicia na Carrapateira e na Azenha do Mar, em<br />

terra, bem cedo pela manhã. E é junto ao «muro das lamentações», como alguns<br />

chamam ao muro que fica virado para o mar da Azenha, que os apanhadores <strong>de</strong><br />

algas olham o mar e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m se o dia é <strong>de</strong> trabalho. É aqui, também, que se reú-<br />

nem quando o mar está mau e é aqui, ainda, que conversam acerca do futuro da<br />

activida<strong>de</strong> e recordam outros tempos <strong>de</strong> safra.<br />

A apanha submarina <strong>de</strong> algas, em todas as suas fases <strong>de</strong> recolha, é uma activi-<br />

da<strong>de</strong> on<strong>de</strong> os limites físicos do ser humano são levados ao extremo. São horas <strong>de</strong><br />

trabalho extenuante, com uma repetição <strong>de</strong> movimentos executados num meio<br />

adverso e sujeito a variações constantes <strong>de</strong> pressão atmosférica em que, frequen-<br />

temente, as regras elementares <strong>de</strong> mergulho não são cumpridas. É um esforço<br />

enorme, em circunstâncias a que o ser humano não está, por natureza, habituado,<br />

que transforma a apanha <strong>de</strong> algas num dos trabalhos mais árduos, duros e arris-<br />

cados que po<strong>de</strong>mos presenciar em território português.


HERÓIS DO MAR 10 11


HERÓIS DO MAR 12 13


LUGARES DE PARTIDA 14 15<br />

Luanda<br />

Manuel Rui<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Luanda, séc. XVIII. Gravura aguarelada holan<strong>de</strong>sa. Imagem: Arquivo Histórico Ultramarino<br />

Luanda <strong>de</strong>bruçada sobre o mar<br />

on<strong>de</strong> as ondas uma a uma<br />

vêm <strong>de</strong>sfazer-se em espuma<br />

e a tua ilha beijar<br />

(canção <strong>de</strong> Eleutério Sanches)


A <strong>Atlântica</strong> é uma in<strong>de</strong>finição que<br />

ocorre nas algas. Em muitas terras do<br />

mundo on<strong>de</strong> os búzios falam na praia<br />

sobre a paixão das conchas pelos sons.<br />

Os sons sempre foram uma paixão dos<br />

afectos. Os búzios dizem que são a paixão<br />

<strong>de</strong>las, as conchas, pelos sons <strong>de</strong>les. E as<br />

conchas vão conchilando na maneira<br />

fêmea e discreta que são a paixão <strong>de</strong>les<br />

pelo som <strong>de</strong>las porque os búzios andam<br />

sempre inteiros e fechados, e as conchas,<br />

elas <strong>de</strong> patroas do eros, <strong>de</strong>ixando-se na<br />

embalação da maré até na areia revolvida e<br />

praia, se dão mesmo <strong>de</strong> entrega <strong>de</strong> sabida<br />

e fingida nostalgia, semiabertas ou abertas<br />

para se mostrarem nos olhos do sol e doarem<br />

seu sabor <strong>de</strong> inteiro sal. Sal <strong>de</strong> mar.<br />

Esse que andou a misturar tudo em suas<br />

maresias <strong>de</strong> marear as sinas com bué <strong>de</strong><br />

viagens <strong>de</strong>sbussoladas nos pontos car<strong>de</strong>ais<br />

embebedados em azimutes <strong>de</strong> cicatriz e<br />

sofrimento que tatuaram o mundo inteiro<br />

como se <strong>de</strong> marinhagem fossem o ódio, o<br />

amor e as lembranças para misturar os tons<br />

dos sons.<br />

De Luanda. Ninguém cansou maré<br />

por esses baixios e canais sempre cada vez<br />

mais mudados pelas luas <strong>de</strong> ibua e izala e<br />

os ventos do antigamente a repuxarem o<br />

tempo para outras travessias com a memória<br />

sem as tempesta<strong>de</strong>s a dar à costa quando<br />

os homens carregavam nas costas o<br />

mar como se fossem embon<strong>de</strong>iros com<br />

raízes a crescerem mesmo nas viagens<br />

como se fossem ramos e enchiam assim os<br />

porões <strong>de</strong> sonhos amarrados a grilhetas e<br />

agora o mar até dá sonambulações nos<br />

homens que usam ouro em anéis, fios<br />

grossos e pulseiras e olham pelas janelinhas<br />

dos aviões a água salgada sinalizada<br />

por sondas flamejantes <strong>de</strong>marcando os<br />

novos cemitérios da energia dos pássaros e<br />

das flores que andam a per<strong>de</strong>r seu perfume<br />

no petro-aroma.<br />

Luanda abriu muitas linhas para o mar<br />

por nunca ter tido um princípio porque os<br />

homens chegantes dos achamentos jamais<br />

<strong>de</strong>scobriram o que já existia. Só encontraram<br />

por acaso e por mor do mar e, então,<br />

nunca ninguém veio pela Atlântida <strong>de</strong><br />

Lisboa para Luanda ou foi <strong>de</strong> Luanda para<br />

Niterói. Antes pelo contrário, as pessoas<br />

foram pelo mar para o mesmo mar.<br />

Inventaram diferenças como a escravatura<br />

ou a conversão dos índios à cruz com os<br />

donos das roças ou fazendas na aprendizagem<br />

das danças e rituais das febres.<br />

Luanda abriu muitas linhas para o mar<br />

se conhecer nas luzes e nas trevas <strong>de</strong> cada<br />

remo e dongo <strong>de</strong> ximbicar com bordão<br />

saboado <strong>de</strong> espuma na miragem da terra<br />

salpicada <strong>de</strong> fogos-fátuos <strong>de</strong> metralhas e<br />

obuses tracejantes num incêndio que a<br />

cida<strong>de</strong> conseguiu apagar com o sorriso<br />

cansado e chorado dos meninos dos<br />

muceques.<br />

Luanda foi sempre um ponto <strong>de</strong> partida<br />

por causa do horizonte <strong>de</strong> quem a<br />

encontrou em paz consigo própria. E também<br />

foi ponto <strong>de</strong> partida para geografar <strong>de</strong><br />

outra maneira o oceano e levar por ele a<br />

<strong>de</strong>scoberta da Ibéria que se reinventou<br />

com esta parte <strong>de</strong> África no outro lado do<br />

oceano, tangando no tango, sambando e<br />

sobrevivendo nos blues a boiar nos salvados<br />

da tragédia <strong>de</strong> New Orleans.<br />

Luanda continua ponto <strong>de</strong> partida.<br />

Principalmente quando chegam e continuam<br />

a chegar mais pessoas para conhecer<br />

Luanda. Não é a Luanda dos cartazes. Nem<br />

a Luanda das gran<strong>de</strong>s reportagens. É a<br />

Luanda que tem um povo mesmo luan<strong>de</strong>nse.<br />

Que gosta <strong>de</strong> farra. Gosta <strong>de</strong> rir. E <strong>de</strong><br />

falar as coisas essas próprias <strong>de</strong> que Luanda<br />

é um ponto <strong>de</strong> partida que está sempre<br />

esperando todas as pessoas. As que saíram<br />

nas caravelas e sem morrer se infinitam na<br />

<strong>de</strong>scendência multiplicada no topo do basquete<br />

ou futebol mundial ou ainda cantando<br />

blues e sambas, ou, ainda, erguendo<br />

força na construção civil com a recompensa<br />

<strong>de</strong> receberem a con<strong>de</strong>coração <strong>de</strong> problemáticos.<br />

Luanda é muito a sério. É muito atlântica<br />

e como ponto <strong>de</strong> partida quem daqui<br />

sair ou quem lhe vier conhecer, bebendo<br />

água do Bengo, só vai ter o coração cheio<br />

<strong>de</strong>ssa magia <strong>de</strong> não querer sair mais.<br />

Luanda, <strong>de</strong>ste oceano que <strong>de</strong>sencontrou<br />

o encontro, é um ponto <strong>de</strong> partida.<br />

Mas sempre para voltar. Num hungo ou<br />

numa guitarra. É sempre um som <strong>de</strong> um<br />

tom tão viajado com sabor a beijo da boca<br />

tão beijada do mar <strong>de</strong> baçula ou capoeira.


VAGA GENTE 16 17<br />

Esta vida<br />

<strong>de</strong> marinheiro…<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Portal tardo-gótico da Igreja Matriz <strong>de</strong> Portimão. Fotografia <strong>de</strong> Paulo Arez


VAGA GENTE 18 19<br />

Vaga gente <strong>de</strong>finida num olhar que<br />

cruzava o oceano projectando na outra<br />

margem a ambição <strong>de</strong> regressar com fama<br />

e muito proveito ou <strong>de</strong> ficar por lá rendida<br />

à riqueza <strong>de</strong> outra terra. Gente do mar que<br />

partiu <strong>de</strong> Vila Nova <strong>de</strong> Portimão, à beira do<br />

rio, para as Índias, cruzando o gran<strong>de</strong> Mar<br />

Oceano em navios <strong>de</strong> negros, e que aportou<br />

a Cartagena das Índias, à terra que o<br />

historiador Pierre Chaunu disse que seria<br />

portuguesa se a unicefalia dos Estados ibéricos<br />

não se tivesse <strong>de</strong>sfeito<br />

tão <strong>de</strong>pressa. Nessa<br />

cida<strong>de</strong>, em 1630, muitos<br />

eram algarvios <strong>de</strong> Portimão<br />

frequentadores dos<br />

portos antilhanos.Tinham<br />

aportado como marinheiros,<br />

pilotos, mestres, pajens.<br />

Deixaram a mulher,<br />

os filhos, os pais e os<br />

irmãos e andavam <strong>de</strong> cá<br />

para lá, a bordo dos galeões<br />

da armada, tripulando<br />

os navios negreiros.<br />

Foram perseguidos por<br />

piratas e corsários que<br />

seguiam no rasto líquido<br />

do ouro e da prata que<br />

jorravam do Peru e do<br />

México.<br />

Habituados à faina,<br />

numa vila muralhada<br />

moldada na sua vocação<br />

marítima, conviviam <strong>de</strong><br />

perto com o contrabando<br />

que se praticava nas<br />

praias recônditas, viajando<br />

pelo Mediterrâneo,<br />

movidos por um dinâmico<br />

comércio <strong>de</strong> pescado<br />

e <strong>de</strong> frutos secos, não resistiram ao<br />

apelo da aventura nesse outro Mediterrâneo<br />

que Colombo inaugurara. Armavam<br />

navios com a ma<strong>de</strong>ira da serra <strong>de</strong> Monchique,<br />

prenhe <strong>de</strong> castanheiros, incentivados<br />

pelos privilégios concedidos por<br />

D. Sebastião aos moradores <strong>de</strong> Portimão<br />

para a construção naval. Iam para Sevilha e<br />

daqui para a América espanhola, como se<br />

fossem naturais <strong>de</strong> Castela, diziam eles.<br />

Mas não eram e, por isso, Filipe II nomeou<br />

Os <strong>de</strong> cá recebiam<br />

lembranças, por vezes visitas<br />

inesperadas, muitas vezes<br />

o resultado <strong>de</strong> um testamento<br />

que restituía a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

aos que, tendo ficado no<br />

silêncio da espera, recebiam<br />

a boa nova da parca fortuna<br />

no ofertório da missa <strong>de</strong><br />

domingo na Igreja Matriz.<br />

um feitor espanhol para coor<strong>de</strong>nar, no<br />

Algarve, a luta contra as falsas arribadas e o<br />

contrabando <strong>de</strong>smesurado praticado pelos<br />

mestres e capitães que vinham das Índias<br />

com os barcos carregados <strong>de</strong> mercadorias<br />

que os oficiais da Casa da Contratação <strong>de</strong><br />

Sevilha teriam <strong>de</strong> onerar com os direitos<br />

reais.<br />

Era vaga gente, como os antepassados<br />

<strong>de</strong> Jorge Luis Borges que, um dia, partiram<br />

<strong>de</strong> Trás-os-Montes rumo ao sul, para<br />

Buenos Aires. As histórias<br />

que nos contam,<br />

embora vagas, traduzem<br />

uma maior familiarida<strong>de</strong><br />

com o mar que os<br />

sustentava e embalava os<br />

seus sonhos do que com<br />

a terra on<strong>de</strong> nasceram.<br />

Talvez por isso a maior<br />

parte não regressasse em<br />

<strong>de</strong>finitivo. Ficavam por<br />

lá numa outra terra que<br />

vivia daquilo que pelo<br />

mar circulava <strong>de</strong> poente<br />

para oriente e <strong>de</strong> cá para<br />

lá. Negros em troca <strong>de</strong><br />

prata. E era <strong>de</strong>ste vaivém<br />

incessante que a vaga<br />

gente que partiu se alimentava<br />

e ganhava alguma<br />

notorieda<strong>de</strong>. Os <strong>de</strong><br />

cá recebiam lembranças,<br />

por vezes visitas inesperadas,<br />

muitas vezes o<br />

resultado <strong>de</strong> um testamento<br />

que restituía a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> aos que, tendo<br />

ficado no silêncio da<br />

espera, recebiam a boa-<br />

-nova da parca fortuna<br />

no ofertório da missa <strong>de</strong> domingo na<br />

igreja matriz. É quando as histórias<br />

ganham contornos que dissipam o anonimato<br />

e os oficiais da Contratação se vingam<br />

dos «ilegais».<br />

Um João Fernan<strong>de</strong>s, marinheiro, <strong>de</strong>ixara<br />

a mulher «emprenhada» quando partiu<br />

para Cartagena. Nunca mais regressou,<br />

mas, em Guayaquil, on<strong>de</strong> redigiu o testamento,<br />

já enfermo e entregue aos cuidados<br />

dos irmãos do hospital <strong>de</strong> Santa Catarina


mártir, ia recebendo notícias da família e<br />

cria que o filho se chamaria André e teria já<br />

doze anos. Era verda<strong>de</strong>, o vigário da vara <strong>de</strong><br />

Portimão, no processo <strong>de</strong> restituição dos<br />

bens do <strong>de</strong>funto, confirmou que João havia<br />

casado, «in facie ecclesiae conforme ao sagrado<br />

concilio tri<strong>de</strong>ntino», com Maria Vaz, filha<br />

<strong>de</strong> mareantes, e que o filho fora baptizado<br />

com o nome <strong>de</strong> André. Esse algarvio aventureiro<br />

estava acompanhado <strong>de</strong> outros conterrâneos<br />

e parentes envolvidos em negócios<br />

da China, através <strong>de</strong> Acapulco. Gostava<br />

<strong>de</strong> jogar xadrez e damas, vestia roupa <strong>de</strong><br />

tafetá, <strong>de</strong> terciopelo, <strong>de</strong> seda, <strong>de</strong> algodão,<br />

usava um palito <strong>de</strong> prata e guardava as moedas<br />

num mealheiro <strong>de</strong> lata.<br />

Um António da Veiga, também natural<br />

<strong>de</strong> Vila Nova, conhecido como o<br />

«Bacalhau», serviu praça <strong>de</strong> marinheiro no<br />

patacho do mestre Manuel Tomé, seu conterrâneo,<br />

que transportava negros <strong>de</strong> registo<br />

<strong>de</strong> Angola para o México. Durante a travessia,<br />

perseguido por inimigos, arribou à<br />

ilha <strong>de</strong> Porto Rico.Aqui, a mando do governador,António<br />

embarcou, com outros mari-<br />

Portimão na Foz do Ara<strong>de</strong>. Foto <strong>de</strong> Paulo Arez Cartagena das Índias. Foto <strong>de</strong> Juan Diego Duque<br />

nheiros <strong>de</strong> Portimão, num navio <strong>de</strong> Bartolomeu<br />

Gonçalves, também <strong>de</strong>sta vila, que<br />

saiu a pelejar os corsários que o mataram<br />

com um balázio. Os 49.480 maravedis que<br />

<strong>de</strong>ixou como herança, alegadamente resultantes<br />

<strong>de</strong> «seus vestidos» e do soldo que<br />

Sua Majesta<strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>via, foram <strong>de</strong>stinados a<br />

sua mãe, mulata muito pobre sem bens para<br />

se sustentar. O prior da igreja <strong>de</strong> Portimão,<br />

na missa da terça <strong>de</strong> um dia festivo, leu o<br />

papel «<strong>de</strong> verbo ad verbum» dos senhores da<br />

Contra-tação para averiguar dos her<strong>de</strong>iros.<br />

Só Catarina Afonso, a mãe, se manifestou.<br />

Mas os senhores da Contratação <strong>de</strong> Sevilha<br />

não consi<strong>de</strong>ravam que a morte por um balázio<br />

ao serviço do rei fosse suficiente para<br />

esclarecer uma história, em seu interesseiro<br />

enten<strong>de</strong>r, mal contada.<br />

E, em geral, era assim a vida <strong>de</strong> marinheiro.<br />

Os pobres, nem mortos tinham <strong>de</strong>scanso.<br />

Vaga gente, raramente afortunada.<br />

Melhor sorte tinham aqueles que, em terra,<br />

lá para as bandas do Peru ou do México, se<br />

<strong>de</strong>dicavam ao trato <strong>de</strong> mercadorias.<br />

Armavam navios com a ma<strong>de</strong>ira da serra <strong>de</strong> Monchique, prenhe <strong>de</strong><br />

castanheiros, incentivados pelos privilégios concedidos por D. Sebastião aos<br />

moradores <strong>de</strong> Portimão para a construção naval. Iam para Sevilha e daqui<br />

para a América espanhola, como se fossem naturais <strong>de</strong> Castela, diziam eles.


TRAVESSIAS 20<br />

Luanda-Minas-Luanda<br />

Ondjaki e Paulinho Assunção<br />

Barcos seduzem o tempo. Fotografia <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>rrahmane Ualibo<br />

21


TRAVESSIAS 22 23<br />

EUZEBEL (1)<br />

Ao meu barco, eu <strong>de</strong>i o nome <strong>de</strong> Euzebel.<br />

Era o mês <strong>de</strong> maio, os céus <strong>de</strong> Minas exibiam azuis <strong>de</strong> profun<strong>de</strong>zas,<br />

tudo era quietu<strong>de</strong> em nosso quintal. E ali, junto com<br />

Lucas Baldus, Rubem Focs e João Serenus, concluí o barco,<br />

embarcação pouco maior do que uma traineira, pintada <strong>de</strong> ver<strong>de</strong><br />

e vermelho, com ma<strong>de</strong>irame polido à mão e o nome Euzebel bem<br />

à vista nos lados da quilha. Barco à vela, sim, mas igualmente a<br />

diesel para que pudéssemos vencer as distâncias pelo Atlântico.<br />

Lembro-me bem que foi logo antes do anoitecer, logo antes<br />

que testássemos nossas lunetas <strong>de</strong> ver estrelas, que nos arrodilhámos<br />

em volta do barco. E ali, com o gozo da tarefa cumprida e os<br />

<strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> milhas navegantes, passámos a imaginar o que embarcaríamos<br />

no Euzebel para a longa travessia, quem iria connosco,<br />

o que levaríamos a bordo e o que sonharíamos durante a viagem,<br />

rumo a Luanda.<br />

1. DE ESTRELAS NA MÃO<br />

[DOS PENSARES DE UM DOS NARRADORES]<br />

A grávida olhou a embarcação pelas laterais brilhantes, areia<br />

do mar incluída na sujida<strong>de</strong> e o sal também, <strong>de</strong>ixou os <strong>de</strong>dos da<br />

mão esquerda roçarem a ma<strong>de</strong>ira em jeito <strong>de</strong> carícia transbordante,<br />

e o que sentiu a<strong>de</strong>nsar-lhe o momento era uma espécie <strong>de</strong><br />

cheiro carregado <strong>de</strong> futuro, o bebé no seu ventre adormeceu e ela<br />

sentiu nítida a sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um enjoo marinho, o vento no rosto<br />

empurrando os meses da espera que a cria leva a estrear-se no<br />

mundo, as velas suaves do barco convidando ao rumo, os búzios<br />

que entretanto se infiltrariam no pequeno porão e, já em alto-mar,<br />

fariam amor em prazer e função <strong>de</strong> reprodução, os olhos da grávida<br />

brilharam um pouco mais, e a embarcação encalhada gemeu<br />

um ruído nenhum, em acalentação da maré que enchia para<br />

humidificar a ma<strong>de</strong>ira do casco, a pintura recente da popa, a frieza<br />

da âncora e a beleza da figura daquela estranha máquina <strong>de</strong> viajar,<br />

a lua escon<strong>de</strong>u-se entre as nuvens voadoras e nenhum caranguejo<br />

se moveu, nenhuma concha voou, nenhuma onda rebentou,<br />

nenhum homem se aproximou, somente ali perto o comandante<br />

esperando o vaticínio da grávida para completar a cerimónia. E<br />

ela falou: o barco vai-se chamar «Estrela-do-mar».<br />

Com um gesto quase brusco, o comandante acen<strong>de</strong>u o<br />

cachimbo, e o cheiro morno atingiu o rosto do grávida que, sem<br />

falar sorriu e olhou para a mão do comandante que apertava a<br />

pipa, sendo que esse percebeu a mulher, era o seu jeito mais alegre<br />

<strong>de</strong> sorrir. A seu modo e ritmo, crê-se, também «Estrela-do-mar»<br />

sorriu.<br />

Era uma noite como outra qualquer, perto da baía <strong>de</strong> Luanda,<br />

num lugar conhecido como «praia da chicala».


BIBLIOTECA DE COISAS (2)<br />

O mar <strong>de</strong> Minas é feito <strong>de</strong> montanhas e serranias e foi em um<br />

<strong>de</strong>svão, lugar entre o que é e o que não é, abertura no horizonte<br />

a meio passo do abismo e da superfície dos morros, que embicámos<br />

o Euzebel. Dali, <strong>de</strong>sse lugar <strong>de</strong> risco, o nosso barco mirou o<br />

leste, o leste das distâncias atlânticas. Até então, pouco tínhamos.<br />

Até então, éramos três marujos <strong>de</strong> palavras, homens da pena e do<br />

cálamo, homens feitos <strong>de</strong> páginas. E foi Rubem Focs quem sugeriu<br />

que alimentássemos o porão do Euzebel com as porções disto<br />

e daquilo, migalhas do nosso convívio, <strong>de</strong>licadas lembranças,<br />

amuletos, biblioteca <strong>de</strong> coisas e imagens. E então passámos a recolher<br />

frutas, como o araticum; pedras, como a carne <strong>de</strong> vaca; flores<br />

como a sempre-viva; lascas, como a do jatobá; pássaros, como o<br />

bem-te-vi; ventos, como o que sopra pelo planalto, pelo cerrado,<br />

pelas altanias do Alto do Paranaíba, caminhos do lobo-guará, trilhas<br />

das siriemas.<br />

Tudo isto, em presença ou efígie, fomos colocando nos<br />

porões do Euzebel. Uns sonhos novos e uns sonhos <strong>de</strong>spedaçados.<br />

Uns amores ainda quentes e outros já tornados cinza em fornalhas<br />

abandonadas. E muito tardámos em semelhante tarefa, um<br />

mês ou mais, enquanto o Euzebel mirava o leste com a sua quilha<br />

lustrada <strong>de</strong> novo e <strong>de</strong> impetuosas vonta<strong>de</strong>s. Nosso Euzebel queria<br />

o oceano, quase nos pedia e implorava fazer-se ao mar. Mas ainda<br />

não era o tempo da navegação. Viria o junho entrante, viriam as<br />

brumas <strong>de</strong> julho. A hora chegaria com a conclusão <strong>de</strong> um mapa,<br />

este a cargo <strong>de</strong> João Serenus.<br />

2. A EMBARCAÇÃO NÃO FALA MAS SENTE<br />

[CONSIDERAÇÕES POUCAS]<br />

A embarcação não tinha hora <strong>de</strong> partir, nem a coisa era tão<br />

combinada ao ponto <strong>de</strong> se saber rumos, crenças ou buscas pessoais<br />

da índole das paixões que fazem mover os homens, as montanhas<br />

e os mares, simplesmente o tal barco <strong>de</strong> nome «Estrela-do-<br />

-mar» repousava com o corpo beijando a maré que, subindo,<br />

subia, sem com essa pressão salgada querer apressar o evento da<br />

partida. Ao largo, peugadas várias brotavam na areia perturbando<br />

a paz dos caranguejos e o sono dos coqueiros, eram pernas que<br />

ajudadas por corpos traziam das casas mantimentos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />

gastronómica, ornamentos minúsculos <strong>de</strong> natureza pessoal,<br />

medicamentos tradicionais no formato <strong>de</strong> folhas e raízes, bem<br />

como os corações repletos <strong>de</strong> um suco antigo a que os mais<br />

velhos chamam «incerteza».<br />

De noite, além do brilho da lua, era fácil <strong>de</strong>tectar, <strong>de</strong> longe<br />

como não, o brilho pueril que cada rosto levava pendurado, e não<br />

eram lágrimas <strong>de</strong> chorar.


TRAVESSIAS 24 25<br />

UM BILHETE (3)<br />

Em meados <strong>de</strong> julho, chegou-nos um bilhete <strong>de</strong> Luanda. Era<br />

meia folha <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rno, com rasgos nos cantos, um tanto amassada.<br />

E, letra a letra, frase a frase, percebemos que o bilhete fora escrito à<br />

beira-mar. Nele havia as marcas <strong>de</strong> sol e <strong>de</strong> sal. E lá estava dito:<br />

«Daqui <strong>de</strong> Luanda, saudamos o Euzebel. Boa viagem.Ao mar, o que<br />

é do mar.»<br />

3. PRIMEIRA CARTA DA GRÁVIDA<br />

[GRÁVIDA OLHA A BAÍA DE NOITE ENQUANTO ESCREVE]<br />

Meu filho com comportamento <strong>de</strong> pássaro que um dia ainda vais nascer:<br />

Escrevo-te <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o brilho bonito da nossa baía da chicala, aqui on<strong>de</strong> os pescadores<br />

<strong>de</strong>ixam os barcos repousar para vir adormecer o corpo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>, <strong>de</strong>sajeitados,<br />

fazerem um amor saboroso com as suas mulheres,donas <strong>de</strong> mãos calejadas em tempo<br />

e memória;<br />

Hoje é tão cedo para saber dizer-te o que te quero contar...<br />

O teu pai já aqui não está, não sei se esteve. E tu a cada movimento me dizes<br />

que queres chegar e eu a cada dia te digo que há um tempo para o ser se <strong>de</strong>scobrir<br />

em pessoa viva, <strong>de</strong>ssas que habitam o mundo social dividido pelos limites a que mais<br />

tar<strong>de</strong> serás forçado a conhecer.Tudo isso são coisas da lógica e da necessida<strong>de</strong>, a que<br />

um dia terás acesso se assim as coisas te ditarem, e que a par <strong>de</strong>ssas virão outras,<br />

hoje apetece-me dizer-te, como os poemas que o cego jeremias gosta <strong>de</strong> recitar, ou<br />

como os poemas que hás-<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir em livros mais antigos que nós e que a cida<strong>de</strong>,<br />

ou em poemas que talvez <strong>de</strong>scubras pela ponta viva dos teus <strong>de</strong>dos, olhando esta baía<br />

que só eu agora miro, inventando palavras <strong>de</strong> constelações ainda não vistas, versos<br />

inaugurais, mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> matérias humanas que eu, a tua mãe, não sei dizer nem esperar<br />

que cheguem. Por isso te espero, meu filho.<br />

Por isso te levo a esta viagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta e errância, para que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim,<br />

e pelos meus olhos, pelo meu corpo <strong>de</strong> enjoo e <strong>de</strong> maresia, te possa chegar ao sangue<br />

o fluxo <strong>de</strong> um vasto oceano chamado atlântico. Porque o futuro também é teu, meu<br />

filho da áfrica das cores, das ternuras e as magias também.<br />

Segura-te, meu filho, que eu te quero ensinar a viajar.<br />

Falava sobre certas palavras da língua portuguesa<br />

que acompanharam as caravelas,<br />

mais precisamente a espuma das caravelas.


NOVAS PALAVRAS (4)<br />

Enquanto nos preparava o mapa <strong>de</strong> navegação e exercitava<br />

compassos e réguas <strong>de</strong> cartógrafo, João Serenus falava sobre certas<br />

palavras da língua portuguesa que acompanharam as caravelas,<br />

mais precisamente a espuma das caravelas, e foram ora para<br />

Angola ora para o Brasil, palavras muitas <strong>de</strong>las hoje em <strong>de</strong>suso,<br />

quase fósseis <strong>de</strong> palavras. Palavras que viraram frutas e viraram<br />

bichos, palavras que viraram sóis e luas, palavras que, em cópulas,<br />

cópulas em praia aberta ou cópulas selva a<strong>de</strong>ntro, geraram<br />

outras palavras, essas palavras ar<strong>de</strong>ntes sob o sol dos trópicos,<br />

milhares <strong>de</strong> sílabas renascidas e <strong>de</strong> frases iluminadas, alaridos <strong>de</strong><br />

vogais e consoantes, tumulto <strong>de</strong> vocábulos em nu<strong>de</strong>z e festa. João<br />

Serenus nos dizia tudo isto, enquanto traçava rotas e caminhos<br />

para o Euzebel.<br />

4. DO TAL HOMEM<br />

[E DOS SEUS PÁSSAROS]<br />

Os pássaros eram transportados numa espécie <strong>de</strong> gaiolas-ao-<br />

-contrário, artefacto <strong>de</strong> difícil construção técnica e <strong>de</strong> mais complicada<br />

manutenção, como uma mini-jaula aberta, com lugar para<br />

as patas dos passarinhos e o recipiente para pouca comida, pois<br />

que estes pássaros, em verda<strong>de</strong>, circulavam livremente e a estas<br />

gaiolas voltavam sem chamamento <strong>de</strong> assobio ou pedido <strong>de</strong><br />

regresso. O homem que as transportava esquecera-se <strong>de</strong> usar <strong>de</strong>ntes<br />

na boca, <strong>de</strong> modo que o seu sorriso era uma varanda bonita sem<br />

ser linda, curiosa sem ser fantasmagórica, e simpática sem nunca<br />

chegar a ser bela.<br />

Caminhava <strong>de</strong>vagar o tal homem-que-vendia-pássaros, fazendo<br />

tanto ou menos ruído que o vento. Era uma espécie <strong>de</strong> pássaro,<br />

também ele, mas sem uma gaiola circundante que se pu<strong>de</strong>sse ver<br />

com olhos <strong>de</strong> olhar ou formato <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r.<br />

PRIMEIROS ASSENTAMENTOS NO DIÁRIO DE BORDO (5)<br />

Na manhã em que ficou pronto o mapa <strong>de</strong> navegação, João<br />

Serenus igualmente nos mostrou um livro enorme, encapado <strong>de</strong><br />

azul, o qual, logo soubemos, seria o nosso Diário <strong>de</strong> Bordo. E ali<br />

mesmo, naqueles <strong>de</strong>svãos do Mar <strong>de</strong> Minas on<strong>de</strong> se equilibrava o<br />

Euzebel, Rubem Focs quis fazer o primeiro registro, o primeiro<br />

assentamento, a primeira garatuja.<br />

Eis o que Focs escreveu: «Logo estaremos ao sabor do<br />

Atlântico. O nosso <strong>de</strong>stino é uma ilha em um ponto secreto do<br />

oceano, entre Angola e Brasil. De Luanda, também está para vir<br />

um barco-irmão, barco igualmente mágico, para esse encontro na<br />

ilha. Quando nos encontrarmos, o barco <strong>de</strong> Luanda virá para<br />

Minas, o Euzebel irá para Luanda. Pelo que sei, o barco-irmão-<br />

-angolano tem o nome <strong>de</strong> Estrela-do-Mar. Belo nome para tão<br />

benfazejos propósitos.»


TRAVESSIAS 26 27<br />

5. OUTRA CHEGADA<br />

[UM HOMEM QUE GOSTAVA DE DIZER POEMAS]<br />

Era uma pessoa acumulada em poesia, <strong>de</strong> sua autoria e <strong>de</strong><br />

autoria vária, com complementos <strong>de</strong> saber tremelicar os olhos e<br />

orelhas enquanto o discurso, fluido, lhe brotava das cordas vocais<br />

plenas <strong>de</strong> acalentamento e prosa corrida. Não tinha um metro e<br />

meio do chão aos cabelos, mas era gran<strong>de</strong> na sua dimensão <strong>de</strong> ser<br />

humano. De ser humano.<br />

Chegou como os outros – com vonta<strong>de</strong> partir.<br />

Ferdinando<br />

FLAUTA MÁGICA (6)<br />

Ferdinando Flauta Mágica, o que viajou pelo mundo e pelas<br />

épocas, fez-nos uma visita na terceira semana <strong>de</strong> julho. A lua estava<br />

<strong>de</strong> namoricos pelos bailes da madrugada, corujas felpudas atravessavam<br />

galhos e sombras, um curiango fez ruído nas copas <strong>de</strong><br />

uma gameleira. Foi aí, enquanto arro<strong>de</strong>ávamos uma fogueira, que<br />

Ferdinando nos apareceu, ele com o seu chapéu, ele com o seu<br />

capote, ele com as suas botas <strong>de</strong> cano alto. Vinha em missão <strong>de</strong><br />

reconhecimento, mas vinha também com <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> embarque.<br />

Puxou histórias com Lucas Baldus, disse bravatas sobre os perigos<br />

do mar. Por fim, sem ro<strong>de</strong>ios, anunciou sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viajar a<br />

Luanda. E até alisou o casco do Euzebel, como quem acaricia o<br />

pescoço <strong>de</strong> um cavalo bravio.<br />

6. MAPAS PROPÍCIOS<br />

[O COMANDANTE ESPERA PACIENTEMENTE]<br />

Explicou que havia uma configuração propícia à movimentação<br />

marinha, e que isso <strong>de</strong> se saber para on<strong>de</strong> se iria era <strong>de</strong> menor<br />

relevância, antes, isso sim, saber <strong>de</strong>cidir em que condições a viagem<br />

po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>correr, não no que a mantimentos se referisse mas<br />

aos materiais humanos, aí sim, incluídos os mantimentos gastronómicos<br />

e medicinais necessários, bem como os da natureza<br />

intrínseca à humanida<strong>de</strong>, os poemas, as vozes, a música e as bússolas<br />

que imitando corações soubessem ditar ritmos e bombear<br />

<strong>de</strong>sejos mais ou menos próximos do instinto.<br />

COLECCIONADOR DE VENTANIA (7)<br />

Foi pelas artes <strong>de</strong> Ferdinando Flauta Mágica que conhecemos<br />

um outro visitante, poucos dias <strong>de</strong>pois, chamado Coleccionador<br />

<strong>de</strong> Ventania. Alegre no falar, alegre no modo <strong>de</strong> ser. Dizia-se português<br />

da região do Minho, mas com algum tempo a mais <strong>de</strong> conversa<br />

logo <strong>de</strong>scobrimos que nascera na Beira Interior, para os lados<br />

da Covilhã. Muito imaginoso, Coleccionador <strong>de</strong> Ventania contava<br />

enoveladas histórias. O nome verda<strong>de</strong>iro era José, José das Dores<br />

Terrenas. O apelido tivera origem, conforme disse, nas li<strong>de</strong>s das<br />

navegações. «Sempre em pequenos barcos pesqueiros», contou.<br />

Ele apareceu numa noitinha que era uma noitinha <strong>de</strong> promessas<br />

<strong>de</strong> luas. O Euzebel pontificava altivo, à espera <strong>de</strong> fazer-se


ao mar. João Serenus ainda media distâncias e latitu<strong>de</strong>s, porém o<br />

mapa já se encontrava pronto. Rubem Focs trouxe um vinho,<br />

Lucas Baldus quis solfejar cançonetas esquecidas. E ali, um tanto<br />

acriançados <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>s inocentes, ficamos ouvindo as histórias<br />

do Coleccionador <strong>de</strong> Ventania. Assim que chegava ao fim um relato,<br />

Ferdinando Flauta Mágica dava o mote para mais uma narrativa<br />

interminável.<br />

E assim estávamos. Um outro bilhete tinha chegado na noite<br />

anterior e dizia: «Em Luanda, o Estrela-do-Mar tem igualmente<br />

ânsias para navegar.»<br />

7. MOMENTOS<br />

[DE COMO O CURIOSO PERGUNTOU E ESCUTOU]<br />

– Mas isto é um navio, um barco, uma traineira?<br />

– Isto é uma embarcação.<br />

– E para on<strong>de</strong> vai?<br />

– Para longe.<br />

– Mas em que direcção?<br />

– Do outro lado <strong>de</strong>ste mar aqui. Para as bandas do Brasil.<br />

– Brasil?<br />

– Sim.<br />

– E param nalgum lugar, <strong>de</strong> caminho para lá?<br />

– É possível. Assim queira a embarcação.<br />

– Você enten<strong>de</strong> <strong>de</strong> navegação científica?<br />

– Eu só arrisco na navegação por estrelas.<br />

– E <strong>de</strong> dia?<br />

– Espero que a noite volte.<br />

UMA HÉLICE PARA O EUZEBEL (8)<br />

Ferdinando Flauta Mágica sugeriu que colocássemos uma<br />

hélice-helicóptera no mastro do Euzebel, <strong>de</strong> modo a que nossa<br />

embarcação pu<strong>de</strong>sse vencer o Mar <strong>de</strong> Minas, o qual, todos sabem,<br />

é um mar seco, mar <strong>de</strong> morrarias e serranias. Com tal instrumento,<br />

em dois ou três dias, pelos ares, po<strong>de</strong>ríamos atingir o<br />

Atlântico e lá nos metermos <strong>de</strong> vez pelo curso das peripécias.<br />

Sugestão dada, sugestão aceita. Logo, mãos exímias no lavrar<br />

e no chanfrar, mãos artífices e engenhosas se puseram na tarefa <strong>de</strong><br />

construir a hélice, <strong>de</strong> polir as suas pás e <strong>de</strong> colocá-la nos altos do<br />

mastro-mestre. E um jogo <strong>de</strong> polias e roldanas fez a hélice se acoplar<br />

ao motor, um pequeno mas vigoroso motor, agora com a<br />

função <strong>de</strong> dar ao Euzebel a condição <strong>de</strong> barco alado.<br />

Nem é preciso dizer que tivemos <strong>de</strong> brindar, e brindar em<br />

brin<strong>de</strong>s e alaridos <strong>de</strong> alegria o novo invento. Houve júbilo. Até<br />

pu<strong>de</strong> ouvir canções e cançonetas entre as mulheres e os meninos<br />

que por ali estiveram, todo o tempo, assistindo a tão doidivanas<br />

cerimónia.


TRAVESSIAS 28 29<br />

8. A MULHER APETITOSA<br />

[ESCREVE AO PADRE]<br />

Querido bartolomeu,<br />

Soube que estás <strong>de</strong> mala feita para um estranho barco e que tudo isso supostamente<br />

é segredo.<br />

O meu corpo também sabe <strong>de</strong> tudo isso, e o que te digo é que não há distância,<br />

nem haverá, que me perturbe neste ritmo <strong>de</strong> encontro ao que for, e há-<strong>de</strong> ser, inevitável.<br />

Nunca te escondi isto, e on<strong>de</strong> cabe um padre cabe uma mulher: se fugires, fujo<br />

contigo.<br />

A verda<strong>de</strong> é que mais cedo ou mais tar<strong>de</strong> hás-<strong>de</strong> fazer amor comigo. Por favor,<br />

digo eu: não faças essa cara, nada disto é uma ameaça. É, tu sabes, uma simples<br />

promessa.<br />

Beijos,<br />

Margarida-em-flor.<br />

LISTA PARCIAL DA CARGA DO EUZEBEL (9)<br />

Água do rio São Francisco (dois tonéis); quarenta quilos <strong>de</strong><br />

polvilho doce e azedo, mais <strong>de</strong>z rodas <strong>de</strong> queijo curado (para o<br />

pão <strong>de</strong> queijo a bordo); vinte quilos <strong>de</strong> fubá (para broas a bordo);<br />

vinte litros <strong>de</strong> caninha alambicada em socavões <strong>de</strong> Minas (para alegrias<br />

a bordo); <strong>de</strong>z quilos <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> sol proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Curvelo<br />

(para assados a bordo); pimentas várias e diversas; feijão roxo e<br />

feijão preto; farinha <strong>de</strong> milho e farinha <strong>de</strong> mandioca; linguiça<br />

<strong>de</strong>fumada; maquineta <strong>de</strong> gelo movida a querosene; duas gela<strong>de</strong>iras<br />

para a conservação das frutas e dos legumes e das hortaliças;<br />

uma sanfona e uma viola <strong>de</strong> <strong>de</strong>z cordas; dois tambores; um baú<br />

para guardar palavras novas; lunetas <strong>de</strong> olhar para fora e lunetas <strong>de</strong><br />

olhar para <strong>de</strong>ntro; binóculos <strong>de</strong> ver estrelas; um bacamarte propulsor<br />

<strong>de</strong> fogos-<strong>de</strong>-artifício; anzóis e caniços; dois livros <strong>de</strong> Ana<br />

Paula Tavares; um <strong>de</strong> Camões e outro <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos; um <strong>de</strong><br />

Guimarães Rosa e outro <strong>de</strong> Luandino Vieira; ramos <strong>de</strong> alecrim e <strong>de</strong><br />

hortelã; um dicionário dos passarinhos <strong>de</strong> Minas e um dicionário<br />

dos passarinhos <strong>de</strong> Luanda; apitos para chamar sereias; vozes gravadas:<br />

<strong>de</strong> sabiás, bem-te-vis, curiós e pintassilgos.<br />

9. DE MÃOS, DE ESTRELAS<br />

[DOS PENSARES DE UM DOS NARRADORES]<br />

No fundo, o que as pessoas e o barco faziam era esperar, em<br />

acumulação e sabedoria, uma boa hora para partir. Alguém no<br />

meio dos já chegados sabia, evi<strong>de</strong>ntemente, o que se iria passar,<br />

sem incluir nesta previsão os ventos, as correntes, as refeições e os<br />

barcos com que se cruzariam. Havia um <strong>de</strong>stino a cumprir, e era<br />

uma viagem. No céu as estrelas estavam prontas, na «praia da chicala»<br />

as mãos estavam salgadas.<br />

E esperaram.


DESEJOS DE NUVENS (10)<br />

O motor do Euzebel solavancou duas, três vezes, tossiu, resfolegou,<br />

imaginamos que fosse parar ou explodir. Foi engano. Ele<br />

ainda sequenciou uns solavancos, fez mimos, quis carinho, mas aí<br />

seguiu, foi adiante, entrou em calma <strong>de</strong> rolamentos e correias, os<br />

pinos se aquietaram, o metal azeitou-se, e o motor suspirou e<br />

produziu música. Ferdinando Flauta Mágica então moveu uma<br />

manopla e l<strong>ibero</strong>u as energias para a hélice. Ela girou, rodopiou,<br />

entrou em re<strong>de</strong>moinhos, colheu vento e agiu como uma dócil<br />

fêmea ventoinha. E nem acreditamos quando, aos poucos,<br />

movendo quadris e carcaças, o barco ganhava altura, elevava-se,<br />

subia um, dois, quatro metros. E lá pairou todo pássaro. O barco<br />

tinha <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> nuvens. Ele tinha vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>s. Aquilo<br />

era apenas um teste, mas o Euzebel estava pronto para a viagem.<br />

10. CORPOS<br />

[& VONTADES]<br />

Não era o ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> pássaros que transportava as gaiolas,<br />

era, mais me parece, as gaiolas-ao-contrário que transportavam ao<br />

homem que, sorri<strong>de</strong>nte, aceitava os <strong>de</strong>stinos que a ma<strong>de</strong>ira aconselhava.<br />

Ele, o homem, elas as gaiolas, e eles os pássaros alegres<br />

aproximaram-se da praia e encontraram uma mulher nitidamente<br />

grávida, nessa imagem que não gera outra coisa que não ternura.<br />

O ven<strong>de</strong>dor sentiu o cheiro da mulher – misto <strong>de</strong> folha-<strong>de</strong>-<br />

-louro, alho recente, óleo-<strong>de</strong>-palma e a fumaça <strong>de</strong> um certo<br />

peixe-grelhado que ele quis imaginar fosse peixe-galo. Veio-lhe<br />

água à boca e uma pontinha <strong>de</strong> fome roçou-lhe o interior do<br />

estômago. Evitou cruzar o corpo ou o olhar com o da mulher.<br />

Passou ao largo e aproximou-se, vagaroso, da embarcação <strong>de</strong>itadiça<br />

junto ao mar.<br />

Era <strong>de</strong> noite.<br />

Havia um <strong>de</strong>stino a cumprir, e era uma viagem.<br />

No céu as estrelas estavam prontas,<br />

na «praia da chicala» as mãos estavam salgadas.


Vida, paixão,<br />

morte e ressurreição<br />

da Tirana do Tamarugal<br />

Virgínia Vidal<br />

SANTOS DA CASA 30 31<br />

«Nascemos sem passaporte<br />

entre fronteiras guardadas<br />

por sentinelas <strong>de</strong> sal e silêncio»<br />

Albano Martins<br />

Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Herman Pereira


SANTOS DA CASA 32<br />

Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal.<br />

Fotografia <strong>de</strong> Montserrat Sáenz. Prochile<br />

33<br />

Após a celebração do chamado ano<br />

<strong>de</strong> 1535 pelos conquistadores, Diego <strong>de</strong><br />

Almagro saiu <strong>de</strong> Cuzco à conquista do Sul<br />

do império. Não conseguia escon<strong>de</strong>r o<br />

orgulho por ter subjugado os incas, mas,<br />

como ia penetrar em territórios difíceis e<br />

<strong>de</strong>sconhecidos <strong>de</strong> um império <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong><br />

tão infinita como a sua ari<strong>de</strong>z, levou como<br />

reféns o sacerdote do Templo do Sol e a sua<br />

filha, a Ñusta Huillac. Creio que, na intenção<br />

<strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> eventuais armadilhas<br />

e para gozar da mais absoluta segurança,<br />

levava consigo Paullo Túpac, irmão do<br />

príncipe Manco Capac, baptizado <strong>de</strong><br />

Paulino, e Huillac Huma, último dignitário<br />

supremo <strong>de</strong> um culto que ele pretendia<br />

dar por extinto. Sua mulher, Malgarida, tão<br />

africana como os seus escravos, envolvia-o<br />

<strong>de</strong> paz, apesar das suas noites <strong>de</strong> pesa<strong>de</strong>lo<br />

e enfermida<strong>de</strong>.<br />

Tão ilustres reféns eram tratados com<br />

respeito, ainda que pesasse sobre as suas<br />

cabeças a ameaça <strong>de</strong> que pagariam com a<br />

vida qualquer tentativa <strong>de</strong> rebelião, na<br />

caravana que integrava cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil<br />

súbditos do império, aborígenes chamados<br />

<strong>de</strong> índios pelos espanhóis. Yanaconas e<br />

escravos africanos. Nela vinham encobertos<br />

alguns wilkas ou capitães, <strong>de</strong> importante<br />

carvina, que já tinham comandado os já<br />

dispersos exércitos incas. Também alguns<br />

acólitos do Sol se encobriam nas filas,<br />

envoltos em míseras roupagens e em aparente<br />

submissão, à espera da ocasião certa<br />

para se rebelarem.<br />

Ñusta Huillac <strong>de</strong>scendia dos senhores<br />

<strong>de</strong> Tahuantisuyu e não se resignava às humilhações<br />

sofridas como consequência da<br />

<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Atahualpa, tão prontamente<br />

disposto a confiar nos conquistadores.<br />

Ñusta conversou, ao largo da travessia,<br />

com Paullo Túpac sobre a forma <strong>de</strong> se separarem<br />

da expedição espanhola. Nenhum<br />

motivo os levava a continuar junto a<br />

Almagro. E foi assim que, sigilosamente,<br />

<strong>de</strong>cidiram abandonar o exército espanhol,<br />

quando a expedição ia na zona <strong>de</strong> Atacama<br />

La Gran<strong>de</strong> (mais tar<strong>de</strong> chamada Calama),<br />

on<strong>de</strong> habitavam os Kunza.<br />

Numa noite <strong>de</strong> espessa neblina, introduziram-se<br />

no <strong>de</strong>serto, até à cordilheira,<br />

em busca <strong>de</strong> um caminho que os levasse à


província <strong>de</strong> Charcas, cumprindo assim o<br />

propósito <strong>de</strong> instigar a rebelião, já promovida<br />

pelo inca Manco Capac, em Cuzco.<br />

No entanto, a neblina, a ausência <strong>de</strong><br />

estrelas, o <strong>de</strong>serto e o horizonte circular <strong>de</strong>sviaram-nos,<br />

fazendo-os seguir para norte,<br />

rumo ao poente.<br />

Quando julgavam ter-se perdido para<br />

sempre, arrastando-se pela areia, avistaram<br />

o paraíso sob a forma do oásis <strong>de</strong> Pica.<br />

Desta vez, Ñusta Huillac, seguida <strong>de</strong><br />

uma centena dos seus melhores guerreiros<br />

e inseparáveis servidores, os wilkas, refugiou-se<br />

num bosque <strong>de</strong> tamarugos, cactos e<br />

alfarrobeiras nativas, que na altura cobriam<br />

o que é actualmente a Pampa do Tamarugal.<br />

Apelidaram essa região <strong>de</strong> Tarapacá,<br />

que em língua quechúa significa bosque<br />

impenetrável (<strong>de</strong>ssa vegetação espessa, restam<br />

apenas hoje vestígios nas imediações<br />

do povoado <strong>de</strong> Tarapacá e dos casarios <strong>de</strong><br />

Canchona e La Tirana).<br />

Durante quatro anos, Ñusta Huillac foi<br />

rainha e senhora <strong>de</strong>sses locais porque<br />

Paullo mostrou uma <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> crescente e<br />

vivia apenas para alimentar a sua nostalgia.<br />

A mando dos seus valentes wilka, Ñusta<br />

organizou as tropas e distribuiu-as <strong>de</strong> tal<br />

modo que esses bosques <strong>de</strong> Tamarugos<br />

constituíram um invencível bastião.<br />

Organizou o resto da população ao<br />

modo incaico, que permitia a exploração<br />

racional da terra e produção <strong>de</strong> vestuário<br />

e alimentação para todos. Pão e justiça era<br />

o lema <strong>de</strong>sta mulher, cuja força <strong>de</strong> carácter<br />

e firmeza das suas <strong>de</strong>cisões lhe conferiram<br />

o título atribuído pelo seu povo,<br />

como um segredo em coro: a Tirana do<br />

Tamarugal.<br />

Bem, Ñusta não se incomodou com o<br />

apelido, pois significava que o seu empenho<br />

em impor disciplina e or<strong>de</strong>m para<br />

combater os conquistadores triunfava. A<br />

melhor prova do sucesso do governo da<br />

Tirana do Tamarugal ia sendo dada pelo<br />

crescente apoio que lhe foram proporcionando<br />

os povos repartidos pelo vasto<br />

<strong>de</strong>serto. De todos os cantos do território <strong>de</strong><br />

Tahuantisuyo, quadrilhas <strong>de</strong> homens dispostos<br />

a dar a vida para acabar com os<br />

invasores acorreram a prestar-lhe homenagem<br />

e a jurar-lhe lealda<strong>de</strong>.<br />

A selva do Tamarugal foi, durante quatro<br />

anos, o baluarte <strong>de</strong> um povo que também<br />

se negou a aceitar a religião imposta<br />

pelos conquistadores. Por esse motivo,<br />

constituiu-se como lei inexorável <strong>de</strong>ssa<br />

comunida<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar à morte todo o<br />

estrangeiro ou aborígene baptizado que<br />

caísse em seu po<strong>de</strong>r.<br />

No entanto, Ñusta Huillac ignorava a<br />

partida que o <strong>de</strong>stino lhe reservava.<br />

Certo dia, levaram-lhe uns prisioneiros<br />

capturados, pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem<br />

fugido <strong>de</strong> uma mina <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> Huantajaya.<br />

Juraram ter partido com a intenção <strong>de</strong><br />

se introduzirem na região em busca da<br />

Numa noite <strong>de</strong> espessa<br />

neblina, introduziram-se<br />

no <strong>de</strong>serto, até à cordilheira,<br />

em busca <strong>de</strong> um caminho<br />

que os levasse à província<br />

<strong>de</strong> Charcas, cumprindo assim<br />

o propósito <strong>de</strong> instigar<br />

a rebelião, já promovida pelo<br />

inca Manco Capac, em Cuzco.<br />

Mina do Sol, que proporcionaria incalculáveis<br />

riquezas à Tirana. Os infelizes não<br />

entendiam que, para esse povo, o ouro não<br />

era nada mais do que «lágrimas do sol»<br />

<strong>de</strong>stinadas a confeccionar objectos preciosos<br />

para o próprio culto <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>us senhor<br />

da vida.<br />

O grupo <strong>de</strong> esfarrapados era comandado<br />

por um estrangeiro, não espanhol<br />

mas sim português, chamado D. Vasco <strong>de</strong><br />

Almeida.<br />

Ao vê-lo ferido, as roupas rasgadas,<br />

envolto em suor e pó, Ñusta sentiu na sua<br />

própria pele os golpes, o cansaço, a <strong>de</strong>rrota<br />

e o orgulho indomável daquele homem.


SANTOS DA CASA 34<br />

35<br />

A selva do Tamarugal foi,<br />

durante quatro anos,<br />

o baluarte <strong>de</strong> um povo<br />

que também se negou<br />

a aceitar a religião imposta<br />

pelos conquistadores.<br />

Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Montserrat Sáenz. Prochile<br />

Sentiu quando o olhar <strong>de</strong>le penetrou nos<br />

seus olhos. Sentiu o mar que o havia agitado<br />

durante meses, antes <strong>de</strong> chegar ao ar<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong>serto. Sentiu a sua se<strong>de</strong> e a sua fome.<br />

Sentiu a nostalgia que ele possuía do calor<br />

da sua casa…<br />

Mas os wilkas e o comité <strong>de</strong> anciãos<br />

acordaram cumprir a lei e aplicar a pena <strong>de</strong><br />

morte ao prisioneiro.<br />

A Tirana do Tamarugal sentiu então<br />

algo que <strong>de</strong>sconhecia: uma terrível dor<br />

perante a simples i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> vê-lo trespassado<br />

por uma lança. Pior ainda: era como<br />

se a ferida <strong>de</strong>le já lhe doesse a ela.<br />

E a ferida imaginária continuou a atormentá-la<br />

dias e dias, e a dor crescia, pois a<br />

execução <strong>de</strong> um prisioneiro não é algo que<br />

se <strong>de</strong>cida <strong>de</strong> bom grado. A morte é recebida<br />

com solenida<strong>de</strong> e respeito. Há que dar<br />

banho ao con<strong>de</strong>nado, alimentá-lo, fornecer-lhe<br />

as roupas a<strong>de</strong>quadas. D. Vasco <strong>de</strong><br />

Almeida <strong>de</strong>veria receber a morte como se<br />

recebe uma noiva.<br />

Entretanto, a Tirana do Tamarugal pensava<br />

dia e noite. Decidiu reunir os dignitários<br />

para adverti-los que, na sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>


sacerdotisa, se inclinaria perante o espelho<br />

<strong>de</strong> pedra e afirmaria o seu rosto no vazio<br />

para contemplar as estrelas. Queria mergulhar<br />

no <strong>de</strong>stino e compreen<strong>de</strong>r o sinal.<br />

Após a consulta aos astros, resolveu<br />

que a execução <strong>de</strong> Almeida <strong>de</strong>veria ser<br />

adiada por quatro luas.<br />

Entretanto, Ñusta e Vasco <strong>de</strong> Almeida<br />

conheceram-se.<br />

Com o passar do tempo, começou a<br />

dizer-se que o português a teria convertido<br />

e que ela, renunciando ao seu credo, se<br />

<strong>de</strong>ixou baptizar. Quem po<strong>de</strong> dar fé do que<br />

o prisioneiro e a Tirana tramaram, planearam<br />

e trocaram naquelas furtivas noites?<br />

O certo é que Ñusta se pôs em fuga mais<br />

uma vez, <strong>de</strong>sta vez com D.Vasco <strong>de</strong> Almeida.<br />

Mas não foram muito longe. Foram perseguidos<br />

pelos wilkas que <strong>de</strong>pressa <strong>de</strong>scobriram<br />

o escon<strong>de</strong>rijo on<strong>de</strong> se refugiavam os<br />

dois amantes, mas a chuva <strong>de</strong> flechas não<br />

conseguiu <strong>de</strong>senlaçar-lhes o abraço.<br />

Os soldados do último baluarte do<br />

império inca colocaram dois paus cruzados,<br />

no lugar on<strong>de</strong> os enterraram, como<br />

símbolo do que consi<strong>de</strong>ravam uma traição.<br />

Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Hernán Pereira<br />

Pouco tempo <strong>de</strong>pois, no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong><br />

1540 a 1550, um espanhol que andava em<br />

evangelização, frei Antonio Rodón, da<br />

or<strong>de</strong>m mercedária, chegou ao bosque dos<br />

Tamarugos 1 , situado a norte do Salar <strong>de</strong><br />

Pintados, a mil metros <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>, entre<br />

Iquique e Pica. Ali conheceu a história da<br />

Tirana.<br />

Vagueando pelo bosque, encontrou<br />

uma cruz numa clareira e consi<strong>de</strong>rou-a<br />

cristã. Escavou e <strong>de</strong>scobriu restos humanos.<br />

Mais tar<strong>de</strong> disse que o esqueleto do<br />

homem conservava em muito bom estado<br />

um escapulário carmelita.<br />

Com o tempo, foi crescendo<br />

a romaria para prestar,<br />

fervorosamente, <strong>de</strong>voção<br />

à virgem do <strong>de</strong>serto.


1 Conjunto <strong>de</strong> árvores da família<br />

das papilionáceas, espécie<br />

<strong>de</strong> alfarrobeira que cresce<br />

na pampa chilena. (N. da T.)<br />

2 Referente a acumulação <strong>de</strong><br />

guano; acumulação <strong>de</strong><br />

excrementos <strong>de</strong> aves<br />

marinhas nas costas do Peru<br />

e do Norte do Chile. (N. da T.)<br />

3 Nome utilizado na Bolívia<br />

e no Peru, referente aos<br />

naturais da região selvagem,<br />

escassamente incorporados<br />

na civilização oci<strong>de</strong>ntal.<br />

(N. da T.)<br />

SANTOS DA CASA 36<br />

37<br />

Todos os humilhados<br />

da terra se vestem <strong>de</strong> gala,<br />

pagam as suas promessas,<br />

gastam o seu dinheiro<br />

e, livres, livres dançam com<br />

orgulho, durante três dias,<br />

perante a Tirana,<br />

a sua virgem adorada.<br />

Com o tempo, foi crescendo a romaria<br />

para prestar, fervorosamente, <strong>de</strong>voção à<br />

virgem do <strong>de</strong>serto. São principalmente os<br />

mineiros provenientes <strong>de</strong> toda a gran<strong>de</strong><br />

região norte do Chile que comparecem, ano<br />

após ano, no dia 14 <strong>de</strong> Julho, a expressar<br />

Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Hernán Pereira<br />

<strong>de</strong>voção absoluta à sua chinita que, segundo<br />

os <strong>de</strong>votos, possui o rosto <strong>de</strong> Ñusta<br />

Huillac.<br />

Após a noite <strong>de</strong> vigília <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />

peregrinos, ao som <strong>de</strong> matracas e pan<strong>de</strong>iretas,<br />

a Tirana avança escoltada pelos chinos<br />

<strong>de</strong> Iquique, os únicos que possuem o<br />

direito <strong>de</strong> tirá-la do templo, por terem sido<br />

humilhados e escravizados nas guaneras 2 .<br />

E dançam os morenos (como são chamados<br />

os africanos) libertados para sempre da<br />

escravidão. E dançam os ciganos, livres <strong>de</strong><br />

toda a suspeita e perseguição. E dançam os<br />

chunchos 3 selvagens, as pastoras e os bolivianos<br />

com lamas, livres como condores.<br />

E dançam os peles vermelhas com seu<br />

bruxo, saídos do cinema mudo, fugindo<br />

dos invasores, e dançam os marinheiros<br />

apaixonados para sempre pelo mar. Todo o<br />

cenário andino e amazónico, todos os<br />

humilhados da terra se vestem <strong>de</strong> gala,<br />

pagam as suas promessas, gastam o seu<br />

dinheiro e livres, livres dançam com orgulho,<br />

durante três dias, perante a Tirana, a<br />

sua virgem adorada.


Festivida<strong>de</strong>s Tirana do Tamarugal. Fotografia <strong>de</strong> Montserrat Sáenz. Prochile


LIMA<br />

CIDADES INVISÍVEIS 38 39<br />

Lima, 1687. Archivo General <strong>de</strong> Indias, MP, Perú y Chile, 13


CIDADES INVISÍVEIS 40<br />

LIMA DO OUTRO LADO<br />

DOS MUROS DA CIDADE<br />

LITERÁRIA<br />

Eva Valero Juan<br />

Plaza <strong>de</strong> Armas <strong>de</strong> Lima. Fotografia <strong>de</strong> Mylene D’Auriol - Promperú<br />

41<br />

O DITADO POPULAR ESPANHOL «MAIS LONGE QUE<br />

LIMA» É TALVEZ A FRASE MAIS SUGESTIVA PARA EVOCAR<br />

AQUELA CIDADE IMAGINÁRIA QUE, DESDE A SUA FUNDAÇÃO<br />

EM 1535, SE VISLUMBRAVA NOS CONFINS DE UM MUNDO<br />

QUASE INACESSÍVEL.


Casa <strong>de</strong> Torre Tagla. Promperú<br />

Fotografia <strong>de</strong> Coco Martín - Promperú<br />

Balcones, centro <strong>de</strong> Lima. Fotografia <strong>de</strong> Aníbal Solimano - Promperú<br />

Fundada com o nome <strong>de</strong><br />

Ciudad <strong>de</strong> los Reyes, o seu nascimento<br />

como espaço físico requeria<br />

uma nova fundação: aguardava<br />

ser escrita como uma forma<br />

<strong>de</strong> alimentar a sua natural propensão<br />

utópica; necessitava <strong>de</strong><br />

adquirir uma segunda realida<strong>de</strong><br />

que lhe conferiria uma dimensão<br />

perdurável. E efectivamente,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens, a literatura foi<br />

o reflexo fiel da evolução urbana<br />

que, ao largo <strong>de</strong> cinco séculos,<br />

converteu «a triste Ciudad <strong>de</strong> los<br />

Reyes» – como a apelidara César<br />

Moro – na «Lima horrível» traçada<br />

em meados do século XX<br />

por Sebastián Salazar Bondy 1 .<br />

Um factor histórico <strong>de</strong>terminante<br />

nesta evolução foi a inevitável<br />

barreira que cercou a<br />

Lima colonial, separando-a do<br />

resto do país. Esta barreira não<br />

foi somente <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m socio<strong>cultura</strong>l,<br />

uma vez que a sua construção<br />

física data <strong>de</strong> 1685, quando<br />

Lima se converteu no lendário<br />

hortus clausum da Colónia, com a<br />

edificação <strong>de</strong> umas muralhas<br />

enormes que marcavam tanto os<br />

seus limites, como a sua fisionomia<br />

<strong>de</strong> reduto espiritual <strong>de</strong> elite.<br />

Este divórcio entre o país e a sua<br />

capital terá sido fundamental na<br />

evolução das letras peruanas e na<br />

consolidação das suas diferentes<br />

correntes literárias.Talvez a irónica<br />

<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Abraham Val<strong>de</strong>lomar<br />

seja uma das mais eloquentes<br />

para compreen<strong>de</strong>r o momento<br />

anterior à mudança: «Lima é o<br />

Peru, o Jirón <strong>de</strong> la Unión é Lima,<br />

o Palácio Concerto é o Jirón <strong>de</strong> la<br />

Unión, e eu sou o Palácio Concerto!»<br />

À margem da expressão,<br />

a frase é especialmente significativa<br />

na medida em que,com ela,Val<strong>de</strong>lomar<br />

dava significado àquela<br />

Lima da belle époque que, no princípio<br />

do século, mantinha a essência<br />

aristocrática da antiga cida<strong>de</strong><br />

colonial. No entanto, a mudança


CIDADES INVISÍVEIS 42<br />

não se faria esperar, e a prematura<br />

morte <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>lomar não lhe<br />

permitiu comprovar como a sua<br />

frase mudaria radicalmente <strong>de</strong><br />

significado em muito pouco<br />

tempo, dado que a evolução da<br />

cida<strong>de</strong>, durante a primeira meta<strong>de</strong><br />

do século XX, converteria a citada<br />

sentença num paradoxo histórico:<br />

Lima continuou a ser o<br />

Peru, mas já não num sentido <strong>de</strong><br />

centralismo exclusivista e <strong>de</strong><br />

elite, senão o oposto, na perspectiva<br />

da «peruanização» da sua<br />

socieda<strong>de</strong>, resultante da avalanche<br />

migratória das províncias, a<br />

partir da década <strong>de</strong> trinta.<br />

Des<strong>de</strong> o princípio do século,<br />

a Lima vice-reinal tinha começado<br />

a <strong>de</strong>svanecer-se num passado<br />

quase inverosímil, pelo contraste<br />

radical que impôs a transformação<br />

urbana. A constatação <strong>de</strong>sta<br />

profunda mudança teve uma<br />

imagem concreta e real no espaço<br />

da cida<strong>de</strong> e, ao mesmo tempo,<br />

numa construção literária <strong>de</strong>senvolvida<br />

por uma série <strong>de</strong> autores,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais do século XIX. No<br />

ano <strong>de</strong> 1870, «o mandato das<br />

mutações» chegava à aristocrática<br />

Ciudad <strong>de</strong> los Reyes com o objectivo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o símbolo principal<br />

do seu inabalável elitismo: as<br />

muralhas construídas pelo duque<br />

<strong>de</strong> la Palata. A <strong>de</strong>molição dos<br />

velhos muros marcou um ponto<br />

<strong>de</strong> inflexão transcen<strong>de</strong>ntal na<br />

evolução da cida<strong>de</strong> que abriu as<br />

suas portas à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mas<br />

também ao Peru na sua globalida<strong>de</strong>.<br />

Foi assim que, no século<br />

XX, Lima transformou radicalmente<br />

as suas faces para adquirir<br />

um rosto peruano e, nesse processo,<br />

o divórcio secular do Centro<br />

com o resto do país, que escondia<br />

o drama dos <strong>de</strong>spojados por<br />

<strong>de</strong>trás dos cumes dos An<strong>de</strong>s, e<br />

que se revelou no espaço que<br />

transpunha os limites da cida<strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rna. Paralelamente, a <strong>de</strong>sa-<br />

43<br />

justada transformação nacional<br />

gerou a <strong>de</strong>cadência física e espiritual<br />

da urbe <strong>de</strong>spoetizada: a<br />

«Ciudad <strong>de</strong> la Gracia», como a<br />

apelidara Ruben Darío, cobria-se<br />

<strong>de</strong> cinzento para <strong>de</strong>svanecer-se<br />

no idêntico e impessoal <strong>de</strong> uma<br />

problemática mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Contudo, o lirismo daquele<br />

«horto fechado» que foi a Lima<br />

do passado não cairia no esquecimento:<br />

a literatura encarregar-<br />

-se-ia <strong>de</strong> resgatá-lo quando, <strong>de</strong>pois<br />

do caos revolucionário da in<strong>de</strong>-<br />

NO SÉCULO XX,<br />

LIMA TRANSFORMOU<br />

RADICALMENTE<br />

AS SUAS FACES<br />

PARA ADQUIRIR<br />

UM ROSTO PERUANO<br />

E, NESSE PROCESSO,<br />

O DIVÓRCIO SECULAR<br />

DO CENTRO<br />

COM O RESTO DO PAÍS.<br />

pendência, surgiu a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> recuperar a memória histórica<br />

como forma iniludível <strong>de</strong> incluí-<br />

-la no presente para olhar para o<br />

futuro. Neste âmbito, a recuperação<br />

do passado na literatura<br />

peruana concretiza-se, fundamentalmente,<br />

numa tradição literária<br />

urbana que tem a sua origem nos<br />

finais do século XX, na obra <strong>de</strong><br />

Ricardo Palma. Nas suas Tradiciones<br />

Peruanas, o escritor construiu a<br />

cida<strong>de</strong> mítica da colónia, inaugurando<br />

um discurso evocativo<br />

cujas reminiscências, todavia, se<br />

sentiram em meados do século<br />

XX, na obra literária <strong>de</strong> Julio<br />

Ramón Ribeyro, que assumiu o<br />

<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> criar a geografia literária<br />

da Lima mo<strong>de</strong>rna. Entre<br />

Palma e Ribeyro, a história da<br />

capital na literatura do Peru<br />

<strong>de</strong>senvolveu-se através <strong>de</strong> uma<br />

tradição concreta: a construção<br />

literária <strong>de</strong> «una Lima que se<br />

va», título da obra <strong>de</strong> José Gálvez<br />

na qual este cronista, recorrendo<br />

à semente arraigada nas Tradiciones<br />

Peruanas, consolidou uma literatura<br />

urbana baseada nas recuperações<br />

do passado.<br />

Mas retornemos à origem,<br />

as «tradiciones» palmianas, um<br />

género que, através da inédita<br />

fusão entre história, lenda e literatura,<br />

<strong>de</strong>u lugar a várias séries<br />

<strong>de</strong> relatos nos quais a cida<strong>de</strong><br />

vice-reinal revivia os seus faustos.<br />

Nas Tradiciones, os limenhos<br />

da urbe republicana, saturados<br />

<strong>de</strong> história entre a real e a<br />

inventada, podiam <strong>de</strong>scobrir em<br />

cada rua da sua cida<strong>de</strong> uma<br />

anedota do tradicionista, <strong>de</strong><br />

forma que o hortus clausum vice-<br />

-reinal, em processo <strong>de</strong> extinção,<br />

se impregnou <strong>de</strong> história e <strong>de</strong><br />

lenda, integrando-se <strong>de</strong>cididamente<br />

na consciência republicana<br />

da segunda meta<strong>de</strong> do<br />

século XIX.<br />

Através da visão intra-histórica<br />

do anedotário social e político<br />

dos séculos anteriores, e do<br />

trabalho <strong>de</strong> recuperação da literatura<br />

colonial, Palma restituiu a<br />

consciência histórica que havia<br />

eliminado, num primeiro momento,<br />

o fervor da In<strong>de</strong>pendência.<br />

No problemático ambiente republicano,<br />

esta afirmação das raízes<br />

parecia necessária e <strong>de</strong>la se <strong>de</strong>duz<br />

uma mitificação da cida<strong>de</strong> como


Arcádia, como resposta necessária<br />

<strong>de</strong> um momento histórico<br />

flutuante e instável, que procurava<br />

referentes ou argumentos para<br />

salvaguardar a hesitante utopia<br />

republicana. Emergia assim para<br />

a literatura a cida<strong>de</strong> do passado,<br />

quase invisível em pleno século<br />

XX, mas, em todo o caso, idiossincrasia<br />

da Lima mo<strong>de</strong>rna.<br />

Sobre essa cida<strong>de</strong> invisível que<br />

Palma converteu em mito fundador<br />

<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, meditava<br />

Julio Ramón Ribeyro no artigo<br />

que <strong>de</strong>dicou ao narrador tradicionista,<br />

intitulado «Gracias,<br />

viejo socarrón». Ali, Ribeyro<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que a existência <strong>de</strong><br />

Lima como cida<strong>de</strong> histórica, tal<br />

como se concebe no imaginário<br />

<strong>cultura</strong>l, se <strong>de</strong>via indiscutivelmente<br />

à obra <strong>de</strong> Ricardo Palma:<br />

«O nosso passado seria para nós<br />

terreno baldio, <strong>de</strong>sertificação e<br />

silêncio, não fossem as centenas<br />

<strong>de</strong> Tradiciones que este “cocabichinhos”<br />

escreveu no <strong>de</strong>curso<br />

da sua longa vida.» 2<br />

A influência da obra <strong>de</strong><br />

Palma na literatura que posteriormente<br />

alimentou o mito<br />

arcádico do passado, e que se<br />

<strong>de</strong>u em chamar literatura passadista,<br />

intensificou-se fundamentalmente<br />

após a <strong>de</strong>molidora<br />

Guerra do Pacífico, que aboliu as<br />

esperanças e confirmou a frustração<br />

da «promessa» republicana.<br />

Só uns anos antes, em 1870,<br />

tinham-se <strong>de</strong>struído as muralhas<br />

simbólicas que até ao momento<br />

enclausuravam a consciência <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento urbano. O <strong>de</strong>saparecimento<br />

dos intolerantes<br />

muros, símbolos do obscurantismo<br />

e do centralismo, parecia<br />

confirmar o advento <strong>de</strong>finitivo<br />

da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> urbana – que se<br />

viu truncada após a guerra – e<br />

predizia a iminência <strong>de</strong> uma<br />

futura abertura ao mundo andino.<br />

No entanto, a incorporação<br />

da serra no espaço alienante da<br />

cida<strong>de</strong> tardaria umas décadas a<br />

efectuar-se.<br />

Foi assim que, nos alvores<br />

do século XX, surgiu uma nova<br />

geração <strong>de</strong> escritores, os filhos da<br />

Guerra do Pacífico, que evitaram<br />

a problemática nacional para nos<br />

oferecer essa versão «passadista»<br />

da cida<strong>de</strong>, impregnada <strong>de</strong> nostalgia<br />

e melancolia, gerando, <strong>de</strong><br />

uma forma muito clara, a versão<br />

i<strong>de</strong>alizadora <strong>de</strong> Lima como Arcádia<br />

colonial. Entre eles, José Gál-<br />

EMERGIA ASSIM<br />

PARA A LITERATURA<br />

A CIDADE<br />

DO PASSADO,<br />

QUASE INVISÍVEL<br />

EM PLENO<br />

SÉCULO XX,<br />

MAS EM TODO O CASO<br />

IDIOSSINCRASIA<br />

DA LIMA<br />

MODERNA.<br />

vez escreveu a citada Una Lima que<br />

se va (1921) 3 ; e Luis Alayza, em Mi<br />

país (4.ª serie: ciuda<strong>de</strong>s, valles y playas <strong>de</strong><br />

la costa <strong>de</strong>l Perú), recordou a construção<br />

das muralhas com as<br />

quais o duque <strong>de</strong> la Palata quis<br />

proteger Lima dos piratas que<br />

assediavam as costas – «Noutros<br />

tempos, as muralhas foram sítios<br />

<strong>de</strong> recreio aristocrático e, muitas<br />

vezes, <strong>de</strong> aventuras românticas»<br />

– para logo <strong>de</strong>screver, uma vez<br />

<strong>de</strong>struídas, «a interminável colina<br />

<strong>de</strong> lixeiras em que se chegou a<br />

converter a <strong>de</strong>fesa da “Ciudad <strong>de</strong><br />

los Reyes”» 4 . Esta é a incipiente<br />

«barriada» cujas consequências<br />

dramáticas se encontram analisadas<br />

em algumas obras dos escritores<br />

da <strong>de</strong>nominada geração <strong>de</strong><br />

50.<br />

A opulenta Ciudad <strong>de</strong> los<br />

Reyes, enriquecida graças ao<br />

centralismo que a manteve isolada<br />

da realida<strong>de</strong> andina da qual se<br />

nutria, assistiria por fim à nacionalização<br />

do seu espaço. O processo<br />

da literatura peruana mitificou<br />

um passado quimérico <strong>de</strong><br />

paz e felicida<strong>de</strong>, nas obras que<br />

registam a <strong>de</strong>sintegração da Lima<br />

vice-reinal – Enrique A. Carrillo<br />

«Cabotín», Gastón Roger, José<br />

Gálvez, etc. –; o mesmo passado<br />

que Manuel González Prada,<br />

José Carlos Mariátegui e Sebastián<br />

Salazar Bondy <strong>de</strong>nunciaram<br />

como causa directa da sobrevivência<br />

do sistema <strong>de</strong> classes e<br />

dos problemas globais do país.<br />

Em meados do século, a transformação<br />

urbana impôs uma fisionomia<br />

totalmente renovada da<br />

cida<strong>de</strong>, enclausurou a já cambaleante<br />

exclusivida<strong>de</strong> limenha e<br />

incorporou no seu espaço a imagem<br />

fervorosa do país real.<br />

Esta nova realida<strong>de</strong> foi traçada<br />

pelos escritores neo-realistas<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 50, através <strong>de</strong> uma<br />

perspectiva crítica e analítica das<br />

aceleradas transformações urbanas<br />

ocorridas durante estas décadas.<br />

A dissolução do hortus clausum<br />

vice-reinal era já <strong>de</strong>finitiva na<br />

realida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>, mas, na literatura,<br />

o seu próprio processo<br />

sobreviveu, gerando uma tradição<br />

urbana concreta: o discurso<br />

literário que dramatiza as<br />

mudanças e impõe o contraste<br />

com o presente. Este discurso já<br />

se encontrava nas Tradiciones <strong>de</strong>


CIDADES INVISÍVEIS 44<br />

EM MEADOS DO SÉCULO,<br />

A TRANSFORMAÇÃO<br />

URBANA IMPÔS<br />

UMA FISIONOMIA<br />

TOTALMENTE RENOVADA<br />

DA CIDADE,<br />

ENCLAUSUROU<br />

A JÁ CAMBALEANTE<br />

EXCLUSIVIDADE<br />

LIMENHA E INCORPOROU<br />

NO SEU ESPAÇO<br />

A IMAGEM FERVOROSA<br />

DO PAÍS REAL.<br />

45<br />

Palma e chegou até à narrativa <strong>de</strong><br />

Ribeyro:<br />

Lima ganhou em Civilização, mas<br />

<strong>de</strong>spoetizou-se e, dia após dia, per<strong>de</strong> tudo o<br />

que houve <strong>de</strong> original e típico nos seus costumes<br />

(Ricardo Palma: «Com días<br />

y ollas venceremos») 5 .<br />

O país tinha-se transformado e continuava<br />

a transformar-se,e Lima,em particular,<br />

tinha <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser o «hortus<br />

clausum vice-reinal» para se converter<br />

numa urbe ruidosa, feiíssima e industrializada,<br />

on<strong>de</strong> o mais raro que se podia<br />

encontrar era um limenho (J. R. Ribeyro:<br />

«El marqués y los gavilanes») 6 .<br />

O horto fechado tinha-se<br />

convertido no seu oposto quando<br />

a abertura da capital ao mundo<br />

andino surpreen<strong>de</strong>u os limenhos<br />

<strong>de</strong> antes. Estupefactos, viram cair,<br />

<strong>de</strong>finitivamente, aqueles muros<br />

antigos que, ainda que <strong>de</strong>struídos<br />

tempos atrás, tinham sobrevivido<br />

no mais profundo da cida<strong>de</strong><br />

limenha. A lenda urbana <strong>de</strong><br />

Palma diluía-se assim entre as<br />

novas facções mestiças daquela<br />

Lima transformada que escritores<br />

como Ribeyro souberam <strong>de</strong>scobrir<br />

e revelar, dando lugar aos<br />

novos rumos que, <strong>de</strong> acordo com<br />

a realida<strong>de</strong> social, a literatura<br />

peruana seguiria por volta do fim<br />

do século XX.<br />

1 Lima, la horrible é o título <strong>de</strong> um emblemático ensaio<br />

<strong>de</strong> Sebastián Salazar Bondy (México, Era, 1964).<br />

2 Julio Ramón Ribeyro, “Gracias, viejo socarrón”,<br />

em Antología personal, México, Fondo <strong>de</strong> Cultura<br />

Económica, 1994, p. 127.<br />

3 José Gálvez, Una Lima que se va, Lima, Euforión, 1921.<br />

4 Luis Alayza y Paz Soldán, Mi País (4.ª serie: Ciuda<strong>de</strong>s,<br />

valles y playas <strong>de</strong> la costa <strong>de</strong>l Perú), Lima, Talleres<br />

Gráficos Publicidad-Americana, 1945, pp. 17 e 13.<br />

5 Ricardo Palma, Tradiciones Peruanas, Barcelona,<br />

Montaner y Simón, 1893, tomo I, pág. 387.<br />

6 Julio Ramón Ribeyro, “El marqués y los gavilanes”, em<br />

Cuentos completos, Madrid, Alfaguara, 1994, p. 467.


Alameda <strong>de</strong> Barranco. Fotografia <strong>de</strong> Carlos Sala - Promperú


CIDADES INVISÍVEIS 46 47<br />

OS BAIRROS ALTOS<br />

E SEUS CINEMAS<br />

Alejandro Reyes<br />

Praça Buenos Aires (Bairros Altos). Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Alejandro Reyes


Aproximadamente 70% dos<br />

cine-teatros dos Bairros Altos<br />

começaram a funcionar na<br />

segunda década do século XX,<br />

reflectindo a elevada <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

populacional e o po<strong>de</strong>r económico<br />

dos seus vizinhos. O Lima,<br />

o Mazzi e o Delicias foram cine-<br />

-teatros que fascinaram pela sua<br />

arquitectura mo<strong>de</strong>rna e a sua<br />

elegância interior. Na segunda<br />

década do século XX, o cine-<br />

-teatro Lima, com a administração<br />

<strong>de</strong> Dom Venâncio Rada, oferecia<br />

três sessões diárias, havendo<br />

quatro tipos <strong>de</strong> entradas: balcão,<br />

plateia, galeria e camarotes. As<br />

poltronas do balcão e da plateia<br />

estavam forradas com veludo,<br />

criando-se um ambiente propício<br />

para ver os filmes «mudos»<br />

que eram acompanhados com o<br />

ritmo <strong>de</strong> um piano.<br />

Um exemplo da importância<br />

do público e dos cinemas<br />

dos Bairros Altos foi a apresentação<br />

<strong>de</strong> companhias estrangeiras<br />

como a <strong>de</strong> Margarita Xirgú no<br />

cine-teatro Lima (versão do<br />

meu pai, Alejandro Reyes Verás-<br />

Fachada Cine-teatro Mazzi (Bairros Altos),<br />

in <strong>Revista</strong> Varieda<strong>de</strong>s, Lima, Ano VIII, 17.02.1912, n.º 207<br />

tegui).Também se apoiou a produção<br />

nacional, difundindo a<br />

nossa música crioula, como o<br />

festival que se realizou no teatro<br />

Lima a 8 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1926 «a<br />

favor do músico Nicolás Wetzell,<br />

contando-se com a participação<br />

<strong>de</strong> Felipe Pinglo, o duo<br />

Montes y Manrique, os irmãos<br />

Vilela, Carlos Saco, Guillermo<br />

Acosta, Juan Araújo, além <strong>de</strong><br />

outras figuras do crioulismo<br />

daquela época» (D. Mejía).<br />

A confluência <strong>de</strong> <strong>cultura</strong>s<br />

nos Bairros Altos reflecte-se<br />

nitidamente nos seus cine-teatros.<br />

Os primeiros chineses que<br />

se foram instalando nos Bairros<br />

Altos em 1860, no começo do<br />

século XX já constituíam uma<br />

numerosa colónia com uma<br />

sólida economia, levando a que,<br />

institucionalmente, construíssem<br />

o cine-teatro Delicias na<br />

rua colonial do Rastro <strong>de</strong> la<br />

Huaquilla, junto ao famoso e<br />

BAIRROS ALTOS / CINEMAS 1910-1960<br />

Cinema Rua<br />

Cinelandia Vitervo<br />

América General La Fuente<br />

Bolívar* Plazuela <strong>de</strong> Santa Catalina<br />

Apolo Chirimoyo<br />

Delicias* Rastro <strong>de</strong> la Huaquilla<br />

Francisco Pizarro* Plazuela <strong>de</strong> Santa Ana<br />

(Mazzi) Unión* Plazuela <strong>de</strong> Santa Ana<br />

Continental Plazuela Mercedarias<br />

Buenos Aires Acequia <strong>de</strong> Islas<br />

Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lemos* Plazuela Buenos Aires<br />

Lima* Manuel Morales<br />

(Astor) Huáscar Aromo<br />

* Cine-teatro Fonte: Autor<br />

Sala Cine-teatro Mazzi (Bairros Altos),<br />

in <strong>Revista</strong> Varieda<strong>de</strong>s, Lima, Ano VIII, 17.02.1912, n.º 207


CIDADES INVISÍVEIS 48<br />

As poltronas do balcão<br />

e da plateia estavam<br />

forradas com veludo,<br />

criando-se um ambiente<br />

propício para ver<br />

os filmes «mudos»<br />

que eram<br />

acompanhados com o<br />

ritmo <strong>de</strong> um piano.<br />

49<br />

enorme beco conhecido como<br />

as «Siete puñaladas», <strong>de</strong>molido<br />

no princípio <strong>de</strong> 1950 para dar<br />

lugar a um edifício <strong>de</strong> apartamentos.<br />

Na segunda e terceira<br />

décadas do século XX, o cine-<br />

-teatro Delicias projectou filmes<br />

chineses, «dando-se ao luxo» <strong>de</strong><br />

contratar directamente na China<br />

companhias completas <strong>de</strong> teatro<br />

para oferecer ao seu público.<br />

Também o cinema Apolo, em<br />

dias especiais, projectou películas<br />

chinesas até meados do século<br />

XX. Não obstante, os cinemas<br />

América, Buenos Aires, Astor e<br />

Continental foram mais populares,<br />

não só pela sua estrutura,<br />

como também pelas películas<br />

que projectavam e pelo preço<br />

das suas entradas.<br />

Uma segunda geração <strong>de</strong><br />

cinemas nos Bairros Altos, que<br />

reafirma a elevada <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> e<br />

soli<strong>de</strong>z económica dos seus vizinhos,<br />

é marcada pela construção<br />

do sóbrio edifício do cinema<br />

Bolívar. De igual modo, a elegância,<br />

a amplitu<strong>de</strong>, o ecrã e a iluminação<br />

do Francisco Pizarro sublinharam<br />

o valor imobiliário da<br />

praça Itália, sendo projectados filmes<br />

mo<strong>de</strong>rnos e apresentando-se<br />

anualmente a companhia cubana<br />

<strong>de</strong> «Carlitos» Pons entre 1948 e<br />

1951. Por esta altura, construía-<br />

-se no «coração» dos Bairros<br />

Altos, na praceta <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />

o último cine-teatro, o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Lemos, <strong>de</strong>struindo-se, para a sua<br />

edificação, parte do beco <strong>de</strong> São<br />

José.<br />

À excepção do Continental,<br />

conheci todos estes cinemas,<br />

assistindo a filmes, teatro e varieda<strong>de</strong>s.<br />

A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> da televisão<br />

(1960-1970) começou a<br />

eclipsar os cinemas dos Bairros<br />

Altos, e o público que se havia<br />

<strong>de</strong>leitado com sessões <strong>de</strong> dois filmes<br />

pelo preço <strong>de</strong> uma entrada<br />

ou com as «terças-feiras femininas»,<br />

«pouco a pouco» foi abandonando<br />

as suas poltronas,<br />

algumas <strong>de</strong>las com iniciais que<br />

indicavam «proprieda<strong>de</strong>», e refugiou-se<br />

em suas casas a «ver televisão».<br />

Hoje, os cinemas dos<br />

Bairros Altos, que se iniciaram<br />

com a pré-história do cinema<br />

«mudo», per<strong>de</strong>ram a sua finalida<strong>de</strong><br />

inicial: projectar filmes.<br />

Alguns foram <strong>de</strong>struídos, outros<br />

estão a cumprir outra função<br />

social, e a maioria encontra-se<br />

abandonada «à sua sorte», como<br />

se po<strong>de</strong> verificar no seguinte<br />

quadro:<br />

BAIRROS ALTOS / CINEMAS 2006<br />

Cinema Rua - Lugar Situação actual<br />

Cinelandia Vitervo Feira <strong>de</strong> livros<br />

América General La Fuente Galeria comercial<br />

Bolívar* Plazuela Sta Catalina Galeria comercial<br />

Apolo Chirimoyo Local comercial<br />

Delicias* Rastro <strong>de</strong> la Huaquilla Abandonado<br />

Francisco Pizarro* Plazuela <strong>de</strong> Santa Ana Abandonado<br />

(Mazzi) Unión* Plazuela <strong>de</strong> San Ana Abandonado<br />

Continental Plazuela Mercadarias Abandonado<br />

Buenos Aires Acequia <strong>de</strong> Islas Abandonado<br />

Con<strong>de</strong> Lemos* Buenos Aires Abandonado<br />

Lima* Manuel Morales Abandonado<br />

(Astor) Huáscar Aromo ?<br />

* Cine-teatro Fonte: Autor


O referente popular dos<br />

Bairros Altos não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />

apenas como sinónimo<br />

<strong>de</strong> pobreza, mas também como<br />

uma zona <strong>de</strong> elevada <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

populacional que po<strong>de</strong> explicar<br />

a edificação <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> cine-teatros, nas primeiras<br />

décadas do século XX, e<br />

cuja vida se prolongou mais <strong>de</strong><br />

meio século. Este indicador dos<br />

cine-teatros nos Bairros Altos,<br />

com uma afluência massiva <strong>de</strong><br />

público, estaria a <strong>de</strong>monstrar-<br />

-nos que, como «um todo vicinal»,<br />

a economia familiar pô<strong>de</strong><br />

satisfazer um consumo quotidiano<br />

e permanente. Porque se<br />

ia ao cinema «todas as semanas»,<br />

uma ou duas vezes, pais,<br />

filhos, netos, e, quando chegava<br />

um espectáculo «ao vivo» toda<br />

a família assistia. Houve casos<br />

extremos <strong>de</strong> bairroaltinos que<br />

todos os dias iam ao mesmo<br />

cinema, sem conhecer o filme, e<br />

outros que escolhiam um dia<br />

fixo da semana. Dos primeiros<br />

cinemas que apareceram no início<br />

da segunda década do século<br />

XX, o Mazzi mudou para<br />

Unión, no início <strong>de</strong> 1950, e o<br />

Ástor sofreu um incêndio,<br />

sendo substituído pelo Huáscar,<br />

os restantes continuaram a<br />

funcionar normalmente com<br />

outros cinemas que se lhe juntaram,<br />

até que todos encerraram<br />

<strong>de</strong>vido à concorrência da televisão<br />

e do VHS. Não foi por acaso<br />

que, hoje, os cinemas se transferiram<br />

para os conos, que são<br />

zonas «populares».<br />

Na época da construção dos<br />

cinemas, o município <strong>de</strong> Lima<br />

iniciou uma política <strong>de</strong> «abrir»<br />

ruas na cida<strong>de</strong> com a finalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> facilitar a <strong>de</strong>slocação da sua<br />

população que aumentava significativamente.<br />

Nos Bairros Altos,<br />

prolongaram-se os jirones, urbanizaram-se<br />

quarteirões, construíram-se<br />

casas para satisfazer<br />

uma crescente procura da sua<br />

população. O jirón Paruro prolongou-se<br />

até à avenida Grau, e<br />

a rua Chirimoyo (jirón Puno)<br />

avançou para se encontrar com<br />

o jirón Huanaco (Cocharcas). Por<br />

Maravillas, na zona conhecida<br />

como San Isidro, abrem-se o<br />

jirón Manuel Pardo, as ruas<br />

Tenente Arancibia, Rodríguez,<br />

Centro Escolar e outras. Os Barrios<br />

Altos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua origem,<br />

foi uma zona <strong>de</strong> expansão<br />

urbana natural, tendo crescido<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente com o <strong>de</strong>correr<br />

dos séculos. Aqui não se respeitou<br />

a quadrícula do tabuleiro<br />

<strong>de</strong> Pizarro, os seus quarteirões<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> extensão e as suas<br />

ruas prolongavam-se por 200 e<br />

até 300 metros, como a rua Los<br />

Naranjos que abarca, ainda<br />

hoje, três quarteirões; Rufas<br />

atravessava dois quarteirões, e<br />

algo semelhante havia acontecido<br />

com a rua La Confianza,<br />

que começava em Santa Catalina<br />

e terminava na rua Chirimoyo,<br />

sendo cortada para permitir o<br />

prolongamento dos jirones Paruro<br />

e Huanta. Relativamente aos<br />

quarteirões <strong>de</strong> solares ou hortas<br />

que existiam nos Bairros Altos,<br />

o único que <strong>de</strong>safia o tempo e<br />

que é um testemunho da vastidão<br />

<strong>de</strong>stes lugares é o histórico<br />

estádio <strong>de</strong> Buenos Aires.<br />

Em 1909 foi <strong>de</strong>struído o<br />

beco Otaiza, comunicando a<br />

avenida Ucajali com a avenida<br />

Ayacucho (<strong>de</strong>pois Miró Quesada).<br />

Prolongar avenidas e abrir ruas<br />

fez parte <strong>de</strong> uma política estatal<br />

e municipal <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização<br />

do casco urbano <strong>de</strong> Lima. De<br />

acordo com a higiene ambiental<br />

<strong>de</strong> princípios do século XX, em<br />

1909, a azinhaga «Oitaza»,<br />

i<strong>de</strong>ntificada como «foco infeccioso»,<br />

foi <strong>de</strong>struída, permitindo,<br />

ao mesmo tempo, a comunicação<br />

dos jirones Ucayali com Ayacucho<br />

(<strong>de</strong>pois Miró Quesada).<br />

Mas não havia apenas que «limpar»<br />

Lima, como também «oxigenar»<br />

a cida<strong>de</strong>, abrindo «atalhos»<br />

que economizassem tempo<br />

aos limenhos para se <strong>de</strong>slocarem<br />

<strong>de</strong> um lugar para outro. Em<br />

1911, nos Bairros Altos, expropriaram-se<br />

e <strong>de</strong>struíram-se<br />

casas da Beneficência <strong>de</strong> Lima e<br />

do convento da Buena Muerte<br />

situados na rua Carmen Alto <strong>de</strong><br />

um lado, e do outro, a horta<br />

Manuel Morales, situada na rua<br />

Los Naranjos, conseguindo-se o<br />

acesso directo entre ambas as<br />

ruas. Anos <strong>de</strong>pois, numa parte<br />

da nova rua Manuel Morales, a<br />

Beneficência <strong>de</strong> Lima construiu<br />

uma formosa quinta com duas<br />

portas <strong>de</strong> entrada que ainda<br />

hoje existe. De igual modo,<br />

rapidamente se construiu o<br />

cine-teatro Lima que em 1913<br />

anunciava os filmes «El Judio<br />

Errante y Fantomas», cobrando a<br />

entrada <strong>de</strong> um sol para um balcão<br />

<strong>de</strong> quatro lugares e 6 centavos<br />

1 por um camarote.<br />

1 Diário El Comercio, 15 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1913.


VIDAS CONTADAS 50<br />

UMA EVOCAÇÃO<br />

DE JOSÉ MARÍA<br />

ARGUEDAS<br />

Cecilia Bustamante<br />

Arguedas é o escritor dos encontros e <strong>de</strong>sencontros <strong>de</strong> todas as raças, <strong>de</strong> todas<br />

as línguas e <strong>de</strong> todas as pátrias do Peru. A sua vida e a sua criação nutriram-se<br />

da sua terra, do povo peruano, especialmente dos camponeses, artesãos, músicos<br />

e artistas populares. «Recorri los campos e hice las faenas <strong>de</strong> los campesinos<br />

bajo el infinito amparo <strong>de</strong> los comuneros quechuas», contava.<br />

Em 1928, publica na revista Antorcha <strong>de</strong> Huancayo. Em 1931, ingressa na Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> S. Marcos <strong>de</strong> Lima e termina os seus estudos <strong>de</strong> literatura em 1937,<br />

ano em que é preso <strong>de</strong>vido às suas activida<strong>de</strong>s políticas.<br />

Em Portugal, o seu mais importante livro, Os Rios Profundos, encontra-se<br />

publicado pela Assírio & Alvim.<br />

Cecilia Bustamante leva-nos ao encontro do gran<strong>de</strong> escritor peruano.<br />

Atrás, Alicia e pessoa não i<strong>de</strong>ntificada. Sentados da esquerda para a direita: Célia, poetisa Blanca Varela e José María Arguedas.<br />

51<br />

Rancho <strong>de</strong>l Puerto <strong>de</strong> Supe, norte <strong>de</strong> Lima. Foto do Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Cecilia Bustamante


«Tú ves, como niño, algunas cosas que los mayores no vemos…»<br />

Os Rios Profundos


VIDAS CONTADAS 52 53<br />

O meu pai tinha viajado para<br />

o Norte do Peru para tentar a<br />

sorte. Regressou a Lima em<br />

1939, com vários filhos e pouca<br />

fortuna. Vínhamos com gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer os avós, tios,<br />

primos, cujas imagens e nomes<br />

meu pai tinha mantido vivos,<br />

para mim, em histórias fantásticas.<br />

À luz do can<strong>de</strong>eiro a petróleo,<br />

na distante fazenda piurana<br />

<strong>de</strong> Parihuanás, escutávamos os seus<br />

relatos sobre os nossos tetravós,<br />

bisavós, avós, <strong>de</strong> vários lugares do<br />

Sul do Peru e do Norte do Chile.<br />

Relatos sobre as figuras mais<br />

próximas das suas irmãs mais<br />

novas,Alicia e Celia – que se apresentavam<br />

na minha imaginação<br />

infantil como duas mulheres<br />

extraordinárias.A voz do meu pai<br />

enchia-se <strong>de</strong> carinho e admiração<br />

ao recordá-las. Chegámos, por<br />

fim, a Callao, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> três dias<br />

<strong>de</strong> viagem por mar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Paita,<br />

Piura, no barco «Rainha do Pacífico».<br />

A minha mãe viajava com<br />

seis filhos, o mais novo com dois<br />

anos, e todos enjoámos.A «nossa<br />

família» foi receber-nos ao porto.<br />

Senti para sempre uma gran<strong>de</strong><br />

admiração por Alicia e Celia. Não<br />

eram como as outras pessoas:<br />

pareciam unidas por um laço especial<br />

<strong>de</strong> força, uma paixão que,<br />

animando-as, lhes concedia singularida<strong>de</strong><br />

e beleza. Mais tar<strong>de</strong><br />

compreendi que essa paixão incluía<br />

o seu i<strong>de</strong>al político e o seu<br />

trabalho a favor dos indígenas do<br />

Peru. Viajavam constantemente<br />

pelos povoados da costa e das<br />

serras reunindo objectos <strong>de</strong> arte<br />

popular que mais tar<strong>de</strong> formariam<br />

a sua famosa colecção <strong>de</strong><br />

«Arte Popular Peruana» 1 .<br />

Nutriam um amor violento<br />

pelo Peru, em <strong>de</strong>fesa do nativo e<br />

pelo reconhecimento dos artistas<br />

populares que constantemente<br />

ajudavam. Era inevitável que conhecessem<br />

José María Arguedas<br />

quando ele chegou a Lima. Alguém<br />

o levou a esse centro peruanista,<br />

indigenista, a «Peña Pancho<br />

Fierro» que elas tinham fundado<br />

(1938?) e que funcionava num recanto<br />

da Praceta San Agustín.<br />

Àquele local afluíram,durante mais<br />

<strong>de</strong> vinte anos, artistas, intelectuais<br />

peruanos e estrangeiros que visitavam<br />

Lima,constituindo a vanguarda<br />

da vida <strong>cultura</strong>l peruana 2 .<br />

Era inevitável que<br />

conhecessem José<br />

María Arguedas<br />

quando ele chegou a<br />

Lima. Alguém o levou<br />

a esse centro peruanista,<br />

indigenista,<br />

a «Peña Pancho Fierro»<br />

que elas tinham<br />

fundado (1938?)<br />

e que<br />

funcionava num<br />

recanto da Praceta<br />

San Agustín.<br />

José María enamorou-se da<br />

bela arequipenha A<strong>de</strong>lita Montesinos,<br />

com a qual me cruzei na<br />

minha adolescência inquieta e<br />

que me contou da sua rivalida<strong>de</strong><br />

com Celia pelo amor <strong>de</strong> José<br />

María com quem se ia casar. José<br />

María enamorou-se <strong>de</strong> Celia, com<br />

quem casou em 1939, uma data<br />

que não recordo mas que <strong>de</strong>ixou<br />

algumas imagens na minha<br />

memória.<br />

Os meus avós, Josefina Vernal<br />

y Luza (nascida em Iquique) e<br />

Carlos Bustamante y Gandarillas,<br />

arequipenho, viviam no segundo<br />

andar <strong>de</strong> uma casa colonial, na<br />

Rua Mariquitas, 336, no centro<br />

antigo <strong>de</strong> Lima. Havia mais gente<br />

que <strong>de</strong> costume, nós os Bustamante<br />

e Moscoso estávamos <strong>de</strong><br />

regresso a Lima e vivíamos em<br />

casa dos avós. A avó estava cega<br />

havia vários anos, Celia era a sua<br />

filha mais nova e a mais querida.<br />

Nesse dia, a avó <strong>de</strong>sejava saber<br />

tudo o que se passava à sua volta:<br />

como estava vestida Celita, que<br />

horas eram, quem ia e vinha. Sabia<br />

que a sua filha iria viajar para<br />

a serra após a cerimónia. Eu tinha<br />

aprendido a ler muito cedo e tinha-me<br />

convertido em sua «leitora<br />

e acompanhante». Desejosa<br />

<strong>de</strong> falar, a avó contava-me longas<br />

histórias da sua infância em<br />

Iquique e, <strong>de</strong>pois, da sua vida <strong>de</strong><br />

colegial na Europa, recordações<br />

<strong>de</strong> um mundo que tinha <strong>de</strong>saparecido.<br />

Falava a uma criança,<br />

como falamos a quem esperamos<br />

que esqueça. Celita, dizia-me, casava-se<br />

com um escritor que falava<br />

quechúa e que escrevia misturando<br />

o castelhano com a língua<br />

nativa. Um rapaz inteligente<br />

que tinha encontrado um posto<br />

<strong>de</strong> professor num povoado perto<br />

<strong>de</strong> Cuzco que se chamava Sicuani.<br />

Para lá levaria a minha tia<br />

Celia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se casarem. Que<br />

pena não terem dinheiro. E <strong>de</strong>ixava<br />

resvalar algumas lágrimas<br />

na sua obscurida<strong>de</strong>.<br />

– Chama-me «Dona Josefina,<br />

a ceguinha»; quem me <strong>de</strong>ra po<strong>de</strong>r<br />

vê-lo! Bom rapaz. Um escritor,<br />

é pena que vão trabalhar para<br />

tão longe, mas assim são os artistas…<br />

Algo mais a <strong>de</strong>ixava triste:<br />

– José não estará aqui. Casaram-se<br />

por procuração, enten<strong>de</strong>s?<br />

– Não, avó.<br />

– Outra pessoa representará<br />

o noivo. Além do mais, não vão


à igreja, eles não acreditam nessas<br />

coisas.<br />

Suspirava, secava as lágrimas<br />

nos seus olhos vazios, com o seu<br />

lencito <strong>de</strong> cheiro a lima, que <strong>de</strong>pois<br />

escondia numa das mangas.<br />

Não me lembro <strong>de</strong> quem representou<br />

José, talvez Carlos Cueto<br />

Fernandini, naquele dia, entre as<br />

malas semifechadas, alguns parentes<br />

próximos, pouquíssimos<br />

amigos. Celia aprumava-se, vestida<br />

com um fato curto branco,<br />

saia-casaco, tricotado, estava<br />

muito linda. Alicia, emocionada<br />

e séria, preparava a partida. As<br />

duas irmãs inseparáveis iam separar-se<br />

pela primeira vez.<br />

José María, Celia e Alicia formaram<br />

uma tría<strong>de</strong> unida pelos<br />

seus i<strong>de</strong>ais e pelo trabalho.<br />

Emilia Barcia, amiga <strong>de</strong> Alicia,<br />

arranjou-lhe um trabalho num<br />

jardim-escola. O que Alicia fez<br />

daquelas activida<strong>de</strong>s com os pequenos,<br />

como artista que era, foi<br />

algo maravilhoso: o papel crepe<br />

em formas fantásticas, as cores<br />

brilhantes, os miúdos pareciam<br />

duen<strong>de</strong>s saídos <strong>de</strong> um conto enquanto<br />

dançavam evocando a<br />

Primavera no parque Neptuno.<br />

Durante pelo menos um quarto<br />

<strong>de</strong> século, a sua casa foi também<br />

pousada dos artistas populares<br />

que chegavam à gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,<br />

vindos do alto dos An<strong>de</strong>s. A sua<br />

conjugação era fecunda e a época<br />

das suas mais profundas buscas e<br />

produções <strong>de</strong>u-se enquanto estiveram<br />

juntos. José escrevia sobre<br />

um mundo que Alicia pintava<br />

nos seus quadros e que Celita<br />

tornava real na colecção nascente.<br />

Celia apoiou e estimulou<br />

vivamente o marido, o escritor<br />

serrano que se impunha num<br />

meio tão classista e superficial<br />

como ten<strong>de</strong> a ser a socieda<strong>de</strong> limenha.<br />

As minhas tias conheciam<br />

esse ambiente e <strong>de</strong>safiaram-no<br />

constantemente à custa<br />

<strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sgostos dos avós,<br />

que as aprovavam em silêncio, e<br />

da censura <strong>de</strong> alguns parentes com<br />

vícios <strong>de</strong> aristocratas falidos.<br />

A tia e o seu escritor foram<br />

para a sua al<strong>de</strong>ia na serra. Às<br />

vezes chegavam cartas e fotos.<br />

Muito campo, sol, trigo, música:<br />

a essência pura daquilo <strong>de</strong> que<br />

gostavam. Viajavam para outras<br />

terras, o seu amigo Emilio Adolfo<br />

José escrevia sobre um<br />

mundo que Alicia<br />

pintava nos seus<br />

quadros e que Celita<br />

tornava real na<br />

colecção nascente.<br />

Celia apoiou e<br />

estimulou vivamente o<br />

seu marido, o escritor<br />

serrano que se<br />

impunha num meio tão<br />

classicista e superficial<br />

como ten<strong>de</strong> a ser a<br />

socieda<strong>de</strong> limenha.<br />

Westphalen juntou-se-lhes numa<br />

viagem, com Celia e José abraçados,<br />

ao sol. Uma fotografia<br />

fixou-os a todos, felizes, em fato-<br />

-<strong>de</strong>-banho.Algum tempo <strong>de</strong>pois,<br />

«o casal», como lhes chamava a<br />

minha avó, regressou <strong>de</strong> visita.<br />

Foi nessa altura que conheci José<br />

María. Era um homem muito<br />

simples, mo<strong>de</strong>sto, doce. Reconheci<br />

nele os amigos <strong>de</strong> província<br />

das serras on<strong>de</strong> tínhamos crescido.<br />

O seu ar infantil convidava-<br />

-nos à brinca<strong>de</strong>ira, aos contos.<br />

Revelou-se muito curioso: queria<br />

saber das nossas histórias, o que<br />

tínhamos conhecido, escutado,<br />

aprendido, comido, brincado; o<br />

que os índios <strong>de</strong>ssas povoações<br />

nos contavam pelas tar<strong>de</strong>s.<br />

Recor<strong>de</strong>i o sabor <strong>de</strong>stas divertidas<br />

conversas, vários anos<br />

<strong>de</strong>pois, quando tive nas minhas<br />

mãos Canciones y cuentos <strong>de</strong>l pueblo<br />

quechua (1947), uma colecção <strong>de</strong><br />

tradições, mitos e lendas que recolheu<br />

junto das alunas do colégio<br />

on<strong>de</strong> eu estudava e <strong>de</strong> outros<br />

lugares do país. Celia e José instalaram-se<br />

em casa dos meus<br />

avós. Trabalhavam muito e nem<br />

sempre era permitido brincar<br />

com ele. O quarto <strong>de</strong>les era, para<br />

mim, um lugar fantástico. Repleto<br />

<strong>de</strong> objectos <strong>de</strong> arte popular<br />

peruana e mexicana, <strong>de</strong> sacolas,<br />

chullos 3 , quenas 4 , llicllas 5 , um charango 6 ,<br />

uma guitarra, papéis, uma máquina<br />

<strong>de</strong> escrever velha e ruidosa,<br />

na qual a minha tia Celia teclava.<br />

Era uma mistura <strong>de</strong> atelier e<br />

«quarto on<strong>de</strong> se vive». José escrevia<br />

à mão. Tinha uma mão<br />

aleijada. Ouvi que, em criança, tivera<br />

uma madrasta muito má que<br />

o maltratava. Supus que teria algo<br />

a ver com os seus <strong>de</strong>dos encolhidos,<br />

o que me dava muita pena.<br />

José María conversava muito<br />

com a minha avó, na penumbra<br />

da sala <strong>de</strong> jantar; eu observava-os<br />

através do biombo, numa tar<strong>de</strong><br />

sombria <strong>de</strong> Inverno limenho que<br />

me apertava o coração com algo<br />

parecido ao medo. Da minha<br />

ca<strong>de</strong>irinha <strong>de</strong> vime via que estavam<br />

juntos, à cabeceira da mesa,<br />

como se ele estivesse a fazer<br />

queixa das suas penúrias <strong>de</strong><br />

criança. A avó abanava a cabeça,<br />

fazia-lhe perguntas, tacteava-lhe<br />

a mão.<br />

Quando ele estava a trabalhar,<br />

não <strong>de</strong>víamos entrar no seu quarto.<br />

Às vezes chamavam-nos para<br />

cumprimentarmos, rapidamente,


VIDAS CONTADAS 54 55<br />

algum amigo ou parente, que<br />

queriam que nos conhecesse.<br />

Assim conheci Alliocha, filho<br />

dos seus amigos Ortiz Rescaniere.<br />

Tinham-lhe especial afeição, era<br />

um miúdo inquieto, vivaço. José<br />

María referia-se a ele na sua carta<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida, ao Reitor da Universida<strong>de</strong><br />

Agrária, como Alejandro<br />

Ortiz, seu discípulo muito<br />

querido. Certa tar<strong>de</strong>, um jovem<br />

alto, magro e narigudo veio buscá-los.<br />

Mãos nos bolsos do gabão,<br />

ar apressado e sorriso simpático.<br />

Era Sebastián Salazar Bondy que<br />

tinha regressado <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />

após o seu divórcio <strong>de</strong> uma actriz<br />

argentina. Entrou para o grupo da<br />

Peña. Não imaginava que a minha<br />

irmã Alicia casaria mais tar<strong>de</strong><br />

com o seu primo-irmão; este<br />

noivado aproximou-nos como<br />

família nos meus anos <strong>de</strong> vida literária<br />

em Lima, e, sem me aperceber,<br />

interferi nos seus amores<br />

com a minha irmã mais nova,<br />

Marcela. (Depois <strong>de</strong> ter partilhado<br />

belos tempos na Lima<br />

crioula <strong>de</strong> então, afastámo-nos.<br />

Sendo um intelectual cada vez<br />

mais influente na <strong>cultura</strong> peruana<br />

da época, a sua inimiza<strong>de</strong> foi um<br />

dos maiores obstáculos na minha<br />

carreira, porque, digamos, her<strong>de</strong>i-a<br />

dos seus solidários discípulos<br />

que Lima chamava «as viúvas<br />

<strong>de</strong> Salazar Bondy».)<br />

Um dia, no mês <strong>de</strong> Outubro,<br />

na casa dos avós, prepararam<br />

as varandas para que chegassem<br />

os seus amigos toureiros<br />

que vinham ver passar a procissão<br />

do Senhor dos Milagres e atirar-lhe<br />

flores <strong>de</strong>sfolhadas enquanto<br />

o incenso se espalhava ao<br />

ritmo da música. Manolete entre<br />

eles, o próprio Dominguín e alguns<br />

outros jovens toureiros que<br />

faziam pegas na fazenda Huando<br />

on<strong>de</strong> vivia a minha tia Rebeca <strong>de</strong><br />

Simpson… Depois arranjaram<br />

uma casita <strong>de</strong> praia no porto <strong>de</strong><br />

Supe, a norte <strong>de</strong> Lima. Era, na<br />

época, um porto bonito e calmo,<br />

sem fábricas <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> peixe.<br />

Para lá convidaram, ano após<br />

ano, os seus amigos da Peña e,<br />

após a temporada, comentavam<br />

com a minha avó os namoricos<br />

e os acontecimentos do Verão: o<br />

<strong>de</strong> Blanca Varela com Gody Szyszlo,<br />

ou Sebastián. O da minha<br />

exótica e sedutora prima Nita,<br />

que era a sua favorita. Uma vez<br />

«O que sou?<br />

Um homem civilizado<br />

que não <strong>de</strong>ixou<br />

<strong>de</strong> ser, na medula,<br />

um indígena do Peru;<br />

indígena, não índio.<br />

E assim caminhei<br />

pelas ruas <strong>de</strong> Paris<br />

e Roma, <strong>de</strong> Berlim<br />

e Buenos Aires…»<br />

visitei essa casa ou rancho,<br />

quando ainda não estava concluída;<br />

alguns quartos sem tecto,<br />

um pátio com vista para o mar,<br />

vasos por todos os lados, conchas<br />

incrustadas nas pare<strong>de</strong>s das casas-<br />

-<strong>de</strong>-banho e quadros <strong>de</strong> pintores<br />

indigenistas nas pare<strong>de</strong>s da sala <strong>de</strong><br />

jantar. Passaram em Supe verões<br />

inesquecíveis com os seus amigos<br />

pintores, poetas e músicos.<br />

«Ela (Celia), a sua irmã Alicia<br />

e os amigos comuns abri-<br />

ram-me as portas da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Lima, tornaram mais fácil a minha<br />

superficial entrada nela e,<br />

com o meu pai e os livros, o<br />

melhor entendimento do castelhano,<br />

a meta<strong>de</strong> do mundo. E<br />

também com Celia e Alicia começámos<br />

a quebrar o muro que<br />

encerrava Lima e a costa – a<br />

mente dos crioulos todo-po<strong>de</strong>rosos,<br />

colonos <strong>de</strong> uma mescla<br />

bastante in<strong>de</strong>finível <strong>de</strong> Espanha,<br />

França e Estados Unidos e dos<br />

colonos dos seus colonos…» 7 .<br />

Um dia, a minha avó referiu<br />

que José estava a terminar um livro<br />

e que não se podia entrar no<br />

seu quarto, nem tocar em nenhum<br />

papel.<br />

– Vai publicar um livro novo.<br />

A tua tia Alicia fez os <strong>de</strong>senhos,<br />

ou seja, as ilustrações.<br />

Sim, já sabia.Tinha visto Alicia<br />

diante do seu cavalete. Gostava<br />

<strong>de</strong> a ver pintar, mas importunava-a<br />

fazendo-lhe muitas perguntas<br />

que eu não sabia serem<br />

indiscretas, como, por exemplo,<br />

porque eram todos tão amáveis<br />

com os primos ricos. Outra pergunta<br />

irritou-a tanto que me <strong>de</strong>u<br />

com a paleta na cabeça. Saí disparada<br />

e ressentida. Por isso não<br />

contei à minha avó como eram<br />

os seus novos <strong>de</strong>senhos e muito<br />

menos os quadros que estava a<br />

pintar. Geralmente, lia-lhe as notas<br />

sobre as exposições e também<br />

o que era publicado a respeito <strong>de</strong><br />

José María. Eu não entendia<br />

gran<strong>de</strong> coisa, mas reconhecia um<br />

ou outro nome. A minha avozinha<br />

embevecia-se e enchia-se <strong>de</strong><br />

orgulho:<br />

– Lê isso <strong>de</strong> novo, como<br />

diz… excepcional, autêntico?<br />

Pouco <strong>de</strong>pois apareceu Yawar<br />

Fiesta. No dia em que chegaram<br />

alguns embrulhos, nem se podia<br />

caminhar. Alguns amigos, os<br />

meus outros tios e tias, os meus<br />

primos, estava tudo em alvoroço.


A avó chamou-me mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois<br />

do almoço como sempre,<br />

para conversar. Desta vez <strong>de</strong>i-me<br />

conta <strong>de</strong> que, à cabeceira da<br />

enorme mesa, não iria ouvir rádio.<br />

– Vem Yola, lê-me agora o livro<br />

<strong>de</strong> José. Conta-me como são<br />

as ilustrações.<br />

E tirou do seu regaço um<br />

exemplar novinho. Era um livro<br />

<strong>de</strong> muitas páginas que lhe <strong>de</strong>screvi<br />

minuciosamente, as notas<br />

<strong>de</strong> rodapé, tudo. A minha avó,<br />

que tinha crescido na Europa, regressou<br />

ao Peru aos 26 anos para<br />

se casar com o senhor Bustamante,<br />

<strong>de</strong> Arequipa. Ela falava<br />

cinco idiomas mas preferia o alemão.<br />

Sabia <strong>de</strong> cor poemas <strong>de</strong><br />

Göethe, Schiller. Ao ler-lhe Yawar<br />

Fiesta, <strong>de</strong>tínhamo-nos nas palavras<br />

quechúas.<br />

– Parece alemão. Gostarão as<br />

pessoas do uso do quechúa num<br />

livro?<br />

«O que sou? Um homem<br />

civilizado que não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

ser, na medula, um indígena do<br />

Peru; indígena, não índio. E assim<br />

caminhei pelas ruas <strong>de</strong> Paris<br />

e Roma, <strong>de</strong> Berlim e Buenos<br />

Aires…»<br />

Algumas noites, quando<br />

acabávamos <strong>de</strong> jantar na longa<br />

mesa presidida pela minha avó<br />

e à qual se sentavam os meus<br />

três tios, os sete netos <strong>de</strong> então<br />

e os meus pais, os meus tios escolhiam<br />

alguns <strong>de</strong> nós para<br />

irem com eles à estação central<br />

dos Correios na Praça <strong>de</strong> Armas<br />

meter as suas cartas. Levavam-<br />

-nos <strong>de</strong> mão dada pela névoa<br />

<strong>de</strong> Lima, às vezes sob uma<br />

chuva miudinha. Lima não era<br />

ainda uma gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalizada.<br />

Tinha um discreto<br />

sabor colonial, com as<br />

suas varandas coloniais que se<br />

viam na noite como caixinhas<br />

<strong>de</strong> encaixe recortadas pela luz<br />

interior. Por vezes, comentavam<br />

a última reunião na Peña, o seu<br />

trabalho. Apesar <strong>de</strong> não captar<br />

gran<strong>de</strong> parte das suas conversas,<br />

sentia que os três possuíam algo<br />

que me fazia vê-los <strong>de</strong> forma<br />

diferente.<br />

Outras noites, José falava-nos<br />

em quechúa, fazendo recordar o<br />

que tínhamos aprendido nas<br />

nossas férias em Huariaca, a pequena<br />

povoação na zona mineira<br />

on<strong>de</strong> o meu pai se tinha estabe-<br />

Lima não era ainda<br />

uma gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spersonalizada.<br />

Possuía um discreto<br />

sabor colonial,<br />

com as suas varandas<br />

coloniais que se viam<br />

na noite como<br />

caixinhas <strong>de</strong> encaixe<br />

recortadas pela<br />

luz interior.<br />

lecido para ven<strong>de</strong>r ma<strong>de</strong>ira para<br />

as minas. Ensinava-nos algumas<br />

frases e, quando as estreávamos<br />

com os nossos amigos da povoação,<br />

convertiam-se em piadas picantes<br />

ou palavrões. Ainda hoje<br />

uso algumas <strong>de</strong>las. Os meus tios<br />

também viajaram pelo México e<br />

falaram muito <strong>de</strong>sse país. Fizeram<br />

uma gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> com o<br />

revolucionário mexicano Moisés<br />

Sáenz. Uma fotografia sua estava<br />

em lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, ao lado do<br />

cavalete da minha tia Alicia. Décadas<br />

<strong>de</strong>pois, numa reunião <strong>cultura</strong>l<br />

nos Estados Unidos, cruzei-<br />

-me com uma sobrinha <strong>de</strong> Sáenz<br />

que comigo queria confirmar<br />

<strong>de</strong>talhes daquela relação amorosa.<br />

Os tios falavam da arte popular<br />

peruana e mexicana, ameaçada<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>struição pelo turismo,<br />

pela pobreza e pelo <strong>de</strong>srespeito<br />

pelos índios. Quando se punham<br />

a trabalhar, estavam a uma<br />

gran<strong>de</strong> distância, num mundo<br />

que eu admirava e que os fazia<br />

viver como só eles eram.<br />

Alegres, jovens, apaixonados.<br />

Tudo o que os ro<strong>de</strong>ava adquiria<br />

um tom <strong>de</strong> beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />

As suas roupas, as suas<br />

coisas, a disposição dos móveis,<br />

os souvenirs, algumas plantas, os<br />

gatos, sem os quais José não podia<br />

passar.Ainda os vejo: José <strong>de</strong>dilhando<br />

o seu charango, no ócio<br />

<strong>de</strong> uma tar<strong>de</strong> feliz, cantando suavemente<br />

hinos que me eram familiares,<br />

ou também o refrão<br />

«Wifalalaaaa! Wifalalaaaaa!». De<br />

vez em quando, José começava a<br />

dançar. Era como se fosse mais<br />

uma criança na casa. Admirávamo-lo,<br />

em parte, porque a<br />

minha avó tinha-nos ensinado a<br />

respeitar o talento, a inteligência.<br />

Quando nasceu a minha irmã<br />

Nora, a minha mãe pediu-lhe<br />

que a levasse à pia baptismal.<br />

A José agradou-lhe muito a i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> ser padrinho.<br />

«Des<strong>de</strong> 1943, fui visto por<br />

muitos médicos peruanos… e<br />

dantes sofri muito <strong>de</strong> insónias e<br />

<strong>de</strong>pressões…» 8<br />

Depois <strong>de</strong> terminar o secundário,<br />

via pouco José María.<br />

Uma vez foi buscar-me ao diário<br />

La Crónica, on<strong>de</strong> eu trabalhava, e<br />

pediu-me os meus poemas. José<br />

Flores Araoz tinha-me publicado<br />

na revista Cultura Peruana e isso<br />

provocou-lhe curiosida<strong>de</strong>, por<br />

isso lhe levei um folheto ao seu


VIDAS CONTADAS 56 57<br />

gabinete do Museu. Estava nervoso,<br />

diferente, tenso. Viajava<br />

muito, havia regressado famoso,<br />

e tinha-se mudado várias vezes,<br />

fugindo dos ruídos que o perturbavam<br />

facilmente, o ladrar<br />

dos cães, as brigas dos gatos, a<br />

estridência dos vizinhos, o ruído<br />

das ruas. Algo se <strong>de</strong>smoronava<br />

subtilmente entre ele e Celia, e o<br />

amor pereceu neste caos. Separaram-se<br />

em 1964, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem<br />

partilhado a vida durante<br />

mais <strong>de</strong> vinte anos. Ela não o tinha<br />

acompanhado nas suas viagens.<br />

Ele ia com frequência ao<br />

Chile para acompanhamento psiquiátrico.<br />

A minha numerosa e conservadora<br />

família nunca conseguiu<br />

compreen<strong>de</strong>r por que José<br />

<strong>de</strong>ixou Celia e, muito menos,<br />

que tivessem <strong>de</strong>cidido dar-se até<br />

ao fim.A minha avó, sim, tê-lo-<br />

-ia compreendido. Mas já não<br />

estava viva, na altura. Discordando<br />

da política familiar, eu ia<br />

buscá-lo, às vezes, à Galeria <strong>de</strong><br />

Arte on<strong>de</strong> trabalhava a sua nova<br />

mulher, a chilena Sibila Arredondo.<br />

Uma vez estivemos a tomar<br />

café no «Viena» com Ángel<br />

Rama, ao lado da Galeria. Eu<br />

planeava sair do Peru, já estava<br />

casada e tinha três filhos mas<br />

queria viajar, e disso falámos,<br />

como ao ir ao México havia <strong>de</strong>cidido<br />

regressar. Deu-me o<br />

nome <strong>de</strong> alguns amigos, o<br />

mesmo Ángel que não voltei a<br />

ver senão num congresso em<br />

Austin. Também se queixou da<br />

sua saú<strong>de</strong>, José estava muito<br />

tenso, era verda<strong>de</strong>, estávamos<br />

em finais <strong>de</strong> 1968. Fomos à Galeria<br />

porque me disse que queria<br />

que conhecesse Sibila: era<br />

uma mulher jovem, olhos <strong>de</strong><br />

expressão profunda, perspicaz,<br />

com um véu cálido no olhar.<br />

Fiquei surpreendida, fazia-me<br />

lembrar a minha tia Celia.<br />

Alicia e Celia continuaram a<br />

viver juntas.Alicia sofria <strong>de</strong> uma<br />

doença que a incapacitou fisicamente,<br />

hoje creio que foi a<br />

doença Lou Gherig. Trabalhou até<br />

po<strong>de</strong>r no Museu, e Luis Valcárcel,<br />

ao ver as dificulda<strong>de</strong>s que tinha<br />

para se <strong>de</strong>slocar, ce<strong>de</strong>u-lhe o seu<br />

gabinete <strong>de</strong> director no primeiro<br />

piso. Morreu nos braços <strong>de</strong> Celia,<br />

a 27 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1968.<br />

Alegres, jovens,<br />

apaixonados. Tudo<br />

o que os ro<strong>de</strong>ava<br />

adquiria um tom <strong>de</strong><br />

beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />

As suas roupas, as suas<br />

coisas, a disposição<br />

dos móveis,<br />

os souvenirs, algumas<br />

plantas, os gatos,<br />

sem os quais José<br />

não podia passar.<br />

Recordando-a, José María escreveu<br />

no diário El Comercio aquele<br />

que seria um dos seus últimos<br />

artigos:<br />

«Alicia Bustamante Vernal<br />

fazia parte da elite artística limenha,<br />

teoricamente convencida<br />

do <strong>de</strong>stino ilimitado da arte e da<br />

<strong>cultura</strong> peruanas, a chamada arte<br />

indígena (…) nas suas apaixonadas<br />

viagens pelos povos serranos<br />

chegou a cumprir uma função<br />

inestimável (…) chegou a<br />

ser unicamente o que tantas ve-<br />

zes se disse <strong>de</strong>la: que foi quem<br />

pela primeira vez ofereceu a<br />

Lima uma exposição <strong>de</strong> arte popular<br />

peruana (1939), pela primeira<br />

vez alcançou a façanha <strong>de</strong><br />

expor a arte tradicional peruana<br />

nas capitais europeias (1959),<br />

tudo isto sem nunca ter tido fortuna<br />

pessoal; mas, ainda assim,<br />

esta não foi a melhor obra <strong>de</strong> Alicia<br />

Bustamante. Igualmente importante<br />

foi que ela se convertera<br />

numa ponte viva entre os dois<br />

mundos <strong>cultura</strong>is, ainda que<br />

hoje muito separados, mas que o<br />

estavam muito mais quando ela<br />

partiu para os campos para recompilar<br />

a arte indígena. Consumida<br />

pelas “luzes” e pelo amor<br />

à obra <strong>de</strong> todos os artífices índios<br />

e mestiços <strong>de</strong> quem ela se aproximou,<br />

pô<strong>de</strong>, por sua vez, mostrar<br />

a esses artífices a mudança<br />

que se estava a operar no outro<br />

universo social do país. Ela, Alicia,<br />

tinha o aspecto, o rosto típico<br />

dos menosprezadores que<br />

formavam a casta dos dominadores,<br />

mas Alicia era diferente.<br />

Apesar <strong>de</strong> não falar quechúa, ela<br />

conquistava num instante… a<br />

confiança e o afecto dos oleiros,<br />

tecelães, fazedores <strong>de</strong> imagens…<br />

convencia que nem todos os<br />

“mistis”, nem todos os “brancos”<br />

eram surdos e como que<br />

feitos <strong>de</strong> outros materiais misteriosamente<br />

impenetráveis e<br />

odiosos… Sem dúvida, a difusão<br />

da arte popular e o que este feito<br />

representa para a <strong>cultura</strong> peruana<br />

<strong>de</strong>vem muito a Alicia Bustamante.<br />

Ninguém duvida que o<br />

país lhe <strong>de</strong>va a ela mais do que a<br />

ninguém.»<br />

José Maria suicidou-se finalmente<br />

a 2 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong><br />

1969. No seu leito <strong>de</strong> morte,<br />

mandou chamar Celia, tendo a<br />

seu lado o seu amigo Carlos<br />

Cueto. E havia muitas pessoas, os<br />

meus tios tinham sido do Partido


Comunista, e percebeu-se nestes<br />

dois grupos o divisionismo na<br />

esquerda <strong>de</strong> então. Uns <strong>de</strong>monstravam<br />

simpatia e apoio a Celia,<br />

outros a Sibila. O seu enterro foi<br />

um acto político, não havia dinheiro<br />

suficiente para o seu túmulo<br />

e Alicia Maguiña fez uma<br />

colecta. Não teve filhos. Celia sobreviveu<br />

até 1973, morrendo<br />

tragicamente a 25 <strong>de</strong> Agosto<br />

<strong>de</strong>sse ano, a caminho <strong>de</strong> Supe.<br />

Num artigo do El Comercio, assinado<br />

com as iniciais H.B.G., no<br />

dia 14 <strong>de</strong> Setembro do mesmo<br />

ano, <strong>de</strong>la se diz: «O país per<strong>de</strong>u<br />

uma mulher excepcional que <strong>de</strong>dicou<br />

a sua vida às mais altas manifestações<br />

do espírito.Afirmou-<br />

-se na sua condição <strong>de</strong> incansável<br />

promotora da arte popular…<br />

1 Doada em vida <strong>de</strong> ambas as irmãs à Universida<strong>de</strong><br />

Nacional Mayor <strong>de</strong> São Marcos <strong>de</strong> Lima e ao povo <strong>de</strong><br />

Cuba. Celia viajou para Cuba com esse fim, em 1971.<br />

Confundiram-na comigo no Aeroporto <strong>de</strong> Barajas e<br />

<strong>de</strong>spediram-me do meu trabalho no Consulado dos EUA<br />

em Barcelona. Quando se <strong>de</strong>dicava a entregar a outra<br />

parte da colecção à UNMSM, morreu num aci<strong>de</strong>nte,<br />

a 25 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1973, no povoado <strong>de</strong> Barranca,<br />

o que só se <strong>de</strong>scobriu várias semanas <strong>de</strong>pois.<br />

O seu trabalho ficou por concluir.<br />

2 A escritora porto-riquenha Concha Melén<strong>de</strong>z disse,<br />

num reconto da sua viagem ao Peru: «A Peña Pancho<br />

Fierro é um local <strong>de</strong> reunião das gentes das artes e das<br />

até ao último instante da sua vida,<br />

Celia, como antes a sua irmã Alicia,<br />

esteve <strong>de</strong>dicada à recolha,<br />

cuidado e incremento da «Colecção<br />

<strong>de</strong> Arte Popular Peruana».<br />

Acabaram assim, separados e<br />

vítimas <strong>de</strong> um meio tão inclemente,<br />

como é o Peru, para com<br />

os seus criadores. José María e<br />

Celia não <strong>de</strong>ixaram filhos. Alicia<br />

não se casou, irritou, sim, alguns<br />

convencionalismos limenhos.Deixaram<br />

muitos livros, alguns quadros,<br />

a sua magnífica colecção <strong>de</strong><br />

arte popular. Lamentavelmente,<br />

foi tudo <strong>de</strong>sagregado pela própria<br />

família. Contudo, tinha eu o<br />

propósito <strong>de</strong> reunir os seus documentos<br />

e criar na Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Texas, em Austin, um<br />

Centro <strong>de</strong> Documentação e Ar-<br />

letras <strong>de</strong> Lima (…) Dirigem a Peña duas raparigas<br />

jovens, inteligentes, limenhas na graça e no tipo:<br />

Alicia e Celia Bustamante. Vendo-as rir, conversar (…)<br />

recordava as observações <strong>de</strong> Radiguez<br />

(sobre as limenhas), José Sabogal pintou o retrato<br />

das duas irmãs em grupo. Apresentaram-me a Xavier<br />

Abril, Emílio Adolfo Westphalen, Enrique Peña<br />

Barrenechea, José Hernán<strong>de</strong>z, Alberto Tauro,<br />

Orestes Plath, Martín Adan, César Moro,<br />

José María Arguedas, o contador <strong>de</strong> «Agua…»,<br />

Entrada al Peru, Havana, 1941, pp. 48-50.<br />

3 Gorro com orelhas, <strong>de</strong> lã, com <strong>de</strong>senhos multicolores,<br />

usado nas regiões andinas para proteger do frio. (N. da T.)<br />

quivo José María Arguedas, que<br />

não se pô<strong>de</strong> concretizar. José Miguel<br />

Oviedo, que estava então <strong>de</strong><br />

visita a Austin, disse-me sem querer:<br />

«Esquece… é uma tarefa impossível…<br />

sim, parece que nunca<br />

existiram…»<br />

Mas, à medida que os anos<br />

passam, é como se os ouvisse<br />

cantar cada vez com mais força,<br />

com o Mestre Oblitas <strong>de</strong> Os Rios<br />

Profundos:<br />

Aún estoy vivo<br />

El hálcon te hablará <strong>de</strong> mí,<br />

Las estrellas <strong>de</strong> los cielos te hablarán<br />

[<strong>de</strong> mí,<br />

He <strong>de</strong> regresar todavía,<br />

Todavía he <strong>de</strong> volver.<br />

4 Flauta aborígene construída tradicionalmente<br />

com cânhamo, osso ou barro. Me<strong>de</strong> à volta <strong>de</strong> 50 cm<br />

<strong>de</strong> comprimento. (N. da T.)<br />

5 Capa indígena, vistosa, com a qual as mulheres cobrem<br />

os ombros e as costas. (N. da T.)<br />

6 Instrumento musical <strong>de</strong> corda, usado especialmente<br />

na zona andina, semelhante a uma pequena guitarra<br />

<strong>de</strong> cinco cordas duplas e cuja caixa <strong>de</strong> ressonância<br />

é feita com carapaça <strong>de</strong> tatu. (N. da T.)<br />

7 Carta a Gonzalo Losada, <strong>Revista</strong> Oiga, Lima, N.º 353,<br />

1969, pp. 17-18.<br />

8 Carta a Sibila Arredondo, <strong>Revista</strong> Visión <strong>de</strong>l Perú, Lima,<br />

1970. N.º 5, pp. 28-29.


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 58<br />

59<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA SURGIU<br />

COMO UMA OPORTUNIDADE DE RECOMEÇO<br />

PARA A EUROPA. NELA SE PROJECTARAM<br />

AS UTOPIAS DE HUMANISTAS E<br />

DESCOBRIDORES EUROPEUS NO SÉCULO XVI<br />

E OS SONHOS LIBERTADORES DOS<br />

REVOLUCIONÁRIOS QUE BEBERAM NO<br />

VELHO CONTINENTE O NÉCTAR DE IDEAIS<br />

QUE MOVERAM O MUNDO MAS NÃO<br />

ELIMINARAM AS FRONTEIRAS SOCIAIS.<br />

A IBERO-AMÉRICA INSISTE, PASSADOS 200<br />

ANOS SOBRE A INDEPENDÊNCIA,<br />

NO RETORNO DA UTOPIA.


Organização e tradução <strong>de</strong> Maria da Graça M. Ventura<br />

URGE UMA NOVA ORDEM PÓS-LIBERAL QUE<br />

CONFIRA AOS AVANÇOS DEMOCRÁTICOS<br />

NO CONTINENTE MAIS DESIGUAL<br />

DO PLANETA O CONTEÚDO SOCIAL<br />

QUE ERRADIQUE A POBREZA E RESTITUA<br />

A CONFIANÇA NO PODER DEMOCRÁTICO.<br />

ROBERTO AMPUERO, ESCRITOR CHILENO,<br />

E GERARDO CAETANO, CIENTISTA POLÍTICO<br />

URUGUAIO, UNIDOS NA SUA FÉ INABALÁVEL<br />

NO TRIUNFO DA DEMOCRACIA POLÍTICA<br />

E SOCIAL, ADVERTEM-NOS PARA PERIGOS<br />

DO POPULISMO, DO AUTORITARISMO<br />

E DO NEOLIBERALISMO.


O obstinado retorno<br />

da utopia<br />

Roberto Ampuero<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA 60 61<br />

O tormento (o castigo do prisioneiro), (<strong>de</strong>talhe). David Alfaro Siqueiros


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 62<br />

63<br />

Durante estes meses<br />

em que no hemisfério<br />

sul sofremos o<br />

Inverno e a Europa<br />

<strong>de</strong>sfruta do Verão, tive<br />

a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar<br />

nos Estados Unidos<br />

em alguns fóruns<br />

sobre literatura, política<br />

e <strong>cultura</strong>, nos quais<br />

se <strong>de</strong>bateu com paixão,<br />

e <strong>de</strong> que modo, o tema<br />

da utopia na América<br />

Latina. Até há pouco<br />

tempo, a palavra utopia<br />

tinha caído em <strong>de</strong>scrédito,<br />

assemelhava-se à<br />

irresponsabilida<strong>de</strong>, a<br />

uma espécie <strong>de</strong> infantilismo<br />

progressista, e<br />

conceitos como «pragmatismo»,<br />

«realismo»,<br />

«coisismo», haviam perdido<br />

o brilho, e os políticos<br />

renovados, antigos<br />

militantes <strong>de</strong> esquerda, ontem com<br />

botas, boina e barba, hoje com pós-graduação<br />

numa universida<strong>de</strong> dos Estados Unidos,<br />

impecável traje Giorgio Armani e uma barbita<br />

incipiente, com mais <strong>de</strong> cinco dias, os que ao<br />

<strong>de</strong>ixarem o po<strong>de</strong>r passam <strong>de</strong> imediato a abrir<br />

escritórios <strong>de</strong> consultoria e «lobbismo», ou a<br />

ocupar uma cómoda poltrona <strong>de</strong> couro nas<br />

direcções das empresas que há décadas se<br />

haviam proposto expropriar. O lema parecia<br />

ser: If you cannot beat them,join them! Apesar <strong>de</strong>stas<br />

mudanças e do po<strong>de</strong>rio militar dos Estados<br />

Unidos, li<strong>de</strong>rados por um presi<strong>de</strong>nte que crê<br />

possuir uma missão messiânica no mundo, a<br />

pergunta persiste: existe ainda a utopia como<br />

força inspiradora <strong>de</strong> mudanças ou ressaibo<br />

do passado? Ter-se-ão efectivamente os intelectuais<br />

latino-americanos <strong>de</strong>spedido da utopia,<br />

como um horizonte i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um mundo<br />

mais justo, ou preocupam-se hoje apenas<br />

com estabelecer priorida<strong>de</strong>s novas, mais<br />

orientadas para a sua incorporação no mercado<br />

global, para a circulação <strong>de</strong> traduções e<br />

consolidação da sua carreira? Estas questões<br />

não são menores num continente que nasceu<br />

pela mão da utopia e que <strong>de</strong>ve gran<strong>de</strong><br />

parte dos seus dramas e momentos épicos<br />

Ter-se-ão efectivamente<br />

os intelectuais<br />

latino-americanos<br />

<strong>de</strong>spedido da utopia,<br />

como um horizonte i<strong>de</strong>al<br />

<strong>de</strong> um mundo mais justo,<br />

ou preocupam-se hoje<br />

apenas com estabelecer<br />

priorida<strong>de</strong>s novas,<br />

mais orientadas<br />

para a sua incorporação<br />

no mercado global,<br />

para a circulação<br />

<strong>de</strong> traduções e consolidação<br />

da sua carreira?<br />

precisamente à sua<br />

obsessão utópica.<br />

Ao ser «<strong>de</strong>scoberto»,<br />

o Novo Mundo<br />

emerge como possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um novo<br />

começo para a Europa.<br />

A Europa encontra-se<br />

numa etapa <strong>de</strong> saturação,<br />

não <strong>de</strong>scola ainda<br />

completamente para o<br />

Renascimento, e a religião<br />

continua a reprimir<br />

a expressão <strong>de</strong> um<br />

pensamento livre dos<br />

grilhões das escrituras,<br />

esse pensamento que<br />

permitirá o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

das ciências e<br />

as posições in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

face à teologia.<br />

A América surge como<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

novo começo. Raramente,<br />

talvez nunca, a<br />

humanida<strong>de</strong> se encontrou em semelhante<br />

circunstância: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> começar <strong>de</strong><br />

novo, como quando o indivíduo, após uma<br />

crise, planeia iniciar uma nova existência. Por<br />

isso Colombo, que era um pragmático e <strong>de</strong><br />

certo modo um oportunista, acredita que o<br />

Paraíso está na <strong>de</strong>sembocadura do Orinoco;<br />

por isso Tomás Moro, procurando dotar a sua<br />

visão <strong>de</strong> realismo, instala a sua socieda<strong>de</strong> utópica<br />

na América; e por isso Ponce <strong>de</strong> León<br />

procura aqui, e com serieda<strong>de</strong> e convicção<br />

plenas, a fonte da eterna juventu<strong>de</strong>. E por isso<br />

Fernando Cortez parte para estas terras em<br />

busca das amazonas, que nunca foram<br />

encontradas, mas que legaram o seu nome à<br />

selva americana, hoje em perigo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sflorestação;<br />

e por isso tantos <strong>de</strong>mandaram o El<br />

Dorado, a Cida<strong>de</strong> dos Césares, dos grifos, dos<br />

tritões, dos dragões, dos anões, das sereias e<br />

dos gigantes. O que na Europa podia ficar<br />

reduzido a folclore, a lenda e relato para ouvir<br />

à volta <strong>de</strong> uma fogueira, na América movia<br />

exércitos, <strong>de</strong>struía vidas, oprimia povos inteiros,<br />

criava fortunas.<br />

Mas a utopia não acaba ali nas nossas terras<br />

latino-americanas. A luta pela in<strong>de</strong>pendência<br />

e a consolidação das nossas nações é


inspirada, mais tar<strong>de</strong>,<br />

pelo sonho <strong>de</strong> uma<br />

América Latina melhor,<br />

por parte dos libertadores,<br />

sonho partilhado<br />

por Miranda, Bolívar,<br />

San Martín, O’Higgins,<br />

Artigas, Hostos, Martí<br />

e tantos outros; e esses<br />

sonhos, reformulados<br />

mas nunca essencialmentemodificados,impulsionaram<br />

também<br />

revoluções sociais ao<br />

longo do século XX.<br />

Ali estão os nomes<br />

<strong>de</strong> Allen<strong>de</strong>, Arbenz,<br />

Castro, J.J. Torres, Che<br />

Guevara. E tudo indica<br />

que, com o fim dos<br />

socialismos reais (China<br />

e Cuba são um caso à<br />

parte), a utopia continua<br />

a palpitar obstinadamente<br />

na região<br />

como força inspiradora, que se nutre <strong>de</strong> uma<br />

tradição <strong>de</strong> longa data, já presente nos relatos<br />

dos povos aborígenes indo-americanos, que<br />

animam os intelectuais progressistas, e que<br />

mantém vigente a iniquida<strong>de</strong> social que<br />

caracteriza a América Latina como a região<br />

mais <strong>de</strong>sigual do mundo e que os meios globalizados<br />

tornam mais evi<strong>de</strong>nte e con<strong>de</strong>nável.<br />

Na América Latina, não é a persistência <strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ologia que mantém viva<br />

a utopia, mas sim as condições sociais realmente<br />

existentes, e por isso a utopia não<br />

envelhece, não <strong>de</strong>clina e continua a vibrar<br />

como um <strong>de</strong>sejo em busca <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r, um lí<strong>de</strong>r<br />

que po<strong>de</strong> ser tanto um revolucionário bem<br />

intencionado como um <strong>de</strong>magogo da pior<br />

estirpe. O que mantém vigente a utopia é a<br />

agenda social pen<strong>de</strong>nte que as elites latino-<br />

-americanas mantêm com os seus povos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o surgimento das pátrias in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,<br />

que arrastavam estas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>siguais<br />

já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Colónia. A emigração para os Estados<br />

Unidos e para a Europa é uma forma <strong>de</strong><br />

fugir <strong>de</strong>ssas condições asfixiantes, nunca aliviadas<br />

pelo êxito da utopia, até a um Norte<br />

cujas fronteiras, por momentos, se tornaram<br />

permeáveis. Neste contexto, cabe-nos per-<br />

Chávez disse<br />

sentir-se Bolívar;<br />

Lula chega ao po<strong>de</strong>r<br />

expressando<br />

as reivindicações históricas<br />

das classes populares,<br />

e Morales, à semelhança<br />

do lí<strong>de</strong>r opositor<br />

Ollanta Humala, no Peru,<br />

é porta-voz dos indígenas<br />

num país on<strong>de</strong> estes<br />

constituem a maioria,<br />

mas nunca governaram.<br />

guntar qual seria a<br />

situação <strong>de</strong> países<br />

como o México ou da<br />

América Central se<br />

não contassem com<br />

milhões <strong>de</strong> cidadãos<br />

seus no coração do<br />

império, don<strong>de</strong> anualmente<br />

enviam remessas<br />

aos seus familiares,<br />

para o outro lado do<br />

rio Bravo, mais <strong>de</strong> 40<br />

mil milhões <strong>de</strong> dólares.<br />

Para o México, as Honduras<br />

ou a Guatemala,<br />

as remessas constituem<br />

uma das principais,<br />

senão a principal, fonte<br />

<strong>de</strong> receitas em divisas,<br />

o que traduz não só as<br />

condições que oferecem<br />

estes países à sua<br />

população, como também<br />

o papel <strong>de</strong>scongestionante<br />

e estimulante<br />

para a economia nacional que a emigração<br />

para o Norte representa para essas nações.<br />

É evi<strong>de</strong>nte que as expectativas populares<br />

<strong>de</strong>spertadas, nos seus países, por Chávez, Lula<br />

ou Evo Morales resultam não apenas do facto<br />

<strong>de</strong> que estes lí<strong>de</strong>res recolhem não só aspirações<br />

e frustrações <strong>de</strong> vastos sectores nacionais<br />

marginalizados, como também utilizam uma<br />

versão reciclada das utopias da América Latina.<br />

Chávez disse sentir-se Bolívar; Lula chega<br />

ao po<strong>de</strong>r expressando as reivindicações históricas<br />

das classes populares, e Morales, à semelhança<br />

do lí<strong>de</strong>r opositor Ollanta Humala, no<br />

Peru, é porta-voz dos indígenas num país<br />

on<strong>de</strong> estes constituem a maioria, mas nunca<br />

governaram. É verda<strong>de</strong> que estes lí<strong>de</strong>res têm<br />

agendas diferentes e que, sob o manto da tradição<br />

utópica, acabam por aplicar políticas<br />

pragmáticas, mas, quando recorrem à utopia,<br />

fazem-no como Fi<strong>de</strong>l Castro que, usando a<br />

imagem <strong>de</strong> Martí e <strong>de</strong> Che, ten<strong>de</strong> a impor<br />

uma versão da utopia revolucionária na qual<br />

esta se torna, supostamente, realida<strong>de</strong> na sua<br />

ilha. Por outro lado, o êxito <strong>de</strong> Michelle<br />

Bachelet no Chile também se <strong>de</strong>ve à persistência<br />

<strong>de</strong> uma aspiração utópica nacional que<br />

ela encarnou melhor que o centro-direita e


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 64<br />

65<br />

que surge da percepção<br />

maioritária <strong>de</strong> que<br />

o país está no bom<br />

caminho, embora haja<br />

problemas sociais <strong>de</strong>licados<br />

que exigem solução<br />

urgente, como a<br />

educação, a saú<strong>de</strong> e o<br />

trabalho digno e que,<br />

no quadro da prosperida<strong>de</strong><br />

económica que<br />

o Chile vive, adquirem<br />

um carácter realmente<br />

escandaloso que <strong>de</strong>veria<br />

cobrir <strong>de</strong> vergonha<br />

uma coligação <strong>de</strong> centro-esquerda<br />

que governa<br />

o Chile <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1990 e que ainda não<br />

conseguiu tirar o país<br />

<strong>de</strong> um ranking inaceitável:<br />

o <strong>de</strong> país com<br />

a maior <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> rendimentos do<br />

continente.<br />

Suspeito que ao «<strong>de</strong>saparecimento da<br />

utopia», após o fim do comunismo, na qual<br />

também acreditei, aconteceu o mesmo que<br />

ao conceito <strong>de</strong> «fim da história» <strong>de</strong> Fukuyama.<br />

No meio da euforia que se apo<strong>de</strong>rava<br />

dos <strong>de</strong>tractores do socialismo real, Fukuyama<br />

postulou que a actual socieda<strong>de</strong> industrial<br />

oci<strong>de</strong>ntal era uma espécie <strong>de</strong> estado final<br />

do <strong>de</strong>senvolvimento humano. Curiosamente,<br />

como anteriormente Hegel, Fukuyama<br />

não previu a complexida<strong>de</strong> da História nem<br />

a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> metamorfose. A surpreen<strong>de</strong>nte<br />

ebulição que reconquista o continente<br />

e inquieta Washington é prova <strong>de</strong> que<br />

a utopia continua ali, tenaz e obstinada como<br />

sempre, mas metamorfoseada. Já não é uma<br />

utopia concreta como a que pintaram Moro,<br />

Marx, Lenine, Mao ou Castro, mas antes<br />

esfumada e <strong>de</strong> contornos imprecisos, como<br />

os quadros <strong>de</strong> Turner. Paradoxalmente, a<br />

força da utopia renovada emerge da sua<br />

ambiguida<strong>de</strong>, do seu nexo solto com princípios<br />

gerais que exigem equida<strong>de</strong> social, acesso<br />

à educação e à saú<strong>de</strong>, aprofundamento da<br />

<strong>de</strong>mocracia, <strong>de</strong>senvolvimento sustentável e<br />

oposição a um mundo unipolar. A sua convocatória<br />

baseia-se em não ser um corpo<br />

Na América Latina, não é<br />

a persistência <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ologia<br />

que mantém viva a utopia,<br />

mas sim as condições sociais<br />

realmente existentes, e por isso<br />

a utopia não envelhece,<br />

não <strong>de</strong>clina e continua<br />

vibrando como um <strong>de</strong>sejo<br />

em busca <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r,<br />

um lí<strong>de</strong>r que po<strong>de</strong> ser<br />

tanto um revolucionário<br />

bem intencionado<br />

como um <strong>de</strong>magogo<br />

da pior estirpe.<br />

orgânico, coerente e<br />

monolítico, mas antes<br />

vago, contraditório, diverso<br />

e <strong>de</strong>scentrado.<br />

Em sentido estrito,<br />

mais que uma utopia é<br />

um horizonte utópico,<br />

um ponto inspirador<br />

ao qual ninguém po<strong>de</strong><br />

ace<strong>de</strong>r e que, consequentemente,ninguém<br />

po<strong>de</strong> monopolizar.<br />

É, ao mesmo<br />

tempo, uma utopia em<br />

certo sentido, que corre<br />

o risco <strong>de</strong> ser sequestrada<br />

por <strong>de</strong>magogos<br />

ou oportunistas,<br />

por políticos que po<strong>de</strong>m<br />

colocar-se na li<strong>de</strong>rança<br />

<strong>de</strong> causas massivas<br />

sem terem uma<br />

agenda viável e cujo<br />

objectivo real po<strong>de</strong><br />

ser o <strong>de</strong> mero apetite<br />

pelo po<strong>de</strong>r e pelas vantagens que este<br />

comporta.<br />

Esta utopia coloca uma interrogante<br />

questão-chave ao intelectual latino-americano:<br />

qual a sua alternativa se preten<strong>de</strong> comunicar<br />

discursos com conteúdo à população? Procurar<br />

no Estado bolsas, prémios e cargos no<br />

Governo ou embaixadas, convertendo-se<br />

assim no escritor Paniaguado que <strong>de</strong>nuncia<br />

Cervantes como um dos que vive do pão e da<br />

água que lhe dão os patronos? Ou emigrar<br />

para os Estados Unidos ou para a Europa, para<br />

tentar a partir dali, fundamentalmente a partir<br />

da aca<strong>de</strong>mia, uma inserção no circuito internacional<br />

<strong>de</strong> livros como autor globalizado<br />

com voz e prestígio? Ou está con<strong>de</strong>nado a<br />

<strong>de</strong>saparecer como voz crítica, eclipsado pelas<br />

entrevistas aos protagonistas do teatro, dos<br />

reality shows ou das estrelas <strong>de</strong> cinema, todos<br />

eles convertidos hoje nos filósofos mo<strong>de</strong>rnos?<br />

No primeiro caso, corre o risco <strong>de</strong> se<br />

converter em voz provinciana <strong>de</strong>ntro do<br />

gran<strong>de</strong> discurso global, em alguém que, pelo<br />

seu exotismo, talvez possa ser incorporado no<br />

sistema. No segundo caso, enfrenta o perigo<br />

<strong>de</strong> ser arrumado na estante da livraria como<br />

escritor «hispano» ou «latino», como


apêndice do main stream literário, periferia<br />

da Weltliteratur, mais ainda se o seu discurso<br />

ten<strong>de</strong>r a circular fundamentalmente no<br />

âmbito académico, cuja, por vezes, in<strong>de</strong>cifrável<br />

linguagem teórica per<strong>de</strong> cada vez<br />

mais contacto com o mundo real e recepção<br />

entre leitores. Suspeito que uma das<br />

escassas formas <strong>de</strong> que hoje dispõe o intelectual<br />

latino-americano para alcançar uma<br />

certa significação – quer viva sob a protecção<br />

do Estado ou da aca<strong>de</strong>mia – consiste<br />

em regressar à tradição do intelectual continental,<br />

à que foi capaz <strong>de</strong> se libertar da<br />

preocupação pelo texto, pelas traduções e<br />

pelos contratos dos seus romances e procurou<br />

o compromisso com a realida<strong>de</strong> política.Assim<br />

como não existem nem o «fim da<br />

história» nem o «<strong>de</strong>saparecimento da uto-<br />

pia», tão-pouco existe, a meu ver, a morte<br />

forçada do compromisso do intelectual.<br />

Po<strong>de</strong> soar a retro, mas, na realida<strong>de</strong>, o que<br />

na América Latina se quebrou foi o compromisso<br />

sartreano com um projecto utópico<br />

concreto, e não o intelectual que está<br />

atento à realida<strong>de</strong> política e à utopia <strong>de</strong><br />

contornos agora esfumados.A utopia como<br />

inspiração para conseguir um mundo<br />

melhor e o compromisso do intelectual<br />

com causas nobres não estão <strong>de</strong>terminados,<br />

na América Latina, por um voluntarismo<br />

i<strong>de</strong>ológico nostálgico, mas pela porfiada<br />

realida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> um continente que,<br />

celebrando 200 anos <strong>de</strong> vida in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />

exibe os maiores índices <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />

e injustiça social do Planeta.<br />

Suspeito que uma das escassas formas<br />

<strong>de</strong> que hoje dispõe o intelectual latino-americano<br />

para alcançar uma certa significação – quer viva sob a protecção<br />

do Estado ou da aca<strong>de</strong>mia – consiste em regressar<br />

à tradição do intelectual continental,<br />

à que foi capaz <strong>de</strong> se libertar da preocupação pelo texto,<br />

pelas traduções e pelos contratos dos seus romances<br />

e procurou o compromisso com a realida<strong>de</strong> política.


Eixos e paradoxos<br />

das mudanças <strong>de</strong> rumo<br />

nas <strong>de</strong>mocracias e governos<br />

da América do Sul<br />

Gerardo Caetano<br />

A greve (<strong>de</strong>talhe). Antonio Ruiz «El Corcito»<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA 66 67


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 68<br />

69<br />

INTRODUÇÃO<br />

As discussões sobre o conceito <strong>de</strong><br />

cidadania e <strong>de</strong> representação política ocupam<br />

um lugar central na agenda política e<br />

académica internacional. Na América Latina,<br />

o recolocar <strong>de</strong>stas problemáticas retomou-se<br />

no seu início com os efeitos ainda<br />

persistentes dos processos <strong>de</strong> transição<br />

para a <strong>de</strong>mocracia e dos processos <strong>de</strong><br />

«reacção antipolítica» posteriores ao fracasso<br />

estrondoso <strong>de</strong> vários governos que<br />

aplicaram <strong>de</strong> uma maneira ortodoxa as<br />

receitas e os postulados do chamado neoliberalismo,<br />

em voga no continente durante<br />

gran<strong>de</strong> parte dos anos 90. No entanto, não<br />

há dúvida <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há uns anos, o fenómeno<br />

que mais <strong>de</strong>cisivamente impulsiona<br />

este <strong>de</strong>bate se relaciona com o advento, em<br />

vários países do subcontinente, <strong>de</strong> governos<br />

<strong>de</strong> esquerda ou <strong>de</strong> sentido mais ou<br />

menos progressista (Argentina, Bolívia,<br />

Brasil, Chile, Uruguai, Venezuela) que,<br />

apesar das suas diferenças, em alguns casos<br />

notórias, foram eleitos com base na esperança<br />

<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s que, ao fazerem essas<br />

opções, apostavam claramente na procura<br />

<strong>de</strong> mudanças profundas a diferentes<br />

níveis.<br />

A explosão <strong>de</strong> expectativas que acompanhou,<br />

e ainda acompanha, a sucessão<br />

<strong>de</strong>stes processos, estimulada pela coincidência<br />

<strong>de</strong> novas eleições neste mesmo ano<br />

<strong>de</strong> 2006 noutros países da região, o que<br />

po<strong>de</strong>ria aumentar e consolidar esta tendência<br />

para a mudança começou, no entanto, a<br />

mitigar os seus signos, entre sinais <strong>de</strong><br />

impaciência ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencanto perante o<br />

<strong>de</strong>sempenho dos novos governos. A expectativa<br />

<strong>de</strong> mudança e as realida<strong>de</strong>s críticas<br />

que as socieda<strong>de</strong>s latino-americanas apresentam<br />

tornam absolutamente lógica a<br />

impaciência <strong>de</strong> pessoas cujo objectivo central<br />

po<strong>de</strong>ria muito bem sintetizar-se no<br />

objectivo <strong>de</strong> alcançar, em alguns casos pela<br />

primeira vez, o «direito a ter direitos».<br />

Em suma, tratar-se-ia <strong>de</strong>, efectivamente,<br />

converter pessoas em cidadãos genuínos.<br />

Na nossa opinião, neste ponto resi<strong>de</strong> um<br />

dos eixos fundamentais da encruzilhada<br />

institucional em sentido radical que atravessa<br />

o subcontinente.<br />

O CENÁRIO GLOBAL<br />

DA POLÍTICA SUL-AMERICANA<br />

CONTEMPORÂNEA<br />

Ao comparar o cenário latino-americano<br />

das décadas <strong>de</strong> quarenta ou cinquenta<br />

do século passado – quando apenas dois ou<br />

três países podiam ser qualificados como<br />

<strong>de</strong>mocráticos – com o presente, é impossível<br />

não aceitar o avanço das instituições,<br />

dos valores e dos hábitos da <strong>de</strong>mocracia.<br />

Neste sentido, alguns acontecimentos históricos<br />

específicos e processos políticos<br />

globais ofereceram um último impulso ao<br />

avanço <strong>de</strong>mocrático no continente. É possível<br />

verificar na região uma tendência para a<br />

consolidação, por um lado, dos instrumentos<br />

vigentes em matéria <strong>de</strong> integração política<br />

como alternativa perante os avassalamentos<br />

do formato unipolar e hegemónico<br />

da globalização impulsionada pelos EUA e,<br />

por outro, para a construção <strong>de</strong> novos<br />

governos orientados para transformar (no<br />

quadro <strong>de</strong> fortes restrições internas e externas)<br />

as tendências ultraliberais provenientes<br />

do chamado «Consenso <strong>de</strong> Washington»<br />

em orientações programáticas <strong>de</strong> sentido<br />

progressista, em termos gerais.<br />

Para lá <strong>de</strong> diferenças ou matizes nas<br />

políticas aplicadas, esta é a perspectiva que<br />

se abre com a ascensão <strong>de</strong> governos como<br />

os <strong>de</strong> Lula no Brasil, Kirchner na Argentina,<br />

a consolidação da experiência da Concertação<br />

Democrática no Chile <strong>de</strong> Lago e agora<br />

<strong>de</strong> Bachelet, as oportunida<strong>de</strong>s abertas no<br />

Uruguai através da vitória, na primeira<br />

volta, da esquerda unida na Frente Ampla<br />

com Tabaré Vázquez, o triunfo espectacular,<br />

também na primeira volta, do MAS sob a<br />

li<strong>de</strong>rança do dirigente indígena Evo Morales<br />

num autêntico contexto revolucionário<br />

na Bolívia. Inclusive, apesar da sua locução,<br />

por vezes <strong>de</strong> perfil autoritário e populista, a<br />

própria experiência do Governo <strong>de</strong> Chávez,<br />

na Venezuela, em particular no que<br />

concerne à sua rejeição do intervencionismo<br />

norte-americano e à sua militância<br />

integracionista bolivariana, mostram um<br />

continente que parece mudar política e<br />

i<strong>de</strong>ologicamente, sempre <strong>de</strong>ntro das margens<br />

estreitas <strong>de</strong> um contexto internacional<br />

não <strong>de</strong>masiado favorável. Em algumas <strong>de</strong>stas<br />

experiências, não em todas, e isto con-


figura um profundo <strong>de</strong>safio para as concepções<br />

progressistas na região, o advento<br />

<strong>de</strong>stes governos <strong>de</strong> esquerda ou afins<br />

incorporou, como um dos eixos do seu<br />

trabalho, o aprofundamento <strong>de</strong>mocrático:<br />

o Chile, a Bolívia, o Brasil e o Uruguai são<br />

exemplos claros e <strong>de</strong>finidos nessa situação;<br />

na Argentina <strong>de</strong> Kirchner, persistem dúvidas<br />

a respeito <strong>de</strong>ste ponto, enquanto na<br />

Venezuela <strong>de</strong> Chávez este constitui um dos<br />

calcanhares <strong>de</strong> Aquiles ou, pelo menos, um<br />

dos pontos controversos <strong>de</strong> toda a experiência<br />

chavista, posição assinalada, inclusive,<br />

por sectores e grupos <strong>de</strong> esquerda<br />

<strong>de</strong>sse país.<br />

Em princípio, então, para lá dos matizes,<br />

o balanço que po<strong>de</strong>mos efectuar sobre<br />

a evolução política da região, nos últimos<br />

anos, é positivo e alentador: em primeiro<br />

lugar, pelo retorno à <strong>de</strong>mocracia após o<br />

pa<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> extensos regimes ditatoriais<br />

em países <strong>de</strong> larga tradição <strong>de</strong>mocrática<br />

como o Chile e o Uruguai; em segundo<br />

lugar, pelos avanços da vida <strong>de</strong>mocrática<br />

em sistemas políticos <strong>de</strong> indiscutível gravitação<br />

continental como a Argentina e o<br />

Brasil, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a superação <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>s<br />

profundas e com o sinal sempre alentador<br />

<strong>de</strong> rotações não traumáticas no Governo,<br />

no caso do segundo; em terceiro lugar, pela<br />

incorporação no círculo <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong><br />

outras socieda<strong>de</strong>s que ao longo do século<br />

XX viveram sempre, ou quase sempre, sob<br />

regimes autoritários, como é o caso mexicano;<br />

finalmente, pela revitalização, nuns<br />

casos, ou a criação, noutros, <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong><br />

integração política regional ou sub-regional,<br />

com uma procura acrescida para superar<br />

os seus rasgos <strong>de</strong> «défice <strong>de</strong>mocrático».<br />

Sem <strong>de</strong>sconhecer ou minimizar este<br />

auspicioso avanço da <strong>de</strong>mocracia representativa<br />

no continente, também nos últimos<br />

anos pu<strong>de</strong>ram ser observados alguns outros<br />

sinais no panorama político regional. As<br />

profundas crises políticas e institucionais<br />

que alguns países da região pa<strong>de</strong>ceram nos<br />

últimos anos dão conta <strong>de</strong> muitos fenómenos<br />

já inocultáveis. Observemos alguns<br />

<strong>de</strong>les:<br />

1) Os formatos <strong>de</strong>mocráticos e os seus<br />

actores tradicionais <strong>de</strong>terioraram-se <strong>de</strong><br />

forma profunda e hoje são claramente<br />

As posturas<br />

anti-imperialistas e um<br />

antinorte-americanismo<br />

profundo (entendido não<br />

como uma ruptura<br />

face ao povo <strong>de</strong>ssa nação,<br />

mas como uma rejeição<br />

profunda das práticas<br />

contrárias ao Direito<br />

e à Comunida<strong>de</strong><br />

internacionais, adoptadas<br />

pela administração<br />

ultradireitista<br />

do presi<strong>de</strong>nte Bush),<br />

expan<strong>de</strong>m-se, como há<br />

décadas não ocorria<br />

no continente,<br />

impulsionando<br />

posturas nacionalistas<br />

e <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> soberanias<br />

agredidas.


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 70<br />

71<br />

insuficientes para consolidar verda<strong>de</strong>iras<br />

<strong>de</strong>mocracias no continente; emergem<br />

novos actores sociais e políticos <strong>de</strong> feição<br />

contestatária face a estas «<strong>de</strong>mocracias <strong>de</strong><br />

baixa <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>», através <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s e<br />

li<strong>de</strong>ranças renovadoras que vêm dar voz<br />

aos «invisíveis» ancestrais dos regimes<br />

anteriores (indígenas, pobres, negros,<br />

mulheres, sectores marginalizados em<br />

geral, etc.) e exigir o cumprimento, longamente<br />

adiado, das suas legítimas exigências<br />

<strong>de</strong> justiça, tanto em matéria política e<br />

social como <strong>cultura</strong>l;<br />

2) As posturas anti-imperialistas e um<br />

anti norte-americanismo profundo (entendido<br />

não como uma ruptura face ao povo<br />

<strong>de</strong>ssa nação, mas como uma rejeição profunda<br />

das práticas contrárias ao Direito e à<br />

Comunida<strong>de</strong> internacionais, adoptadas pela<br />

administração ultradireitista do presi<strong>de</strong>nte<br />

Bush), expan<strong>de</strong>m-se, como há décadas não<br />

ocorria no continente, impulsionando posturas<br />

nacionalistas e <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> soberanias<br />

agredidas;<br />

3) O consenso acrítico reinante nos<br />

anos 90 sobre as bonda<strong>de</strong>s pouco menos<br />

que indiscutíveis do receituário liberal ortodoxo,<br />

emanado dos organismos financeiros<br />

internacionais, cada vez gera mais críticas<br />

e contestação, além <strong>de</strong> que muitas <strong>de</strong>las<br />

resultam mais firmes nos discursos <strong>de</strong> oposição<br />

do que nos conteúdos das políticas<br />

implementadas, uma vez chegados ao<br />

exercício do governo; entre outros fenómenos<br />

que po<strong>de</strong>riam ser citados.<br />

ALGUMAS VIAS POSSÍVEIS PARA<br />

UMA NOVA ORDEM PÓS-LIBERAL<br />

NA AMÉRICA DO SUL<br />

As linhas <strong>de</strong> força <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m que<br />

bem po<strong>de</strong>ria classificar-se <strong>de</strong> «pós-neoliberal»,<br />

na região, traduzem-se efectivamente<br />

em triunfos eleitorais tão espectaculares<br />

como impensáveis há alguns anos. As<br />

razões <strong>de</strong>sta viragem histórica po<strong>de</strong>m<br />

encontrar-se em múltiplos factores. Tendo<br />

em conta os eixos anteriormente referidos,<br />

<strong>de</strong>staquemos só três dos mais importantes,<br />

no seio <strong>de</strong> uma ampla série:<br />

1) A rejeição dos efeitos <strong>de</strong> uma política<br />

exterior dos EUA para o continente<br />

caracterizada tanto pela persistência <strong>de</strong> um<br />

intervencionismo <strong>de</strong>senfadado (os exemplos<br />

são múltiplos e não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r-se),<br />

como por um <strong>de</strong>sinteresse efectivo<br />

em planos alternativos <strong>de</strong> cooperação, propícios<br />

a um <strong>de</strong>senvolvimento minimamente<br />

viável para os países do continente. Neste<br />

sentido, concorrem tanto os conteúdos<br />

inaceitáveis da sua proposta da ALCA,<br />

como a sua atitu<strong>de</strong> cada vez mais prescindível<br />

em termos <strong>de</strong> cooperação.<br />

2) O fracasso cada vez mais aceite da<br />

implementação das reformas impulsionadas<br />

pelos organismos financeiros internacionais<br />

durante os últimos anos, pela mão<br />

do receituário emanado do chamado<br />

«Consenso <strong>de</strong> Washington». Neste sentido,<br />

tanto as análises académicas como as provenientes<br />

<strong>de</strong> estudos dos mesmos organismos<br />

financeiros internacionais resultam<br />

consensuais na consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que a<br />

implementação das chamadas «reformas<br />

<strong>de</strong> primeira geração», durante os anos 90,<br />

culminou em <strong>de</strong>sempenhos muito pobres,<br />

em particular nos tópicos fundamentais da<br />

criação <strong>de</strong> emprego genuíno, no combate à<br />

pobreza e à indigência, no crescimento<br />

económico e na construção institucional.<br />

3) O agravamento <strong>de</strong> cenários <strong>de</strong> pauperização<br />

e marginalização social, pela<br />

mão <strong>de</strong> Estados «<strong>de</strong>sertores» ou «suicidas»<br />

como o que alienou Menem durante o seu<br />

longo <strong>de</strong>cénio no governo da Argentina<br />

(postulado pelo FMI em 1998 como o seu<br />

«melhor aluno» na região). Neste quadro,<br />

os processos renovados <strong>de</strong> pauperização<br />

vieram a tornar mais dramáticas e inocultáveis<br />

as injustiças não só sociais e económicas,<br />

como também políticas, <strong>cultura</strong>is e<br />

étnicas em países como o Brasil ou a Bolívia,<br />

para citar apenas dois exemplos particularmente<br />

assinalados. Para ilustrar a gravida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>stes processos e a situação dos<br />

diversos países do continente, basta consultar<br />

os indicadores da evolução do investimento<br />

social na região, assim como as<br />

estatísticas dos relatórios da CEPAL.<br />

O aprofundamento da rejeição popular<br />

nas socieda<strong>de</strong>s sul-americanas da política<br />

exterior norte-americana, em geral, e, em<br />

particular, na região, a crítica crescente às<br />

políticas «neoliberais» e aos seus <strong>de</strong>fensores<br />

no subcontinente e o agravamento dos


quadros <strong>de</strong> pauperização, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e<br />

marginalização constituem, com efeito,<br />

factores não únicos, mas dos mais <strong>de</strong>cisivos<br />

para o advento das mudanças políticas na<br />

região.Também resultam factores <strong>de</strong>safiantes<br />

e problematizadores para a gestão <strong>de</strong>stes<br />

novos governos <strong>de</strong> tipo progressista. Em<br />

suma, os mesmos factores que estimularam<br />

o seu crescimento eleitoral e o seu triunfo<br />

nas urnas ten<strong>de</strong>m a problematizar e a interpelar<br />

a gestão <strong>de</strong>stas forças políticas, uma<br />

vez que se transformem em governo, tendo<br />

<strong>de</strong> lidar com realida<strong>de</strong>s dramáticas que<br />

exigem transformações urgentes e profundas.<br />

AS DEMOCRACIAS DE «BAIXA<br />

INTENSIDADE» NO CONTINENTE<br />

«MAIS DESIGUAL DO PLANETA»<br />

Por outro lado, as sondagens ou inquéritos<br />

<strong>de</strong> opinião pública, como veremos<br />

mais adiante, dão conta <strong>de</strong> uma situação<br />

preocupante: em muitos países, uma percentagem<br />

significativa dos cidadãos não<br />

acredita nas instituições <strong>de</strong>mocráticas,<br />

manifesta não preferir a <strong>de</strong>mocracia face a<br />

qualquer outra forma <strong>de</strong> governo, não se<br />

sente representada pelos partidos políticos<br />

e avalia criticamente o <strong>de</strong>sempenho dos<br />

governos e das instituições públicas (o<br />

po<strong>de</strong>r executivo, o Parlamento, o sistema<br />

judicial e os governos locais), in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

da sua i<strong>de</strong>ologia. Por exemplo, na<br />

Argentina, 46% das pessoas maiores <strong>de</strong> 18<br />

anos diziam estar satisfeitas com o funcionamento<br />

da <strong>de</strong>mocracia no ano <strong>de</strong> 2000;<br />

em 2002, após a crise institucional <strong>de</strong><br />

finais <strong>de</strong> 2001, só 8% dos inquiridos manifestaram<br />

sentir-se satisfeitos com a<br />

<strong>de</strong>mocracia 1 .<br />

Importa também <strong>de</strong>stacar que o avanço<br />

da <strong>de</strong>mocracia no continente não permitiu,<br />

contudo, garantir, nem sequer<br />

aumentar, o respeito pelos direitos humanos,<br />

em particular das mulheres, dos sectores<br />

mais pobres e das minorias (os povos<br />

indígenas, os afro-americanos, etc.). Seguramente,<br />

uma das principais matérias pen<strong>de</strong>ntes<br />

da <strong>de</strong>mocracia é a persistência <strong>de</strong><br />

altos níveis <strong>de</strong> pobreza, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> económica<br />

e carências em termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

humano (<strong>de</strong>snutrição, falta <strong>de</strong><br />

O aprofundamento<br />

da rejeição popular nas<br />

socieda<strong>de</strong>s sul-americanas<br />

da política exterior<br />

norte-americana,<br />

em geral, e, em particular,<br />

na região, a crítica<br />

crescente às políticas<br />

«neoliberais» e aos seus<br />

<strong>de</strong>fensores no<br />

subcontinente e o<br />

agravamento dos quadros<br />

<strong>de</strong> pauperização,<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />

e marginalização<br />

constituem, com efeito,<br />

factores não únicos,<br />

mas dos mais <strong>de</strong>cisivos<br />

para o advento<br />

das mudanças políticas<br />

na região.


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 72<br />

73<br />

acesso à saú<strong>de</strong> e baixa qualida<strong>de</strong> e iniquida<strong>de</strong><br />

educativa), que geraram a circunstância<br />

lamentável <strong>de</strong> a América Latina constituir<br />

o continente mais <strong>de</strong>sigual do Planeta.<br />

O direito dos povos à <strong>de</strong>mocracia também<br />

requer avanços e consolidações efectivas<br />

nestes campos, em resposta à exigência <strong>de</strong><br />

milhões <strong>de</strong> latino-americanos que não<br />

po<strong>de</strong>m esperar, como indicam <strong>de</strong> modo,<br />

em nossa opinião, tão rotundo como indiscutível<br />

as séries estatísticas e os dados oficiais.<br />

A esta enumeração <strong>de</strong> dívidas (como<br />

diria o filósofo político e jurista italiano<br />

Norberto Bobbio, «promessas incumpridas»)<br />

que as <strong>de</strong>mocracias da região ainda<br />

não saldaram com os seus povos, haveria<br />

que adossar alguns défices <strong>de</strong> carácter político<br />

ou institucional, aos que, por outro<br />

lado, nem sequer as socieda<strong>de</strong>s mais<br />

<strong>de</strong>senvolvidas escapam: referimo-nos, por<br />

exemplo, à persistência <strong>de</strong> fenómenos <strong>de</strong><br />

corrupção política e à frequente falta <strong>de</strong><br />

transparência no aparelho do Estado.<br />

Como se sabe, a região, no seu conjunto,<br />

e a maioria dos seus países isoladamente<br />

exibem as piores classificações, comparativamente<br />

a outras áreas do mundo, nos<br />

índices usados para medir a corrupção. Se<br />

se consi<strong>de</strong>rar o índice elaborado pela<br />

«Transparency International», no ano <strong>de</strong><br />

2001, em média, os países das Américas<br />

situam-se no 53.º lugar entre os 91 países<br />

estudados, com um amplo intervalo que ia<br />

do Canadá (7.º país mais transparente do<br />

mundo) à Bolívia (em 85.º lugar, só seis<br />

lugares atrás do país menos transparente do<br />

Planeta). Este fraco <strong>de</strong>sempenho, em matéria<br />

<strong>de</strong> transparência pública e gestão <strong>de</strong>mocrática,<br />

conspira, sem dúvida, contra a credibilida<strong>de</strong><br />

e a legitimida<strong>de</strong> das instituições<br />

políticas, o que, a curto ou médio prazo,<br />

po<strong>de</strong> redundar em crises institucionais. Por<br />

outro lado, a generalização <strong>de</strong> uma <strong>cultura</strong><br />

<strong>de</strong> corrupção afecta o funcionamento da<br />

economia, enquanto os agentes económicos<br />

requerem parâmetros claros, regras<br />

inequívocas e estáveis para operar (investir,<br />

produzir e comercializar) no mercado,<br />

com níveis mínimos <strong>de</strong> previsibilida<strong>de</strong>.<br />

Finalmente, a corrupção política (que,<br />

como lamentavelmente temos podido<br />

constatar, não constitui património da<br />

direita) e, mais em geral, a falta <strong>de</strong> respeito<br />

pela legalida<strong>de</strong> vigente empreen<strong>de</strong>ram o<br />

aparecimento da violência social, o que<br />

acaba por alimentar um círculo vicioso <strong>de</strong><br />

instabilida<strong>de</strong> e fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocráticas,<br />

que incrementa uma agenda <strong>de</strong> «securização<br />

da vida quotidiana» que, geralmente,<br />

gera ensaios e implantações políticas <strong>de</strong><br />

cariz autoritário. Não se trata <strong>de</strong> haver um<br />

contexto favorável ao retorno dos militares<br />

a li<strong>de</strong>rar ditaduras <strong>de</strong> terrorismo <strong>de</strong> Estado,<br />

do género das que assolaram o continente<br />

entre os anos 60 e 70. Hoje, o perigo radica<br />

na ascensão <strong>de</strong> autoritarismos <strong>de</strong> novo<br />

tipo que, inclusive, po<strong>de</strong>riam ace<strong>de</strong>r ao<br />

governo com legitimação eleitoral e que,<br />

sem dúvida, se veriam amplamente favorecidos<br />

por um fracasso dos governos progressistas<br />

perante as complexas agendas<br />

que enfrentam. De tal modo que o <strong>de</strong>scrédito<br />

da política constitui um factor negativo<br />

para a afirmação das esquerdas e das<br />

forças progressistas, tanto em contextos <strong>de</strong><br />

ocupação <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong> oposição, mas,<br />

sobretudo, para o exercício da li<strong>de</strong>rança do<br />

governo.<br />

Se, como se assinalou, a expansão da<br />

<strong>de</strong>mocracia no continente constitui um<br />

sinal alentador dos tempos que correm, o<br />

panorama político mais actual não está<br />

livre <strong>de</strong> sinais preocupantes e, em alguns<br />

casos, verda<strong>de</strong>iramente alarmantes. As<br />

diversas crises que vários países da região<br />

atravessaram nos últimos anos, os escassos<br />

avanços em matéria social, os fenómenos<br />

<strong>de</strong> corrupção e a insegurança física que<br />

afecta importantes segmentos da população<br />

nas gran<strong>de</strong>s metrópoles e nas áreas<br />

rurais, os cenários <strong>de</strong> polarização política e<br />

social, a dificulda<strong>de</strong>, em alguns casos crescente,<br />

em vislumbrar e concretizar um<br />

futuro melhor para os nossos países no que<br />

concerne à sua inserção competitiva nos<br />

novos contextos internacionais configuram<br />

um quadro no qual a afirmação da <strong>de</strong>mocracia<br />

constitui uma tarefa <strong>de</strong> primeira<br />

or<strong>de</strong>m, trabalho, por outro lado, inacabado<br />

e inacabável. Este <strong>de</strong>safio, em particular,<br />

resulta incontornável para os governos <strong>de</strong><br />

esquerda, a partir <strong>de</strong> respostas que não<br />

po<strong>de</strong>m ser restauradoras e que têm <strong>de</strong>


apostar com coragem e criativida<strong>de</strong> em induzir<br />

e contribuir para tornar visíveis novas<br />

formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e organização dos actores<br />

sociais, com capacida<strong>de</strong> efectivamente participativa<br />

na tarefa governamental.<br />

No recente relatório do PNUD intitulado<br />

La Democracia en America Latina 2 , entre<br />

outros dados extraordinariamente preocupantes,<br />

é impossível omitir a referência a<br />

alguns: «No ano <strong>de</strong> 2003, viviam na<br />

pobreza 225 milhões <strong>de</strong> latino-americanos,<br />

ou seja, 43,9%, dos quais 100 milhões<br />

eram indigentes (19,4%)»; «10% da população<br />

mais rica recebe uma quantia 30<br />

vezes superior à da mais pobre», o que<br />

converte a América Latina no continente<br />

mais <strong>de</strong>sigual do Planeta. Por outro lado,<br />

no referido relatório também se mencionava<br />

esta tendência da opinião pública:<br />

«Em 2002, 57% das cidadãs e dos cidadãos<br />

da América Latina preferiam a <strong>de</strong>mocracia<br />

face a qualquer outro regime. Contudo, dos<br />

que dizem preferir a <strong>de</strong>mocracia a outros<br />

regimes, 48,1% preferem o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

económico à <strong>de</strong>mocracia, e 44,9%<br />

apoiariam um governo autoritário se este<br />

resolvesse os problemas económicos do seu<br />

país» 3 . Estes últimos registos e dados corroboram<br />

a preocupação já expressa no diagnóstico<br />

anteriormente apresentado sobre a<br />

realida<strong>de</strong> política das <strong>de</strong>mocracias contemporâneas<br />

do continente.<br />

ALGUNS DESAFIOS PARA<br />

UMA MUDANÇA INADIÁVEL<br />

Em suma, o distanciamento crítico<br />

entre cidadanias e instituições ameaça<br />

transformar-se num dos problemas mais<br />

acutilantes tanto para a saú<strong>de</strong> das <strong>de</strong>mocracias<br />

latino-americanas em geral, como para<br />

a acção dos governos <strong>de</strong> esquerda ou progressistas<br />

da região. As nossas socieda<strong>de</strong>s<br />

inseridas no continente mais <strong>de</strong>sigual do<br />

Planeta apresentam ainda fragmentações e<br />

feridas duríssimas nos seus respectivos<br />

tecidos sociais, o que leva a uma crescente<br />

falta <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> no funcionamento e<br />

nos resultados da acção quotidiana dos<br />

actores e das instituições da política, com<br />

particular ênfase para os partidos e os Parlamentos.<br />

Como vimos, este resultado, que<br />

em boa medida foi impulsionado (ainda<br />

que não exclusivamente) pelo tipo <strong>de</strong><br />

acção pública que caracterizou os governos<br />

sul-americanos, na sua gran<strong>de</strong> maioria<br />

durante os anos 90 (com excepções), converteu-se<br />

num factor que ten<strong>de</strong>u a erodir a<br />

credibilida<strong>de</strong> dos partidos e figuras da<br />

política tradicional na região, assim como a<br />

impulsionar forças políticas renovadoras<br />

com novas li<strong>de</strong>ranças. Com efeito, como<br />

vimos, começou a emergir, como resposta<br />

a esta situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencanto político, uma<br />

viragem relevante na perspectiva da vitória<br />

eleitoral em vários países da região <strong>de</strong><br />

governos <strong>de</strong> centro-esquerda ou «progressistas»,<br />

com programas diferentes, em<br />

muitos casos, mas também com similitu<strong>de</strong>s,<br />

em especial no que concerne à rejeição<br />

das orientações do chamado «Consenso <strong>de</strong><br />

Washington».<br />

Todavia, seria um grave erro para esses<br />

novos governantes ignorarem que os mesmos<br />

factores que os ajudaram a ganhar as<br />

eleições po<strong>de</strong>riam prontamente virar-se<br />

contra a sua legitimida<strong>de</strong> governativa, boicotar<br />

a sua acção transformadora e apoiar o<br />

regresso ao po<strong>de</strong>r dos seus adversários.<br />

Consi<strong>de</strong>rando esta prevenção, há que<br />

advertir que, no primeiro mandato <strong>de</strong>stes<br />

governos, as situações herdadas e o consequente<br />

espaço <strong>de</strong> acção impõem restrições<br />

e potenciam <strong>de</strong>safios muito fortes no que<br />

respeita às verda<strong>de</strong>iras mudanças inadiáveis.<br />

Daí que, em simultâneo com a aplicação<br />

<strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> políticas públicas, a<br />

procura <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> cidadania e <strong>de</strong><br />

instituições renovadas através <strong>de</strong> reformas<br />

<strong>de</strong>mocráticas específicas e profundas constitua<br />

encargos incontornáveis na agenda<br />

<strong>de</strong>stes governos. Sobretudo se se quer efectivamente<br />

a transformação profunda <strong>de</strong><br />

socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>masiado feridas e habituadas<br />

ao fracasso. E é sabido que o fracasso,<br />

sobretudo se provier da inadvertência ou<br />

da soberba, fere muito mais as esquerdas<br />

do que as direitas.<br />

1 Fonte:<br />

www.latinobarometro.org<br />

2 PNUD, La Democracia en<br />

América Latina: Hacia una<br />

<strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> ciudadanos<br />

y ciudadanas, 2004.<br />

3 PNUD, Encuesta,<br />

elaboración propia<br />

con base en<br />

Latinobarómetro 2002.


CEM ANOS DE SOLIDÃO 74 75<br />

Os filhos,<br />

Tucumán vinte anos <strong>de</strong>pois<br />

Julio Pantoja<br />

Com o nome <strong>de</strong> «Operativo In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia», em 1975, lançava-se em Tucumán, a mais pequena província argentina, uma feroz<br />

repressão movida contra as organizações populares, com o pretexto <strong>de</strong> combater a guerrilha.<br />

Com o golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1976, que durou até 1983, a violência estatal aperfeiçoou-se e esten<strong>de</strong>u o seu braço<br />

a todo e qualquer opositor que ousasse levantar a voz.<br />

Esta violência, que logo se generalizou a todo o país, <strong>de</strong>ixou, em Tucumán, um saldo <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecidos, assassinados,<br />

presos, torturados e exilados.<br />

Duas décadas <strong>de</strong>pois, o mesmo militar que dirigiu aquela repressão e que foi interventor <strong>de</strong>ssa ditadura na província, o general<br />

Antonio Domingo Bussi, foi eleito governador nas eleições <strong>de</strong>mocráticas, apesar das acusações <strong>de</strong> genocídio, torturas e rapto <strong>de</strong> bebés.<br />

Com um endémico atraso económico, político e social, face ao resto do país, esta convulsionada província do Noroeste argentino<br />

continua a <strong>de</strong>bater-se, até hoje, entre um tenebroso passado marcado a fogo pelo zumbido das balas dos anos 70 e a formalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mocrática envenenada pela corrupção da mudança <strong>de</strong> século.<br />

A FOTOGRAFIA E ESTE ENSAIO FOTOGRÁFICO<br />

A partir do triunfo, nas eleições da minha província, do general genocida, conjuntamente com o vigésimo aniversário do<br />

golpe militar, <strong>de</strong>diquei-me sistematicamente a retratar os filhos <strong>de</strong> vítimas da repressão em Tucumán.<br />

A princípio, foi talvez apenas um impulso quase ingénuo <strong>de</strong> resistência conduzido pela indignação, mas, aos poucos, foi-se<br />

consolidando e tomando a forma <strong>de</strong> uma tomada <strong>de</strong> posição lúcida, usando a minha ferramenta: a fotografia.<br />

Um dia, quando estava a começar este trabalho, a curadora <strong>de</strong> fotografia <strong>de</strong> um importante museu dos Estados Unidos fez-me<br />

uma brilhante pergunta que serviu <strong>de</strong> síntese e <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio para este ensaio. Interrogou-me sobre a eventual diferenciação visual<br />

entre um grupo <strong>de</strong> adolescentes cujos pais haviam <strong>de</strong>saparecido e os restantes adolescentes.<br />

A minha hipótese <strong>de</strong> trabalho foi simples. Sempre estive certo <strong>de</strong> que <strong>de</strong>via existir um <strong>de</strong>nominador comum entre aqueles que,<br />

sendo <strong>de</strong> uma mesma geração, tinham passado por tanto sofrimento do mesmo tipo, atormentados pelo Estado terrorista. Se o nexo<br />

partia da mesma experiência <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong>veria existir o seu correlativo no visual. As respostas chegavam à medida que o trabalho<br />

se <strong>de</strong>senvolvia.<br />

Sob o ponto <strong>de</strong> vista estético, encontrei duas linhas sobre as quais seria interessante trabalhar. Uma, po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>nominá-la<br />

horizontal, e está relacionada com o geracional: com um grupo <strong>de</strong> jovens marcado pelo rock, e pela música popular em geral, e por<br />

um importante compromisso social e político. E aqui se produz o cruzamento vertical. Este compromisso não é um signo característico<br />

dos nossos dias, mas relaciona-se com os agitados anos 70 que tiveram os seus pais como protagonistas. Mas aqui surge outra<br />

relação: naquela época, os seus pais teriam aproximadamente as ida<strong>de</strong>s que eles têm hoje.<br />

Outro ponto sempre importante, mas vital neste caso, é a relevância do nome que acompanha cada retrato porque permite preservar<br />

a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a história <strong>de</strong> cada um. As fotos sem nome são fotos <strong>de</strong> «NN», como classificavam os militares as suas vítimas.<br />

Eu <strong>de</strong>veria situar-me nos antípodas.<br />

Simultaneamente, era óbvio que não tinha interesse em retratar estes jovens <strong>de</strong> uma forma fria. A minha i<strong>de</strong>ia era mais profunda.<br />

A intenção era dar uma pincelada muito mais subjectiva e pessoal sobre este grupo humano tão particular.<br />

Tirar cada uma <strong>de</strong>stas fotografias levou horas, até dias, <strong>de</strong> conversas e confidências, com álbuns <strong>de</strong>sbotados e fotos também<br />

<strong>de</strong>scoloridas entre as mãos. Logo a partir dos primeiros contactos, quase sempre telefónicos, propunha-lhes que escolhessem um<br />

local que se relacionasse com as suas histórias, vivências e recordações mais íntimas. Assim, surgem casas <strong>de</strong> avós, pátios <strong>de</strong><br />

escolas, praças e, claro, os quartos da adolescência ainda recente. Deste modo, com este clima e algumas lágrimas que embaciavam<br />

os olhos – <strong>de</strong> ambos –, a pouco e pouco foram-se esboçando, melancolicamente, as imagens <strong>de</strong>ste ensaio.


Para não esquecer os anos <strong>de</strong> solidão que marcaram a ditadura argentina,<br />

publicamos aqui o «ensaio fotográfico» <strong>de</strong> Julio Pantoja<br />

sobre os «filhos dos <strong>de</strong>saparecidos» e, ainda, um texto do mesmo autor<br />

sobre a exposição evocativa do golpe militar, trinta anos <strong>de</strong>pois.<br />

Alejandra Leiva, 22 anos, estudante <strong>de</strong> Psicologia, 1997 An<strong>de</strong>a Vicente Achín, 22 anos, estudante <strong>de</strong> Inglês, 1997 Andrés Jaroslavsky, 27 anos, pianista e ilustrador, 1997<br />

Carla González Medina, 30 anos, artesã, 1997 Lucía Coronel, 20 anos, estudante <strong>de</strong> Teatro, 1996 Martín Suter, 25 anos, empresário, 2001<br />

Natalia Aviñez, 23 anos, estudante <strong>de</strong> Arquitectura, 1999 Tucumán, Argentina, 2000 Viviane Vicente Achín, 20 anos, estudante <strong>de</strong> Direito, 1997


RIOS PROFUNDOS 76<br />

Côa, o rio que nunca<br />

viu o mar…<br />

Maria Lúcia Garcia Marques<br />

Outono. Fim da tar<strong>de</strong>.A estrada velha <strong>de</strong>sce, dormente, até<br />

ao rio. Na penúltima curva, em brutal colisão, extinguira-se,<br />

havia meses, uma vida que me era cara. E esta era uma espécie<br />

<strong>de</strong> romagem, in memoriam, na assunção <strong>de</strong> um luto que o curso<br />

ensombrecido do rio, lá em baixo, parecia acompanhar. No local,<br />

espiava as marcas do <strong>de</strong>sastre quando, vindo do fundo da valeta,<br />

certeiro, direito a mim, um lampejo <strong>de</strong> vidro me fez <strong>de</strong>scobrir<br />

os óculos que minha mãe usara. Parecia que todo aquele tempo<br />

tinham esperado ali por mim para me dizerem que olhasse por<br />

quem ficara. Recolhi-os piedosamente e, numa oração, olhei o rio.<br />

Na quase noite, pressenti-o mais do que o vi e pareceu-me que<br />

o seu marulhar se aquietara, como se, guardião daquela vonta<strong>de</strong><br />

última, cumprida a missão, pu<strong>de</strong>sse seguir mais em paz o seu<br />

caminho. Requiescat...<br />

Bo<strong>de</strong> cuja cabeça se encontra animada, Quinta da Barca (foto CNART), Instituto Português <strong>de</strong> Arqueologia<br />

77


RIOS PROFUNDOS 78<br />

79<br />

Parafraseando Alberto Caeiro, diria<br />

que o Côa «não é como o rio da minha<br />

al<strong>de</strong>ia» porque «Ninguém nunca pensou<br />

no que há para além/ Do rio da minha<br />

al<strong>de</strong>ia// O rio da minha al<strong>de</strong>ia não faz<br />

pensar em nada/ Quem está ao pé <strong>de</strong>le está<br />

só ao pé <strong>de</strong>le».<br />

Ora, o Côa dá que pensar.<br />

Des<strong>de</strong> logo, o seu nome. Os romanos<br />

chamaram-lhe Cuda, <strong>de</strong> coda ou cola, que<br />

significa «ribeira», «caudal». Porém, essa<br />

<strong>de</strong>signação não aparece, tal qual, nos primeiros<br />

documentos, mas tem <strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r do <strong>de</strong>rivado transcudani, o primeiro<br />

<strong>de</strong>signativo a ser registado. De facto,<br />

segundo J. Leite <strong>de</strong> Vasconcelos, o rio Cuda<br />

(Côa) «não se encontra nem na literatura<br />

antiga, nem na epigrafia, mas encontra-se<br />

É um dos poucos rios<br />

em Portugal<br />

que correm <strong>de</strong> sul<br />

para norte,<br />

o que, olhando-o no mapa,<br />

o faz parecer<br />

como que um rio ao invés.<br />

apenas o seu <strong>de</strong>rivado transcudanus = transcud(a)-anus...»<br />

1 .<br />

J. Pinharanda Gomes 2 aduz a este respeito:<br />

«Seria estranho que fossem os romanos<br />

a baptizar o rio. Antes <strong>de</strong>les e mesmo<br />

sem a total visão geográfica do aci<strong>de</strong>nte<br />

hídrico, os povos chamariam a esse curso<br />

<strong>de</strong> água algum nome. Nome esse que seria,<br />

como sempre foi, ribeira, sem mais nada; e<br />

que os romanos traduziriam por coda ou<br />

cola, que significa isso: a ribeira, o caudal. É<br />

inevitável, hoje em dia, dizer Rio Côa; mas<br />

é repetitivo. Côa é ribeira. E a forma cuda<br />

parece espúria. A forma genuína aberta, eila:<br />

coda>côa». Aliás, é assim que se encontra<br />

atestado em documento <strong>de</strong> 1145: «... et<br />

fluvium qui vocatur Côa», citado por Frei<br />

Joaquim Santa Rosa Viterbo 3 .<br />

E quem antes dos romanos – e isto, no<br />

caso, é particularmente importante – se<br />

fixou junto ao rio?<br />

No Portugal Saccro diz J. Bautista <strong>de</strong><br />

Castro: «Pelos annos <strong>de</strong> 550 antes <strong>de</strong><br />

Christo, pouco mais ou menos, <strong>de</strong>ixando<br />

alguns turdulos antigos a costa marítima<br />

em que viviam, foram habitar aquelle<br />

espaço <strong>de</strong> terreno que se esten<strong>de</strong> do norte<br />

a sul entre o rio Côa e o Águeda e, pela<br />

situação em que ficavam além do Côa, se<br />

ficaram chamando transcudanos...»<br />

Na opinião do arqueólogo Dr. Joaquim<br />

Manuel Correia 4 : «Podiam ter vivido<br />

ali os Vetónios, os Váceos, Astures ou<br />

Carpetanos ou outros, talvez mesmo os<br />

Galaicos, que nenhuns ficavam distantes<br />

<strong>de</strong>ste território e po<strong>de</strong>riam tê-lo ocupado.<br />

(...). Não é, porém, <strong>de</strong> crer que estes e os<br />

turdulos fossem os únicos habitantes <strong>de</strong><br />

Riba-Côa.» Como quer que seja, e regres-<br />

… correndo teimoso<br />

entre invernos<br />

e estiagens, ora caudaloso<br />

ora parco, foi cioso<br />

guardador da memória<br />

que os Homens, na aurora<br />

dos seus dias, lhe entregara.<br />

sando a Pinharanda Gomes, o Côa «foi, no<br />

<strong>de</strong>curso do tempo, grave aci<strong>de</strong>nte na geografia<br />

política. Serviu <strong>de</strong> fosso entre ribacudanos<br />

e transcudanos nos tempos tribais<br />

e através da reconquista; serviu <strong>de</strong> raia leonesa,<br />

na parte <strong>de</strong> Cima-Côa, face ao novo<br />

reino português» até que, com as conquistas<br />

<strong>de</strong> D. Dinis 5 , reconhecidas pelo Tratado<br />

<strong>de</strong> Alcanizes, em 1297, que fixou <strong>de</strong>finitivamente<br />

as fronteiras <strong>de</strong> Portugal na zona,<br />

passou a rio interior, transferindo para o<br />

Águeda a sua função limítrofe.<br />

Feita a conquista, D. Dinis tratou <strong>de</strong> a<br />

assegurar e, por isso, construiu castelos,<br />

edificou muralhas em volta das vilas e<br />

levantou pontes sobre o Côa, guarnecendo<br />

fortemente as praças. É assim que a fortaleza<br />

do Sabugal, que vigiava <strong>de</strong> Leão o reino<br />

<strong>de</strong> Portugal, passou, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> recuperada<br />

por D. Dinis, a vigia <strong>de</strong> Portugal face ao<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Castela.


Uma cena do romance regionalista <strong>de</strong><br />

Nuno <strong>de</strong> Montemor, Maria Mim 6 , surpreen<strong>de</strong><br />

o Castelo do Sabugal com gran<strong>de</strong> felicida<strong>de</strong><br />

estética no seu quadro heróico-<br />

-romântico, que vale a pena transcrever:<br />

«Intacto, garboso e sempre vivo, continuamente<br />

embalado pela água azul do<br />

Rio Côa que, em jeitos <strong>de</strong> pajem, graciosamente<br />

se lhe curva, a banhá-lo, dir-se-ia<br />

que os seus fundamentos criaram raízes<br />

vegetais no leito do rio, tão viçosa é a<br />

escarpa íngreme que a ele conduz, e sobre<br />

a qual o castelo assenta enramado <strong>de</strong> heras<br />

e flores, como altar <strong>de</strong> Maio em constante<br />

Primavera. (...) Belo e encantado castelo<br />

das cinco quinas, como, no dizer do povo,<br />

não há outro em Portugal! Que o rio<br />

encurvasse pelo nascente, um braço, a<br />

É um cenário <strong>de</strong> fascínio<br />

da arte rupestre,<br />

«museu <strong>de</strong> história da arte<br />

ao ar livre<br />

como não há outro<br />

no mundo com esta<br />

profundida<strong>de</strong> temporal.<br />

enlaçar a cintura da vila, para a mudar<br />

numa ilha branca e ver<strong>de</strong> e o tão enamorado<br />

Almourol não passaria <strong>de</strong> um pobre e<br />

ressequido esqueleto.»<br />

O apontamento final <strong>de</strong>ste trecho convida-nos<br />

a consi<strong>de</strong>rar mais em <strong>de</strong>talhe o<br />

percurso sinuoso do rio. E também aqui o<br />

Côa se mostra raro: é um dos poucos rios<br />

em Portugal que correm <strong>de</strong> sul para norte,<br />

o que, olhando-o no mapa, o faz parecer<br />

como que um rio ao invés – sobe em vez<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scer, acentuando a imagem <strong>de</strong> um rio<br />

esforçado, no penoso afã <strong>de</strong> levar à foz um<br />

caudal atormentado.<br />

Nasce na freguesia <strong>de</strong> Fóios na serra<br />

das Mesas, também conhecida por serra da<br />

Nave Molhada, pequeno como qualquer<br />

outro, mas o seu caudal vai engrossando<br />

até <strong>de</strong>saguar, majestoso e farto, na margem<br />

esquerda do rio Douro, próximo <strong>de</strong> Vila<br />

Nova <strong>de</strong> Foz Côa (que do facto lhe tira o<br />

nome). Da nascente até à foz são 135 km<br />

<strong>de</strong> tortuoso leito, alimentado por muitos<br />

afluentes (sendo os principais na margem<br />

direita, as ribeiras <strong>de</strong> Alfaiates e Adão e, na<br />

esquerda, as ribeiras <strong>de</strong> Noémi, Gaiteiros,<br />

Cabras, Massucine e Tamegal).<br />

Atravessa, qual espinha dorsal, o concelho<br />

do Sabugal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> próximo da raia,<br />

passa, como se viu, na vila do Sabugal e<br />

segue a este das freguesias <strong>de</strong> Valongo e<br />

Castelo Mendo, a oeste dos concelhos <strong>de</strong><br />

Almeida e <strong>de</strong> Pinhel, até entrar no Douro<br />

em Vila Nova <strong>de</strong> Foz Côa.<br />

Por volta <strong>de</strong> 1800, Frei Bernardo <strong>de</strong><br />

Brito 7 <strong>de</strong>screve-o com pitoresco rigor da<br />

seguinte forma: «É rio <strong>de</strong> muita cópia <strong>de</strong><br />

peixe, como são barbos, bogas, bordalos e<br />

outros modos <strong>de</strong> pescaria. A cor das suas<br />

águas é pouco clara, tirante a ver<strong>de</strong> escuro;<br />

é <strong>de</strong> malíssima digestão, e mui pesada,<br />

causa tristeza, dores <strong>de</strong> barriga e <strong>de</strong> cabeça,<br />

engrossa o entendimento e, para mulheres<br />

formosas, é <strong>de</strong> muito pouco proveito, porque<br />

lhe dana o carão notavelmente: só tem<br />

virtu<strong>de</strong> para tingir lãs e cal<strong>de</strong>ar ferro, que<br />

neste particular é excelente.»<br />

Porém, é sabido que «não há trutas<br />

como as do Côa» e também é verda<strong>de</strong> que<br />

as suas águas serviram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre para<br />

irrigar lameiros e campos <strong>de</strong> cultivo,<br />

fazendo das suas margens viveiros férteis<br />

das localida<strong>de</strong>s por on<strong>de</strong> passa.<br />

Mas a primeira «biografia» total do<br />

rio traça-se pela primeira vez a partir do<br />

«Inquérito do Ministério do Reino dirigido<br />

às Paróquias em 1758». Consta <strong>de</strong><br />

19 perguntas que inci<strong>de</strong>m sobre a origem,<br />

características hídricas, aproveitamentos,<br />

construções, navegabilida<strong>de</strong> e<br />

até eventual mineração no caudal. Assim<br />

se fica a saber do cultivo <strong>de</strong> algumas partes<br />

das margens, das espécies arbóreas<br />

que acompanham o curso do rio que tem<br />

(tinha) muitos moinhos e algumas pontes,<br />

tudo em 10 conjuntos <strong>de</strong> respostas<br />

(tantos quantas as paróquias) <strong>de</strong> análise<br />

<strong>de</strong>veras interessante.<br />

Pelo pormenor e pela curiosida<strong>de</strong> das<br />

observações, não resisto a transcrever o<br />

teor da resposta assinada pelo aba<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Quadrazais, Paulo Correia da Costa, datada<br />

<strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1758:<br />

1 In J. Leite <strong>de</strong> Vasconcelos,<br />

Religiões da Lusitânia<br />

(3 volumes, 1897, 1905, 1913).<br />

2 In J. Pinharanda Gomes,<br />

Geógrafos do Côa, Actas do<br />

Congresso do 7.º Centenário<br />

do Foral – Sabugal, 1996,<br />

págs. 97-108.<br />

3 In Frei Joaquim Santa<br />

Rosa Viterbo, Elucidário<br />

das Palavras, Termos<br />

e Frases que em Portugal<br />

Antigamente se Usavam,<br />

(2 volumes, 1798-99).<br />

4 In Joaquim Manuel Correia,<br />

Terras <strong>de</strong> Riba-Côa<br />

– Memórias sobre o Concelho<br />

do Sabugal, ed. da Fe<strong>de</strong>ração<br />

dos Municípios da Beira-Serra,<br />

Lisboa, 1946, pág. 14.<br />

5 D. Dinis teria conquistado ou<br />

tomado posse efectiva <strong>de</strong>stas<br />

terras, em 1296, <strong>de</strong> regresso<br />

<strong>de</strong> uma mal-sucedida empresa<br />

em terras <strong>de</strong> Leão, ao apoiar<br />

as pretensões ao trono do tio<br />

<strong>de</strong> Fernando IV <strong>de</strong> Castela<br />

(ainda menor ao tempo) e que,<br />

por ilegítimas, se goraram. Diz o<br />

Dr. Joaquim Correia: «O certo é<br />

que D. Dinis invadiu a comarca<br />

<strong>de</strong> Riba Côa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ribeira<br />

<strong>de</strong> Tourões e o Rio Águeda, que<br />

ficou sendo a linha divisória<br />

dos dois países até ao Côa, que<br />

anteriormente separava as duas<br />

nações.» O direito à posse <strong>de</strong>stas<br />

terras por Portugal, anterior<br />

mesmo a esta expedição, parece,<br />

aliás , ser implicitamente<br />

reconhecido pelo texto<br />

do Tratado <strong>de</strong> Alcanizes.<br />

6 Nuno <strong>de</strong> Montemor (pseudónimo<br />

literário <strong>de</strong> Joaquim Augusto Álvares<br />

<strong>de</strong> Almeida), Maria Mim,<br />

1939, 4.ª ed. da Câmara Municipal<br />

do Sabugal, 2003.<br />

7 Frei Bernardo <strong>de</strong> Brito, Geografia<br />

Antiga da Lusitânia (1804), ed.<br />

1957, págs. 22-23.


RIOS PROFUNDOS 80<br />

81<br />

«Resposta sobre a Ribeyra <strong>de</strong>ste Lugar: 1. – Junto a este povo <strong>de</strong> Coadrazaes 8 , como já se disse,<br />

passa huma Ribeyra chamada Côa.Esta nasce,distância <strong>de</strong>ste povo duas légoas,perto <strong>de</strong> huma Al<strong>de</strong>a<br />

chamada Foyos,em hum sítio chamado Currais das Moreyras,<strong>de</strong> fronte <strong>de</strong> hum cabeço que chamam<br />

o Cabeço Vermelho,na distância <strong>de</strong> dous tiros <strong>de</strong> mosquete da Serra já nomeada da Nave Molhada ou<br />

das Mezas. 2. – Nasce a dita Ribeyra dando vista ao Norte, logo bastantemente vigoroza, porque em<br />

menos <strong>de</strong> meyo quarto <strong>de</strong> legoa moem logo nella moinhos.Corre todo anno por estas vizinhanças,em<br />

espaço <strong>de</strong> outo ou nove legoas, sem embargo <strong>de</strong> que, haverá seis annos, secou no tempo <strong>de</strong> Verão, em<br />

muitas partes, mas foy cazo que outro se não conheceu dos nascidos. 3. – As Ribeyras <strong>de</strong> que tenho<br />

noticia entram nella, há uma chamada dos Sargaçais, perto da Villa do Sabugal; outra chamada a<br />

Ribeyra <strong>de</strong> Pega, perto <strong>de</strong> um povo que chamam Rapoula; outra chamada Ribeyra <strong>de</strong> Villar Mayor,<br />

junto a hum povo que chamam Vadamallos. 4. – Nam me consta que a dita Ribeyra seja navegável,<br />

e só tenho notícia que lá perto don<strong>de</strong> se mete no Rio Douro, tem suas barcas <strong>de</strong> passagem. 5. – He<br />

<strong>de</strong> curso arrebatado, em toda a sua distância, menos em algumas partes, mas em muito pouco espaço,<br />

como em alguns açu<strong>de</strong>s ou pedaços <strong>de</strong> terra que chamam veigas. 6. – Tem a dita Ribeyra o seu nas-<br />

cimento ao nascente do Sol, sem embargo, <strong>de</strong> quando nasce dá vista ao Norte como levo dito e leva o<br />

seu <strong>de</strong>curso a Nor<strong>de</strong>ste para o Poente. 7. – Os peixes que cria nestas vizinhanças, por serem aguas<br />

muito frias, san trutas com suficiente abundancia, cria tambem barbos, bordallos e bogas, no espaço<br />

<strong>de</strong> tres legoas <strong>de</strong> distância e no mais espaço do seu <strong>de</strong>curso,já cria poucas trutas,por serem aguas mais<br />

quentes, mas cria mais abundancia dos mais peixes acima nomeados, e mais criaria se o tempo ou<br />

mezes <strong>de</strong>fezos com rigor se observassem, e se prohibissem os materiais que no Rio se lançam para<br />

matar os peixes, com que morrem gran<strong>de</strong>s e pequenos. 8. – Em todo o tempo do anno, há na dita<br />

Ribeyra pescarias, porque se não observam os tempos prohibidos pella ley do Reyno. 9. – Por estas<br />

vizinhanças, em espaço <strong>de</strong> quatro legoas não me consta que na dita Ribeyra haja pesqueyros, porem<br />

mais abaixo,me consta que alguns há <strong>de</strong> pessoas particulares.10.– Em alguns sítios da dita Ribeyra<br />

se cultivam as suas margens como na Villa do Sabugal, e junto a um povo Vadamallos e em outros<br />

sítios mais; mas nam me consta <strong>de</strong> que se valham das aguas <strong>de</strong> tal Ribeyra para a <strong>cultura</strong> dos cam-<br />

pos, o que tudo hé incuria dos habitadores. Athé on<strong>de</strong> chega a minha noticia, nem me consta que


tenha arvores <strong>de</strong> fructo; sem embargo que as po<strong>de</strong>rá ter, em muitas partes, se houvesse curiozida<strong>de</strong>.<br />

De arvores sylvestres tem bastantes,na mayor parte <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>curso,como sam amieyros e outras mais<br />

<strong>de</strong> semelhante qualida<strong>de</strong>.11.– A este nam há que respon<strong>de</strong>r [se têm alguma virtu<strong>de</strong> particular estas<br />

águas]. 12. – Des<strong>de</strong> o seu nascimento athé on<strong>de</strong> morre, sempre conserva o mesmo nome, nem consta<br />

que em tempo algum tivesse outro. 13. – Vay morrer em hum Ryo chamado Douro em distancia <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zasseis legoas nas vizinhanças <strong>de</strong> huma Villa chamada Villanova <strong>de</strong> Foscoa, e naquelle sitio é só que<br />

per<strong>de</strong> o seu nome.14. – Nam tem a tal Ribeyra capacida<strong>de</strong> que admita navegaçoens. Nam me<br />

consta que tenha cachoeyra ou reprezas gran<strong>de</strong>s, e só sim pella mayor parte <strong>de</strong>lla tem quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

assu<strong>de</strong>s e pegos, por razão dos moinhos que nella há. 15. – Athé on<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong> a minha noticia, me<br />

consta que a dita Ribeyra tem sette pontes: duas <strong>de</strong>llas com pilares ou cortamares <strong>de</strong> cantaria; e o<br />

pavimento <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira; huma <strong>de</strong>llas está em huma Al<strong>de</strong>a chamada Val <strong>de</strong> Espinho e outra está neste<br />

povo <strong>de</strong> Coadrasaes.Das cinco <strong>de</strong> cantaria huma está na Villa do Sabugal,outra que chamam a ponte<br />

<strong>de</strong> Sequeyros 9 ,perto <strong>de</strong> um povo chamado Miusella,outra junto a Villa <strong>de</strong> Castello Bom,outra meya<br />

legoa distante da praça <strong>de</strong> Almeyda e outra perto <strong>de</strong> hum povo chamado Sinco Villas. 16. – Só me<br />

consta que a dita Rybeira, pella mayor parte <strong>de</strong>lla, tem moinhos e <strong>de</strong> que tenha lagares ou pizões me<br />

não consta.17.– Conheço-me lembrado <strong>de</strong> que haverá vinte annos,pouco mais ou menos,vieram às<br />

vizinhanças <strong>de</strong>ste povo certos homens, e que com instrumentos que traziam, tiraram nas areas e entre<br />

as pedras <strong>de</strong>sta Ribeyra algum ouro, mas muito pouco, e por tirarem pouco lucro nam repetiram a<br />

vinda mais que em duas ou tres ocazioens.18.– Nam me consta que no uso das aguas <strong>de</strong> tal Ribeyra,<br />

para a <strong>cultura</strong> dos campos, haja pençam alguma nestas vizinhanças, mas antes, <strong>de</strong>llas se uza livre-<br />

mente pelos habitadores, e melhor podiam usar, se nam foram negligentes. 19. – Tem a tal Ribeyra<br />

16 legoas <strong>de</strong> curso, pouco mais ou menos em direytura, que tantas sam as que fazem da Al<strong>de</strong>a dos<br />

Foyos, aon<strong>de</strong> nasce, a Villa Nova <strong>de</strong> Foscoa, on<strong>de</strong> morre; passa por meyo da dita Al<strong>de</strong>a dos Foyos, vem<br />

à vista do Lugar <strong>de</strong> Val <strong>de</strong> Espinho, à vista <strong>de</strong>ste <strong>de</strong> Coadrasaes, à vista do Lugar da Rapoula, à vista<br />

<strong>de</strong> Val Longo e Seixo do Côa, à vista <strong>de</strong> Vadamallos e Porto <strong>de</strong> Ovelha, cujas povoaçoens se acham<br />

na distância <strong>de</strong> quatro legoas em direitura <strong>de</strong> tal Ribeyra, e nam chega a mais a minha notícia<br />

neste particular.»<br />

8 Esta grafia parece preten<strong>de</strong>r<br />

indicar um nexo etimológico<br />

entre o nome do rio e o da<br />

povoação, o que não está<br />

cientificamente provado.<br />

A este topónimo atribui-se<br />

uma possível origem arcaica<br />

leonesa. Terra-mãe <strong>de</strong><br />

contrabandistas, Quadrazais<br />

foi cenário <strong>de</strong> aventuras<br />

e dramas das suas vidas<br />

arriscadas, que o supracitado<br />

romance <strong>de</strong> Nuno<br />

<strong>de</strong> Montemor ilustra<br />

com verda<strong>de</strong> e emoção.<br />

9 Um dos dois únicos exemplos<br />

que ainda subsistem no<br />

nosso país <strong>de</strong> ponte com<br />

habitáculo on<strong>de</strong> se cobrava<br />

a portagem. Ou, como sugere<br />

Joaquim Correia, se<br />

controlava a passagem<br />

<strong>de</strong> portugueses para<br />

Espanha, uma vez que<br />

o torreão posicionado junto<br />

à margem direita do rio<br />

sugere ser uma espécie<br />

<strong>de</strong> posto fronteiriço. A ser<br />

assim, a ponte seria <strong>de</strong><br />

construção anterior<br />

ao domínio português<br />

em Riba Côa.


10 Cancelado <strong>de</strong>finitivamente<br />

o projecto da barragem<br />

do Vale do Côa foram<br />

constituídos o «Parque<br />

Arqueológico do Vale<br />

do Côa», e um projecto<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

para a região, o PROCÔA.<br />

RIOS PROFUNDOS 82 83<br />

E ainda hoje em muito assim é.<br />

Porém, na opinião <strong>de</strong> Pinharanda<br />

Gomes, «o retrato <strong>de</strong> corpo inteiro tirado<br />

do natural» do nosso Côa só ficou disponível<br />

a partir do projecto científico do geógrafo<br />

Carlos Alberto Marques, <strong>de</strong> que nasceram<br />

duas obras indispensáveis (<strong>de</strong> 1936<br />

e 1939), reeditadas pela Assírio & Alvim<br />

(Lisboa, 1995) num único volume intitulado<br />

A Bacia Hidrográfica do Côa seguido <strong>de</strong><br />

Algumas Notas Etnográficas <strong>de</strong> Riba Côa.<br />

Ribacu<strong>de</strong>nse, natural <strong>de</strong> Vale <strong>de</strong> Espinho, o<br />

autor relata, para além da geografia física,<br />

da flora e da fauna, pormenores da vida<br />

dos homens: a caça, a pesca, as touradas, as<br />

festas joaninas, o contrabando, os santos e<br />

as matanças. Dos anos trinta até hoje, com<br />

Como se, na áspera ascese<br />

do seu percurso final, o rio<br />

assumisse o enigmático<br />

sentido da História<br />

e se constituísse sentinela<br />

perene <strong>de</strong> um património<br />

miraculosamente<br />

conservado a transmitir<br />

aos vindouros.<br />

a emigração e as mutações económicas,<br />

parte disto per<strong>de</strong>u expressão ou feneceu,<br />

mas em termos científicos este é, ainda<br />

hoje, um testemunho incontornável para a<br />

história do Rio.<br />

Mas, avaro e secreto, o Côa entesourou<br />

um segredo velho <strong>de</strong> milénios.<br />

Vindo do fundo dos tempos, sisudo e<br />

constante, correndo teimoso entre invernos e<br />

estiagens, ora caudaloso ora parco, foi cioso<br />

guardador da memória que os Homens, na<br />

aurora dos seus dias, lhe entregaram.<br />

São as gravuras rupestres, só verda<strong>de</strong>iramente<br />

<strong>de</strong>scobertas em 1989, aquando <strong>de</strong><br />

um estudo ambiental realizado por exigências<br />

da construção <strong>de</strong> uma barragem a<br />

efectuar junto à sua foz 10 .<br />

Os núcleos conhecidos esten<strong>de</strong>m-se<br />

pelo Vale do Côa e <strong>de</strong> alguns dos seus<br />

afluentes ao longo <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 17 km do<br />

seu percurso final. No entanto, estando<br />

ainda em curso os estudos especializados,<br />

não se conhece por ora o número <strong>de</strong>finitivo<br />

e total das gravuras que enriquecem o<br />

vale, calculadas já em vários milhares. É um<br />

cenário <strong>de</strong> fascínio da arte rupestre,<br />

«museu <strong>de</strong> história da arte ao ar livre<br />

como não há outro no mundo com esta<br />

profundida<strong>de</strong> temporal e on<strong>de</strong> é possível<br />

reconstituir toda a história da região a partir<br />

do comportamento artístico dos povos<br />

que a habitaram». São manifestações artísticas<br />

que atravessam diversas fases da Pré-<br />

-História e da História. Sinais <strong>de</strong> percursos<br />

cinegéticos, vitais para a sua sobrevivência,<br />

<strong>de</strong> estágios ou êxodos do Homem<br />

Paleolítico, elas parecem participar da<br />

natureza simbólica do próprio rio, configurando<br />

a seu modo a existência humana<br />

e o seu curso, com a sucessão dos seus<br />

eventos, sentimentos, intenções, temores e<br />

preitos. De algum modo, a flui<strong>de</strong>z das formas<br />

parece ter a ver com o fluir das águas,<br />

mas, por outro lado, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> marcar,<br />

in<strong>de</strong>levelmente, no Tempo que corre (entre<br />

a Vida e a Morte, como o rio entre a Nascente<br />

e a Foz) a presença do Homem vivo<br />

e universal.<br />

Subindo o rio até ao Douro, vão-se<br />

suce<strong>de</strong>ndo, quais «santuários» apelando a<br />

estudiosa romagem, os sítios da arte rupestre<br />

paleolítica: Faia, Quinta da Barca,<br />

Penascosa, Ribeira <strong>de</strong> Piscos, Vale <strong>de</strong> Figueira,<br />

Vale Vi<strong>de</strong>iro, Canada do Inferno,<br />

Canada do Amendoal e Vale dos Moinhos.<br />

Após a realização <strong>de</strong> trabalhos <strong>de</strong> prospecção<br />

com vista à localização <strong>de</strong> possíveis<br />

sítios <strong>de</strong> habitat humano contemporâneo<br />

das gravuras, chegou-se, em 1995, à i<strong>de</strong>ntificação<br />

dos primeiros sítios arqueológicos<br />

datados do Paleolítico Superior, revelando<br />

um <strong>de</strong>les uma ocupação <strong>de</strong> há cerca<br />

<strong>de</strong> 22 000 anos. A datação <strong>de</strong>ste enorme<br />

património artístico do vale do Côa pressupôs<br />

vários critérios e levou à constatação<br />

<strong>de</strong> que as gravuras foram executadas em<br />

diversas épocas, apresentando-se muitas<br />

vezes em configurações sobrepostas. A<br />

i<strong>de</strong>ntificação das espécies animais figuradas,<br />

como o cavalo, o auroque (antepassado<br />

dos nossos bois domésticos), a cabra<br />

montês e os veados, levou, por exemplo, à<br />

<strong>de</strong>terminação do Paleolítico Superior


(período entre 30 000 e 10 000 anos antes<br />

do presente em Portugal) como data para o<br />

núcleo da Ribeira <strong>de</strong> Piscos, mas, já com<br />

representações humanas estilizadas, serão<br />

datadas do Neolítico ou do Calcolítico as<br />

gravuras do núcleo da Faia, enquanto no<br />

núcleo <strong>de</strong> Orgal, além <strong>de</strong> gravuras <strong>de</strong>sta<br />

época, se <strong>de</strong>scobriram outras já da Ida<strong>de</strong><br />

do Ferro (meados do I milénio a.C.) representando<br />

guerreiros armados a cavalo.<br />

No entanto, parece ser o vale do Côa local<br />

privilegiado na arte da figuração rupestre,<br />

pois <strong>de</strong>la encontramos exemplos <strong>de</strong> representações<br />

religiosas e populares que<br />

quase tocam a actualida<strong>de</strong>, executadas<br />

entre o século XVII e a década <strong>de</strong> 50 do<br />

século passado.<br />

Fruto ou não da atracção do rio, o que<br />

é facto é que todos os conjuntos artísticos<br />

paleolíticos, até ao momento documentados,<br />

se situam nas vertentes viradas ao<br />

Côa (ou aos seus afluentes). É uma rarida<strong>de</strong><br />

sem paralelo na Pré-História recente e,<br />

se tal não for <strong>de</strong>vido apenas a factores rela-<br />

Vista geral do Vale do Côa (foto CNART), Instituto Português <strong>de</strong> Arqueologia<br />

cionados com diferentes condições <strong>de</strong> preservação,<br />

esta distribuição das gravuras<br />

po<strong>de</strong> ser interpretada como um <strong>de</strong>liberado<br />

e consciente comportamento focalizado no<br />

curso <strong>de</strong> água.<br />

Como se, na áspera ascese do seu percurso<br />

final, o rio assumisse o enigmático<br />

sentido da História e se constituísse sentinela<br />

perene <strong>de</strong> um património miraculosamente<br />

conservado a transmitir aos<br />

vindouros.<br />

Algo <strong>de</strong> quase místico, a que Nuno <strong>de</strong><br />

Montemor já fora sensível ao <strong>de</strong>screvê-lo<br />

no citado romance: «O ambiente majestoso<br />

e recolhido daquela paisagem religiosa,<br />

enquadrada por serras <strong>de</strong> pedregulhos<br />

soltos, eriçada, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> em on<strong>de</strong>, por<br />

altas colunas <strong>de</strong> montes, recorda[va] o<br />

recinto <strong>de</strong> imensa catedral <strong>de</strong>smoronada<br />

por cataclismo cósmico.»<br />

Mas é pacificado e generoso que o Côa<br />

se entrega, com o seu precioso tributo, ao<br />

«rio-do-oiro», para, nele transfigurado,<br />

atingir o seu <strong>de</strong>stino último: o mar.


BESTIÁRIO 84 85<br />

Do Macaco <strong>de</strong> Paimogo<br />

ao Mico-Leão-Dourado<br />

Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />

Macacos são personagens <strong>de</strong> romances, <strong>de</strong> contos, <strong>de</strong> lendas,<br />

<strong>de</strong> canções. De José <strong>de</strong> Alencar (O Guarany, 1857)<br />

a Mia Couto (“Fábula do macaco e do peixe”), passando<br />

por Castro Alves (A Cachoeira <strong>de</strong> Paulo Afonso, 1876),<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (Macunaíma, 1928) ou Graça Aranha<br />

(A Viagem Maravilhosa, 1929), todos se <strong>de</strong>ixam fascinar<br />

pela figura do macaco, relevando-lhe qualida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> entretenimento, diversão e fantasia<br />

ou transmutando-os no papel dos homens.<br />

Alexandre Rodrigues Ferreira, «Guariba Vermelho», in Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuibá (1783-1792),<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Culturas, 1791


BESTIÁRIO<br />

86<br />

87<br />

Jamais se viram. E, provavelmente, nunca se<br />

encontrarão, a não ser pelas fímbrias do imaginário<br />

que povoam as cabeças dos humanói<strong>de</strong>s, seus<br />

primos mais próximos.<br />

Um é matéria rochosa e permanece há milénios<br />

a enfrentar o Oceano-Mar com seu ar <strong>de</strong> lonjura<br />

e altivez infinita. Vive, transformado em<br />

pedra, sentado nas areias da Lourinhã, ainda por<br />

ali habitavam Pterodáctilos e outras animálias<br />

semelhantes. O outro existe apenas na Mata<br />

<strong>Atlântica</strong> junto ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, do outro lado do<br />

mar. Ao contrário do gigante <strong>de</strong> Paimogo 1 , o mico-<br />

-leão-dourado é um pequeno e leve primata com<br />

pelagem da cor do fogo e uma juba à moda do rei<br />

da selva, a quem <strong>de</strong>ve a titulação. Ao sol, o pêlo<br />

brilha tão intensamente que parece saído do próprio<br />

astro para encantar companheiros <strong>de</strong> habitat e<br />

viajantes <strong>de</strong> toda a Orbe:<br />

Há também huns pequeninos pela costa <strong>de</strong> duas castas pouco<br />

mayores que doninhas, a que commumente chamam Sagoís, cõuen<br />

a saber,há huns louros & outros pardos.Os louros tem hum cabello<br />

muito fino, & na semelhança do vulto & feição do corpo quasi<br />

se querem parecer com lião: sam muito fermosos, e nam os há<br />

senam no rio <strong>de</strong> Janeiro. Os pardos se acham apraziueis: mas nam<br />

tam alegres á vista como estes. E assi huns como outros, sam tam<br />

mimosos & <strong>de</strong>licados <strong>de</strong> sua natureza,que como os tiram da patria<br />

& os embarcam pera este Reino, tanto que chegão a outros ares<br />

mais frios quasi todos morrem no mar, & nam escapa senam<br />

algum <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> maravilha.<br />

[Pêro Magalhães <strong>de</strong> Gândavo,História da América Portuguesa a que<br />

Vulgarmente se Chama Brasil, 1576]<br />

Popularmente, é conhecido como sauí, saguí,<br />

saguín, sagûi-piranga, sauí vermelho, mico, entre outras<br />

<strong>de</strong>signações e variantes dos macacos (estes também<br />

conhecidos por símios, bugios, ou cebí<strong>de</strong>os,<br />

no último caso, o palavrão com que baptizaram<br />

esses primatas antropói<strong>de</strong>s do Novo Mundo). Isto<br />

para não falarmos das famílias e das espécies,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as Callitricidae às Cebus apella macrocephalus ou às<br />

Cebus apella tocantinus.<br />

Saguins são bugios pequeninos mui felpudos e <strong>de</strong> cabelo<br />

macio, raiados <strong>de</strong> pardo e preto e branco; tem o rabo comprido e<br />

muita felpa no pescoço a qual trazem sempre arrepiada,e que os faz<br />

muito formosos (…).Do Rio <strong>de</strong> Janeiro vem outros saguins da feição<br />

<strong>de</strong>stes <strong>de</strong> cima [Bahia] que tem o pêlo amarelo muito macio,<br />

que cheiram muito bem; as quais e os <strong>de</strong> trás são mimosos e morrem<br />

em casa, <strong>de</strong> qualquer frio, e das aranhas.<br />

[Gabriel Soares <strong>de</strong> Sousa, Notícia do Brasil, 1587]<br />

Mas voltemos ao nosso Leontopithecus rosalia<br />

ou, mais propriamente, ao mico-leão-dourado<br />

que vive mansamente nas florestas, entre as bromélias<br />

e os cipós, comendo insectos, frutos, ovos<br />

e um ou outro pássaro ou lagarto mais <strong>de</strong>sprevenido<br />

(ninguém é perfeito, e nisto parecem-se<br />

com os mamíferos humanos, pois, como dizem<br />

os antigos, «não há bela sem senão». Especialmente<br />

os macacos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, como os<br />

chimpanzés, os gorilas e os orangotangos, acumulam<br />

tanto <strong>de</strong> beleza, como <strong>de</strong> pequenos <strong>de</strong>feitos,<br />

o que os aproxima dos homens, pois não é<br />

por acaso que se diz «errar é humano», e não<br />

«errar é animal». Perdoem-me os animais humanos,<br />

mas esta tribuna é pelos bichos «à séria»).<br />

Rezam as crónicas que estes micos são<br />

monogâmicos – coisa que eu não comento,<br />

pois não tenho nada a ver com a vida privada<br />

<strong>de</strong> cada um – e levam a paternida<strong>de</strong> muito a<br />

sério. O filhote recém-nascido passa os primeiros<br />

quatro dias pendurado no ventre materno,<br />

mas, passado esse período, é o pai que o transporta,<br />

limpa e penteia os seus pêlos sedosos,<br />

apenas o emprestando à mãe para a mamada,<br />

não se afastando do seu bebé nem durante essas<br />

ternuras maternais. Infelizmente, o nosso<br />

amigo mico-leão-dourado é uma das espécies<br />

em risco <strong>de</strong> extinção, assim como o seu<br />

«primo irmão», o mico-leão-<strong>de</strong>-cara-dourada<br />

(o Leontopithecus chrysomelas), que vive no Sul da<br />

Bahia, sujeitos à captura ilegal <strong>de</strong> inescrupulosos<br />

comerciantes e ao <strong>de</strong>smatamento do seu<br />

habitat. Pior é a situação do mico-leão-<strong>de</strong>-cara-<br />

-preta, <strong>de</strong>scoberto apenas em 1990 na Mata<br />

<strong>Atlântica</strong> do Estado do Paraná – um dos biomas<br />

brasileiros mais ricos em biodiversida<strong>de</strong>, mas<br />

também o mais ameaçado – e <strong>de</strong> que restam<br />

apenas trezentos indivíduos. Estes «caras pretas»<br />

são famosos pelos sons muito agudos que<br />

emitem para comunicarem entre si e pelo<br />

modo como se <strong>de</strong>slocam <strong>de</strong> galho em galho<br />

pendurando-se pela cauda dourada.<br />

Há muito que estes símios suscitam nos viajantes<br />

um gran<strong>de</strong> fascínio, sejam os macacos-<br />

-prego, muito generalizados em todas as florestas<br />

da América do Sul, os macacos-barrigudos da<br />

Colômbia, Peru e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da região<br />

amazónica e que se distinguem pela gran<strong>de</strong><br />

rapi<strong>de</strong>z e espectacularida<strong>de</strong> dos seus saltos, os<br />

macacos-aranha… enfim, uma quantida<strong>de</strong> infinita<br />

<strong>de</strong> bugios e similares, ou seja, uma interminável<br />

macacada:


Outras <strong>de</strong> animaes <strong>de</strong> caça, antas, veados, porcos monteses, &<br />

aquários, pacas, tatus, tamanduás, lebres, coelhos, & estes <strong>de</strong> 5 ou 6<br />

espécies. Outras <strong>de</strong> animaes <strong>de</strong> gosto, & recreação, monos, macacos,<br />

bugios, çaguíz, preguiças, cotias, & outras espécies sem conto.<br />

[Simão <strong>de</strong> Vasconcelos, Coisas do Brasil, 1663]<br />

Mas o que torna o macaco tão famoso e<br />

importante, tornando o seu uso indiscriminado e<br />

eterno? Agora até há o Macaco Photoblog, o<br />

Macaco M4 Robot Head, o Bio Macaco, o Macaco<br />

Capoeira, o Macaco Lyries, os Macaco banda<br />

musical...<br />

Há muito que as expressões populares promovem<br />

o bicho, mesmo que o simiesco politicamente<br />

correcto não esteja presente quando se<br />

manda a um hominí<strong>de</strong>o «pentear macacos»,<br />

sendo mais prazeiroso pôr «cada macaco no seu<br />

galho». Des<strong>de</strong> sempre se viu neste animal uma<br />

espécie <strong>de</strong> alter-ego do homem, usando-o para criticar<br />

o mundo às avessas, para relevar a infantilida<strong>de</strong><br />

perdida («são os animaes que mostrão mais<br />

instincto, pelos brincos, e acções que fazem»,<br />

Sebastião da Rocha Pita, História da América Portugueza,<br />

1730) ou para re<strong>de</strong>scobrir a alegria e a inocência<br />

(«alguns sam do tamanho <strong>de</strong> ratos, lindos, alegres,<br />

e estimados», Casal, Corografia Brazílica, 1817).<br />

Macacos são personagens <strong>de</strong> romances, <strong>de</strong><br />

contos, <strong>de</strong> lendas, <strong>de</strong> canções. De José <strong>de</strong> Alencar<br />

(O Guarany, 1857) a Mia Couto («Fábula do macaco<br />

e do peixe»), passando por Castro Alves (A Cachoeira<br />

<strong>de</strong> Paulo Afonso, 1876), Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

(Macunaíma, 1928) ou Graça Aranha (A Viagem<br />

Maravilhosa, 1929), todos se <strong>de</strong>ixam fascinar pela<br />

figura do macaco, relevando-lhe qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

entretenimento, diversão e fantasia, ou transmutando-os<br />

no papel dos homens («…enquanto A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong><br />

e Azevedo se entretinhão na frívola conversação que acabámos <strong>de</strong><br />

ouvir, os outros estudantes grimpavão pelos galhos da jaboticabeira<br />

como verda<strong>de</strong>iros saguis, e enchião a copa dos chapéos dos<br />

mais doces e sazonados fructos» [Bernardo Guimarães, Rozaura a<br />

Engeitada, 1883]).<br />

E que dizer do uso do termo «macaco» com<br />

conotações pouco abonatórias, carregadas <strong>de</strong> sentidos<br />

infelizes? O próprio José Lins do Rêgo, no<br />

seu Bangué, enuncia este aspecto na fala do seu<br />

personagem: «Veria meu avô os negros do engenho<br />

como bichos? Um saguim, um porco, um<br />

cachorro?» Ainda hoje é vulgar insultar alguém,<br />

apodando-o <strong>de</strong> «seu macaco», repreen<strong>de</strong>r uma<br />

criança com um «não faças macacadas», ou caluniar<br />

o semelhante com o piropo «macaquinho <strong>de</strong><br />

imitação». Afinal, os homens é que querem<br />

mesmo ser macacos. Não imagino tais aproximações<br />

por parte da macacada, nem eles querem<br />

saber do Darwin para nada.<br />

Pior, pior, para o prestígio do símio é quererem<br />

cortar-lhe o rabo para o tornarem «elegante e<br />

gracioso», à boa maneira humana: «Até lhe digo<br />

mais. Se não fosse o seu rabo comprido, que tanto o <strong>de</strong>sfeia, parecia<br />

tão homem como eu», como aconteceu na História do<br />

Macaco <strong>de</strong> Rabo Cortado, enganado com a conversa do<br />

barbeiro. Pior para este que ficou sem a navalha,<br />

mas ainda hoje me pergunto o que teria mesmo<br />

acontecido ao macaco e à sua viola… Terá mesmo<br />

dado um salto para Angola?<br />

Ou ficou empe<strong>de</strong>rnido nas escarpas rochosas<br />

<strong>de</strong> Paimogo, pelas bandas da Lourinhã, on<strong>de</strong> ainda<br />

espera que o seu gran<strong>de</strong> corpo ganhe coragem<br />

para atravessar o oceano? É que à sua espera está o<br />

pequeno mico-leão-dourado, «… nos galhos mais<br />

altos do landí, mal penteado e careteiro, fazendo gatimanhas,<br />

chiando e dando pinotes». (Guimarães Rosa, Sagarana, 1946)<br />

1 Uma jazida situada na praia <strong>de</strong> Paimogo, no concelho da Lourinhã, revelou vestígios <strong>de</strong><br />

uma centena <strong>de</strong> ovos <strong>de</strong> dinossáurios terópo<strong>de</strong>s do Jurássico Superior. É neste anciano<br />

contexto que se distingue o gran<strong>de</strong> afloramento rochoso que conflui no extremo sul<br />

<strong>de</strong>ssa praia, com a forma <strong>de</strong> uma gigantesca cabeça <strong>de</strong> macaco vigilante que mira o<br />

infinito – o Macaco <strong>de</strong> Paimogo.<br />

O mico-leão-dourado<br />

é um pequeno<br />

e leve primata<br />

com pelagem<br />

da cor do fogo<br />

e uma juba à moda<br />

do rei da selva.


Sabores perdidos<br />

Carmen Yáñez<br />

Natureza viva. Frida Khalo<br />

SABORES PRINCIPAIS 88 89<br />

E, no meu sonho, via a mesa repleta<br />

<strong>de</strong> frutos <strong>de</strong> verão: pêssegos amarelos<br />

e vermelhos, damascos, anonas, lúcumas,<br />

nêsperas, papaias, uvas, melões, melancias.


SABORES PRINCIPAIS 90<br />

91<br />

Cheguei a Estocolmo no dia 28 <strong>de</strong><br />

Agosto <strong>de</strong> 1981. Começava o frio Outono e<br />

a luz do dia ia-se retirando até se apagar<br />

quase por completo, como um prelúdio ao<br />

duro Inverno escandinavo.<br />

Tudo era novo, começava uma nova<br />

vida numa <strong>cultura</strong> totalmente <strong>de</strong>sconhecida<br />

para os meus sentidos.<br />

Neófita e analfabeta, percorria os supermercados<br />

e as lojas da cida<strong>de</strong> que me acolhera.<br />

Os meus olhos abriam-se, assombrados<br />

e curiosos, perante as montras e a<br />

exposição dos diversos artigos, suspeitosamente<br />

comestíveis, que ainda não tinham<br />

nome. Recordo uma família latino-americana<br />

que, entusiasticamente, contava ter<br />

<strong>de</strong>scoberto uma saborosa carne enlatada, a<br />

muito bom preço, da marca Kitekat. Os infelizes<br />

consumiam carne para gatos sem o<br />

saber!<br />

Com esta lamentável e vergonhosa<br />

experiência, redobrei o cuidado com as<br />

minhas compras. Consegui um dicionário<br />

sueco-espanhol, e assim começou o meu<br />

amaldiçoado processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong><br />

um idioma com nove vogais e consoantes<br />

impronunciáveis para as minhas cordas<br />

vocais.<br />

Pouco a pouco, fui-me habituando ao<br />

som e à melodia escandinavos. Mas o mais<br />

difícil foi o conhecimento e a adaptação<br />

das minhas papilas gustativas. Como apreciar<br />

umas sardinhas azuis e fritas com marmelada<br />

<strong>de</strong> arandanos 1 , ou um pudim <strong>de</strong><br />

sangre y dulce, acompanhados também <strong>de</strong><br />

marmelada e batatas cozidas, ou o suspeito<br />

arenque do Norte, fermentado em água e<br />

levedura, embalado em boiões, acompanhado<br />

com cerveja, vodca ou licor <strong>de</strong><br />

absinto, e comido no início da Prima-vera,<br />

sem a presença das crianças nos terraços ou<br />

jardins, porque cheira sempre a estrume?!<br />

Como não estranhar, nestas circunstâncias<br />

adversas – quase um atentado terrorista ao<br />

paladar –, os doces pêssegos amadurecidos<br />

pelo Sol e amontoados, todas as sextas-feiras<br />

pela manhã, no mercado <strong>de</strong> frutas e<br />

hortaliças do bairro popular <strong>de</strong> São<br />

Miguel?! Ou os tomates amadurecidos com<br />

a rama, com sabor a tomate, ou os figos a<br />

secarem numa gran<strong>de</strong> cesta <strong>de</strong> vime à espera<br />

do Inverno?!<br />

Recordo um sonho recorrente no meu<br />

exílio: regressava a casa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos<br />

anos, os meus pais tinham envelhecido,<br />

atravessava o guarda-vento ver<strong>de</strong> da porta<br />

principal da minha casa, caminhava pelo<br />

corredor estreito em direcção à cozinha<br />

on<strong>de</strong> havia sempre uma mesa gran<strong>de</strong> e<br />

generosa, as ca<strong>de</strong>iras colocadas para cada<br />

irmão e parentela adjacente, como uma tia<br />

solteirona que nunca soube a diferença<br />

entre o orégão e o orgasmo, mas que sabia<br />

<strong>de</strong> cor os poemas do romântico Becker.<br />

Voltava a cruzar o largo corredor, as portas<br />

<strong>de</strong> dois batentes dos quartos principais, até<br />

ao fundo, on<strong>de</strong> estavam a sala <strong>de</strong> jantar, no<br />

pátio interior, e a cozinha, <strong>de</strong>masiado<br />

pequena para dar <strong>de</strong> comer a tão numerosa<br />

família. E, no meu sonho, via a mesa repleta<br />

<strong>de</strong> frutos <strong>de</strong> Verão: pêssegos amarelos e<br />

vermelhos, damascos, anonas, lúcumas 2 ,<br />

nêsperas, papaias, uvas, melões, melancias.<br />

Ao <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses sonhos,<br />

levantava o meu corpo com esforço e dirigia-me<br />

à minha própria realida<strong>de</strong>, frente à<br />

janela, <strong>de</strong>scascando a ácida laranja universal<br />

como o meu <strong>de</strong>sencanto, enquanto<br />

caíam lentamente os flocos <strong>de</strong> neve, até<br />

formar uma camada <strong>de</strong> distância entre esse<br />

solo e o meu.<br />

Os sonhos são lampejos eléctricos,<br />

<strong>de</strong>sejos incrustados da nossa realida<strong>de</strong>. Era<br />

a minha lista <strong>de</strong> perdas que gotejava como<br />

uma chuva fina e refrescante. Suponho<br />

que, nessas circunstâncias <strong>de</strong> afastamento,<br />

sobredimensionava os afectos e fazia uma<br />

selecção aleatória das memórias. Só <strong>de</strong>ixava<br />

as passagens harmoniosas e benignas para<br />

me reconciliar com tanto sofrimento passado.<br />

A mesa repleta <strong>de</strong> frutos representava<br />

os meus pais, as suas ausências, o lamento<br />

que eu intuía <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a outra margem e o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sobreviver à separação que me<br />

era imposta.<br />

Na longa costa do meu país, abundam<br />

peixes e mariscos, saborosos e apreciados<br />

por isso. A sul, existe um mexilhão chamado<br />

«choro zapato», apelidado assim<br />

pelo seu tamanho gran<strong>de</strong>, como o <strong>de</strong> um<br />

sapato <strong>de</strong> um adulto. Em <strong>de</strong>terminada<br />

época do ano, a sua carne é suave como<br />

manteiga e costuma-se comê-lo cru com<br />

umas gotinhas <strong>de</strong> limão. Foi assim que o


saboreei na meridional<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Concepción<br />

e numa das suas<br />

praias, Dichato.<br />

Mais a sul, na ilha<br />

<strong>de</strong> Chiloé, costuma-se<br />

preparar o «curanto<br />

en olla» 3 ou, na sua<br />

versão <strong>de</strong>scomunal e<br />

chilena, num buraco<br />

cavado na praia. Previamente,<br />

aquecem-se<br />

pedras numa fogueira<br />

gigante e, quando chegam<br />

ao ponto <strong>de</strong> se<br />

partir, <strong>de</strong>positam-se no<br />

fundo do buraco e<br />

sobre elas colocam-se<br />

as carnes vermelhas e<br />

os cor<strong>de</strong>iros abertos,<br />

<strong>de</strong>pois as carnes brancas,<br />

porcos e aves, chouriços,<br />

todos os mariscos<br />

do frio Pacífico e,<br />

por fim, tudo é coberto<br />

com folhas <strong>de</strong><br />

«nalca» 4 e raízes <strong>de</strong><br />

pasto. A cozedura <strong>de</strong><br />

todos estes manjares<br />

leva uma hora e servem-se,<br />

<strong>de</strong>pois, acompanhados <strong>de</strong> um pão<br />

<strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> trigo e batatas chamado<br />

«milcao» e <strong>de</strong> outro chamado «chapalele»,<br />

à base <strong>de</strong> batatas, e a saborosa alga «cochayuyo».<br />

Serve-se com «chicha <strong>de</strong> manzanas»,<br />

uma versão austral da cidra.<br />

Esta comida do Sul está ligada a um<br />

esforço solidário <strong>de</strong> trabalho partilhado,<br />

costumam fazê-lo durante as colheitas ou a<br />

construção <strong>de</strong> uma casa. Esta reunião<br />

<strong>de</strong>signa-se «la Minga» 5 e nela participa<br />

muita gente durante todo o dia.<br />

Costumo ter em algum canto da<br />

minha cozinha um almofariz <strong>de</strong> mármore<br />

on<strong>de</strong> macero com paciência o «cacho <strong>de</strong><br />

cabra», um «ají» 6 vermelho-escuro e seco<br />

que um amigo e compatriota livreiro, que<br />

vive na Suíça, me envia sempre. Deixo por<br />

vários dias o «ají cacho <strong>de</strong> cabra» (chama-se<br />

assim pela sua forma comprida como um<br />

cone), com azeite puro, vinagre e alho. Este<br />

«ají», proveniente do Norte do Chile, acom-<br />

Passaram muitos anos<br />

e, no meu afã<br />

<strong>de</strong> me adaptar<br />

a cada lugar<br />

on<strong>de</strong> me coube viver,<br />

só levo comigo<br />

os sabores perdidos,<br />

como o sabor e o aroma<br />

do cominho, o coentro<br />

e o manjericão.<br />

panha as carnes e as<br />

minhas nostalgias. É um<br />

ingrediente imprescindível<br />

em todas as cozinhas<br />

chilenas: com o<br />

«ají» moído e seco prepara-se<br />

o «pebre», num<br />

molho picante, com<br />

alho, coentro e salsa,<br />

também para acompanhar<br />

as carnes, as batatas,<br />

as beringelas e<br />

acrescentando-lhe<br />

tomates pelados e cortados<br />

aos bocados ou<br />

moídos, mais um fio <strong>de</strong><br />

água da fonte, tem o<br />

nome <strong>de</strong> «chancho en<br />

piedra». De qualquer<br />

modo, nós, os nostálgicos,<br />

«<strong>de</strong>senrascamo-nos»<br />

sempre, para obter os<br />

nossos produtos da<br />

terra distante.<br />

Passaram muitos<br />

anos e, no meu afã <strong>de</strong><br />

me adaptar a cada<br />

lugar on<strong>de</strong> me coube<br />

viver, só levo comigo<br />

os sabores perdidos,<br />

como o sabor e o aroma do cominho, do<br />

coentro e do manjericão, três cheiros que<br />

inundavam a cozinha e as mãos da minha<br />

avó, quando cozinhava almôn<strong>de</strong>gas em<br />

caldo <strong>de</strong> verduras frescas e pés <strong>de</strong> porco na<br />

panela, como encontrei também agradáveis<br />

semelhanças na cozinha do Norte do<br />

mundo – almôn<strong>de</strong>gas acompanhadas <strong>de</strong><br />

batatas e um molho à base <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong><br />

trigo, leite e nata («Köttbullar»).<br />

Por amor à vida, juntei as duas extremida<strong>de</strong>s<br />

da Terra para me sentar à mesa<br />

apátrida, resgatando com ternura rebel<strong>de</strong><br />

os ternos e rebel<strong>de</strong>s sabores perdidos.<br />

1 Fruto da planta ericácea<br />

chamada erva-do-monte.<br />

(N. da T.)<br />

2 Fruto do tamanho <strong>de</strong> uma<br />

maçã pequena, proveniente<br />

<strong>de</strong> uma árvore existente no<br />

Chile e no Peru, da família<br />

das sapotáceas. (N. da T.)<br />

3 Prato que se serve na<br />

Argentina e no Chile,<br />

à base <strong>de</strong> legumes, marisco<br />

ou carne, cozido sobre<br />

pedras muito quentes,<br />

num buraco que se cobre<br />

com folhas. (N. da T.)<br />

4 No Chile, <strong>de</strong>signa o pecíolo<br />

do «pangue», planta<br />

medicinal usada também<br />

em curtumes. (N. da T.)<br />

5 Termo utilizado na Argentina,<br />

Chile, Colômbia, Equador,<br />

Paraguai e Peru para<br />

<strong>de</strong>signar uma reunião<br />

<strong>de</strong> amigos e vizinhos com<br />

o propósito <strong>de</strong> realizar<br />

algum trabalho gratuito<br />

em comum. O mesmo termo<br />

também se utiliza em<br />

referência a um trabalho<br />

agrícola colectivo e gratuito<br />

com fins sociais. (N. da T.)<br />

6 Pimento picante chileno.<br />

(N. da T.)


ESTÁDIO DE SÍTIO 92<br />

Quando o futebol era magia<br />

Alberto Mosquera Moquillaza<br />

Ao contrário do que possam pensar os a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> futebol <strong>de</strong> hoje,<br />

houve um tempo em que os magos <strong>de</strong>ixavam o fraque<br />

e a cartola, se vestiam <strong>de</strong> calções e iam para o relvado,<br />

93<br />

como qualquer mortal, tirar coelhos, pombas, panos multicolores,<br />

serpentinas, e vá-se lá saber que outras coisas mais, enquanto<br />

as multidões, <strong>de</strong> pé, se divertiam e a bola, como dizia o poeta,<br />

ria e cantava, bem aninhada nos pés <strong>de</strong>sses malabaristas da bola.<br />

Barro <strong>de</strong> Zé Caboclo, <strong>de</strong> Pernambuco, Brasil


Há que acariciar a redondinha, dar-lhe ritmo<br />

<strong>de</strong> samba, candombe, milonga, ou marinera<br />

para que ela se ajuste ao que o ilusionista <strong>de</strong>seja.


ESTÁDIO DE SÍTIO 94<br />

«La pelota<br />

ríe y canta!<br />

¡La pelota<br />

zumba y vuela!» 1<br />

Juan Parra <strong>de</strong>l Riego 2<br />

95<br />

Isabelino Gradín 3 , um negro<br />

<strong>de</strong> ascendência africana, possivelmente<br />

congolês, angolano<br />

ou, porventura, mandinga, foi<br />

um <strong>de</strong>sses primeiros magos.<br />

Bastou que se aproximasse dos<br />

marinheiros ingleses que levaram<br />

o futebol a Montevi<strong>de</strong>u<br />

para, com os seus feitiços, se<br />

apropriar do ir e vir da bola e,<br />

<strong>de</strong>pois, ao ritmo dos endiabrados<br />

tambores do candombe,<br />

<strong>de</strong>spedaçar as cinturas dos seus<br />

adversários brancos.<br />

Ágil,<br />

sagaz,<br />

veloz,<br />

eléctrico,<br />

repentino,<br />

fulminante<br />

Este é Gradín aos olhos do<br />

surpreendido Parra <strong>de</strong>l Riego.<br />

Negro víbora que <strong>de</strong>saparece por<br />

momentos: esquiva-se, curva-se,<br />

flutua, para voltar a sair com a<br />

bola, e lá vai o fulgurante espadachim.<br />

E vai um, e vão dois, e vão<br />

três, quatro, cinco, sete jogadores<br />

estoqueados para, finalmente,<br />

chutar a bola com o pé, a alma, o<br />

peito, com a vida inteira, para<br />

que <strong>de</strong>scanse no fundo da re<strong>de</strong>.<br />

Gradín!, Gradín!, Gradín!,<br />

gritava o soberano, enquanto o<br />

mago, sorri<strong>de</strong>nte e prazenteiro,<br />

se dispunha a mostrar novos sortilégios:<br />

<strong>de</strong>ixou as cartas, agora<br />

tira os lenços…<br />

Senhores, é chegada a hora<br />

do hipnotismo. Ninguém melhor<br />

nesses momentos <strong>de</strong> transe que o<br />

peruano José María Lavalle. Nada<br />

por aqui, nada por lá. E ali está a<br />

bola: acaricia-a, beija-a, namora-a,<br />

uma finta, uma evasiva, sempre à<br />

margem direita, sempre à beira<br />

da linha <strong>de</strong> cal, lenço branco<br />

alçado e chuta! Ali vai o nené,<br />

cantando e rindo, prazenteiro<br />

pelo trato, à procura <strong>de</strong> outros<br />

malabaristas que o continuem a<br />

mimar; ou, se o mago assim o<br />

dispôs, directo, a colocar-se no<br />

fundo das re<strong>de</strong>s.<br />

Porque, isso sim, os magos<br />

nunca tratam a bola aos pontapés<br />

já que a diversão não passa pelo<br />

pontapé ardiloso. Há que acariciar<br />

a redondinha, dar-lhe ritmo <strong>de</strong><br />

samba, candombe, milonga 4 ,ou<br />

marinera 5 para que ela se ajuste ao<br />

que o ilusionista <strong>de</strong>seja. Recordam-se<br />

<strong>de</strong> Didi e sua folha seca?<br />

A bola ia on<strong>de</strong> esse negro admirável<br />

queria que fosse. Se não acreditam<br />

em mim, perguntem a Dom<br />

Rafael Asca, o guarda-re<strong>de</strong>s peruano<br />

que, em Abril <strong>de</strong> 1957, só<br />

conseguiu ver a trajectória <strong>de</strong> uma<br />

bola que foi colar-se exactamente<br />

no ângulo inalcançável da sua<br />

baliza, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um raro efeito<br />

em pleno voo. O Peru inteiro<br />

emu<strong>de</strong>ceu. Morriam as ilusões do<br />

Mundial da Suécia, mas o próprio<br />

Maracanã também se calou <strong>de</strong><br />

espanto. «É coisa <strong>de</strong> bruxas», disse<br />

um a<strong>de</strong>pto, estupefacto.<br />

O próprio Waldir Pereira <strong>de</strong>u<br />

uma explicação para esse estranho<br />

idílio com a bola: «Se alguém não<br />

a trata com carinho, ela não obe<strong>de</strong>ce…<br />

Às vezes ela ia por aí e eu:<br />

“vem filhota”, e trazia-a. Dava-<br />

-lhe <strong>de</strong> calcanhar, <strong>de</strong> joanete e ela<br />

estava ali, obediente.»<br />

No entanto, não se pense<br />

que os magos só marcavam<br />

golos, também os evitavam, plantados<br />

sob as traves da baliza, sempre<br />

prontos a voar mesmo não<br />

tendo asas, a transformar os seus<br />

corpos em muralhas ou a converter<br />

as suas mãos em pinças. Nem<br />

o ar conseguia penetrar nas suas<br />

barreiras.<br />

O húngaro Franz Platko 6 foi<br />

um <strong>de</strong>sses ilusionistas. Rafael<br />

Alberti, o saudoso poeta espanhol,<br />

fala <strong>de</strong>le:


Nadie se olvida, Platko,<br />

no, nadie, nadie, nadie<br />

oso rubio <strong>de</strong> Hungría<br />

Ni el mar,<br />

que frente a ti saltaba<br />

sin po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rte<br />

Ni la lluvia. Ni el viento,<br />

que era el que más regía<br />

Alberti escreveu esta o<strong>de</strong> a<br />

Platko após uma memorável partida<br />

entre bascos e catalães. Nesse<br />

dia, o guarda-re<strong>de</strong>s foi uma verda<strong>de</strong>ira<br />

muralha humana, um<br />

pára-raios, um polvo <strong>de</strong> mil tentáculos,<br />

um touro disposto a <strong>de</strong>ixar-se<br />

matar, mas não disposto a<br />

ver vencida a sua cerca. Em cima,<br />

em baixo, à direita, à esquerda,<br />

em todos os sítios estava Platko. E,<br />

mesmo sem sentidos, com a<br />

cabeça exausta, simulou, para não<br />

<strong>de</strong>ixar a bola na posse <strong>de</strong> ninguém,<br />

apertada como estava nos<br />

seus braços.<br />

A lista dos mágicos guarda-<br />

-re<strong>de</strong>s não é pequena. Ricardo<br />

Zamora, o «Divino», e Lev Yashin,<br />

a «aranha negra», são os primeiros<br />

da lista. E, no Peru, Juan Valdivieso,<br />

o inesquecível «Mago»,<br />

integra a história como o «genial<br />

pára-penalties» que num instante,<br />

em segundos, com a bola dominada<br />

entre as suas mãos, convertia<br />

a tristeza em alegria transbor-<br />

1 Texto lido no encontro <strong>de</strong> narradores e poetas organizado<br />

pela revista Ciberayllu, 9 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 2005,<br />

na Casa <strong>de</strong> Mariátegui, em Lima.<br />

2 Poeta peruano que nasceu em Huancayo, em 1984,<br />

e morreu em Montevi<strong>de</strong>u, em 1925. Foi o criador do<br />

poli-ritmo, um canto dinâmico à vida. A epígrafe<br />

correspon<strong>de</strong> à sua «Loa al fútbol», inicialmente publicada<br />

como «Elogio lírico <strong>de</strong>l football», enquanto o seu canto a<br />

Gradín tem o título <strong>de</strong> «Polirritmo dinâmico a Gradín,<br />

jugador <strong>de</strong> fútbol». Ambos os trabalhos foram publicados<br />

na Antologia General <strong>de</strong> la Poesia Peruana, <strong>de</strong><br />

Alejandro Romualdo e Sebastián Salazar Bondy (1957).<br />

dante. Só com o olhar intimidava<br />

o atacante. Y a gozar se há dicho señores!<br />

Porque o futebol é antes <strong>de</strong><br />

tudo festa e diversão. Assim o<br />

sentiam os prestidigitadores da<br />

bola, assim o celebravam freneticamente<br />

as bancadas. Uma, duas,<br />

três evasivas, e aí vai a velha,<br />

como no bilhar, <strong>de</strong> um lado ao<br />

outro. E chegam os toques <strong>de</strong><br />

salão, o drible ziguezagueante pela<br />

direita, pela esquerda, o chapéu<br />

presunçoso, o túnel liquidador, o<br />

sonho do tacão, a majestosa chalaça.<br />

Um verda<strong>de</strong>iro trabalho <strong>de</strong><br />

joalharia. Aplausos, senhores, já<br />

aí vem o golo e, se não vem, que<br />

importa! A vista arregalou-se, a<br />

alegria transbordou e o estádio<br />

veio abaixo com a paixão <strong>de</strong>scontrolada<br />

da torcida.<br />

Quem não se <strong>de</strong>leitou com o<br />

trio Sotil-Perico-Cubillas, no<br />

Mundial <strong>de</strong> 70, no encontro com<br />

os seus pares brasileiros? Quem<br />

não recorda esse negrito vaidoso,<br />

Victor «Pitín» Zegarra, que,<br />

perante 40 mil almas, fazia o que<br />

queria com a bola? Ou, só para<br />

citar mais um nome, não nos<br />

inva<strong>de</strong> a nostalgia quando recordamos<br />

um Miguelito Loayza,<br />

borboleta <strong>de</strong> Surquillo, que com<br />

os seus truques e piruetas fez o<br />

que quis com os argentinos, brasileiros<br />

e uruguaios no Sul-Americano<br />

<strong>de</strong> 1959, para <strong>de</strong>pois, já<br />

3 Isabelino Gradín nasceu em Montevi<strong>de</strong>u a 8 <strong>de</strong> Julho<br />

<strong>de</strong> 1897 e faleceu a 21 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1944. Foi um<br />

extraordinário jogador <strong>de</strong> futebol e o atleta mais rápido<br />

da América do Sul. Entre 1915 e 1921, jogou no Peñarol<br />

e, durante a primeira edição da Copa América,<br />

em 1916, na Argentina, foi um dos artífices das vitórias<br />

uruguaias que permitiriam a este país conquistar o título.<br />

Retirado do futebol, chegou a ser campeão<br />

da América do Sul dos 200 e 400 metros planos.<br />

4 Composição musical argentina <strong>de</strong> ritmo vivo e marcado<br />

em compasso <strong>de</strong> dois por quatro, que se parece<br />

com o tango. (N. da T.)<br />

em Lima, dar aos fleumáticos<br />

ingleses o baile das suas vidas?!<br />

Lamentavelmente, esse futebol<br />

praticamente já não existe. O<br />

«turbocapitalismo» dos nossos<br />

dias, que arrasa tudo, está a liquidá-lo.<br />

Os magos, com o seu fraque<br />

e cartola, foram esquecidos no<br />

banco. Aos negociantes da bola só<br />

interessam os resultados e não a<br />

magia, ou a diversão libertária.<br />

Agora procuram-se atletas, velocistas,<br />

sem imaginação nem verso,<br />

mas prontos a tatuarem o corpo e<br />

a encherem as orelhas <strong>de</strong> argolas.<br />

Metrossexuais são apelidados por<br />

uns, galácticos por outros. Quem<br />

sofre é a branca e negra que, <strong>de</strong><br />

pontapé em pontapé, já não ri<br />

nem canta e, quiçá, agora chora à<br />

espera <strong>de</strong> melhores dias.<br />

Mas nem tudo está perdido. Já<br />

o disse Jorge Valdano: o futebol<br />

tem algo <strong>de</strong> erva daninha, porque<br />

sempre sobrevive a tudo. Amantes<br />

do futebol <strong>de</strong> todo o mundo, uni-<br />

-vos! Para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a arte e a paixão<br />

pelo futebol, a sua magia, a sua<br />

beleza, a sua alegria. Que não nos<br />

tirem as ruas, que não nos arrebatem<br />

os <strong>de</strong>scampados, que nos <strong>de</strong>ixem<br />

os terrenos baldios livres,<br />

porque aí, no meio das rosas e dos<br />

cravos, das hortênsias e das flores<br />

<strong>de</strong> açafrão, aí, meus senhores, florescerá<br />

o futebol dos bons.<br />

Punta Piedra,Agosto <strong>de</strong> 2005<br />

5 Dança popular do Chile, do Peru e do Equador. (N. da T.)<br />

6 Nasceu na Hungria em 1898 e morreu em Santiago do Chile<br />

em 1982. Após ser titular indiscutível no Barcelona, em<br />

Espanha, dirigiu a mesma equipa, para <strong>de</strong>pois assumir as<br />

funções <strong>de</strong> treinador nos clubes sul-americanos <strong>de</strong> Colo Colo,<br />

River Plate, Wan<strong>de</strong>rers e Boca Juniors. O jogo que comoveu<br />

Rafael Alberti ocorreu a 20 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1928, on<strong>de</strong> o Barcelona<br />

enfrentou a Real Sociedad para a Taça <strong>de</strong> Espanha.


ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 96<br />

Portugueses nos An<strong>de</strong>s<br />

peruanos ou o mistério<br />

da Boca Mina<br />

<strong>de</strong> Pilipinto<br />

Osvaldo Henrique Urbano<br />

97<br />

A uns 30 quilómetros a oeste da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cuzco,<br />

antiga capital do império incaico, está Pillpinto,<br />

junto às margens do rio Apurimác. É uma povoação<br />

com umas mil e tal almas, sem muito espaço para<br />

alargar as suas estreitas fronteiras, <strong>de</strong>finidas por<br />

altas montanhas e majestosos cumes <strong>de</strong> rocha viva.<br />

As águas do rio abriram aí uma profunda garganta<br />

para <strong>de</strong>slizarem alegremente em direcção à<br />

Amazónia, entre três mil e dois mil e quinhentos<br />

metros <strong>de</strong> altura. O sol é ar<strong>de</strong>nte, e da vegetação<br />

abundante das margens do rio saem milhares<br />

<strong>de</strong> borboletas <strong>de</strong> todas as cores e feitios. Pillpinto<br />

é uma palavra quechúa que significa «borboleta».<br />

An<strong>de</strong>s peruanos. Fotografia <strong>de</strong> João Ventura


ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 98<br />

99<br />

Aí cheguei eu um dia qualquer <strong>de</strong> 1972. Ia por<br />

incas. Fui guiado por um boato. Dizia-se em Cuzco<br />

que os pillpis eram portugueses. E a estranha notícia<br />

estava documentada, não com papéis mas com<br />

abundantes palavras. Por esses anos, a viagem <strong>de</strong><br />

Cuzco a Pillpinto <strong>de</strong>morava oito horas. O autocarro<br />

era pequeno e saía da Praça Limacpampa Gran<strong>de</strong>, às<br />

sete da manhã. Já por alturas da ponte <strong>de</strong> Quiquijana,<br />

subia para as lagoas <strong>de</strong> Pomacanchi para <strong>de</strong>scer<br />

até às paragens <strong>de</strong> Acomayo, as dos moinhos <strong>de</strong> Escalante.<br />

Um salto mais e estávamos em Acos e imediatamente<br />

<strong>de</strong>scia a estrada em ziguezague até às margens<br />

do Apurimác. Lá bem em baixo estavam as<br />

águas que se fingiam paradas e a ponte e as areias<br />

finas das margens e a roupa lavada e a gente.<br />

E a notícia correu em quechúa:<br />

«Chegou o nosso primo <strong>de</strong> Lisboa.»<br />

Apresentei-me ao presi<strong>de</strong>nte da junta <strong>de</strong> freguesia.<br />

«Português?» , «Pois sim...» « Nasceu aqui?» «Não,<br />

em Portugal»... E a notícia correu em quechúa:<br />

«Chegou o nosso primo <strong>de</strong> Lisboa.» O mistério que<br />

ro<strong>de</strong>ava a origem da população não tinha, à primeira<br />

vista, uma solução fácil.A traça era a mais comum<br />

e corrente. A fala era quechúa. E o trato era afável.<br />

Desconfiado mas afável. Do português, nem sombras.<br />

E quanto mais eu cavilava sobre o assunto, em<br />

noite <strong>de</strong> altura <strong>de</strong> frio e geada, com um fundo<br />

musical que vinha das gargantas profundas do Apurimác<br />

– «O senhor falador» –, mais me convencia<br />

que havia aí uma misteriosa coincidência <strong>de</strong> «ditos<br />

e feitos».Vamos aos primeiros.<br />

Se a memória não me atraiçoa, foi no mercado<br />

<strong>de</strong> São Pedro, em Cuzco, que ouvi falar <strong>de</strong> Pillpinto.<br />

Mas já nessa altura me tinham dito que por aí havia<br />

«malta lusa». Depois soube porquê. Era uma velha<br />

tradição ir ao mercado <strong>de</strong> São Pedro comprar folha<br />

<strong>de</strong> coca quando uma arroba não valia gran<strong>de</strong> coisa<br />

– os colombianos ainda não tinham <strong>de</strong>scoberto o<br />

negócio... – e eram precisamente os pillpis que a<br />

comercializavam, ou por dinheiro ou por «troco»,<br />

isto é, por outro produto. E, como era coisa nova<br />

para mim ver comprar e mastigar essa «divina<br />

folha» – a Virgem Maria <strong>de</strong>scansava <strong>de</strong> suas mágoas<br />

trincando a folha <strong>de</strong> coca, diz a lenda –, averiguei<br />

quem a vendia e, como toda a gente faz, comprei<br />

meio quilo para aquecer as frias noites cusquenhas.<br />

Remédio santo!<br />

Feitas as primeiras averiguações, contaram-me<br />

os próprios fregueses que era uma antiga tradição<br />

dos pillpis negociar produtos na região, cobrindo<br />

longas rotas altiplânicas e <strong>de</strong>scendo até às terras<br />

quentes <strong>de</strong> Urubamba e Quilhabamba, on<strong>de</strong> se<br />

abasteciam <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> coca e a transportavam para<br />

os mercados <strong>de</strong> Cuzco e arredores.Tudo isso se fazia<br />

com mulas, com numerosas récuas e dilatados dias<br />

<strong>de</strong> trabalho. Para os vales cálidos levavam carne seca<br />

– o famoso charqui – e aí trocavam a carne por<br />

coca. Eram meses <strong>de</strong> caminhar sem <strong>de</strong>scanso, até<br />

que os trabalhos agrícolas e a festa patronal exigiam<br />

a presença dos caminhantes na al<strong>de</strong>ia. Julho e Agosto<br />

eram obrigatórios. 15 <strong>de</strong> Agosto era a festa da<br />

Nossa Senhora da Assunção. Procissões, missas, baptizados,<br />

matrimónios e muita cerveja e abundante<br />

chicha, a bebida <strong>de</strong> milho fermentado. Com tudo<br />

isso não avançava muito na pesquisa dos rasgos<br />

lusos <strong>de</strong> Pillpinto. A paisagem humana da povoação<br />

mudou com os festejos. Mas o mistério da sua origem<br />

continuava imutável.<br />

O assunto moía-me a cabeça. E <strong>de</strong>cidi entrar<br />

em zonas <strong>de</strong> alfarrábios para <strong>de</strong>svendar o que a<br />

palavra popular escondia. O Arquivo Departamental<br />

<strong>de</strong> Cuzco guardava papéis sobre Pillpinto: transacções<br />

comerciais, proprieda<strong>de</strong>s e umas quantas rixas<br />

legais.Também <strong>de</strong>scobri que a povoação tinha participado<br />

activamente nas revoltas <strong>de</strong> Túpac Amaru,<br />

apoiando os rebel<strong>de</strong>s contra o regime espanhol.<br />

Vencidos os indígenas, executado o chefe, as autorida<strong>de</strong>s<br />

espanholas enviaram a Pillpinto um braço do<br />

infeliz caudilho para que todos soubessem como se<br />

castigam as massas revoltosas. Não foi por serem<br />

portugueses. Os motivos eram outros, e as raízes<br />

<strong>de</strong>les vinham talvez da vizinhança <strong>de</strong> Acos on<strong>de</strong><br />

pontificava a cacique Micaela Bastidas, companheira<br />

<strong>de</strong> infortúnio <strong>de</strong> Túpac Amaru.


Sem saber on<strong>de</strong> encontrar a chave do mistério<br />

das origens <strong>de</strong> Pillpinto, a paciência e a vida bucólica<br />

iriam, pouco a pouco, dar conta dos «ditos» e<br />

passar aos «feitos». E, como acontece em muitos<br />

casos, o azar acabou por <strong>de</strong>sempenhar um papel<br />

importante. Passava eu as horas a recolher notas<br />

sobre usos e costumes <strong>de</strong> Pillpinto, indagando sobre<br />

os lugares e nomes que os <strong>de</strong>signavam, com a i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> que as pedras e caminhos escondiam feitos que<br />

os olhos esqueceram. E nessas tar<strong>de</strong>s perdidas <strong>de</strong><br />

Primavera mediterrânica, em direcção do caminho<br />

que ia para o santuário do Senhor <strong>de</strong> Pampacucho,<br />

na antiga estrada ou carreiro <strong>de</strong> pedras que ligava<br />

Pillpinto a Rondocan e Paruro, <strong>de</strong>tectei uma caverna<br />

cuja abertura tinha jeitos <strong>de</strong> ter funcionado como<br />

boca mina. A palavra popular confirmou-me essa<br />

hipótese. Umas historiazinhas relacionadas com<br />

esse lugar contavam que a mina escondia lobisomens<br />

e outras nefastas espécies <strong>de</strong> personagens nocturnos.Tomei-as<br />

a sério.<br />

Os argumentos po<strong>de</strong>m resumir-se em umas<br />

quantas frases. Primo: os fantasmas que povoavam as<br />

mentes dos pillpis – lobisomens ou duen<strong>de</strong>s – pertencem<br />

a uma raça imaginária que atormenta os<br />

povos obcecados com a chegada <strong>de</strong> pestes, fomes e<br />

<strong>de</strong>sgraças. E, claro, alguém tem <strong>de</strong> pagar por isso.<br />

Ora, precisamente houve certos grupos <strong>de</strong> excluídos<br />

pela socieda<strong>de</strong> cristã que serviram <strong>de</strong> bo<strong>de</strong><br />

expiatório, entre eles os ju<strong>de</strong>us. Secundo: nos An<strong>de</strong>s e<br />

em zonas afastadas dos centros urbanos, houve<br />

uma gran<strong>de</strong> febre mineira que teve como protagonistas<br />

algumas figuras portuguesas que assinalaram<br />

com notável ousadia a busca da prata e o tratamento<br />

<strong>de</strong>la com mercúrio. E os ju<strong>de</strong>us portugueses<br />

estavam bem metidos nesse negócio peruano e<br />

andino. Tertio: e, vai daí, as povoações que num<br />

dado momento intentaram a sorte escavando as<br />

entranhas da serrania assumiam a crença popular<br />

que as i<strong>de</strong>ntificavam como portuguesas. «Mina»,<br />

«mineiro», «prata», «banqueiro» eram palavras<br />

que os séculos XVI e XVII associavam no Peru a<br />

«português». E os ju<strong>de</strong>us ou judaizantes pagaram<br />

caro por isso. Muitos foram parar aos calabouços da<br />

Inquisição e <strong>de</strong>pois à fogueira ritual. E <strong>de</strong> tudo isso<br />

dá ainda conta a palavra popular em forma <strong>de</strong><br />

mistério.<br />

«Mina», «mineiro»,<br />

«prata», «banqueiro»<br />

eram palavras<br />

que os séculos XVI e XVII<br />

associavam no Peru<br />

a «português».<br />

Quechúas. Fotografia <strong>de</strong> João Ventura.<br />

Dizia-se em Cuzco<br />

que os pillpis<br />

eram portugueses.


O QUE FAÇO EU AQUI 100 101<br />

Magical Realism – 101<br />

Onésimo Teotónio <strong>de</strong> Almeida


Em português eu <strong>de</strong>veria escrever «Introdução<br />

ao Realismo Mágico», ou «Realismo Mágico<br />

– I», mais ajustado aos hábitos universitários<br />

lusitanos, mas a verda<strong>de</strong> é que todos estes anos <strong>de</strong><br />

América acabam por cobrar o seu imposto no meu<br />

linguajar. E <strong>de</strong> facto é por estas terras <strong>de</strong> Colombo<br />

que amiú<strong>de</strong> <strong>de</strong> mais tenho encontrado <strong>de</strong>scrições<br />

<strong>de</strong> cursos sobre a tal indústria cunhada no título<br />

<strong>de</strong>sta narrativa, anunciando análises em ladainha<br />

laudatória dos seus pergaminhos inovadores na<br />

literatura com imaginative flights of fancy, o conceito<br />

mítico <strong>de</strong> tempo, a visão animista e vitalista, a simbiose<br />

natural-sobrenatural imano-transcen<strong>de</strong>nte, a<br />

osmose humano-telúrica, o hiperbólico e o<br />

monumental. Como se isso não bastasse, ainda há<br />

a flui<strong>de</strong>z ontológica, o méta-récit, a técnica <strong>de</strong> evasão<br />

semântica e a reticência autoral, a convenção<br />

trans<strong>cultura</strong>da, noções místicas <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> e<br />

essa lengalenga toda a evocar em mim um poeta<br />

guatemalteco hoje <strong>de</strong> nome morto na minha<br />

memória mas que nos meus anos juvenis, via<br />

Livraria Morais, no Largo do Pica<strong>de</strong>iro, 11, em Lisboa,<br />

atravessou o mar e me foi ter às ilhas, um engagé<br />

que bordoava nos intelectuais alienados, a alturas<br />

tantas <strong>de</strong>sancando em verso nos filósofos con su<br />

ontológica manera <strong>de</strong> llegar a las monedas. Estou a ser cruel,<br />

pe<strong>de</strong>stre mesmo, como se a <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar o real<br />

maravilhoso <strong>de</strong> Carpentier, a esquizofrenia <strong>cultura</strong>l<br />

em Miguel Ángel Asturias, o jogo mágico com<br />

o impossível <strong>de</strong> tantos outros autores, para não<br />

falar da etnografia imaginária do omnipresente<br />

García Márquez, en<strong>de</strong>usado esse em coro universal<br />

por o elemento fantástico na sua obra não ser nem<br />

obtrusive nem gratuitous, mas enriching, supporting and<br />

enhancing da narrativa. Em Macondo, um cadáver<br />

incorrupto, o padre que levita, a jovem que sobe<br />

ao céu, o bebé que nasce com cola <strong>de</strong> cerdo, que a<br />

gente diria rabo <strong>de</strong> porco, alfombras que voam,<br />

mortos que ressuscitam, e até chuvas <strong>de</strong> flores,<br />

mexeram com o mundo inteiro nos meus vinte e<br />

tantos anos, mas buliram pouco com a minha<br />

obtusa cabeça <strong>de</strong> basalto. A verda<strong>de</strong> é que nasci<br />

empírico e gostei cedo da repetida frase <strong>de</strong> um<br />

professor <strong>de</strong> música (sim, por incrível que pareça<br />

aprendi, ou melhor, tentaram ensinar-me): As couves<br />

nascem do chão! Nunca fui dado a arroubos teóricos<br />

e interesso-me sobretudo por coisas visíveis e<br />

palpáveis, como o aluno <strong>de</strong> medicina que só gostava<br />

<strong>de</strong> estudar anatomia pelo método <strong>de</strong> Braille.<br />

Quando viajei por Hegel, num curso por acaso<br />

optativo, <strong>de</strong>liciei-me interiormente no instante<br />

em que o Andy, conhecedor do <strong>de</strong>sdém que o filó-<br />

sofo nutria pelos factos (a ponto <strong>de</strong> um dia, confrontado<br />

com um naco <strong>de</strong>les, ter dito arrogantemente<br />

Não me importam os factos!), não se conteve a<br />

meio <strong>de</strong> uma prelecção do professor lançado estratosfera<br />

fora em <strong>de</strong>vaneio <strong>de</strong>lirante e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

esperado ansiosamente por um parágrafo, pois nas<br />

aulas nos States fica muito mal interromper-se<br />

alguém, professor ou aluno, tanto faz, <strong>de</strong>sferiu:<br />

Faça, por favor, um intervalinho para eu estragar essas teorias<br />

com um simples punhado <strong>de</strong> factos.<br />

Quando a gente é como a terra <strong>de</strong>u, nada a<br />

fazer. Por isso me <strong>de</strong>sculpe o leitor este arrazoado<br />

rasteiro que em nada belisca a honra, fama e glória<br />

<strong>de</strong> escritores que, felizmente para a humanida<strong>de</strong>,<br />

nasceram <strong>de</strong> outra estirpe e são por isso capazes<br />

<strong>de</strong> rasgos que transportam os seus leitores para<br />

fora <strong>de</strong>ste mundo mesquinho, chato e patusco<br />

on<strong>de</strong> só acontecem coisas previsíveis como a<br />

morte, as doenças, o casamento, a febre e a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> limpar o quarto. Ah! E os impostos,<br />

como nos lembraria Woody Allen. Se estava o amável<br />

leitor indignado comigo, fique sabendo que<br />

não procuro impor o meu gosto, naturalmente ou<br />

pela natura carimbado, largando-me por aí fora a<br />

aferir tudo o mais por ele. O acima dito teve apenas<br />

a intenção não consciente, e por sinal oriunda<br />

mesmo do quase-acaso, <strong>de</strong> lhe expressar sentimentos<br />

antigos como quem se confessa a um<br />

amigo que espero o leitor seja.<br />

A que vem então este maçudo e inoportuno<br />

prefácio?<br />

Estou a ser cruel, pe<strong>de</strong>stre<br />

mesmo, como se a <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar<br />

o real maravilhoso <strong>de</strong> Carpentier,<br />

a esquizofrenia <strong>cultura</strong>l em Miguel<br />

Ángel Asturias, o jogo mágico<br />

com o impossível <strong>de</strong> tantos outros<br />

autores, para não falar da<br />

etnografia imaginária do<br />

omnipresente García Márquez.


O QUE FAÇO EU AQUI 102<br />

103<br />

Foi com efeito um quase-acaso<br />

a levar-me à Colômbia,<br />

mais precisamente a uma<br />

cida<strong>de</strong>zinha dona do mais<br />

bonito nome <strong>de</strong> lugar –<br />

Cartagena <strong>de</strong> Indias – se for<br />

pronunciado <strong>de</strong>vidamente na<br />

língua e sotaque das nativas.<br />

Já lá vou, sim, que é tempo. Falei em «quaseacaso»<br />

e foi com efeito um quase-acaso a levar-me<br />

à Colômbia, mais precisamente a uma cida<strong>de</strong>zinha<br />

dona do mais bonito nome <strong>de</strong> lugar – Cartagena<br />

<strong>de</strong> Indias –, se for pronunciado <strong>de</strong>vidamente na<br />

língua e sotaque das nativas (bom, Madalena do<br />

Mar não lhe fica atrás, mas aqui para a estória <strong>de</strong>ixemos<br />

que fique). Estava <strong>de</strong>crépita a cida<strong>de</strong> naqueles<br />

anos, como uma mulher que após a sua ida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ouro <strong>de</strong>soladamente passou a <strong>de</strong>scuidar a apresentação<br />

e se habituou mesmo a nem sequer se<br />

pentear. Um banhinho pela Páscoa da Ressurreição<br />

era tudo. As fachadas da arquitectura davam testemunho<br />

<strong>de</strong> anos áureos mas longínquos. Todavia,<br />

mesmo naquele abandono ainda se podia imaginar<br />

assomando às varandas súbditos <strong>de</strong> sua majesta<strong>de</strong><br />

imperial D. Filipe, o Gran<strong>de</strong>, que ali mandou<br />

construir um castelo bem mais imponente do que<br />

o também por sua or<strong>de</strong>m erguido em Angra, esse<br />

palmilhado por mim em antigos anos.<br />

Igualmente por quase acaso, soube ficar Aracataca,<br />

terra natal <strong>de</strong> García Márquez, para lá <strong>de</strong><br />

Barranquilla, esta por sua vez a não exagerados<br />

quilómetros <strong>de</strong> Cartagena. E isso ajudava, aliás, a<br />

cimentar as minhas convicções sobre o irrealismo<br />

do realismo mágico porque, se Macondo não existe<br />

mais, como nos informa o final <strong>de</strong> Cien Años <strong>de</strong><br />

Soledad, e a sua gente não teve outra oportunida<strong>de</strong><br />

sobre a terra, Cartagena <strong>de</strong> Indias, por sua vez, exibia<br />

uma sólida realida<strong>de</strong> que tinha mais a ver com<br />

Lisboa e o Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> antanho do que com<br />

as invenções da tremenda broma literaria <strong>de</strong> García Már-<br />

quez. O terceiro e último quase-acaso aconteceu<br />

dias antes <strong>de</strong> viajar para Cartagena com a chegada<br />

do então mais recente livro do gran<strong>de</strong> Gabi, Crónica<br />

<strong>de</strong> una Muerte Anunciada, remetida por um livreiro<br />

amigo em viagem pela América Latina, entusiasmado<br />

com a edição <strong>de</strong> 800 000 exemplares largamente<br />

publicitada no seu lançamento. Decidi por<br />

isso levá-lo comigo para companheiro <strong>de</strong> praia e<br />

estendi-me, à letra, a lê-lo na areia por trás do<br />

Hotel Las Velas. A verda<strong>de</strong> é que a leitura foi um<br />

acto mecânico quase, porque anunciada estava na<br />

minha mente a ausência <strong>de</strong> entusiasmo por ela. Se<br />

calhar um círculo vicioso, mas dos meus preconceitos<br />

e <strong>de</strong>feitos pré-avisei o leitor.Três quase-acasos,<br />

portanto, trinda<strong>de</strong> nada <strong>de</strong>spicienda mesmo<br />

para quem como eu não é supersticioso.<br />

A Joanne aceitou <strong>de</strong> bom grado a sugestão <strong>de</strong><br />

irmos a Barranquilla e, <strong>de</strong> lá, a Aracataca. O problema<br />

era o transporte. Comigo ficava a incumbência<br />

<strong>de</strong> discernir uma solução através <strong>de</strong> contactos com<br />

os locais. Veio auspiciosa: um taxista levar-nos-ia à<br />

cida<strong>de</strong> por um preço bem módico e trar-nos-ia <strong>de</strong><br />

volta pelo anoitecer. Foi portanto assim, segundo o<br />

plano anunciado <strong>de</strong> véspera, que começou no dia<br />

seguinte o que venho contar neste relato.<br />

Não caí na patetice <strong>de</strong> falar ao taxista em realismo<br />

mágico. Que mais não fosse, por uma razão<br />

vital: ele entendia com lapsos graves o meu portunhol<br />

silabado e eu quase apenas lhe lia os gestos<br />

das mãos. Com o rodar do carro e dos minutos, foi<br />

aumentando o número <strong>de</strong> sons e palavras <strong>de</strong>cifráveis,<br />

mas nunca cheguei muito longe nesse trabalho<br />

insano. De qualquer modo, a meia hora <strong>de</strong> viagem<br />

ele conseguiu transmitir-nos um plano muito<br />

superior ao <strong>de</strong> Barranquilla on<strong>de</strong>, segundo ele (e<br />

os taxistas sabem sempre tudo), não havia nada<br />

melhor do que Cartagena – esa sí, una bella ciudad! – e<br />

on<strong>de</strong> nem sequer se <strong>de</strong>svendam quaisquer rastos<br />

<strong>de</strong> García Márquez. Prometia levar-nos ao início <strong>de</strong><br />

uma floresta tão fascinante como a Amazónia – no<br />

mínimo!, garantia-nos – mas se calhar mesmo<br />

melhor. Desviou o curso, meteu-se por estradas<br />

ainda mais esburacadas e, a dada altura, parou o<br />

carro, inspeccionou as redon<strong>de</strong>zas e, ao regressar,<br />

enrolou um amontoado <strong>de</strong> frases aparentemente<br />

explicando que a estrada se lhe <strong>de</strong>parara inesperadamente<br />

intransitável, mas não valia a pena <strong>de</strong>sistir<br />

do projecto se não nos importássemos <strong>de</strong> ir<br />

pela praia. Eu ainda barafustei que o Amazonas em<br />

nada se parecia com o mar Caribe e que o seu prometido<br />

sósia não po<strong>de</strong>ria ficar naquela direcção. A<br />

verda<strong>de</strong> é que, sem mapa, não tinha argumentos,


tanto mais que não sabia on<strong>de</strong> estava, condição sine<br />

qua non para, se tivesse mapa, discernir para que<br />

banda virá-lo.Assim, fiquei ali mais a Joanne totalmente<br />

à mercê do nosso taxista. Que não mentiu,<br />

pois <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> algum tempo <strong>de</strong>saguava no areal<br />

imenso <strong>de</strong> uma praia a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista. ¡Mira, señor,<br />

mucho mejor, mucho mejor! Sim, o piso não tinha buracos<br />

e nem sequer havia tráfego. Tínhamos aquela<br />

pista enorme toda por nossa conta, o que, retrospectivamente<br />

falando, dá para pensar em coisas<br />

ruins que na altura não nos ocorreram. De Amazónia<br />

ou algo semelhante, todavia, nicles.<br />

O homem não parava <strong>de</strong> elogiar o piso do<br />

areal duro e liso a ponto <strong>de</strong> lhe permitir acelerar.<br />

Depois <strong>de</strong> uns avantajados quilómetros virou para<br />

a esquerda e meteu <strong>de</strong> novo terra <strong>de</strong>ntro por mais<br />

atalhos e curvas, canadas a a<strong>de</strong>nsarem-se e a<br />

<strong>de</strong>sembocarem em espesso mato ver<strong>de</strong>.A Joanne e<br />

eu entreolhámo-nos. O taxista era franzino e exalava<br />

uma bonomia inassociável à personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cultivador <strong>de</strong> artes marciais. Fisicamente não constituía<br />

ameaça. Além disso, ele sabia que o dinheiro<br />

que levávamos era quase só o estritamente necessário<br />

para lhe pagarmos a viagem. Um assalto não<br />

lhe obteria qualquer mais-valia <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar.<br />

Um solavanco e o carro estancou. Bonito serviço!<br />

– pensei. Mas nem tive tempo <strong>de</strong> dizer nada<br />

porque o condutor exibia-nos um sorriso eufórico:<br />

¡Llegamos! E eu <strong>de</strong> novo a pensar: Aon<strong>de</strong>?<br />

Um moço negro, estátua grega em versão africana,<br />

veio abrir-nos a porta. Alto, proporcionado,<br />

musculoso, não sorria. Conversou com o taxista e<br />

<strong>de</strong>u para <strong>de</strong>cifrar que combinavam uma hora para<br />

este último nos vir buscar. Agora tínhamos <strong>de</strong><br />

seguir a pé o nosso guia umas centenas <strong>de</strong> metros,<br />

por supostamente ser impossível o carro continuar.<br />

Lá fomos então os dois, sem comunicar um<br />

ao outro a apreensão que começava a assaltar-nos.<br />

Estupi<strong>de</strong>z ingénua <strong>de</strong> turistas parvinhos, ou<br />

receios irrealistas <strong>de</strong> americanizados medrosos das<br />

<strong>cultura</strong>s estranhas? O melhor era silenciar as dúvidas<br />

e abafar os medos.<br />

A verda<strong>de</strong> é que, não galgado ainda um quilómetro<br />

<strong>de</strong> atalho mal calcorreado entre intenso<br />

arvoredo com abertas ao alto aqui e ali, arribámos<br />

a uma corrente <strong>de</strong> água, meio estagnada e salpicada<br />

<strong>de</strong> folhas e raízes, diga-se porém que <strong>de</strong> um<br />

ver<strong>de</strong> límpido. Uma aberta <strong>de</strong> céu soalheiro mas<br />

filtrado pela grelha <strong>de</strong> neblina cinzenta. O rapaz<br />

mandou-nos saltar. Para on<strong>de</strong>? Estava ali um barco e<br />

eu não via. Eu disse um barco? Nada! Uma canoa.<br />

Cavada num tronco negro com espaço para o guia,<br />

em pé, a Joanne sentada no meio a fazer lastro e eu<br />

atrás, <strong>de</strong> plantão também, num tem-te-não-caias.<br />

Iniciámos uma viagem entra canal sai canal, penetrando<br />

mais e mais a floresta, por vezes a ter<br />

mesmo <strong>de</strong> me baixar para não bater com a cabeça<br />

ou até o peito contra grossos ramos atravessados<br />

que o nosso condutor evitava com naturalida<strong>de</strong><br />

congénita e a mim quase me colhiam <strong>de</strong> surpresa,<br />

em risco sério <strong>de</strong> me fazerem cair e – quem sabe?<br />

– servir <strong>de</strong> almoço a algum crocodilo.<br />

A serenida<strong>de</strong> da água e do ar era apenas perturbada<br />

pelo ritmo da vara à procura do fundo do<br />

canal para impulsionar o avanço da embarcação<br />

que aquele gondoleiro trasladado fazia <strong>de</strong>slizar.<br />

Tudo o mais era ruído suave <strong>de</strong> folhagem, gorjeios<br />

<strong>de</strong> aves sem nome, saltos inesperados <strong>de</strong> sapos ou<br />

familiares seus, patos bravos <strong>de</strong> repente em <strong>de</strong>bandada,<br />

bandos <strong>de</strong> pássaros esvoaçando em espessas<br />

nuvens, aves, peixes, árvores, fauna e flora anónimos<br />

para mim, irreconhecíveis no meu catálogo<br />

ilhéu feito vulgar <strong>de</strong> Lineu on<strong>de</strong> nada existia <strong>de</strong><br />

tropical figura. Tudo uma sucessão <strong>de</strong> telas, cores,<br />

arvoredo sem etiqueta numa espécie <strong>de</strong> documentário<br />

da National Geographic em versão muda.<br />

O guia não explicava nicles, nem falava sequer.<br />

Nada tinha ali nome, apenas imagem. Eram aves e<br />

peixes, árvores como na narrativa do Génesis nos<br />

dias da criação. Ele ia concentrado lá na proa e<br />

nem sei se se preocupava se ainda estávamos a<br />

bordo ou se caíramos à água. Talvez a sua atenção<br />

se concentrasse a vigiar jacarés ou, sei lá, parentes<br />

Igualmente por quase acaso<br />

soube ficar Aracataca,<br />

terra natal <strong>de</strong> García<br />

Márquez, para lá<br />

<strong>de</strong> Barranquilla, esta por<br />

sua vez a não exagerados<br />

quilómetros <strong>de</strong> Cartagena.


O QUE FAÇO EU AQUI 104<br />

105<br />

Prometia levar-nos<br />

ao início <strong>de</strong> uma floresta<br />

tão fascinante como<br />

a Amazónia – no mínimo!,<br />

garantia-nos – mas se calhar<br />

mesmo melhor.<br />

<strong>de</strong> hipopótamos para se precaver a si e aos anónimos<br />

passageiros à sua responsabilida<strong>de</strong>. Múmia<br />

egípcia, espécie <strong>de</strong> um livremente-con<strong>de</strong>nado-à-<br />

-canoa a fazê-la vogar, em ritmo compassado, num<br />

intrigante e misterioso silêncio.<br />

Juro que cheguei a avistar ao longe cabeças<br />

bem <strong>de</strong>finidas <strong>de</strong> bichos semelhantes a hipopótamos,<br />

que <strong>de</strong>pois, numa espécie da síndroma <strong>de</strong><br />

Sancho Panza, sempre se transmutavam, como se<br />

fossem <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> Escher, em troncos <strong>de</strong> árvore<br />

ou pedregulhos que o timoneiro contornava com<br />

perícia. O matagal ver<strong>de</strong> a<strong>de</strong>nsava-se, um túnel por<br />

vezes escuro avivava os ruídos <strong>de</strong> viventes nas<br />

águas mais e mais impenetráveis à luz, e eu suspeitava<br />

<strong>de</strong> espíritos do outro mundo a escon<strong>de</strong>rem-se<br />

naqueles entrelaçados ramos e raízes, troncos<br />

e folhedo, e passeando-se certamente durante<br />

as noites. O certo é que abundavam por ali borboletas<br />

semelhantes às feiticeiras dos meus Açores,<br />

esvoaçando sobre nós e salpicando <strong>de</strong> furtivas<br />

cores as margens dos canais.<br />

De súbito, o guia volta-se e diz que temos <strong>de</strong><br />

saltar. Pensei, mas não me autorizei o pensamento<br />

e por isso não o revelo. Apenas obe<strong>de</strong>ci, mais a<br />

Joanne, enquanto ele agarrava da canoa para a pôr<br />

às costas e <strong>de</strong>pois, à Hércules, com os dois braços<br />

soerguê-la à altura da cabeça. Subiu um penedo e<br />

<strong>de</strong>sceu <strong>de</strong> novo para o canal que, ao final <strong>de</strong> contas,<br />

continuava mais adiante, chamando-nos para<br />

embarcar <strong>de</strong> novo e prosseguir viagem.<br />

O guia quase-mudo falou então: No tienen hambre?<br />

Pensei nos milagres que iria ele fazer. Agarrar<br />

<strong>de</strong> um peixe e oferecê-lo cru, cortar raízes e, <strong>de</strong><br />

mistura com folhas, presentear-nos com uma salada?<br />

Mas o seu plano era outro.A mãe tinha um restaurante<br />

e po<strong>de</strong>ríamos lá ir comer por uma magra<br />

quantia. Novo assentimento da parte dos seus<br />

pouco exigentes passageiros. Dali a um naco <strong>de</strong><br />

tempo <strong>de</strong>saguávamos num areal imenso, com o<br />

mar longe, como longe estava eu <strong>de</strong> saber se aquela<br />

tinha sido a nossa auto-estrada <strong>de</strong> horas antes.<br />

O cenário acinzentara-se. Não chovia, mas abundavam<br />

sinais <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>sabado muita água dos céus.<br />

Não diria que chovera durante quatro anos e seis<br />

meses, como em Macondo, mas o céu era na verda<strong>de</strong><br />

una substancia gelatinosa y gris e no ar pairava una<br />

humedad caliente y pastosa. Na distância da orla havia<br />

sinais <strong>de</strong> barcos e, nas bandas para on<strong>de</strong> nos encaminhava<br />

o moço, leves sinais <strong>de</strong> habitações que, à<br />

medida que nos aproximávamos, se revelavam<br />

simples caramanchões urdidos <strong>de</strong> troncos e<br />

ramos. De <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses emergiu uma<br />

negra corpulenta, fresca e saudável com quem o<br />

guia trocou conversa – <strong>de</strong>duzimos que seria a mãe<br />

– antes <strong>de</strong> se encaminhar na direcção <strong>de</strong> um dos<br />

barcos. A mulher sem nome (Úrsula? Não sei;<br />

tudo prossegue, aliás, sem nome nesta estória,<br />

nesse mundo on<strong>de</strong> havíamos aos poucos entrado<br />

muchas cosas carecían <strong>de</strong> nombre y para mencionarlas había que<br />

señalarlas con el <strong>de</strong>do) chamou precisamente com o<br />

<strong>de</strong>do um garotito, negro também, que num ápice<br />

produziu dois caixotes usados, em obediência ao<br />

sinal <strong>de</strong> Úrsula, para nos sentarmos junto a tosca<br />

mesa <strong>de</strong> canas amarradas sobre um grosso tronco,<br />

enquanto ela ia <strong>de</strong>ntro e regressava com um facalhão<br />

luzidio e um molho <strong>de</strong> tubérculos e outros<br />

vegetais que mergulhou e retirou no mesmo instante<br />

num tanque <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíram a pingar. Ficámos<br />

ali a observar a laboriosida<strong>de</strong> daquela mulher<br />

activa,a menudo severa naquele paraíso <strong>de</strong> humedad y silencio<br />

anterior al pecado original, espacio <strong>de</strong> soledad y <strong>de</strong> olvido. Ela<br />

<strong>de</strong>scascou, <strong>de</strong>cepou, truncou com energia e foi<br />

enchendo dois pratos, mas logo <strong>de</strong>sapareceu e <strong>de</strong><br />

novo voltou com uma vassoura e começou barriendo<br />

la casa, voltou a sumir-se y volvió a hundirse en el trabajo,<br />

<strong>de</strong>sculpe, leitor, lá me distraía <strong>de</strong> novo pois<br />

não sei quem me traz este castelhanar ao ecrã.<br />

Interroguei-me, sempre sem dizer nada à Joanne,<br />

que me censurava qualquer reparo etnocêntrico,<br />

europeu ou americano, será que este é el único rincón<br />

<strong>de</strong> seguridad establecido por los pacíficos negros antillanos que<br />

construyeron una calle marginal (sim, calle era mesmo<br />

aquela praia, se eu até viajara nela <strong>de</strong> táxi) e que<br />

falavam un farrogoso papiamento? Em papiamento parecia


comunicar o filho, nosso guia (José Arcadio?), que<br />

voltava com um garoto, carregando dois enormes<br />

peixes que entregou à mãe, logo por sua vez lançada<br />

na azáfama <strong>de</strong> os governar e trucidar, acen<strong>de</strong>r<br />

uma fogueira num canto e colocá-los numa grelha.<br />

Eis senão quando o grunhir <strong>de</strong> porcos nos fez<br />

voltar as cabeças e vimos entrarem no nosso espaço<br />

(recinto não era, dada a ausência <strong>de</strong> divisões),<br />

cauda a abanar, encaminhando-se direitinhos para<br />

os restos <strong>de</strong> tubérculos que Úrsula-talvez cortara.<br />

José Arcadio (ou seria José Gabriel, o único que<br />

ficou em Macondo?) <strong>de</strong>u or<strong>de</strong>ns a uma jovem que<br />

passara ao lado, e daba instrucciones para la siembra y consejos<br />

para la crianza <strong>de</strong> niños y animales – <strong>de</strong>sculpe mais<br />

uma vez, benévolo leitor, estes <strong>de</strong>scontrolados tropeços<br />

nas páginas <strong>de</strong> Cien Años <strong>de</strong> Soledad, queria eu<br />

dizer, importunos para a boa marcha da narrativa<br />

<strong>de</strong>sse almoço frugal e bucólico.<br />

Mãe Úrsula produziu diante <strong>de</strong> nós dois<br />

colossais pratos <strong>de</strong> vegetais, sobretudo tubérculos,<br />

<strong>de</strong> que consegui distinguir uma espécie <strong>de</strong> pepino,<br />

coco com arroz e frijoles. No centro <strong>de</strong> cada, um<br />

garboso peixe (mojarra? sábalo?) barrado <strong>de</strong> apetite.<br />

O meu, <strong>de</strong> olhos fixos em mim e a querer falar<br />

papiamento também, os porcos já ao nosso lado<br />

rondando a mesa à espera das espinhas e eu a servir-lhes<br />

<strong>de</strong> bom grado a cabeça e o rabo, e o porco<br />

maior a dar à cauda feliz, bem educado, quase a<br />

pedir licença ou a <strong>de</strong>sculpar-se <strong>de</strong> qualquer gesto<br />

mais <strong>de</strong>satinado, a salivar os beiços como se a<br />

limpá-los antes da refeição, e a Úrsula-talvez com<br />

uma enorme familiarida<strong>de</strong> abrindo caminho entre<br />

aquela vara para nos vir perguntar se <strong>de</strong>sejávamos<br />

mais alguma coisa; ¡No, muchas gracias! e ela <strong>de</strong> volta<br />

a fazer carícias ao porco maior e eu, sem querer,<br />

juro que sem querer, olhei para o garoto a ver se<br />

tinha cola <strong>de</strong> cerdo, mas também confesso que nada<br />

vislumbrei. Mãe Úrsula sempre num vaivém azafamado<br />

e eu a querer meter conversa, que Macondo<br />

parecia un pueblo feliz e ela que en Macondo no ha pasado<br />

nada, ni está pasando nada ni pasará nunca e lengalengou<br />

coisas que não entendi bem mas que traduzi mais<br />

ou menos por hay mucho que cocinar, mucho que barrer,<br />

mucho que sufrir por pequeñeces. Lá me distraí <strong>de</strong> novo,<br />

meu querido leitor, e compreen<strong>de</strong>rei se <strong>de</strong> fúria<br />

não mais me perdoar ainda esta falha, mas juro<br />

que não voltará a acontecer nova mezcla <strong>de</strong> castelhano<br />

na nossa puríssima língua que comungamos.<br />

O resto foi assim, tudo naquele mistério <strong>de</strong><br />

lugar, <strong>de</strong> gente, sem nome e sem nada, apenas com<br />

uma gran<strong>de</strong> paz para os olhos e para as almas dos<br />

viajantes que nós éramos naquele outro mundo.<br />

Só <strong>de</strong>pois, já em casa, a minha curiosida<strong>de</strong> botânica<br />

foi suspeitar nomes colados a figuras e palpitou<br />

termos provavelmente comido patacones,yuca,berenjena<br />

e talvez rábano, mas não juro nem por nada <strong>de</strong>ste<br />

mundo ter acertado num sequer <strong>de</strong>sses vegetais<br />

tornados iguarias.<br />

Chegou o momento da torna (não houve<br />

pagamento, eram contas com o filho), a entrega<br />

certinha <strong>de</strong>ste vosso criado e narrador mais a Joanne<br />

no final da tar<strong>de</strong> ao taxista, que nos esperava <strong>de</strong><br />

regresso daquele além ignoto, tendo agora com<br />

uma preocupação no rosto explicado assim: a<br />

maré estava cheia e ia ser complicado regressar<br />

pela praia, no entanto tinha <strong>de</strong> ser por não existir<br />

melhor alternativa. Lá entrámos no carro-anfíbio<br />

para seguirmos em avanços e recuos, esperando o<br />

retrocesso das ondas para <strong>de</strong> novo avançar uns<br />

metros mais, e sempre nesse pára-avança-pára-<br />

-avança a fazer-me duvidar se os buracos da estrada<br />

estariam assim tão medonhos a ponto <strong>de</strong> tornarem<br />

mais seguro viajar num quase submarino. Uma<br />

onda maior <strong>de</strong>u um safanão no carro e sentimos o<br />

fresco da água nas pernas e o sorver da onda sugadora<br />

a querer arrastar-nos consigo.<br />

Era noite quando chegámos a Cartagena e, à<br />

entrada do hotel, enquanto pagávamos ao nosso<br />

taxista arquitecto <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>svio não anunciado <strong>de</strong><br />

Barranquila para Macondo, eu ia já contando tudo<br />

a um casal americano que conhecêramos dias<br />

antes mas não se atrevera a juntar-se-nos naquela<br />

Eram aves e peixes,<br />

árvores como na narrativa<br />

do Génesis<br />

nos dias da criação.


O QUE FAÇO EU AQUI 106<br />

107<br />

En Macondo<br />

no ha pasado nada,<br />

ni está pasando nada<br />

ni pasará nunca.<br />

aventura pelo incógnito. Suspeitei então logo ali<br />

que estariam a <strong>de</strong>screr do que nos acontecera porque<br />

vi, sobretudo nele, o Jack, sinais <strong>de</strong> cepticismo.<br />

Mas aceitou escutar o relato narrado com<br />

minúcia, embevecimento e élan. Foi a Joanne quem<br />

lhe ouviu em aparte comentar cepticamente para a<br />

companheira nunca ter ido nisso <strong>de</strong> literatura fantasiosa,<br />

nem mágica, nem fantástica, recusando-se<br />

mesmo a ler um badaladíssimo best-seller em tradução<br />

inglesa <strong>de</strong> latino-americano García-Qualquer-<br />

-Coisa que uma literatonta ex-namorada lhe tentara<br />

impingir.<br />

Hoje reconheço bem a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> García<br />

Márquez em se fazer acreditar. De Macondo, disse<br />

ele, não restou ninguém, talvez só o Gabriel, que<br />

eu suspeito fosse o moço da canoa. O namoro com<br />

a Joanne acabou e ela acusa-me agora <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios<br />

ficcionais, e ficou-me com tanta raiva por ninharias<br />

que se entrepõem nas vidas <strong>de</strong> um par <strong>de</strong><br />

amantes (ninharias que estragam tudo, sobretudo<br />

a alegria das esperadas noites) que, se o leitor porventura<br />

a encontrasse e tentasse indagar da veracida<strong>de</strong><br />

da minha estória, ela teria estômago para lhe<br />

mentir com uma cara tão serena e séria que nem<br />

daria para levantar ponta <strong>de</strong> dúvida sobre a sua<br />

palavra. Po<strong>de</strong>ria sugerir-lhe, mui estimado leitor,<br />

que contactasse o Jack e a Ann – era assim que se<br />

chamava a namorada <strong>de</strong>le, se ainda não lho revelei<br />

– que ao menos ouviram o meu relato no fresquinho<br />

do acontecer. A verda<strong>de</strong> é que – e aposto que<br />

vai com esta convencer-se mesmo <strong>de</strong> que estou a<br />

lançar-lhe patranhas – perdi o contacto com eles e<br />

não lhes <strong>de</strong>scortino o para<strong>de</strong>iro.<br />

A história com o Jack é simples e conta-se em<br />

poucos minutos, se o leitor os tem ainda antes <strong>de</strong><br />

fechar o livro e atirá-lo para um canto com o seu<br />

<strong>de</strong>sencanto. O Jack e a Ann nunca tinham saído dos<br />

States. Calhara por sorte agarrarem como nós <strong>de</strong><br />

uma pechincha em forma <strong>de</strong> pacote <strong>de</strong> férias. Até<br />

ficaram toda a semana no hotel porque não falavam<br />

espanhol, e havia piscina e praia com tudo servido<br />

nas travessas em inglês. O Jack revelou-me uma<br />

manhã ao pequeno-almoço estar fascinado com a<br />

nunca vista generosida<strong>de</strong> do hotel que lhe enchia<br />

todos os dias o bar no frigorífico do quarto. Dezenas<br />

<strong>de</strong> pequenas garrafas das mais variadas bebidas<br />

que ele não conseguia consumir completamente e<br />

por isso ia empacotando para levar <strong>de</strong> regresso.<br />

Expliquei-lhe que receberia a conta por tudo, mas<br />

ele recusou acreditar-me porque não tinha pedido<br />

nada e nada estava no contrato. Que não pagaria<br />

pelo que não solicitara. Eu ainda tentei insistir mas<br />

só quando à saída o presentearam com uma brutal<br />

<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> 550 dólares <strong>de</strong> bar, do que fui testemunha<br />

porque estava na fila à espera <strong>de</strong> vez para o<br />

check out, é que ele me <strong>de</strong>u furiosamente razão. Barafustou<br />

sem qualquer efeito e, <strong>de</strong>sesperado, esvaziou<br />

sobre o balcão a lancheira das garrafas que<br />

não tinha conseguido consumir ainda.<br />

Naquele mesmíssimo momento eu tive uma<br />

i<strong>de</strong>ia perversa. Fui lesto ao quarto (o leitor aguente<br />

um pouquinho mais que verá aon<strong>de</strong> tudo isto vai dar<br />

e, sobretudo, enten<strong>de</strong>rá as razões da minha perda <strong>de</strong><br />

contacto com o Jack) e agarrei <strong>de</strong> uma folha <strong>de</strong> papel<br />

timbrado do hotel que arrumei na mala.<br />

Já <strong>de</strong> casa, umas semanas <strong>de</strong>pois, escrevi ao<br />

Jack (tínhamos os quatro trocado en<strong>de</strong>reços)<br />

dando os parabéns ao casal por ter ganho o prémio<br />

<strong>de</strong> O Melhor Cliente do Hotel Las Velas, graças ao<br />

seu consumo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros campeões do bar.<br />

O prémio seria uma semana <strong>de</strong> hospedagem grátis<br />

quando voltassem a Cartagena.Terminava com mil<br />

agra<strong>de</strong>cimentos, mais parabéns, e a assinatura <strong>de</strong> El<br />

Gerente, para servirlo,Andrés Nacimiento Martínez.<br />

Carta direitinha para o correio, rumo a algures<br />

nas montanhas da Pennsylvania e, em poucos dias,<br />

eis o Jack a telefonar-me eufórico com a notícia da<br />

reviravolta naquela estória <strong>de</strong> provinciano papalvo<br />

que terminara afinal em azul e ouro. Era tão generosa<br />

a oferta do hotel que a Ann e ele queriam<br />

absolutamente aproveitá-la muito em breve, até<br />

porque tinham adorado a Colômbia, quer dizer, o<br />

circuito fechado do Las Velas. Acossou-me o receio<br />

<strong>de</strong> eles irem mesmo.Vai eu enchi-me <strong>de</strong> coragem,<br />

respirei fundo e confessei-lhe a brinca<strong>de</strong>ira.


Suicídio imediato. Tudo terminou ali com o<br />

Jack a <strong>de</strong>sligar ríspido e eu a ouvir apenas o retinir<br />

da fúria, o embate do telefone no seu poiso.<br />

Eis aí, meu caro leitor, a razão da não existência<br />

<strong>de</strong> testemunhas da minha viagem real e autên-<br />

Vila à margem do rio. Roberto Burle-Marx, 1932<br />

tica àquele mágico sítio on<strong>de</strong> todo lo escrito era irrepetible<br />

para siempre e on<strong>de</strong> me parece que também eu não terei una<br />

segunda oportunidad sobre la tierra.


Perto da ria<br />

Gastão Cruz<br />

A MARESIA DO MUNDO 108 109<br />

O Pescador, Ria <strong>de</strong> Alvor. Es<strong>cultura</strong> <strong>de</strong> João Cutileiro. Foto <strong>de</strong> Paulo Arez


O sol dilata as praças on<strong>de</strong> outrora<br />

chegava água, ainda <strong>de</strong>signadas<br />

por palavras na água começadas<br />

chão empedrado agora on<strong>de</strong> antes fora<br />

o que dizem os nomes, <strong>de</strong>smentidos<br />

pelo movimento da realida<strong>de</strong>


A mosca e o ladrão<br />

Ondjaki<br />

FICÇÕES 110 111<br />

Ilustração <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Carrasquinho Gomes


Uma mosca lânguida dançava. O som chegava<br />

libertino do mar – como um vento adocicado.<br />

A mosca exercitava movimentos concisos, rápidos,<br />

frenéticos. Transe ou passe <strong>de</strong>sajeitado. O seu<br />

corpo obe<strong>de</strong>cia a uma melodia ou a uma interferência<br />

magnética não perceptível. Mas que dançava<br />

a mosca, dançava.<br />

As nuvens embalavam a madrugada. A brisa<br />

fraca trazia em si restos <strong>de</strong> sal, e memórias, e sorrisos<br />

<strong>de</strong> vidro que a todo momento se podiam<br />

quebrar. Talvez o amor seja isso: restos <strong>de</strong> vidro e<br />

belas cicatrizes.<br />

Ele dormia no quarto. O aquário dormia na<br />

sala. Os peixes não.<br />

Uma <strong>de</strong>stas noites…, dizia-lhe eu às vezes. Ele<br />

dormia, sob o mosquiteiro encarnado. Quero que me<br />

ofereças um mosquiteiro, mas que seja encarnado.<br />

Distingui com niti<strong>de</strong>z os passos do ladrão na<br />

cozinha. Calculei até o seu peso. Afligia-me não<br />

<strong>de</strong>tectar nenhum odor. Pousou o que fosse um<br />

saco ou uma mochila pequena. Foi acumulando<br />

objectos. Talvez a minha colher preferida. O meu<br />

prato fundo trazido da Argélia com os seus <strong>de</strong>senhos<br />

finos, feitos à mão, lembrando estrelas no<br />

céu <strong>de</strong> um <strong>de</strong>serto frio. As minhas chávenas <strong>de</strong><br />

todos os cafés tomados. Tudo o que or<strong>de</strong>nava a<br />

minha escuridão numa pauta <strong>de</strong> gestos quotidianos.<br />

A minha escuridão. A escuridão da sala.<br />

Era uma janela enorme. Cabiam nela a madrugada<br />

e a mosca. A mosca era, como outras, pequena.<br />

Outrora, o amor tinha sido enorme. Do tamanho<br />

<strong>de</strong> uma obsessão. Uma <strong>de</strong>stas noites tudo vai mudar.<br />

Ele dormia sob a paz encarnada do mosquiteiro.<br />

Deslocou-se, o ladrão, da cozinha para a sala. Sem<br />

hesitação. A mosca parou a sua dança.<br />

Viu-me. Compreen<strong>de</strong> que, não o tendo visto,<br />

eu já sabia da sua presença. Não tendo gritado, já<br />

não o faria. O ladrão não podia gritar. Pousou a<br />

mochila no chão, em gesto <strong>de</strong> entrega. Olhou a<br />

sala, o armário <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Tocou os livros como<br />

se soubesse <strong>de</strong>les. Olhou a mulher na sala. Era eu.<br />

Viu a janela. A mosca ainda lá estava. A madrugada<br />

também. Trazia nos pés um par <strong>de</strong> sandálias dotadas<br />

<strong>de</strong> uma simplicida<strong>de</strong> comovedora, e os pés<br />

limpos, e nem aproximando-se pu<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o<br />

seu odor. Talvez algum resto <strong>de</strong> incenso. Talvez<br />

ma<strong>de</strong>ira já esculpida.<br />

O que leva <strong>de</strong>sta casa que não encontrou nas outras?<br />

O ladrão sentou-se no sofá comigo. Mas não<br />

chegou perto.<br />

Comida.<br />

Cruzou as pernas como se não tivesse pressa.<br />

Eu olhava alternadamente o ladrão e a mosca. Ele<br />

dormia lá <strong>de</strong>ntro, no quarto. A janela acolhia a<br />

mosca.<br />

Também tem os livros <strong>de</strong> poesia reunida, isso poupar-lhe-á<br />

algum trabalho. Leve pelo menos a poesia oriental e a brasileira.<br />

Ele ace<strong>de</strong>u com a cabeça. Fechou os olhos, respirando<br />

fundo, libertando-se não tanto do cansaço,<br />

mas <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> futuro. Olhou <strong>de</strong> novo para<br />

mim. O ladrão emanava uma certa culpa. Atrapalhado<br />

por não ter mais que dizer, sentia cada oferta<br />

como um dardo doloroso.<br />

Leve-me consigo, ladrão.<br />

Não posso.Vou para muito longe.<br />

Era esse o meu <strong>de</strong>sejo.<br />

Levantou-se. Alcançou os dois livros <strong>de</strong> poesia<br />

reunida.<br />

Levo uma vida já ocupada. Mulher e dois filhos. Não me<br />

leve a mal.<br />

Esten<strong>de</strong>u-me a mão.Tocaram-se os corpos. Era<br />

mão não <strong>de</strong> homem mas <strong>de</strong> pessoa. Trazia nela,<br />

confirmei, um cansaço para além das activida<strong>de</strong>s<br />

diurnas ou das coisas materiais. E, nessa proximida<strong>de</strong>,<br />

constatei, não possuía odor algum.<br />

A mosca voltou aos seus movimentos <strong>de</strong>sajeitados.<br />

No seu bailado havia algo <strong>de</strong> caos organizado.<br />

Contudo, o tempo <strong>de</strong> exposição da dança não me<br />

permitiria <strong>de</strong>tectar um padrão. O corpo do ladrão<br />

obe<strong>de</strong>cia a uma melodia <strong>de</strong> retirada que não sofreria<br />

nenhuma interferência feminina.<br />

A madrugada continha em si restos <strong>de</strong> sal, e<br />

sorrisos, e memórias <strong>de</strong> vidro que a todo momento<br />

se podiam quebrar. Talvez o passado seja somente<br />

uma bela cicatriz.<br />

Regressei ao quarto. Havia um mosquiteiro.<br />

Era encarnado. No mosquiteiro, havia uma fresta<br />

aberta. Ninguém dormia na cama. Não houve,<br />

nunca, um homem adormecido na minha cama.<br />

Difícil é aceitar lembranças: sei <strong>de</strong> um ladrão<br />

que não liberta odor algum. E nunca tinha visto<br />

uma mosca dançar.


Mar Portugal<br />

Ricardo Diniz<br />

SETE MARES 112 113<br />

Treinos no Atlântico. Fotografia <strong>de</strong> Sérgio Dionísio - Ocean Fashion


Aos 21 anos, o sonho comandava a vida.<br />

Era comandante <strong>de</strong> um enorme veleiro<br />

nas Caraíbas.


SETE MARES 114<br />

115<br />

É daquelas coisas... Na altura custava muito.<br />

A todos. Várias <strong>de</strong>spedidas por ano, muitas lágrimas,<br />

um estranho país frio e cinzento on<strong>de</strong> falavam<br />

uma língua que não era a minha e que<br />

<strong>de</strong>morava a compreen<strong>de</strong>r. Mas antes assim.Valeu a<br />

pena. Ensinou-me muito e <strong>de</strong>u-me estofo emocional<br />

para <strong>de</strong>safios futuros. Acima <strong>de</strong> tudo<br />

expôs-me a uma outra visão do mundo e a um<br />

gosto natural pela in<strong>de</strong>pendência. Mas não foi<br />

fácil ir para Inglaterra com cinco anos, <strong>de</strong>ixando<br />

em Portugal a minha mãe, os meus avós, os meus<br />

amigos. O meu Mar.<br />

Sempre fez parte da minha vida, o Mar.<br />

«Hey man, where are you from?» – Adorava<br />

esta pergunta. Era uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar da<br />

minha terra, das suas gentes, do seu Mar.Viver Portugal<br />

<strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro puxa pelo orgulho, pelo<br />

carinho, mas também pela exigência. Ficava triste<br />

quando não sabiam <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu era, mas também<br />

éramos todos miúdos e com outras priorida<strong>de</strong>s que<br />

não a geografia mundial! Mas Portugal é já ali tão<br />

perto.Tão bonito. «Como é que é possível não saberem<br />

on<strong>de</strong> fica?»... Estava plantada a semente.<br />

Recebi o meu primeiro Atlas com 8 anos. Foi<br />

uma prenda fantástica! Era um livro pequeno e<br />

robusto mas suficientemente flexível para andar<br />

sempre comigo, ora na mochila, ora no bolso.<br />

Como eu adorava aquele livrinho <strong>de</strong> bolso! Ao<br />

folhear as suas coloridas páginas sonhava e viajava,<br />

tentando imaginar como seriam aquelas ilhas no<br />

meio do Oceano Atlântico ou a vastidão do <strong>de</strong>serto<br />

gelado da Antárctida. Conseguia passar horas ali<br />

<strong>de</strong>ntro, entretido com novos e curiosos dados.<br />

Fiquei intrigado ao reparar que o Brasil tinha um<br />

gran<strong>de</strong> rio com um nome do mês em que a minha<br />

mãe fazia anos! O meu Pai lá me explicou que<br />

«aquilo» não era bem um rio...<br />

Passadas duas décadas, ainda tenho esse Atlas.<br />

Quando o retiro da prateleira reparo que ele se abre<br />

com naturalida<strong>de</strong> na página 30 e, em poucos<br />

segundos, revivo as emoções que justificam esse<br />

vício das folhas soltas. Reparo que o canto da folha<br />

já fora dobrado em tempos, talvez para rápida referência.<br />

Em pequeno olhava para o mapa do meu<br />

país e chorava com um misto <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s, paixão e<br />

orgulho. Era a minha terra, ali tão perto mas ainda<br />

a tantos meses <strong>de</strong> me voltar a acolher. Impossível<br />

ficar indiferente, ainda hoje.<br />

Aos 21 anos, o sonho comandava a vida. Era<br />

comandante <strong>de</strong> um enorme veleiro nas Caraíbas,<br />

ganhava muito dinheiro para fazer o que adorava,<br />

mas vivia uma vida simples e <strong>de</strong>sprendida. Duran-<br />

te cerca <strong>de</strong> nove meses an<strong>de</strong>i <strong>de</strong>scalço e sem nunca<br />

passar o corpo por água doce. Mergulhava num<br />

incrível mar azul todos os dias e comia a fruta doce<br />

das generosas árvores <strong>de</strong>sse mundo preguiçoso.<br />

Conhecia centenas <strong>de</strong> pessoas por mês e ouvia a<br />

célebre pergunta que sempre me acompanhou. Já<br />

não éramos miúdos, mas a situação mantinha-se;<br />

«Portugal? That’s nice. I was in South America last<br />

year. Lovely place...» O mesmo acontecia nos EUA<br />

quando por lá passava. As pessoas pura e simplesmente<br />

não sabiam on<strong>de</strong> ficava Portugal.Associavam<br />

o nome «Portugal» a um território anexo a um<br />

país qualquer num continente que não o nosso.<br />

Com sorte, lá apanhava um raro ser iluminado que<br />

timidamente sugeria que Portugal tinha qualquer<br />

coisa a ver com Espanha. Great!..<br />

Nesse mesmo ano, a CNN <strong>de</strong>scobriu que<br />

havia «... um jovem velejador que estava a retraçar<br />

a história do seu país». Numa simples peça <strong>de</strong> seis<br />

minutos, a ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Portugal foi vista por um<br />

universo <strong>de</strong> 800 milhões <strong>de</strong> pessoas em todo o<br />

mundo. Falou-se <strong>de</strong> Portugal. Falou-se do nosso<br />

Mar. Falou-se da nossa História. Recebi perto <strong>de</strong><br />

mil e-mails e passei semanas a respon<strong>de</strong>r a cada um!<br />

Todos tinham algo em comum: orgulho em ser<br />

Português. Foi aqui que percebi que os meus projectos<br />

como velejador eram um potente e relevante<br />

veículo com uma capacida<strong>de</strong> além do meu<br />

sonho <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> fazer a volta ao mundo à vela<br />

sozinho.<br />

Em 2003, lancei o Projecto «Ma<strong>de</strong> in PORTU-<br />

GAL» com o claro objectivo <strong>de</strong> promover Portugal<br />

no mundo, associando-o a valores essenciais <strong>de</strong><br />

qualida<strong>de</strong>, inovação, tecnologia e <strong>de</strong>sign. Queria<br />

posicionar Portugal como um país dinâmico, <strong>cultura</strong>lmente<br />

rico, mas mo<strong>de</strong>rno e ambicioso. Passei a<br />

ser apenas o homem do leme num projecto amplo<br />

que trabalha áreas tão diferentes como a construção<br />

naval e a educação. É com muito orgulho que vejo<br />

cada vez mais escolas a usarem as minhas viagens<br />

para, <strong>de</strong> forma mais interessante e directa, ensinarem<br />

geografia, história, português e matemática. É<br />

talvez a vertente mais importante do meu trabalho<br />

como velejador. É fantástico ver o entusiasmo das<br />

crianças quando partilho com elas as minhas viagens<br />

e vivências, tentando transmitir lições <strong>de</strong><br />

garra, perseverança e empreen<strong>de</strong>dorismo. Mostro-<br />

-lhes o que significa isto <strong>de</strong> sermos Portugueses e<br />

que todo aquele Mar é nosso.<br />

Afinal <strong>de</strong> contas, Portugal é um apenas um<br />

bocadinho <strong>de</strong> terra com algumas pequenas ilhas,<br />

mas muito, muito Mar. O futuro <strong>de</strong> Portugal


passa, obrigatoriamente, pelo nosso Mar. O Mar<br />

Português é o principal factor que nos diferencia<br />

como nação e é a nossa maior e mais rica herança.<br />

Não somos conhecidos no mundo por termos<br />

uma magnífica indústria <strong>de</strong> vinhos, sermos lí<strong>de</strong>res<br />

mundiais na produção <strong>de</strong> cortiça ou pela qualida<strong>de</strong><br />

das nossas loiças ou cristais. O mundo não<br />

associa Portugal a excelência técnica nem a qualida<strong>de</strong>.<br />

Ainda. Mas temos uma ligação histórico-<br />

-<strong>cultura</strong>l com os Oceanos e é essa a nossa melhor<br />

carta trunfo que já estamos a saber jogar. Há sectores<br />

óbvios que beneficiarão, como o turismo e<br />

a oceanografia. Mas o mar também é fonte <strong>de</strong><br />

energia e tela <strong>de</strong> ligação entre países.<br />

Portugal é um país fantástico, com um povo<br />

único.Temos tantas coisas boas, mas também um<br />

enorme potencial para fazermos mais e melhor.<br />

Vale a pena sonhar e sermos ambiciosos e arregaçarmos<br />

as mangas. O Mar <strong>de</strong> Portugal lá estará<br />

para quando o soubermos aproveitar ao máximo.<br />

Hoje, felizmente, as perguntas já começam a<br />

ser outras. «Não te sentes só quando estás sozinho<br />

no mar?» Como é que me posso sentir só<br />

num mar salgado tão imensamente bonito e azul,<br />

tão vasto e tão nosso? Comigo navegam os verda<strong>de</strong>iros<br />

heróis do mar e suas histórias. As suas<br />

aventuras e conquistas são hoje a história <strong>de</strong><br />

todos nós.<br />

Ao folhear as suas coloridas páginas<br />

sonhava e viajava, tentando imaginar<br />

como seriam aquelas ilhas no meio<br />

do Oceano Atlântico ou a vastidão<br />

do <strong>de</strong>serto gelado da Antárctida.


A MUDANÇA DA TERRA 116 117<br />

Os vilancetes glosados<br />

dos foliões das festas<br />

do Espírito Santo<br />

<strong>de</strong> Marmelete (Algarve) 1<br />

Aliete Galhoz<br />

Para construir um diálogo, uma ponte, uma errância a que se <strong>de</strong>seja a culminação<br />

em périplo feliz, parte-se <strong>de</strong> algum lugar, chega-se (ou não) ao rumo<br />

<strong>de</strong>sejado, transita-se, regressa-se (ou não), transporta-se, traz-se. O património<br />

criado pelos homens é perecível, irrisório, <strong>de</strong>struído e recomeçado, espantoso<br />

<strong>de</strong> frágil e tenaz. Um pequeno património espiritual, viajando em memória,<br />

aprendido, ensinado pela voz, po<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r o abraçar o mundo, a ecúmene,<br />

«a nossa casa». O texto que se segue é uma malha num tecido ou num sistema<br />

conotado em re<strong>de</strong>. «A» Festa e Folia do Espírito Santo, <strong>de</strong> raiz medieval,<br />

inspiração joaquimita, no que toca a Portugal, disseminou-se para as ilhas<br />

atlânticas, sobretudo as dos Açores, com os povoadores, no século XV,<br />

e foi levada até ao Brasil, à Índia e a Goa com as Descobertas, no século XVI.<br />

Banda Filarmónica <strong>de</strong> Marmelete, 1950. Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Aldina Duarte


1 Servimo-nos, para elaborar<br />

este artigo, <strong>de</strong> parte do<br />

material e estudo presentes<br />

nestes dois trabalhos nossos:<br />

«Cantigas Paralelísticas <strong>de</strong><br />

Tradição Oral <strong>de</strong> Trás-os-<br />

-Montes e do Algarve»,<br />

in Literatura Medieval, vol.<br />

IV, Actas do IV Congresso<br />

da Associação Hispânica<br />

<strong>de</strong> Literatura Medieval<br />

(Lisboa, 1-5 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong><br />

1991), organização <strong>de</strong> Aires<br />

A. Nascimento e Cristina<br />

Almeida Ribeiro. Lisboa,<br />

Edições Colibri, 1993,<br />

pp. 11-17, principalmente<br />

pp. 14-15; «Cantigas<br />

Paralelísticas na Tradição<br />

Oral Portuguesa –<br />

Trás-os-Montes: cantigas<br />

das mondas, das malhas,<br />

das trilhas. Algarve:<br />

os vilancetes glosados dos<br />

foliões das festas do Espírito<br />

Santo <strong>de</strong> Marmelete. Açores:<br />

estruturas paralelísticas<br />

nos cantos dos foliões<br />

das festas do Espírito Santo».<br />

Lisboa, Ed. Apenas Livros,<br />

2006, pp. 19-21.<br />

A MUDANÇA DA TERRA 118<br />

Marmelete – um recanto da al<strong>de</strong>ia, 1960<br />

Arquivo Pessoal <strong>de</strong> Aldina Duarte<br />

119<br />

Marmelete, povoado rural incrustado<br />

na vertente atlântica da serra <strong>de</strong> Monchique,<br />

possui um valioso património a nível<br />

da etnografia e da literatura oral, com <strong>de</strong>staque<br />

para os vilancetes glosados dos<br />

foliões das festas do Espírito Santo.<br />

Além do «corpus» <strong>de</strong> cantigas <strong>de</strong> trabalho,<br />

paralelísticas, da tradição <strong>de</strong> Trás-os-<br />

-Montes, e que se po<strong>de</strong>m, a esta altura,<br />

cifrar em 20 matriciais, outro valioso contributo<br />

há a apontar, neste campo, e vindo<br />

também <strong>de</strong> uma área lateral do país e até à<br />

década <strong>de</strong> 60 do século XX zona fortemente<br />

isolada – refiro-me às «cantigas<br />

paralelísticas» <strong>de</strong> Marmelete.<br />

Em 1921-1922, o etnógrafo local José<br />

Guerreiro Gascon publica, na <strong>Revista</strong> Lusitana,<br />

num capítulo <strong>de</strong> uma monografia sobre<br />

Monchique 2 , trinta e cinco cantigas <strong>de</strong> tradição<br />

das Festas do Espírito Santo na pequena<br />

freguesia <strong>de</strong> Marmelete. São, tal como as<br />

reveladas por José Leite <strong>de</strong> Vasconcellos para<br />

Trás-os-Montes, paralelísticas <strong>de</strong> acentuado<br />

cunho ancestral. Passaram, contudo, então<br />

<strong>de</strong>sapercebidas; José Leite <strong>de</strong> Vasconcellos,<br />

em nota <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> página, no artigo do próprio<br />

J.G. Gascon, aproxima-as apenas <strong>de</strong><br />

giros linguísticos do «romanceiro» 3 . Sobre<br />

elas viemos nós a chamar a atenção, em<br />

1959, numa comunicação apresentada ao IX<br />

Congresso Internacional <strong>de</strong> Linguística<br />

Românica e que intitulámos <strong>de</strong> «Chansons<br />

Parallélistiques dans la Tradition <strong>de</strong> l’Algarve;<br />

genres, structure, langage» 4 . Alertada pela<br />

nossa comunicação, interessou-se por elas a<br />

gran<strong>de</strong> especialista da lírica tradicional hispânica<br />

Margit Frenk, que apresentou, por sua<br />

vez, sobre elas, uma comunicação, «Permanencia<br />

Folklórica <strong>de</strong>l Villancico Glosado», ao<br />

IV Congresso Internacional <strong>de</strong> Hispanistas,<br />

Salamanca, 1971 5 ; entravam assim, por sua<br />

singularida<strong>de</strong> conservadora <strong>de</strong> formas e<br />

sentidos da poética medieval, no circuito da<br />

lírica tradicional hispânica <strong>de</strong> cariz similar<br />

mais arcaico.<br />

Estas «cantigas <strong>de</strong> Marmelete» recolhidas<br />

por Guerreiro Gascon em 1918 da<br />

boca <strong>de</strong> um velho «folião» da Confraria do<br />

Espírito Santo, <strong>de</strong> Marmelete, não se cantavam<br />

publicamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1903, data da<br />

última celebração, aí, das «Festas do Santo<br />

Espírito».<br />

Chamavam-se «cantigas do Santo Espírito»<br />

ou «cantigas <strong>de</strong> Santa Isabel», pois foi<br />

a rainha D. Isabel, mulher <strong>de</strong> el-rei D. Dinis,<br />

que incrementou a cerimónia do culto<br />

(«império e coroação») do Espírito Santo<br />

em Portugal a partir da festivida<strong>de</strong> que instituiu<br />

solenemente na sua vila <strong>de</strong> Alenquer<br />

em 1295 6 . Eram cantadas por um grupo <strong>de</strong><br />

«foliões», <strong>de</strong>signação que não é sem<br />

importância correlativa. Como paradigma,<br />

apresentam uma estrutura matriz que é<br />

uma espécie <strong>de</strong> mol<strong>de</strong>: uma cabeça dística<br />

e 2 quadras em que o 1.º e o 3.º versos são<br />

invariavelmente o 1.º e o 2.º da cabeça dística,<br />

isto é: AB// AcBc/ AdBd.Variam o 2.º<br />

e o 4.º versos, mantendo, todavia, estrito<br />

paralelismo semântico. Encontrámos esta<br />

estrutura empregue por Afonso X, o Sábio,<br />

em duas das Cantigas <strong>de</strong> Santa Maria 7 e, do<br />

mesmo Afonso X, numa cantiga <strong>de</strong> escárnio,<br />

476 do Cancioneiro da Biblioteca Nacional,e,<br />

ainda, numa cantiga <strong>de</strong> escárnio <strong>de</strong> Pero da<br />

Ponte contra o jogral Pero <strong>de</strong> Burgos, 1173<br />

do Cancioneiro da Vaticana 8 e 1639 do Cancioneiro<br />

da Biblioteca Nacional.


O campo lexical é o característico,<br />

sobretudo, das «cantigas <strong>de</strong> amigo» medievais,<br />

embora com a mutação <strong>de</strong> que a<br />

cantiga, e o elogio, é posta em boca <strong>de</strong><br />

homem e se dirige à donzela, como nestas<br />

duas cantigas (apresentada, aliás, uma sem<br />

a cabeça) e on<strong>de</strong> se encontram vestígios,<br />

também, da fraseologia das cantigas <strong>de</strong><br />

amor numa <strong>de</strong>las (não normalizamos os<br />

textos):<br />

Moças <strong>de</strong> Lagos,<br />

Em Lagos nascidas<br />

Brancas e vermelhas<br />

E tam floridas.<br />

E moças <strong>de</strong> Lagos,<br />

Em Lagos criadas,<br />

Brancas e vermelhas,<br />

E tam clòradas.<br />

<strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV, p. 280<br />

Moças do Tolêdo,<br />

Chêra la sua roupa.<br />

Moças do Tolêdo,<br />

Vão lavar ò rio,<br />

Chêra la sua roupa<br />

A trevo florido.<br />

Moças do Tolêdo,<br />

Vão lavar ò alto,<br />

Chêra la sua roupa<br />

A trevo granado.<br />

<strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV, p. 280<br />

O que se <strong>de</strong>duz da leitura <strong>de</strong>stas cantigas,<br />

quer as <strong>de</strong> Trás-os-Montes, quer as do<br />

Algarve, é a aproximação a mo<strong>de</strong>los que os<br />

poetas dos cancioneiros medievais galaico-<br />

-portugueses atestam, mantendo, estas cantigas<br />

tradicionais populares, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a<br />

estruturas, a «jargão poético» das «cantigas<br />

<strong>de</strong> amigo», principalmente, mas com um<br />

ou outro afloramento do das «cantigas <strong>de</strong><br />

amor» e, ainda, com passar <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong><br />

irónica que lembra as <strong>de</strong> escárnio. Não faço<br />

qualquer conjectura sobre fontes e origens,<br />

para que não tenho bagagem erudita que<br />

mo permitisse, nem é o meu campo <strong>de</strong> estu-<br />

do; apenas chamei a atenção, novamente,<br />

para uma sobrevivência <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los e formulação<br />

<strong>de</strong> longa veiculação e similitu<strong>de</strong> a<br />

mo<strong>de</strong>los e figuração poéticos medievais,<br />

mas com características mais primárias na<br />

utilização das estruturas. Esten<strong>de</strong>m-se, sim,<br />

na performance do canto, com hábil técnica<br />

matemática, pela reiteração e pelo refrão (as<br />

<strong>de</strong> Marmelete eram cantadas «muito repisadinhas»,<br />

como informa Guerreiro Gascon e<br />

se po<strong>de</strong> imaginar pelas suas congéneres das<br />

«folias do Espírito Santo» nos Açores gravadas<br />

com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>), sendo no entanto<br />

ausentes <strong>de</strong> artifícios adicionais na própria<br />

composição. Por outro lado, o inventário<br />

lexical, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser económico, como<br />

é regra das «cantigas <strong>de</strong> amigo», faz ressaltar<br />

uma diversida<strong>de</strong> regionalizada, embora<br />

ténue. Adstritas à ruralida<strong>de</strong>, revelam referência<br />

a «caça» e «pesca» no rio e «romaria»<br />

no Norte e a uma natureza mais tratada<br />

no Sul remanescente da moçarabização (as<br />

cantigas <strong>de</strong> Marmelete alu<strong>de</strong>m a «olival», a<br />

«meimendro», a «laranjeira», a «lima» e<br />

«limonas», por exemplo) 9 . Citamos uma<br />

(não normalizamos o texto):<br />

D’on<strong>de</strong> vêm estes senhores e mais senhoras<br />

Que me vêm cheirando a limas mais<br />

[a limonas?<br />

D’on<strong>de</strong> vêm estes senhores e mais senhoras<br />

Qu’ê bem le digo,<br />

Vêm-me cheirando a limas mais a limonas<br />

E a trevo florido?<br />

D’on<strong>de</strong> vêm estes senhores e mais senhoras,<br />

Ê bem le falo,<br />

Vêm-me cheirando a limas mais a limonas<br />

E a trevo granado?<br />

<strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV, p. 278<br />

O «corpus» das «cantigas dos foliões»,<br />

<strong>de</strong> Marmelete, alcançou, discreta e tenazmente,<br />

o seu lugar no acervo da lírica tradicional<br />

ibérica, nos seus testemunhos <strong>de</strong><br />

veiculação oral e persistência memorial,<br />

sobretudo no que respeita ao mo<strong>de</strong>lo cancioneiril<br />

do «vilancete glosado», tão em<br />

moda, e tornadas cortesãs nos fins do século<br />

XV, parte do século XVI. Sobre tal, referin-<br />

2 Editada postumamente:<br />

José António Guerreiro<br />

Gascon, Subsídios<br />

para a Monografia <strong>de</strong><br />

Monchique. Edição da viúva<br />

do autor, Maria C. R. Guerreiro<br />

Gascon, Lisboa, Composto<br />

e impresso na Gráfica Sepol,<br />

1955.<br />

3 <strong>Revista</strong> Lusitana, vol. XXIV,<br />

p. 276, nota 1.<br />

4 Publicada no vol. II das<br />

Actas, Ed. do Centro <strong>de</strong><br />

Estudos Filológicos, Lisboa,<br />

1960, pp. 5-10.<br />

5 Publicada in Nueva <strong>Revista</strong><br />

<strong>de</strong> Filologia Hispánica,<br />

tomo XXIX, 1980, n.º 2,<br />

México, D.F., El Colegio <strong>de</strong><br />

México, pp. 404-411.<br />

6 Ver Maria Aliete Galhoz,<br />

«Une Note <strong>de</strong> plus pour<br />

L’Étu<strong>de</strong> du petit Corpus<br />

<strong>de</strong> Chansons Parallélistiques<br />

<strong>de</strong> Marmelete», Actes du<br />

Colloque, Paris, Fondation<br />

Calouste Gullbenkian, Centre<br />

Culturel Portugais, 1987,<br />

pp. 39-58.<br />

7 Cantiga 90, pp. 360-361, vol. I,<br />

e 320, pp. 181-182, vol. II;<br />

in Afonso X, o Sábio,<br />

Cantigas <strong>de</strong> Santa Maria,<br />

edição crítica <strong>de</strong> Walter<br />

Mettman, tomos I e II, Vigo,<br />

Edicións Xerais <strong>de</strong> Galicia,<br />

1981.<br />

8 Cancioneiro Português<br />

da Biblioteca Vaticana<br />

(Códice 4803), Lisboa, Ed.<br />

do Centro <strong>de</strong> Estudos<br />

Filológicos/Instituto <strong>de</strong> Alta<br />

Cultura, MCMLXXIII.<br />

(Fac-símile). Introdução<br />

<strong>de</strong> Luís F. Lindley Cintra.<br />

9 Cf. também Eugenio Asensio,<br />

Poética y Realidad en<br />

el Cancionero Peninsular<br />

<strong>de</strong> la Edad Media, Madrid,<br />

Ed. Gredos, 1957, pp. 95-98.


10 José Manuel Pedrosa,<br />

«Reliquias <strong>de</strong> Cantigas<br />

Paralelísticas <strong>de</strong> Amigo y<br />

<strong>de</strong> Villancicos Glosados en la<br />

Tradición Oral Mo<strong>de</strong>rna», in<br />

Lírica Popular/Lírica<br />

Tradicional – Lecciones<br />

en homenaje a Don<br />

Emídio García Gómez.<br />

Edición <strong>de</strong> Pedro M. Piñero<br />

Ramírez. Universidad <strong>de</strong><br />

Sevilla/Fundación Machado,<br />

1998, pp. 183- 213,<br />

particularmente pp. 200-201.<br />

11 Margit Frenk, Nuevo<br />

Corpus <strong>de</strong> la Antigua<br />

Lírica Popular Hispânica<br />

(siglos XV a XVII), 2 vols.<br />

Faculdad <strong>de</strong> Filosofía y<br />

Letras/Universidad Nacional<br />

Autónoma <strong>de</strong> México.<br />

El Colegio <strong>de</strong> México – Fondo<br />

<strong>de</strong> Cultura Económica, 2003.<br />

12 Conhecido por Chansonnier<br />

Masson 56, é um<br />

cancioneiro luso-espanhol<br />

quinhentista, ms. 56 do fundo<br />

da Bibliothèque <strong>de</strong> l`École<br />

Supérieure <strong>de</strong>s Beaux-Arts<br />

<strong>de</strong> Paris.<br />

A MUDANÇA DA TERRA 120 121<br />

do este «corpus», escreve, sumariando,<br />

José Manuel Pedrosa, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Alcalá <strong>de</strong> Henares, e um dos melhores<br />

especialistas nesta área, em 1998, num<br />

Colóquio Internacional sobre Lírica Popular/<br />

/Lírica Tradicional:<br />

«Otro “corpus” importantísimo <strong>de</strong> villancicos<br />

glosados que han llegado a la tradición<br />

oral mo<strong>de</strong>rna es el <strong>de</strong> las “cantigas dos<br />

foliões”, que se cantaban, hasta 1903, en las<br />

fiestas “do Santo Espírito” <strong>de</strong> Marmelete,<br />

pequeño pueblo <strong>de</strong>l Algarbe portugués.<br />

Nada menos que casi cuarenta <strong>de</strong> estos villancicos<br />

fueron recogidos y publicados por<br />

José António Guerreiro Gascon a comienzos<br />

<strong>de</strong> la década <strong>de</strong> 1920. Posteriormente,<br />

diversos artículos <strong>de</strong> Aliete Galhoz y <strong>de</strong><br />

Margit Frenk han llamado la atención sobre<br />

este extraordinario tesoro, cuyos ecos tendrán<br />

la suerte <strong>de</strong> escuchar las generaciones<br />

futuras, porque tengo noticia <strong>de</strong> que, a<br />

comienzos <strong>de</strong> la década <strong>de</strong> 1960, el folclorista<br />

Michel Giacometti alcanzó a grabar<br />

estos villancicos <strong>de</strong> boca <strong>de</strong>l anciano sacristán<br />

<strong>de</strong> Marmelete que aún recordaba las<br />

“fiestas do Santo Espírito”» 10 .<br />

Além do estudo <strong>de</strong> Margit Frenk sobre<br />

as «Cantigas <strong>de</strong> Marmelete», há outras<br />

referências a este acervo, com <strong>de</strong>staque<br />

para o Nuevo Corpus <strong>de</strong> la Antigua Lírica Popular<br />

Hispánica (Siglos XV a XVII) 11 , on<strong>de</strong> a colecção<br />

recolhida por Guerreiro Gascon tem <strong>de</strong>z<br />

referências, quer no item «Supervivencias»,<br />

quer no item «Correspon<strong>de</strong>ncias».<br />

Transcrevemos uma «cantiga <strong>de</strong> Marmelete»<br />

que Frenk indicia com duas referências:<br />

uma como «supervivencia», a «cabeça»<br />

do vilancete glosado, e outra como<br />

«correspon<strong>de</strong>ncia», a glosa (não normalizamos<br />

o texto):<br />

Chovia e anevava<br />

pela noite escura<br />

e a ná que vai no porto<br />

corre la fortuna<br />

Frenk, 942 B «Supervivencias»<br />

– Que me digas, marinhêro,<br />

que navegas no rio,<br />

na qual daquelas naus<br />

vai o seu diamigo.<br />

Frenk, 942 B «Correspon<strong>de</strong>ncias»<br />

– Que naquela <strong>de</strong>antêra<br />

mastro erguido.<br />

– Que me digas, marinhêro,<br />

que navegas no alto,<br />

na qual <strong>de</strong> aquelas naus<br />

vai o seu diamado?<br />

– Na sua <strong>de</strong>antêra<br />

mastro alçado.<br />

Guerreiro Gascon, <strong>Revista</strong> Lusitana, XXIV, p. 279.<br />

(Lhueve) a menudo<br />

y haze la noche escura,<br />

la nave a el puerto,<br />

el viento a la fortuna.<br />

Frenk, 942 B<br />

– Digasme, marinero,<br />

que andas por la mar,<br />

si me traes nuevas<br />

d’amador leal.<br />

– Darlas hé, señora,<br />

<strong>de</strong> tu <strong>de</strong>sventura.<br />

La nave en el puerto<br />

Y el vento a la fortuna.<br />

Fontes: Cancionero Musical Masson 56, f. 35<br />

(ms. Do século XVI) 12<br />

Ao contrário do que acontece para<br />

Trás-os-Montes, <strong>de</strong> que há vários registos<br />

em suporte sonoro para estas suas «cantigas<br />

<strong>de</strong> trabalho» (Kurt Schindler, 1928/1931;<br />

Michel Giacometti, 1960; Anne Caufriez,<br />

princípios <strong>de</strong> 1980, Domingos Morais,<br />

1985, e outros, para o «corpus» <strong>de</strong> Marmelete<br />

apenas existe o registo gravado por<br />

Michel Giacometti.<br />

Com efeito, Michel Giacometti logrou<br />

ainda registar uma execução cantada <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> parte das «cantigas <strong>de</strong> Marmelete»<br />

da boca <strong>de</strong> um velho sacristão que havia<br />

fixado o repertório e as melodias. Fez uma<br />

primeira gravação em Abril <strong>de</strong> 1961,<br />

obtendo o registo <strong>de</strong> 15 «cantigas». Em<br />

Abril <strong>de</strong> 1970, efectuou novamente um<br />

«inquérito acerca da Festa do Espírito<br />

Santo», e o velho sacristão, então octogenário,<br />

recordou o cerimonial e entoou 14<br />

cantigas. A memória da execução cantada<br />

está portanto preservada e é um contributo


precioso, pois nenhum apontamento<br />

musical existia, até então, <strong>de</strong>ssas cantigas.<br />

O espólio etnomusicológico <strong>de</strong> Michel<br />

Giacometti está <strong>de</strong>positado (é património<br />

nacional) no Museu Nacional <strong>de</strong> Etnologia,<br />

em Lisboa.Todos os espécimes já estão<br />

digitalizados.<br />

É, pois, indubitável a rarida<strong>de</strong> e o testemunho<br />

patrimonial <strong>de</strong>ste acervo do<br />

repertório dos «foliões» das Festas do<br />

Santo Espírito <strong>de</strong> Marmelete cujos passos<br />

ritualizados acompanhavam, quer com<br />

cantos mais profanos (as «alvoradas», as<br />

«marchas» <strong>de</strong> rua), quer com cantos alusivos<br />

a cada momento das cerimónias religiosas<br />

e para-religiosas. Assim, po<strong>de</strong>mos<br />

afirmar que o «corpus» dos vilancetes<br />

glosados <strong>de</strong> Marmelete é uma pequena<br />

jóia da lírica tradicional cancioneiril ibérica!<br />

Acerca <strong>de</strong>les escreve Antonio Sánchez<br />

Romeralo nas Actas <strong>de</strong>l Congreso Romancero –<br />

Cancionero, UCLA (1984) 13 numa comunicação<br />

com o título «El villancico, como<br />

texto oral»:<br />

«También pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cirse esto <strong>de</strong> otras canciones,<br />

<strong>de</strong> cuya existencia antigua no queda testimonio<br />

escrito, pero que, por la factura, muestran claramente<br />

su entronque con la antigua tradición;así,<br />

esa sorpren<strong>de</strong>nte colección <strong>de</strong> 35 villancicos portugueses<br />

glosados recogidos por José Guerreiro Gascon<br />

en Marmelete,lugar <strong>de</strong> la sierra <strong>de</strong> Monchique,<br />

en el Algarbe, hacia 1918.»<br />

13 Edição <strong>de</strong> Enrique Rodríguez<br />

Cepeda, colaboração especial<br />

e bibliografia crítica<br />

<strong>de</strong> Samuel G. Armistead,<br />

tomo I, II, Madrid. Ediciones<br />

José Porrua Turanzas, 1990;<br />

tomo I, pp. 59-80,<br />

particularmente p. 68.


<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana Número 01 Outono Inverno 2004 15C _<br />

LUGARES DE PARTIDA<br />

SAGRES LÍDIA JORGE<br />

CIDADES INVISÍVEIS<br />

FERVOR DE BUENOS AIRES<br />

VIDAS CONTADAS<br />

ENTREVISTA COM VOLODIA TEITELBOIM<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

NO RASTO DE CABRAL ANTÓNIO BORGES COELHO<br />

CRUZEIRO DO SUL<br />

NERUDA E UMA PEDRA<br />

COBERTA DE MUSGO LUIS SEPÚLVEDA<br />

INSTITUTO DE CULTURA IBERO-ATLÂNTICA<br />

Associação Cultural sem Fins Lucrativos e Pessoa Colectiva <strong>de</strong> Utilida<strong>de</strong> Pública DR II série, n.º 8, 11.01.06<br />

1995-2006<br />

MAIS DE UMA DÉCADA DE DIÁLOGO INTERCULTURAL<br />

www.instituto<strong>cultura</strong><strong>ibero</strong>-atlantica.pt<br />

SEDE: Casa Manuel Teixeira Gomes Rua Júdice Biker, 1 8500-701 PORTIMÃO<br />

CONTACTOS: iciaptm@mail.telepac.pt Telef. 351 282 470822 Fax 351 282 470749<br />

<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />

N.º 03 Outono Inverno 2005 | 2006 18C_<br />

SETE MARES<br />

O MAR DE ULISSES<br />

EDUARDO LOURENÇO<br />

CIDADES INVISÍVEIS<br />

RIO DE JANEIRO<br />

VIDAS CONTADAS<br />

UMA ENTREVISTA IMAGINÁRIA<br />

COM ERICO VERÍSSIMO<br />

JOÃO VENTURA<br />

CAMINHOS CRUZADOS<br />

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO<br />

E LYGIA FAGUNDES TELLES<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

SIMÃO BOLÍVAR E A<br />

INVENÇÃO DA COLÔMBIA<br />

ARMANDO MARTÍNEZ<br />

ESTADIO DE SÍTIO<br />

TODOS QUERÍAMOS<br />

JOGAR NO MARACANÃ<br />

LUIZ FELIPE SCOLARI<br />

CRUZEIRO DO SUL<br />

GABRIELA MISTRAL<br />

EM PORTUGAL<br />

VIRGÍNIA VIDAL<br />

Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong>


PUBLICAÇÃO SEMESTRAL<br />

EDIÇÃO<br />

Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

[Associação Cultural<br />

Pessoa Colectiva <strong>de</strong> Utilida<strong>de</strong><br />

Pública]<br />

DIRECTOR<br />

João Ventura<br />

REDACÇÂO<br />

João Ventura<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Patrícia Canha<br />

ASSISTENTE EDITORIAL<br />

(Estagiária)<br />

Patrícia Canha<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

António Borges Coelho [Portugal]<br />

Caio Boschi [Brasil]<br />

Gerardo Caetano [Uruguai]<br />

João <strong>de</strong> Melo [Portugal]<br />

Luis Sepúlveda [Chile]<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

[Portugal]<br />

Mempo Giardinelli [Argentina]<br />

Osvaldo Henrique Urbano [Peru]<br />

Plinio Apuleyo Mendoza [Colômbia]<br />

PROJECTO EDITORIAL<br />

João Ventura<br />

DESIGN<br />

Atelier Henrique Cayatte<br />

com Susana Cruz e Cristina Viotti<br />

APOIOS<br />

Cátedra <strong>de</strong> Estudos<br />

Ibero-Americanos<br />

Fotocopie este cupão e envie-o para:<br />

<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />

R. Júdice Biker, n.º 1<br />

8500-701 Portimão – Portugal<br />

Fax (351) 282 470 749<br />

E-mail: info@revista-atlantica.com<br />

Nome<br />

Morada<br />

Código Postal País Data<br />

Assinatura<br />

<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />

FOTOGRAFIA<br />

Ab<strong>de</strong>rrahmane Ualibo<br />

Aníbal Solimano<br />

Coco Martín<br />

Carlos Sala<br />

Hernán Pereira<br />

João Mariano<br />

João Ventura<br />

Julio Pantoja<br />

Maria da Graça A. M. Ventura<br />

Milene D’Áuriol<br />

Montserrat Sáenz<br />

Paulo Arez<br />

Paulo Barata<br />

Sérgio Dionísio<br />

CAPA E CONTRACAPA<br />

Norberto Seebach<br />

COLABORARAM<br />

NESTA EDIÇÃO<br />

Alberto Mosquera Moquillaza<br />

Alejandro Reyes Flores<br />

Carmen Yáñez Hidalgo<br />

Cecilia Bustamante<br />

Eva Valero<br />

Gastão Cruz<br />

Gerardo Caetano<br />

Henrique Urbano<br />

João Mariano<br />

João Ventura<br />

Julio Pantoja<br />

Manuel Rui<br />

Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />

Maria Aliete Galhoz<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

IEFP Governo da República Portuguesa<br />

Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s<br />

Carrasquinho Gomes<br />

Maria Lúcia Garcia Marques<br />

Ondjaki<br />

Onésimo Teotónio <strong>de</strong> Almeida<br />

Paulinho Assunção<br />

Ricardo Diniz<br />

Roberto Ampuero<br />

Virgínia Vidal<br />

TRADUÇÃO<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Patrícia Canha<br />

REVISÃO & COPY DESK<br />

António José Massano<br />

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS<br />

Arquivo Câmara Municipal Vila<br />

Nova <strong>de</strong> Foz Côa<br />

Arquivo Histórico Ultramarino<br />

© Instituto Português <strong>de</strong><br />

Arqueologia<br />

ProChile<br />

Promperú<br />

PROPRIEDADE<br />

Instituto <strong>de</strong> Cultura<br />

Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

Presi<strong>de</strong>nte<br />

Maria da Graça A.<br />

Mateus Ventura<br />

Vice-Presi<strong>de</strong>nte<br />

Val<strong>de</strong>mar Coutinho<br />

Coor<strong>de</strong>nadora Adjunta<br />

Margarida Cunha<br />

Vogais<br />

A<strong>de</strong>lina Amorim<br />

José Canelas<br />

Co-financiado pelo FSE<br />

ASSINATURA ANUAL<br />

Assinatura 25 €<br />

REDACÇÃO E ADMINISTRAÇÃO<br />

Rua Júdice Biker, n.º 1<br />

8500-701 Portimão<br />

E-mail: iciaptm@mail.telepac.pt<br />

T. [351] 282 470 822<br />

F. [351] 282 470 749<br />

PROMOÇÃO E PUBLICIDADE<br />

info@revista-atlantica.com<br />

PRÉ-IMPRESSÃO<br />

Critério – Produção Gráfica, Lda<br />

IMPRESSÃO<br />

Norprint<br />

DISTRIBUIÇÃO<br />

ICIA<br />

ISSN<br />

1646-1002<br />

DEPÓSITO LEGAL<br />

219149/04<br />

Registo ICS<br />

124731<br />

PREÇO POR NÚMERO<br />

15 €<br />

SÓCIOS DO ICIA<br />

Gratuito<br />

ASSINATURA ANUAL<br />

25 €<br />

© Instituto <strong>de</strong> Cultura<br />

Ibero-<strong>Atlântica</strong> e autores<br />

dos textos e das fotografias<br />

www.revista-atlantica.com<br />

AGRADECE A GENEROSIDADE DOS AUTORES<br />

QUE TORNARAM POSSÍVEL ESTA EDIÇÃO.<br />

OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA EXCLUSIVA<br />

RESPONSABILIDADE DO[S] AUTOR[ES].<br />

Direcção Regional <strong>de</strong> Educação do Algarve<br />

Pagamento por cheque à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

Banco<br />

Cheque n.º<br />

Se quiser oferecer uma assinatura da <strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana ou recebê-la noutro local, por favor indique o nome e a morada para on<strong>de</strong> <strong>de</strong>seja que seja enviada.<br />

É garantida a confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong> dos dados.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!