"Maldizença" nos caminhos do sertão: Medo, violencia e ... - anpuh
"Maldizença" nos caminhos do sertão: Medo, violencia e ... - anpuh
"Maldizença" nos caminhos do sertão: Medo, violencia e ... - anpuh
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Resumo<br />
A "Maldizença" <strong>nos</strong> <strong>caminhos</strong> <strong>do</strong> <strong>sertão</strong>: me<strong>do</strong>, violência e morte na<br />
comunidade de Oiticica, Ibaretama Ceará (1950 – 2000)<br />
Francisca Eudesia Nobre Bezerra*<br />
Este artigo apresenta algumas reflexões sobre uma crença popular nas manifestações da<br />
morte, denominada por Maldizença, que influenciou o cotidiano da comunidade de<br />
Oiticica no município de Ibaretama no Sertão Central <strong>do</strong> Ceará, na segunda metade <strong>do</strong><br />
século XX. Ouvir a Maldizença significava que um momento de me<strong>do</strong> e tensão social se<br />
aproximava da comunidade, ou da circunvizinhança, e teria a morte como desfecho,<br />
geralmente violenta e sofrida. Em diálogo com as memórias buscamos compreender a<br />
relação dessa comunidade com o me<strong>do</strong>, a violência e a morte.<br />
Palavras-chave: Violência, Morte, Memória.<br />
Introdução<br />
Na segunda metade <strong>do</strong> século XX a comunidade de Oiticica 1 , distrito <strong>do</strong><br />
município de Ibaretama no Sertão Central cearense, é atemorizada por uma crença<br />
fundada na presença da morte. A crença é denominada pela comunidade por<br />
Maldizença, também conhecida por Choro ou Grito, que seria a percepção de vozes,<br />
choros, gritos e lamentos ouvi<strong>do</strong>s, mas imperceptível ao senti<strong>do</strong> da visão. Os mora<strong>do</strong>res<br />
acreditavam que ela seria a precursora da morte, e na maioria das vezes por algum tipo<br />
de violência. Quan<strong>do</strong> a Maldizença se apresentava logo começava certo me<strong>do</strong> no local<br />
temen<strong>do</strong> o que estaria por vir. É descrita como algo tão assusta<strong>do</strong>r que quem ouvia era<br />
toma<strong>do</strong> pelo pavor de ouvir tais agouros.<br />
Este artigo tem por objetivo refleti sobre a relação da comunidade com o me<strong>do</strong>,<br />
a violência e a morte. Neste senti<strong>do</strong> <strong>nos</strong> utilizamos das memórias de algumas pessoas<br />
que se dizem testemunhas <strong>do</strong>s agouros da Maldizença ou que sabem da sua existência<br />
através <strong>do</strong>s testemunhos de terceiros.<br />
*Mestranda em História e Culturas pela Universidade Estadual <strong>do</strong> Ceará, bolsista pela Coordenação de<br />
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.<br />
1 Oiticica tem uma população aproximada de 873 habitantes, foi cria<strong>do</strong> pela Lei Municipal 026 de 06 de<br />
fevereiro de 1990 e anexa<strong>do</strong> ao município de Ibaretama. Esta informação encontra-se no site:<br />
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/historicos_cidades/historico_conteu<strong>do</strong>.php?codmun=230526.<br />
consulta<strong>do</strong> em 17 de junho de 2009.
Ao falar, os narra<strong>do</strong>res transmitem o passa<strong>do</strong> de várias formas, não só através da<br />
voz, mas <strong>do</strong>s gestos, <strong>do</strong>s silêncios, <strong>do</strong> tom de voz etc. dão senti<strong>do</strong> a sua narrativa de<br />
acor<strong>do</strong> com a representação que fazem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e da vivência em sociedade.<br />
Apresentam-se como testemunhos de seu passa<strong>do</strong> e dão senti<strong>do</strong> a vida através <strong>do</strong><br />
trabalho de rememoração. A experiência de uma pessoa a torna um indivíduo único e<br />
singular, por aquilo que ele realmente viveu em <strong>nos</strong>sa história, e ouvi essa pessoa é ter a<br />
sensação de que a história está sen<strong>do</strong> contada em um contínuo, “temos a sensação de<br />
que as descontinuidades são abolidas e recheadas com ingredientes pessoais: emoções,<br />
reações, observações, idiossincrasias, relatos pitorescos.” (ALBERTI, 2004: 14).<br />
Os narra<strong>do</strong>res transmitiram suas experiências ao ouvir a Maldizença,<br />
demonstran<strong>do</strong> o me<strong>do</strong> que tomava conta de quem a escutava. A notícia de sua<br />
manifestação deixava apreensivos aqueles que ficavam saben<strong>do</strong>, pois isso significava<br />
que a morte estaria por perto, além da possibilidade de um possível momento de tensão<br />
em que a violência faria a vítima, ten<strong>do</strong> em vista que a Maldizença era o sinal de uma<br />
morte por “desgraça”, entendida como sen<strong>do</strong> uma morte sofrida e violenta.<br />
A Maldizença anuncian<strong>do</strong> a morte <strong>nos</strong> <strong>caminhos</strong> <strong>do</strong> <strong>sertão</strong><br />
A história ocidental da morte <strong>nos</strong> mostra claramente as mudanças e atitudes em<br />
relação à mesma, o que não difere em cada época e em cada lugar é o fato de que essas<br />
atitudes partem <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> me<strong>do</strong> em relação ao desconheci<strong>do</strong>, pois o homem ao<br />
longo da sua história sempre buscou de uma forma ou de outra compreender esse<br />
processo que interrompe o viver, independente de que forma o indivíduo viva, daí é que<br />
surgem as várias especulações em relação ao fim da vida. Céu, purgatório, inferno,<br />
sofrimento, me<strong>do</strong> etc. tu<strong>do</strong> isso permeou e permeia o imaginário da humanidade, e de<br />
uma forma ou de outra, ditou e dita regras, originan<strong>do</strong> mitos e crenças dan<strong>do</strong> asas a<br />
imaginação humana. Seja através das religiões, ou da própria cultura, a morte é presença<br />
viva na memória de indivíduo, grupos e sociedades, manifestan<strong>do</strong>-se de várias formas<br />
de acor<strong>do</strong> com a vivência de cada grupo, originan<strong>do</strong> atitudes sociais no cotidiano. 2<br />
2 Sobre a história da morte e as atitudes diante da mesma ver em: ARIÈS, Phillipe. História da Morte no<br />
Ocidente. Rio de Janeiro. Ediouro, 2003; ELIAS, Robert. A solidão <strong>do</strong>s moribun<strong>do</strong>s, segui<strong>do</strong> de<br />
envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001<br />
2
O distrito de Oiticica é composto pela sede, onde a Maldizença se apresentava, e<br />
por peque<strong>nos</strong> lugarejos e fazendas <strong>nos</strong> arre<strong>do</strong>res 3 . As relações estabelecidas giravam<br />
entorno das trocas de favores, de compadrio e da relação entre mora<strong>do</strong>res e fazendeiros<br />
tão características <strong>do</strong> coronelismo típico <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX, onde os mora<strong>do</strong>res<br />
viviam sob a tutela <strong>do</strong>s fazendeiros, poden<strong>do</strong> existir boas relações, desde que as regras<br />
fossem cumpridas, até momentos de hostilidade, resultan<strong>do</strong> às vezes na mudança <strong>do</strong><br />
mora<strong>do</strong>r por conta <strong>do</strong>s momentos de tensão tão comuns no <strong>sertão</strong>. Acrescenta-se a essas<br />
relações as práticas políticas tão fortes na região, que chegavam, assim como em outras<br />
partes <strong>do</strong> <strong>sertão</strong>, a ditar às regras sociais, as condutas, as manipulações etc. Foi<br />
exatamente neste espaço e neste contexto que a Maldizença atuou durante esse perío<strong>do</strong>.<br />
Uma das pessoas que <strong>nos</strong> falou sobre o assunto foi Dona Maria Faustino,<br />
conhecida por Maria <strong>do</strong> Oscar, uma narra<strong>do</strong>ra como poucos, que consegue transmitir<br />
por gestos e palavras as sensações e sentimentos passa<strong>do</strong>s, como quem por alguns<br />
instantes viaja no tempo e visualiza o acontecimento e o traz para seu presente naquele<br />
momento. A conversa aconteceu na presença de sua filha, na cozinha de sua casa. Foi<br />
uma conversa muito agradável, e para minha surpresa me bastou que perguntasse seu<br />
nome completo e pedisse autorização para gravar a conversa, para que ela me falasse<br />
durante uma hora sobre sua história de vida, em uma conversa bem agradável. Ao ser<br />
indagada sobre a Maldizença, de imediato muda o tom de voz demonstran<strong>do</strong> pavor só<br />
em falar sobre o assunto, ao mesmo tempo em que recorda faz o sinal da cruz como que<br />
por garantia de que ao falar não volte a ouvir o que ouviu algum tempo atrás. E assim<br />
relata sua experiência:<br />
Eu já ouvi minha fia, já ouvi. Nesse dia meu mari<strong>do</strong> tinha i<strong>do</strong> pra serra que ele<br />
caçava, aí quan<strong>do</strong> dava umas horas eu ficava ali pra saber, pra ouvir quan<strong>do</strong><br />
os cachorros latia, aí o Oscar já vinha descen<strong>do</strong> a Serra (...) aí eu ouvi: ai meu<br />
Deus, chama por tanto nome de santo, uma hora é choro de adulto, outra hora<br />
é choro de menino(...), sabe, outra hora é choro de ancião. Aí eu fui abrir a<br />
janela, quan<strong>do</strong> eu abrir a janela, ah! Passou 4 . Aí eu tinha uma cunhada minha<br />
3 Na sede foi inaugurada em 1942, pelo vigário Padre Luiz Braga Rocha, uma Igreja para Nossa Senhora<br />
<strong>do</strong> Perpétuo Socorro, padroeira <strong>do</strong> distrito. Foi construída a partir de <strong>do</strong>ações recebidas pela Igreja,<br />
inclusive <strong>do</strong> terreno onde está localizada. A terra <strong>do</strong>ada passou a ser designada pelos mora<strong>do</strong>res como<br />
Terra da Santa. Ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong>, alguns mora<strong>do</strong>res foram compran<strong>do</strong> terre<strong>nos</strong> na Terra da<br />
Santa e construin<strong>do</strong> suas casas ao re<strong>do</strong>r da Igreja, constituin<strong>do</strong> o que conhecemos hoje como sede <strong>do</strong><br />
distrito.<br />
4 A expressão “Ah! passou”, foi dita com rapidez e gestos, como que fosse algo que tenha passa<strong>do</strong> com<br />
extrema rapidez na frente de D. Maria, sen<strong>do</strong> que ela não conseguiu ver <strong>do</strong> que se tratava, ou quem era<br />
(m) os <strong>do</strong>no(os) das vozes que ouvia, como ela mesma afirma :”passa assim <strong>nos</strong> ares”.<br />
3
que morava na Bolandeira 5 (...) aí eu corri pra porta da frente, meus Deus<br />
será alguma coisa que está acontecen<strong>do</strong> pras banda de cá (...) valha meu<br />
Deus, minha Nossa Senhora, será que aconteceu alguma coisa com o Oscar,<br />
meu Pai <strong>do</strong> céu o Senhor vai me concentrar e eu vou ter com que esperar ele<br />
chegar. Aí ele chegou : - Oscar, hoje eu vi uma coisa tão feia que nunca vi, o<br />
choro que o povo sempre falava, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de cá - Oscar mais é horrível.<br />
Aí eu fui contar pra ele. – Ave Maria tu viu neguinha. – Oscar é horrível, quem<br />
tem coração fica toda arrupiada, é choro, aquela maldizença, se valhe de<br />
Deus, valhei-me Nossa Senhora, e chora, assim como se tivesse sentin<strong>do</strong> uma<br />
<strong>do</strong>r, aquela <strong>do</strong>r bem coisada né.(...) ninguém vê nada. Só que quan<strong>do</strong> ouvia<br />
essas coisas podia esperar choro, desgraça. 6<br />
Dona Maria Faustino <strong>nos</strong> mostra através de suas palavras, que a experiência de<br />
ouvir a Maldizença era algo permea<strong>do</strong> pelo me<strong>do</strong>, não apenas no momento em que se<br />
ouve, mas pelo que isso representava, nas palavras dela “choro e desgraça”, mas<br />
também pela incerteza <strong>do</strong> que estaria por vir.<br />
Agora quem <strong>nos</strong> fala é Dona Francisca, conhecida na comunidade por Dona<br />
Tica, uma senhora de 78 a<strong>nos</strong>, que <strong>nos</strong> recebeu com muita simpatia para uma conversa<br />
em sua residência. E assim ela <strong>nos</strong> relata:<br />
Agora ninguém ouve mais não, aquele povo choran<strong>do</strong>, conversan<strong>do</strong> no mei<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Eu num ouvi não, mas ouvi comentar né, mas é verdade(...) se<br />
maldizeno, aí meu Deus, ai meu Deus, assim to<strong>do</strong> tempo, a gente pensa que<br />
é uma pessoa, mas que é a Maldizença né, se chama Maldizença. (...)Diz<br />
que a pessoa se arrupeia. (...)Eu só vejo o pessoal dizeno que tem essas<br />
maldizença por aí. Eu nunca vi não, num vou dizer que ouvi, (...) mas era<br />
verdade. No dia que mataram o fina<strong>do</strong> acolá né, com poucos dias tinha<br />
aconteci<strong>do</strong> a Maldizença. Um sobrinho meu que o cara matou de faca.<br />
Apareceu a Maldizença: Tica essa noite era uma Maldizença acolá na rua<br />
eu queria que tu visse. Eu disse: ave Maria num quero nem saber. Tica a<br />
gente se arrupia todinha. (...) quan<strong>do</strong> foi na outra semana mataram ele, a<br />
morte mais forte que aconteceu aqui na Ibaretama foi a dele.(...) 7<br />
Dona Francisca nunca ouviu os agouros da Maldizença, no entanto ela fala com<br />
muita convicção de como as aparições aconteciam, as palavras pronunciadas pelos<br />
agouros, e o esta<strong>do</strong> de me<strong>do</strong> em que se encontravam os que ouviam. Nesse caso se torna<br />
mais evidente a influencia exercida pela Maldizença na vida cotidiana dessa<br />
comunidade no perío<strong>do</strong> em questão. Assim como os demais, ao falar sobre o assunto,<br />
5 Nome da rua onde está situa<strong>do</strong> o cemitério de Oiticica. Bolandeira é o nome da<strong>do</strong> a antiga máquina de<br />
descaroçar algodão. O que <strong>nos</strong> remete a própria história da rua que está intimamente ligada ao perío<strong>do</strong> de<br />
fartura <strong>do</strong> algodão no <strong>sertão</strong> cearense.<br />
6 Maria Faustino da Silva, aos 64 a<strong>nos</strong>, entrevista realizada em Oiticica, Ibaretama, Ceará, em 24 de julho<br />
de 2009.<br />
7 Francisca Carlos da Silva, aos 78 a<strong>nos</strong>, Entrevista realizada, em Oiticica, Ibaretama, Ceará, em 19 de<br />
maio de 2009.<br />
4
Dona Francisca de imediato já recorda a morte <strong>do</strong> seu sobrinho de nome Wilson,<br />
ocorrida a golpes de faca no ano de 1989, que foi prenunciada pela Maldizença.<br />
Podemos perceber claramente nas narrativas o pavor da experiência vivida e o<br />
me<strong>do</strong> entorno da ideia <strong>do</strong> fim da vida, pois não se fala da morte claramente, apenas da<br />
forma violenta em que ela se manifestou. Segun<strong>do</strong> Da Matta, falar <strong>do</strong>s mortos em<br />
detrimento da morte é uma realidade social no Brasil tornan<strong>do</strong>-se uma contradição a<br />
partir <strong>do</strong> momento que se falan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mortos “já é uma forma sutil e disfarçada de<br />
negar a morte” (DAMATTA, 1997: 103).<br />
Uma das mortes mais significativas para este estu<strong>do</strong> <strong>nos</strong> foi narrada em detalhes<br />
pelo Senhor Edson, que residiu em Oiticica na década de 1970, trabalhou na<br />
comunidade e circunvizinhança como policial militar responsável pela manutenção da<br />
ordem.<br />
Antes de nós chegar lá, tinham mata<strong>do</strong> um cara, você conhece o Raimun<strong>do</strong><br />
Queiroz?(...) na fazenda dele, ali pra dentro tem um lugar chama<strong>do</strong> de Oco,<br />
lá morava um casal, o pai e os irmãos da mulher moravam lá também né,<br />
parece que ele judiava muito com a mulher né, sei que mataro o miserave.<br />
lá <strong>nos</strong> mato, eles usam um pau pra lascar lenha com o macha<strong>do</strong> num<br />
sabe?O povo faz fogo a lenha né. Sei que se juntaro, os irmãos da mulher<br />
com o pai aí os <strong>do</strong>is pegaro o cara, o cunha<strong>do</strong>, seguraram, que eram novo,<br />
e o véi foi cortano ele naquele pau de cortar lenha, começou pelas pernas,<br />
subiu pelas pernas, sei que cortaro ele todim(...) ele vei pra cá num saco de<br />
estopa rapaz.(...) o véi foi quem matou, os filhos seguraram e ele matou, e<br />
ele se maldizeno né, até chegar as pernas ele se maldizeno e aguentano<br />
aguentano, passou pros braços, cortano, até morrer. E ele vivo só gritano:<br />
ai, ai ,ai. Ai esse ai, ai, ai ainda existia quan<strong>do</strong> nós chegamos lá, eu sai uma<br />
vez pra uma diligência aí minha mulher ficou, que morava lá também, ficou<br />
mais outra mulher né, aí disse: Chica o que é aquilo, já era quase onze<br />
horas da noite. Não <strong>do</strong>na Maria isso aqui aparece quase todas as noite<br />
aparece, é no espaço né, como se tivesse gritano assim: ai ai ai. 8<br />
A morte de Cosme Uchoa seria apenas mais uma, das tantas ocorridas no <strong>sertão</strong>,<br />
se não fosse apontada pelas memórias como sen<strong>do</strong> a morte que se tem notícia de que a<br />
Maldizença foi ouvida pela primeira vez. A partir de então boa parte das mortes que se<br />
sucederam foram anunciadas pela Maldizença, interferin<strong>do</strong>, mesmo que<br />
momentaneamente, no cotidiano da comunidade, uma vez que as pessoas ficavam<br />
apreensivas a espera de algum acontecimento que teria a morte como desfecho.<br />
8 Senhor Edson Queiroz, aos 76 a<strong>nos</strong>. Entrevista realizada em 26 se julho de 2010 em Quixadá.<br />
5
A experiência da comunidade com a morte durante sua história é de<br />
proximidade, o cemitério de Oiticica recebia boa parte <strong>do</strong>s sepultamentos da região. Nos<br />
atesta<strong>do</strong>s de óbitos <strong>do</strong> município 9 das décadas de 50 e 60, não tinham um só mês que<br />
não chegasse à comunidade um cortejo fúnebre. Observamos que a morte, por<br />
problemas de saúde, ocorria com bastante frequência, e os motivos cita<strong>do</strong>s são: parto,<br />
coração, enfraquecimento, congestão cerebral, febre intestinal, febre, inflamação,<br />
paludismo, causa desconhecida, enterite etc. a maioria das mortes eram de crianças. Nas<br />
décadas de 80 e 90 já se nota a presença, mesmo que em pequena quantidade, de outros<br />
motivos para a morte, atropelamento, perfuração à bala ou a faca.<br />
Um quadro de mortes bem diferente <strong>do</strong> descrito pelas memórias, ten<strong>do</strong> em vista<br />
que são mortes naturais e que a Maldizença não se manifestava com a mesma<br />
frequência com que se manifestava com as mortes violentas. As memórias vão de<br />
encontro com os processos criminais 10 <strong>do</strong> <strong>sertão</strong> central ocorri<strong>do</strong>s no perío<strong>do</strong>. Mortes<br />
trágicas, violentas e na maioria das vezes por motivos banais em situações de conflitos e<br />
tensões.<br />
A violência sempre foi comum <strong>nos</strong> confins <strong>do</strong> <strong>sertão</strong>. Em um estu<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong><br />
por Otaviano Vieira Junior, sobre a história da família no <strong>sertão</strong> <strong>nos</strong> séculos XVIII e<br />
XIX, mais precisamente de 1780-1850, através de cartas de viajantes que percorreram<br />
as terras cearenses, podemos ter a dimensão das relações estabelecidas e das formas de<br />
se resolver os conflitos, passan<strong>do</strong> bem a margem da lei, entre eles os crimes de morte<br />
com sentimentos de honra como formas de vinganças pessoais. (VIEIRA JUNIOR,<br />
2004). Apesar <strong>do</strong>s 100 a<strong>nos</strong> que separam essas temporalidades, essas práticas ainda<br />
eram frequentes no <strong>sertão</strong> <strong>do</strong> início da segunda metade <strong>do</strong> século XX.<br />
Outra pessoa que <strong>nos</strong> falou sobre a Maldizença foi Dona Maria nogueira,<br />
conhecida por Dona Baitinha. Foi uma conversa rápida na calçada de sua casa na<br />
presença de amigos, porém bastante significativa. E assim Dona Maria Nogueira relata a<br />
sua experiência em relação a Maldizença:<br />
Ai, ai, assim como se tivesse matano, lá pracolá onde houve aquela morte<br />
né, dentro daquela capoeira acolá, no tempo que houve umas morte que<br />
mataro o fina<strong>do</strong> Cosme to<strong>do</strong> rola<strong>do</strong> de foice, de facão (...) uma maldizença<br />
9 Os atesta<strong>do</strong>s de óbitos encontram-se no Cartório Brasilino de Freitas em Ibaretama Ce<br />
10 Esses processos criminais encontram-se no Fórum Dr. Francisco Holanda Frota em Ibaretama-Ce, e no<br />
Forum desembarga<strong>do</strong>r Avelar Rocha em Quixadá-Ce.<br />
6
daquela parece assim uma pessoa que ta matano outra, maltratano<br />
sabe?(...) aquela maldizença se maldizeno, ai, ai. Uma noite eu acordei o<br />
João. Vinha daquele la<strong>do</strong> ali <strong>do</strong> cajueiro, eu morava naquela casa perto <strong>do</strong><br />
cemitério. Uma vez eu vi aqui, bem pertim, essa foi pouco tempo, mas a de<br />
dentro da capoeira foi de passar um bom pedaço. Só eu ouvi nesse dia,<br />
quan<strong>do</strong> acordei o João e disse: tu ouviu aquela maldizença(...) num é nem<br />
na terra é assim no ar. No dia que a Elvira ouviu, Ave Maria, a Elvira foi na<br />
porta dela, a Elvira ouviu o choro. Oi aquela morte que houve aí, já houve<br />
muita morte aqui nessa Oiticica, houve uma aí, houve outra ali na<br />
calçada(...) aquela morte dali(...) e essa daí eu ia saino da Igreja(...) era o<br />
fina<strong>do</strong> Virgílio, você num conheceu não, muier mataro ele aí e a véa em<br />
cima, a mãe dele em cima pedin<strong>do</strong>, parecia um boca<strong>do</strong> de cachorro<br />
agarra<strong>do</strong> chega a poeira cobria e a faca(...) era bem três. Ele veio acabar<br />
de morrer dentro dessa casa acredita? Ainda correu. 11<br />
Vale salientar que a Maldizença já se manifestou em alguns casos de mortes por<br />
outros motivos, mas geralmente ela aparecia <strong>nos</strong> casos de mortes violentas. Podemos<br />
observar essa relação claramente nas palavras de D. Maria Nogueira, ela começa<br />
falan<strong>do</strong> sobre a Maldizença e de repente muda o assunto para as mortes violentas<br />
presenciadas por ela e que foram anunciadas pela Maldizença.<br />
E os mortos voltam ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vivos<br />
Com a criação <strong>do</strong> purgatório a Igreja católica cria um terceiro local para as<br />
almas peca<strong>do</strong>ras que possam ter a chance de regeneração e buscar o reino <strong>do</strong>s céus,<br />
nesse senti<strong>do</strong> as almas puras receberão as bênçãos <strong>do</strong> paraíso irão para o céu, às sem<br />
perdão irão penar eternamente no fogo <strong>do</strong> inferno suportan<strong>do</strong> suas terríveis penas, e<br />
aquelas com chances de regeneração serão encaminhadas para o purgatório. Como<br />
terceiro local cria<strong>do</strong> pelo ocidente cristão, o purgatório passa por algumas<br />
transformações ao longo <strong>do</strong> tempo de acor<strong>do</strong> com as concepções religiosas de cada<br />
época. (VOVOLLE, 2010)<br />
Dentro dessa perspectiva as almas <strong>do</strong> purgatório não teriam ainda um destino<br />
defini<strong>do</strong> ou ganha<strong>do</strong> à graça da misericórdia divina e teriam a chance de regeneração<br />
para a expiação de seus peca<strong>do</strong>s, nesse senti<strong>do</strong> transitariam entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mortos e<br />
o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vivos, e assim no imaginário cristão, os mortos passam a viver diante de<br />
nós até que consiga a sua liberação definitiva <strong>do</strong> corpo físico. Teriam dessa forma algo<br />
para resolver com as pessoas de seu convívio e a comunidade da qual fez parte.<br />
11 Maria Nogueira Viana, aos 68 a<strong>nos</strong>. Entrevista realizada em Oiticica, Ibaretama, Ceará, julho de 2009.<br />
7
Esse encontro é temi<strong>do</strong>, pois de um folclore para o outro, mesmo que haja<br />
exemplos de defuntos indulgentes, há muito mais casos de mortos<br />
reivindicativos, que solicitam as ajudas e prestações- ou as orações <strong>do</strong>s<br />
vivos – para que possam finalmente “soltar-se” <strong>do</strong>s laços que os detêm,<br />
como há também, os mortos simplesmente agressivos, sanguinários até. O<br />
morto agarra o vivo e tenta leva-lo com ele para aplacar alguma vingança<br />
obscura. Daí a multiplicidade de gestos “mágicos”, como se dirá, com as<br />
quais a antemorte (os presságios), a agonia e a passagem, assim como a<br />
sepultura, e mais ainda a pós-morte, são cercadas quan<strong>do</strong> se trata de<br />
apaziguá-los, ou mantê-los a distância mediante oferendas ou prestações.<br />
”(VOVELLE, 2010: 31)<br />
A presença <strong>do</strong>s mortos reivindican<strong>do</strong> orações e pagamento de promessas é algo<br />
que permeia a tradição nordestina (CASCUDO, 2002), assim como também existem<br />
indícios em outras épocas e sociedades, não apenas de mortos pedin<strong>do</strong> orações, mas<br />
também <strong>do</strong>s mortos sanguinários que retornariam para pedir vingança pela sua morte e<br />
muitas outras reivindicações, fazen<strong>do</strong> surgir várias crenças e superstições entorno da<br />
aparição <strong>do</strong>s mortos. (VOVELLE, 2010)<br />
Em Oiticica essas aparições são comuns, como nas demais regiões <strong>do</strong> Ceará,<br />
além da Maldizença outras formas de manifestações da morte e <strong>do</strong>s mortos podem ser<br />
notadas com muita nitidez.<br />
Essa dita Maria da Ana que é minha prima, ela era pequena foi embora<br />
para Banabuiú, (...) e lá ela começou a ver uma senhora pedin<strong>do</strong> a ela pra<br />
vim tirar um terço aqui na Igreja de Nossa Senhora <strong>do</strong> Perpétuo socorro<br />
(...) aí a mãe dela disse: minha fia. Mãe ela já veio três vez, duas vezes ela<br />
veio em sonho, mas agora eu vi foi ela mesmo me pedin<strong>do</strong> pra mim ir, mãe<br />
se a mãe for. Ela disse: minha fia você tem que ir também. Vou mãe. Ela<br />
veio pediu a madrinha Mundinha pra tirar o terço. E a madrinha Mundinha<br />
disse que ela era to<strong>do</strong> tempo assustada (Maria), só que a Madrinha<br />
Mundinha num via, aí rezou o terço, aí foi a pessoa falou (para Maria): eu<br />
sou irmã <strong>do</strong> Chico Liberato (...) aí deu o nome dela todinho, disse pra<br />
Maria quem era. Aí quan<strong>do</strong> ela terminou de rezar ela deu os<br />
agradecimentos a ela , desapareceu e nunca mais apareceu.”(MARIA<br />
FAUSTINO, 2009)<br />
Na tradição popular atender aos pedi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mortos é ajudá-los na caminhada<br />
pela expiação <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s e, ao mesmo tempo, ficar de bem com aquele espírito que<br />
continua preso ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vivos na busca <strong>do</strong> seu caminho.<br />
Mas e quanto a Maldizença, o que estaria por trás desses agouros de acor<strong>do</strong> com<br />
o imaginário destas pessoas? Várias são as especulações sobre a Maldizença e seus<br />
objetivos, mas to<strong>do</strong>s estão de comum acor<strong>do</strong> sobre a volta <strong>do</strong>s mortos para buscar ou<br />
8
pedir algo para os vivos, o que varia são os objetivos da volta, pois para cada tipo de<br />
morte poderia acontecer um tipo de reivindicação.<br />
O pessoal falava que foi gente que morreu de agonia, até mulher de parto<br />
alguma coisa assim né, por que chama muito por socorro, aí você sabe que<br />
a pessoa que se ver numa aflição o quê que faz: socorro, socorro e a pessoa<br />
que morre afoga<strong>do</strong> chama por socorro. (MARIA FAUSTINO, 2009)<br />
A forma como a morte aconteceu indicaria o grau de sofrimento pelo qual<br />
passou a pessoa, e esse sofrimento seria expresso através <strong>do</strong>s agouros da Maldizença,<br />
anuncian<strong>do</strong> outras formas de sofrimento que seriam as mortes violentas, ou as de causas<br />
não naturais. Dona Maria Faustino acredita que esses espíritos continuam vagan<strong>do</strong> até<br />
encontrarem a misericórdia divina, ou seja, seriam almas <strong>do</strong> purgatório que ainda teriam<br />
trânsito livre entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mortos e o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vivos.<br />
De fato os registros históricos <strong>do</strong> ocidente cristão apontam para crenças<br />
atestadas no início <strong>do</strong> primeiro milênio de <strong>nos</strong>sa era que ainda permaneciam vivas na<br />
metade <strong>do</strong> século XX, quan<strong>do</strong> se acreditava que os mortos <strong>do</strong> mar, vítimas de<br />
afogamentos, estavam condena<strong>do</strong>s a vagarem até que a Igreja orasse por eles, pois<br />
vagam por não terem ti<strong>do</strong> uma sepultura de fato, da mesma forma acreditava-se que<br />
“to<strong>do</strong>s aqueles que não se havia beneficia<strong>do</strong> de um falecimento natural e, portanto,<br />
tinham efetua<strong>do</strong> em condições anormais a passagem da vida a morte” (DELUMEAU,<br />
2010: 136).<br />
Para <strong>do</strong>na Tica: “isso é os que morre que fica pelo mei <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se maldizeno”<br />
(FRANCISCA, 2009) Nesse caso ela evoca a situação das almas <strong>do</strong> purgatório citadas<br />
anteriormente, que não se desprenderam totalmente da vida terrena e vagam em busca<br />
de socorro para a expiação <strong>do</strong>s seus peca<strong>do</strong>s.<br />
Vejamos outra opinião: “acho que aquilo ali não é coisa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não né, é<br />
alguma coisa que vem atacada por alguma coisa, num é de Deus não né, Deus num vai<br />
botar o que é ruim no mun<strong>do</strong> não né, Deus não pratica nada ruim, nós é quem pratica”<br />
(MARIA NOGUEIRA, 2009). Para ela isso jamais poderia ser coisa de Deus, pois não<br />
trás o bem, só prever o que é ruim, a partir <strong>do</strong> momento que espalha o me<strong>do</strong> e anuncia a<br />
morte, tida aqui como ruim, pelo fato que essa morte precede um ato de violência, ou<br />
em alguns casos uma morte que não é natural.<br />
9
A partir de uma breve análise da narrativa <strong>do</strong> Sr. Edson, tu<strong>do</strong> leva a crer que a<br />
voz que deu início aos agouros da Maldizença é a de Cosme Uchoa no momento de sua<br />
morte trágica, a partir desta, outras vozes de quem morria no sofrimento trágico o<br />
acompanharam e passaram a avisar aos vivos sobre as mortes violentas que estariam por<br />
vir.<br />
De uma forma ou de outra, to<strong>do</strong>s estão de acor<strong>do</strong> que a Maldizença é fruto das<br />
vozes das almas daqueles que morreram vítimas de mortes violentas e que não<br />
conseguiram a graça divina de entrar no Céu passan<strong>do</strong> a vagar na terra, a pedir graças<br />
ou mesmo para assustar aos vivos.<br />
Falar da morte como algo que traz um fim para a vida é enveredar por um<br />
mun<strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong> em que o me<strong>do</strong> em determinada circunstâncias chega a ditar<br />
atitudes, costumes, crenças etc. entorno <strong>do</strong> desconhecimento <strong>do</strong> pós morte:<br />
De fato, a falta <strong>do</strong> tempo para que o infeliz narrasse aos vivos o que<br />
deveriam fazer recobre significativamente toda uma contextura social de<br />
atitudes perante a morte e os mortos. A esse respeito, ritos diversos<br />
compunham o cerne de comportamentos relevantes, denuncian<strong>do</strong><br />
obrigações <strong>do</strong>s vivos para com os mortos e suas almas, aspectos que<br />
elucidam a visão sobre a vida e a morte, como também sobre o além,<br />
elementos presentes na cultura fúnebre e desse mo<strong>do</strong> imbricadas no<br />
cotidiano social.” (SANTOS, 2009)<br />
Quan<strong>do</strong> esse me<strong>do</strong> está associa<strong>do</strong> a mortes violentas ele passa a ter uma<br />
dimensão bem maior, pois a violência em si gera tensão social, que já é uma situação de<br />
me<strong>do</strong>, juntan<strong>do</strong>-se a isso todas as crenças, costumes e ritos que perpassaram pela<br />
história da humanidade de geração a geração e que sofrem apenas algumas<br />
modificações de época para época e de lugar para lugar<br />
. Em Oiticica a morte influenciou bastante a vida das pessoas no perío<strong>do</strong><br />
estuda<strong>do</strong>, não apenas com os agouros da Maldizença, mas pelas variantes de sua<br />
aparição. As tensões sociais que espalhava a onda de me<strong>do</strong> geralmente trazia a morte<br />
consigo, essa morte, tida como ruim pelas circunstancia em que ocorriam, aguçava as<br />
representações que se tinha da mesma, fazen<strong>do</strong> com que a comunidade toda moldasse, a<br />
partir da sua experiência, as suas representações da morte.<br />
Pelos depoimentos, uma série de sentimentos e atitudes se confunde diante da<br />
possibilidade da presença da morte e da forma utilizada por ela para se manifestar. Algo<br />
10
aterroriza<strong>do</strong>r, que chega para anunciar o mal, pois neste caso a morte é o mal, por trazer<br />
consigo o anúncio de uma situação de tensão que se abateria sobre a comunidade ou<br />
adjacências. Esse anúncio modificava o cotidiano daqueles que ouviam os rumores da<br />
aparição espalhan<strong>do</strong> o me<strong>do</strong>, pois algo estaria por acontecer, e aí surgiam as indagações,<br />
o que estará por acontecer? Quem estará envolvi<strong>do</strong> neste possível episódio envolto pela<br />
violência? Será da família, amigo, vizinho ou desconheci<strong>do</strong>? Já se pode imaginar a<br />
fragilidade em que algumas pessoas se encontravam nessa situação, pois o me<strong>do</strong> de<br />
perder a vida ou um ente queri<strong>do</strong>, por morte natural e em maior escala pela violência,<br />
permeava a imaginação. Esse “me<strong>do</strong> é aqui o hábito que se tem, em um grupo humano,<br />
de temer tal ou tal ameaça (real ou imaginária)” (DELUMEAU, 2009: 32)<br />
Considerações finais<br />
A vida no <strong>sertão</strong>, sobretu<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong>, ainda era marcada<br />
fortemente pela violência tão típica da vida sertaneja descrita pelos memorialistas <strong>do</strong><br />
século XIX 12 . A vingança era responsável por boa parte <strong>do</strong>s crimes de morte, que<br />
geralmente ficava sem a punição da lei oficial por conta da falta desta <strong>nos</strong> confins <strong>do</strong><br />
<strong>sertão</strong> em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX. A lei era constituída pelo mais forte, que no caso da<br />
região em questão, ficava a cargo <strong>do</strong> poder político.<br />
Na região da Serra azul, essa violência deixou como resulta<strong>do</strong> uma série de<br />
mortes violentas, que permaneceram na memória social <strong>do</strong> lugar, e, por conseguinte<br />
influenciaram na crença da Maldizença. Esta por sua vez, espalhou o me<strong>do</strong> e ditou<br />
comportamentos. Suas aparições, tidas como presságios, eram interpretadas como o<br />
anúncio da morte geralmente trágicas, este fato era suficiente para que a comunidade<br />
ficasse apreensiva temen<strong>do</strong> algum acontecimento que tivesse como desfecho a morte de<br />
alguém.<br />
A experiência com a morte em Oiticica ocorria com uma frequência muito<br />
grande, pois era onde estava situa<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s poucos cemitérios que existia na região,<br />
12 Ver em: VIEIRA JÚNIOR. Antonio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: uma história da família<br />
no <strong>sertão</strong> (1780-1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha. HUCITEC, 2004. JUCA, José. Crimes<br />
celebres no Ceará. In: Revista <strong>do</strong> Instituto <strong>do</strong> Ceará. Ano XXVIII, Tomo 28, 1914. Acervo IHAC.<br />
11
portanto era comum a comunidade presenciar cortejos fúnebres que chegavam à<br />
comunidade. Não apenas de mortes violentas, mas de to<strong>do</strong> e qualquer motivo.<br />
Essa aproximação com a morte e a presença da Maldizença influenciou nas<br />
representações da morte. Tida como o momento final da vida a morte é temida tanto por<br />
não se saber o que acontece depois, quanto pela associação que é feita da morte com a<br />
<strong>do</strong>r e o sofrimento. Nesse caso, para alguns, as vozes da Maldizença representaria esse<br />
sofrimento das almas daqueles que não conseguiram a salvação e vagueiam pelo mun<strong>do</strong><br />
em busca de oração. Nesse senti<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vivos também comportaria<br />
paralelamente o terceiro local, ou seja, uma espécie de purgatório, onde as almas que<br />
tiveram a chance de regeneração estariam a vagar em busca de ajuda para a sua<br />
salvação. Para outros essas vozes, choros e lamentos, são ecos das almas sem salvação<br />
que já padecem no inferno, e que retornam para tirar o sossego <strong>do</strong>s vivos, anuncian<strong>do</strong><br />
ondas de violência e morte.<br />
De uma forma ou de outra, essas construções da memória surgem das<br />
experiências vividas por essas pessoas, que as interpretam e dão um senti<strong>do</strong> a essas<br />
representações, que por sua vez passam a fazer parte <strong>do</strong> sistema de ideias e simbologias<br />
que movem a vida cotidiana.<br />
Não buscamos durante o perío<strong>do</strong> da pesquisa a veracidade ou não de tais<br />
aparições, até mesmo porque já é sabi<strong>do</strong> que a verdade não existe da forma acabada<br />
como muitos pensavam em tempos anteriores, mas que existem versões diferenciadas<br />
para o mesmo fato. Buscamos sim compreender como essas pessoas percebiam esses<br />
fatos e como eram processa<strong>do</strong>s em suas memórias, ten<strong>do</strong> em vista que o produto desse<br />
processo vai influenciar no sistema de crenças que pautam a existência social da<br />
comunidade.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora<br />
FGV, 2004.<br />
ARIÈS, Phillipe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro. Ediouro, 2003<br />
CASCUDO,Luiz da Câmara. Superstição no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Global, 2002.<br />
12
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.<br />
Rio de Janeiro: Rocco, 1997.<br />
DELUMEAU. Jean. História <strong>do</strong> me<strong>do</strong> no ocidente. 1300-1800 Uma cidade sitiada;<br />
tradução: Maria Lúcia Macha<strong>do</strong>; tradução de notas: Heloisa Jahn. – São paulo:<br />
Companhia das Letras, 2009.<br />
ELIAS, Nobert. A solidão <strong>do</strong>s moribun<strong>do</strong>s, segui<strong>do</strong> de envelhecer e morrer. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001<br />
FREYRE, Gilberto. Assombrações <strong>do</strong> Recife Velho. Rio de Janeiro:Record, 1987<br />
JUCA, José. Crimes celebres no Ceará. In: Revista <strong>do</strong> Instituto <strong>do</strong> Ceará. Ano<br />
XXVIII, Tomo 28, 1914. Acervo IHAC.<br />
PORTELLI, Alessandro. O que faz a História Oral diferente. Projeto História. São<br />
Paulo, (14), fevereiro 1997<br />
SANTOS, Cícero Joaquim <strong>do</strong>s. No entremeio <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s: tessituras da morte da<br />
Rufina na tradição oral/ Cícero Joaquim <strong>do</strong>s Santos. - 2009<br />
VIEIRA JÚNIOR. Antonio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: uma história da<br />
família no <strong>sertão</strong> (1780-1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha. HUCITEC, 2004<br />
VOVELLE, Michel. As almas <strong>do</strong> purgatório ou o trabalho <strong>do</strong> luto. Tradução, Aline<br />
Meyert e Roberto Cattani. – São Paulo: Editora UNESP, 2010.<br />
13