You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
De verso em verso se faz o universo.<br />
A poesia popular vem de tempos imemoriais, dos<br />
beduínos nômades, dos mouros, dos ciganos avoengos,<br />
de andarilhos errantes que para afugentar a solidão do<br />
ermo cantavam para as estrelas, da península ibérica<br />
espraiando-se pelas terras do Novo Mundo, dizem. Eu<br />
digo que a poesia nasceu na caverna quando o macaco<br />
em mutação, já mais homem do que símio, querendo<br />
fazer à côrte a trogloditazinha simpática cantou-lhe o<br />
primeiro verso e com esse artifício meloso ganhou a<br />
primeira "mina". Aqui no Brasil me parece que a<br />
poesia chegou junto com as naus cabralinas e segundo<br />
depoimento do escrivão (bajulador e dedo duro) da<br />
frota, o nosso velho conhecido Pero Vaz de Caminha,<br />
para facilitar a aproximação dos invasores com os<br />
habitantes da terra recém descoberta (?) foi<br />
encarregado de engabelar os nativos um tal de Diogo<br />
Dias que se fez acompanhar de um gaiteiro "e meteuse<br />
com eles (os índios) a dançar, tomando-os pelas<br />
mãos”.<br />
(Continua na segunda contra capa)
Ah! Que Saudade Danada<br />
do Sertão de Antigamente.<br />
Autor: MIANOEL MONTEIRO<br />
(Membro da Academia Brasileira<br />
de Literatura de Cordel)<br />
Saudade não mata gente<br />
Porque se fosse verdade<br />
Eu já teria morrido<br />
De tristeza na cidade,<br />
Mas quando a saudade acossa,<br />
Fecho os olhos, volto à roça,<br />
Subtraindo a idade.<br />
Vejo o casarão do sítio<br />
Com sua grande janela,<br />
Seus portais de aroeira,<br />
A porta larga, a tramela,<br />
O banco onde me sentei,<br />
A sala donde escutei<br />
Muitas cantorias nela. 01
O pote numa forquilha,<br />
Os copos numa mesinha,<br />
Entre o corredor, os quartos,<br />
Que chamavam camarinha,<br />
Na frente um vasto terreiro,<br />
Atrás de casa, um poleiro<br />
Dormitório pra galinha.<br />
Lembro os pássaros cantando<br />
Nas tardinhas de verão,<br />
O xexéu, o bem-te-vi,<br />
O concriz, o azulão,<br />
O canarinho romântico<br />
Musicando com seu cântico<br />
A catedral do sertão.<br />
O chôro do juriti,<br />
O tiziu que faz, tiziu,<br />
O nhambu chamando a fêmea<br />
Que o caçador feriu,<br />
A barulhenta algazarra<br />
De um bando de gangarra<br />
Só sabe contar quem viu. 02
Lembro o balanço da rede<br />
No alpendre da vivenda,<br />
Nosso pedaço de terra<br />
Que alguns chamavam fazenda,<br />
O perfume da coalhada,<br />
Odor de terra molhada,<br />
Profuso cheiro de venqa.<br />
Pois a vendinha cheirava<br />
A fumo de rolo e gás,<br />
Açúcar preto, tempero,<br />
Creolina e aguarrás,<br />
Pão doce, confeito e brote,<br />
Cânfora, loção, "cocorote"<br />
Cheiros que não sinto mais.<br />
Venda, armazém ou bodega,<br />
Quitanda, ou mercearia,<br />
Tinha na frente um alpendre<br />
Onde a lorota corria,<br />
Ao lado, cerca e curral,<br />
Pra deixar o animal<br />
Enquanto o dono bebia. 03
A bodeguinha de sítio<br />
Cheirava a cocada e bolo,<br />
Alfinim e mariola,<br />
Aliado e pão criolo,<br />
Cana, gasosa espumante<br />
E rapadura gigante<br />
Maior de que um tijolo.<br />
Café crú, piaba seca,<br />
Óleo de coco e linhaça,<br />
Pucha-pucha, mel de engenho,<br />
Naftalina pra traça,<br />
Enchôfre para coceira<br />
Cheirava e hoje não cheira<br />
Não sei o que é que se passa.<br />
Bacalhau amarelinho<br />
Que vinha do estrangeiro,<br />
De gorda a charque deixava<br />
Ficar pingando o graxeiro<br />
E quando assada na brasa<br />
A meia légua da casa<br />
A gente sentia o cheiro. 04
Torresmo pra tira-gosto,<br />
Ribaçã, caga-sebito,<br />
Toucinho e tripa salgada<br />
Pendurada num cambito,<br />
Carne de sol bem curtida,<br />
Banha de porco batida<br />
Para fazer ovo frito.<br />
Queria ser outra vez<br />
O matutinho inocente<br />
Para voltar a bodega<br />
E comprar de novamente<br />
Um docinho quebra-queixo<br />
Seco e duro como um seixo<br />
Mas de sabor excelente.<br />
Fora as coisas de comer<br />
Que cheiravam pra danado<br />
As bodeguinhas do sítio<br />
Tinham estoque variado,<br />
De um tudo se encontrava<br />
Só não tinha o que faltava<br />
E além do mais, fiado. 05
O estoque tinha coisa<br />
Que você nem acredita:<br />
Rouge pra pintar a cara<br />
E a moça ficar bonita,<br />
Vaselinha e sabonete,<br />
Retróz, viés e colchete,<br />
Talco, pó-de-arroz e fita.<br />
O bodegueiro dispunha<br />
De ilhós, dedal, botão,<br />
Marrafa para cabelo,<br />
Manga para lampião,<br />
Chapéu de palha e abano<br />
Pra pagar no fim do ano<br />
Com a safra de algodão.<br />
Cajuina e vinho tinto,<br />
Misturada e cana pura,<br />
Sal grosso, açúcar cristal,<br />
Bico e linha de costura,<br />
Esmeril, pedra de mó,<br />
Martelo, escopro e enxó,<br />
Dobradiça e fechadura. 06
Arame farpado e grampo,<br />
Rapé, cachimbo e piteira,<br />
Sabão em barra e anil,<br />
Capa de cangalha, esteira,<br />
Xarope, arnica e cachete,<br />
Facão, faca e canivete,<br />
Corda, cordão e ponteira.<br />
loiô, pião, baladeira,<br />
Linha fiada no fuso,<br />
Cebo pra cocão de carro<br />
Coisa que já não tem uso,<br />
Chumbeiro, chumbo, espoleta,<br />
Lousa, tinteiro e caneta,<br />
Prego, porca e parafuso.<br />
Penico pra mijar dentro,<br />
Quartinha, alguidar, panela,<br />
Pegador de brasa, abano,<br />
Bule, chaleira e tijela,<br />
Buranhém, relho e chicote,<br />
Ferro de cova e serrote,<br />
Cesto, caçuá, gamela. 07
Tarrafa pra pescador,<br />
Pavio pra Iamparina,<br />
Brinco para enfeitar moça,<br />
Para rapaz, brilhantina,<br />
Ferramenta para a roça,<br />
Pra homem, mescla da grossa,<br />
Para mulher, seda fina.<br />
Tinha para os animais<br />
Cabresto, peia e chocalho,<br />
Pra temperar a panela<br />
Colorau, cebola e alho,<br />
Pra vestir, brim e “voaI”,<br />
Pra comer, farinha e sal,<br />
Pra jogar, dado e baralho.<br />
Pano preto pra mortalha<br />
E vestido pra viúva,<br />
Veneno pra fumigar<br />
Formiga preta e saúva,<br />
Foice, estrovenga e enxada<br />
Pra cavar terra molhada<br />
Quando era tempo de chuva. 08
As refeições eram feitas<br />
Na nossa sala de janta<br />
Ao redor de u'a mesa<br />
Aonde cabia tanta<br />
Gente que dava uma festa,<br />
Ao recordar, sinto esta<br />
Saudade que me acalanta.<br />
Lembro o gosto de buchada,<br />
De capão e de cevado,<br />
Carne seca, queijo e mel,<br />
Milho verde cozinhado,<br />
Bolo de goma, pipoca,<br />
Umbusada, tapioca,<br />
Cabrito novo torrado.<br />
Eu lembro que o meu pai<br />
Sempre, sempre repetia<br />
Que na casa do bom homem<br />
Só quem trabalhou comia;<br />
Comeu? "Ganhou" o roçado,<br />
Por isso inda estou lembrado<br />
Dos serviços que fazia. 09
Vejo-me de calças curtas<br />
De camisa aberta ao peito<br />
Correndo no campo verde<br />
Levando os ramos a eito,<br />
Nas moitas de gitirana<br />
Procurando o mel bacana<br />
Que o capuxu tinha feito.<br />
Chupando cana caiana,<br />
Comendo condessa e pinha<br />
Rebanhando criação<br />
Quando a noite morna vinha,<br />
Botando milho de molho<br />
Para depois de zarolho<br />
Fazer cuscuz e farinha.<br />
Trançando cerca de vara<br />
Pregando arame farpado<br />
Roçando mato de foice<br />
Para formar o roçado,<br />
Vejo-me pé-ante-pé<br />
Surpreendendo guiné<br />
Para fazer um guisado. 10
Ouço alpercata rangindo<br />
Nas pedras do taboleiro<br />
Porque era entremeada<br />
Com catemba de coqueiro,<br />
O seu chiado era a prova<br />
De que a "bicha" era nova<br />
E o dono tinha dinheiro.<br />
Vejo-me de riso largo<br />
Com alguns cobres na mão<br />
Proveniente da venda<br />
De mamona e de algodão,<br />
Dum borrego, ou dum novilho,<br />
De umas cuias de milho,<br />
Dum couro de criação.<br />
Por falar em criação<br />
A dor da saudade aumenta<br />
Lembrando o tempo que tinha<br />
Uma tesão violenta<br />
E para a crise passar<br />
O jeito era namorar<br />
Novilha, cabra e jumenta. 11
Ah! que saudade que tenho<br />
Da primeira namorada,<br />
Do primeiro envolvimento,<br />
Da primeira fornicada<br />
Sobre um colchão de capim<br />
Como não achei ruim<br />
Caí de vez na putada.<br />
O Sertão tem tais encantos<br />
Que só sabe quem conhece,<br />
A quietude da noite,<br />
Ou quando o dia amanhece,<br />
O passaredo cantando<br />
Mesmo a gente se afastando<br />
Fica velho e não esquece.<br />
Lá meninote já sabe<br />
Retirar mel de abelha<br />
Encontrar o barro certo<br />
Pra fazer tijolo e telha,<br />
Trançar relho de estalo<br />
Botar passada em cavalo<br />
Pastorar bode e ovelha. 12
Localizar onde tem<br />
Batata de umbuseiro<br />
Fazer lanche de resina<br />
Comer fruta de facheiro,<br />
Fazer festa com roqueira,<br />
Atirar de sovaqueira,<br />
Amansar bicho treiteiro.<br />
Pegar água no barreiro<br />
Com uma lata furada<br />
Catar algodão ao sol<br />
Limpar mato de enxada,<br />
Fazer aceiro de broca,<br />
Raspar, sevar mandioca<br />
Para fazer farinhada.<br />
O algodoal adulto<br />
Era preciso podar<br />
A esse mister a gente<br />
Chamava de "decotar",<br />
Isso renovava as plantas<br />
São tantas lembranças, tantas,<br />
Que embargo a voz ao falar. 13
No meu cavalo de pau<br />
Fazia vez de vaqueiro<br />
E passava o dia todo<br />
Correndo pelo terreiro,<br />
O gado era inexistente<br />
Mas eu tinha em minha mente<br />
Ser um grande fazendeiro.<br />
Lembro-me dum lobisomem<br />
Que "assombrava" a vizinha,<br />
O marido o tocaiou<br />
Deu-lhe um tiro na espinha,<br />
Foi ver do que se tratava<br />
Era um compadre que estava<br />
Rondando sua velhinha.<br />
Lembro e "morro" de saudade<br />
Das festas de São João,<br />
Do xem-xem do oito baixos,<br />
Da poeira do salão,<br />
Dos rapazes na disputa<br />
De rebocar a matuta<br />
Pra chamegar no oitão. 14
Lembro o catecismo velho<br />
Volto as noites de novena<br />
Ouço os benditos cantados<br />
Deixando a alma serena;<br />
No nosso oratório tosco<br />
Tinha Maria e Dom Bosco,<br />
Pedro, Jesus, Madalena.<br />
Um quadro de Padre Cícero<br />
Com seu chapéu, seu cajado,<br />
Uma estampa de São Jorge,<br />
São Sebastião fIechado,<br />
Um Bento de algodão<br />
Que o Santo Frei Damião<br />
Tinha-me presenteado.<br />
Sobre um castiçal de bronze<br />
A luz da vela dançando<br />
Alumiava um calunga<br />
Ao Deus Menino imitando;<br />
Os velhos rezando em coro,<br />
A moçada no namoro<br />
E as promessas chegando. 15
Era um peditório ao Santo<br />
Do Santo se aborrecer<br />
Porque a gente pedia<br />
Pra chover e não chover;<br />
Chover pra planta ser feita<br />
E não chover, na colheita,<br />
Pra o grão não apodrecer.<br />
Vejo esse filme passando<br />
Na tela da mocidade<br />
Que se foi há muito tempo<br />
E hoje só por maldade<br />
Com inusitada ira<br />
De quando em quando me atira<br />
Uma pedra de saudade.<br />
O tempo não volta mais<br />
Estou farto de saber,<br />
Quem lembra sofre de novo<br />
Repetindo o padecer<br />
E quando a saudade rói<br />
Causa uma dor que não dói...<br />
Mas sinto a peste doer. 16
(continuação)<br />
Nesse momento os índios foram apresentados pela<br />
primeira vez a poesia lusitana, e gostaram, pior para<br />
eles porque aceitando a música e os versos de Diogo e<br />
seu gaiteiro começaram a "tomar" onde a<br />
trogloditazinha tomou. Mas, não é disso que quero<br />
falar e sim da evolução que a poesia teve desde aquele<br />
dia que "nasceu" aos pés do Coroa Vermelha até aqui.<br />
Foi boa semente plantada em terra fértil. O Nordeste é<br />
pátria mãe dos versos e das rimas. Teve tempos<br />
áureos e teve debacles, hoje está ressurgindo das<br />
cinzas, florescendo e frutificando. É a Editora<br />
Tupynanquim, em Fortaleza, a resistência dos<br />
"mauditos", em Juazeiro e Crato, a Hedra e a Luzeiro,<br />
em São Paulo, a Ferreira Studio Gráfica e Editora no<br />
Rio de Janeiro e incontáveis editores independentes<br />
que fazemos este benfasejo renascimento. Parabéns<br />
aos que estão de reconstruindo esse universo de<br />
sonhos, onde a argamassa é a beleza e o<br />
encantamento, e o alicerce é a palavra iluminada que<br />
só ao poeta cabe o direito de acender.<br />
Abril de 2003<br />
Manoel Monteiro