Edição 99 - Jornal Rascunho
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<strong>99</strong> • JULHO de 2008<br />
PASSE DE LETRA<br />
Nas crônicas que escrevia semanalmente<br />
para a Manchete Esportiva, Nelson<br />
Rodrigues vez ou outra elegia o personagem<br />
da semana. Era quase sempre um jogador<br />
o tal personagem, alguém que havia<br />
se destacado na rodada e merecera sua atenção.<br />
Pois numa dessas crônicas, Nelson elegeu<br />
como personagem da semana não um<br />
jogador mas uma torcida: a do Botafogo.<br />
A certa altura da crônica, o tricolor Nelson<br />
afirma que “nem todo mundo pode<br />
imaginar o que é ‘ser Botafogo’. Vejam um<br />
vascaíno, um rubro-negro e um tricolor.<br />
Eles se parecem entre si como soldadinhos<br />
de chumbo. Reagem diante da derrota, da<br />
vitória e do empate de maneiras bem parecidas.<br />
Suas euforias e depressões são equivalentes.<br />
Mas há, no botafoguense, coisas<br />
que só ele tem e que o distinguem de tudo<br />
e de todos”.<br />
Numa crônica anterior, Nelson já havia<br />
escrito que há sempre, nas vitórias do<br />
Botafogo, “uma pungência, um patético que<br />
faltam às demais”. Tanto que ele, naquela<br />
semana, passa por cima de uma goleada<br />
do América sobre o Corinthians para falar<br />
da vitória de 2 x 0 do Botafogo sobre a<br />
Portuguesa. O jogo, segundo o cronista, tinha<br />
tudo para ser uma festa: o alvinegro,<br />
capitaneado por Didi e Garrincha, passeou<br />
em campo, dominando plenamente o adversário,<br />
e poderia, sem exagero, ter<br />
ganhado de 10 x 0. A tal ponto que Nelson<br />
se perguntou, ao final da partida, temendo<br />
pela sorte do seu Fluminense: “o que seria<br />
de nós se o Botafogo jogasse sempre assim?”<br />
A partida, no entanto, terminou apenas<br />
num dramático, num suado 2 x 0. Por quê?<br />
Responde o cronista: “tudo é mais difícil<br />
para o Botafogo e o povo, com seu instinto<br />
agudo, costuma dizer: ‘Há coisas que só<br />
acontecem ao Botafogo!’ Exato”. E Nelson<br />
decifra o enigma ao dizer que o problema<br />
todo é que o time “tem contra si a fatalidade,<br />
mesmo quando assombra, mesmo quando<br />
esmaga, mesmo quando arrebenta.”<br />
O botafoguense Arthur Dapieve sabe<br />
bem o que é isso. Numa crônica recente,<br />
intitulada Esse nosso amor, Dapieve comenta<br />
o espetáculo dantesco que teve como palco<br />
o Estádio dos Aflitos (o nome do estádio:<br />
ironia do destino?), em Recife, na partida<br />
Botafogo e Náutico pelo campeonato brasileiro.<br />
Aliás, você por favor me responda,<br />
caro leitor: algum jogador do seu time já<br />
foi preso em pleno gramado e levado à força<br />
por policiais pelo meio da torcida<br />
adversária? E caso isso tenha acontecido, o<br />
presidente do seu time foi atrás do jogador<br />
para protegê-lo e acabou preso também,<br />
como naquele jogo? Duvido.<br />
Nessa crônica, Dapieve escreve: “tenho<br />
dois amigos jornalistas paulistas e sãopaulinos<br />
que trabalharam no Rio de Janeiro<br />
durante algum tempo. Ambos se tornaram<br />
botafoguenses porque se assombraram com<br />
a nossa incrível concentração dramática. Eles<br />
dizem que em um ano de Botafogo acontece<br />
o suficiente para encher cinco anos do São<br />
Paulo. Sem os títulos, infelizmente”.<br />
Imprevisível<br />
Se torcer para um time de futebol é sempre<br />
uma aventura, torcer para o Botafogo é<br />
um pouco mais do que isso. Nunca se sabe<br />
como vai acabar a partida, se é que vai acabar.<br />
Aliás, não se sabe exatamente nem como<br />
é que vai começar. Quer um exemplo? Essa<br />
aconteceu comigo. Em 1<strong>99</strong>6, o time estava<br />
disputando a Taça Teresa Herrera, na<br />
Espanha, e ia jogar contra o Juventus, da<br />
Itália. Só consegui chegar em casa no início<br />
do segundo tempo e quando liguei a<br />
televisão vi o Juventus com sua camisa tra-<br />
rascunho<br />
FLÁVIO CARNEIRO<br />
Estrela<br />
solitária<br />
Por que o Botafogo é o time que mais combina com quem lida com literatura<br />
dicional (com listras verticais, brancas e pretas)<br />
e o adversário (supostamente o<br />
Botafogo) de camisa azul!<br />
Levei um tempo até entender aquilo.<br />
Parecia outro time. Mas não, lá estava o<br />
figuraça Túlio Maravilha, na sua vistosa<br />
camisa cor de anil. O que aconteceu: o árbitro<br />
achou que as camisas do Juventus e<br />
do Botafogo eram parecidas e fez um sorteio<br />
para ver quem mudava. O Botafogo<br />
foi o escolhido. Como não tinha levado<br />
uniforme reserva, pegou emprestadas as<br />
camisas do... La Coruña!<br />
Agora me responda com sinceridade: é<br />
normal isso? E o Botafogo ainda foi o campeão<br />
do torneio! A valer a superstição —<br />
outro traço típico da torcida botafoguense<br />
— o time só deveria jogar de camisa azul,<br />
ou pelo menos só deveria disputar outras<br />
vezes esse torneio com camisa dessa cor.<br />
Por curiosidade, resolvi investigar se isso<br />
já havia acontecido antes. Claro que não<br />
me surpreendi quando descobri que sim,<br />
várias vezes.<br />
Alguns exemplos. Contra o Americano<br />
de Campos, em 1923, o time usou — repare<br />
bem — o segundo uniforme do Andarahy<br />
Athletico Club! Cor da camisa? Verde! Dez<br />
anos depois, mesma confusão de uniforme e<br />
o Botafogo novamente joga com camisas<br />
emprestadas, agora contra o Engenho de<br />
Dentro, entrando em campo com camisas<br />
vermelhas (dessa vez sequer se tem registro<br />
de quem emprestou o uniforme).<br />
Em 1968, em pleno Maracanã (portanto<br />
com mando de campo naquela partida), o time<br />
entra com a tradicional camisa listrada, o Grêmio<br />
também (com a sua de cores preta, bran-<br />
ca e azul) e quem é que vai mudar de uniforme?<br />
Adivinha. O Botafogo pega emprestadas<br />
as camisas azuis da Adeg (a associação<br />
desportiva do antigo estado da Guanabara).<br />
Já na década de 70, o episódio se repete.<br />
O estádio é o mesmo Maracanã, o jogo é<br />
contra o Paissandu, de Belém. A Adeg agora<br />
virou Suderj, quer dizer, o nome é diferente<br />
mas a função continua a mesma: emprestar<br />
camisa para o Botafogo — dessa feita,<br />
amarelas!<br />
Nave louca<br />
Talvez por isso, por essa absoluta<br />
imprevisibilidade, o Botafogo seja, até prova<br />
em contrário, o time que mais combina<br />
com quem lida com literatura. Se você, meu<br />
amigo ou minha amiga, é poeta, contista,<br />
romancista ou exerce a crítica literária e ainda<br />
não tem time, não se acanhe: as portas<br />
estão abertas. Entre, aperte os cintos e se prepare<br />
para embarcar na nave louca!<br />
Não era assim que pensava, por exemplo,<br />
o Paulo Mendes Campos? É dele a frase:<br />
“Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo<br />
é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia<br />
de meu coração é também (literatura) uma<br />
estrela solitária”.<br />
E o Vinicius de Moraes? Diz ele que escolheu<br />
torcer pelo alvinegro por um muito<br />
nobre motivo: alguns nomes de ruas do bairro<br />
de Botafogo. Nomes sublimes, sugerindo<br />
belas senhoras: Bambina, Mariana, Clarisse.<br />
Dizem que o poeta, em seus tempos de<br />
diplomata, conheceu em Los Angeles o<br />
magnata Mr. Buster, arquimilionário que<br />
se espantou quando o brasileiro decidiu<br />
abandonar o poder e a grana que lhe ofe-<br />
31<br />
recia o cargo e voltar para o Rio. Mais tarde,<br />
Vinicius escreveria um poema criticando<br />
a vida de luxo de Mr. Buster e afirmando<br />
os motivos de sua decisão. Entre<br />
eles: torcer para o Botafogo.<br />
E aí estão escritores contemporâneos que<br />
não me deixam mentir. De estilos e gerações<br />
variados, eles se espalham pelo país e<br />
até pelo exterior, como a Adriana Lisboa,<br />
botafoguense por herança paterna, materna<br />
e o que mais possa existir, e que hoje<br />
espalha a glória do clube no país em que<br />
futebol se chama soccer.<br />
Agora, nem a Adriana nem o Luis<br />
Fernando Verissimo têm manias de torcedor,<br />
o que é digno de nota em se tratando<br />
de botafoguenses. Quer dizer, o Verissimo<br />
só não gosta de falar durante o jogo, mas o<br />
Verissimo não querer falar não chega a ser,<br />
convenhamos, uma grande novidade. O que<br />
é diferente, no caso, é que ele também não<br />
gosta que falem com ele enquanto o Botafogo<br />
(ou o seu Internacional) está jogando.<br />
De manias o Jorge Viveiros de Castro<br />
diz que se livrou, depois de tantos anos e<br />
várias mandingas fracassadas. Tudo bem<br />
que continua roendo unha, xingando juiz,<br />
mandando algum jogador para aquele lugar,<br />
coisas assim, normais. Agora, mania<br />
não tem mais não. Cansou. Quer dizer, dia<br />
desses ele foi flagrado assistindo a um jogo<br />
do Botafogo, na televisão, encostado na<br />
parede e plantando bananeira. Jorge explicou<br />
que era apenas um exercício de ioga,<br />
para amenizar a tensão. Sei.<br />
Estratégias<br />
Fernando Molica é um botafoguense autêntico,<br />
o que equivale a dizer que não regula<br />
muito bem da bola (com o perdão do trocadilho).<br />
Repetir (ou não) determinada camisa,<br />
rezar para que, depois de um primeiro tempo<br />
ruim, algo o obrigue a mudar de lugar<br />
no estádio (não pode ser por vontade própria,<br />
tem que acontecer alguma coisa), variar<br />
(ou não) de amigos na arquibancada,<br />
pedir aos céus para ver, no dia do jogo, alguém<br />
com a camisa do Botafogo antes que<br />
apareça alguém com a camisa do adversário<br />
são algumas de suas, digamos, estratégias.<br />
O historiador Raul Milliet Filho, autor<br />
de Vida que segue: João Saldanha e as<br />
Copas de 1<strong>99</strong>6 e 1970, não gosta de ver<br />
jogo do Botafogo na televisão. Diz que prefere<br />
o estádio porque dali pode ter uma<br />
ampla visão do campo e analisar taticamente<br />
a partida. “Na televisão você o lance, mas<br />
não vê o jogo”, justifica. Tudo bem, mas<br />
que pode haver algo estranho por trás disso,<br />
pode. Para alguém que jamais cruza as<br />
pernas quando está vendo jogo do Botafogo,<br />
tudo é possível.<br />
Essas histórias todas levam a crer que, se<br />
dependesse de manias, o Botafogo seria campeão<br />
mundial todos os anos, com folga. E<br />
por que não é? Porque se trata de tolice, mera<br />
superstição, dirá você, leitor incrédulo. Pois<br />
tenho outra hipótese para a explicação do<br />
fenômeno: uma esquisitice atrapalha a outra.<br />
Isso mesmo, uma está anulando a outra.<br />
E são tantas que, claro, nos perdemos.<br />
Faço aqui, portanto, nesse momento<br />
histórico, uma proposta que pode devolver<br />
ao alvinegro seus dias de glória: uma uniformização<br />
das manias. Se estão aí a querer<br />
uniformizar a língua portuguesa, que<br />
façamos também isso, nós que na história<br />
já trocamos tantas vezes de uniforme: uma<br />
gramática das manias botafoguenses. Sentar<br />
bem no meio do sofá: certo ou errado?<br />
Vestir a meia do avesso na véspera do clássico:<br />
certo ou errado? Entrar de lado na<br />
catraca do Maracanã: certo ou errado?<br />
Quem sabe funciona.<br />
Essas histórias todas levam a crer que, se dependesse de manias, o Botafogo seria campeão mundial todos<br />
os anos, com folga. E por que não é? Porque se trata de tolice, mera superstição, dirá você, leitor incrédulo.<br />
Pois tenho outra hipótese para a explicação do fenômeno: uma esquisitice atrapalha a outra.<br />
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