Edição 99 - Jornal Rascunho
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<strong>99</strong> • JULHO de 2008<br />
OUTRO OLHAR<br />
Acabamos de sair de um século mortal<br />
e mortífero. Morte de Deus, morte da história,<br />
morte do homem, morte da arte e<br />
quase a morte da morte. Nesse sentido, o<br />
vasto cemitério em que a teoria perambulou<br />
como um zumbi entre o sentido e o nãosentido<br />
complementa a maior e mais devastadora<br />
orgia de sangue, destruição e<br />
guerras de que a história já teve noticia.<br />
Teorizar jubilosamente sobre a morte de<br />
certas categorias pode não fazer jorrar sangue<br />
no papel, mas justifica a morte onde<br />
quer que ela esteja. Dentro da morte da arte<br />
aprofundando-se o extermínio, efetivando<br />
a “solução final”, passou-se a falar de morte<br />
do romance, morte da música, morte da<br />
poesia, morte da dança, morte do teatro,<br />
morte dos gêneros, morte do autor. Este foi<br />
um período marcado pela tanatomania.<br />
Pode-se fazer uma tanatografia e até se constituir<br />
uma disciplina — a Tanatologia, tanto<br />
a morte ocupou espaço dentro da vida.<br />
Estamos regressando da inspeção ao nada.<br />
A tela branca, o teatro sem ator e sem<br />
texto, a escultura invisível, a música do silêncio,<br />
a literatura sem palavras, a filosofia<br />
como jogo de linguagem, não satisfazem<br />
mais a nossa fúria de procurar o símbolo<br />
até pelo seu avesso. Estamos entediados com<br />
símbolo do não-símbolo. Com o símbolo<br />
dessimbolizado. Por isso, há quem fale da<br />
urgência da ressimbolização. Afinal ainda<br />
não se conseguiu negar que somos animais<br />
simbólicos. Até os que tentam negar isso o<br />
fazem através de símbolos.<br />
Há que voltar aos negligenciados problemas<br />
de linguagem e à linguagem do problema.<br />
Voltar, porém, criticamente e com<br />
esse distanciamento de quase cem anos.<br />
Como diz a canção folclórica, citada por<br />
James Gleick ao estudar o caos:<br />
Por falta de um prego, perdeu-se a ferradura;<br />
Por falta de uma ferradura, perdeu-se o cavalo;<br />
Por falta do cavalo perdeu-se o cavaleiro;<br />
Por falta do cavaleiro, perdeu-se a batalha;<br />
Por falta da batalha, perdeu-se o reino.<br />
O século que cultivou de maneira mais<br />
ampla e sofisticada a violência, seja através<br />
dos morticínios estéticos, atômicos e ideológicos<br />
em “sibérias” e “campos de concentração”,<br />
seria aquele em que a brutalização da<br />
arte, o sadomasoquismo subespécie teórica e<br />
artística, atingiu o auge, até que torturada e<br />
despedaçadamente lançada aos quatro ventos<br />
e ao nada se tornasse irreconhecível. Os<br />
que alardearam o extermínio da arte repetiram<br />
duas síndromes históricas opostas. Ao<br />
decretarem que tudo era arte, se assemelharam<br />
aos reis espanhóis que batizaram como<br />
cristãos todos os judeus, pensando assim<br />
rascunho<br />
Depois da morte da arte<br />
Da arte de ser<br />
PROMISSOR<br />
Flávio Izhaki, apontado como uma das promessas da nova<br />
geração, estréia como romancista com DE CABEÇA BAIXA<br />
MARCIO RENATO DOS SANTOS<br />
CURITIBA – PR<br />
De cabeça baixa é um romance que revela<br />
a desilusão de um jovem aspirante a<br />
escritor que publica o seu primeiro romance<br />
e se frustra com o resultado. De cabeça baixa<br />
também é o romance de estréia do jovem<br />
escritor carioca Flávio Izhaki, 29 anos. De<br />
cabeça baixa apresenta texto bem escrito e<br />
fluente e, se não é uma obra-prima, pode<br />
conduzir o eventual leitor da página 3 até a<br />
186 em poucas horas de agradável leitura<br />
(ou minutos, se o eventual leitor tiver tempo<br />
livre, experiência e agilidade na leitura).<br />
Não sei se os leitores do <strong>Rascunho</strong> estão informados,<br />
mas Curitiba é território em que surgem<br />
e se multiplicam (e não desaparecem) sujeitos<br />
que desejam ser escritores, sobretudo poetas.<br />
A cidade elegeu um superestimado poeta na década<br />
de 1980 e nem é preciso citar o nome porque<br />
já se fala demais do indivíduo, falecido, por aqui.<br />
O poeta-modelo inspira demais jovens ávidos<br />
pelo título de poeta: muitos ambicionam ser<br />
iguais ao ídolo e, além de ser poeta — a exemplo<br />
do mestre, atuar na publicidade, compor letras<br />
de música, realizar traduções — a auramultimídia,<br />
enfim, contamina os “aspiras”.<br />
Felipe Laranjeiras é o protagonista do<br />
romance De cabeça baixa. Um superestimado<br />
jovem que há muito anunciava estar<br />
escrevendo o primeiro romance, até que<br />
publica Desencanto. A obra não vinga.<br />
Ganha uma única (e negativa) resenha. O<br />
personagem, também abandonado pela<br />
namorada, deixa o Rio de Janeiro e passa<br />
uma temporada em Curitiba. A narrativa,<br />
em terceira pessoa, traz observações clichês<br />
sobre as duas cidades, seja a respeito do frio,<br />
garoa e introspecção curitibanos como sobre<br />
a falsa simpatia dos cariocas que convidam<br />
para tomar um café lá em casa,<br />
contanto que o convidado nunca apareça.<br />
De imitação em imitação, de diluição em<br />
diluição, os “aspiras” a poetas curitibanos formam,<br />
a cada dia que nasce, um batalhão de<br />
epígonos do superestimado poeta endeusado na<br />
década de 1980. E as tentativas de mimese vão,<br />
por exemplo, do uso do bigode ao hábito de pensar<br />
por trocadilhos e ser, enfim, um trocadilho.<br />
Há os que, além de supostos poetas, se apresentam<br />
como tradutores — apesar de nem saber<br />
escrever em português. Outras caricaturas repe-<br />
AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA<br />
tem slogans que o mestre enunciou na já longínqua<br />
década de 1980. O ícone deixou viúvas, a<br />
maioria marmanjos que pegam no tacape e nas<br />
flechas quando alguém ousa criticar o poeta que,<br />
na realidade, não passa de pseudopoeta.<br />
A odisséia do protagonista do romance<br />
De cabeça baixa se deflagra no momento<br />
em que, em meio a um sebo curitibano, ele<br />
encontra um exemplar de seu livro. Há anotações<br />
nas margens. São observações críticas.<br />
A partir disto, Felipe Laranjeiras — já<br />
em crise — se afunda em inquietações. E,<br />
perturbado, não sossegará até encontrar a<br />
pessoa que escreveu aquelas anotações. “A<br />
sua vida sempre fora mais de nãos do que<br />
de sins até aquele momento.” Eis um trecho<br />
da narrativa sobre o personagem no<br />
espaço-tempo em que ele decide localizar<br />
Ana Maria, a autora dos comentários.<br />
Há vários sujeitos, projetos de escritores, em<br />
Curitiba que, de alguma maneira, se parecem<br />
com o personagem Felipe Laranjeiras, protagonista<br />
do romance De cabeça baixa. São, sobretudo,<br />
jovens. Alguns já estão na melhor idade<br />
mas se consideram jovens. São, enfim, adolescentes<br />
mentais, adulteens. Todos promissores.<br />
Pelo fato de terem sido alfabetizados, se consideram<br />
aptos a realizar a próxima Ilíada. Em<br />
bares, declamam poemas em alta voz, emitindo,<br />
acima de tudo, perdigotos. Escrevem em<br />
guardanapos. Depois de alguns goles de destilados<br />
e/ou fermentados, são vítimas de<br />
logorréia. E, em geral (e acima de tudo),<br />
cultuam o pseudopoeta máximo de Curitiba, a<br />
fraude tremenda dos anos 1980.<br />
Felipe Laranjeiras, depois de uns tempos<br />
em Curitiba, retorna ao Rio de Janeiro. E o<br />
regresso do personagem à cidade natal é,<br />
possivelmente, o ponto alto do romance De<br />
cabeça baixa. “A beleza da cidade escapa<br />
aos cariocas acostumados aos morros ainda<br />
verdes (...)”. A narrativa mostra que o protagonista,<br />
ao regressar à cidade onde nasceu<br />
e cresceu, depois de alguma ausência e<br />
distanciamento, consegue enxergar e perceber<br />
nuances e detalhes que anteriormente<br />
eram invisíveis para ele. Felipe tem, então,<br />
de enfrentar a cidade onde, em outro passado,<br />
habitava e convivia com a ex-namorada<br />
Luana. Mas ele está de volta ao Rio para<br />
encontrar Ana Maria, a autora das anotações<br />
perturbadoras, para ele, feitas em um<br />
exemplar de seu livro Desencanto.<br />
A tela branca, o teatro<br />
sem ator e sem texto, a<br />
escultura invisível, a<br />
música do silêncio, a<br />
literatura sem palavras, a<br />
filosofia como jogo de<br />
linguagem, não satisfazem<br />
mais a nossa fúria de<br />
procurar o símbolo até<br />
pelo seu avesso.<br />
acabar com o “outro”. Mas lembram autoritariamente<br />
também a “solução final” dos<br />
nazistas. Mas não conseguiram exterminar<br />
os judeus nem a arte.<br />
Portanto, se fosse possível falar de “novo”<br />
ou “novos” paradigmas, isso poderia começar<br />
pela reinvenção do jogo. Em vez do “fim<br />
de jogo”, o “jogar de novo”. R. D. Laing<br />
produziu revolucionários estudos sobre os<br />
esquizofrênicos, nos anos 50 e 60. Foi uma<br />
época propícia para isso. Estava-se revisando<br />
muita coisa, os próprios limites clássicos<br />
entre loucura e sanidade. Falava-se também<br />
na antipsiquiatria. Retomemos o texto de um<br />
De cabeça baixa<br />
Flávio Izhaki<br />
Guarda-chuva<br />
186 págs.<br />
o autor<br />
FLÁVIO IZHAKI nasceu no Rio de Janeiro<br />
(RJ) em 1979. Debutou precocemente<br />
como contista. Assina a co-organização<br />
e atua como contista no livro<br />
Prosas cariocas — Uma nova cartografia<br />
do Rio de Janeiro (2004). Está<br />
presente nas antologias Paralelos —<br />
17 contos da nova literatura brasileira<br />
(2004) e Contos sobre tela (2005).<br />
Mostra seus contos, também, em revistas<br />
impressas e eletrônicas.<br />
trecho • De cabeça baixa<br />
Eu não tenho saída, pensou. Com<br />
a mão direita segurava uma página do<br />
“Desencanto” de Ana Maria, enquanto<br />
as demais restavam espalhadas,<br />
caóticas, ao seu entorno, na cama do<br />
quarto do hotel. Ao alcance da mão<br />
esquerda, o pequeno envelope fechado<br />
com as três folhas restantes, ainda<br />
não lidas, e o bilhete imperativo.<br />
Apagou a luz da cabeceira, e o quarto<br />
mergulhou numa escuridão de beco,<br />
lusco-fusco de início de noite, os objetos<br />
com contornos não mais definidos<br />
dançando suas fronteiras sob seus<br />
olhos. Deitou na cama, caindo sobre<br />
alguns dos papéis, amassando-os, o<br />
farfalhar desse contato do seu corpo<br />
com as folhas lhe fazendo carícias no<br />
ouvido. Queria que os papéis agora desaparecessem.<br />
Ou aparecessem rasgados<br />
em pedacinhos ilegíveis, sumissem<br />
do seu presente, passado, futuro,<br />
especialmente. Pensava nisso com os<br />
olhos fechados, não suavemente, mas<br />
num apertar de desejo infantil, como<br />
se fosse dó imaginar a nova realidade<br />
com força de rasurar pálpebras, para<br />
que ela se tornasse variável.<br />
De cabeça baixa apresenta<br />
texto bem escrito e fluente<br />
e, se não é uma obra-prima,<br />
pode conduzir o eventual<br />
leitor da página 3 até<br />
a 186 em poucas horas<br />
3<br />
de seus pacientes reescrito por ele. Também,<br />
ambiguamente, somos pacientes e médicos<br />
reescrevendo o texto que nos inscreve. Aí está<br />
dramatizada a nossa situação:<br />
Eles estão jogando o jogo deles<br />
eles estão jogando de não jogar o jogo<br />
se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão<br />
quebrarei as regras de seu jogo<br />
e receberei a sua punição.<br />
Há nesse texto algo além das diferenças<br />
de percepção. Há também o constrangimento,<br />
o double bind exercido por um poder e o<br />
temor do “paciente” diante do jogo que não<br />
é seu, que é “deles”. Prisioneiro da enfermidade<br />
e do sistema ele, constrangido, opta<br />
por jogar o jogo deles fingindo não ver a<br />
falsidade que lhe impingem. Esse sentimento,<br />
pode-se dizer, é semelhante ao de inúmeros<br />
pensadores, artistas e do público em<br />
geral, em relação a certa arte oficial, que<br />
Howard Becker, apropriadamente chama de<br />
“institucionalista”.<br />
Conforme a tradição do perpétuo renascimento<br />
contra a morte anunciada, superemos<br />
o oxímoro paralítico exclamando:<br />
— O rei morreu! Viva o rei!<br />
É hora de desmistificar o antijogo, o<br />
não-jogo e dizer alto e bom som:<br />
— Façam o jogo, senhores!<br />
Os filhotes, clones, viúvos, epígonos enfim, do<br />
pseudopoeta que Curitiba endeusou na década de<br />
1980 são, de uma maneira geral, ignorados na capital<br />
do Paraná. E, como precisam ocupar o espaço,<br />
para eles, perdido, buscam palanques. O principal<br />
palco de discursos e performances dos epígonos do<br />
pseudogênio da poesia curitibana dos anos 1980 está<br />
na internet. Nos blogs. Ali (lá), publicam poemas,<br />
traduções, sacadas, trocadilhos e praticam a ação<br />
entre amigos: só vale elogiar. Elogio próprio pode.<br />
Elogio de amigo também pode. Crítica não pode. E,<br />
de janela em janela virtual, são produzidas milhares<br />
de palavras, amontoados de frases. Produção em<br />
ritmo industrial. Decantar? Gaveta? Que nada. Os<br />
pop stars anônimos, e sem público, precisam exibir<br />
as suas amostras grátis de diluição do pseudopoeta<br />
curitibano da década de 1980.<br />
O protagonista do romance De cabeça<br />
baixa não consegue encontrar fisicamente Ana<br />
Maria, mas terá acesso a algumas outras anotações<br />
que ela fez. Ana Maria escreveu uma<br />
narrativa em que o personagem central, Marcelo<br />
Lima, é inspirado em Felipe Laranjeiras.<br />
E, ao ler o conteúdo, o escritor que se tornou<br />
personagem despencará em outro abismo existencial.<br />
“Agora era ele no papel de personagem,<br />
em tintas fortes de prostração, Felipe<br />
Laranjeiras e Marcelo Lima como duplos,<br />
uma vida dividida e subtraída em duas”.<br />
Felipe, triste, fica (então) tristinho, tristíssimo.<br />
Os promissores jovens escribas curitibanos se<br />
irmanam com Felipe Laranjeiras, justa e exatamente,<br />
pelo fato de que todos eles são jovens — e<br />
raramente existe um jovem genial (existe “gênio”?).<br />
Há expectativas demais em relação ao<br />
primeiro livro, e um primeiro livro de um jovem<br />
se fragiliza — acima de tudo — pela falta de<br />
experiência, de vida (do jovem), sobretudo de leitura<br />
(do jovem). Os Rimbauds curitibanos (brasileiros,<br />
mundiais) são ávidos por apresentar as<br />
suas produções, mas o que esses sujeitos lêem?<br />
Um detalhe interessante a respeito dos jovens<br />
pseudopoetas de Curitiba, que admiram o<br />
pseudopoeta endeusado na década de 1980, é<br />
que, em geral, eles não conhecem prosa, nada de<br />
ler romances nem conto. Quando lêem, se é que<br />
lêem, farejam apenas textos poéticos, principalmente<br />
pseudopoéticos (pop-cretos), e isso é pouco,<br />
ou quase nada, para quem pretende caminhar<br />
numa estrada que se chama literatura.<br />
Em seu blog, o jovem escritor carioca<br />
Flávio Izhaki — apontado por um júri convocado<br />
pelo jornal O Globo como aposta literária<br />
da nova geração — postou uma mensagem<br />
comentando que De cabeça baixa<br />
ainda não havia recebido nenhuma crítica<br />
negativa. O jovem autor, a exemplo do provável<br />
alter-ego Felipe Laranjeiras, talvez<br />
tema restrições. Possivelmente, não venha a<br />
gostar deste texto. Mas, caro Felipe, ou melhor,<br />
caríssimo Flávio, pra que temer uma<br />
crítica ou resenha? Resenhas e críticas não<br />
passam de pontos de vista, opiniões (achismo,<br />
se preferir). A trajetória do romance De cabeça<br />
baixa independe de um comentário<br />
como este. E, para sua informação, o exemplar<br />
que li para fazer esta resenha já vendi<br />
num sebo curitibano por menos de dois dinheiros<br />
— e há inúmeras observações nas margens,<br />
escritas a lápis, parecidas com as que Ana<br />
Maria fez no livro de Felipe Laranjeiras.<br />
de agradável leitura. • r<br />
• r