Edição 99 - Jornal Rascunho
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26 rascunho <strong>99</strong> • JULHO de 2008<br />
Portas fechadas<br />
de nada. Em quase um ano de tentativas apenas um<br />
muito obrigado por ter deixado o livro conosco. Encontrei a<br />
segunda porta fechada. Na edição desse domingo, página<br />
inteira dedicada ao jovem escritor do Rio de Janeiro,<br />
filho da ilustríssima atriz da novela das oito!<br />
Carlos Machado<br />
Maravilha, é desse tipo de apoio que preciso. Amasso<br />
os retalhos de jornal. Muito calor. Procuro uma pequena<br />
nuvem no céu, mas só azul. Quem sabe com os<br />
CDs dou sorte? Caminho apressado para a Fundação.<br />
Durante toda semana, remédios de alergia, rinite.<br />
A sala do gerente é aquela à esquerda. Dois guardiões<br />
do feudo na terceira porta. Não abrem nem com reza<br />
Esse calor não é de Curitiba. Ando pela sala do apartamento<br />
braba. Saravá! Se esticasse minhas mãos no meio da<br />
com o telefone entre a orelha esquerda e o ombro, já me escorre<br />
rua para pedir esmolas, seria muito mais fácil. Curiti-<br />
água salgada pela testa. A camiseta cheira como a noite dormida a<br />
ba, não me desampare assim, também sou seu filho!<br />
cigarros. Enquanto falo com ela, procuro lançar Bom Ar para es-<br />
Quem sabe se voltasse à terra vermelha? Se levanto a<br />
pantar o mofo. A mesma discussão do tempo que nunca me é sufi-<br />
camiseta ainda vejo marcas londrinas. Devo pedir emciente.<br />
Já está na hora do almoço, mas não sinto nenhum sinal de<br />
prego de caseiro na chácara pelegrina? Ou me mudo<br />
fome. Vou até a cozinha para buscar um copo de água, na boca um<br />
para os campos gerais, já que sou neto de tropeiros?<br />
gosto de guarda-chuva amassado, bafo do sono. Sempre que acordo<br />
Continuo cantarolando, mas agora a canção do poeta<br />
tarde assim, sinto um pingo de culpa por não ter feito nada pela<br />
polaco. São Paulo pode me receber como em Alice<br />
manhã. Chateio-me com o copo maior que o espaço do garrafão da<br />
no País das Maravilhas? Todas as vozes ardem por<br />
Ouro Fino, prefiro o guaraná light que está na porta da geladeira.<br />
aqui. Sou cada um deles. Parei na frente de um pas-<br />
Com um único gole vou até o fim da primeira refeição do dia. Ela<br />
sante: amigo, sabe que estou prenho de palavras? Devo<br />
me pergunta por onde andei a noite toda. Fiquei lendo, ouvindo mú-<br />
ter feito uma cara muito estranha, porque esse cidasica.<br />
Sim, estou indo lá agora. Ao lado do sofá, as bitucas jogadas no<br />
dão me desdenhou com um sopro qualquer. No ore-<br />
chão de carpete. Pigarros de narguilé. Como suei essa noite debaixo<br />
lhão da Senador Alencar, procuro-a. Daqui a quinze<br />
das cobertas! Olhando para a patente, acompanho o risco de mijo<br />
minutos passo em sua casa, depois te conto o que me aconte-<br />
que vai de encontro ao azulejo. Durante a madrugada, não sei como,<br />
ceu. Tenho saudades do suco de Cupuaçu. Calor. A<br />
acordei entre a patente e a parede. Meu joelho lateja um vermelho<br />
rinite alérgica me cansa. Sento-me na Praça Osório<br />
esquisito que não estava aqui quando me deitei. Vejo um resto de<br />
para amarrar o cadarço. Nessa época do ano, a noite<br />
vômito quando levanto o short. Mais um pouco de Bom Ar que se<br />
chega mais rápido e quando me levanto do banco<br />
mistura com o alvejante do banheiro. Meu estômago está embru-<br />
percebo que estou sozinho na praça. Olho para todos<br />
lhado. Não consigo ir adiante com a conversa ao telefone, desligo.<br />
os lados e nem sinal de pessoas. Corro para um dos<br />
Deixo a água do chuveiro cair como nunca fosse acabar.<br />
cantos, mas não consigo ir adiante. Curitiba? Começo<br />
a perdê-la: colocaram grade na Osório. Em todos<br />
os finais não há como passar. Os olhos chegam na<br />
Reitoria, em frente ao jornal, na livraria da Rua XV.<br />
Escuto apenas o barulho do chafariz jogando água para<br />
dentro. Me lembrei que durante todo o dia não bebi<br />
um copo d’água sequer. Coloco as mãos em forma de<br />
concha e encho-a com o suor dos meninos de hoje à<br />
tarde. Lavo o rosto com o que sobrou. Bebo-a. Mesmo<br />
com o joelho ardendo da caminhada consigo chegar<br />
ao centro do chafariz. Escalo-o até o topo. Agora<br />
é só me ajeitar para ver se pego no sono.<br />
Na portaria cumprimento Seu Ari sempre sorridente cuidando<br />
das plantas. Pelo espelho da entrada, percebo que estou com uma<br />
cara horrível. Visto meus óculos de sol e saio pela Silva Jardim. A<br />
dorzinha no joelho me incomoda um pouco, mas mesmo assim<br />
vou a pé. Cruzo pelo Shopping Curitiba, o mesmo cheiro de sempre,<br />
paro por alguns instantes no Old Bar, tomo meu expresso e<br />
continuo pela Visconde de Guarapuava. Debaixo do braço, alguns<br />
livros, recortes de jornal, CDs. Não reconheço essa Curitiba com o<br />
sol queimando por dentro da camiseta. Tropeço em algumas pessoas<br />
que andam apressadamente na direção oposta e mantenho as<br />
pernas firmes pela calçada, desviando dos buracos — sempre dos<br />
outros. Suor. No sinaleiro começo a gostar do calor, uma mulher<br />
de saia branca espera pelos carros. Com o canto dos olhos, percebo<br />
uma calcinha minúscula perdida entre as pernas. Aperto meu sexo<br />
instintivamente. Isso por aqui é novidade. Desço a Brigadeiro Franco<br />
cantarolando a parceria do poeta com o boêmio. Isso ainda me<br />
faz querer essa cidade. Musa em desuso. Rio sozinho pelas esquinas<br />
até a Praça Osório. No chafariz, dezenas de meninos e meninas<br />
despreocupados com o movimento ao redor, água neles todos. Ig-<br />
noram a cerca e o recado da prefeitura que não os deixam estar ali.<br />
Estariam onde, então? Muitos passos perdidos, indo para todas as direções<br />
da praça. As bolsas debaixo do braço ainda carregam os guardachuvas,<br />
não se pode descuidar nem por um segundo. Borboletas no<br />
estômago. Sempre a mesma voz dizendo que não deveria ter entrado<br />
nessa, mas é preciso. Mestrado na Federal. Voltar a enfrentar os leões<br />
carcomidos, os donos do grande Palácio de Gelo. Fui convencido a me<br />
inscrever, não sabia o que esperar. Mas passar pela prova de que consigo<br />
estar ali novamente me foi tentador. De longe, começo a sentir o<br />
cheiro da Reitoria, a gordura da cantina já em meu nariz. As escadarias<br />
com alunos jogando bola no pátio, conversando sobre serem os<br />
próximos de Curitiba, lançando fumaças ao vento. Não reconheço<br />
nenhuma sombra estacionada ali. Paro diante do primeiro lance e hesito<br />
em subir. Ninguém parece notar essa presença, passam cortando<br />
minha frente e se distribuem pelo prédio. Respiro fundo e chego ao<br />
elevador. Inevitáveis comparações de épocas, o porteiro ainda é o mesmo,<br />
a cor mais pálida das paredes, a mais descascada. Lá se foram<br />
alguns anos. Décimo andar, por favor. Repito o mesmo movimento de<br />
sempre, viro-me para o espelho a fim de ajeitar as cãs, olheiras da<br />
noite mal-dormida. Ao meu lado, conversam sobre os novos professores.<br />
Novos? Sei de todos os nomes, também devem estar preocupados<br />
com os cabelos que não têm mais: Os gênios das ciências humanas.<br />
No andar, alguns rostos procuram seus nomes pela lista no edital.<br />
Encontro um espaço. A primeira porta fechada. Lógico, por que ainda<br />
insisto nisso? A certeza era clara. Mestrado aqui, não senhor, qual o<br />
direito que tens de pisar por essas plagas, amigo-que-nada-significa? Somos<br />
os donos do trono, a rainha leão, o rei alemão e a princesa dos e-mails, só<br />
entra quem dissermos para entrar, e tu, naturalmente, não és bem-vindo com<br />
essas idéias fracas de um projeto inacabado. Ponha-te para fora, volta para<br />
o colo de tua mãe. Ou ainda acha que sabes andar sozinho? Um tapa na<br />
cara, revoadas de pássaros no estômago. Atordoado com a fala dos<br />
professores-mais-esclarecidos-entre-todas-as-universidades-federaisdesse-país,<br />
cambaleio pela Amintas de Barros. Talvez, se eu batesse na<br />
porta daquela casa, poderia sentar-me para tomar café com o proprietário.<br />
Conversar sobre o tempo que não é de nenhuma Curitiba —<br />
esse suor na cara não é normal — de repente, talvez, até falar que<br />
tenho uma cachorrinha chamada Fifi, a mesma voz de sempre, clichês.<br />
Mas me acostumo. Nada disso, deixo a fala apenas na vontade.<br />
Ainda teimo em deixar os livros debaixo do braço. Dou a volta no<br />
quarteirão e volto pela Rua XV. Pela vitrine das Livrarias, cumprimento<br />
o amigo livreiro, de tantas boas conversas, e nem vejo quando<br />
chego em frente ao jornal. Muitos conhecidos. Preparo um envelope e<br />
o deixo na portaria, apenas uma notinha no canto esquerdo da última<br />
página do último caderno de segunda-feira — pode ser o de classificados<br />
— já me seria agradável. Migalhas. Mas nem isso. Nada, nadica<br />
• r<br />
Pela manhã devo me apressar, a previsão do tempo<br />
diz que será o dia mais quente do ano.<br />
CARLOS MACHADO mora em Curitiba (PR). É escritor e<br />
professor de literatura. Autor de Balada de uma retina sulamericana,<br />
Nós da província: diálogo com o carbono, entre<br />
outros. O conto Portas fechadas pertence ao livro Passeios, a<br />
ser lançado em breve pela 7Letras.