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Edição 99 - Jornal Rascunho

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22 rascunho <strong>99</strong> • JULHO de 2008<br />

O escritor é outro<br />

FABIO SILVESTRE CARDOSO • SÃO PAULO – SP<br />

Imre Kertész, cujo nome faz<br />

com que a pronúncia e a escrita<br />

sejam a todo o momento verificadas,<br />

é autor renomado e alguns<br />

livros já publicados no Brasil.<br />

Como escritor, uma de suas principais<br />

características é sinalizar, em<br />

seus romances, quem são os personagens,<br />

a quais histórias eles se<br />

filiam, bem como ambientar o cenário<br />

existente em cada uma das<br />

narrativas. No caso de Eu, um<br />

outro, essa condição se subverte.<br />

E o motivo é perceptível já a partir<br />

do título do livro. É um autor em<br />

busca de um outro. Talvez um<br />

outro Kertész, talvez um outro escritor;<br />

ora é alguém ligado ao seu<br />

passado, ora é alguém ligado à fic-<br />

IMRE KERTÉSZ busca alguém ora ligado<br />

ao seu passado, ora ligado à ficção<br />

Eu, um outro<br />

Imre Kertész<br />

Trad.: Sandra Nagy<br />

Planeta<br />

173 págs.<br />

ção. As estratégias são variadas, mas a idéia central do livro<br />

permanece: “Eu é um outro”.<br />

A última frase do parágrafo anterior está entre aspas porque<br />

é uma citação do poeta francês Rimbaud. A escolha,<br />

mais conceitual do que aleatória, reflete, em verdade, a preocupação<br />

do escritor com a idéia de alteridade. A proposta<br />

do livro, nesse sentido, é a percepção de mundo a partir do<br />

outro. No relato, o leitor é conduzido pelos descaminhos<br />

da narrativa de Kertész na elucidação de questões do nosso<br />

tempo, do cotidiano ao holocausto, passando, claro, pelas<br />

suas memórias afetivas, elemento fundamental na formação<br />

de seu caráter, de sua disciplina e, ao fim e ao cabo, de<br />

sua natureza como escritor. Em Eu, um outro, a possibilidade<br />

de uma ilha se esgota, apesar de o personagem se observar,<br />

às vezes, como exilado.<br />

Este exílio, em verdade, se dá a partir do momento em<br />

que o escritor observa, estupefato, a brutalidade dos fatos.<br />

Não é preciso viajar fisicamente para estar longe de si mesmo.<br />

Tal como diante de um quadro de Francis Bacon, a reação<br />

jamais é passiva. Longe disso, procura interferir no cotidiano<br />

com as palavras que projetam significado no universo que o<br />

cerca. Em contrapartida, essa condição impõe ao narradorautor<br />

uma espécie de mantra, que é o questionamento que<br />

faz de si mesmo. “Às vezes, ocorre-me a pergunta: quem sou<br />

eu? O que sou eu? E qual é a minha história particular?” A<br />

essas indagações, em certo sentido metafísicas, acrescentam-<br />

o autor<br />

IMRE KERTÉSZ, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura,<br />

nasceu em 1929, em Budapeste. Em 1944, foi deportado<br />

para Auschwitz e Buchenvald. Trabalhou como jornalista,<br />

tradutor e roteirista. Entre suas obras, destacam-se<br />

Sem destino e Fiasco, também publicadas pela Planeta,<br />

além de Liquidação, editada pela Companhia das Letras.<br />

trecho • Eu, um outro<br />

Estou traçando essas linhas com particular amargura e<br />

particular satisfação (para não dizer com prazer) enquanto<br />

compenetro-me da fragilidade, futilidade e anacronismo<br />

da minha existência. O que me move, por que fico rabiscando<br />

com a minha esferográfica no papel? Minhas manhãs<br />

secretas, minhas caminhadas secretas, minhas sessões<br />

solitárias e íntimas de autotortura — para quê? Seria<br />

eu um criptoprofeta? O cronista recolhido debaixo das<br />

ruínas de época? Preparando respostas para as perguntas<br />

não formuladas de Deus? Preparando perguntas para<br />

as respostas não pronunciadas de Deus?<br />

se outras dúvidas, mais relacionadas à importância da importância<br />

de Kertész como escritor. A certa altura do livro,<br />

quando este se assume majoritariamente autobiográfico, ele<br />

rememora a época em que pensava que ninguém o lia. E<br />

mesmo depois quando soube que era lido, por algum motivo,<br />

associou essa informação à possibilidade de ser rejeitado<br />

exatamente por conhecerem sua obra.<br />

Mosaico estilístico<br />

Nesse ponto, vale a pena observar mais de perto quais são<br />

os elementos que constituem a obra desse escritor. No caso<br />

específico de Eu, um outro, até mesmo pela natureza do livro,<br />

há períodos em que o texto torna-se essencialmente autobiográfico,<br />

assim como há momentos em que a prosa assume o<br />

tom de um ensaio, com estilo e verniz. Com esse mosaico de<br />

referências estilísticas, é certo que o autor desenvolve uma obra<br />

cuja interpretação é sempre particular, pendendo, portanto, à<br />

idealização que se faz do outro. É dessa forma que o tema se<br />

torna recorrente. Entretanto, Kertész utiliza algumas estratégias<br />

para transformar o livro em peça mais rica e menos repetitiva<br />

junto aos leitores. É verdade que seu texto, severamente<br />

entrecortado, não é convidativo ao ambiente prosaico e carente<br />

de imaginação do mundo das imagens. Medíocre, o cotidi-<br />

ano do tempo presente, célere e célebre, não comporta essa<br />

literatura como peça crítica ao seu modo de vida. Ainda assim,<br />

a literatura permanece pois põe o leitor a refletir sobre a<br />

existência de um outro que depende de si mesmo, da forma<br />

como encara a realidade, como se lê a seguir:<br />

Impressões passageiras de Frankfurt. A feira de livros. Fui devidamente<br />

carimbado como mercadoria à venda; leituras públicas<br />

de minhas obras, das quais eu mesmo não entendo palavra alguma,<br />

enquanto sempre espero o pano cair (embora não faça idéia de<br />

que pano se trata e de onde deveria cair), são absurdos agradáveis.<br />

Em livro lançado recentemente, o escritor Marcelo Backes<br />

também faz uso dessas longas digressões e, por extensão,<br />

dos parágrafos considerados “centopéicos” pelo leitor médio,<br />

uma vez que o aposto geralmente é extenso se comparado<br />

com a prosa mínima que se pratica hoje em virtude<br />

das novas tecnologias. Contudo, a despeito das inovações<br />

do tempo presente, o autor prefere aludir a escritores do<br />

passado, como é o caso de Kafka e de Wittgenstein.<br />

Tanto no escritor tcheco como no filósofo austríaco, a<br />

referência se dá no campo das idéias e das afinidades eletivas.<br />

É dessa forma que o Kertész põe em debate a concepção do<br />

filósofo acerca do judaísmo; do mesmo modo que “introduz”<br />

o pensamento de Kafka ao falar do mundo em que<br />

vive e da condição humana:<br />

Pensar demais nos torna infelizes ou místicos. Ao final das contas,<br />

Wittgenstein era místico, tal como era Kafka. Só que ele trabalhava<br />

com outra matéria: a lógica. Tinha que derrubar mundos inteiros, até<br />

que — como uma pedra preciosa cintilante — de repente debaixo das<br />

ruínas lampejasse sua fé. Posso imaginá-lo nesse momento, com o<br />

tijolo na mão: fica olhando para ele e não sabe que nome lhe dar. O que<br />

ele sabe é que aconteceu um milagre e ele foi salvo.<br />

De certa maneira, a literatura de Kertész seria outra, não<br />

fosse o estilo adotado pelo autor. Explica-se. A despeito de se<br />

tratar de uma obra autobiográfica, em nenhum momento, o<br />

autor dá pistas evidentes e claras a respeito disso. O que ele apresenta,<br />

em vez disso, são pontos que confundem o leitor que<br />

imagina um livro de memórias mais água-com-açúcar, com<br />

revelações diretas aos eventos dos quais o protagonista esteve<br />

presente. Nesse aspecto, nota-se um texto mais seco, às vezes áspero,<br />

mas sempre potente no que se refere ao significado, que os<br />

teóricos em literatura poderiam classificar como pós-moderno,<br />

posto que possibilita uma série de interpretações possíveis. Ao<br />

leitor comum, desvinculado da academia, a compreensão pode,<br />

justamente por isso, ser mais pertinente e, quiçá, saborosa.<br />

Em Eu, um outro, Imre Kertész posiciona-se diante do<br />

mundo, esse espetáculo ao vivo e a céu aberto, de forma<br />

inteligente e sábia. Sem abrir mão de uma abordagem particular,<br />

o autor revisita alguns acontecimentos e nomes<br />

costumeiramente citados quando se trata da história cultural<br />

do século 20 de maneira não corriqueira. É por isso que<br />

o livro se faz singular, e não somente porque remete a um<br />

autor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura (no caso,<br />

em 2002). De certa forma, é como se o autor húngaro olhasse<br />

no espelho e dissesse: o escritor é outro.<br />

• r

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