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Edição 99 - Jornal Rascunho

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literatura estrangeira<br />

Egocêntrico e<br />

SEM TALENTO<br />

O despenhadeiro<br />

Fernando Vallejo<br />

Trad.: Bernardo Ajzenberg<br />

Alfaguara<br />

169 págs.<br />

Se a intenção era<br />

ser um Thomas<br />

Bernhard, Fernando<br />

Vallejo não<br />

conseguiu ir além<br />

de Marcelo Mirisola.<br />

Fernando Vallejo<br />

não consegue, salvo<br />

em uma ou outra<br />

passagem, fazer<br />

com que seus<br />

argumentos<br />

mereçam ser<br />

ouvidos como mais<br />

do que uma piada<br />

de mau gosto. Pior:<br />

não convence de que<br />

sua argumentação<br />

é tão sólida e<br />

fundamentada<br />

quanto a de um<br />

pré-adolescente.<br />

Em O DESPENHADEIRO, Fernando Vallejo se limita a insultar,<br />

a vomitar bravatas sem se preocupar com qualquer forma narrativa<br />

JONAS LOPES • SÃO PAULO – SP<br />

“Eu não sou filho de ninguém. Não<br />

reconheço a paternidade nem a maternidade<br />

de nenhum homem e de nenhuma<br />

mulher. Sou filho de mim mesmo,<br />

do meu espírito.” Este trecho de O despenhadeiro<br />

define com perfeição a literatura<br />

de Fernando Vallejo. Uma literatura<br />

raivosa, carregada de bile, tão confessional<br />

quanto testemunhal, órfã mesmo,<br />

senão filha raivosa de um senso crítico<br />

que beira a repulsa. Se Vallejo possui<br />

alguma pátria, é seu próprio ego. E<br />

se essa pátria é governada de alguma<br />

maneira, é por essa raiva. Nascido em<br />

Medellín, em 1942, o escritor colombiano<br />

vive no México há quase quatro<br />

décadas. Em 2007, no mais extremo de<br />

seus atos (que costumam ser sempre extremos),<br />

naturalizou-se mexicano e renunciou<br />

à cidadania colombiana, provocando<br />

polêmica no país, um dos alvos<br />

primordiais da sua prosa, ao lado<br />

da Igreja Católica e da estrutura familiar<br />

— a sua inclusive.<br />

As controvérsias, de toda forma, não<br />

são novas na vida de Vallejo. Sua falta<br />

de piedade e condescendência com a hipocrisia<br />

católica (considera o Vaticano<br />

uma “empresa criminal”) e com a situação<br />

da Colômbia costuma tirar do sério<br />

até mesmo os jornalistas: em um vídeo disponível<br />

no YouTube (www.youtube.com),<br />

um comentarista religioso se indigna<br />

com as opiniões, digamos, pouco ortodoxas<br />

do autor. Em entrevista recente ao<br />

jornal O Estado de S. Paulo, Vallejo festeja<br />

que a aids, pelo menos, tenha diminuído<br />

em 20 milhões a população mundial.<br />

“Minha esperança é o vírus Ebola”,<br />

diz. “Esse, sim, vai animar um pouco<br />

essa festa.” Na mesma entrevista, chama<br />

o conterrâneo Gabriel García Márquez<br />

de “cortesão de Fidel Castro (...)<br />

que escreve uma prosa de cozinha”. Declarações<br />

assim, evidentemente, geraram<br />

um contingente considerável de detratores,<br />

mas também admiradores como<br />

o chileno Roberto Bolaño.<br />

Músico na infância (dizem que promissor,<br />

um adepto de Chopin e Mozart),<br />

ele abandonou a faculdade de filosofia<br />

para estudar biologia e, mais tarde, enveredar<br />

pelo cinema. Chegou a dirigir<br />

três filmes, nenhum deles com grande repercussão.<br />

Passou, então, a se dedicar à<br />

literatura, começando na década de 80<br />

com o ciclo El río del tiempo, composto<br />

de cinco livros. Sua obra mais destacada<br />

é A virgem dos sicários (1<strong>99</strong>4),<br />

lançada no Brasil pela Companhia das<br />

Letras e que virou filme em 2000, pelas<br />

mãos do cineasta Barbet Schroeder<br />

(com roteiro do próprio autor). O despenhadeiro,<br />

que chega agora ao país,<br />

foi publicado originalmente em 2001.<br />

Como todos os outros livros de Vallejo,<br />

o romance parte de acontecimentos reais<br />

de sua vida, embora isso pareça inverossímil,<br />

tamanho é o desprezo do<br />

narrador — chamado também Fernando<br />

Vallejo — pelo próprio país e,<br />

sobretudo, pela própria família.<br />

O retorno<br />

Esse narrador, auto-intitulado “escritor<br />

de primeira pessoa”, volta à Colômbia<br />

após anos de ausência, apenas porque<br />

seu irmão Darío está prestes a morrer,<br />

não se sabe bem por quê. Ele, o<br />

narrador, sabe: está morrendo de aids,<br />

“essa doença de veados que está na<br />

moda”. Vallejo parece sentir um afeto<br />

verdadeiro por Darío, para compensar<br />

o ódio que nutre pela mãe, a quem chama<br />

durante todo o romance de “Louca”,<br />

e pelo irmão caçula (o “Grande Cretino”<br />

ou “aborto da natureza”). O irmão<br />

aidético acaba não morrendo imediatamente,<br />

e o narrador é obrigado a<br />

voltar freqüentemente ao país-natal.<br />

Relembra ali os momentos de hedonismo<br />

da juventude ao lado de Darío,<br />

quando enchiam um Studebaker conversível<br />

de rapazes e passavam o dia acelerando<br />

na estrada, fazendo sexo com esses<br />

homens e fumando maconha. Também<br />

com carinho lembra do pai, um importante<br />

político local, morto e desgraçado,<br />

na visão de seu filho, pelo casamento<br />

com a Louca.<br />

Ao mesmo tempo, a metralhadora<br />

verbal de Vallejo dispara contra o máximo<br />

de instituições possíveis. Nada escapa<br />

da sua pena, do Papa João Paulo II<br />

(“que a partir de agora escreverei com<br />

minúscula porque a maiúscula fica<br />

bunduda demais para que esse preguiçoso<br />

a carregue”), tido por ele como um<br />

assassino vestido “como se estivesse indo<br />

para um desfile gay”, às autoridades<br />

colombianas, supostamente responsáveis<br />

pelo tráfico de drogas, pela corrupção e<br />

pela violência urbana. Como, em sua<br />

opinião, “o homem nasce ruim e a sociedade<br />

o piora”, sugere que sejam repartidas<br />

camisinhas envenenadas entre as<br />

crianças de rua, para que não se tornem<br />

criminosas no futuro. No fogo cruzado<br />

sobra até para o samba — “a coisa mais<br />

feia que a terra pariu depois de Wojtyla,<br />

o padre Papa, essa besta, verme branco<br />

viscoso, tortuoso, enganoso”.<br />

E até onde se deve levar a sério — e<br />

mais, se deve admirar — essas opiniões<br />

tão biliosas? É o grande problema de O<br />

despenhadeiro. Vallejo não consegue,<br />

salvo em uma ou outra passagem, fazer<br />

com que seus argumentos mereçam ser<br />

ouvidos como mais do que uma piada<br />

de mau gosto. Pior: não convence de que<br />

sua argumentação é tão sólida e fundamentada<br />

quanto a de um pré-adolescente.<br />

E não é que seus alvos mereçam lá<br />

muito crédito. A situação da Colômbia<br />

— e da América Latina de modo geral<br />

— é realmente lamentável. Governos<br />

praticam e patrocinam violência, fomentam<br />

a corrupção, estimulam a burocracia<br />

e trabalham para dificultar a<br />

vida das pessoas. A família como instituição<br />

vive mesmo um período difícil,<br />

sufocada que está pelo egoísmo e pela<br />

própria violência que a cerca. E, por<br />

fim, a Igreja Católica de fato é hipócrita<br />

e contraditória. Para citar um exemplo<br />

recente, o Vaticano é tradicionalmente<br />

contra a manipulação de embriões,<br />

mas se manifestou a favor de tentativas<br />

de “escolher” através da genética<br />

a opção sexual da criança.<br />

Falta talento<br />

Só que a prosa de Vallejo é pobre demais<br />

para fazer valer suas idéias. Ora,<br />

da mesma forma que um ditador pode<br />

chegar ao poder apenas com seu talento<br />

oratório, para subjugar quem o escuta,<br />

um romancista depende de seu talento<br />

para converter o leitor em seguidor. Um<br />

exemplo emblemático é o austríaco<br />

Thomas Bernhard, que ataca frentes semelhantes<br />

às do colombiano – a ignorância<br />

travestida de catolicismo, a falsa<br />

moral de gente que finge decência em<br />

<strong>99</strong> • JULHO de 2008<br />

público e esconde podridão em particular,<br />

o empolamento ridículo de alguns<br />

artistas. Bernhard também é impiedoso,<br />

politicamente incorreto e exagerado,<br />

porém sua sintaxe circular, que acumula<br />

os impropérios de forma musical, quase<br />

bachiana, cria motivos e frases-chave<br />

para fixar incessantemente os argumentos<br />

e reclamações. O próprio Roberto<br />

Bolaño, na novela Noturno do Chile,<br />

ressalta com paixão e competência a podridão<br />

e a violência latinas.<br />

Vallejo se limita a clamar e insultar,<br />

a vomitar bravatas sem se preocupar com<br />

qualquer forma narrativa. Há poucas variações<br />

de tom; o texto segue um ritmo<br />

monocórdio e modorrento. A pobreza<br />

retórica fica clara em frases de rebeldia<br />

juvenil: “Deus não existe, e, se existe, é<br />

um porco e a Colômbia, um matadouro”.<br />

Ou: “a vida é como uma aids”. Ou<br />

ainda: “estou pouco me lixando para a<br />

ciência. Se com ciência ou sem ciência<br />

vamos todos morrer do mesmo jeito...”.<br />

Seu narrador, ao chamar a mãe de cadela<br />

ou vagabunda, parece um menino<br />

mimado que aprontou e ficou sem jantar,<br />

como castigo. Em certa altura, ele<br />

comenta que o casamento dos pais é um<br />

inferno disfarçado de céu. Sua vida, ao<br />

contrário, pode ser classificada como um<br />

céu disfarçado de inferno.<br />

O despenhadeiro só cresce quando<br />

esse narrador, talvez cansado de tanta intensidade,<br />

deixa entrever algum desespero<br />

e insegurança pela situação a sua volta.<br />

Ninguém pode ser sempre tão impassível<br />

e impenetrável, afinal. Infelizmente,<br />

para cada cena excelente como a que o<br />

narrador lembra como matou o pai para<br />

aliviá-lo do sofrimento, há frases como<br />

“vista-a na língua [uma camisinha] para<br />

que o padre não o contagie de aids com<br />

os dedos ao repartir o Cordeiro de boca<br />

em boca”. Se a intenção era ser um Thomas<br />

Bernhard, Fernando Vallejo não conseguiu<br />

ir além de Marcelo Mirisola.<br />

o autor<br />

FERNANDO VALLEJO nasceu em<br />

1942 em Medellín, na Colômbia. Formado<br />

em biologia, estudou também<br />

cinema e dirigiu três filmes. É autor<br />

de ensaios e romances autobiográficos,<br />

entre eles o ciclo conhecido como<br />

El rio del tiempo (1985-1<strong>99</strong>3) e A<br />

virgem dos sicários (1<strong>99</strong>4). Por O<br />

despenhadeiro (2001), recebeu o<br />

prêmio Rômulo Gallegos de 2003.<br />

Vive no México desde 1971.<br />

trecho • O<br />

despenhadeiro<br />

• r<br />

Que nada! A Colômbia não vai<br />

acabar nunca! Hoje nós a vemos corroída<br />

pela sujeira dos advogadozinhos<br />

de meia-tigela, carcomida<br />

pelo câncer do clientelismo, consumida<br />

pela fome insaciável do conservadorismo,<br />

do liberalismo, do catolicismo,<br />

moribunda, prostrada, e<br />

amanhã ela se levanta do seu leito<br />

de agonia, toma uma cachaça e,<br />

como se nada tivesse acontecido,<br />

dá-lhe outra vez, rumo à devassidão,<br />

ao matadouro, ao sabá! Colômbia,<br />

Colombina, Colombinha,<br />

pombinha: quando eu morrer você<br />

não vai se esquecer de mim, não é?

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