Representações do espaço urbano e rural na obra ficcional ... - UTP
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<strong>Representações</strong> <strong>do</strong> <strong>espaço</strong> <strong>urbano</strong> e <strong>rural</strong> <strong>na</strong> <strong>obra</strong><br />
ficcio<strong>na</strong>l de Macha<strong>do</strong> de Assis<br />
INTRODUÇÃO<br />
Em uma de suas mais notáveis <strong>obra</strong>s, “O Campo e a Cidade”,<br />
Raymond Williams coloca a relação entre esses <strong>do</strong>is <strong>espaço</strong>s, como se<br />
pode ver a seguir:<br />
[...] esta ligação entre a terra da qual to<strong>do</strong>s nós, diretamente ou<br />
indiretamente, extraímos nossa subsistência, e as realizações da<br />
sociedade huma<strong>na</strong>. E uma dessas realizações é a cidade: a capital, a<br />
cidade grande, uma forma distinta de civilização. 1<br />
O contraste entre campo e cidade, enquanto formas fundamentais<br />
de vida, remonta à Antigüidade clássica. A realidade histórica, contu<strong>do</strong>,<br />
varia grandemente. A forma de vida campestre pode ser experimentada<br />
por uma sociedade de caça<strong>do</strong>res, pastores, fazendeiros ou empresários<br />
agro-industriais. Também não são peque<strong>na</strong>s as diferenças entre as<br />
cidades antigas e medievais e as metrópoles moder<strong>na</strong>s. Mesmo com<br />
todas as variabilidades históricas, algumas imagens e sentimentos<br />
cristalizaram-se em torno ao campo e à cidade. O primeiro passou a<br />
ser associada a uma forma <strong>na</strong>tural de vida, propicia<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> desfrute da<br />
paz, da inocência e das virtudes simples. À segunda ficou reserva<strong>do</strong> o<br />
conceito de centro de realizações, <strong>do</strong> saber e das comunicações. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, enquanto o campo foi vincula<strong>do</strong> à idéia de atraso, ignorância<br />
Autor: Antônio Marcos Anibelli Velozo<br />
Orienta<strong>do</strong>r: Clóvis Mendes Gruner<br />
e limitação, a cidade foi associada a lugar de barulho, mundanidade,<br />
ambição, etc.<br />
Na verdade, e como bem coloca Williams, “devemos saber explicar,<br />
em termos relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s, tanto a persistência quanto à historicidade <strong>do</strong>s<br />
conceitos.” 2<br />
Neste senti<strong>do</strong>, o autor ressalta a importância de, em determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s<br />
momentos, realizar-se:<br />
[...] cortes transversais específicos: perguntar não ape<strong>na</strong>s o que<br />
está acontecen<strong>do</strong>, num da<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, com as idéias <strong>do</strong> campo e da<br />
cidade, mas também a que outras idéias, dentro de uma estrutura<br />
mais geral, elas estão associadas. 3<br />
Mesmo porque,<br />
[...] a vida <strong>do</strong> campo e da cidade é móvel e presente: move-se ao<br />
longo <strong>do</strong> tempo, através da história de uma família e um povo; movese<br />
em sentimentos e idéias, através de uma rede de relacio<strong>na</strong>mentos<br />
e decisões. 4<br />
Uma característica desta relação, <strong>na</strong> grande maioria das vezes,<br />
deve-se ao olhar da cidade que dá a representar tanto o campo quanto<br />
a si próprio. Williams relata em seu livro que, ten<strong>do</strong> vin<strong>do</strong> de uma aldeia<br />
para uma cidade a fim de estudar, foi ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> universidade que veio<br />
a conhecer,<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 1<br />
| História | 2009
[...] através de gente citadi<strong>na</strong>, <strong>do</strong>s acadêmicos, uma versão influente<br />
<strong>do</strong> que realmente representava a vida campestre, a literatura<br />
campestre: uma história cultural preparada e convincente. 5<br />
Neste aspecto, Joaquim Maria Macha<strong>do</strong> de Assis, <strong>na</strong>sci<strong>do</strong> no Morro <strong>do</strong><br />
Livramento, <strong>na</strong> cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro, no ano de 1839, não foge ao comum.<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis é reconhecidamente um escritor <strong>urbano</strong>. Sabemos que<br />
pouquíssimas vezes ausentou-se de sua cidade <strong>na</strong>tal, ainda assim prolongan<strong>do</strong><br />
esta ausência por, no máximo três meses, uma única vez.<br />
Podemos dizer que <strong>espaço</strong>s e figuras <strong>do</strong> meio <strong>rural</strong>, da roça, como<br />
comumente se refere o próprio escritor, aparecem em sua <strong>obra</strong> fíccio<strong>na</strong>l<br />
ape<strong>na</strong>s incidentemente. Poucos são os contos cujas histórias se passam<br />
no campo ou fora da Corte; em seus contos, que <strong>na</strong> maioria têm como<br />
ambiência a Corte, perso<strong>na</strong>gens da roça são exceções. Mesmo assim,<br />
a leitura de alguns contos (Macha<strong>do</strong> escreveu cerca de duas cente<strong>na</strong>s)<br />
pode nos revelar idéias, sugestões, olhares comuns aos da<strong>do</strong>s referentes<br />
à “oposição” (seria oportuno acrescentar complementação, reflexão?)<br />
campo e cidade.<br />
Segun<strong>do</strong> Samira Nahid de Mesquita 6 , as categorias tempo e <strong>espaço</strong><br />
são <strong>do</strong>is fatores estruturantes da significação da <strong>obra</strong> ficcio<strong>na</strong>l de<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis. Para Samira, no que se refere à categoria <strong>espaço</strong>,<br />
a cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro, <strong>na</strong> <strong>obra</strong> machadia<strong>na</strong>, é considerada uma<br />
arquiperso<strong>na</strong>gem ou arquiator, numa função que transcende os limites<br />
das perso<strong>na</strong>gens, ao mesmo tempo em que é perpassada por elas. Bem<br />
observa<strong>do</strong>, portanto, que ainda que se tratem de referências espaciais,<br />
objetivas, “aí também se encontra a mutabilidade deslizante <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>,<br />
a articular diferenças e identidades.” 7<br />
A cidade atua, muitas vezes, como metáfora de condições ético-<br />
existenciais, sócio-culturais ou de esta<strong>do</strong>s emocio<strong>na</strong>is diversos das<br />
perso<strong>na</strong>gens. Segun<strong>do</strong> Mesquita, os diversos aspectos da cidade, cruéis<br />
e destrutivos, sedutores, a religião, a cultura, os jogos e as festas, “todas<br />
as possibilidades de trocas simbólicas, de práticas significantes”, <strong>na</strong>da<br />
escapou à pe<strong>na</strong> <strong>do</strong> “grande bruxo da nossa literatura.” 8<br />
Leenhardt e Pesavento 9 afirmam que a literatura e a história são<br />
formas de percepção e leitura <strong>do</strong> real, traduzem uma sensibilidade <strong>na</strong><br />
apreensão <strong>do</strong> real. Nesse senti<strong>do</strong>, ambas são instrumentos que contribuem<br />
para a formação da identidade individual e social, constituin<strong>do</strong>-se em<br />
socialização das memórias e discursos.<br />
No entender de Pesavento, “a <strong>obra</strong> literária não é um mero da<strong>do</strong><br />
ou <strong>do</strong>cumento, ela se constitui num ‘algo a mais’ [...] referimo-nos à<br />
questão da sensibilidade ou da possibilidade de atingir aquela ‘sintonia<br />
fi<strong>na</strong>’ que permite captar o passa<strong>do</strong>[...].” 10<br />
A análise <strong>do</strong> imaginário machadiano relativo às diferenças entre<br />
o <strong>urbano</strong> e o <strong>rural</strong> será feita através da leitura de sua <strong>obra</strong> ficcio<strong>na</strong>l,<br />
deten<strong>do</strong>-se em alguns de seus contos. Macha<strong>do</strong> produziu cerca de<br />
duas cente<strong>na</strong>s destes durante largo perío<strong>do</strong> de sua vida em que<br />
colaborou em jor<strong>na</strong>is e revistas como o “Jor<strong>na</strong>l das Famílias” – entre<br />
os anos de 1863 a 1878 -, e “A Estação”, entre os anos de 1879 e<br />
1898, entre outros.<br />
Muitos de seus contos publica<strong>do</strong>s em periódicos não foram<br />
republica<strong>do</strong>s, em volume, pelo autor. Edições póstumas republicaram<br />
muitos destes, porém ainda carece à pátria <strong>do</strong> gênio de uma edição<br />
completa (e dig<strong>na</strong>!) de sua <strong>obra</strong>.<br />
Pretende-se, assim, investigar com que qualidades e valores estes<br />
<strong>espaço</strong>s são representa<strong>do</strong>s, bem como são capazes de investir aqueles<br />
que lhes pertencem, influencian<strong>do</strong> seus comportamentos e a maneira<br />
como representam a si e aos outros.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 2<br />
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Ao lermos Macha<strong>do</strong> de Assis, temos idéia <strong>do</strong> Rio de Janeiro imperial<br />
da segunda metade <strong>do</strong> século XIX. Em seus contos, vislumbramos a<br />
sociedade carioca de então através de uma caracterização subjetiva<br />
riquíssima das perso<strong>na</strong>gens, e podemos, dessa forma, pela lente <strong>do</strong><br />
gênio machadiano, defrontarmo-nos com o universo intelectual e afetivo<br />
de homens e mulheres, seus desejos e expectativas, preconceitos e<br />
temores, mitos e paradigmas.<br />
Bronislaw Baczko define o imaginário social como a<br />
[...] orientação da atividade imagi<strong>na</strong>tiva em direção ao social, isto é,<br />
a produção de representações da ‘ordem social’, <strong>do</strong>s atores sociais<br />
e das suas relações recíprocas (hierarquia, <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção, obediência,<br />
conflito, etc.), bem como das instituições sociais... 11<br />
Qual era a identidade dessa sociedade? Quais as representações<br />
que ela fazia de si? Qual a distribuição <strong>do</strong>s papéis e das posições<br />
sociais? Quais os códigos <strong>do</strong> bom comportamento? Essas são algumas<br />
das questões que, segun<strong>do</strong> Baczko, fazem parte <strong>do</strong> imaginário social.<br />
Dessa forma, aponta como relacio<strong>na</strong>da a essa identidade a forma como<br />
essa coletividade encara suas relações com o meio ambiente e com os<br />
outros. O trabalho <strong>do</strong> imaginário<br />
[...] opera através de séries de oposições que estruturam as forças<br />
afetivas que agem sobre a vida coletiva, unin<strong>do</strong>-as, por meio de uma<br />
rede de significações, às dimensões intelectuais dessa vida coletiva:<br />
legitimar/invalidar; justificar/acusar; mobilizar/desencorajar; incluir/<br />
excluir (relativamente ao grupo em causa), etc. 12<br />
A oposição entre o <strong>urbano</strong> e o <strong>rural</strong>, carregada de simbolismos que se<br />
definem em oposição e complementaridade, deverá se mostrar revela<strong>do</strong>ra<br />
de muitos aspectos <strong>do</strong> imaginário social. Parece-nos, assim, que a<br />
problemática proposta adentra, de forma clara e incisiva, os meandros<br />
<strong>do</strong> imaginário de uma sociedade de época, altamente elitista, oligárquica,<br />
possui<strong>do</strong>ra de paradigmas de desenvolvimento, civilidade, etc.<br />
No primeiro capítulo, valemo-nos de três autores que discutem o<br />
escritor, seu tempo e sua <strong>obra</strong>, a fim de melhor prepararmo-nos para<br />
a tarefa proposta. “Ao vence<strong>do</strong>r, as batatas” é já um clássico da crítica<br />
brasileira, em virtude da origi<strong>na</strong>lidade de seus argumentos quanto à<br />
cultura e literatura <strong>do</strong> século XIX, i<strong>na</strong>uguran<strong>do</strong> novos caminhos para os<br />
estu<strong>do</strong>s sobre Macha<strong>do</strong>. Da mesma forma, “Macha<strong>do</strong> de Assis: ficção e<br />
história”, de John Gledson, também devassa territórios inexplora<strong>do</strong>s <strong>na</strong><br />
<strong>obra</strong> machadia<strong>na</strong>, principalmente no que se refere ao papel da história <strong>na</strong><br />
sua <strong>obra</strong>. Estudioso, ele mesmo, da história brasileira, sua contribuição<br />
para o entendimento da <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> é inestimável.<br />
Chalhoub completa a tríade, sen<strong>do</strong> relevante a sua contribuição como<br />
historia<strong>do</strong>r de ofício, ten<strong>do</strong>, além <strong>do</strong> conhecimento referente à época, em<br />
especial a escravidão, acompanhan<strong>do</strong>, inclusive, o Macha<strong>do</strong> burocrata,<br />
através da análise pormenorizada de <strong>do</strong>cumentos concernentes aos<br />
ministérios nos quais este trabalhou, enriquecen<strong>do</strong>, assim, sua análise<br />
com este material tão importante para visualização <strong>do</strong> contexto de vida<br />
<strong>do</strong> escritor. Esses três autores muito contribuíram para a percepção da<br />
importância da <strong>obra</strong> machadia<strong>na</strong> como fonte para o estu<strong>do</strong> da história<br />
de seu tempo.<br />
Por último, e com relação à escolha <strong>do</strong> tema, gostaríamos de dizer, e<br />
usan<strong>do</strong> as palavras de Raymond Williams,<br />
[...] que, para mim, a questão sempre foi pessoal, desde que me<br />
tenho por gente[...] e, como a relação entre campo e cidade é não<br />
ape<strong>na</strong>s um problema objetivo e matéria de história, como também,<br />
para milhões de pessoas, hoje e no passa<strong>do</strong>, uma vivência direta e<br />
intensa, não julgo necessário justificar esta causa pessoal, ainda que<br />
faça questão de mencioná-la. 13<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 3<br />
| História | 2009
1. MachaDO De assIs eM TRês TeMpOs<br />
1.1. “ao vence<strong>do</strong>r, as batatas”,<br />
Roberto schwarz<br />
Se a <strong>obra</strong> literária, como afirma Juracy Saraiva 14 , possui uma<br />
ambigüidade que lhe é própria, o que dizer da machadia<strong>na</strong>, que carrega<br />
fortemente nesta característica que lhe é peculiar? Assim que a crítica<br />
tem se mostra<strong>do</strong> de formas diversas no correr das gerações.<br />
Foram-lhe destaca<strong>do</strong>s o aperfeiçoamento evolutivo e a erudição e<br />
pessimismo fibra<strong>do</strong>s pelo humor e ironia já por seus contemporâneos,<br />
como Araripe Júnior e José Veríssimo. Destacou-se, também, a crítica<br />
voltada aos fatores pessoais com Lúcia Miguel-Pereira e sociais<br />
e psicológicos, como em Afrânio Coutinho e Augusto Meyer. Na<br />
perspectiva que toma a <strong>obra</strong> literária em estreita ligação com o fato<br />
social, destacaram-se as <strong>obra</strong>s de Raymun<strong>do</strong> Faoro, Roberto Schwarz<br />
e John Gledson.<br />
Publica<strong>do</strong> pela primeira vez em 1977, “Ao vence<strong>do</strong>r as batatas” 15<br />
provocou uma reviravolta <strong>na</strong> crítica machadia<strong>na</strong>, significan<strong>do</strong> uma ruptura<br />
com o que havia até então. Um <strong>do</strong>s pontos de partida deste livro teria<br />
si<strong>do</strong> o resgate crítico <strong>do</strong> processo histórico arma<strong>do</strong> por Antonio Cândi<strong>do</strong><br />
em “Formação da literatura brasileira”: o estu<strong>do</strong> entre forma literária e<br />
processo social nos inícios <strong>do</strong> romance brasileiro.<br />
Inician<strong>do</strong> o livro com o famoso ensaio “As idéias fora <strong>do</strong> lugar”,<br />
Roberto Schwarz procura evidenciar a existência, no Brasil de mea<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> século XIX, de um descompasso entre o mun<strong>do</strong> das idéias e o mun<strong>do</strong><br />
das práticas sociais. A apropriação <strong>do</strong> ideário liberal europeu, então em<br />
voga em nosso país, porém expressão intelectual de uma sociedade<br />
que se industrializava, contrastava claramente com instituições como<br />
a escravidão e o clientelismo, este último como que um sucedâneo da<br />
primeira.<br />
Para Schwarz, o nexo colonial e a dependência que veio continuá-<br />
lo impunha-nos um papel que resultava no destoar entre a volatilidade<br />
ideológica da elite e a fixidez característica das relações sociais de<br />
base. Nada mais que a parte que nos cabia em virtude de nossa posição<br />
periférica no sistema gravitacio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> capitalismo.<br />
Segun<strong>do</strong> Schwarz, as criações artísticas estão inescapavelmente<br />
vinculadas à realidade histórica da qual constituem representação.<br />
Dessa forma, entende que o grande tour de force de nossa literatura<br />
seria exatamente o de expressar esteticamente esse mecanismo social<br />
que nos era peculiar. Aí residirá o desafio imposto a nossos escritores,<br />
qual seja, o de des<strong>do</strong>brar esse descentramento e desafi<strong>na</strong>ção a que nos<br />
conde<strong>na</strong>va a mera reposição das idéias européias em solo pátrio. Uma<br />
vez que os escritores sobrepõem uma forma a outra, é da felicidade dessa<br />
operação que dependem força, resulta<strong>do</strong>s, etc... Para Schwarz, estes<br />
deram preferência, a fim de enfrentar tal desafio, ao retrato das práticas<br />
<strong>do</strong> favor, por este constituir um tema mais ameno que o <strong>do</strong> escravismo.<br />
O favor trazia consigo o reconhecimento implícito de que as partes<br />
envolvidas estavam fora da relação escravista, o que, principalmente<br />
para aqueles que estavam numa posição mais fraca, já não era pouca<br />
coisa. Bom para ambas as partes, ninguém o denuncia.<br />
Schwarz prossegue afirman<strong>do</strong> que ten<strong>do</strong> o romance modelo europeu,<br />
era <strong>na</strong>tural que a sua importação apresentasse dificuldades em vista das<br />
especificidades <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Nosso cotidiano, <strong>do</strong>mi<strong>na</strong><strong>do</strong> pelas relações de<br />
favor, não se harmonizava com as tramas extremadas e os grandes temas<br />
próprios ao romance. Uma vez que a<strong>do</strong>tá-lo significava acatar a sua<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 4<br />
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maneira de tratar as ideologias, e já que estas, entre nós, encontravam-<br />
se deslocadas, caberia ao escritor reiterar esse deslocamento em nível<br />
formal, a fim de ser coerente com sua matéria.<br />
Segun<strong>do</strong> Schwarz, José de Alencar já falhara nesse propósito,<br />
aplican<strong>do</strong> um molde europeu que não se ajustava satisfatoriamente<br />
ao temário localista que pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>va <strong>na</strong> “periferia” <strong>do</strong> seu romance,<br />
contrastan<strong>do</strong> com o tom europeu da trama central. Schwarz afirma que<br />
essa dualidade formal, responsável por uma inconsistência central <strong>na</strong><br />
<strong>obra</strong> realista de Alencar, era reflexo <strong>na</strong>tural de uma dificuldade essencial<br />
de nossa vida ideológica.<br />
Entende Schwarz que não poden<strong>do</strong> o romance elimi<strong>na</strong>r a oposição,<br />
e sen<strong>do</strong> o efeito desencontra<strong>do</strong> um resulta<strong>do</strong> necessário da combi<strong>na</strong>ção,<br />
mais especificamente o que se havia de buscar era um redimensio<strong>na</strong>mento<br />
ou recombi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong>s elementos destoantes, de mo<strong>do</strong> que estes se<br />
apresentassem com uma lógica própria, proporcio<strong>na</strong><strong>do</strong>ra de um certo<br />
controle <strong>do</strong>s desníveis <strong>na</strong>rrativos, permitin<strong>do</strong> então que estes últimos<br />
pudessem ser manipula<strong>do</strong>s e satiriza<strong>do</strong>s. “Esta será a façanha de<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis” 16 .<br />
O temário periférico e localista de Alencar viria para o centro <strong>do</strong><br />
romance machadiano, e a fratura <strong>do</strong> conjunto, que se observa em Alencar,<br />
essa inconsistência, fruto de uma característica da vida <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, tor<strong>na</strong>r-<br />
se-á para Macha<strong>do</strong> um efeito conscientemente procura<strong>do</strong>, aparecen<strong>do</strong><br />
em to<strong>do</strong> o percurso <strong>na</strong>rrativo. De efeito fi<strong>na</strong>l, passa a recurso para outro<br />
efeito, qual seja, a imitação de um aspecto essencial da realidade.<br />
Na apreciação que faz <strong>do</strong>s primeiros romances de Macha<strong>do</strong> de Assis<br />
(“A mão e a luva”, “Hele<strong>na</strong>” e “laiá Garcia”), Roberto Schwarz aponta<br />
a falta de “simpatia, que a ingenuidade - para os olhos de hoje - dá ao<br />
rompante de Alencar”. 17 Essa seria a diferença entre as primeiras <strong>obra</strong>s<br />
de Macha<strong>do</strong> em relação às de José de Alencar, já que tanto umas como<br />
outras trazem em sua composição a marca da dependência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
Além disso, os de Macha<strong>do</strong>, “são livros delibera<strong>do</strong>s e desagradavelmente<br />
conformistas”. 18 Segun<strong>do</strong> Schwarz, contrariamente a Alencar, que<br />
perfilara pelo realismo e sua temática <strong>do</strong> dinheiro e <strong>do</strong> individualismo,<br />
“vivas e críticas ainda em nossos dias” 19 , Macha<strong>do</strong> conde<strong>na</strong>ra-se “à<br />
estreiteza apologética da Reação européia de fun<strong>do</strong> católico” 20 , e insistia<br />
<strong>na</strong> “santidade das famílias” e <strong>na</strong> “dignidade da pessoa (por oposição<br />
a seu direito)”. 21 Tratar-se-ia da substituição da referência liberal pelo<br />
pater<strong>na</strong>lismo conserva<strong>do</strong>r. Inicialmente engaja<strong>do</strong> <strong>na</strong> militância liberal,<br />
Macha<strong>do</strong>, “movi<strong>do</strong> por razões que resta aos biógrafos esclarecer” 22 ,<br />
haveria de acabar nutrin<strong>do</strong> seus primeiros romances da ideologia anti-<br />
liberal. Essa viravolta conserva<strong>do</strong>ra, no entendimento de Schwarz,<br />
fundamentada certamente em sua experiência de vida e não fruto de<br />
uma atitude levia<strong>na</strong>, acabou por ter um efeito saudável sobre a matéria<br />
literária, livran<strong>do</strong>-a <strong>do</strong>s surra<strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong> homem e generalizações<br />
libertárias, próprias ao individualismo romântico. Mas também teria si<strong>do</strong><br />
responsável pelo acanhamento ideológico desses livros, de forma que os<br />
grandes temas da modernidade, como os antagonismos <strong>do</strong> individualismo<br />
liberal e da instrumentalização geral, cedem <strong>espaço</strong> para assuntos<br />
relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s a costumes, desejos, conformidades; sempre adstritos ao<br />
âmbito <strong>do</strong> favor e da cooptação, bem como da esfera <strong>do</strong>méstica.<br />
Segun<strong>do</strong> Shwarz, esse universo familiar próprio ao mun<strong>do</strong><br />
pater<strong>na</strong>lista, se num primeiro momento mostra-se não ape<strong>na</strong>s cabuloso,<br />
de ingrata empreitada a<strong>na</strong>lítica, mas também como ternário menor, por<br />
outro la<strong>do</strong> favorecerá a perscrutação das razões insólitas, facilitan<strong>do</strong><br />
também a descrição <strong>do</strong>s costumes. Essa idealização da família ainda se<br />
revela excelente núcleo romanesco, onde toda a matéria de observação<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 5<br />
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adere com facilidade, em virtude da “infinidade de relações inteligíveis<br />
que o processo real tece. [...] Não é outro o problema de qualquer<br />
romance: um princípio formal capaz de acolher a empiria”. 23 Para<br />
Schwarz, a opção pelo pater<strong>na</strong>lismo em detrimento da temática liberal,<br />
ao mesmo tempo em que explicitava a situação de atraso <strong>do</strong> Brasil, ao<br />
desnudar o universo de <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção e submissão, também demonstrava<br />
o senso de realidade <strong>do</strong> autor, uma vez que entre nós a mercantilização<br />
da sociedade não se consumara.<br />
Em “A mão e a luva”, a intenção de Macha<strong>do</strong> teria si<strong>do</strong> a de<br />
apresentar uma versão possível de cooptação em que, apresentan<strong>do</strong>-<br />
se “o interesse bem compreendi<strong>do</strong> das partes” 24 , esta ficava como<br />
que legitimada. Audaciosamente, por outro la<strong>do</strong>, entende Schwarz que<br />
Macha<strong>do</strong> oferece um quadro condizente com a realidade prática e pinta<br />
uma heroí<strong>na</strong> capaz de conciliar cálculos e sentimentos em sua conduta<br />
visan<strong>do</strong> à consecução de seus fins. Encontramo-nos já diante da clássica<br />
dubiedade machadia<strong>na</strong>, senão, vejamos: sen<strong>do</strong> Guiomar uma moça de<br />
origem humilde que é apadrinhada de uma senhora à qual pretende<br />
substituir-se no afeto perdi<strong>do</strong> com a filha morta, a questão que se coloca<br />
é a da sinceridade de seus sentimentos para com essa segunda mãe. O<br />
<strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r nos diz que em seu “afeto sincero” havia um “encarecimento<br />
que seria voluntário”. Noutra passagem Guiomar pratica uma impostura<br />
“honesta e reta”, já que a “intenção” da afilhada <strong>na</strong>da mais era que evitar<br />
desgostos à sua protetora.<br />
Dessa forma, Schwarz aponta para um movimento contínuo de<br />
para<strong>do</strong>xos e oposições em que os motes românticos são suspensos<br />
imediatamente após terem si<strong>do</strong> trazi<strong>do</strong>s à baila. Como afirma Schwarz,<br />
“assim, o desmenti<strong>do</strong> que a realidade inflige às apreciações românticas<br />
veio a ser um elemento formal, algo como um timbre de prosa”. 25 E mais,<br />
“trata-se de uma posição refletida, em que se reivindica a realidade das<br />
relações locais contra os sentimentos ‘literários’ da Europa”. 26 Ao colocar<br />
o pater<strong>na</strong>lismo no primeiro plano, e apresentar uma heroí<strong>na</strong> imune<br />
aos antagonismos <strong>do</strong> vocabulário romântico, Macha<strong>do</strong> de Assis teria<br />
demonstra<strong>do</strong> desobstrução mental e afirmação de diferença brasileira. Ao<br />
por de mãos dadas pater<strong>na</strong>lismo e “riqueza moder<strong>na</strong>, urba<strong>na</strong>, com forma<br />
de merca<strong>do</strong>ria e sem vínculo tradicio<strong>na</strong>l” 27 , Macha<strong>do</strong> tratava de reunir<br />
no plano durável e generaliza<strong>do</strong>r das formas, sistemas tão estranhos<br />
entre si como ideias românticas e teci<strong>do</strong> social local. Assim transformava<br />
da<strong>do</strong>s da vida cotidia<strong>na</strong> em elementos de construção romanesca.<br />
Schwarz também chama a atenção para a postura <strong>do</strong> <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r, que<br />
se encaixa perfeitamente no quadro que vimos apontan<strong>do</strong>. Por exemplo,<br />
em “não havia esperar que as fosse colher [as flores <strong>do</strong> coração] em<br />
sítios agrestes e nus”, pode-se deduzir um “ninguém espere, quem<br />
lhes diz é um que esperou”. Dessa forma estaria completa a inversão<br />
pretendida onde é a espontaneidade romântica que se tor<strong>na</strong> um artifício,<br />
e a conduta <strong>na</strong>tural é aquela de Guiomar, que sabe tirar parti<strong>do</strong>.<br />
Para Schwarz, nesse romance, Macha<strong>do</strong> de Assis estampa<br />
literariamente o oportunismo inerente ao “liberal escravismo<br />
pater<strong>na</strong>lista” 28 onde a família revela-se como é, mais uma forma de<br />
particularismo. A deficiência seria não abarcar o mun<strong>do</strong> moderno <strong>do</strong><br />
individualismo burguês e da civilização material.<br />
Assim “A mão e a luva” procuraria oferecer uma visão em que o<br />
ascenso social, ainda que ofereça dificuldades, não é visto como<br />
um problema nem acompanha<strong>do</strong> da injustiça. Mesmo idealiza<strong>do</strong> sob<br />
vários aspectos, “Hele<strong>na</strong>”, o próximo romance, será menos otimista e<br />
apresentará um quadro onde a cooptação será vista <strong>na</strong> perspectiva das<br />
suscetibilidades.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 6<br />
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Em “Hele<strong>na</strong>”, assistimos à abertura <strong>do</strong> testamento <strong>do</strong> Conselheiro<br />
Vale, no qual este, após revelar a existência de uma filha fora de seu<br />
casamento, determi<strong>na</strong> que esta seja integrada a sua família. A partir de<br />
então, têm-se as tentativas de Hele<strong>na</strong>, moça mal <strong>na</strong>scida que se vê <strong>na</strong><br />
contingência de granjear a consideração de uma família pertencente às<br />
primeiras classes da sociedade.<br />
Equivalen<strong>do</strong> ao cálculo sincero de Guiomar em “A mão e luva”, o<br />
acento estará agora no ânimo forte de Hele<strong>na</strong> que se impõe a tarefa de<br />
mostrar-se merece<strong>do</strong>ra da estima da nova família, a fim de pavimentar<br />
um ascenso sem degradação. Assim, a vivacidade <strong>do</strong>s melindres de<br />
Hele<strong>na</strong> constitui um retrato de “certas dimensões mais prosaicas” 29 da<br />
assimetria das relações no pater<strong>na</strong>lismo, onde a “norma de respeito, tida<br />
como indispensável” 30 muitas vezes é mera questão de generosidade.<br />
Schwarz vê o pater<strong>na</strong>lismo atrela<strong>do</strong> à sociedade escravista, <strong>na</strong> qual<br />
o homem livre sem propriedades e sem salário (o trabalho fica por conta<br />
<strong>do</strong>s escravos), só pode participar da riqueza social através <strong>do</strong> favor<br />
<strong>do</strong>s senhores. Destaca-se, portanto, o elemento de arbítrio <strong>na</strong> relação,<br />
onde, <strong>na</strong> prática, ao menor desgosto a parte mais forte pode sentir-se<br />
insultada. Dessa forma, a gratidão pode acompanhar-se de humilhação.<br />
O horror à gratidão expressa, então, um visco <strong>do</strong> pater<strong>na</strong>lismo para a<br />
parte mais fraca, fazen<strong>do</strong> com que Hele<strong>na</strong> prefira a miséria à vergonha.<br />
Mais uma vez Schwarz oscila entre entendimentos diversos. Outra<br />
vez Macha<strong>do</strong> procurara legitimar o pater<strong>na</strong>lismo ao oferecer “uma via<br />
que tanto corrige a brutalidade da sujeição pessoal quanto à baixeza<br />
<strong>do</strong> motivo econômico”. 31 Por outro la<strong>do</strong>, reconhece o escancaramento<br />
da estreiteza e humilhação pater<strong>na</strong>lista. Essa crítica, contu<strong>do</strong>, estaria<br />
atrelada à defesa <strong>do</strong>s pobres mais <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s, integrantes, portanto,<br />
<strong>do</strong> número daqueles candidatos à cooptação, bem como constituiria<br />
um tributo, ainda que distante, ao individualismo burguês. Teríamos<br />
assim mais uma tentativa de conciliação através da formulação de um<br />
pater<strong>na</strong>lismo esclareci<strong>do</strong>, onde a dignidade da pessoa encontra-se em<br />
posição privilegiada em relação às desigualdades materiais.<br />
Para Schwarz, o aspecto mais ousa<strong>do</strong> <strong>do</strong> livro encontra-se nos<br />
cuida<strong>do</strong>s opressivos de Estácio (o novo irmão) para com Hele<strong>na</strong>. Ao<br />
trabalhar com os movimentos inconscientes <strong>do</strong> desejo, Macha<strong>do</strong> de Assis<br />
entrava em águas moder<strong>na</strong>s e estilizava o arbítrio que se desconhece a<br />
si mesmo e é pratica<strong>do</strong> mesmo no interior da virtude e <strong>do</strong> respeito.<br />
Assim, segun<strong>do</strong> Schwarz, Macha<strong>do</strong> produzia uma réplica ao apetite<br />
de realidade e saber e à imparcialidade científica da literatura <strong>do</strong> século<br />
XIX. Essa reflexão psicológica seria já uma representação mais complexa<br />
<strong>do</strong> pater<strong>na</strong>lismo, em que a virtude não impede os horrores <strong>do</strong> arbítrio, e a<br />
parte mais fraca se vê refém das confusões afetivas de seus superiores.<br />
Segun<strong>do</strong> Schwarz, ao levar esta complexidade “clandesti<strong>na</strong>” 32 a todas as<br />
perso<strong>na</strong>gens, Macha<strong>do</strong> realizará “uma das façanhas e um <strong>do</strong>s princípios<br />
formais <strong>do</strong>s romances da segunda fase”. 33<br />
Voltan<strong>do</strong> à “Hele<strong>na</strong>”, Schwarz sublinha o ecletismo <strong>do</strong> livro em sua<br />
composição, a qual transita entre o realismo, o romance rosa, o acento<br />
bíblico, etc, e cuja riqueza ideológica e retórica será também uma das marcas<br />
<strong>do</strong> futuro Macha<strong>do</strong>. Diversidade que trará autenticidade aos seus escritos, a<br />
“salada intelectual <strong>na</strong> qual o Brasil encontra seu registro imortal”. 34<br />
Em “Hele<strong>na</strong>”, teríamos o tema <strong>do</strong> sacrifício acompanha<strong>do</strong> de<br />
conotações negativas, como sufocamento e frustação, já envoltos no<br />
individualismo romântico, porém num contexto localista. Em “Iaiá Garcia”,<br />
o pater<strong>na</strong>lismo estaria presente em toda a <strong>obra</strong>, inclusive como mola<br />
profunda <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong> assim unidade ao romance, o que demonstra<br />
“um trabalho já considerável de apropriação e crítica, da realidade e da<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 7<br />
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literatura”. 35 Desse esforço, teria resulta<strong>do</strong> a expansão <strong>do</strong> cenário social,<br />
histórico, e, mesmo geográfico, que não seria, portanto, fruto da mera<br />
somatória de elementos.<br />
Em “Iaiá Garcia”, contu<strong>do</strong>, considera Schwarz, a questão da<br />
cooptação é vista com profun<strong>do</strong> desencanto, uma vez que o desencanto<br />
é a única defesa <strong>do</strong>s mais fracos contra as ilusões <strong>do</strong> pater<strong>na</strong>lismo.<br />
Dessa vez, os heróis da novela evitam as relações que importam<br />
vínculos de favor, dan<strong>do</strong> preferência a uma vida, ainda que distante<br />
das benesses de um padrinho rico, imune às ilusões que o elemento<br />
de capricho, inerente às relações de favor, possibilita. Macha<strong>do</strong> teria<br />
pretendi<strong>do</strong> apresentar uma versão menos indig<strong>na</strong> da dependência ao<br />
criar esses tipos de comportamento discreto e impessoal. O deixar-<br />
se levar por sonhos de elevamento social significaria abaixar a guarda<br />
e se deixar seduzir, além de reconhecer a própria inferioridade. Para<br />
Schwarz, em “Iaiá Garcia” a cooptação é sempre degradante; nem<br />
mesmo o amor a redime.<br />
Na sua opinião, teríamos assim, nessa severidade da desilusão,<br />
uma nota realista <strong>do</strong> livro, provan<strong>do</strong> também que pater<strong>na</strong>lismo e impulso<br />
realista não eram incompatíveis. Inclusive a esse romance não faltaria<br />
nem mesmo a incorporação ocasio<strong>na</strong>l e fluente de algum evento histórico,<br />
no caso, a Guerra <strong>do</strong> Paraguai. Segun<strong>do</strong> Schwarz, porém, trata-se de<br />
um realismo limita<strong>do</strong>, onde “o conflito das coisas huma<strong>na</strong>s” 36 , apesar de<br />
desenvolvi<strong>do</strong>, convive com “a justa glória de seu país”. 37<br />
Schwarz afirma que o livro prepara enfrentamentos que não<br />
acontecem. “A tese é que <strong>na</strong>da se completa”. 38 Segun<strong>do</strong> ele, a supressão<br />
<strong>do</strong> movimento romanesco, fruto da observação local, é um avanço<br />
realista de Macha<strong>do</strong>. Daí uma “descontinuidade e perda de tensão [...]<br />
uma desarmonia que, no entanto, é ela mesma uma forma” 39 e que seria a<br />
estilização da realidade das relações, qual seja, a permanente frustação<br />
das aspirações de independência das classes dependentes.<br />
Para Schwarz, ao encontrar a solução para o desafio realista em<br />
nosso país, Macha<strong>do</strong> aban<strong>do</strong><strong>na</strong>va o molde europeu, e com ele o <strong>do</strong>mínio<br />
da racio<strong>na</strong>lidade convencio<strong>na</strong>l.<br />
1.2. “Ficção e história”, John Gledson 40<br />
Para John Gledson, Macha<strong>do</strong> pretendia não só retratar a <strong>na</strong>tureza e<br />
o desenvolvimento da sociedade em que vivia, desejo comum a diversos<br />
escritores <strong>do</strong> século XIX, como Dickens, Balzac, Zola e Pérez Galdós,<br />
mas aponta ainda a função primordial de certos eventos e situações<br />
históricas como delinea<strong>do</strong>res e estrutura<strong>do</strong>res de suas tramas ficcio<strong>na</strong>is.<br />
Seus romances, dessa forma buscariam refletir grandes e importantes<br />
verdades históricas.<br />
Gledson lembra que não há nenhuma novidade em destacar o<br />
realismo machadiano, mas ressalta que se trata de um realismo que<br />
se encontra oculto <strong>do</strong> leitor, disfarça<strong>do</strong> em meio a detalhes que, se<br />
interpreta<strong>do</strong>s corretamente, descorti<strong>na</strong>m ricamente to<strong>do</strong> um quadro<br />
social. A esse texto o qual se faz necessário ler <strong>na</strong>s entrelinhas chama-o<br />
de “realismo enganoso” (deceptive realism). 41<br />
Nessa tentativa de descobrir através <strong>do</strong> exame de suas <strong>obra</strong>s,<br />
qual era a visão de Macha<strong>do</strong> sobre a história <strong>do</strong> país, Gledson chega<br />
a compor um diagrama com os romances pós 1880 <strong>do</strong> autor, em que<br />
estes, dispostos em três pares, abordam: “Brás Cubas” e “Casa Velha”,<br />
um “ancien regime” caracteriza<strong>do</strong> por uma oligarquia escravista ainda<br />
segura de si; “Quincas Borba” e “Dom Casmurro”, que enfocam o perío<strong>do</strong><br />
da crise <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l da década de 60 e início da década de 70; e “Esaú e<br />
Jacó” e Memorial de Aires”, que versariam sobre a impossibilidade de<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 8<br />
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mudança no Brasil. Acresce que o primeiro de cada par oferece uma<br />
visão mais panorâmica, enquanto o segun<strong>do</strong> focaliza algum evento ao<br />
qual a trama procura refletir, assim a Maioridade em “Casa Velha”, o<br />
governo Rio Branco em “Dom Casmurro” e a abolição da escravatura<br />
em “Memorial de Aires”.<br />
Para a compreensão dessa visão, os acontecimentos que medeiam os<br />
anos 1867-71 são cruciais, por constituirem-se num foco perfeito para as<br />
ambiguidades e fracassos da História <strong>do</strong> Brasil. A queda <strong>do</strong> gabinete liberal<br />
e certas reformas restritas, como a Lei <strong>do</strong> Ventre Livre, refletiam aguda e<br />
pontualmente um país servi<strong>do</strong> de uma classe <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte de ranço colonialista,<br />
incapaz de encampar com responsabilidade o processo social em mutação.<br />
O diagrama de Gledson procura também oferecer uma teoria<br />
acerca <strong>do</strong> desenvolvimento de Macha<strong>do</strong> como escritor (em relação aos<br />
romances pós 1880, portanto). Respeitan<strong>do</strong> a mesma divisão em pares,<br />
Gledson destaca a mudança <strong>na</strong> atitude para com o leitor. Enquanto nos<br />
primeiros de cada série mantém-se um tom sarcástico e distante, até<br />
provocativo, nos segun<strong>do</strong>s os <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>res são consistentes e normais.<br />
Estas seriam duas opções ou tentativas de enfrentar a crise geral <strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r onisciente <strong>na</strong> ficção realista; ou a onisciência <strong>do</strong> <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r, posto<br />
em situação acima <strong>do</strong>s eventos, ou assume-se a limitação e entrega-<br />
se a <strong>na</strong>rração a uma perso<strong>na</strong>gem. Cabe frisar que, para Gledson, a<br />
experimentação <strong>na</strong>rrativa em Macha<strong>do</strong> não é um fim em si mesmo, mas<br />
um instrumento para alcançar seus propósitos realistas.<br />
Embora reconheça sua dívida para com “Ao vence<strong>do</strong>r as batatas”<br />
de Roberto Schwarz, Gledson salienta que sua abordagem privilegia o<br />
homem, o pensa<strong>do</strong>r, enquanto cria<strong>do</strong>r, contrariamente ao brasileiro que<br />
se atém a fatores de realidade independente como problemas ideológicos<br />
e soluções estilísticas.<br />
Entre os diversos capítulos de “Macha<strong>do</strong> de Assis: ficção e história”<br />
que a<strong>na</strong>lisam parte de sua <strong>obra</strong> não só ficcio<strong>na</strong>l, mas também crônicas,<br />
encontra-se um dedica<strong>do</strong> ao conto “Casa Velha”. Publica<strong>do</strong> pela primeira vez<br />
em 1885-1886, <strong>na</strong> revista “A Estação”, “Casa Velha” só seria republica<strong>do</strong><br />
em 1944, por Lúcia Miguel-Pereira, que apesar <strong>do</strong> esforço e paciência <strong>na</strong><br />
busca <strong>do</strong>s números perdi<strong>do</strong>s da revista, considerou-a uma <strong>obra</strong> menor, de<br />
elaboração provavelmente anterior ao ano de sua edição, que as obrigações<br />
jor<strong>na</strong>lísticas, em da<strong>do</strong> momento, teriam feito vir à lume.<br />
Gledson associa essa interpretação a uma orientação tradicio<strong>na</strong>l que<br />
divide a <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> de Assis em duas fases: “Em geral, o que era<br />
irônico, pessimista e psicologicamente sutil foi considera<strong>do</strong> melhor, e, portanto,<br />
posterior, e o que era romântico, otimista e moralista, ti<strong>do</strong> como anterior”. 42<br />
Sem deixar de la<strong>do</strong> completamente este entendimento, para Gledson,<br />
[...] existe, escondi<strong>do</strong> <strong>na</strong> ficção de Macha<strong>do</strong>, um grau muito maior<br />
de especulação intencio<strong>na</strong>l e extremamente anticonvencio<strong>na</strong>l – em<br />
torno da <strong>na</strong>tureza da sociedade brasileira, sua história e sua política,<br />
<strong>do</strong> que até agora foi percebi<strong>do</strong>. 43<br />
O que, ainda que especialmente, não seria exclusivo de “escritos depois<br />
de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ e da famosa crise <strong>do</strong>s quarenta<br />
anos”. 44 Além disso, essas referências funcio<strong>na</strong>riam como pistas para o<br />
devassamento de verdades históricas e políticas, ilumi<strong>na</strong>n<strong>do</strong> o posicio<strong>na</strong>mento<br />
ideológico <strong>do</strong> autor. Segun<strong>do</strong> alerta Gledson, ao ler Macha<strong>do</strong>, deve-se estar<br />
atento para a possibilidade de que nem tu<strong>do</strong> seja o que parece. Macha<strong>do</strong> teria<br />
feito (e com espantoso sucesso) um jogo perigoso, arriscan<strong>do</strong> sua reputação,<br />
porém confian<strong>do</strong> <strong>na</strong> pouca vontade de enxergar com profundidade de seus<br />
contemporâneos; ao fi<strong>na</strong>l teria tira<strong>do</strong> sua vingança, mostran<strong>do</strong> em suas<br />
tramas quanto havia de loucura, esterilidade e morte no contexto <strong>do</strong> sistema<br />
patriarcal e oligárquico.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 9<br />
| História | 2009
“Casa Velha” configura-se, a partir da interpretação de Gledson,<br />
numa alegoria política/histórica (segun<strong>do</strong> o próprio Gledson ape<strong>na</strong>s<br />
uma possível dimensão <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da <strong>obra</strong>) em que o drama de<br />
uma família serve como espelho da realidade social, ou, por outra,<br />
em que os acontecimentos políticos parecem ser produzi<strong>do</strong>s pelas<br />
necessidades e limitações de um certo tipo de sociedade. “Casa Velha”,<br />
para Gledson, trata-se de um romance histórico no qual tanto a trama,<br />
como perso<strong>na</strong>gens, e mesmo os detalhes incidentais contêm significa<strong>do</strong>s<br />
históricos e inter-relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s. Assim é que percebe a existência, <strong>na</strong><br />
trama, como elemento de estrutura, de uma periodização refletida <strong>na</strong><br />
história <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, bem como um funcio<strong>na</strong>mento simbólico que parece<br />
ligar ce<strong>na</strong>s e perso<strong>na</strong>gens a equivalentes da história política brasileira.<br />
Segun<strong>do</strong> Gledson, a intenção de Macha<strong>do</strong> teria si<strong>do</strong> a de retratar o<br />
absolutismo <strong>do</strong> poder patriarcal e seus mecanismos de autodefesa<br />
quan<strong>do</strong> ameaça<strong>do</strong>. Também sugere, “de forma mais otimista”45, a<br />
possibilidade de estarmos diante daquilo que Freyre chama de situação<br />
“semipatriarcal”46, <strong>na</strong> qual as características mais rígidas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong><br />
começam a ceder diante <strong>do</strong>s acontecimentos históricos. Outrossim,<br />
poderia ser sugestão disso, além das referências às idéias liberais e<br />
rebelião política, presentes <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa e que lhe dão exatidão histórica,<br />
o local onde está situada a Casa Velha, que embora parecen<strong>do</strong> casa de<br />
fazenda, encontra-se junto à cidade.<br />
1.3. “Macha<strong>do</strong> de assis, historia<strong>do</strong>r”,<br />
sidney chalhoub 47<br />
Conheci<strong>do</strong> como historia<strong>do</strong>r da escravidão e da vida operária no Brasil<br />
entre 1850 e 1910, Sidney Chalhoub demonstra interesse crescente por<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis desde a publicação de “Visões da Liberdade”.<br />
Assim como Roberto Schwarz e John Gledson, Chalhoub demonstra<br />
que ape<strong>na</strong>s aqueles que entendem o contexto social e histórico <strong>do</strong><br />
universo machadiano podem desvendar os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> escritor.<br />
Em “Macha<strong>do</strong> de Assis: historia<strong>do</strong>r”, ao a<strong>na</strong>lisar o romance<br />
“Hele<strong>na</strong>”, Chalhoub chama a atenção inicialmente para o fato da <strong>obra</strong><br />
ter si<strong>do</strong> escrita em 1876, portanto após a crise que medeia os anos<br />
1867-71. “Hele<strong>na</strong>” constituiria-se em metade crítica metade denúncia<br />
já <strong>do</strong>s antagonismos e violências concernentes às relações sociais no<br />
chama<strong>do</strong> “tempo saquarema” 48 , <strong>na</strong> década de 1850, época que foi o<br />
auge <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> rei<strong>na</strong><strong>do</strong> e <strong>na</strong> qual encontramos uma classe senhorial<br />
ainda segura de si. Segun<strong>do</strong> Chalhoub, o início <strong>do</strong> romance trata de fazer<br />
uma descrição da ideologia dessa classe <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte, onde a vontade<br />
<strong>do</strong> chefe de família é inviolável, organizan<strong>do</strong> e dan<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> às vidas<br />
daqueles que a circundam, e que encontra-se personificada <strong>na</strong> figura<br />
da perso<strong>na</strong>gem Estácio. Com o aparecimento de Hele<strong>na</strong>, a heroí<strong>na</strong> da<br />
trama, seríamos remeti<strong>do</strong>s aos antagonismos de classe constitutivos<br />
dessa política de <strong>do</strong>mínio, uma vez que Chalhoub entende a ideologia<br />
pater<strong>na</strong>lista operan<strong>do</strong> num “mun<strong>do</strong> que se faz <strong>na</strong> luta de classes”. 49 Com<br />
efeito, a jovem, possuín<strong>do</strong> uma outra visão da realidade que não aquela<br />
de seus benfeitores, está conde<strong>na</strong>da a uma introjeção crítica de seus<br />
valores e significa<strong>do</strong>s. Para Chalhoub, Hele<strong>na</strong> administra o cotidiano,<br />
e preserva o seu tanto de autonomia, com astúcia e dissimulação,<br />
temperan<strong>do</strong> ainda suas atitudes com um pouco de galhofa. Fracassada<br />
em suas tentativas de apresentar a seu novo irmão outras formas de<br />
interpretação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, pois Estácio, como exemplo emblemático que<br />
é de sua classe, é incapaz de relativizar seus pontos de vista, a <strong>do</strong>nzela<br />
demonstrará ter méto<strong>do</strong> próprio quan<strong>do</strong> deseja atingir um resulta<strong>do</strong><br />
qualquer. Na verdade, conhece<strong>do</strong>ra das cadeias de causa e efeito que<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 10<br />
| História | 2009
constituem a estrutura mental <strong>do</strong> mancebo, Hele<strong>na</strong> saberá induzi-lo ao<br />
comportamento que lhe interessa. Para isso, bastava inculcar-lhe uma<br />
superioridade qualquer. Dessa forma, ao ceder, Estácio figurava-se<br />
conceden<strong>do</strong>.<br />
Chalhoub lembra que um entendimento convencio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> pater<strong>na</strong>lismo,<br />
no qual, em sen<strong>do</strong> a vontade senhorial inviolável, os dependentes avaliam<br />
sua própria condição a partir <strong>do</strong>s valores e significa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntes,<br />
tor<strong>na</strong> assim inviável as solidariedades horizontais, características das<br />
sociedades de classe. Afirma ainda, que nessa concepção, o pater<strong>na</strong>lismo<br />
está confundi<strong>do</strong> com sua mera ideologia, <strong>na</strong>da mais sen<strong>do</strong> que o mun<strong>do</strong><br />
idealiza<strong>do</strong> pelos senhores. Ao contrário, e segun<strong>do</strong> autores como<br />
Thompson e Genovese, já demonstraram a vigência de uma ideologia<br />
pater<strong>na</strong>lista não impede a existência de solidariedades horizontais, bem<br />
como de antagonismos sociais.<br />
Realmente, para Thompson<br />
[...] uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em<br />
que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte e<br />
o subordi<strong>na</strong><strong>do</strong>, a aldeia e a metrópole; é uma are<strong>na</strong> de elementos<br />
conflitivos. 50<br />
Para Chalhoub, o processo histórico que resultou <strong>na</strong> Lei <strong>do</strong> Ventre<br />
Livre, em setembro de 1871 é o fundamento não só de “Hele<strong>na</strong>” e “Iaiá<br />
Garcia” como também de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom<br />
Casmurro”. Contrariamente a Roberto Schwarz, ainda que reconheça<br />
que a posição <strong>do</strong>s escravos era muito diferente em relação aos<br />
agrega<strong>do</strong>s, Chalhoub entende que havia uma única lógica hegemônica<br />
de reprodução das hierarquias e desigualdades sociais. Pater<strong>na</strong>lismo e<br />
escravidão seriam como <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s de uma mesma moeda. Por outro<br />
la<strong>do</strong>, não deixa de afirmar que “a escravidão é a situação de máxima<br />
dependência nessa sociedade em que o centro da política de <strong>do</strong>mínio<br />
é a produção de dependentes”. 51 A explicação, contu<strong>do</strong>, para a menor<br />
incidência <strong>do</strong> tema escravidão em Macha<strong>do</strong> teria devi<strong>do</strong>-se a razões<br />
que são muito caras a esse trabalho, e que representariam mais um<br />
golpe realista de Macha<strong>do</strong>: como, em sua grande maioria, é a ambiência<br />
urba<strong>na</strong> da Côrte que vem a ser retratada, tratava-se de um <strong>espaço</strong> no<br />
qual, embora a escravidão fosse bastante comum, “a ostentação de tal<br />
visibilidade seria uma gafe, um peca<strong>do</strong>...”. 52 Macha<strong>do</strong> procurou assim<br />
descrever suas persso<strong>na</strong>gens como procuravam aparentar. “Qualquer<br />
leitor <strong>do</strong> século XIX saberia observar essa aparência a contrapelo, e o<br />
bruxo certamente contava com esse olhar”. 53<br />
Acontece que para a ideologia pater<strong>na</strong>lista, mesmo as práticas<br />
culturais <strong>do</strong>s subordi<strong>na</strong><strong>do</strong>s que envolviam costumes locais, laços étnicos<br />
ou religiosos, exemplos claros da existência da alteridade no bojo da<br />
sociedade, mesmo essas práticas eram consideradas ape<strong>na</strong>s no âmbito de<br />
uma concessão <strong>do</strong>s senhores. Chalhoub não deixa esquecer, entretanto,<br />
a existência de certos “territórios sociais mais ambíguos”, “territórios<br />
<strong>do</strong> diálogo”, das “trocas cotidia<strong>na</strong>s”, os quais, ainda que “mapea<strong>do</strong>s<br />
pelos senhores”, deixavam entrever a alteridade <strong>na</strong> roti<strong>na</strong> <strong>do</strong> “diálogo<br />
inevitável entre sujeitos socialmente desiguais”. 54 Para Chalhoub,<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis “foi um intérprete incansável <strong>do</strong> discurso político<br />
possível aos <strong>do</strong>mi<strong>na</strong><strong>do</strong>s” 55 nessas situações que embora rotineiras, em<br />
caso de algum deslize podiam resultar em agressões ou humilhações. Em<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis, teríamos o ponto de vista <strong>do</strong> <strong>do</strong>mi<strong>na</strong><strong>do</strong>, o que elimi<strong>na</strong><br />
a virtual passividade como elemento forma<strong>do</strong>r <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> da <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção<br />
pater<strong>na</strong>lista.<br />
Essa afirmação da diferença “no centro mesmo <strong>do</strong>s rituais da<br />
<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção senhorial”, que “ratificava a ideologia pater<strong>na</strong>lista <strong>na</strong><br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 11<br />
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aparência mesmo quan<strong>do</strong> lhe roía os alicerces”, <strong>na</strong>da mais era, para<br />
Chalhoub, que a “produção de um outro texto, contratexto, que se<br />
revelava <strong>na</strong>s entrelinhas (mas não a qualquer observa<strong>do</strong>r), <strong>na</strong> piada<br />
ingênua, no dito chistoso, <strong>na</strong> ambivalência das palavras, <strong>na</strong> ambiguidade<br />
da intenção. Essa era a arte <strong>do</strong> diálogo em Macha<strong>do</strong> de Assis”. 56<br />
Estudioso da temática escravista em nosso país, Chalhoub a<strong>na</strong>lisa o<br />
conto “Maria<strong>na</strong>”, de Macha<strong>do</strong>, no qual a história trata <strong>do</strong> amor de uma<br />
moça escrava pelo senhor moço.<br />
Chalhoub, que apesar de afirmar não pretende avaliar o mérito literário<br />
da <strong>obra</strong> chama-lhe dramalhão, está interessa<strong>do</strong> nela como <strong>do</strong>cumento<br />
histórico. Em primeiro lugar destaca os paralelos com “Hele<strong>na</strong>”: em ambos<br />
os casos as relações de dependência acabam resultan<strong>do</strong> em violência e<br />
humilhação. Como bem coloca Chalhoub “não há maniqueísmo <strong>na</strong> forma de<br />
tramar as situações; as perso<strong>na</strong>gens não são inerentemente boas ou más.<br />
Os senhores mostram estima pelos dependentes, mas ao fazê-lo produzem<br />
ape<strong>na</strong>s sofrimento e humilhação”. 57 Por outro la<strong>do</strong>, os dependentes (escravos<br />
e livres, Maria<strong>na</strong> ou Hele<strong>na</strong>), ainda que sejam gratos a seus senhores, são<br />
conscientes da situação de inferioridade social a que estão adstritos.<br />
Chalhoub também chama a atenção para a dupla periodicidade da<br />
trama. Edita<strong>do</strong> em janeiro de 1871, o conto trata da conversa informal<br />
(deduz-se que contemporânea à edição) de alguns amigos em que um<br />
destes relata eventos ocorri<strong>do</strong>s quinze anos antes (época da hegemonia<br />
“inconteste” <strong>do</strong> poder senhorial, portanto). Acresce que em janeiro de<br />
1871 debatia-se já projetos de lei com vistas à emancipação gradual <strong>do</strong>s<br />
escravos pela idéia <strong>do</strong> ventre livre e que resultaria <strong>na</strong> promulgação da “Lei<br />
<strong>do</strong> Ventre Livre”, em setembro <strong>do</strong> mesmo ano. “Maria<strong>na</strong>”, dessa forma,<br />
seria um “<strong>do</strong>cumento sobre um impasse histórico, visão ou interpretação<br />
de uma crise que mobilizava a sociedade inteira”. 58<br />
Como ao fi<strong>na</strong>l, “a história retor<strong>na</strong> ao tom de galhofa, ao clima de<br />
inconsequência e de leveza moral supostamente inerente à visão de<br />
mun<strong>do</strong> de ex-rapazes abastatos” 59 , Chalhoub entende que 60<br />
Macha<strong>do</strong> parece sugerir que não havia saída para o problema da<br />
escravidão por dentro das relações instituídas entre senhores e<br />
escravos. A mensagem inescapável <strong>do</strong> conto é a necessidade <strong>do</strong> poder<br />
público submeter o poder priva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s senhores ao <strong>do</strong>mínio da lei.<br />
Ten<strong>do</strong> a escravidão como centro de seus estu<strong>do</strong>s, Chalhoub acredita<br />
que a experiência histórica de 1871 teve importância relevante no<br />
desenvolvimento de Macha<strong>do</strong> de Assis como escritor. Ele lembra que<br />
em 1876 Macha<strong>do</strong> passou a chefiar a seção, dentro <strong>do</strong> Ministério da<br />
Agricultura, encarregada de estudar e acompanhar a aplicação da lei de<br />
1871, consideran<strong>do</strong> que “De fato, é possível até mesmo investigar as<br />
relações entre a experiência <strong>do</strong> funcionário e a famosa virada <strong>na</strong>rrativa<br />
<strong>do</strong> romancista, ocorrida entre 1878 e 1880, ou entre “Iaiá Garcia” e<br />
‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’”. 61<br />
1.4. algumas considerações<br />
Ao lermos as três <strong>obra</strong>s referidas, e apoia<strong>do</strong>s em outros e posteriores<br />
escritos <strong>do</strong>s críticos trata<strong>do</strong>s, ao menos no que se refere a John Gledson<br />
e Roberto Schwarz, percebemos uma ótica comum que valoriza as<br />
reciprocidades das influências entre o fato social e o literário, que busca<br />
ver <strong>na</strong> <strong>obra</strong> artística a realidade social.<br />
Tal ótica, justiça seja feita, tem início com Raymun<strong>do</strong> Faoro e<br />
seu “A pirâmide e o trapézio” (1974). Faoro acredita inclusive que a<br />
realidade se tor<strong>na</strong> mais visível em sua transposição artística, por livrar-<br />
se <strong>do</strong> automatismo especular. Apesar, entretanto, de demonstrar um<br />
“conhecimento enciclopédico” da <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> de Assis, segun<strong>do</strong><br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 12<br />
| História | 2009
Gledson, Faoro não consegue formular uma teoria abrangente e<br />
convincente que possa ser usada por outras pessoas. 62 Ainda assim, é<br />
por volta desse perío<strong>do</strong> que as abordagens biográficas e bibliográficas<br />
começam a ser deixadas de la<strong>do</strong>. Até então as análises eram<br />
psicologizantes ou filosóficas.<br />
Assim é que os três pensa<strong>do</strong>res trabalha<strong>do</strong>s procuram desvendar o<br />
senti<strong>do</strong> das transformações históricas em Macha<strong>do</strong> de Assis, focan<strong>do</strong><br />
as relações entre a oligarquia e os dependentes, as quais servem para<br />
esclarecer questões sociais e políticas que aparentemente encontram-<br />
se afastadas da esfera <strong>do</strong>méstica das tramas. Percebe-se também<br />
o entendimento comum quanto à existência <strong>na</strong> <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong><br />
da denúncia de que a estabilidade excessiva das estruturas sociais<br />
brasileiras impedia que os acontecimentos políticos se refletissem em<br />
mudanças efetivas para o conjunto da sociedade.<br />
Assim como já fizera Faoro, Schwarz estabelece de antemão o viés<br />
histórico pelo qual a <strong>obra</strong> machadia<strong>na</strong> será vista. Além <strong>do</strong> princípio das<br />
“idéias fora <strong>do</strong> lugar”, utiliza em suas digressões um modelo fixo de sociedade<br />
constituí<strong>do</strong> por senhores, escravos e agrega<strong>do</strong>s. Colocan<strong>do</strong> a cooptação como<br />
arma de acomodação utilizada pelo pater<strong>na</strong>lismo para evitar a “subversão”,<br />
caracteriza a anuência das perso<strong>na</strong>gens e a transfere para o autor.<br />
Schwarz privilegia, em sua perspectiva literária, a análise formal e<br />
o resulta<strong>do</strong> artístico <strong>do</strong>s romances, interessan<strong>do</strong>-se mais pela estrutura<br />
e estilo <strong>do</strong>s romances, que entende possuírem realidade e significa<strong>do</strong>s<br />
próprios. Ainda que concorde com Gledson quanto à intenção de<br />
Macha<strong>do</strong> de criar enre<strong>do</strong>s que tratam não só da problemática social,<br />
mas também da história política, como “intenções não são o mesmo que<br />
resulta<strong>do</strong>s artísticos” 63 diverge <strong>do</strong> inglês por entender que este “dá mais<br />
peso à intenção <strong>do</strong> escritor que à configuração da <strong>obra</strong>”. 64<br />
Diferentemente, John Gledson chama a atenção para o<br />
intencio<strong>na</strong>lismo presente <strong>na</strong> <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> de Assis, procuran<strong>do</strong><br />
decifrar o que o autor tencio<strong>na</strong>va dizer ou fazer desta, uma vez que<br />
vê nela um conjunto coerente, um projeto interpretativo e propositivo<br />
da história pátria. Acresce que a chave dessa decifração estaria no<br />
“realismo enganoso” de Macha<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> qual fatos anedóticos estão<br />
carrega<strong>do</strong>s de senti<strong>do</strong>s maiores, de revelações, reflexos e instruções<br />
possíveis. Entende dessa forma a <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> de Assis como uma<br />
interlocução crítica com seu tempo e seus concidadãos.<br />
Benefician<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> de Schwarz e Gledson, Sidney Chalhoub<br />
identifica aquelas passagens <strong>do</strong> texto machadiano que enfatizam as<br />
estratégias postas em prática pelos dependentes para obterem os<br />
resulta<strong>do</strong>s que desejam, como os de Hele<strong>na</strong> em “Hele<strong>na</strong>” e José Dias<br />
em “Dom Casmurro”. Seu argumento é que Macha<strong>do</strong> de Assis explicitou<br />
o ponto de vista e o discurso possível aos dependentes <strong>na</strong> sociedade<br />
brasileira de seu tempo.<br />
Chalhoub sem dúvida acrescenta uma visão culturalista, <strong>na</strong> esteira<br />
de Thompson, referin<strong>do</strong>-se à “práticas”, “rituais”, “estratégias” e um<br />
“vocabulário sofistica<strong>do</strong>” no que é pertinente à “tecnologia própria” 65 <strong>do</strong><br />
pater<strong>na</strong>lismo enquanto política de <strong>do</strong>mínio. Para Chalhoub, isso é muito<br />
importante porque nos força a redimencio<strong>na</strong>r a noção de pater<strong>na</strong>lismo<br />
como um conceito complexo, que não exclui a “alteridade no centro<br />
mesmo <strong>do</strong>s rituais senhoriais que insistiam em ignorá-la”. 66<br />
Ao afirmar essa diferença, Chalhoub se distancia de Roberto Schwarz<br />
que vê passividade e conformismo nos primeiros romances de Macha<strong>do</strong>,<br />
insistin<strong>do</strong> em apresentar a ideologia de Estácio inserida num contexto de<br />
luta de classes. Também diverge de seus antecessores quanto ao papel<br />
da temática da escravidão <strong>na</strong> <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> de Assis. Schwarz, como<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 13<br />
| História | 2009
já foi coloca<strong>do</strong> anteriormente, praticamente a exclui, explican<strong>do</strong> essa<br />
ausência em virtude da menor simpatia intrínseca ao tema, bem como pela<br />
idéia de que estan<strong>do</strong> a escravidão assegurada pela força, a vida ideológica<br />
<strong>do</strong> país residia <strong>na</strong>s teias complexas <strong>do</strong> favor. De outro la<strong>do</strong>, John Gledson,<br />
em seu capítulo sobre “Quincas Borba” argumenta que o problema da<br />
escravidão apresentava dificuldades em sua apropriação estilística<br />
(segun<strong>do</strong> ele Macha<strong>do</strong> não via a abolição nem como uma conquista <strong>do</strong>s<br />
escravos nem como uma liberalidade <strong>do</strong>s senhores), o que teria leva<strong>do</strong> o<br />
romancista a registrar a sua importância por meio <strong>do</strong>s conflitos internos<br />
de Rubião e seu lento processo de alie<strong>na</strong>ção mental. Esta perso<strong>na</strong>gem,<br />
inclusive, seria a expressão <strong>do</strong> inconsciente coletivo daquela sociedade.<br />
Estan<strong>do</strong> esta última interpretação calcada <strong>na</strong>s intenções manifestas <strong>do</strong><br />
autor, Chalhoub alerta para o fato de que boa parte <strong>do</strong>s testemunhos<br />
históricos de Macha<strong>do</strong> pode estar para além de suas intenções.<br />
Procuran<strong>do</strong> preencher as lacu<strong>na</strong>s referentes às idéias políticas e<br />
sociais <strong>do</strong> romancista, Chalhoub passou a investigar a vida <strong>do</strong> funcionário<br />
público Macha<strong>do</strong> de Assis, a<strong>na</strong>lisan<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentos relativos à 2ª Seção<br />
da Diretoria da Agricultura <strong>do</strong> Ministério da Agricultura durante o<br />
perío<strong>do</strong> em que Macha<strong>do</strong> chefiou tal departamento. Verifican<strong>do</strong> que à<br />
dita seção concernia os assuntos relativos à escravidão e política de<br />
terras, Chalhoub pôde assim ter uma idéia mais clara da importância<br />
desses temas <strong>na</strong> <strong>obra</strong> <strong>do</strong> escritor.<br />
De maneira geral, percebe-se uma dinâmica de acrescentamento e<br />
influência mútuos, em que aos poucos se inicia <strong>na</strong> <strong>obra</strong> <strong>do</strong> bruxo. Nas<br />
palavras de John Gledson “imagino que todas as facetas exploradas por<br />
estes autores são partes de uma verdade complexa”. 67<br />
Dessa forma, passamos a apontar no próximo capítulo algumas<br />
passagens referentes à oposição campo/cidade, presentes <strong>na</strong> <strong>obra</strong><br />
machadia<strong>na</strong>, as quais certamente se constituem num elemento a mais a<br />
fim de aproximarmo-nos dessa verdade complexa.<br />
2. caMpO e cIDaDe Na FIcÇÃO<br />
MachaDIaNa<br />
2.1. O Rio “civiliza-se”:<br />
a modernidade cortesã no II Império<br />
Na história <strong>do</strong> Rio de Janeiro, a chegada da família real portuguesa<br />
em 1808, evento que de resto é de imbricação causal precípua <strong>na</strong> história<br />
da <strong>na</strong>ção brasileira, promoveu um desenvolvimento sem paralelos <strong>na</strong><br />
cidade colonial. Junto com a família real, veio o governo da Metrópole e<br />
to<strong>do</strong> o aparato administrativo português.<br />
Segun<strong>do</strong> Luis Felipe de Alencastro, e “para melhor medir a força<br />
desse empuxo burocrático”, “no total, pelo menos quinze mil pessoas<br />
transferiram-se de Portugal para o Rio de Janeiro no perío<strong>do</strong>”, 1808 e anos<br />
seguintes. Desses, <strong>do</strong>is mil eram funcionários régios diretamente liga<strong>do</strong>s<br />
a Coroa; de quatro a cinco mil eram militares. Padres: setecentos. 68<br />
Com a mudança de estatuto, de capital de Colônia para de Reino<br />
Uni<strong>do</strong>, o Rio passa a ser o ponto de afluxo de administra<strong>do</strong>res e colonos<br />
de outras partes <strong>do</strong> Império português, como Angola e Moçambique. A<br />
instabilidade política em Portugal também favorece a permanência de<br />
parte <strong>do</strong>s interesses lusos até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século. Comparan<strong>do</strong>-se os<br />
censos efetua<strong>do</strong>s <strong>na</strong> cidade em 1799 e 1821, constata-se que “a população<br />
urba<strong>na</strong>, excluídas, portanto, as freguesias rurais <strong>do</strong> município, subiu de<br />
43 mil para 79 mil habitantes. Em particular, o contingente de habitantes<br />
livres mais que <strong>do</strong>brou, passan<strong>do</strong> de 20 mil para 46 mil indivíduos”.69<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 14<br />
| História | 2009
Com a independência, o Rio de Janeiro passa a ser a sede <strong>do</strong><br />
novo governo central <strong>do</strong> Império. O Brasil dispunha de uma elite<br />
ideologicamente homogênea, seja pela formação jurídica em Portugal,<br />
seja por seu trei<strong>na</strong>mento no funcio<strong>na</strong>lismo público, seja ainda, pela<br />
concentração <strong>do</strong> poder político <strong>na</strong>s mãos da oligarquia <strong>rural</strong> mantene<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> modelo econômico agro-exporta<strong>do</strong>r de base escravista, o qual fixava<br />
o mesmo papel margi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> país no contexto da economia inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
A manutenção <strong>do</strong> nexo-colonial.<br />
Instituída a farsa constitucio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r (um quarto poder<br />
excêntrico que servia a absolutizar o poder <strong>na</strong>s mãos <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r), é<br />
através da legislação eleitoral, com a instituição <strong>do</strong> voto censitário, que<br />
se atingirá o entranhamento das práticas <strong>do</strong> clientelismo. Com efeito,<br />
[...] deveres e direitos <strong>do</strong>s senhores e de seus dependentes<br />
encontravam dessa forma, um prolongamento institucio<strong>na</strong>l no<br />
sistema partidário e eleitoral. Assimila<strong>do</strong> ao comportamento<br />
político <strong>do</strong> país, tal fenômeno constituiu um importante fator de<br />
estruturação das relações entre os proprietários rurais e seus<br />
dependentes, dan<strong>do</strong> lugar, mais tarde, ao tripleto ‘coronelismo,<br />
enxada e voto’. 70<br />
Dividin<strong>do</strong> os eleitores em primeiro e segun<strong>do</strong> graus, conforme a<br />
renda anual, o sistema que excluía em princípio os não proprietários,<br />
ainda que livres, <strong>do</strong> processo eleitoral (através das fraudes, comuns mais<br />
ainda no isolamento das zo<strong>na</strong>s rurais) num segun<strong>do</strong> momento assimilava-<br />
os como contingente de agrega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s senhores de terras e poderosos,<br />
forman<strong>do</strong> os chama<strong>do</strong>s currais eleitorais particulares. Segun<strong>do</strong> Wilton<br />
José Marques,<br />
[...] <strong>na</strong> troca de gratidão por favor, criou uma imensa teia de interesses<br />
recíprocos que não somente garantiu a manutenção da ordem, como<br />
também deu estabilidade ao poder <strong>do</strong>s grandes proprietários. 71<br />
Uma elite, portanto, para a qual não interessava a mudança.<br />
Dessa forma, “o ‘lugar’ de cada um se definia pelos nexos pessoais<br />
que conseguia construir e ter, tanto com aqueles que se situavam<br />
imediatamente ‘acima’ quanto com os que vinham ‘abaixo’”. 72 Essa<br />
sociedade estamental <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l haveria de, após atingir o seu ápice de<br />
estabilidade por volta <strong>do</strong>s anos 1850, pouco a pouco, ruir diante da<br />
intromissão de agentes ideológicos e materiais de âmbito inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
Conforme ensi<strong>na</strong> Faoro “ao la<strong>do</strong> da ‘nobreza <strong>rural</strong>, desde a<br />
primeira formação brasileira, <strong>na</strong>sceu e cresceu uma outra classe, de<br />
comerciantes e <strong>do</strong>nos de capitais” 73 . Para Faoro, a <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis retrata, “o encontro de <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s, o mun<strong>do</strong> que se despede<br />
e o mun<strong>do</strong> que chega”. 74<br />
Nitidamente, há uma estrutura de classes – banqueiros, comerciantes<br />
e fazendeiros – sobre outra estrutura de titulares, encobrin<strong>do</strong>-a e<br />
esfuman<strong>do</strong>-lhe os contornos [...] a classe em ascensão’ coexiste com<br />
o estamento; muitas vezes, a classe perde sua autonomia e desviase<br />
de seu destino para mergulhar no estamento político, que orienta<br />
e comanda o Segun<strong>do</strong> Rei<strong>na</strong><strong>do</strong>. 75<br />
Trata-se de um processo em que a velha sociedade de estamentos<br />
cede lugar, dia a dia, à sociedade de classes, esta última <strong>na</strong> qual “o<br />
dinheiro é a chave e o deus desse mun<strong>do</strong>, dinheiro que mede todas as<br />
coisas e avalia to<strong>do</strong>s os homens”. 76 Nessa coexistência, enquanto o<br />
estamento reserva para si os órgãos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, as classes permanecem<br />
limitadas a funções restritas à sociedade. Como bem coloca Alencastro,<br />
o império brasileiro se constituía em uma singularidade <strong>na</strong> geografia<br />
política <strong>do</strong> Novo Mun<strong>do</strong>, forjan<strong>do</strong> no Rio de Janeiro, a capital política,<br />
econômica e cultural da nova <strong>na</strong>ção, um padrão de comportamento para<br />
o país. 77<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 15<br />
| História | 2009
Porto de arribada de grande parte de tráfico negreiro, que vinha<br />
fornecer a mão-de-<strong>obra</strong> escrava das fazendas de café, açúcar e algodão,<br />
e ponto de concentração das atividades econômicas da <strong>na</strong>ção, o Rio<br />
acaba por reter boa parte dessa população, chegan<strong>do</strong>, durante o século<br />
XIX, a representar da metade a <strong>do</strong>is quintos <strong>do</strong> total de habitantes<br />
da corte. Como resulta<strong>do</strong> disso, <strong>na</strong>sceria um forte contraste entre a<br />
densidade de escravos <strong>na</strong> cidade e as pretensões civiliza<strong>do</strong>ras da corte<br />
e da Coroa, que se mostrava orgulhosa de ser a única representante <strong>do</strong><br />
sistema europeu da mo<strong>na</strong>rquia <strong>na</strong> América, em to<strong>do</strong> o mais republica<strong>na</strong>.<br />
Essas pretensões se refletiam de várias formas. Segun<strong>do</strong> Alencastro,<br />
[...] os discursos parlamentares veiculavam também uma certa<br />
forma de ilustração ‘imperial’, uma sensibilidade cultural mais ampla,<br />
que plasmou as oligarquias regio<strong>na</strong>is e as classes <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntes<br />
<strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Rei<strong>na</strong><strong>do</strong>[...]. A corte, as embaixadas estrangeiras, o<br />
comércio marítimo, as escalas contínuas de viajantes que cruzam o<br />
Atlântico Sul, a chegada de profissio<strong>na</strong>is europeus, engendram no<br />
Rio de Janeiro um merca<strong>do</strong> de hábitos de consumo relativamente<br />
europeiza<strong>do</strong>s[...]. 78<br />
A cópia das modas parisienses expostas <strong>na</strong> rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r imperava.<br />
Macha<strong>do</strong> não deixou passar: “...tu<strong>do</strong> vinha das ‘francesas’, como então<br />
se dizia, em vez de modistas”. 79<br />
Segun<strong>do</strong> comenta A<strong>na</strong> Maria Mauad 80 , a cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />
constituía-se, <strong>na</strong> vitrine <strong>do</strong> Império brasileiro, com sua imagem publicada<br />
nos jor<strong>na</strong>is e <strong>na</strong>s exposições universais, bem como numa parte integrante<br />
fundamental da auto-imagem <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Rei<strong>na</strong><strong>do</strong>. A sociedade, que se<br />
aburguesava, buscava suas referências no além mar que através da corte<br />
irradiava-se para as províncias. O merca<strong>do</strong> de produtos importa<strong>do</strong>s,<br />
valoriza<strong>do</strong>s por sua qualidade, caracterizava-se pelo contato direto entre<br />
os estabelecimentos comerciais e suas matrizes estrangeiras. Por volta<br />
de 1850, a forte presença da publicidade é revela<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> vigor desse<br />
merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Outro comportamento que procurava assemelhar<br />
“o habitante <strong>do</strong> Rio ao mora<strong>do</strong>r de Paris, e a rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r ao boulevard<br />
des Italiens, integran<strong>do</strong> a cidade a civilização ocidental” 81 , era a visita ao<br />
ateliê fotográfico.<br />
Todavia, no que se refere ao “décor” da cidade,<br />
[...] é preciso lembrar que o Rio de Janeiro da segunda metade <strong>do</strong><br />
século XIX estava longe de ser uma cidade orde<strong>na</strong>da de acor<strong>do</strong> com<br />
o modelo civilizatório europeu [...] a capital imperial, que <strong>na</strong>da tinha<br />
de metrópole européia, aparece em imagens ambíguas de cidade<br />
colonial. 82<br />
As crônicas registraram, contu<strong>do</strong>, o grande movimento social da<br />
vida carioca de então, com seus bailes e salões, danças e corridas, e<br />
que incluía as sazo<strong>na</strong>is subidas a região serra<strong>na</strong> de Petrópolis, tor<strong>na</strong>da<br />
refúgio das pestilências de verão. Macha<strong>do</strong> também o demonstra em<br />
seus contos:<br />
Debalde lia ou buscava distrair-se <strong>na</strong> vida agitada <strong>do</strong> Rio de<br />
Janeiro 83<br />
Vieram a rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r, onde não foi difícil esquecer o assunto 84<br />
Apesar <strong>do</strong> calor carioca, o afã em imitar as modas européias levava<br />
as damas brasileiras a vestir pesadas roupas de velu<strong>do</strong>. As cariocas não<br />
eram as únicas a consumir as novidades da sociedade merca<strong>do</strong>lógica<br />
burguesa, uma vez que “<strong>na</strong>s compras <strong>na</strong> rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r, idas aos teatros<br />
e salões, a corte sempre era a referência <strong>do</strong> <strong>espaço</strong> de excelência<br />
<strong>do</strong>s fazendeiros”. 85 Nas cidades <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Paraíba, “companhias de<br />
espetáculos freqüentaram a região, indican<strong>do</strong> que também <strong>na</strong> província<br />
o cotidiano se movimentava com base no consumo de bens simbólicos,<br />
liga<strong>do</strong>s a um ‘habitus’ de classe que se formulava”. 86<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 16<br />
| História | 2009
O Rio de Janeiro da segunda metade <strong>do</strong> século XIX, o Rio de Janeiro<br />
de Macha<strong>do</strong> de Assis, constituía-se no paradigma de urbanidade <strong>do</strong><br />
Brasil oitocentista. A importância e o papel da cidade em sua <strong>obra</strong><br />
são destaca<strong>do</strong>s e discuti<strong>do</strong>s pelos críticos. 87 Através de suas <strong>obra</strong>s<br />
divisamos códigos e valores, esterióticos representativos de certos<br />
esquemas intelectuais incorpora<strong>do</strong>s à sociedade carioca. As distinções<br />
entre o <strong>urbano</strong> e o <strong>rural</strong> possibilitam uma melhor compreensão da<br />
maneira pela qual as diferenças são percebidas e representadas pelos<br />
homens, mormente em função de, como sabemos, a produção da<br />
identidade processar-se com relação a uma alteridade. Inclusive, <strong>na</strong><br />
coexistência entre proximidade e distância é que se verificam os recortes<br />
de pertencimento, os quais são varia<strong>do</strong>s e podem se superpor em uma<br />
mesma pessoa. 88<br />
Através da leitura de Macha<strong>do</strong> podemos ter acesso a diversas<br />
representações da vida e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comuns aos homens de seu tempo.<br />
O olhar machadiano, volta<strong>do</strong> não só para a realidade exterior, mas<br />
também para a subjetividade <strong>do</strong> indivíduo, é uma lente privilegiada a fim<br />
de vislumbrar-se as sensibilidades desse mun<strong>do</strong> que, como já vimos no<br />
primeiro capítulo, traz em seu bojo um desnível entre a vida social e a<br />
ideologia. Lembremos Baczko “é <strong>na</strong>s ilusões que uma época alimenta a<br />
respeito de si própria, que ela manifesta e esconde ao mesmo tempo, a<br />
sua verdade, bem como o lugar que lhe cabe <strong>na</strong> lógica da história”. 89<br />
Sen<strong>do</strong> a Corte, no geral, a ambiência de suas histórias, caracteriza-se<br />
esta pela vida social “agitada”, com seus teatros, bailes e recepções que<br />
assimilam a ânsia por entretenimento da sociedade patriarcal abastada.<br />
A rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r, com seus cafés e o comércio rico da cidade é o ponto<br />
culmi<strong>na</strong>nte dessa sociedade que se aburguesava, artéria principal desse<br />
mun<strong>do</strong>, o local para ver e ser visto. Concentra, via de regra, as alusões<br />
à variedade e movimentação da cidade, como podemos perceber nos<br />
contos de Macha<strong>do</strong>:<br />
...subiu, pois, a <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r [...] não via ninguém, nem as<br />
moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe<br />
diziam adeus com a mão. Ia andan<strong>do</strong> a maneira de touro.90<br />
Chegaram a rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r. Era pouco mais <strong>do</strong> meio-dia.<br />
Muita gente, andan<strong>do</strong> ou parada, o movimento <strong>do</strong> costume<br />
[...]. Maria<strong>na</strong> sentiu-se ator<strong>do</strong>ada [...]. Ela mal podia andar<br />
por entre os grupos, menos ainda sabia onde fixasse os olhos,<br />
tal era a confusão das gentes, tal era a variedade das lojas[...]<br />
[...] – Esta Rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r! Ia dizen<strong>do</strong>.<br />
- Sim? Respondia Sofia, voltan<strong>do</strong> a cabeça para ela e<br />
os olhos para um rapaz que estava <strong>na</strong> outra calçada.<br />
Sofia, prática daqueles mares, transpunha, rasgava ou contor<strong>na</strong>va as<br />
gentes com muita perícia e tranquilidade [...]. Voltaram fi<strong>na</strong>lmente.<br />
- Uf! respirou Maria<strong>na</strong> entran<strong>do</strong> no corre<strong>do</strong>r.<br />
- Que é, meu Deus? Ora você! parece da roça...91<br />
2.2. a URBS vai ao campo: tensões e<br />
idealizações<br />
“Ora você! parece da roça”.<br />
Em “Por uma sociologia das práticas culturais”, Roger Chartier<br />
aponta para as “classificações, divisões e delimitações que organizam a<br />
apreenção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> social como categorias fundamentais de percepção<br />
e apreciação <strong>do</strong> real”. Também alerta no senti<strong>do</strong> de que esses “esquemas<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 17<br />
| História | 2009
intelectuais incorpora<strong>do</strong>s” e partilha<strong>do</strong>s pelo grupo “não são discursos<br />
neutros: produzem estratégias e práticas para impor, legitimar” . 92<br />
Esse uso de certas classificações sociais com o intuito de delimitar<br />
posições e diferenças está presente no diálogo entre Sofia e Maria<strong>na</strong>.<br />
Assim que Sofia, “prática daqueles mares”, procura esnobar a pouca<br />
prática da colega chaman<strong>do</strong>-lhe “da roça”, a simplória que não sabe<br />
<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>r a vida social intensa de uma rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r.<br />
Segun<strong>do</strong> Alfre<strong>do</strong> Bosi, o objeto principal de Macha<strong>do</strong> de Assis é o<br />
comportamento humano o qual pode ser atingi<strong>do</strong> através da percepção<br />
das palavras, pensamentos, <strong>obra</strong>s e silêncios de seus perso<strong>na</strong>gens. 93<br />
Em “Casa Velha” 94 Macha<strong>do</strong> nos oferece a descrição de duas moças.<br />
Lalau (Cláudia), agregada da Casa Velha, onde recebera parte de sua<br />
formação, habitara, ainda em companhia de sua mãe, a “casinha da<br />
Cidade Nova” 95 , e então vivia em casa de uma tia. Suas relações com<br />
os senhores da Casa Velha, assim como já haviam si<strong>do</strong> as de seus pais,<br />
estavam<br />
[...] no mesmo pé de outras relações; eram menos agregadas que<br />
hóspedas. Daí a intimidade desta mocinha, que chegava a infringir a<br />
ordem austera da casa, não in<strong>do</strong> para a mesa com a <strong>do</strong><strong>na</strong> dela . 96<br />
Esta última, como é reincidente <strong>na</strong>s tramas machadia<strong>na</strong>s, acaba por<br />
ter a moça de origem humilde <strong>na</strong> conta de uma ameaça à manipulação<br />
<strong>do</strong> enre<strong>do</strong> pater<strong>na</strong>lista que lhe cabe, uma vez que Lalau e seu filho Félix<br />
manifestam uma atração recíproca que pode redundar num consórcio que<br />
ofenderia os interesses, ou pelo menos a “inconfundibilidade” senhorial.<br />
A senhora, porém, tem suas cartas <strong>na</strong> manga, que no caso atendem pelo<br />
nome mais que sugestivo de Sinhazinha, neta de uma baronesa amiga<br />
da família, e que vivia com a avó <strong>na</strong> fazenda. Comparemo-las: Lalau,<br />
mocinha espevitada que esbanjava vida e alegria irradiantes e capazes<br />
de arrebatar o sacer<strong>do</strong>te <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r da história, tinha “a carinha alegre e<br />
ridente de uma moça que parecia mofar <strong>do</strong> perigo. Olhava, ria e falava<br />
para dentro da sege”. 97<br />
Ao entrar <strong>na</strong> sala onde to<strong>do</strong>s, acomoda<strong>do</strong>s, almoçavam entre o<br />
primeiro e segun<strong>do</strong> prato, “vinha um pouco esbaforida, voan<strong>do</strong>-lhe os<br />
cabelos, que eram curtinhos e em cachos”. 98<br />
E mais à frente,<br />
Realmente, era uma criatura a<strong>do</strong>rável, espigadinha, não mais de<br />
dezessete anos, <strong>do</strong>tada de um par de olhos, como nunca mais vi<br />
outros, claros e vivos, rin<strong>do</strong> muito por eles, quan<strong>do</strong> não ria com a boca;<br />
mas se o riso vinha juntamente de ambas as partes, então é certo que<br />
a fisionomia huma<strong>na</strong> confirmava com a angélica, e toda inocência e<br />
toda alegria que há no céu pareciam falar por ela aos homens . 99<br />
Quanto à Sinhazinha,<br />
Era o oposto de Lalau. Maneiras pausadas, atitudes longamente<br />
quietas; não tinha nos olhos a mesma vida derramada que abrangia<br />
todas as cousas e recantos, como os olhos da outra. Bonita era,<br />
e a elevação <strong>do</strong> talhe delga<strong>do</strong> dava-lhe um ar superior a todas as<br />
demais senhoras ali presentes, que eram media<strong>na</strong>s ou baixinhas,<br />
com excessão de Lalau, que ainda assim era menos alta que ela.<br />
Mas essa mesma superioridade era diminuída pela modéstia da<br />
pessoa, cujo acanhamento, se era <strong>na</strong>tural, aperfeiçoara-se <strong>na</strong> roça.<br />
Não olhou para mim quan<strong>do</strong> chegou, nem ainda depois de sentar-se.<br />
Usava as pálpebras caídas, ou, quan<strong>do</strong> muito, levantava-as para fitar<br />
só a pessoa com quem ia falan<strong>do</strong>. 100<br />
Temos um acanhamento que é aperfeiçoável pela roça, mesmo que<br />
já provenha <strong>na</strong>turalmente da pessoa. Esse acanhamento é acompanha<strong>do</strong><br />
da modéstia capaz de diminuir uma superioridade também <strong>na</strong>tural, como<br />
a beleza e a elevação <strong>do</strong> talhe (em Lalau, por sua vez, a beleza “ema<strong>na</strong>”<br />
mais <strong>do</strong> que se fixa nos traços). A oposição é declarada. Contrariamente<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 18<br />
| História | 2009
à espevitada e esbaforida Lalau, que irradiava <strong>do</strong>s olhos uma “vida<br />
derramada que abrangia todas as cousas ou recantos”, a moça da roça<br />
é recatada, de “maneiras pausadas” e “atitudes longamentes quietas”,<br />
sem falar que “usava as pálpebras caídas, ou, quan<strong>do</strong> muito, levantava-<br />
as para fitar só a pessoa com quem ia falan<strong>do</strong>”.<br />
Essa representante da roça, possui<strong>do</strong>ra das qualidades de prudência<br />
tão relevantes a uma moça em sua posição, também era a representante<br />
da classe senhorial, por dentro da ideologia patriarcal a mais “legítima”<br />
<strong>na</strong> disputa à agregada (que por sua vez é irreverente, foge aos padrões)<br />
pelo “coração” de Félix, o jovem aristocrata herdeiro da Casa Velha.<br />
À imobilidade da pessoa soma-se a imobilidade da classe. Já Lalau é<br />
“espigadinha”, ou seja, ela se mostra, se valoriza; afeta, portanto,<br />
através de sua atitude, uma superioridade qualquer.<br />
Em “Troca de Datas” 101 , temos em Cirila um belo exemplo de uma<br />
roceira resig<strong>na</strong>da e submissa capaz de, sem jamais contestar, aguardar,<br />
<strong>na</strong> vida retirada da fazenda, um mari<strong>do</strong>, que como bom representante<br />
de sua classe, exerce a plenitude de suas prerrogativas em guerras e<br />
paixões, incapaz de amoldar-se à vida conjugal e sedentária, distante<br />
das aventuras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, no seu caso a Corte quan<strong>do</strong> não os campos de<br />
batalha da Guerra <strong>do</strong> Paraguai, onde haveria de gastar, por largos anos,<br />
a sua ânsia por viver livre e desembaraça<strong>do</strong>, gozan<strong>do</strong> a satisfação de<br />
suas incli<strong>na</strong>ções.<br />
Segun<strong>do</strong> todas as versões, até de adversários, D. Cirila era a<br />
primeira beleza da província, fruta da roça, não da Corte, aonde já<br />
viera duas ou três vezes, -fruta agreste e sadia. ‘Parece uma santa!’<br />
era o mo<strong>do</strong> de exprimir a admiração <strong>do</strong>s que olhavam para ela; era<br />
assim que definiam a serenidade da fisionomia e a mansidão <strong>do</strong>s<br />
olhos. Da alma podia dizer-se a mesma cousa, uma criatura plácida,<br />
parecia cheia de paciência e <strong>do</strong>çura. 102<br />
Mais uma vez temos uma ‘mansidão <strong>do</strong>s olhos”, acompanhada da<br />
“serenidade da fisionomia”, onde alma e formosura se confundem<br />
para criar um aspecto de santa, a “fruta agreste e sadia” que só<br />
a roça é capaz de produzir. No entanto, essa compleição física e<br />
espiritual não podia satisfazer um homem de “paixões enérgicas”, de<br />
ur<strong>na</strong> “<strong>na</strong>tureza impetuosa”. 103<br />
O lago era Cirila. Cirila era incapaz de paixões grandes, nem boas<br />
nem más; tirha a sensibilidade curta, e afeição moderada, quase<br />
nenhuma, antes obediência <strong>do</strong> que impulso, mais conformidade<br />
que arrojo. Não contradizia <strong>na</strong>da, mas também não exigia <strong>na</strong>da.<br />
Provavelmente, não teria ciúmes. Eusébio disse consigo que a mulher<br />
era um cadáver... 104<br />
Assim como Sinhazinha em “Casa Velha”, a Cirila de “Troca de<br />
Datas” tem “os mo<strong>do</strong>s acanha<strong>do</strong>s e modestos”, diferentemente das<br />
amantes de seu mari<strong>do</strong>, mulheres da Corte de “maneiras soltas”. 105 Mas,<br />
como o título da <strong>obra</strong> indica, o tempo veio a modificar as coisas, como<br />
demonstra o texto a seguir:<br />
Não iam passan<strong>do</strong> só as aventuras, mas os anos também, os anos que<br />
não per<strong>do</strong>am <strong>na</strong>da, O coração de Eusébio tinha se farta<strong>do</strong> de amor; a<br />
vida oferecera-lhe a taça cheia, e ele embriagara-se depressa. Estava<br />
cansa<strong>do</strong> [...] O fastio veio sentar-se ao pé dele; a solidão acabrunhou-o.<br />
Cada carta de Cirila trazia-lhe o aroma da roça, a saudade de casa, a<br />
vida quieta ao la<strong>do</strong> da esposa constante e meiga... 106<br />
“O aroma da roça”. A paz, a regularidade, a quietude, “ao la<strong>do</strong> da<br />
esposa constante e meiga”, isso é o que dispunha o mari<strong>do</strong> de Cirila<br />
<strong>na</strong> fazenda, e isso, ele, afi<strong>na</strong>l, soube não disperdiçar. Aqui, repitamos,<br />
o fator tempo atua como alquimista, alteran<strong>do</strong> os anseios de Eusébio,<br />
afeiçoan<strong>do</strong>-o a um novo modelo de vida, “ao la<strong>do</strong> da esposa constante<br />
e meiga”. Essa regularidade ou uniformidade ligada ao campo também<br />
aparece em “Casa Velha”, que, apesar de ser uma casa da cidade,<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 19<br />
| História | 2009
[...] a casa era uma espécie de vila ou fazenda, onde os dias, ao<br />
contrário de um rifão peregrino, pareciam-se uns com os outros; as<br />
pessoas eram as mesmas, <strong>na</strong>da quebrava a uniformidade das cousas,<br />
tu<strong>do</strong> quieto e patriarcal. 107<br />
Aliás, com relação à“Casa Velha vale lembrar que<br />
[...] casa, hábitos, pessoas davam-me ares de outro tempo, exalavam<br />
um cheiro de vida clássica. Não era raro o uso de capela particular; o<br />
que me pareceu único foi a disposição daquela, a tribu<strong>na</strong> de família,<br />
a sepultura <strong>do</strong> chefe, ali mesmo, ao pé <strong>do</strong>s seus, fazen<strong>do</strong> lembrar as<br />
primitivas sociedades em que florescia a religião <strong>do</strong>méstica e o culto<br />
priva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mortos. 108<br />
Aqui, “Casa Velha” vincula um senti<strong>do</strong> primevo <strong>do</strong> esteriótico<br />
campo, isto é, a terra. Está também aparece tomada <strong>na</strong> sua dimensão<br />
metafísica, como, além da fonte de vida e sobrevivência, <strong>espaço</strong> sagra<strong>do</strong>,<br />
lar <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s, a cujo culto os homens dedicam-se nessa religião<br />
ancestral.<br />
Voltan<strong>do</strong> a Eusébio, então a fazenda, o seu chão, a sua raiz, tor<strong>na</strong>-se o<br />
palpável, o refúgio das inconstâncias e inconsistências da vida munda<strong>na</strong>:<br />
“Ao ver, à distância, a fazenda, a casa, a capelinha, estremeceu e sentiu<br />
alguma cousa melhor, menos desati<strong>na</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> que os anos perdi<strong>do</strong>s”. 109<br />
Por sorte, Eusébio não era um pulha.<br />
Não se pense que ficou constrangi<strong>do</strong>, ou com o ar enfada<strong>do</strong> de um grande<br />
estrói<strong>na</strong> que acabou. Nada; ficou amigo da mulher, meigo, bran<strong>do</strong>, da<strong>do</strong><br />
ao amor quieto, sem explosões, sem excessos qual o de Cirila. 110<br />
Cirila apresenta uma resig<strong>na</strong>ção sem méritos, uma vez que quem<br />
possui a “sensibilidade curta, e afeição moderada, quase nenhuma”,<br />
haverá também de sofrer moderadamente ou quase <strong>na</strong>da, a afronta <strong>do</strong><br />
aban<strong>do</strong>no, a <strong>do</strong>r da solidão. Sinhazinha, com seu recato contraposto à<br />
vivacidade de Lalau, também pode nos insinuar essa idéia de sensibilidade<br />
curta, de pouca tendência para as expansões de carinho ou paixão, como<br />
se <strong>na</strong> fazenda, “onde os dias pareciam-se uns com os outros” onde “as<br />
pessoas eram as mesmas, <strong>na</strong>da quebrava a uniformidade das cousas,<br />
tu<strong>do</strong> quieto e patriarcal”, conformasse assim espíritos uniformes,<br />
constantes, pláci<strong>do</strong>s e imóveis. Também, poder-se-ia inferir aqui que no<br />
campo a mulher estava mais perfeitamente amoldada a seu papel restrito<br />
de mãe e <strong>do</strong><strong>na</strong> de casa. O que poderia sair disso? Um cadáver.<br />
Não se imagine, entretanto, que os mo<strong>do</strong>s menos acanha<strong>do</strong>s das<br />
mulheres da cidade signifiquem uma posição mais igualitária nessa<br />
sociedade que nega às mulheres o desenvolvimento das faculdades<br />
inerentes à pessoa huma<strong>na</strong>. Os exemplos são varia<strong>do</strong>s:<br />
[...] uma meni<strong>na</strong> que deixa as bonecas para ir decorar mecanicamente<br />
alguns livros mal escolhi<strong>do</strong>s; que interrompe uma lição para ouvir<br />
contar uma ce<strong>na</strong> de <strong>na</strong>moro; que em matéria de arte só conhece os<br />
figurinos parisienses; que deixa as calças para entrar no baile, e que<br />
antes de suspirar por um homem, exami<strong>na</strong>-lhe a correção da gravata,<br />
e o aperta<strong>do</strong> <strong>do</strong> botim; padre Luís, esta meni<strong>na</strong> pode vir a ser um<br />
esplêndi<strong>do</strong> or<strong>na</strong>mento de salão e até uma fecunda mãe de família,<br />
mas nunca será uma mulher. 111<br />
[...] E nunca chegará a compreender a poesia <strong>do</strong> pôr-<strong>do</strong>-sol. Será uma<br />
boa mãe de família segun<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> de alguns padres-mestres da<br />
civilização, isto é, fecunda e ignorante. 112<br />
[...] Sabia esses mil <strong>na</strong>das que entretém geralmente as senhoras<br />
quan<strong>do</strong> elas não gostam ou não podem entrar no terreno eleva<strong>do</strong> da<br />
arte, da história e da filosofia. 113<br />
Em todas estas passagens, fica explícita a posição a que as mulheres<br />
estavam submetidas, confi<strong>na</strong>das a determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s papéis que, <strong>na</strong> maestria<br />
de Macha<strong>do</strong>, praticamente en<strong>do</strong>ssam-lhes a coqueteria e a futilidade.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 20<br />
| História | 2009
2.3. sociabilidades e sensibilidades<br />
urba<strong>na</strong>s e rurais<br />
Para Sandra Pesavento,<br />
[...] as sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário<br />
de percepção e tradução da experiência huma<strong>na</strong> no mun<strong>do</strong>. O<br />
conhecimento sensível opera como uma forma de apreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
que brota não <strong>do</strong> racio<strong>na</strong>l ou das elocubrações mentais elaboradas,<br />
mas <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, que vêm <strong>do</strong> íntimo de cada indivíduo. 114<br />
“A rigor, a preocupação com as sensibilidades <strong>na</strong> história cultural trouxe<br />
para os <strong>do</strong>mínios de Clío a questão <strong>do</strong> indivíduo, da subjetividade e das<br />
histórias de vida”, com o fito de surpreender “os sentimentos, as sensações,<br />
as emoções, os valores”. 115 Mais de uma vez, e como já vimos em “Troca de<br />
Datas”, nos contos de Macha<strong>do</strong>, vamos encontrar a vida retirada no campo<br />
como uma espécie de porto de arribação ou de destino fi<strong>na</strong>l, como o fim ou a<br />
conclusão de muitos daqueles que, apesar de envolvi<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s possibilidades<br />
de êxito e glória (ou de aventuras, ou de mera vida social intensa) <strong>do</strong><br />
agita<strong>do</strong> e varia<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da cidade, acabam por optar pelo mun<strong>do</strong> <strong>rural</strong>,<br />
onde afi<strong>na</strong>l podem sentir “alguma cousa melhor, menos desati<strong>na</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
os anos perdi<strong>do</strong>s”. Assim que em “Aurora sem Dia” 116 deparamo-nos com<br />
o arroubo, o entusiasmo, o desejo de grandes feitos de Luís Tinoco, jovem<br />
que, ainda que exercesse “um modesto emprego no foro, <strong>do</strong>nde tirava<br />
o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de subsistência<br />
consistiam no orde<strong>na</strong><strong>do</strong> de sua aposenta<strong>do</strong>ria”, “possuia a convicção de<br />
que estava fada<strong>do</strong> para grandes destinos, e foi esse durante muito tempo o<br />
maior obstáculo da sua existência”. 117<br />
O caiporismo anuncia-se já <strong>na</strong> introdução da história e prenuncia<br />
o seu fi<strong>na</strong>l. Macha<strong>do</strong> também não deixa ilusões em relação aos motos<br />
<strong>do</strong> rapaz: “não se sabe bem como começou aquilo. Naturalmente, os<br />
louros alheios entraram a tirar-lhe o sono. O certo é que um dia de manhã<br />
acor<strong>do</strong>u Luís Tinoco escritor e poeta...”. 118 A partir daí somos coloca<strong>do</strong>s<br />
diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das veleidades poéticas de Tinoco, a princípio incansável<br />
diante <strong>do</strong>s reveses inescapáveis a seu talento ordinário, mas que para<br />
o leitor proporcio<strong>na</strong> puro deleite, imerso que está <strong>na</strong> fi<strong>na</strong> e aguda ironia<br />
machadia<strong>na</strong>.<br />
Tinoco arrostará o mun<strong>do</strong> e a sorte <strong>na</strong> convicção de que lhe era<br />
devida uma cadeira no panteão poético <strong>do</strong> século até que o acaso lhe<br />
abrirá uma nova janela onde mirar um destino coroa<strong>do</strong> de êxito e glória:<br />
a política. Um amigo de seu padrinho havia-lhe arranja<strong>do</strong> “um lugar de<br />
escrevente em casa de um advoga<strong>do</strong>” 119 , uma vez que Tinoco em sua<br />
pretensão de sucesso fácil através de seus versos havia negligencia<strong>do</strong> e<br />
perdi<strong>do</strong> o antigo emprego. Aceitou, apesar da contrariedade:<br />
[...] - Volto ao foro, não? Disse ele com a mais melancólica resig<strong>na</strong>ção<br />
deste mun<strong>do</strong>. Minha inspiração deve descer outra vez a empoeirar-se<br />
nos libelos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chica<strong>na</strong>!<br />
E a troco de quê? A troco de uns magros mil-réis, que eu não tenho e<br />
me são necessários para viver. Isto é sociedade, <strong>do</strong>utor?. 120<br />
O amigo, além de bem feitor, era paciente “ - Má sociedade, se lhe<br />
parece, respondeu o Dr. Lemos com <strong>do</strong>çura, mas não há outra à mão, e a<br />
menos de não estar disposto a reformá-la, não tem outro recurso senão<br />
tolerá-la e viver”. 121 Acontece que<br />
[...] o advoga<strong>do</strong>, cujo escrevente ele era, tinha si<strong>do</strong> deputa<strong>do</strong> e<br />
colaborava numa gazeta política. O seu escritório era um centro,<br />
onde iam ter muitos homens públicos e se conversava largamente<br />
<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s e <strong>do</strong> governo. Luis Tinoco ouviu a princípio essas<br />
conversas com a indiferença de um deus envolvi<strong>do</strong> no manto de<br />
sua imortalidade. Da atenção passou rapidamente ao entusiasmo,<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 21<br />
| História | 2009
porque <strong>na</strong>quele rapaz tu<strong>do</strong> era extremo, entusiasmo ou indiferença.<br />
Um dia levantou-se com a convicção de que seus destinos eram<br />
políticos. 122<br />
Num claro exemplo de como o favor preponderava <strong>na</strong> vida política<br />
e eleitoral brasileira “ – Só lhe peço uma coisa, disse o ex-poeta. – O<br />
que é? – Recomende-me ao <strong>do</strong>utor. Quero acompanhá-lo, e ser seu<br />
protegi<strong>do</strong>; é o meu desejo”. 123 Em virtude de “razões que a história<br />
não conservou” 124 Tinoco acabará in<strong>do</strong> morar <strong>na</strong> província <strong>na</strong>tal <strong>do</strong> seu<br />
amigo e protetor. Algum progresso de início (uma cadeira no parlamento<br />
provincial) acabará por se revelar a sepultura definitiva de seus sonhos<br />
de grandeza, após mais algumas bufo<strong>na</strong>rias vexatórias. Pois bem, “uma<br />
noite de reflexão e <strong>na</strong>da mais” foi suficiente para que Tinoco tivesse<br />
“ânimo de pisar terreno sóli<strong>do</strong>, em vez de patinhar <strong>na</strong>s ilusões <strong>do</strong>s<br />
primeiros dias”. No caso, um estabelecimento <strong>rural</strong>, mulher, filhos.<br />
Uma vida <strong>na</strong> roça e uma família, a alquimia <strong>do</strong> destino de Luís Tinoco.<br />
Uma vida recatada, longe <strong>do</strong> bulício e <strong>do</strong>s louros, entregue ao cultivo<br />
das coisas simples <strong>do</strong> campo, ou melhor, da vida. Assim, o encontrará<br />
o <strong>do</strong>utor Lemos, anos mais tarde, quan<strong>do</strong> visitá-lo. Espanta<strong>do</strong> o Lemos,<br />
retruca Tinoco “ – Tu<strong>do</strong> lhe explicarei, <strong>do</strong>utor, mas há de ser depois de ter<br />
exami<strong>na</strong><strong>do</strong> a minha casa e a minha roça, depois de lhe apresentar minha<br />
mulher e meus filhos ...”. 125 E ao fim:<br />
[...] tive ânimo de pisar terreno sóli<strong>do</strong>, em vez de patinhar <strong>na</strong>s<br />
ilusões <strong>do</strong>s primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda<br />
mais ridículo ora<strong>do</strong>r. Minha vocação era esta. Com poucos anos mais<br />
estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a boca,<br />
que as moscas andam no ar. 126<br />
A mudança para a roça em Tinoco aparece como resulta<strong>do</strong> de uma<br />
mudança profunda e inter<strong>na</strong>, uma passagem para um esta<strong>do</strong> mais<br />
eleva<strong>do</strong> de consciência, responsável por um amadurecimento <strong>do</strong> ânimo<br />
e que acharia <strong>na</strong> terra, ao menos para Tinoco, uma alter<strong>na</strong>tiva melhor de<br />
vida para administrar sonhos e frustrações.<br />
Em “Miss Dollar”, o <strong>do</strong>utor Men<strong>do</strong>nça é um médico que, ten<strong>do</strong> o<br />
quanto bastava para si, exercia a medici<strong>na</strong> como ama<strong>do</strong>r. Men<strong>do</strong>nça<br />
vivia numa casa no bairro de Cajueiros onde (desenga<strong>na</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> convívio<br />
com os homens?) possuía uma coleção de cães.<br />
Aconteceu-lhe, um dia, quan<strong>do</strong> voltava para casa, ser acompanha<strong>do</strong><br />
à rua por uma cadelinha galga a qual não teve dúvida em recolhê-la.<br />
Verifican<strong>do</strong> em jor<strong>na</strong>is, no outro dia, uma recompensa ofertada a quem<br />
devolvesse tão estima<strong>do</strong> animal, e amante deste, ele mesmo, não vacilou<br />
em restituí-la a seus legítimos <strong>do</strong>nos. A <strong>do</strong><strong>na</strong> era uma viúva abastada<br />
chamada Margarida cujos “cabelos castanhos e <strong>na</strong>turalmente ondea<strong>do</strong>s<br />
estavam pentea<strong>do</strong>s com essa simplicidade caseira, que é melhor de<br />
todas as modas conhecidas”. 127 Ao exaltar a “simplicidade caseira” como<br />
a “melhor de todas as modas conhecidas”, Macha<strong>do</strong> a contrapõe à moda<br />
luxuosa e consumista das “francesas”.<br />
A partir dessa primeira entrevista, a história se desenvolve com<br />
vistas ao estreitamento das relações, e a flor <strong>do</strong> amor desabrocha nos<br />
corações da viúva e <strong>do</strong> médico. Este passou a enxergar em Margarida “a<br />
chave de seu futuro”, de mo<strong>do</strong> que<br />
Ideou nesse senti<strong>do</strong> um plano de felicidade; uma casa num ermo,<br />
olhan<strong>do</strong> para o mar ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> ocidente, a fim de poder assitir<br />
ao espetáculo <strong>do</strong> pôr-<strong>do</strong>-sol. Margarida e ele uni<strong>do</strong>s pelo amor<br />
e pela igreja, beberiam ali, gota a gota, a taça inteira da celeste<br />
felicidade. 128<br />
Mais uma vez o espetáculo e o isolamento da <strong>na</strong>tureza. Um esta<strong>do</strong><br />
de bem aventurança, de felicidade sobera<strong>na</strong>, quan<strong>do</strong> um homem<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 22<br />
| História | 2009
solitário possui, enfim, a mulher de seus sonhos, completa-se com um<br />
retiro isola<strong>do</strong>, com uma boa vista para “o espetáculo <strong>do</strong> pôr <strong>do</strong> sol”. A<br />
felicidade completa parece necessitar <strong>do</strong> anonimato, somente disponível<br />
num ermo, onde temos a <strong>na</strong>tureza e seus espetáculos. Para isso, é claro,<br />
é preciso possuir-se, como veremos, “a inteligência <strong>do</strong> belo”. Enquanto,<br />
porém, não se aproximava da concretização desse sonho, Men<strong>do</strong>nça<br />
“debalde lia ou buscava distrair-se <strong>na</strong> vida agitada <strong>do</strong> Rio de Janeiro”. A<br />
viúva também não era mulher que vencesse facilmente as barreiras da<br />
pudicícia romântica. Sentin<strong>do</strong>-se incomodada, ao fim de alguns dias.<br />
Do<strong>na</strong> Antonia (a tia com quem Margarida morava) foi surpreendida<br />
com uma lembrança de Margarida; a viúva queria ir viver <strong>na</strong> roça<br />
algum tempo. - Aborrece-te a cidade? Perguntou a boa velha. —<br />
Alguma cousa, respondeu Margarida; queria ir viver uns <strong>do</strong>us meses<br />
<strong>na</strong> roça. 129<br />
Em “O segre<strong>do</strong> de Augusta”, temos a mesma idéia, só que num<br />
contexto diverso, quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> diz a esposa, referin<strong>do</strong>-se a filha de<br />
ambos (eles encontravam-se arrui<strong>na</strong><strong>do</strong>s fi<strong>na</strong>nceiramente): “sabes o que<br />
me disse uma vez meu irmão? Disse-me que a idéia de mandar Adelaide<br />
para a roça foi-te sugerida pela necessidade de viver sem cuida<strong>do</strong>s de<br />
<strong>na</strong>tureza alguma”. 130 Percebemos que as suscetibilidades provenientes<br />
tanto da bancarrota fi<strong>na</strong>nceira quanto <strong>do</strong>s amores não resolvi<strong>do</strong>s buscam<br />
socorro numa vida <strong>rural</strong> aliviada da sociabilidade ostensiva e ostentatória<br />
da cidade. Em certos momentos, faz-se importante para o homem livrar-<br />
se de tantas peias em que a vida social o enreda. É quan<strong>do</strong> a cidade<br />
“aborrece”. Na fazenda, por outro la<strong>do</strong>, vive-se <strong>na</strong> terra e da terra,<br />
obtém-se o necessário para viver, possibilitan<strong>do</strong> ao homem uma vida mais<br />
<strong>na</strong>tural, dispensada de tantos ademanes e supérfluos, livre de tantos<br />
“cuida<strong>do</strong>s”. Estudan<strong>do</strong> fotos e <strong>do</strong>cumentos priva<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s fazendeiros <strong>do</strong><br />
Vale <strong>do</strong> Paraíba no século XIX, e a cerca da viscondessa <strong>do</strong> Arcozello,<br />
Maria Isabel de Lacerda Werneck, A<strong>na</strong> Maria Mauad escreve:<br />
A viscondessa registrou em seu diário uma vida simples em que o<br />
trabalho não se limitava aos escravos, mas era dividi<strong>do</strong> entre to<strong>do</strong>s.<br />
Um cotidiano marca<strong>do</strong> pela atividade contínua, <strong>na</strong> qual toda a família<br />
era responsável pela preservação da riqueza. 131<br />
O conto “Três Conseqüências” 132 apresenta o reverso dessa relação<br />
entre campo e cidade. Do<strong>na</strong> Maria<strong>na</strong> Vaz é uma viúva de vinte e cinco<br />
anos, que vive <strong>na</strong> fazenda com sua tia e, ao findar o primeiro ano da<br />
viuvez, não demonstra interesse em aliviar o luto, ainda que não lhe<br />
faltem pretendentes, entre os quais, o juiz municipal. “Tu<strong>do</strong> vão trabalho!<br />
Do<strong>na</strong> Maria<strong>na</strong> deixa-os andar, e continua fiel à memória <strong>do</strong> morto”. 133<br />
Sen<strong>do</strong> já tempo de aliviar o luto, Maria<strong>na</strong>, ten<strong>do</strong> uma amiga <strong>na</strong> Corte,<br />
decide-se a escrever pedin<strong>do</strong> que lhe mandasse alguns vesti<strong>do</strong>s escuros,<br />
apropria<strong>do</strong>s a situação, quan<strong>do</strong>, agastada com o plano concerta<strong>do</strong> entre<br />
a tia e o juiz municipal (a boa velha era protetora deste), resolve ir<br />
pessoalmente à Corte. Não poden<strong>do</strong> dissuadi-la, a tia acompanhou-a.<br />
No Rio de Janeiro, Maria<strong>na</strong>:<br />
[...] achou a Corte animadíssima” [...] Maria<strong>na</strong> chegou a ir a<br />
Petrópolis. Gostou muito; era a primeira vez que lá ia, e desceu<br />
cortada de saudades. A Corte consolou-a; Botafogo, Laranjeiras,<br />
Rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r, movimento de bonds, gás, damas e rapazes,<br />
cruzan<strong>do</strong>-se, carros de toda sorte, tu<strong>do</strong> isto lhe parecia cheio de<br />
vida e movimento. 134<br />
Essa sensação que transparece em Maria<strong>na</strong> é comum entre os que<br />
passam pela experiência de impactar-se com o movimento e efervescência<br />
de uma grande cidade. Tomemos o testemunho de Raymond Williams 135<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 23<br />
| História | 2009
[...] não há como não reconhecer esse sentimento, eu próprio<br />
o experimentei muitas e muitas vezes: os grandes prédios da<br />
civilização; os pontos de encontro; as bibliotecas e teatros; as torres<br />
e cúpulas; e – muitas vezes ainda mais emocio<strong>na</strong>nte – as casas, as<br />
ruas, a tensão e o entusiasmo de estar no meio de tanta gente, com<br />
tantas metas diferentes.<br />
Voltan<strong>do</strong> ao conto “Três Conseqüências”,<br />
Mas os vesti<strong>do</strong>s fizeram-se, e os chapéus enfeitaram-se. O calor<br />
começou a apertar muito; era necessário seguir para a fazenda.<br />
Maria<strong>na</strong> pegou <strong>do</strong>s chapéus e <strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s, meteu-se com a tia<br />
<strong>na</strong> estrada de ferro e seguiu. Parou um dia <strong>na</strong> vila, onde o juiz<br />
municipal a cumprimentou, e caminhou para casa. Em casa, depois<br />
de descansada e antes de <strong>do</strong>rmir teve saudades da Corte. Dormiu<br />
tarde e mal. A vida agitada da Corte perpassava no espírito da<br />
moça como um espetáculo mágico. Ela via as damas que desciam ou<br />
subiam a rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r, as lojas, os rapazes, os bonds, os carros;<br />
via as lindas chácaras <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res, onde a <strong>na</strong>tureza se casava a<br />
civilização, lembrava-se da sala de jantar da prima, ao rés-<strong>do</strong>-chão,<br />
dan<strong>do</strong> para o jardim, com <strong>do</strong>us rapazes a mesa, - Os tais <strong>do</strong>us que a<br />
requestaram à toa . E ficava triste, custava-lhe fechar os olhos. 136<br />
Alguns dias depois recebeu a visita <strong>do</strong> juiz municipal.<br />
Conversaram da Corte, <strong>do</strong>s esplen<strong>do</strong>res da vida, <strong>do</strong>s teatros, etc;<br />
depois, por iniciativa dele, falaram <strong>do</strong> café e <strong>do</strong>s escravos. Maria<strong>na</strong><br />
notou que ele não tinha as finezas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>us rapazes da casa da<br />
prima, nem mesmo o tom elegante <strong>do</strong>s outros da rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r,<br />
mas achou-lhe, em troca, muita distinção e gravidade. 137<br />
Interessante o jogo de atributos com que macha<strong>do</strong> caracteriza<br />
os rapazes da cidade e o juiz municipal. Os representantes da corte<br />
possuem uma elegância própria, típica daqueles que freqüentam as altas<br />
rodas da sociabilidade citadi<strong>na</strong>. Suas “finezas” indicam um requinte <strong>na</strong>s<br />
maneiras, recursos que só os participantes de uma sociedade refi<strong>na</strong>da<br />
estão gabarita<strong>do</strong>s a apresentar, e que nos remetem ao preciosismo “à<br />
la” Molière. Mais uma vez, nos parece, a um confronto explicita<strong>do</strong> entre<br />
os representantes <strong>do</strong> campo e da cidade. Ainda que a distinção também<br />
possa evocar elegância <strong>na</strong>s maneiras, remete, antes de mais <strong>na</strong>da, a<br />
diferença, separação. Quanto à gravidade remete a circunspecção,<br />
certa sisudez, que se contrapõe diretamente ao preciosismo. Ressalte-<br />
se, também, a indicação de que coube ao juiz municipal, após falar<br />
<strong>do</strong>s esplen<strong>do</strong>res da corte, mudar de assunto. Quem vive <strong>na</strong> roça não<br />
tem a propensão para falar somente de luxos e or<strong>na</strong>mentos, pois tem<br />
presente no espírito assuntos mais práticos, mais estreitamente liga<strong>do</strong>s<br />
às responsabilidades e fai<strong>na</strong>s da vida diária e laborial, estan<strong>do</strong> mais<br />
vincula<strong>do</strong> à terra; talvez não tenha mesmo paciência para ocupar-se<br />
muito tempo com as excentricidades e veleidades da sociedade.<br />
Afi<strong>na</strong>l, seguiu o juiz municipal, não sem prometer que voltaria três dias<br />
depois, aniversário <strong>na</strong>talício da tia de Maria<strong>na</strong>. Nunca ali se festejara<br />
tal dia; mas a fazendeira não achou outro meio de exami<strong>na</strong>r bem se<br />
as gravatas <strong>do</strong> juiz municipal eram semelhantes às da rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r.<br />
Pareceu-lhe que sim; e durante os três dias de ausência não pensou<br />
em outra cousa. O jovem magistra<strong>do</strong>, ou de propósito, ou casualmente,<br />
fez-se esperar; chegou tarde; Maria<strong>na</strong>, ansiosa, não pôde conter a<br />
alegria, quan<strong>do</strong> ele transpôs a porteira. ‘Bom! Disse consigo a tia; está<br />
caída’. E caída ficou. Casaram-se três meses depois. A tia, experiente e<br />
filósofa, acreditou e fez crer que, se Maria<strong>na</strong> não tem vin<strong>do</strong> em pessoa<br />
comprar os vesti<strong>do</strong>s, ainda agora estaria viúva; a rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r e<br />
os teatros restituíram-lhe a ideia matrimonial. Parece que era assim<br />
mesmo porque o jovem casal pouco tempo depois vendeu a fazenda e<br />
veio para cá. Outra consequência da vinda à Corte: - a tia ficou com os<br />
vesti<strong>do</strong>s. Que diabo fazia Maria<strong>na</strong> com tanto vesti<strong>do</strong> escuro? Deu-os<br />
à boa velha. Terceira e última consequência: um pecurrucho. Tu<strong>do</strong> por<br />
ter vin<strong>do</strong> ao atrito da felicidade alheia”. 138<br />
Aqui a relação está invertida, e é a cidade que aparece como<br />
destino, só que dessa vez, o tom é positivo, com a mudança para o local<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 24<br />
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onde há mais “vida”, e que já havia si<strong>do</strong> causa de uma transformação<br />
mais profunda, o casamento, mais movimento, mais entretenimento e<br />
civilização. Na verdade, o “atrito da felicidade alheia”, ou ainda, “a rua <strong>do</strong><br />
Ouvi<strong>do</strong>r e os teatros restituíram-lhe a idéia matrimonial”. 139<br />
Contu<strong>do</strong>, ainda que o tom seja positivo, e o simples fato <strong>do</strong><br />
casamento e <strong>do</strong> pecurrucho já serem motivo suficiente para garantir os<br />
bons resulta<strong>do</strong>s de semelhante choque de civilização, cabe lembrar que,<br />
com relação à mudança para a cidade, não se garante o tom positivo<br />
para o futuro, como aquela solução fatídica de Luis Tinoco. O fi<strong>na</strong>l é feliz,<br />
digamos, mas não se diz, nem fica necessariamente a impressão, que<br />
seja para sempre.<br />
cONsIDeRaÇÕes FINaIs<br />
A Ironia Machadia<strong>na</strong> e os Limites da Modernidade Tropical<br />
O Rio de Janeiro era ou pretendia ser o paradigma da modernidade<br />
brasileira nos anos oitocentos. Sem dúvida, para o olhar <strong>do</strong>s demais<br />
brasileiros, vin<strong>do</strong>s de outras províncias, o Rio de Macha<strong>do</strong> devia figurar<br />
um modelo de cidade moder<strong>na</strong>, ao menos, como sabemos, mais próxima<br />
das merca<strong>do</strong>rias e costumes europeus. Em “A Parasita Azul” 140 , Macha<strong>do</strong><br />
ironiza não só essa idéia <strong>do</strong> Rio cosmopolita, ao referir-se à impressão<br />
que a visão da cidade causava a alguém que morara <strong>na</strong> Europa por<br />
alguns anos, alguém que se havia “afrancesa<strong>do</strong>”, como também parece<br />
colocar em cheque to<strong>do</strong> o movimento, denuncian<strong>do</strong> a fragilidade dessa<br />
modernidade tropical tomada pela casca.<br />
A história começa com o desembarque, <strong>na</strong> cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />
<strong>do</strong> goiano Camilo Seabra, que retor<strong>na</strong>va, após 8 anos <strong>na</strong> Europa, onde<br />
fora cursar medici<strong>na</strong>, e da onde trazia “o diploma <strong>na</strong> algibeira e umas<br />
saudades no coração”. 141 Camilo, filho de um rico fazendeiro de Goiás,<br />
o comenda<strong>do</strong>r Seabra, fruira esses 8 anos “ten<strong>do</strong> visto e admira<strong>do</strong> as<br />
principais cousas que um homem pode ver e admirar por lá, quan<strong>do</strong> não<br />
lhe falta gosto nem meios. Ambas as cousas possuía...”. 142 A Europa<br />
é a referência. Lá estão as coisas admiráveis, caso possua-se meios e<br />
gosto, o que era o caso de Camilo. Este não frustra nossas expectativas<br />
a cerca <strong>do</strong> comportamento usual <strong>do</strong> herdeiro senhorial estudan<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
Europa. Com efeito,<br />
[...] a escala toda <strong>do</strong>s prazeres sensuais e frívolos foi percorrida por<br />
este esperançoso macebo com uma sofreguidão que parecia antes<br />
suicídio. Seus amigos eram numerosos, solícitos e constantes; alguns<br />
não duvidavam dar-lhe a honra de o constituir seu cre<strong>do</strong>r. 143<br />
Vivia “acompanha<strong>do</strong> pelos elegantes milhafres seus amigos” 144 ,<br />
mesmo porque “não havia pateada célebre em que a chave de seus<br />
aposentos não figurasse, nem corrida, nem ceata, nem passeio, em<br />
que não ocupassem os primeiros lugares “cet aimable brésilien”. 145<br />
Realmente só uma ameaça seria capaz de interromper a vida solta de<br />
Camilo: a deserdação pater<strong>na</strong>. Concluí<strong>do</strong> o curso, e após duas ou três<br />
desculpas entre as quais a de uma viagem pelo continente onde Camilo<br />
pode fechar com chave de ouro sua estada européia,<br />
[...] chegou uma carta decisiva <strong>do</strong> comenda<strong>do</strong>r. O velho goiano<br />
intimava pela última vez ao filho que voltasse sob pe<strong>na</strong> de lhe<br />
suspender to<strong>do</strong>s os recursos e trancar-lhe a porta. Não era possível<br />
tergiversar mais. Imaginou ainda uma grave moléstia; mas a idéia<br />
de que o pai podia não acreditar nela e suspender-lhe realmente os<br />
meios, aluiu de to<strong>do</strong> este projeto . 146<br />
Macha<strong>do</strong> ironiza a tristeza e o abatimento desse goiano que se<br />
tor<strong>na</strong>ra um “parisiense até a medula <strong>do</strong>s ossos” e, portanto, “não<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 25<br />
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compreendia que um homem pudesse sair <strong>do</strong> cérebro da França para vir<br />
inter<strong>na</strong>r-se em Goiás”. 147 Com efeito,<br />
[...] não abo<strong>na</strong>va muito seus sentimentos patrióticos o rosto<br />
com que entrou a barra da capital brasileira. Trazia-o fecha<strong>do</strong><br />
e merencório, como quem abafa em si alguma cousa que não é<br />
exatamente a bem-aventurança terrestre [...] Quan<strong>do</strong> veio a hora<br />
de desembarcar, fê-lo com a mesma alegria com que o réu transpõe<br />
os umbrais <strong>do</strong> cárcere. O escaler afastou-se <strong>do</strong> <strong>na</strong>vio em cujo<br />
mastro flutuava uma bandeira tricolor; Camilo murmurou consigo:<br />
-- Adeus, França! Depois envolveu-se num magnífico silêncio e<br />
deixou-se levar para a terra. 148<br />
Para o <strong>do</strong>utor Camilo que morara em Paris e viajara a Europa, no<br />
Rio de Janeiro<br />
[...] tu<strong>do</strong> lhe parecia lúgubre, acanha<strong>do</strong>, mesquinho. Olhou com<br />
desdém olímpico para todas as lojas da rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r, que lhe<br />
pareceu ape<strong>na</strong>s um beco muito compri<strong>do</strong> e muito ilumi<strong>na</strong><strong>do</strong>. Achava<br />
os homens deselegantes, as mulheres desgraciosas. Lembrouse,<br />
porém, que Santa Luzia, sua cidade <strong>na</strong>tal, era ainda menos<br />
parisiense que o Rio de Janeiro, então, abati<strong>do</strong> com esta importu<strong>na</strong><br />
idéia, correu para o hotel, e deitou-se a <strong>do</strong>rmir. 149<br />
Antes mesmo <strong>do</strong> retorno a Goiás, ainda <strong>na</strong> capital brasileira, Camilo<br />
encontra um jovem seu conterrâneo <strong>na</strong> casa <strong>do</strong> correspondente de seu<br />
pai. Este fica estupefato: “Conheci-o ape<strong>na</strong>s o vi, apesar de o achar<br />
muito muda<strong>do</strong> <strong>do</strong> que era. Está agora um moço apura<strong>do</strong>. Eu é que estou<br />
velho. Já cá estão vinte e seis...”. 150<br />
Após a saída de Camilo, o velho Leandro Soares assim fala ao<br />
correspondente: “[...] Veja o senhor o que é andar por essas terras<br />
estrangeiras [...] que mudança fez aquele rapaz, que era pouco mais ou<br />
menos como eu!”. 151 Transparece aqui, <strong>na</strong> apreciação que faz de Camilo o<br />
jovem coprovinciano, a produção de identidade através da alteridade. Camilo,<br />
após “andar por essas terras estrangeiras”, está agora um moço “apura<strong>do</strong>”,<br />
embora anteriormente fosse “pouco mais ou menos como eu”. 152<br />
Essa exposição de uma dependência mimética e ideológica, capaz de<br />
formatar as incli<strong>na</strong>ções estilísticas e comportamentais, e fruto de uma<br />
subserviência moral, é fertilmente explorada nos escritos de Macha<strong>do</strong>, e<br />
levada ao cúmulo <strong>do</strong> paroxismo em “O Alienista” 153 , quan<strong>do</strong> o alienista-<br />
impera<strong>do</strong>r Simão Bacamarte, no auge de seu governo “cientocrático”<br />
alcança da câmara de Itaguaí<br />
[...] uma postura autorizan<strong>do</strong> o uso de um anel de prata no de<strong>do</strong><br />
polegar da mão esquerda, a toda pessoa que sem outra prova<br />
<strong>do</strong>cumental ou tradicio<strong>na</strong>l, declara-se ter <strong>na</strong>s veias duas ou três<br />
onças de sangue go<strong>do</strong>. 154<br />
Ter o sangue <strong>do</strong>s go<strong>do</strong>s, ou seja, europeu, ainda que não a<br />
cultura, duas ou três onças que fosse, já mereceria a distinção<br />
de um anel de prata. Sem dúvida, é no estrangeiro que se pode<br />
vislumbrar os caminhos que levam à civilização e nele encontram-se<br />
os paradigmas com os quais se podem julgar o avanço ou retrocesso<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, como podemos perceber em “Luis Soares” 155 , história de<br />
uma moça casa<strong>do</strong>ira, a princípio preterida e depois, com o advento<br />
de uma fortu<strong>na</strong>, requestada por seu primo. Quan<strong>do</strong> a senhorita<br />
Adelaide acaba de receber uma herança inesperada, o comentário<br />
é de alguém próximo: “...agora que <strong>do</strong><strong>na</strong> Adelaide está de posse<br />
de uma grande fortu<strong>na</strong>, há de querer apreciar o que há de bonito<br />
nos países estrangeiros a fim de poder melhor avaliar o que há no<br />
nosso...”. 156<br />
No caminho para Santa Luzia (seguiram para Santos, daí a São<br />
Paulo, e então tomaram a estrada para Goiás) poderemos perceber que<br />
Camilo não é desprovi<strong>do</strong> de sensibilidade à <strong>na</strong>tureza<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 26<br />
| História | 2009
Camilo ficou sozinho diante da noite, que estava realmente formosa<br />
e solene. Não faltava ao jovem goiano a inteligência <strong>do</strong> belo; e a<br />
quase novidade daquele espetáculo, que uma longa ausência lhe<br />
fizera esquecer, não deixava de o impressio<strong>na</strong>r imensamente. 157<br />
Também não se mostrou indiferente ao divisar os limites da terra <strong>na</strong>tal:<br />
[...] quan<strong>do</strong> porém avistou a cidade, perto da qual estava a fazenda,<br />
onde vivera as primeiras auroras de sua mocidade, Camilo sentia<br />
abalar-se-lhe fortemente o coração. Um sentimento sério o <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>va.<br />
Por algum tempo, ao menos, Paris com os seus esplen<strong>do</strong>res cedia o<br />
lugar à peque<strong>na</strong> e honesta pátria <strong>do</strong>s Seabras. 158<br />
Uma vez que a cidade se constitui como aquarela da mundanidade, onde<br />
toda a sorte de desvios a saúde <strong>do</strong> corpo e da alma estão concentra<strong>do</strong>s, e<br />
uma vez que uma capital, seja o Rio ou Paris, também representa o teatro<br />
político e fi<strong>na</strong>nceiro de uma <strong>na</strong>ção, polo das corrupções e negociatas, a<br />
peque<strong>na</strong> Santa Luzia pode assim, pelo contrário, permanecen<strong>do</strong> o <strong>espaço</strong><br />
imune a esses contágios perversos, representar o local onde o homem<br />
pode ainda viver os seus dias em conformidade com sua honra, manten<strong>do</strong><br />
uma vida agradável, virtuosa e conveniente.<br />
Já de volta a sua peque<strong>na</strong> cidade interiora<strong>na</strong> a admiração com a<br />
transformação é geral, e a avaliação positiva é unânime: “Ninguém se<br />
fartava de o elogiar. Admiravam-lhe as maneiras, a elegância. A mesma<br />
superioridade com que falava a to<strong>do</strong>s, achava entusiastas sinceros; de<br />
to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, “a menor cousa que ele dissesse tinha aos olhos <strong>do</strong>s outros<br />
uma graça indefinível”. 159 Após alguns dias em que tu<strong>do</strong> era novidade<br />
[...] a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram<br />
monótonos, as árvores monóto<strong>na</strong>s, os rios monótonos, a cidade<br />
monóto<strong>na</strong>, ele próprio monótono [...] Paris ou o cemitério (disse<br />
consigo Camilo) tal é o dilema que se me oferece. Daqui a três<br />
meses estarei morto ou em caminho da Europa”. 160<br />
O próprio pai de Camilo reconhecia que “quem viveu por essas<br />
terras que dizem ser tão bonitas e animadas não pode estar aqui muito<br />
alegre”. 161 O velho, porém, tinha a solução, o caminho inevitável para<br />
quem está <strong>na</strong> posição <strong>do</strong>s Seabra, a política. Camilo, contu<strong>do</strong>, não se<br />
mostra propenso:<br />
- Política! exclamou Camilo, quan<strong>do</strong> o pai lhe falou nesse assunto. De<br />
que me serve a política, meu pai?<br />
- De muito. Serás primeiro deputa<strong>do</strong> provincial; podes ir depois<br />
para a Câmara, no Rio de Janeiro. Um dia interpelas o Ministério,<br />
e se ele cair, podes subir ao Governo. Nunca tiveste ambição de ser<br />
ministro?<br />
- Nunca.<br />
- É pe<strong>na</strong>!<br />
- Por que?<br />
- Porque é bom ser ministro.<br />
- Gover<strong>na</strong>r os homens, não é? disse Camilo rin<strong>do</strong>; é um sexo<br />
ingovernável; prefiro o outro.<br />
Seabra riu-se <strong>do</strong> repente, mas não perdeu a esperança de convencer<br />
o herdeiro.<br />
Na sociedade hierarquizada cabe ao estamento o exercício da<br />
política. Os herdeiros, portanto, devem ser convenci<strong>do</strong>s a atuarem,<br />
mesmo quan<strong>do</strong> não têm vontade para isso.<br />
Camilo trazia consigo saudades não só da civilização francesa,<br />
mas também de uma fictícia princesa polonesa a quem se julgava<br />
eter<strong>na</strong>mente liga<strong>do</strong> pelos laços da paixão. Contu<strong>do</strong>, uma determi<strong>na</strong>da<br />
fruta da roça “more<strong>na</strong>, - mas de um moreno aceti<strong>na</strong><strong>do</strong> e macio, com uns<br />
delicadíssimos longes cor-de-rosa...” e cujos olhos, ainda que Camilo não<br />
os tenha podi<strong>do</strong> ver a cor, no relance <strong>do</strong> primeiro encontro, “sentiu-lhes<br />
a luz que valia mais talvez”. 162<br />
Dessa forma, não fica difícil entender que num passe de mágica para<br />
esse “parisiense até a medula <strong>do</strong>s ossos”, a feição das coisas, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 27<br />
| História | 2009
mudassem completamente: “Camilo estava apaixo<strong>na</strong><strong>do</strong>: [...] Paris e a<br />
princesa, tu<strong>do</strong> havia desapareci<strong>do</strong> <strong>do</strong> coração e da memória <strong>do</strong> rapaz.<br />
Um só ente, um lugar único, mereciam agora as suas atenções: Isabel<br />
e Goiás “. 163<br />
Antes, porém, teria que se ver com o Leandro Soares, outro<br />
apaixo<strong>na</strong><strong>do</strong> por Isabel, e que uma vez preteri<strong>do</strong> pela formosa jovem,<br />
prometia a morte ao seu escolhi<strong>do</strong>. O momento de enfrentá-lo não<br />
demorou, e mesmo pego de surpresa Camilo soube sair-se. Lembran<strong>do</strong>-<br />
se das intenções políticas <strong>do</strong> ex-amigo, não hesitou em oferecer-lhe a<br />
cadeira de deputa<strong>do</strong> provincial a que o pai queria forçá-lo assumir, mas<br />
que afirmava tê-la aceito para a dar a Soares, e que já vinha trabalhan<strong>do</strong><br />
para vencer resistências políticas.<br />
O passe de mágica pode ser bem compreensível caso entendamos<br />
que a modernidade ou superioridade de Camilo é algo ape<strong>na</strong>s de fachada,<br />
que por dentro o “aimable brêsilien” “bon vivant” e amigo das pateadas,<br />
nunca deixou de ser um roceiro, embora representante da classe <strong>do</strong>s<br />
senhores proprietários de terra que esbanjavam suas riquezas <strong>na</strong> “vida”<br />
buliçosa em sociedade, seja no Rio, seja em Paris.<br />
Apesar de tão adapta<strong>do</strong> a Paris, onde, respalda<strong>do</strong> pelas mesadas<br />
<strong>do</strong> pai, podia, em suas pateadas, arrebanhar os “elegantes milhafres<br />
seus amigos”, tão logo retor<strong>na</strong>, Camilo adapta-se novamente à vida<br />
no campo. Talvez existam vários outros Camilos, uma vez que o campo<br />
e a cidade não são as únicas medidas possíveis em que os homens e<br />
as coisas podem ser toma<strong>do</strong>s. Aqui, porém, não é o tempo que vem<br />
interferir como fator responsável pelas mudanças. A readaptação de<br />
Camilo tem como germe o amor, o amor de to<strong>do</strong>s os tempos e <strong>espaço</strong>s.<br />
Assim que o mesmo motivo que fazia tão difícil o adeus à França veio a<br />
provocar o total esquecimento dela.<br />
A história de Camilo Seabra é um resumo biográfico no qual<br />
poderíamos reconhecer a precariedade da importação de idéias e<br />
comportamentos modernos por parte de uma sociedade hierarquizada e<br />
estamental. Afi<strong>na</strong>l, nos anos que passou <strong>na</strong> Europa, não teve prejudicada<br />
a habilidade no manejo das prerrogativas que possuía por sua condição,<br />
e até as manejava com precisão, pois que livrou-se da vingança com<br />
uma compensação política ao rival, de forma que ganhou duas vezes,<br />
fican<strong>do</strong> com o sexo preferi<strong>do</strong>. O europeísmo é superficial, consumista,<br />
de enfeite. A sociedade burguesa é tomada ape<strong>na</strong>s nos a<strong>do</strong>rnos, num<br />
contágio gradual e letal.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 28<br />
| História | 2009
NOTAS DE RODAPÉ<br />
1 WILLIAMS, op cit., p. 11.<br />
2 id. Ibid. p. 388.<br />
3 id. Ibid. p. 388.<br />
4 id. Ibid. p. 19.<br />
5 id. Ibid, p. 17.<br />
6 MESQUITA, Samira Nahid de. A cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro e a <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> de Assis. Revista T.B. Rio de Janeiro: v. 85. abr/jun, 1986. p. 83-88.<br />
7 id. Ibid.., p. 84.<br />
8 id. Ibid.., p. 87.<br />
9 LEENHARDT, J.; PESAVENTO, S. Discurso histórico e <strong>na</strong>rrativa literária. Campi<strong>na</strong>s: UNICAMP, 1999.<br />
10 PESAVENTO, S. Com os olhos de Clio ou a literatura sob o olhar da história a partir <strong>do</strong> conto “O Alienista” de Macha<strong>do</strong> de Assis. Rev. Bras. de<br />
História. São Paulo. v. 16. n. 31-32. 1996. p. 108-118.<br />
11 BACZKO, Bronislaw. Imagi<strong>na</strong>ção social. In: ROMANO, Ruggiero (Org.). Enciclopédia Ei<strong>na</strong>udi. v. 5. Lisboa: Imprensa Nacio<strong>na</strong>l/ Casa da<br />
Moeda..1985.<br />
12 Id. Ibid.<br />
13 WILLIAMS, op cit, p. 13.<br />
14 SARAIVA, Juracy Assmann. O circuito das memórias em Macha<strong>do</strong> de Assis. São Paulo: EDUSP, 1993.<br />
15 SCHWARZ, Roberto. Ao vence<strong>do</strong>r as batatas: forma literária e processo social nos inícios <strong>do</strong> romance brasileiro. 5 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000.<br />
16 Id. Ibid. p. 36.<br />
17 Id. Ibid. p. 83<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 29<br />
| História | 2009
18 Id. Ibid. p. 83<br />
19 Id. Ibid. p. 83<br />
20 Id. Ibid. p. 83<br />
21 Id. Ibid. p. 83<br />
22 Id. Ibid. p. 84<br />
23 Id. Ibid. p. 94<br />
24 Id. Ibid. p. 95<br />
25 Id. Ibid. p. 98<br />
26 Id. Ibid. p. 98<br />
27 Id. Ibid. p. 104<br />
28 Id. Ibid. p. 112<br />
29 Id. Ibid. p. 126<br />
30 Id. Ibid. p. 125<br />
31 Id. Ibid. p. 131<br />
32 Id. Ibid. p. 144<br />
33 Id. Ibid. p. 144<br />
34 Id. Ibid. p. 146<br />
35 Id. Ibid. pp. 161-162<br />
36 Id. Ibid. p. 155<br />
37 Id. Ibid. p. 155<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 30<br />
| História | 2009
38 Id. Ibid. p. 212<br />
39 Id. Ibid. p. 190<br />
40 GLEDSON, John. Macha<strong>do</strong> de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003.<br />
41 Id. Ibid. p. 23<br />
42 Id. Ibid. p. 38<br />
43 Id. Ibid. p. 38<br />
44 Id. Ibid. p. 38<br />
45 Id. Ibid. p. 65<br />
46 Id. Ibid. p. 65<br />
47 CHALHOUB, Sidney. Macha<strong>do</strong> de Assis, historia<strong>do</strong>r. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.<br />
48 O tempo saquarema refere-se aos anos de pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Conserva<strong>do</strong>r. Os Conserva<strong>do</strong>res eram chama<strong>do</strong>s “saquaremas”. Os liberais<br />
eram apelida<strong>do</strong>s “luzías”.<br />
49 CHALHOUB, op cit., p. 23.<br />
50 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estu<strong>do</strong>s sobre a cultura popular tradicio<strong>na</strong>l. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 17.<br />
51 Id. Ibid. p. 28<br />
52 Id. Ibid. p. 57<br />
53 Id. Ibid. p. 57<br />
54 Id. Ibid. p. 61<br />
55 Id. Ibid. p. 62<br />
56 Id. Ibid. p. 64<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 31<br />
| História | 2009
57 Id. Ibid. p. 134<br />
58 Id. Ibid. p. 135<br />
59 Id. Ibid. p. 136<br />
60 Id. Ibid. p. 137<br />
61 Id. Ibid. p. 139<br />
62 GLEDSON, John. Por um novo Macha<strong>do</strong> de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12.<br />
63 SCHWARZ, Roberto. A contribuição de John Gledson. In: GLEDSON, John. Macha<strong>do</strong> de Assis: ficção e história. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra,<br />
2003. pp. 324-325.<br />
64 Id. Ibid. p. 325.<br />
65 Id. Ibid. p. 58<br />
66 Id. Ibid. p. 58<br />
67 GLEDSON, 2006, p. 27.<br />
68 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no império. In: _____ (Org.). História da vida privada no Brasil. v. 2. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1997, p. 12.<br />
69 Id Ibid. p. 13.<br />
70 Id Ibid. p. 22.<br />
71 MARQUES, Wilton José. O poeta e o poder: favores e afrontas. Revista Estu<strong>do</strong>s Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2003. p. 32.<br />
72 MATTOS, Ilmar R. Do Império à República. Revista Estu<strong>do</strong>s Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1989, pp. 163-171.<br />
73 FAORO, Raymun<strong>do</strong>. Macha<strong>do</strong> de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4 ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 34.<br />
74 Id Ibid. p. 13.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 32<br />
| História | 2009
75 Id Ibid. p. 14.<br />
76 Id Ibid. p. 14.<br />
77 ALENCASTRO. op. cit, p. 23.<br />
78 Id. Ibid. pp. 35-36.<br />
79 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Último capítulo. In: _______. Histórias sem data. São Paulo: Globo, 1997, p. 32.<br />
80 MAUAD, op. cit.,<br />
81 Id. Ibid. p. 199.<br />
82 Id. Ibid. p. 207.<br />
83 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Miss Dollar. In: _____. Contos fluminenses. São Paulo: Globo, 1997, p. 21.<br />
84 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. O caso <strong>do</strong> Romual<strong>do</strong>. In:_____. Escritos avulsos II. São Paulo: Globo, 1997, p. 128.<br />
85 MAUAD, op cit., p. 212.<br />
86 Id. Ibid. p. 211.<br />
87 FAORO, Raymun<strong>do</strong>. Macha<strong>do</strong> de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4 ed. São Paulo: Globo, 2006, p.33-40.; MESQUITA, Samira N. de. A cidade <strong>do</strong><br />
Rio de Janeiro e a <strong>obra</strong> de Macha<strong>do</strong> de Assis. Revista TB. Rio de Janeiro. N. 85. abr/jun, 1986, pp. 83-85; GLEDSON, John. Macha<strong>do</strong> de Assis em<br />
vários tempos. In: _____. Por um novo Macha<strong>do</strong> de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 347-359.<br />
88 PESAVENTO, Sandra. História e história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 60.<br />
89 BACZKO, op cit.<br />
90 ASSIS, Macha<strong>do</strong>. Vinte anos! Vinte anos! In: ______ Escritos avulsos II. São Paulo: Globo, 1997, p. 119.<br />
91 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Capítulo <strong>do</strong>s chapéus. In: ____. Histórias sem data. São Paulo: Globo, 1997, p. 75-76.<br />
92 CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: _____. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:<br />
Difel, 1990, p. 17.<br />
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93 BOSI, Alfre<strong>do</strong>. Macha<strong>do</strong> de Assis: o enigma <strong>do</strong> olhar. São Paulo: Ática, 2003, p. 11.<br />
94 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Casa velha. In: _____. Escritos avulsos III. São Paulo: Globo, 1997, p. 19.<br />
95 Id Ibid. p. 26.<br />
96 Id Ibid. p. 19.<br />
97 Id. Ibid. p. 17.<br />
98 Id. Ibid. p. 18.<br />
99 Id. Ibid. p. 18.<br />
100 Id. Ibid. p. 48.<br />
101 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Troca de datas. In: ____ Escritos avulsos II. São Paulo: Globo, 1997. [A.E. 31 de maio a 30 de junho de 1883].<br />
102 Id. Ibid. p. 19.<br />
103 Id. Ibid. p. 20.<br />
104 Id. Ibid. p. 20.<br />
105 Id. Ibid. p. 27.<br />
106 Id. Ibid. pp. 27-28.<br />
107 ASSIS, op cit., p. 7.<br />
108 Id. Ibid. pp. 6-7.<br />
109 ASSIS, op cit., p. 28. [A.E. 31 de maio a 30 de junho de 1883].<br />
110 Id. Ibid. p. 28.<br />
111 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. A mulher de preto. In: _____. Contos fluminenses. São Paulo: Globo, 1997, p. 64.<br />
112 ASSIS, op cit., p. 4.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 34<br />
| História | 2009
113 Id. Ibid. p. 15.<br />
114 PESAVENTO, op cit., p. 56.<br />
115 Id. Ibid. p. 56.<br />
116 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Aurora sem dia. In: _____. Histórias da meia noite. São Paulo: Globo, 1997. Lança<strong>do</strong> em volume pelo autor em 1873.<br />
117 Id. Ibid. p. 101.<br />
118 Id. Ibid. p. 101.<br />
119 Id. Ibid. p. 111.<br />
120 Id. Ibid. p. 111.<br />
121 Id. Ibid. p. 111.<br />
122 Id. Ibid. p. 113.<br />
123 Id. Ibid. p. 114.<br />
124 Id. Ibid. p. 116.<br />
125 Id. Ibid. p. 121.<br />
126 Id. Ibid. p. 122.<br />
127 ASSIS, op cit., p. 8.<br />
128 Id. Ibid. p. 11.<br />
129 Id. Ibid. p. 23.<br />
130 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. O segre<strong>do</strong> de Augusta. In: ______. Contos fluminenses. São Paulo, Globo, 1997, p. 113.<br />
131 MAUAD, op cit., p. 226.<br />
132 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Três conseqüências. In: _____ Escritos avulsos II. São Paulo: Globo, 1997. [A.E. 31 de julho de 1883].<br />
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| História | 2009
133 Id. Ibid. p. 41.<br />
134 Id. Ibid. p. 43.<br />
135 WILLIAMS, op cit., p. 16.<br />
136 ASSIS, op cit., p. 44.<br />
137 Id. Ibid. p. 44.<br />
138 Id. Ibid. pp. 44-45.<br />
139 Id. Ibid. p. 45.<br />
140 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. A parasita azul. In: _____. Histórias da meia noite. São Paulo: Globo, 1997.<br />
141 Id. Ibid. p. 3.<br />
142 Id. Ibid. p. 3.<br />
143 Id. Ibid. p. 7.<br />
144 Id. Ibid. p. 6.<br />
145 Id. Ibid. p. 7.<br />
146 Id. Ibid. p. 8.<br />
147 Id. Ibid. p. 7.<br />
148 Id. Ibid. p. 3.<br />
149 Id. Ibid. p. 8.<br />
150 Id. Ibid. p. 9.<br />
151 Id. Ibid. p. 10.<br />
152 Id. Ibid. p. 10.<br />
Monografias - Universidade Tuiuti <strong>do</strong> Paraná 36<br />
| História | 2009
153 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. O alienista. São Paulo. Ática, 1994.<br />
154 Id. Ibid. p. 43.<br />
155 ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Luis Soares. In: _____. Contos fluminenses. São Paulo: Globo, 1997.<br />
156 Id. Ibid. p. 55.<br />
157 ASSIS, op cit., p. 14.<br />
158 Id Ibid. p. 16.<br />
159 Id. Ibid. p. 17.<br />
160 Id. Ibid. p. 18.<br />
161 Id. Ibid. p. 18.<br />
162 Id. Ibid. p. 22.<br />
163 Id. Ibid. p. 55.<br />
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