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* * *<br />
Este e-book é libera<strong>do</strong> para <strong>do</strong>wnload gratuito. Porém, caso goste <strong>do</strong> livro, considere uma<br />
pequena <strong>do</strong>ação ao autor. Toda forma de apoio é bem-vinda e sua atitude incentivará a<br />
continuidade deste projeto literário único no Brasil.<br />
* * *<br />
Sobre mim-eu-mesmo: “<strong>Moa</strong> <strong>Sipriano</strong> produz exclusivamente literatura adulta que aborda<br />
to<strong>do</strong>s os meandros <strong>do</strong> universo gay masculino. Seus artigos realistas, contos polêmicos e<br />
romances homoeróticos remetem à reflexão e promovem momentos excitantes de<br />
surpreendentes descobertas.”<br />
* * *<br />
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DOIS<br />
<strong>Moa</strong> <strong>Sipriano</strong><br />
2010<br />
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Vamos lá!<br />
Na atual fase abestalhada da minha carreira, eu perambulo pelas ruas de Lovland à caça<br />
constante de garrafas de leite. Sim, aquelas garrafas de vidro <strong>do</strong> tempo da nossa avó!<br />
Eu bato de casa em casa, torro a paciência <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res mais antigos, sou generoso nas<br />
minhas ofertas e sempre saio de mãos cheias... de antigas e empoeiradas garrafas de leite da vovó!<br />
Em casa, ao som de Josh Kelley, eu lavo, esterilizo e avalio meu lote. Em seguida, dentro de<br />
cada garrafinha, vou depositan<strong>do</strong> pedras, galhos de árvores, pedaços de metal, bolinhas de gude,<br />
pedacinhos de vidro quebra<strong>do</strong>, gotas de parafina, porcas e parafusos... qualquer coisa que minha<br />
fértil imaginação indicar... dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> etílico a comandar meus desvarios.<br />
Depois de montadas, fotografo garrafa por garrafa e publico tu<strong>do</strong> muito bem organiza<strong>do</strong> em<br />
meu site pessoal. Finalizan<strong>do</strong>, basta enviar uma cintilante news via email, cruzar as pernocas<br />
pelúnicas deliciosas e aguardar as encomendas <strong>do</strong>s dementes que julgam meu trabalho como Arte.<br />
Eu me divirto com o ridículo de tu<strong>do</strong>. Ven<strong>do</strong> minhas sandices para japoneses, americanos e<br />
europeus tão ou mais pangos <strong>do</strong> que eu!<br />
Ganho o equivalente em Euros... a conversão em lovs é vantajosa e assim vivo minha<br />
vidinha medíocre bem feliz, bem contente, bem a cantar e cantar e cantar.<br />
E beber, beber, beber.<br />
Eu sou um artista plastifica<strong>do</strong>. Irreverente, insano, não muito talentoso admito, mas um<br />
criativo com grana... sozinho... e feliz!<br />
* * *<br />
Cultivo uma louca mania. Quan<strong>do</strong> não rola inspiração de porra nenhuma, me jogo a umas<br />
insólitas caminhadas no interior <strong>do</strong> cemitério da ilha. Tipo assim: andar, andar e andar lentamente,<br />
sem roteiro prefixa<strong>do</strong>.<br />
Gosto de apreciar a arquitetura <strong>do</strong>s inúmeros túmulos e <strong>do</strong>s raros mausoléus. Gosto de viajar<br />
perante as diversas esculturas <strong>do</strong> Cristo sofre<strong>do</strong>r (tadinho), das Nossas Senhoras com cara de<br />
tontas (loucas de vontade de dar) e, claro, <strong>do</strong>s Anjinhos angelicais com fuças e corpos roliços<br />
bambeevirgens... sempre tão fofinhos!<br />
Cemitérios acalmam a mente e a alma. An<strong>do</strong> e an<strong>do</strong> e an<strong>do</strong> por entre alamedas apertadas. De<br />
repente, paro e olho e admiro esse ou aquele túmulo reluzente; sinto a textura das esculturas de<br />
bronze queimadas pela maresia, anoto algumas frases criativas de uma lápide qualquer gasta pelo<br />
tempo... e tento desvendar mistérios das fotos de pessoas que foram felizes em algum lugar <strong>do</strong><br />
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passa<strong>do</strong>.<br />
Felicidade... me engana... e aí... onde você se esconde?<br />
* * *<br />
Passo horas e horas perdi<strong>do</strong> em devaneios nesse meu passeio fúnebre. Caminhar entre os<br />
mortos me conforta. Me faz acreditar que nada acaba. Apenas o resumo de tu<strong>do</strong> consiste numa<br />
porta desconhecida que deve ser aberta novamente e um mun<strong>do</strong> novo, cheio de possibilidades, se<br />
descortina diante de nossos olhos embasbaca<strong>do</strong>s. A vida nunca cessa sua caminhada evolutiva.<br />
* * *<br />
A galeria em Paderborn havia exigi<strong>do</strong> dezoito peças para compor uma exposição no final de<br />
setembro. Eu tinha que despachar a merca<strong>do</strong>ria até o começo de julho. Desleixa<strong>do</strong> como sou, eu<br />
havia produzi<strong>do</strong> apenas oito peças até ontem. E nada no mun<strong>do</strong> era capaz de me proporcionar<br />
inspiração necessária para compor o restante <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> imposto.<br />
Eu não podia desperdiçar a chance que me era oferecida. O equivalente a duzentos mil lovs<br />
assim, de mão beijada, não deveriam ser despreza<strong>do</strong>s. Se os endinheira<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s meus conterrâneos<br />
alemães queriam a porra das dezoito peças, oras bolas, eu tinha obrigação de encher a porra das<br />
garrafas de leite da vovó com penduricalhos inusita<strong>do</strong>s, criativos, torturantes, polêmicos.<br />
de espírito.<br />
O que fazer? Toca esse corpo mole pro cemitério, caralho!<br />
Foi o que eu fiz no 18 de junho. O princípio de tu<strong>do</strong>. O fim <strong>do</strong> que eu julgava ser minha paz<br />
* * *<br />
O dia estava nubla<strong>do</strong>, carrega<strong>do</strong> de sal e tristeza. Entornan<strong>do</strong> uma lata de Sub Zero, lá fui eu<br />
perscrutar mais uma vez o território sagra<strong>do</strong> daqueles que apenas sonhavam em ser deixa<strong>do</strong>s em<br />
paz.<br />
Eu andava assim, molambo, sem direção. Sem vontade nenhuma de curtir uma obra de arte<br />
barroca ou de me deliciar com as frases clichês esculpidas nas lápides repletas de limo.<br />
Depois de muito “descanse em paz”, “filho a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>”, “esposa incomparável” etc eu me<br />
preparava para deixar o recinto, louco para chegar na bodega e encher a pança de chouriço e<br />
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cerveja, quan<strong>do</strong> sei lá eu o motivo, dei meia-volta, passei por trás da capela e me postei diante de<br />
um túmulo coberto de granito num tom de marrom impossível de ser descrito, onde o brilho<br />
emana<strong>do</strong> pela pedra polida à exaustão conseguia rasgar o nubla<strong>do</strong> <strong>do</strong> dia sem graça, e ferir meus<br />
olhos com sua beleza ímpar.<br />
Fiquei ali, para<strong>do</strong>, trava<strong>do</strong>, tremen<strong>do</strong> da careca aos pés, medin<strong>do</strong> até mesmo a respiração<br />
ofegante <strong>do</strong> meu peito que <strong>do</strong>ía e latejava sem razão de ser.<br />
Eu queria chorar. Eu estava em pânico. Eu não entendia porra nenhuma!<br />
Examinei o túmulo, senti o frescor das flores recém depositadas ali para homenagear o ente<br />
queri<strong>do</strong>. Imediatamente, não sei como deixei isso foi acontecer, abaixei a cabeça e dirigi meus<br />
pensamentos a Deus, proferin<strong>do</strong> respeitosamente ao Altíssimo algumas palavras de conforto ao<br />
desencarna<strong>do</strong>.<br />
É só nessa hora que a gente lembra que existe um Deus!<br />
Minha boca, onde os lábios tremiam incontroláveis, murmuravam palavras de carinho àquele<br />
Mortinho da Silva. Quan<strong>do</strong> dei por mim, eu chorava em cântaros, sem lógica aparente. Fui<br />
conforta<strong>do</strong> por uma mão quente, cheirosa e pesada que pousou com delicadeza familiar sobre meu<br />
ombro esquer<strong>do</strong>.<br />
“Ele realmente era excepcional. Cometeu o erro primário. Mas isso não o desmerece diante<br />
de mim. Eu também sinto muito, muito a falta de pessoas como ele. Chore, meu filho, eu sei o<br />
quanto ele foi importante para você... aliás, para to<strong>do</strong>s nós!”<br />
De um pulo imaginário, abri meus olhos marea<strong>do</strong>s e me depararei com um belo exemplar de<br />
macho sessentão gosto-sééé-rri-mo encosta<strong>do</strong> bem ao meu la<strong>do</strong>, empunhan<strong>do</strong> um fantástico<br />
ramalhete de flores multicor, multitamanhos, multimaravilhosas que exalavam a mais perfeita<br />
alquimia de cheiros jamais iguala<strong>do</strong>s pelo mais refina<strong>do</strong> perfume cria<strong>do</strong> pelo homem.<br />
Enxuguei minhas lágrimas sinceras, ainda ampara<strong>do</strong> pelo estranho. Não proferi palavra<br />
alguma, apenas aceitei em silêncio o carinho daquela mão pesada, quente, carinhosa, providencial.<br />
Não senti me<strong>do</strong>. Apenas prazer e <strong>do</strong>r.<br />
O homem sem identidade depositou seu ramo de flores num delica<strong>do</strong> vaso branco de<br />
porcelana que jazia solitário num canto qualquer. Ele fez o que pareceu um sinal da cruz meio<br />
afeta<strong>do</strong>, escalafobético, e murmurou uma breve oração, enxugou uma única lágrima tímida <strong>do</strong> seu<br />
olho direito – olhos castanhos claros e vívi<strong>do</strong>s – e partiu, em silêncio respeitoso, voltan<strong>do</strong> assim<br />
para o seu mun<strong>do</strong> de rotina e de afazeres inadiáveis.<br />
Não houve despedidas. Apenas algo no ar indicava um reencontro.<br />
“... chore meu amigo, eu sei o quanto ele foi importante para você...”, que merda era aquilo?<br />
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Eu nem conhecia o bofe!<br />
Inspirei o ar morno daquela manhã sem cor. Pisquei repetidamente meus olhos cansa<strong>do</strong>s,<br />
para focalizar com atenção as inscrições entalhadas na pedra escura.<br />
“Sepp Mertens – 13 de junho de 1979 - 18 de junho de 2007 – queri<strong>do</strong> e ama<strong>do</strong> filho e<br />
irmão inigualável...”, li com dificuldade os entalhes cobertos daquela típica gosma verde das<br />
trepadas entre vento, sal e mar.<br />
Com uma delicadeza incompatível com meu jeito de ser, toquei a foto fora de foco,<br />
espantan<strong>do</strong> aos poucos a umidade excessiva típica da nossa região. Fui brinda<strong>do</strong> com a imagem de<br />
um rapaz <strong>do</strong>no de um olhar encanta<strong>do</strong>r, emoldura<strong>do</strong> por um rosto branco, triangular, onde queixo e<br />
boca e a barbicha de cinco dias fundiam-se harmoniosamente.<br />
Reparei que tínhamos a mesma idade. Não pude resistir de tocar naquela imagem fria mais<br />
uma vez. E mais uma vez, acompanhada de mais “umas vezes”. Quan<strong>do</strong> me toquei <strong>do</strong> absur<strong>do</strong>, eu<br />
chorava... copiosamente. Chorava como se tivesse leva<strong>do</strong> a pior das surras de uma infância infeliz.<br />
Era a primeira vez que eu sentia o hálito acre da Senhora Solidão.<br />
Eu tocava o rosto frio de Sepp e tentava imaginar o que teria leva<strong>do</strong> aquele homem com cara<br />
de garoto a desencarnar tão ce<strong>do</strong>, tão... prematuramente, no auge da sua vida que devia ser linda e<br />
repleta de oportunidades. Eu queria muito acreditar nisso.<br />
“... ele cometeu o erro primário... mas isso não o desmerece diante de mim...”<br />
Sem cerimônia, sem entender nada que a Dona Lógica tentava me expor, sentei minha bunda<br />
macia no túmulo frio, acariciei as flores deixadas pelo sessentão estranho, toquei as faces sépias de<br />
Sepp com a ponta fria <strong>do</strong>s meus de<strong>do</strong>s trêmulos. Eu tentava decifrar aquele olhar e nada me vinha<br />
como resposta convincente diante daquela situação aparentemente sem senti<strong>do</strong>.<br />
O que teria aconteci<strong>do</strong> ao infeliz?<br />
O tempo parou. Fiquei ali, trava<strong>do</strong> e triste, por sei lá eu quantas horas, choran<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong><br />
carinho à imagem de um homem que não estava mais entre nós... e que jamais poderia ser ama<strong>do</strong><br />
por alguém nesse plano novamente.<br />
Que nunca poderia ser ama<strong>do</strong> por um alguém como eu, por exemplo.<br />
* * *<br />
Já era começo da noite quan<strong>do</strong> me dei conta que voltava para casa, depois de perambular<br />
pelas praias, arrastan<strong>do</strong> minha <strong>do</strong>r entre areias e ondas. Tomei um banho rápi<strong>do</strong>, gela<strong>do</strong>. Comi<br />
algumas bolachas água-e-sal regadas com generosas <strong>do</strong>ses da trocentésima lata de cerveja jogadas<br />
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goela abaixo.<br />
Bêba<strong>do</strong>, mas inspira<strong>do</strong>, milagrosamente terminei a encomenda da galeria de arte alemã.<br />
Eufórico, empacotei as garrafas prontas, deixan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong> para ser despacha<strong>do</strong> já no dia<br />
seguinte.<br />
Fui para cama exausto, mas sem um pingo de sono. Minha cabeça explodia e meu olhar fixo<br />
na parede azul refletia a imagem nítida de Sepp em minha mente embotada pelo álcool.<br />
Rolei de um la<strong>do</strong> para o outro, sem sucesso. O sono – esse filho de uma puta – havia<br />
escapuli<strong>do</strong> para não sei que buraco de uma dimensão nunca revelada. Me restou perambular pela<br />
casa, destroçan<strong>do</strong> restos frios de um queijo ancestral sepulta<strong>do</strong> dentro da geladeira, entornan<strong>do</strong><br />
mais latas estupidamente geladas da bebida cevada, me jogan<strong>do</strong> ora no sofá da sala, ora no tapete<br />
da varanda, ora em qualquer lugar que meu corpo encontrasse lascas de conforto e bem-estar.<br />
Tu<strong>do</strong> em vão. Tu<strong>do</strong> inútil. Sepp não me aban<strong>do</strong>nava um segun<strong>do</strong> sequer da mente e alma<br />
bitoladas. Eu chorava. Chorava de uma maneira ridícula por um alguém que eu simplesmente não<br />
tinha nada a ver com nada.<br />
Eu olhava para minhas paredes de madeira pintadas de azul e vertia cachoeiras. Imbuí<strong>do</strong> de<br />
parca religiosidade, eu implorava ao Cria<strong>do</strong>r que me desse uma luz; um toque qualquer para que<br />
eu me livrasse daquela insanidade. Eu precisava saber mais sobre Sepp, eu tinha que saber mais<br />
sobre Sepp, eu devia me aprofundar mais sobre o que havia aconteci<strong>do</strong> com Sepp.<br />
Dormi entre soluços, aninha<strong>do</strong> nu no meio da varanda, em companhia de um cão imaginário,<br />
abraça<strong>do</strong> a uma almofada de cetim que certamente já vivera dias melhores a esquentar o vazio<br />
entre minhas pernas.<br />
* * *<br />
Se você quer saber de qualquer coisa ocorrida em Lovland, voe para a bodega <strong>do</strong> Nolla. É<br />
batata assada. Faça qualquer pergunta sobre a ilha e seus ocupantes e em segun<strong>do</strong>s um<br />
frequenta<strong>do</strong>r ou até mesmo o próprio Nolla lhe dará a resposta mais <strong>do</strong> que exata sobre qualquer<br />
coisa que tenha ocorri<strong>do</strong> em nossa querida comunidade.<br />
Com cara de poucos amigos, sentei, dedilhei meus de<strong>do</strong>s finos no balcão de fórmica, pedi<br />
minha cerveja e aguardei a coragem de perguntar o inevitável.<br />
Nolla, velho conheci<strong>do</strong>, me brin<strong>do</strong>u com seu bafo charutenho, perguntan<strong>do</strong>-me de chofre o<br />
que estava acontecen<strong>do</strong>. Ele notou minha cara de garoto pidão. Ele reclamou <strong>do</strong> meu corte de<br />
cabelo. Eu fazia de tu<strong>do</strong> para esconder minha calvície. Ele não me deixava esquecer que, dia após<br />
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dia, eu ficava ainda mais cara e fuça <strong>do</strong> meu faleci<strong>do</strong> e odia<strong>do</strong> pai.<br />
Não fiz rodeio. Fui logo ao ponto morto. Disse-lhe que precisava saber o que havia ocorri<strong>do</strong><br />
com um rapaz de nome Sepp. Sepp Mertens... desencarna<strong>do</strong> há um ano.<br />
“Humm, Sepp... Sepp.... Sim, claro, o jovem Sepp... filho de Michael, o pesca<strong>do</strong>r vesgo.<br />
Sim, sim... o idiota morreu afoga<strong>do</strong> em Gobsun no inverno passa<strong>do</strong>. É isso mesmo... bêba<strong>do</strong>...<br />
afoga<strong>do</strong>... glub...hic... glub!”, disse Nolla, deflagran<strong>do</strong> um sorriso sarcástico de estranhos dentes<br />
<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, gastos, piratas.<br />
À minha direita, um velho cheiran<strong>do</strong> a malte entrou na dança, rin<strong>do</strong> e imitan<strong>do</strong> a si mesmo –<br />
bêba<strong>do</strong> – como se estivesse se afogan<strong>do</strong>... feliz da vida!<br />
“Vai ver aquele moleque esquisito nunca tinha bebi<strong>do</strong> na vida. E quan<strong>do</strong> tomou o primeiro<br />
porre... glub... hic... gluuubbb...Mo-Rre-U!”, disse Cheira Malte, quase cain<strong>do</strong> <strong>do</strong> banquinho de<br />
madeira de três pernas não muito seguras de si.<br />
“Eu concor<strong>do</strong>”, disse Nolla, limpan<strong>do</strong> as mãos oleosas na camiseta que gritava por um banho<br />
em soda cáustica. “Acho que o garoto esquisito levou um fora da namorada, pois não conseguiu<br />
enfiar o pintinho numa bela buçanha; daí desatou a beber, a chorar, a beber mais e... pimba.. glub...<br />
hic... gluuubbb. Simples assim!”, confirmou o velho <strong>do</strong>no da velha bodega, agarran<strong>do</strong> meu ombro<br />
esquer<strong>do</strong> com sua mão suada, cheiran<strong>do</strong> a restos de um peixe qualquer.<br />
“Obriga<strong>do</strong>, velho Nolla”, eu disse, sem convencer. “Sua teoria me deixou... impressiona<strong>do</strong>”,<br />
complementei, com meia sinceridade.<br />
“Ah, é verdade”, ele disse, rin<strong>do</strong> a plenos pulmões. “Per<strong>do</strong>e o velho marinheiro. Eu sempre<br />
me esqueço que você não gosta da coisa rachada... ah, ah, ah!”<br />
Ignorei a brincadeira. Por trás da piada eu via o temor <strong>do</strong> homem solitário, desespera<strong>do</strong>, na<br />
expectativa que eu revelasse aos parcos clientes as nossas brincadeiras atrás <strong>do</strong> balcão nas<br />
madrugadas etílicas de verão. Perdi a conta de quantas vezes Nolla tinha me comi<strong>do</strong>, me chupa<strong>do</strong>,<br />
me meianovea<strong>do</strong>.<br />
Sacanagens por trás da bebida. Do balcão de bebidas. Suprin<strong>do</strong> nossas carências na eterna<br />
expectativa de um amor impossível. Nolla sem sua japonesa 1978. Eu... sem meu príncipe libertino<br />
1996.<br />
Nós <strong>do</strong>is apenas afogávamos a carência <strong>do</strong> corpo, de vez em quan<strong>do</strong>; jamais a tristeza da<br />
alma pelos amores perdi<strong>do</strong>s por causa da nossa burrice compartilhada.<br />
Conversamos mais um pouco sobre detalhes da família Mertens. Paguei minha cerveja com<br />
duas velhas notas úmidas de um lov. em casa, coloquei a enorme caixa que continha minhas<br />
artísticas garrafas rigorosamente bem embaladas num suporte improvisa<strong>do</strong> atrás da bicicleta, e lá<br />
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fui eu até a agência postal imaginan<strong>do</strong>, durante aquele curto trajeto, o que eu faria com o (não tão<br />
sua<strong>do</strong>) dinheirinho que em breve pingaria na minha conta especial.<br />
Duzentos mil por penduricalhos sufoca<strong>do</strong>s no interior de vidros antigos!<br />
Não enfrentei filas naquela manhã. Tu<strong>do</strong> transcorreu como de costume. Monika, a loirinha<br />
sardenta mais fofa da ilha, não tar<strong>do</strong>u a me contar num sussurro longe de ser discreto a sua mais<br />
nova façanha: ela tinha finalmente bati<strong>do</strong> uma pro seu namora<strong>do</strong> de longa data.<br />
“Mas não teve muita graça não, Zeeg”, ela continuou, sem um pingo de cerimônia, enquanto<br />
me passava o comprovante da postagem da grande caixa. “Achei que ia ser o máximo, mas o<br />
peepo dele mal encaixava direito na minha mão. E... olha só... ela é tão pequenina!”, disse Monika,<br />
me fazen<strong>do</strong> gestos nada sagra<strong>do</strong>s de como ela havia inicia<strong>do</strong> o bofe com sua mão delicada.<br />
Desatamos a rir e aproveitei o embalo para pedir um favor à minha tresloucada, <strong>do</strong>ce e<br />
admirada amiga postal.<br />
“Mô, eu preciso de uma força”, eu disse, tentan<strong>do</strong> simular a cara mais singela possível.<br />
“Quer que eu bata uma pra você também?”, disse Monika, a Discreta.<br />
“Se você tivesse um bigodinho e menos peitão, quem sabe eu poderia reavaliar a situação?”,<br />
ri da minha asneira proferida afetadamente.<br />
“Tá certo, quem sabe na próxima vida você venha como homem-hoommeem!”, retrucou<br />
Monika, fazen<strong>do</strong> cara de moleca inconformada.<br />
“Não existe ‘próxima vida’, lindinha. A vida é uma só. Existências sim, são muitas. Por<br />
favor, pegue o Catálogo pro seu hoommeem, pegue!”, pedi com paciência aparente.<br />
mãos.<br />
“Lá vem você com esse papo religioso de novo”, disse Monika, já com o livro amarelo nas<br />
“Não é religião. É uma... filosofia... ou quase isso, pra você entender melhor”, expliquei,<br />
acho que pela trigésima vez apenas naquele ano.<br />
“Tá certo. Depois vamos sair pra catar uns caras e você me explica melhor essa sua ‘filosofia<br />
ou quase isso’”, riu Monika. “Bom, aqui está. O que exatamente você está procuran<strong>do</strong>?”<br />
Nem tive tempo de responder, pois um ban<strong>do</strong> tomara conta <strong>do</strong> recinto, loucos para se livrar<br />
de suas papeladas, pagar contas, receber encomendas, entre outras coisas oferecidas por aquele<br />
estabelecimentossegun<strong>do</strong>pontodencontrodafofocaloveana.<br />
Monika, solitária e estabanada, pediu licença, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>-me providencialmente.<br />
O “Catálogo” amarelo era um calhamaço de folhas carcomidas pelo tempo, onde eram<br />
registra<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os endereços das pessoas que viviam isoladas na zona rural de Lovland.<br />
Nolla havia me dito que o pesca<strong>do</strong>r de nome Michael morava pra lá de deus-me-livre, bem<br />
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ao norte da ilha, junto com o filho Sepp e uma filha que ele não recordava o primeiro nome. A<br />
mulher <strong>do</strong> velho pesca<strong>do</strong>r vesgo já era falecida há tempos. Segun<strong>do</strong> Nolla, ela havia desencarna<strong>do</strong><br />
poucos meses depois de ter da<strong>do</strong> à luz o menino, devi<strong>do</strong> a uma infecção não diagnosticada no<br />
tempo certo.<br />
Uma violenta febre acometeu a pobre mulher. O mari<strong>do</strong> estava pescan<strong>do</strong> em alto-mar (onde<br />
passava meses inteiros, segun<strong>do</strong> Nolla), e a menina ainda era muito nova, impossibilitada de tomar<br />
conta da mãe e <strong>do</strong> bebê.<br />
A família não tinha vizinhos próximos. A tragédia desceu sua mão negra sobre a mulher<br />
indefesa numa incomum madrugada gélida de agosto. A mãe partira para o mun<strong>do</strong> verdadeiro.<br />
Levei menos de três minutos para achar o que queria. Anotei rapidamente to<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s<br />
possíveis num resto de papel. Fechei o livro antes que algo se desintegrasse nas minhas mãos,<br />
deixan<strong>do</strong> o raro exemplar sobre o balcão com tampo de vidro rechea<strong>do</strong> de digitais sem identidades.<br />
Será que Monika já ouvira falar em “computa<strong>do</strong>r”, “multifuncional”, “digitalização de<br />
<strong>do</strong>cumentos”?<br />
Mandei um beijo aéreo para a atarantada da atendente sardenta que se esgoelava em bom<br />
alemão para que um senhor pudesse compreender que havia trazi<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento erra<strong>do</strong> e não<br />
seria possível realizar a retirada específica de uma encomenda importante.<br />
Deixei a agência com o coração aperta<strong>do</strong>. Sem compreender o motivo para a <strong>do</strong>r que se<br />
acumulou sobre meu peito. Outra vez!<br />
* * *<br />
Deita<strong>do</strong> na cama, eu prestava atenção no tilintar de algumas gotas sobre os vidros da janela<br />
<strong>do</strong> meu quarto às escuras. Prenunciava-se uma chuva torrencial que felizmente acabou não<br />
acontecen<strong>do</strong>.<br />
Já era madrugada quan<strong>do</strong> resolvi descer até a cozinha para preparar algo que acalmaria a<br />
rabugice <strong>do</strong> meu estômago.<br />
Enganei o infame entornan<strong>do</strong> quatro latas de cerveja, uma atrás da outra, quase sem parar<br />
para sequer recuperar o fôlego.<br />
Meio zonzo, quan<strong>do</strong> dei por mim estava joga<strong>do</strong> no imenso pufe púrpura que jazia gela<strong>do</strong> na<br />
varanda. Eu via pontos luminosos no firmamento de maneira mais <strong>do</strong> que difusa. Eu acariciava o<br />
couro sintético daquele saco fofo, desejan<strong>do</strong> intensamente que um anjo caísse <strong>do</strong> céu ou um<br />
demônio emergisse <strong>do</strong> meu grama<strong>do</strong> impecável e qualquer um desses seres fizesse amor comigo<br />
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até o sol raiar.<br />
Eu sempre sonhei em trepar à três!<br />
Mesmo viven<strong>do</strong> uma solidão voluntária por tantos e tantos anos, havia instantes em que eu<br />
sentia falta de um corpo masculino se digladian<strong>do</strong> com meu corpo cheio de fogo e enxofre para<br />
queimar até o final <strong>do</strong>s tempos. Eu precisava desesperadamente de sexo.<br />
Nolla, Nolla, Nolla. Vamos levantar seu humor?<br />
Arranquei o short que não segurava mais a rigidez rude <strong>do</strong> meu caralho imenso. Nu em pelo,<br />
toquei punhetas homéricas até me esganiçar num grito amargo, onde minha porra espessa criara<br />
uma longa trilha brilhante nas lajotas vermelhas que permeavam to<strong>do</strong> o interior da minha casa<br />
simples, herança <strong>do</strong>s meus pais.<br />
* * *<br />
Eram nove horas de uma manhã nada agradável quan<strong>do</strong> resolvi abrir meus olhos cola<strong>do</strong>s por<br />
causa das lágrimas <strong>do</strong>loridas dispersas após a punhetagem notívaga.<br />
O ar estava estagna<strong>do</strong>, denso, salga<strong>do</strong> acima da média. Eu não sentia nenhuma brisa,<br />
nenhum movimento que pudesse acalentar minha <strong>do</strong>r; um ventinho sequer que me tirasse um<br />
pouco da agonia da noite perdida.<br />
Tomei um café frio passa<strong>do</strong> há séculos. Entrei debaixo da mangueira entre minhas mãos já<br />
suadas, onde um jato de água congelante tentava em vão me despertar para um novo dia de<br />
desafios a serem venci<strong>do</strong>s.<br />
Troca<strong>do</strong>, perfuma<strong>do</strong> pela alfazema, peguei minha bicicleta e rumei sem pressa até a casa <strong>do</strong>s<br />
Mertens. Eu precisava tirar essa história a limpo.<br />
* * *<br />
Atravessar a ilha toda não foi nenhum sacrifício. Lovland é plana e as estradas que cortam<br />
toda ilha são muito bem conservadas, mesmo nos trechos onde não chegara o asfalto. Aproveitei<br />
que o dia tinha melhora<strong>do</strong> e segui boa parte <strong>do</strong> trajeto pela praia.<br />
Agora sim, fui brinda<strong>do</strong> com o frescor da brisa que envolvia meu corpo num abraço<br />
delicioso. O marulho das ondas mínimas tranquilizava um pouco meu espírito ainda inquieto. Tu<strong>do</strong><br />
parecia tão harmonioso que não resisti dar uma paradinha, tirar camiseta e bermuda e me atirar<br />
com vontade nas águas agora mornas que imploravam por momentos descontraí<strong>do</strong>s de<br />
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traquinagens infantis.<br />
Feito moleque no cio, eu pulava, mergulhava, gargalhava e me jogava ao sabor das infinitas<br />
marolas que tentavam cobrir meu corpo durante nossos momentos de brincadeiras estapafúrdias.<br />
Foi bom me refrescar. Aban<strong>do</strong>nei o oitavo mar sentin<strong>do</strong> meu corpo mais <strong>do</strong> que purifica<strong>do</strong>,<br />
pronto para enfrentar qualquer batalha.<br />
Qualquer batalha?<br />
Nem bem minha pele havia seca<strong>do</strong> por completo, enquanto eu punha a bermuda e calçava<br />
meus chinelos de borracha, uma onda de choque perpassou meu corpo.<br />
Caí de joelhos, como que a implorar perdão por um terrível peca<strong>do</strong> cometi<strong>do</strong>. Eu olhava para<br />
to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s e não via nada, ninguém, a não ser algumas gaivotas ao longe, sempre à procura <strong>do</strong><br />
seu sustento, olhos prega<strong>do</strong>s na imensidão <strong>do</strong> mar.<br />
Eu me sentia culpa<strong>do</strong> por nada, ou por algo assusta<strong>do</strong>r. Eu olhava para o céu e procurava em<br />
desespero a face oculta de Deus.<br />
Eu enterrava minhas mãos na areia e buscava puxar com toda minha força os chifres<br />
sagra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Capeta.<br />
Eu queria uma resposta para a origem das minhas <strong>do</strong>res. Quem seria o primeiro a resolver<br />
todas as equações pendentes da minha existência sem senti<strong>do</strong>? Deus ou o Diabo?<br />
Por que to<strong>do</strong> esse sofrimento? Por que eu seguia um caminho ao qual eu não fora chama<strong>do</strong>?<br />
Por que rebuscar uma história que nada tinha a ver comigo? Será que não tinha mesmo a ver<br />
comigo?<br />
abatida.<br />
Rebuscar, rebuscar... essa maldita palavra ro<strong>do</strong>piava na minha mente cansada, salgada,<br />
Lavei as mãos nas ondas agora frias. Montei na bicicleta e segui meu destino sem parar mais<br />
nenhuma vez pelo caminho.<br />
* * *<br />
Os Mertens moravam numa casa de madeira bem modesta. Uma construção antiga, mas<br />
muito bem conservada, localizada no alto de um morro que proporcionava uma vista fantástica de<br />
boa parte da rudimentar vila de pesca<strong>do</strong>res que parecia intocada pelo tempo. A vila de um la<strong>do</strong>, o<br />
mar imponente <strong>do</strong> outro. Imagem de um belo e inesquecível cartão-postal.<br />
Rodei por toda extensão da casa, para me certificar que não havia cães, gatos ou galinhas...<br />
ou algo que pudesse me por para correr dali aos trancos.<br />
13
Eu tenho me<strong>do</strong> de libélulas.<br />
Sem ameaças ocultas, dei três leves toques na porta de madeira maciça, desejan<strong>do</strong><br />
instintivamente que não houvesse ninguém a me receber para uma xícara de chá fumegante<br />
trincan<strong>do</strong> em confusão no meio de cubos de gelo.<br />
Ria <strong>do</strong> meu absur<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a fração de um rosto sério surgiu atrás da cortina de rendas,<br />
numa janela imponente bem <strong>do</strong> meu la<strong>do</strong> direito, que tremiam sem controle. A cortina. O meu<br />
rosto. Os meus senti<strong>do</strong>s.<br />
Tão rápi<strong>do</strong> como apareceu, o rosto branco sumiu como que por encanto copperfield. Minutos<br />
de silêncio <strong>do</strong>minavam uma situação incômoda.<br />
Sem mais nada para fazer, resolvi dar no pé o mais breve possível, já me lamentan<strong>do</strong> da<br />
besteira que eu havia me proposto a realizar, invadin<strong>do</strong> a intimidade de uma família que<br />
certamente ainda guardava luto pelo seu ente ama<strong>do</strong>.<br />
Monta<strong>do</strong> na bicicleta, permaneci estático sem vontade de pedalar. Meus pés formigavam.<br />
Minhas mãos endureciam sobre as extremidades <strong>do</strong> guidão. Algo me prendia naquele lugar. Algo<br />
não estava encaixa<strong>do</strong> como deveria. Eu divagava na busca de respostas que talvez eu não quisesse<br />
aceitar. Meus temores foram autentica<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> uma voz suave disse meu nome:<br />
“Zeeg. Então você é o famoso Zeeg. Você existe. Você não foi uma alucinação... Eu queria<br />
que fosse... mas... entre...”, dizia aquela voz cansada, abatida, quase afônica. “... entre, pois temos<br />
muito o que conversar... finalmente”, continuou a bela, porém escassa voz que mesmo tão fraca<br />
parecia o canto de uma sereia errante a me seduzir.<br />
* * *<br />
A sala era desprovida de luxos e coisas supérfluas. O chão era coberto por longas tábuas de<br />
madeira clara, exaustivamente enceradas por anos a fio, de tão brilhantes. No centro de tu<strong>do</strong> havia<br />
um grande sofá de couro bem gasto e duas poltronas de estilos bem diferentes <strong>do</strong> sofá.<br />
Também chamava atenção <strong>do</strong>is cria<strong>do</strong>s-mu<strong>do</strong>s ao la<strong>do</strong> das poltronas, que sustentavam <strong>do</strong>is<br />
abajures de fina prataria, onde pingentes de cor âmbar mescla<strong>do</strong>s com bolotas lápis-lazúlis davam<br />
um toque surrealista ao que deveriam ser as únicas peças de real valor presentes naquele lar<br />
simplório.<br />
Olhan<strong>do</strong> mais atentamente, me dei conta que atrás de uma das poltronas revestidas de um<br />
teci<strong>do</strong> esverdea<strong>do</strong> bem grosseiro, entre as duas janelas que proporcionavam uma luz incrível a<br />
to<strong>do</strong> o ambiente, havia um retrato a óleo onde apareciam o sr. Michael Mertens, a moça que havia<br />
14
me convida<strong>do</strong> para entrar e um garotinho senta<strong>do</strong> no colo da moça: um anjo sorrin<strong>do</strong><br />
especialmente para mim, onde suas bochechas furta-cor pareciam brincar com meus sentimentos<br />
mais profun<strong>do</strong>s. Sepp sorria para mim.<br />
* * *<br />
Mais alvo <strong>do</strong> que as paredes de madeira caiada, descontrola<strong>do</strong>, eu ria e chorava de autêntico<br />
nervosismo, sem saber mais para onde dirigir meu olhar estupefato, sem saber onde esconder<br />
minha vergonha diante da bela mulher que permanecia rígida bem na minha frente, como que a<br />
esquadrinhar todas as falhas da minha alma, pronta para me punir pelos crimes que eu não cometi.<br />
Eu tinha certeza de que não sairia ileso dali.<br />
* * *<br />
“Meu nome é Gloria. Gloria Mertens”, disse, enfim, a guardiã <strong>do</strong> meu destino.<br />
“Responden<strong>do</strong> o óbvio, sim, sou a irmã de Sepp, esse menino lin<strong>do</strong> retrata<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> tinha três<br />
anos de idade, que, aliás, não para de rir da sua cara, meu inconsolável Zeeg Moritz”, continuou<br />
Gloria, e eu jurava que podia ver um leve sorriso sarcástico brotan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus lábios sem cor.<br />
O mesmo sorriso de Ratzinger. Ele sabe que eu sei que nós sabemos que é verdade.<br />
“Como você sabe meu nome? De onde nos conhecemos? Meu Deus, o que eu tô fazen<strong>do</strong><br />
aqui nesse fim de mun<strong>do</strong>? Você é uma bruxa ou algo pareci<strong>do</strong>?”, murmurei milhões de frases<br />
feitas, tentan<strong>do</strong> idiotísticamente aplacar minha confusão mental, em vão.<br />
“Zeeg, por que formular perguntas as quais você já sabe as respostas? Você não parece ser<br />
um tipo que a<strong>do</strong>ra perder tempo com esse universo de baboseiras”, sorriu Gloria, deixan<strong>do</strong>-me<br />
sozinho por instantes que pareceram sem fim, enquanto levava seu corpo esguio como que a<br />
flutuar em direção ao que julguei ser um <strong>do</strong>s quartos da casa.<br />
Isola<strong>do</strong>, sem tirar os olhos <strong>do</strong> garoto gorducho e sorridente que se divertia com minha <strong>do</strong>r,<br />
transfigurei aquela imagem <strong>do</strong> quadro para a imagem da foto estampada na lápide. O mesmo olhar,<br />
a mesma cara de carência, o mesmo grito íntimo por um pedi<strong>do</strong> de socorro tardio.<br />
Eu olhava ao mesmo tempo os <strong>do</strong>is rostos <strong>do</strong> mesmo menino-homem. O <strong>do</strong> quadro,<br />
imploran<strong>do</strong> amor. O da lápide, imploran<strong>do</strong> perdão. Eu estava confuso, alucina<strong>do</strong>, excita<strong>do</strong>,<br />
acaba<strong>do</strong>.<br />
Como disse Gloria minutos atrás, eu certamente tinha todas as respostas dentro de mim-eu-<br />
15
mesmo. Mas como administrar o Novo, sem chances de compreender onde eu havia erra<strong>do</strong>?<br />
Não tardei a descobrir a razão de tu<strong>do</strong>. Gloria veio <strong>do</strong> nada seguran<strong>do</strong> uma caixa de sapatos.<br />
Convi<strong>do</strong>u-me a sentar no opaco sofá. Sentou-se ao meu la<strong>do</strong>. Depositou a caixa sobre o colo e<br />
pude reparar seu vesti<strong>do</strong> de teci<strong>do</strong> leve, com motivos florais, onde a transparência disputava<br />
espaço com sua pele alva, quase translúcida.<br />
Como num ritual, Gloria abriu a tampa da velha caixa, colocan<strong>do</strong>-a com delicadeza sobre o<br />
piso de madeira encerada à exaustão. Tirou da cartola mágica um punha<strong>do</strong> generoso de fotos, onde<br />
pude ver toda a glória <strong>do</strong> belo rapaz que perdera a vida por minha causa.<br />
Por minha causa? De onde eu tirei isso?<br />
Com as fotos de Sepp nas mãos, emociona<strong>do</strong>, destrinchei sua vida simples, sem mais<br />
tropeços ou detalhes que pudessem chamar a atenção de qualquer pessoa comum e corrente.<br />
Percebi que Sepp sempre fora um garoto tími<strong>do</strong>, isola<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, onde seu mun<strong>do</strong> era<br />
composto por pilhas de livros e revistinhas em quadrinhos. Descobri que seus brinque<strong>do</strong>s de uma<br />
vida inteira se resumiam a um estilingue (presente <strong>do</strong> pai) ainda virgem, jamais usa<strong>do</strong> para atingir<br />
à distância uma latinha que fosse, e um jogo de <strong>do</strong>minó hiper gasto, onde as peças eram<br />
exaustivamente manipuladas por ele e sua irmã durante as longas ausências <strong>do</strong> pai buscan<strong>do</strong> o<br />
sustento da família em alto-mar.<br />
Eu via as fotos, tocava em seus pertences, invocava o filme de sua existência e por mais que<br />
me esforçasse, não via uma ligação de Sepp com Zeeg-eu-mesmo. Onde eu me encaixava na<br />
história? Onde nossas vidas traçavam um paralelo em comum?<br />
Silenciosa, apenas degustan<strong>do</strong> meus gestos ilógicos, Gloria sentia-se em agonia, desesperada<br />
para me dar a grande revelação guardada por tanto tempo dentro de si.<br />
Antes mesmo de pronunciar o veredito de tu<strong>do</strong>, descobri dentro da caixa duas fotos que<br />
destruíram meus alicerces por completo.<br />
A primeira imagem mostrava Sepp de corpo inteiro. A mesma foto de onde foi tira<strong>do</strong> o<br />
detalhe <strong>do</strong> rosto que emoldurava sua lápide no cemitériorrecantodasminhasandanças.<br />
Vinte e oito anos. Confirmei a idade ao ver a data rascunhada a lápis no verso. A foto fora<br />
tirada uma semana antes de Sepp partir.<br />
Mesmo hipnotiza<strong>do</strong> pelo seu olhar cansa<strong>do</strong>, meus olhos passearam por toda extensão <strong>do</strong> seu<br />
rosto. Um rosto triangular, branco, emoldura<strong>do</strong> por um par de olhos de um azul acinzenta<strong>do</strong> de<br />
matizes únicas. O nariz fino, lângui<strong>do</strong>, em parceria com uma boca que não pertencia a esse mun<strong>do</strong>,<br />
despertava em mim o desejo de um toque de línguas que jamais teriam a chance de se debater num<br />
prazer intenso entre machos que se amam por inteiro.<br />
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Se amam por inteiro? Eu estava apaixona<strong>do</strong> por um morto?<br />
Eu chorava. Eu tocava a foto com to<strong>do</strong> o carinho que ainda restara em algum canto<br />
escondi<strong>do</strong> da minha mórbida solidão. Eu corria os de<strong>do</strong>s pelos braços finos, repletos de pelos<br />
pratea<strong>do</strong>s que lhe davam um charme viril, to<strong>do</strong> especial, e meus de<strong>do</strong>s ainda tocaram aquelas<br />
pernas longas, onde coxas certamente repletas de mais e mais pelos pratea<strong>do</strong>s se escondiam por<br />
debaixo <strong>do</strong> jeans surra<strong>do</strong>, justo, amarfanha<strong>do</strong>, único.<br />
Ri <strong>do</strong> meu desejo insano em descobrir o que o volume no meio daquelas pernas poderia<br />
representar em minha boca, numa noite quente de prazeres rega<strong>do</strong>s a vinho. Muito vinho. Eu sabia<br />
que Sepp ia amar o Vinho.<br />
Por que desperdicei a chance de viver a felicidade ao la<strong>do</strong> daquele jovem tão puro? Tão<br />
idiota? Tão ingênuo?<br />
As respostas vieram na segunda e derradeira foto, onde pude ver nitidamente Sepp senta<strong>do</strong><br />
numa das famosas dunas da praia de Gobsun, o olhar perdi<strong>do</strong> ora no tapete esmeralda imaginário<br />
das nossas águas, ora num casal de machos que riam e se compraziam numa gostosa algazarra<br />
regada a abraços etílicos.<br />
“Eu tirei essa foto. Aliás, tirei todas as fotos onde meu irmão aparece. Ele odiava ser<br />
fotografa<strong>do</strong>. Eu a<strong>do</strong>rava registrar seus esta<strong>do</strong>s de espírito”, disse Gloria, num tom de voz tão<br />
sereno que me arrepiou toda a extensão da coluna, tremen<strong>do</strong> foi meu choque. “Mesmo no silêncio<br />
da sua introspecção, Sepp irradiava uma beleza, uma pureza nos gestos que nenhuma palavra seria<br />
capaz de descrever à perfeição. Somente a imagem, nesse caso, é eterna”, concluiu Gloria,<br />
tocan<strong>do</strong>, com evidente resistência, sobre minha mão direita, fria, distante.<br />
“Esse cara da foto é o meu cunha<strong>do</strong>... Marc”, respondi, engolin<strong>do</strong> lágrimas. “Duas, no<br />
máximo três vezes por ano ele e minha irmã, Cris, vêm me visitar aqui na ilha. Eles moram em<br />
Downie... engraça<strong>do</strong>, não é... tão perto e tão longe ao mesmo tempo!”, eu ri, comparan<strong>do</strong> a<br />
distância de Lovland com a cidade mais próxima no continente, separadas apenas por uma ponte<br />
de quatrocentos e <strong>do</strong>is metros de extensão.<br />
Expliquei a Gloria que eu era muito amigo <strong>do</strong> meu cunha<strong>do</strong>. E que quan<strong>do</strong> ele vinha me<br />
visitar, era normal sairmos para longas bebedeiras e nos divertíamos brincan<strong>do</strong> pelas areias de<br />
Gobsun, a mais bela praia de toda ilha.<br />
Expliquei também que eu amava meu cunha<strong>do</strong> com o mais puro amor fraternal que alguém<br />
pode ter pelo seu semelhante. Nunca me passara pela cabeça perder o respeito pelo casamento da<br />
minha a<strong>do</strong>rada irmã. Jamais insinuei nada em relação a Marc. Além <strong>do</strong> que, ele não era o tipo de<br />
homem que poderia me fazer feliz, eu disse a Gloria, tentan<strong>do</strong> rir <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> da situação e das<br />
17
minhas declarações de defesa sem o menor senti<strong>do</strong>.<br />
Eu não tinha que dar satisfações da minha vida para aquela estranha. Mas a <strong>do</strong>r de Sepp<br />
naquela imagem era tão palpável, tão real, que não pude deixar de perguntar, finalmente, o que<br />
poderia ter aconteci<strong>do</strong> conosco... ou melhor, onde eu me encaixava naquela pantomima insana que<br />
estraçalhava minha razão.<br />
Gloria guar<strong>do</strong>u as coisas de Sepp de volta na caixa-cartola mágica. Antes de fechá-la, ela<br />
separou <strong>do</strong> meio <strong>do</strong>s pertences um pedaço de papel rasga<strong>do</strong> <strong>do</strong> que um dia fora um saco de pão.<br />
Notei que havia uns rabiscos no interior <strong>do</strong> papel muito bem <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>. Senti, com intenso<br />
me<strong>do</strong>, que tu<strong>do</strong> o que eu queria saber (e deveria saber) estava escrevinha<strong>do</strong> naquele sagra<strong>do</strong><br />
pergaminho pobre-moderno.<br />
“Eu vou lhe contar parte da história”, disse Gloria, refestelan<strong>do</strong>-se num canto <strong>do</strong> enorme<br />
sofá puí<strong>do</strong>. “É uma curta e intensa história de amor...”, ela começou o relato, tentan<strong>do</strong> disfarçar as<br />
lágrimas que se formavam embaixo <strong>do</strong> seu olhar vítreo, onde o azul-cobalto dava lugar ao cinza<br />
tristonho, símbolo vivo das recordações que nunca chegariam ao fim.<br />
“Até os quinze, dezesseis anos, Sepp vivera num mun<strong>do</strong> próprio, longe de pessoas, animais<br />
ou situações que pudessem incomodar sua fome de conhecimento, sua luta para vivenciar as<br />
belezas e agruras de to<strong>do</strong>s os mun<strong>do</strong>s visita<strong>do</strong>s e esquadrinha<strong>do</strong>s através <strong>do</strong>s livros que mamãe<br />
havia deixa<strong>do</strong> para nós, antes de partir.<br />
“Eu compreendi essa necessidade <strong>do</strong> meu irmão desde o primeiro instante. Eu o defendia de<br />
papai a to<strong>do</strong> momento, porque eu sabia que Sepp jamais seria um pesca<strong>do</strong>r como era desejo <strong>do</strong><br />
meu pai. Sepp odiava barcos, odiava presenciar a morte <strong>do</strong>s peixes ou de qualquer ser vivo que<br />
pudesse verter sangue pelas veias.<br />
“É claro que para meu pai, ver o filho se alimentar apenas de frutas e legumes era uma total<br />
afronta aos seus princípios de prove<strong>do</strong>r <strong>do</strong> alimento em nosso lar. Meu pai não se conformava de<br />
dar duro o dia to<strong>do</strong> ziguezaguean<strong>do</strong> pelo mar bravio, trazer com imenso sacrifício poucos peixes<br />
para ganhar uns trocos, separar alguma coisa substanciosa para sustentar seus <strong>do</strong>is filhos e ter que<br />
fazer tu<strong>do</strong> isso sozinho, sem ajuda <strong>do</strong> seu único filho-macho que tinha obrigação de seguir seus<br />
passos.<br />
“O sr. Michael, que mal sabia escrever o próprio nome, não sentia um pingo de orgulho pelo<br />
filho que praticamente aprendeu a ler e a escrever sozinho, ainda em tenra idade, com o pouco<br />
auxílio <strong>do</strong>s padres e freiras que vinham visitar a vila <strong>do</strong>s pesca<strong>do</strong>res de tempos em tempos. Não<br />
tínhamos condições de levar o pequeno Sepp para estudar <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da ilha. Acredite, foram<br />
tempos muito difíceis.<br />
18
“Eu tive que me des<strong>do</strong>brar em irmã, empregada, mãe, e...”, Gloria engoliu a frase, desvian<strong>do</strong><br />
o olhar, envergonhada de si mesmo, ao relatar em mínimas palavras toda sua existência sofrida.<br />
Permanecemos por longo tempo sem emitir nenhum som, onde apenas nossa respiração ofegante<br />
denunciava nosso esta<strong>do</strong> de ansiedade. Gloria, enfim, continuou sua confissão:<br />
“Sim. Por três vezes precisei me deitar com meu pai. Ele nunca buscou mulheres fora de<br />
casa. Ele não conseguiria substituir minha mãe aqui dentro <strong>do</strong> nosso lar. Mas ele é homem. Sente<br />
as necessidades <strong>do</strong> homem. Eu fui obrigada a permitir que ele me usasse para satisfazer seus<br />
instintos.... mas... não quero mais falar sobre esse assunto. Continuemos...<br />
“Sepp nunca presenciou certos acontecimentos. Mas sei que ele captava a essência <strong>do</strong><br />
peca<strong>do</strong> no ar. Jamais tocamos em certas feridas.”<br />
Gloria levantou-se com dificuldade. Por instinto, levantei-me na dianteira e ajudei-lhe na<br />
busca da estabilidade ao menos <strong>do</strong> corpo. Gloria sorriu para mim e seu olhar novamente azul<br />
implorava para que eu voltasse ao sofá.<br />
Incomoda<strong>do</strong>, escolhi uma das poltronas, para variar o a<strong>do</strong>rno <strong>do</strong> meu desespero. Gloria<br />
encostou-se ao la<strong>do</strong> de uma das janelas e a luz projetada <strong>do</strong> meio da tarde cobriu seus longos<br />
cabelos loiros com as nuances mais lindas de amarelos e laranjas que ornavam com perfeição e<br />
cativante harmonia diante <strong>do</strong> seu rosto agora acobrea<strong>do</strong>, recenden<strong>do</strong> a vida.<br />
“Somente aos vinte <strong>do</strong>is, vinte e três anos, Sepp tomou coragem de sair da vila para conhecer<br />
o resto da ilha. Foi assim, de repente, que me peguei a guiar meu irmão pelo centro comercial de<br />
Lovland, onde ele, pela primeira vez, aprendeu a fazer compras sozinho, com o dinheiro que havia<br />
guarda<strong>do</strong> por anos e anos em latas vazias de Nescau... das moedinhas que meu pai tanto<br />
desprezava, e que fizeram a alegria daquele criançola que saía da livraria de <strong>do</strong>na Marta cheio de<br />
sacolas repletas de livros usa<strong>do</strong>s e antigas revistinhas infantis cheiran<strong>do</strong> mofo.”<br />
Eu me peguei a rir, pois conhecia muito bem Grande Marta, a proprietária da única livraria<br />
da ilha. De tempos em tempos, ela costumava promover um verdadeiro bota-fora de livros velhos e<br />
de revistas que ninguém mais queria ler. Tu<strong>do</strong> a menos de cinco lovs a dúzia!, ela gritava aos<br />
quatro ventos. Doces recordações.<br />
Meu Deus, quantas e quantas vezes eu não participava dessas maluquices da Marta? Quantas<br />
e quantas ocasiões eu não aproveitei para ampliar meu acervo? E por que cargas-d’água eu nunca<br />
tive uma única chance de cruzar com Sepp dentro da porra daquela livraria?<br />
“Sepp chamava a atenção por ser um menino bom, sempre atencioso, sempre solícito para<br />
com to<strong>do</strong>s”, disse Gloria, tiran<strong>do</strong>-me <strong>do</strong>s meus devaneios. “Por mais contraditório que isso possa<br />
parecer, já que Sepp era o típico bicho-<strong>do</strong>-mato, arredio com a civilização moderna, suas<br />
19
demonstrações de tolerância e carinho pelas pessoas que cruzavam seu caminho eram algo quase<br />
sobrenaturais. Enfim, era impossível não se apaixonar pelo carisma <strong>do</strong> meu irmão”, confidenciou-<br />
me Gloria, buscan<strong>do</strong> na gaveta de um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s-mu<strong>do</strong>s uma caixa de lenços de papel, com<br />
aparência <strong>do</strong> começo <strong>do</strong> século... passa<strong>do</strong>.<br />
Um rapaz lin<strong>do</strong>, um homem sensível, culto, inteligente, preocupa<strong>do</strong> com o bem-estar de<br />
to<strong>do</strong>s. Um menino perfeito, isento de maldades ou de to<strong>do</strong> e qualquer tipo de falsidade e hipocrisia<br />
para com seu próximo.<br />
Uma ave rara, que partiu de maneira tão esdrúxula, sem razão aparente de possuir alguma<br />
lógica. Mas havia muita coisa que eu ainda não sabia. Gloria leu meus pensamentos.<br />
“Sepp era puro de coração. Mas não era perfeito. De tempos em tempos, aflorava nele uma<br />
raiva difícil de ser <strong>do</strong>mada. Ela se manifestava desde seus quinze... minto... catorze anos. Sepp<br />
permanecia horas diante <strong>do</strong> espelho, ora observan<strong>do</strong> o corte <strong>do</strong> seu cabelo - feito por mim, claro -,<br />
ora irrita<strong>do</strong> com marcas que as espinhas da a<strong>do</strong>lescência deixavam em sua pele que anos depois se<br />
tornara perfeita.<br />
“Quan<strong>do</strong> se descobriu homem, quero dizer, descobriu que tinha um pau, por diversas vezes<br />
se escondia no mato para certamente diluir aos poucos o sofrimento da sua descoberta: Sepp<br />
a<strong>do</strong>rava se masturbar, mas sentia-se péssimo por fazer isso sozinho, por não compartilhar essa<br />
descoberta com alguém em especial.<br />
“Eu descobri que meu irmão era gay meio que por acaso. Graças ao Nosso Pai que eu nunca<br />
tive problemas com relação a isso, já que desde sempre eu encarei o amor de uma maneira muito<br />
livre, sem distinção de homem-mulher, sem relação à cor, ao cre<strong>do</strong>, ao escalonamento social,<br />
enfim, a absolutamente nada que pudesse mascarar aquilo que sentimos por alguém.”<br />
Gloria começou a rir. Uma risada contida, porém deliciosa. Uma lufada de descontração, de<br />
liberdade. As boas recordações <strong>do</strong> irmão se descobrin<strong>do</strong> como homem faziam Gloria rir das<br />
artimanhas criadas para esconder <strong>do</strong> pai a preferência sexual <strong>do</strong> filho. Eu senti isso no ar. Aquela<br />
mulher mágica, mais uma vez, lia meus pensamentos.<br />
“Meu irmão era fascina<strong>do</strong> por um jovem pesca<strong>do</strong>r ‘de fora’ que viveu por algum tempo aqui<br />
na vila. Fábio, Fabian, Fá-qualquer-coisa... não me recor<strong>do</strong> com exatidão. Ele era o típico galã<br />
italiano, cheio de predica<strong>do</strong>s mais <strong>do</strong> que satisfatórios para enlouquecer qualquer cristão. As<br />
meninas daqui se jogavam ao seus pés... literalmente. Mas o moço só tinha olhos para a amada que<br />
deixara em Downie. Era um raro homem fiel.<br />
“E meu irmão, coita<strong>do</strong>, só tinha olhos para o italianão. Era a única pessoa, fora eu e talvez<br />
meia dúzia de pesca<strong>do</strong>res locais, com que Sepp travava horas e horas de diálogo corrente. Sepp<br />
20
entrava em êxtase quan<strong>do</strong> o italiano vinha aqui em casa, na companhia <strong>do</strong> meu pai, tomar um trago<br />
e ficar para uma longa partida de <strong>do</strong>minó: uma mania-mertens!<br />
“Eu ficava de longe, admiran<strong>do</strong> esse amor platônico acumulan<strong>do</strong>-se dentro daquele pedaço<br />
de gente que eu tanto amava. Notei que Sepp sofreu um boca<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o rapaz partiu. Mas nunca<br />
comentou nada comigo. E com mais ninguém.”<br />
Ok. Tu<strong>do</strong> divino, tu<strong>do</strong> maravilhoso. Eu já nem tinha mais o que chorar. Sepp era lin<strong>do</strong>,<br />
perfeito, carinhoso, prestativo, culto, inteligente e GAY! Ótimo, mais fantástico <strong>do</strong> que isso,<br />
impossível. Mas... onde eu me encaixava nessa história?<br />
A porra da foto com Sepp observan<strong>do</strong> eu e meu cunha<strong>do</strong> cambalean<strong>do</strong> bêba<strong>do</strong>s por Gobsun,<br />
tirada por uma irmã devotada e misteriosa... essa imagem não saía da minha cabeça. De onde essa<br />
vaca – que me per<strong>do</strong>em as indianas – sabia quem eu era e que porra eu tinha a ver com aquele<br />
jovem morto estupidamente?<br />
Um sentimento de raiva de mim mesmo começou a aflorar dentro <strong>do</strong> meu coração que<br />
pulsava à 230 sem chance de diminuir o ritmo.<br />
Gloria notou meu desconforto. Levitan<strong>do</strong>, sumiu da minha fuça e reapareceu como que por<br />
encanto – mais uma vez – agora oferecen<strong>do</strong>-me um copo de suco de maçã (uma das frutas mais<br />
abundantes em Lovland) trincan<strong>do</strong> de gela<strong>do</strong>. Que delícia!<br />
“Você está se perguntan<strong>do</strong> o porquê de estar aqui, onde você se encaixa nessa história toda e,<br />
claro, saber por que meu irmão partiu, certo?”, disse Gloria, enquanto me servia uma segunda e<br />
generosa <strong>do</strong>se <strong>do</strong> suco com um leve toque <strong>do</strong> que julguei ser hortelã e gengibre.<br />
“Bingo!”, respondi, entristeci<strong>do</strong> e exausto, tentan<strong>do</strong> disfarçar meus temores, me delician<strong>do</strong><br />
com a bebida.<br />
“Você não notou nada peculiar aqui na sala?”, disse Gloria, com aquele sorriso monalístico<br />
gruda<strong>do</strong> na cara branca sem maquiagem.<br />
Ro<strong>do</strong>piei meu olhar à procura de algo mais que pudesse me chamar a atenção. Somente na<br />
terceira varredura me dei conta que uma das minhas garrafas de leite repletas de penduricalhos em<br />
seu interior jazia em lugar de destaque dentro de uma... cristaleira!<br />
Cocei os olhos com as costas das minhas mãos úmidas. Levantei-me com tremenda<br />
dificuldade. Cambalean<strong>do</strong>, segui em direção da minha antiga criação.<br />
Com a garrafa nas mãos pude recordar <strong>do</strong> exato instante em que eu havia cria<strong>do</strong> aquela obra.<br />
Foi um <strong>do</strong>s meus momentos mais felizes e criativos, confesso. No interior da garrafa havia uma<br />
farta camada de areia branca. Acima dessa camada havia <strong>do</strong>is cristais: um avermelha<strong>do</strong> e outro<br />
azula<strong>do</strong>. E ainda um crucifixo de ouro e uma moeda de 0,50 lov, edição 1979. E também algumas<br />
21
sementes que representavam a fartura para...<br />
“Para to<strong>do</strong> o sempre. Sim, meu irmão ganhou sua peça de um turista que tinha odia<strong>do</strong> o seu<br />
trabalho”, afirmou Gloria, rin<strong>do</strong> da minha cara de espanto.<br />
“Não entendi”, eu disse, sem mais nada inteligente para falar, voltan<strong>do</strong> a jogar meu corpo<br />
desorienta<strong>do</strong> no grande sofá.<br />
“Depois da libertação espontânea <strong>do</strong> meu irmão, sempre que meu pai estava em alto-mar, eu<br />
e Sepp passeávamos pelo centro da ilha. Numa bela tarde de <strong>do</strong>mingo, vimos um casal discutir<br />
sobre algo que a mulher segurava em uma das mãos. Ao nos aproximarmos, notamos que o mari<strong>do</strong><br />
estava alucina<strong>do</strong> pelo valor que a esposa havia pago por uma obra sua. Ele queria porque queria<br />
destroçar de qualquer maneira a sua... arte. Não sei como, mas Sepp intercedeu junto ao casal e em<br />
minutos to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> estava viven<strong>do</strong> na mais linda e perfeita harmonia...<br />
“Em troca – sinceramente por mais que eu me esforce eu não consigo me lembrar como ele<br />
conseguiu tal feito –, a mulher deu-lhe a garrafa de leite, agradecida por ter encontra<strong>do</strong> a paz junto<br />
ao seu ama<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> chegamos em casa, meu irmão passou horas a contemplar sua nova<br />
aquisição. Ele interpretou os elementos que haviam dentro da garrafa como símbolos <strong>do</strong> amor e <strong>do</strong><br />
respeito eterno entre iguais, já que os cristais tinham exatamente a mesma forma e textura,<br />
diferencian<strong>do</strong>-se apenas na cor, que, na concepção <strong>do</strong> meu irmão, representavam a diferença de<br />
personalidade <strong>do</strong> casal.<br />
“Os iguais se atraem”, dissemos em uníssono. Eu quase tive um treco no coração.<br />
“A paixão de Sepp pelo seu trabalho só aumentou a grande admiração que ele passou a<br />
cultivar por você. Desde então, tu<strong>do</strong> o que aparecia a seu respeito nos jornais da ilha, ou numa<br />
revista badalada qualquer e, mais recentemente, na Internet, fizeram com que meu irmão<br />
desenvolvesse uma obsessão por você. Quase que uma devoção cega, apavorante!”<br />
Gloria notou que eu estava a ponto de explodir a qualquer momento. Eu não encontrava um<br />
bálsamo que pudesse aliviar a culpa que se acumulava dentro de mim. Mesmo saben<strong>do</strong> que eu<br />
nada tinha a ver com aquele culto ao meu trabalho e à minha pessoa, eu me sentia péssimo por ter<br />
esta<strong>do</strong> tão próximo de Sepp e ao mesmo tempo tão distante, separa<strong>do</strong>s por mun<strong>do</strong>s tão diferentes.<br />
Wim Wenders pairava sobre minha cabeça.<br />
“Ele interpretou com exatidão aquilo que eu quis transmitir nessa obra”, eu disse, lava<strong>do</strong> em<br />
lágrimas. “A areia representa a fina camada que sustenta uma relação, onde só conseguimos nos<br />
equilibrar e não afundar se nos apoiarmos no respeito mútuo e no equilíbrio máximo de nossas<br />
ações em conjunto. Os cristais representam o casal ideal, talvez almas companheiras que se<br />
harmonizam em tu<strong>do</strong>, embora vibran<strong>do</strong> em cores e personalidades diferentes, que se<br />
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complementam entre si. Já o crucifixo simboliza o casamento, tal qual é prega<strong>do</strong> pela Igreja Nossa<br />
Mãe. A única coisa <strong>do</strong> catolicismo que eu ainda admiro é o ritual sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> casamento. Pena que<br />
ele é erroneamente direciona<strong>do</strong> a um tipo de amor amplamente utópico, mas, no fun<strong>do</strong>... são<br />
palavras que ilustram muito bem aquilo que to<strong>do</strong>s nós sonhamos em dividir com nosso parceiro de<br />
passagem.<br />
“As sementes e o dinheiro representam a fartura, o bem-estar conquista<strong>do</strong>s com muito<br />
trabalho, muito companheirismo e muita paciência... enfim, essa coisa ridícula que eu criei e que<br />
ven<strong>do</strong> como água em pó até hoje... pelo menos simbolizou algo sincero que eu sempre busquei...”<br />
“E Sepp também!”, disse Gloria, muito emotiva.<br />
Ela ro<strong>do</strong>piou a carta escrita no papel de pão por entre os de<strong>do</strong>s. Temerosa, enfim Gloria<br />
quebrou sua resistência em me ceder o manuscrito. Eu não tive coragem de abri-lo.<br />
“Sepp encasquetou que queria conhecê-lo de qualquer jeito. Ele chegou a ir diversas vezes<br />
até bem próximo da sua casa-ateliê, mas nunca teve coragem de avançar o sinal, de...”<br />
Eu perdi a paciência. Levantei <strong>do</strong> sofá num pulo. Rodei de um la<strong>do</strong> para outro in<strong>do</strong> aos<br />
extremos da sala, tentan<strong>do</strong> encontrar respostas mais <strong>do</strong> que respondidas, mas não aceitas, por mim-<br />
eu-mesmo.<br />
“Um dia, durante a sua última exposição aqui na ilha, fomos apreciar suas novas criações.<br />
Foi com muito custo que consegui convencer Sepp a lhe abordar de uma vez por todas. Eu<br />
acreditava que essa exposição seria o lugar ideal para um encontro social. Mas algo não saiu como<br />
prevíamos”, revelou Gloria, rin<strong>do</strong> para disfarçar o desconforto.<br />
“Sim, é verdade. Eu não fui à minha própria exposição. Problemas de agenda. Deixei tu<strong>do</strong> na<br />
última hora nas costas da minha irmã, uma espécie de marchand-chic perfeita para aquela ocasião.<br />
Na época, mesmo com a exposição marcada há tempos aqui na ilha, eu havia recebi<strong>do</strong> um convite-<br />
relâmpago para promover algumas palestras em Berlim e eu não podia recusar tamanha honraria”,<br />
tentei me justificar.<br />
“Ficamos a par de to<strong>do</strong>s os detalhes. Conversamos muito com sua simpática irmã, que se<br />
des<strong>do</strong>brou em gentilezas para justificar a ausência da estrela maior. Mas gostamos muito <strong>do</strong> que<br />
vimos. Mesmo não acreditan<strong>do</strong> nisso, você realmente tem um talento ímpar, talvez não muito<br />
compreendi<strong>do</strong> por nossas bandas, mas certamente mais <strong>do</strong> que aclama<strong>do</strong> em diversas partes <strong>do</strong><br />
planeta”, elogiou Gloria, e senti sinceridade nas palavras.<br />
“Obriga<strong>do</strong>. Muito obriga<strong>do</strong> pelo carinho”, respondi, mecanicamente.<br />
23<br />
* * *
Era chega<strong>do</strong> o momento mais difícil. Eu tinha que ler a porra da carta escrita pelo morto.<br />
Gloria respeitou meu momento, deixan<strong>do</strong>-me a sós com o pedaço de papel acastanha<strong>do</strong>. Dentro de<br />
minutos já seria noite densa. Ignorei o tempo, caminhei pela sala agora claustrofóbica, me afundei<br />
na segunda poltrona, limpei meus olhos ardentes, tomei coragem em eliminar as <strong>do</strong>braduras<br />
cuida<strong>do</strong>sas <strong>do</strong> papel. Em instantes, uma declaração de amor ganhava vida na minha leitura<br />
pausada, lenta, quase travada por causa da emoção e da total surpresa de uma revelação<br />
inesperada:<br />
“Zeeg, é engraça<strong>do</strong> como escondi<strong>do</strong>s atrás de uma folha de papel ou, sen<strong>do</strong><br />
mais moderno, atrás de uma tela mágica descobrimos a coragem de expor muito<br />
daquilo que sentimos por um outro alguém. E o que sinto por você, acredite, é algo<br />
mais <strong>do</strong> que profun<strong>do</strong>, mais <strong>do</strong> que intenso, mais <strong>do</strong> que sincero, correto, honesto e...<br />
eterno.<br />
Sim, Zeeg, eu te amo. Aprendi a amar você assim, através da sua arte, através<br />
daquilo que você deixa mais <strong>do</strong> que explícito dentro das suas garrafinhas de leite da<br />
vovó... que eu nunca tive!<br />
Eu sou um Zé Ruela (li essa expressão numa de suas inúmeras entrevistas), um<br />
ninguém oculto numa ilha estranha. Mas sou um cara que soube se guardar para o<br />
homem certo. Que soube se preservar para um dia desfrutar com to<strong>do</strong>s os direitos as<br />
belezas e as maravilhas intrínsecas ao Amor.<br />
Hoje, aos vinte e oito, acho que estou maduro o suficiente para revelar ao<br />
mun<strong>do</strong>, ou pelo menos ao homem que mais amo nesse mun<strong>do</strong>, aquilo que sou, aquilo<br />
que penso, aquilo que guar<strong>do</strong> de mais precioso dentro de mim.<br />
Foi realmente um parto sucumbir a coragem de escrever essas linhas nesse saco<br />
que é usa<strong>do</strong> para guardar o pão da vida. O pão da vida, engraça<strong>do</strong> essa visão das<br />
coisas, você não acha?<br />
Eu tenho uma obra sua. E para mim, ela representa a união perfeita entre... nós!<br />
Sim, Zeeg, você fez essa obra pensan<strong>do</strong>, gritan<strong>do</strong>, imploran<strong>do</strong> para que alguém<br />
descobrisse o segre<strong>do</strong> entre as camadas de penduricalhos dispostas com simetria<br />
perfeita dentro da velha garrafa de leite.<br />
Fui o Escolhi<strong>do</strong>, porque somente eu consegui decifrar os seus enigmas, meu<br />
ama<strong>do</strong> Zeeg. Eu decifrei o poder <strong>do</strong>s cristais (sou eu e você); eu juntei as peças da<br />
24
fartura e <strong>do</strong> símbolo sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> matrimônio. Eu até guardei troca<strong>do</strong>s para um dia<br />
comprar as nossas alianças de casamento!<br />
Sim, Zeeg, eu quero me casar com você. Quero ter a minha primeira noite com<br />
você. Quero ser o seu homem e sua mulher e seu complemento perfeito na cama e,<br />
principalmente, fora dela.<br />
Quero trilhar os mesmos caminhos que você trilhar. Não por submissão aos seus<br />
princípios, mas sim por desejar ardentemente caminhar ao seu la<strong>do</strong>. Aprender tu<strong>do</strong><br />
com você e ser útil na evolução da nossa existência em comum.<br />
Eu tomei a coragem de escrever aquilo que sinto há anos (ou seriam décadas,<br />
séculos?) por você. Dentro de poucas horas, interpelan<strong>do</strong> sem me<strong>do</strong> você durante a<br />
sua corrida noturna em Gobsun, finalmente darei o passo mais decisivo da minha<br />
vida, len<strong>do</strong> em alto e bom som aquilo que apenas rascunhei nesse pedaço de papel<br />
cheiran<strong>do</strong> a trigo e suor.<br />
Sim, apenas rascunhei, porque o resulta<strong>do</strong> final da minha melhor obra será<br />
mostra<strong>do</strong> e sela<strong>do</strong> e partilha<strong>do</strong> com meu homem, hoje à noite, nesse 18 de junho de<br />
2007, durante uma longa e intensa luta de nossas espadas flamejantes digladian<strong>do</strong>-se<br />
no espaço infinito das nossas bocas sufocadas no Amor.<br />
Teu, hoje e para sempre...<br />
Sepp Mertens... Moritz”<br />
Não sei por quanto tempo permaneci com a cabeça enfiada no meio das minhas pernas,<br />
protegida com minhas mãos seladas por cima de tu<strong>do</strong>. Por mais que tentasse, eu não conseguia<br />
imaginar o que eu fazia na noite <strong>do</strong> dia 18 de junho <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>. Uma vontade crônica de<br />
vomitar crescia dentro de mim, mas nada me fazia mudar um milímetro sequer da minha posição<br />
indefesa, esconden<strong>do</strong> minha cabeça bem fun<strong>do</strong> no meio das minhas pernas trêmulas.<br />
Eu me sentia culpa<strong>do</strong> por não ter da<strong>do</strong> chances de Sepp se aproximar de mim. Caralho, o que<br />
eu poderia ter feito? Por que ele não me procurou naquela maldita-bendita noite fria de junho? O<br />
que eu estava fazen<strong>do</strong> na porra daquela noite? Onde eu estava? A foto, a foto... a porra da foto...<br />
Com quem eu estava? Marc, Marc, Marc... O que aconteceu para que Sepp não me entregasse a<br />
porra da carta e não declarasse enfim o seu amor por mim?<br />
A foto... seu burro... Marc... seu asno... Bêba<strong>do</strong>s... seu toupeira... Noite, 18 de junho... 18 de<br />
junho... dezoit... oh, meu Deus! É isso!<br />
25
* * *<br />
Marc descansava em casa. Chumba<strong>do</strong> feito um gambá que queria ser zebra. Meu cunha<strong>do</strong><br />
estava radiante naquela noite, pois comemorávamos o nascimento <strong>do</strong> seu primeiro filho, por<br />
consequência, meu mais <strong>do</strong> que espera<strong>do</strong> e a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> e ama<strong>do</strong> sobrinho!<br />
Minha irmã deu à luz no começo da tarde <strong>do</strong> dia 18. Marc apareceu por volta das sete da<br />
noite em minha casa, para me contar pessoalmente <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> Pitico. A mãe dele ficara<br />
cuidan<strong>do</strong> da minha irmã. Felizes, entornamos algumas latas de cerveja ainda em casa.<br />
Lá pelas nove, saímos para caminhar um pouco pela praia. Cantávamos e ríamos e nos<br />
abraçávamos estupefatos com a benção <strong>do</strong> nascimento de Otávio. Lembro-me de ter liga<strong>do</strong> para<br />
minha irmã, dizen<strong>do</strong>-lhe que Marc <strong>do</strong>rmiria em casa, pois ele não tinha a mínima condição de<br />
dirigir naquele esta<strong>do</strong> etílico. Mesmo bêba<strong>do</strong>, eu era responsável. E to<strong>do</strong>s nós estávamos felizes!<br />
Eu? Responsável?<br />
Eu? Feliz?<br />
Como eu disse, o grau de intimidade e de amizade que eu e meu cunha<strong>do</strong> atingimos era algo<br />
mais <strong>do</strong> que bonito, mais <strong>do</strong> que fantástico de se viver. Éramos amigos, quase que irmãos de<br />
sangue que realmente se a<strong>do</strong>ram.<br />
Eu amo a Cris. Mas Marc era o irmão que eu nunca tive.<br />
Na verdade, acho que Marc sempre gostou mais de mim <strong>do</strong> que <strong>do</strong>s próprios irmãos. Por<br />
mais que agentes malva<strong>do</strong>s e retarda<strong>do</strong>s e invejosos das nossas famílias tentassem insinuar que<br />
entre nós havia algo a mais (leia-se: “cama”), enfiávamos o de<strong>do</strong> em riste perante esses cretinos e<br />
não estávamos nem aí com as maledicências <strong>do</strong>s mal-ama<strong>do</strong>s.<br />
Toda felicidade real trás grudada no rabo os parasitas da Inveja.<br />
Naquela noite, por motivos óbvios, eu não havia segui<strong>do</strong> minha rotina noturna de corridas e<br />
caminhadas aceleradas pela praia. Eu e Marc estávamos tão bêba<strong>do</strong>s e tão felizes, que dentro da<br />
nossa sandice o que valia era beber ainda mais e, se possível, amanhecer cobertos de areia da<br />
cabeça aos pés... lin<strong>do</strong>s, morenos e felizes!<br />
* * *<br />
Gloria acariciava meus ralos cabelos ensopa<strong>do</strong>s de suor. Aceitei seus carinhos e deixei que<br />
ela mesma elucidasse o desenrolar <strong>do</strong>s acontecimentos.<br />
26
“Sepp estava tão nervoso com o derradeiro encontro que pediu quase de joelhos para que eu<br />
o acompanhasse nessa empreitada. Meu pai já <strong>do</strong>rmia num sono solto, chapa<strong>do</strong> na pinga, como<br />
sempre. Deixamos toda casa em ordem e partimos para o grande momento.<br />
“Ao chegarmos em Gobsun, Sepp permaneceu senta<strong>do</strong> por um longo tempo na mesma duna<br />
que ele costumava ficar para apreciar sua passagem a uma distância secreta e segura. O tempo foi<br />
passan<strong>do</strong> e cheguei a pensar que justamente naquela noite você não iria aparecer, talvez por causa<br />
de um imprevisto de trabalho, talvez por causa de algo que poderia ter aconteci<strong>do</strong> na sua família...<br />
“Enquanto Sepp, suan<strong>do</strong> em bicas apesar da noite fria, ora ficava em pé, ora se esparramava<br />
na relva que cobria as areias, toman<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> para não amassar o pedaço mais sagra<strong>do</strong> da<br />
sua declaração de amor, eu brincava com os ajustes da minha nova câmera digital de terceira<br />
categoria, feliz da vida por ter conquista<strong>do</strong> o direito desse presente da<strong>do</strong> por mim mesma, onde eu<br />
juntara por nem sei quanto tempo o dinheiro necessário através <strong>do</strong> meu trabalho na vila <strong>do</strong>s<br />
pesca<strong>do</strong>res, limpan<strong>do</strong> toneladas de peixe por anos sem fim.<br />
“Estávamos desistin<strong>do</strong> da empreitada, quan<strong>do</strong> vimos <strong>do</strong>is homens atarraca<strong>do</strong>s caminhan<strong>do</strong>,<br />
ou melhor, cambalean<strong>do</strong> em nossa direção. Sepp, atento, se posicionou em combate, pois percebeu<br />
que algo estava erra<strong>do</strong> ao ver aquela cena dantesca. Ele notou primeiro <strong>do</strong> que eu que você estava<br />
junto, agarra<strong>do</strong>, solda<strong>do</strong> a outro homem.<br />
“Eu não queria que meu irmão sofresse e tentei de tu<strong>do</strong> para removê-lo daquele local, sem<br />
sucesso. Foi incrível quan<strong>do</strong> você e o estranho pararam bem na frente dele e trocaram um beijo<br />
mais <strong>do</strong> que...”<br />
Eu interrompi as palavras Gloria, pois a recordação daquele exato instante me fez correr para<br />
fora da sala e vomitar toda minha insanidade em algum lugar <strong>do</strong> bem cuida<strong>do</strong> jardim.<br />
Quan<strong>do</strong> voltei ao normal (se é que se consegue voltar ao normal numa situação dessas),<br />
Gloria tentava me tranquilizar enfian<strong>do</strong>-me goela abaixo <strong>do</strong>ses cavalares de suco de maçã.<br />
Agradeci embaraça<strong>do</strong> toda ajuda. Inspirei o ar da noite. Eu estava preocupa<strong>do</strong> com a chegada <strong>do</strong><br />
sr. Mertens a qualquer instante.<br />
“Pode ficar tranquilo, Zeeg. Hoje é dia de pagamento <strong>do</strong>s pesca<strong>do</strong>res. Meu pai não chegará<br />
tão ce<strong>do</strong> e tão lúci<strong>do</strong> em casa”, disse Gloria, amainan<strong>do</strong> meu espírito esgota<strong>do</strong>.<br />
“Lembro-me vagamente <strong>do</strong> rosto <strong>do</strong> teu irmão naquele fatídico 18”, eu disse com<br />
dificuldade, tentan<strong>do</strong> manter a lucidez, soluçan<strong>do</strong> sem parar. “Eu me recor<strong>do</strong> agora, com clareza,<br />
<strong>do</strong> instante em que Marc disse que estava feliz e me lascou um beijo na boca, bem diante de um<br />
estranho. Eu acho que disse o mesmo ao teu irmão e devolvi outro beijo na boca <strong>do</strong> meu<br />
cunha<strong>do</strong>... coisa de bêba<strong>do</strong> feliz... meu Deus, não era nada demais!”, cambaleei o resto da frase,<br />
27
sem forças para continuar a dizer mais nada.<br />
“Mas, Zeeg, tente compreender. Sepp estava ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong> de paixão. Ver você agarra<strong>do</strong> com<br />
um homem lin<strong>do</strong> daqueles, trocan<strong>do</strong> beijos intensos, dizen<strong>do</strong> para o mun<strong>do</strong> o quanto vocês<br />
estavam felizes... o que você acha que aconteceu com a cabeça <strong>do</strong> meu irmão?”<br />
Gostei <strong>do</strong> “um homem lin<strong>do</strong> daqueles”. Marc era realmente um belo exemplar de macho.<br />
Moreno, vai<strong>do</strong>so, cabelos negros e lisos na altura <strong>do</strong>s ombros, rosto quadra<strong>do</strong> com aquela marca<br />
de barba cerrada que deixa o sujeito com cara de safa<strong>do</strong>. Marc tinha baixa estatura, mas o corpo<br />
to<strong>do</strong> proporcional era molda<strong>do</strong> nas melhores academias de Downie. Ele era <strong>do</strong>no de um par de<br />
coxas grossas e lisas e de olhos castanhos quase negros, vívi<strong>do</strong>s, que reviravam a cabeça de<br />
qualquer fêmea, em conjunto com uma boca de lábios vermelhos e salientes na medida exata para<br />
o deleite de um beijo inesquecível!<br />
(O beijo, novamente... desculpe, eu tenho que rir um pouco!)<br />
Cris cortava um <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong> assédio constante que meu cunha<strong>do</strong> sofria de tu<strong>do</strong><br />
quanto era mulher que cruzasse o caminho <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is. Sorte que Marc sempre fora completamente<br />
apaixona<strong>do</strong>, totalmente devota<strong>do</strong> à minha irmã. Ele só tinha olhos para ela.<br />
E quanto ao nosso beijo – quan<strong>do</strong> estávamos naquele esta<strong>do</strong> –, era natural que nos<br />
beijássemos em público. Aliás, beijo na boca era uma tradição <strong>do</strong>s Moritz. Eu beijava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
na boca: minha irmã, minha avó, meu avô, meu cunha<strong>do</strong>, a Monika, alguns <strong>do</strong>s meus clientes... e<br />
até mesmo o Tobie, o sem raça fofo da minha vizinha.<br />
Até concor<strong>do</strong> que naquele dia mais <strong>do</strong> que especial, abusamos um pouco, extravasan<strong>do</strong><br />
nossas emoções no limite <strong>do</strong> socialmente aceitável. Mas não fizemos nada por maldade. Não<br />
fizemos nada para chocar ninguém. Apenas foi a manifestação errada, na hora errada, diante da<br />
pessoa errada!<br />
“Mas vocês não conheceram meu cunha<strong>do</strong> durante a porra da exposição aqui na ilha?”, eu<br />
tentei de todas as maneiras justificar o injustificável.<br />
Gloria nem precisou responder. Lembrei-me que Marc estava viajan<strong>do</strong> à trabalho no dia da<br />
estreia da minha exposição. Cris ficou louca de raiva por ter que <strong>do</strong>rmir sozinha em minha casa<br />
naquela noite. Ela não suportava ficar muito tempo longe <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Ela não suportava ficar sem a<br />
presença <strong>do</strong> irmão na antiga casa <strong>do</strong>s nossos pais.<br />
“Por favor, qual foi a causa real da morte <strong>do</strong> meu Sepp?”, perguntei com autoridade,<br />
amassan<strong>do</strong> junto ao peito a minha declaração de amor.<br />
“Foi afogamento. Acidental.”, disse Gloria, seca, distante.<br />
Com muita dificuldade, ela me contou que depois que Sepp pôs na cabeça que Marc era meu<br />
28
mari<strong>do</strong>, ele jogou o envelope com a declaração na areia e disse para Gloria que precisava de um<br />
tempo sozinho.<br />
A irmã, mesmo preocupada, tentou não dar muita importância para a decepção amorosa<br />
sofrida por Sepp, pegan<strong>do</strong> a bicicleta que trouxera ambos até ali e voltan<strong>do</strong> contrariada para casa.<br />
Gloria acreditou que seria importante Sepp aprender sobre as frustrações de um amor não<br />
correspondi<strong>do</strong>. Deixou o irmão curtir sua primeira desilusão. Mas se arrependeu amargamente por<br />
não permanecer junto dele numa hora tão difícil. Gloria começou a chorar sem controle.<br />
Eu me sentia cada vez mais péssimo, arrasa<strong>do</strong>. Como eu poderia ter desperdiça<strong>do</strong> a grande<br />
chance <strong>do</strong> Amor na minha vida? Mas, ao mesmo tempo, como eu poderia saber que Sepp era o<br />
Escolhi<strong>do</strong>, o Prometi<strong>do</strong>, o Príncipe Encanta<strong>do</strong>?<br />
Gloria e eu tentávamos nos consolar, ignoran<strong>do</strong> nossa incompetência em saber administrar<br />
os limites <strong>do</strong> nosso ama<strong>do</strong> Sepp.<br />
Um rapaz simples que apenas acreditava num conto de fadas e que, por puro descui<strong>do</strong> e falta<br />
de maturidade, não soube controlar seus instintos, entregan<strong>do</strong>-se ao deleite <strong>do</strong> primeiro porre sem<br />
um mínimo de responsabilidade.<br />
Depois <strong>do</strong> que aconteceu naquele 18 de junho, Sepp tomou sua primeira cerveja aos 28 anos<br />
de idade! Para um descendente de alemães, isso era quase um sacrilégio!<br />
Da primeira lata seguiram-se outras latas. Segun<strong>do</strong> os lau<strong>do</strong>s, foram encontradas <strong>do</strong>ze latas<br />
não tão distantes <strong>do</strong> corpo, mas não podia se afirmar que todas foram consumidas por Sepp.<br />
Meu mari<strong>do</strong> morreu <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, à luz da grande lua, encosta<strong>do</strong> na sua duna de observação <strong>do</strong><br />
ama<strong>do</strong> sem amor, vítima de afogamento, pois a maré subiu o suficiente para cobrir seu corpo<br />
porrea<strong>do</strong>, impedin<strong>do</strong>-lhe de qualquer reação consciente, já que seus senti<strong>do</strong>s estavam trava<strong>do</strong>s por<br />
causa <strong>do</strong> excesso irresponsável.<br />
Sepp foi encontra<strong>do</strong> ainda naquela madrugada por um grupo de pesca<strong>do</strong>res, que prontamente<br />
chamou a polícia local.<br />
Foi realmente constata<strong>do</strong> que a morte fora acidental. Não havia marcas de violência ou<br />
qualquer indício de algo fora <strong>do</strong> comum, a não ser a grande presença de álcool no corpo. Os<br />
exames finais indicaram que Sepp havia morri<strong>do</strong> entre dez e onze e meia da noite de 18 de junho<br />
de 2007.<br />
Sepp desencarnou pela simples falta de diálogo.<br />
29<br />
* * *
Deixar a casa <strong>do</strong> Mertens naquela noite foi um suplício. Chegar na minha casa intacto<br />
(intacto?) foi quase um milagre.<br />
Gloria foi muito compreensiva comigo, tentan<strong>do</strong> de todas as formas não me deixar sentir<br />
culpa<strong>do</strong> pela morte <strong>do</strong> irmão. Ambos carregaríamos por toda nossa existência aqui nesse plano o<br />
far<strong>do</strong> da culpa ou da falta de atenção ou <strong>do</strong> conjunto de situações egoístas que culminou com a<br />
morte prematura de Sepp.<br />
Gloria me disse – talvez para me consolar – que não teve coragem de me procurar logo em<br />
seguida à tragédia, pois além de estar muito abalada, não achava justo me envolver em algo que na<br />
verdade eu não tinha a mínima culpa. Ela, então, simplesmente me apagou de sua mente,<br />
ignoran<strong>do</strong> por completo a minha existência real.<br />
* * *<br />
Deita<strong>do</strong> no chão da minha sala azul, entornan<strong>do</strong> a quinta lata de Stella Artois, eu brincava<br />
com as duas fotos entre os de<strong>do</strong>s da mão esquerda, enquanto nos intervalos de um gole e outro, eu<br />
acariciava minha declaração de um amor impossível.<br />
Era meio que consola<strong>do</strong>r ver Sepp feliz na primeira imagem. Ao mesmo tempo era<br />
devasta<strong>do</strong>r ver Sepp desola<strong>do</strong> ao ver seu ama<strong>do</strong> atarraca<strong>do</strong> com outro homem. Gloria havia nos<br />
fotografa<strong>do</strong> segun<strong>do</strong>s antes de Sepp se tocar que eu era eu mesmo... gruda<strong>do</strong> com Marc!<br />
Sepp nunca iria ver aquela imagem agora estampada num pedaço de papel brilhante. Mas de<br />
que adianta pensar assim, se a cena mais atrapalhada da minha vida ficou gravada para sempre na<br />
retina <strong>do</strong> meu menino-homem?<br />
Meu consolo, por ironia das ironias, descia re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, loiro e macio pela minha garganta seca.<br />
Um desejo demente de querer sentir, nem que fosse uma única vez, o beijo quente, o beijo<br />
virgem, o beijo imacula<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu idiota irresponsável.<br />
Mas quem, na verdade, não é um idiota irresponsável?<br />
Uma vontade sufocante de trocar ao menos um abraço, ao menos um instante de carinho,<br />
com aquele que me amou como jamais eu seria ama<strong>do</strong> nessa existência.<br />
Não sou um homem deveras religioso e só me lembro que existe um Deus nas horas de<br />
aperto emocional.<br />
Humilha<strong>do</strong>, sem ter coragem de olhar para nada que não fosse o meu próprio umbigo, gritei<br />
ao Altíssimo palavras de desespero de uma alma que desejava ardentemente mais uma chance de<br />
reparar um grave erro.<br />
30
Eu pensava na encarnação passada. O que eu teria feito lá atrás para me afastar de Sepp?<br />
Será que teríamos alguma chance de, um dia, vivermos juntos a beleza desse nosso amor?<br />
* * *<br />
Sim, eu estava completamente apaixona<strong>do</strong>. Revivi na mente e no coração os instantes em<br />
que passei diante <strong>do</strong> túmulo de Sepp, onde o brilho intenso <strong>do</strong> granito chamara minha atenção de<br />
um jeito tão... mas... pérai... que merda é essa?<br />
Por que eu voltei justamente para ver o túmulo de Sepp? Por que aquele homem me disse<br />
que “sabia o quanto ele fora importante para mim”? Por que eu decidira procurar a família de um<br />
morto que até então nada tinha a ver comigo? Por que Gloria sabia de toda a história e não tivera<br />
coragem de me procurar antes? Que responsabilidade eu tinha perante um rapaz ingênuo e bobo e<br />
<strong>do</strong>i<strong>do</strong> e lin<strong>do</strong> no qual eu nem sabia de sua existência?<br />
Dormi abala<strong>do</strong> sem saber as respostas certas... ou quase isso.<br />
* * *<br />
Acordei na manhã seguinte com os lati<strong>do</strong>s me<strong>do</strong>nhos <strong>do</strong> cachorro da vizinha. Algum<br />
estranho deveria ter invadi<strong>do</strong> meu quintal. Tobie sempre latia e corria de um la<strong>do</strong> para o outro atrás<br />
da cerca de madeira, completamente amaluca<strong>do</strong> diante de gente que ele não conhecia que pudesse<br />
invadir nossos <strong>do</strong>mínios.<br />
Irrita<strong>do</strong>, levantei disposto a dar uma sapatada de leve no cão histérico, caso ele não parasse<br />
de latir sem mais, nem porquê.<br />
Abri a porta, ninguém à vista. Agora Tobie saltitava pra lá e pra cá na esperança de ganhar<br />
alguma guloseima <strong>do</strong> seu <strong>do</strong>no-torto.<br />
Deixei a porta entreaberta e fui até a cozinha buscar um pedaço de pão amanheci<strong>do</strong> para<br />
jogar <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da cerca e alegrar a manhã <strong>do</strong> cãozinho barulhento. Eu tenho um bom coração.<br />
Meus atos engordam o cachorro da vizinha.<br />
Ao chegar na sala, onde migalhas de pão salpicavam o assoalho pelo caminho, quase parti<br />
dessa para melhor ao ver uma garrafa de leite da vovó escoran<strong>do</strong> a porta que rangia de leve, ao<br />
sabor da brisa daquele sába<strong>do</strong> mormacento.<br />
Se aquela foi uma brincadeira sem graça de Gloria, eu não havia acha<strong>do</strong> a menor graça!<br />
Rebusquei meus conhecimentos filosóficos e me apeguei às minhas <strong>do</strong>utrinas ferrenhamente.<br />
31
Eu não ia permitir que uma cretinice daquelas deturpasse por completo minha mente ainda abalada<br />
por causa <strong>do</strong>s últimos acontecimentos.<br />
Apanhei minha garrafa como se apanha um filho que implora carinho através <strong>do</strong> seu choro<br />
fora de controle. Embalei minha única arte entre meus braços e procurei o conforto <strong>do</strong> meu sofá<br />
aconchegante.<br />
Estavam to<strong>do</strong>s lá: os cristais vermelho e azul, o crucifixo, a areia, as sementes, a moeda... até<br />
o adesivo com to<strong>do</strong>s os meus da<strong>do</strong>s profissionais permanecia intacto no fun<strong>do</strong> da garrafa.<br />
Eu comecei a chorar. Chorar e desaguar toda minha <strong>do</strong>r. Como um bebê a implorar um<br />
segun<strong>do</strong> de carinho, talvez eu precisasse saciar a minha fome de respostas lógicas, concretas.<br />
* * *<br />
Ele abriu a porta com muito cuida<strong>do</strong>. Pediu licença. Nem me espantei com sua presença<br />
imponente. Ele retirou o chapéu de abas largas. Algo Indiana Jones. Retirou também o pesa<strong>do</strong><br />
paletó cor de chumbo. Agacha<strong>do</strong>, depositou ambos por sobre o tapete da sala, sem lógica, sem<br />
cerimônia.<br />
De joelhos, ele sorriu para mim e buscou a minha mão fria e trêmula. Algo de reconfortante<br />
emanava de seus gestos comedi<strong>do</strong>s. Eu me senti seguro com sua presença.<br />
Eu chorava. Ele não aplacava meu choro. Mas permitia que eu colocasse toda minha emoção<br />
e angústia para fora.<br />
Ele retirou com extrema delicadeza a minha garrafa, o meu filho, a minha criação de minhas<br />
mãos chacoalhantes. Ele beijou em seguida as pontas <strong>do</strong>s meus de<strong>do</strong>s. Eu me senti abençoa<strong>do</strong>.<br />
“Vamos chamar Sepp”, ele disse. E eu não acreditava que isso era possível.<br />
Seria aquele gostosão um pai-de-santo picareta? Um mesa-branca-omo-dupla-ação?<br />
“Vocês precisam acertar algumas coisas. Cada um tem que seguir seu destino e cumprir com<br />
suas obrigações nessa e na outra vida!”, afirmou o Homem <strong>do</strong> Cemitério.<br />
Eu não compreendia mais nada, mas confiava cegamente naquele envia<strong>do</strong> de Deus.<br />
Ele só podia ser um Envia<strong>do</strong> de Deus... para aplacar to<strong>do</strong> meu sofrimento.<br />
O Homem <strong>do</strong> Cemitério levantou-se e dirigiu-se até a cozinha. Trouxe uma jarra de vidro<br />
transparente quase que toda cheia de água. Onde ele tinha acha<strong>do</strong> aquela jarra... eu não sabia.<br />
Trouxe também <strong>do</strong>is copos de vidro, vagabun<strong>do</strong>s, desses de embalagem de requeijão. Notei<br />
que tu<strong>do</strong> fora posto no meio da sala, diretamente no chão, entre nós <strong>do</strong>is.<br />
O Homem <strong>do</strong> Cemitério murmurou algumas palavras incompreensíveis para mim. Pegan<strong>do</strong><br />
32
minhas mãos, ele proferiu mais meia dúzia de ladainhas que em nada me lembravam o que eu<br />
havia aprendi<strong>do</strong> na Igreja quan<strong>do</strong> criança.<br />
Eu não transei os padres. Mas fiz to<strong>do</strong>s os coroinhas.<br />
Sempre seguran<strong>do</strong> pelo menos uma de minhas mãos, o Homem <strong>do</strong> Cemitério fez um sinal<br />
rodan<strong>do</strong> seu polegar esquer<strong>do</strong> entre minha fronte, logo em seguida por sobre minhas pálpebras,<br />
terminan<strong>do</strong> o ritual tocan<strong>do</strong> meu peito <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>, onde minha respiração ofegante me sufocava no<br />
horror <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>.<br />
“Não vamos pedir em nome de santo algum. Não vamos pedir nem em nome de... Deus,<br />
porque isso não é necessário. Pois se você acredita que Deus é Amor e o que você e Sepp sentem<br />
um pelo outro É AMOR, tu<strong>do</strong> está abençoa<strong>do</strong>... pelo Pai, pelos Espíritos Protetores ou por quem<br />
mais você dedique sua fé e sua devoção, meu filho”, disse o Homem <strong>do</strong> Cemitério, quase que num<br />
sussurro inaudível, delicioso, envolvente.<br />
“O Amor deve sempre ousar dizer o Seu Nome. O Amor, Zeeg, assim como o Pai, não tem<br />
sexo. Ele é. Ele existe. Ele se completa exatamente quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is serem se desejam com toda a<br />
pureza de seus corações. Sepp ainda ama você com a pureza <strong>do</strong>s justos. Mas cabe a você per<strong>do</strong>á-lo<br />
aqui e agora, para que vocês possam um dia se reencontrar e viver aquilo que deve ser vivi<strong>do</strong> em<br />
toda sua intensa plenitude!”, confirmou o Homem <strong>do</strong> Cemitério, fazen<strong>do</strong>-me beber um pouco da<br />
água fria, densa, revigorante.<br />
Aquelas palavras clicheriadas retratavam o óbvio de tu<strong>do</strong>, mas como foi importante serem<br />
ditas naquele instante mais <strong>do</strong> que necessário. Meu choro, milagrosamente, havia cessa<strong>do</strong>.<br />
* * *<br />
No segun<strong>do</strong> gole de água fui surpreendi<strong>do</strong> por um “Oi, meu amor!” vin<strong>do</strong> sei lá de onde.<br />
Dessa vez era eu que quase me afogara acidentalmente.<br />
Sepp não veio voan<strong>do</strong> pelo espaço. Nem apareceu como num passe de mágicas, flutuan<strong>do</strong><br />
pelo ar. Sepp Mertens estava senta<strong>do</strong> a dez centímetros de distância, de pernas cruzadas, bem junto<br />
aos meus pés. Era como se estivesse o tempo to<strong>do</strong> lá, desde sempre.<br />
morrida.<br />
Eu quase desmaiei depois <strong>do</strong> décimo desmaio pouco depois de quase vivenciar uma morte<br />
33<br />
* * *
O Homem <strong>do</strong> Cemitério sorriu, satisfeito pelo seu número de circo ter da<strong>do</strong> certo. Ele nos<br />
deixou a sós, in<strong>do</strong> se refugiar na minha cozinha, fechan<strong>do</strong> com delicadeza a porta de vidro que<br />
separava os <strong>do</strong>is ambientes.<br />
Eu olhava para Sepp e precisava tirar a prova <strong>do</strong>s nove. Ajoelhei-me junto daquele corpo que<br />
tinha textura, cheiro, cor, brilho e amor, muito amor.<br />
Não perdi tempo em indagações filorreligiocientíficas. Tasquei um beijo naquela boca e fui<br />
agracia<strong>do</strong> com uma língua quente, quase ferina, a perscrutar toda a extensão <strong>do</strong>s meus lábios,<br />
boca, queixo, olhos, pescoço e adjacências.<br />
Rolamos pelo chão, derruban<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que se encontrava em nosso caminho. Chorávamos e<br />
ríamos e nos uníamos como se fosse a primeira e a última vez. Naquele raro momento, o mun<strong>do</strong><br />
realmente podia ser dizima<strong>do</strong> por um arsenal de bombas nucleares, pois nada no universo seria<br />
capaz de estragar algo tão puro e tão... mágico que ocorria entre <strong>do</strong>is homens que tanto se amam,<br />
se desejam, se completam!<br />
Rasgamos nossas roupas e descobrimos juntos os prazeres <strong>do</strong>s nossos corpos sela<strong>do</strong>s numa<br />
união perfeita. Deixamos de la<strong>do</strong> a necessidade <strong>do</strong> meter para nos deliciarmos unicamente com<br />
nossas bocas e línguas famintas a devorar nossos corpos etéreos.<br />
Senti o gozo mais puro a descer pela minha garganta. Sepp degustou o mesmo de-leite na<br />
mesma sincronia em que nossos corpos despejavam nossas mais puras essências para fora e para<br />
dentro de nós mesmos – tu<strong>do</strong> ao mesmo tempo agora.<br />
Embebi<strong>do</strong>s na alquimia <strong>do</strong> suor, esquecemos o tempo e os limites <strong>do</strong> espaço, e<br />
aproveitávamos ao máximo a oportunidade de um recomeço, nem que para isso tivéssemos que<br />
passar mais alguns anos a aguardar o Grande Retorno.<br />
* * *<br />
Um “rã-rã” pronuncia<strong>do</strong> por uma voz que – definitivamente – não era desse mun<strong>do</strong> desfez<br />
nossa magia. Encobertos pela vergonha, tratei de cobrir a nudez <strong>do</strong> meu menino quan<strong>do</strong> nos<br />
deparamos frente a frente com o Homem <strong>do</strong> Cemitério.<br />
“Temos obrigações para cumprir. Sepp... está na hora!”, disse nosso protetor.<br />
Sepp me abraçou com força, quase que imploran<strong>do</strong> através <strong>do</strong> olhar de menino triste por<br />
mais alguns segun<strong>do</strong>s ao meu la<strong>do</strong>.<br />
Toma<strong>do</strong> por uma serenidade completamente fora da minha compreensão, me antevi aos fatos<br />
e pedi perdão pela confusão que eu havia causa<strong>do</strong>, culminan<strong>do</strong> com a morte física <strong>do</strong> meu ama<strong>do</strong>.<br />
34
Sepp, nervoso, apertou-me de encontro ao seu peito, enquanto eu me esforçava por secar<br />
suas lágrimas de tristeza ora com meus beijos, ora com o toque <strong>do</strong>s meus de<strong>do</strong>s trêmulos, finos,<br />
dissonantes.<br />
“Meu amor, toda culpa foi minha. A falta de coragem de te procurar e de conversar contigo e<br />
de nos conhecermos como se deve... enfim... foi minha a culpa total por ter provoca<strong>do</strong> meu<br />
desligamento desse mun<strong>do</strong>. Eu sei o mal que causei a mim mesmo. E sei que terei que cumprir<br />
minha punição pelos meus próprios atos impensa<strong>do</strong>s. Mas estou feliz. Acredite!”, disse Sepp, com<br />
a boca tocan<strong>do</strong> meu ouvi<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>.<br />
“Só o fato Dele ter me da<strong>do</strong> essa chance rara de poder afirmar aqui e agora o que sinto por<br />
você... eu nem acredito que fui merece<strong>do</strong>r depois de tu<strong>do</strong> o que causei... a mim, a você, ao meu pai<br />
e minha linda irmã... Eu é que te peço perdão, meu amor!”, implorou Sepp, olhan<strong>do</strong> diretamente<br />
para meus olhos petrifica<strong>do</strong>s.<br />
Quan<strong>do</strong> notei que o Homem <strong>do</strong> Cemitério era na verdade... ELE, achei que meu coração ia<br />
parar de bater e que eu ia, de um jeito não programa<strong>do</strong>, me juntar a Sepp na sua luta pela<br />
eliminação de seus erros.<br />
Eu chacoalhava a cabeça de um la<strong>do</strong> para outro. Eu ria. E chorava. Eu ria de gargalhar.<br />
Imaginar que Ele estava bem diante de mim, preocupa<strong>do</strong> para que eu e Sepp acertássemos de uma<br />
vez tu<strong>do</strong> o que porventura ainda estava pendente... cara, eu devia ser o homem mais sortu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>!<br />
* * *<br />
“Sepp... está na hora! Pegue sua garrafa e roube o último beijo”, disse Deus, rin<strong>do</strong>, olhan<strong>do</strong><br />
com ternura para sua mais bela criação.<br />
“Pai, após cumprir o que deve ser realiza<strong>do</strong>, o Senhor permite que... eu possa visitar Zeeg...<br />
nem que for apenas através <strong>do</strong>s sonhos dele?”, implorou Sepp, com o coração aberto.<br />
luminoso.<br />
“Vocês se amam?”, perguntou Deus, e eu notei uma ponta de um sorriso ladino em seu rosto<br />
“Sim, nós nos amamos”, dissemos em uníssono, seguros daquilo que sentíamos um pelo<br />
outro... nessa e em todas as demais existências.<br />
“Então, se Eu Sou a quintessência <strong>do</strong> Amor, como eu poderia impedir vocês <strong>do</strong>is de se<br />
unirem em corpo e alma, tornan<strong>do</strong>-se um só, quan<strong>do</strong> assim o desejarem?”, disse Deus, às<br />
gargalhadas.<br />
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Não sabíamos o que dizer diante <strong>do</strong> Altíssimo Sessentão Bonachão.<br />
“Parece que vocês nunca aprendem mesmo. Mas, tu<strong>do</strong> bem, eu ainda sou um ser bastante<br />
paciente. Aprendam que o que Eu uni em nome <strong>do</strong> Amor, isto é, de mim-EU-mesmo, o homem<br />
jamais terá o poder de separar. Essa é a única verdade proferida por mim nas ditas ‘sagradas<br />
escrituras’ de qualquer religião que mereça utilizar essa alcunha...<br />
“O resto – vão por mim – são apenas histórias para boi <strong>do</strong>rmir, inventada por um ban<strong>do</strong> de<br />
apóstolos, monges e outros tantos sem ter nada melhor para fazer no seu tempo livre, a não ser<br />
criar e modificar textos que mudariam o mun<strong>do</strong>, de acor<strong>do</strong> com suas vontades, com a conveniência<br />
<strong>do</strong>s seus desejos”, afirmou Deus, rin<strong>do</strong> da própria piada séria.<br />
“É pena que até hoje Sou o maior garoto-propaganda <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e Meu Nome continua a<br />
encher o rabo <strong>do</strong>s hipócritas de dinheiro, fama e poder para comandar os ignorantes. Isso, sim, é o<br />
Peca<strong>do</strong>... mas, esse dilema não vem ao caso... então...<br />
“Dois, meus filhos. É preciso a junção de DOIS filhos meus para que o ciclo de uma vida<br />
seja completo. E que vocês <strong>do</strong>is possam cumprir suas obrigações terrenas ou etéreas sempre<br />
uni<strong>do</strong>s, para que um dia ambos possam voltar purifica<strong>do</strong>s ao Meu Seio, de onde nunca mais<br />
partilharão da <strong>do</strong>r, <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, da angústia ou de qualquer manifestação de sofrimento.”<br />
* * *<br />
Havíamos compreendi<strong>do</strong> a mensagem. Estávamos prepara<strong>do</strong>s para cumprir o que devia ser<br />
cumpri<strong>do</strong>. E se o próprio Deus in person designou nossos caminhos, quem teria coragem de lutar<br />
contra os Seus Princípios?<br />
* * *<br />
Sepp Mertens partiu, abraça<strong>do</strong> junto ao To<strong>do</strong> Poderoso, e ambos riam e se divertiam com as<br />
estripulias <strong>do</strong> cãozinho da vizinha.<br />
A<strong>do</strong>rmeci... em prantos... feliz!<br />
* * *<br />
Hoje, Sepp e eu nos encontramos todas as noites durante os meus sonhos. Não apenas<br />
namoramos e fazemos amor com tremenda intensidade, mas eu tento ampará-lo através de muito<br />
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diálogo e carinho, consolan<strong>do</strong>-o e incentivan<strong>do</strong>-o a superar os sacrifícios impostos pela passagem<br />
no plano purgatório, onde ele cumpre com louvor o pagamento de suas dívidas perante o suicídio<br />
passa<strong>do</strong>.<br />
Além disso, programamos em conjunto a nossa próxima existência onde finalmente<br />
estaremos juntos, e novos desafios serão postos à prova das nossas capacidades.<br />
Mas o que importa, como bem disse Deus, é a união <strong>do</strong>s DOIS...<br />
... e nada pode contra o Amor <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r.<br />
FIM<br />
____________________<br />
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ou ainda via PayPal. Para saber os detalhes da minha poupança (uia!) e... entrar nela (uia, uia!), por favor, acesse<br />
moasipriano.com/colabore.htm. Agradeço, de antemão, o seu apoio cultural.<br />
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