Mário Soares e a Europa – pensamento e acção <strong>de</strong>ram à concepção soarista um posicionamento novo e diferente no país, permitindo <strong>de</strong>ixar a esfera mais literária e utópica, para se inserir num projecto político real, que aproximou do povo e dos eleitores. A insatisfação com o sistema monárquico e os ventos liberais que sopravam da Europa não <strong>de</strong>ixaram indiferentes vários autores e pensadores portugueses dos finais do século XIX, inícios do XX, nos quais se <strong>de</strong>staca a Geração <strong>de</strong> 70. Embora não levando “muito a sério” a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Estados Unidos da Europa, <strong>de</strong> Victor Hugo, perfilhavam formas <strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ralismo como solução para a evolução do país e da Europa e po<strong>de</strong>m caracterizar-se como europeístas, pela influência do espírito e culturas europeias da época, que vêem como veículo para a mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong> Portugal. Alguns, a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> um fe<strong>de</strong>ralismo latino, outros, principalmente após o Ultimatum inglês, <strong>de</strong> um fe<strong>de</strong>ralismo ibérico, 397 assente em bases <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia e socialismo, o certo é que viam a solução para os problemas do país e para a sua mo<strong>de</strong>rnização em referências i<strong>de</strong>ológicas europeias e em formas <strong>de</strong> associação ao velho continente. Assim, é apenas na linha i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong> ter a Europa como referência e parceiro político que se po<strong>de</strong> estabelecer alguma semelhança <strong>de</strong> Soares com as vozes republicanas e <strong>de</strong> renovação política do Portugal do fim <strong>de</strong> 800. Soares teve <strong>de</strong> original, relativamente aos europeístas <strong>de</strong>ssa época, o facto <strong>de</strong> ter trazido a Europa para a discussão política pública. De ter retirado às elites intelectuais e grupos <strong>de</strong> discussão restritos a exclusivida<strong>de</strong> da sua discussão. Em finais <strong>de</strong> 1800, o <strong>de</strong>bate não passava muito além dos círculos intelectuais filosóficos e literários. Estava confinado a uma esfera mais i<strong>de</strong>alista, como também a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Europa unida ainda era vista no próprio contexto europeu. Soares teve o mérito <strong>de</strong> importar a i<strong>de</strong>ia europeia para a esfera pública da política portuguesa. Não apenas por mérito próprio, mas também porque o próprio momento político o proporcionou. Primeiro, porque na Europa já existia <strong>de</strong> facto um projecto político <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Europa unida já tinha ultrapassado os círculos literários e intelectuais europeus e tinha sido <strong>de</strong>sfeito o preconceito da utopia. Já tinha sido acreditada pela real política europeia, o que proporcionou também a Soares a facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a importar para o eleitorado português. Algo que o contexto socio-político português e europeu dos seus pares da Geração <strong>de</strong> 70 não permitia. Ainda assim, com a instauração da República, seguiu-se uma certa linha <strong>de</strong> entusiasmo político <strong>de</strong> aproximação à Europa. Contudo, o <strong>de</strong>sfecho da II Guerra Mundial, as consequências da participação portuguesa, o insucesso da Socieda<strong>de</strong> das Nações, a <strong>de</strong>vastação que a guerra <strong>de</strong>ixou no continente, trouxeram alguns dissabores e <strong>de</strong>silusões que <strong>de</strong>salentaram os ímpetos políticos europeus que pu<strong>de</strong>ssem florescer em Portugal. A instauração da ditadura militar veio ser o início <strong>de</strong> um longo período <strong>de</strong> recusa a qualquer forma <strong>de</strong> associação europeia, um período <strong>de</strong> isolamento, o que foi quebrado com o pedido <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são à CEE, em 1977, que configura uma ruptura histórica, um projecto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento para Portugal, encerrando em si uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Pátria e <strong>de</strong> Europa, que se complementam e em que passado e futuro se 397 Ver António Martins da Silva, “Portugal e a Europa, o discurso europeu e fe<strong>de</strong>ralista da monarquia à república”, in Revista da História da Socieda<strong>de</strong> e da Cultura 3, Centro <strong>de</strong> Socieda<strong>de</strong> e da Cultura, <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong>, Palimage, 2003, pp. 197- 260. 94
Mário Soares e a Europa – pensamento e acção fun<strong>de</strong>m numa essência <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, num sentido e missão. Como? Que essência é esta? Que sentido e que missão? É sobre isso que vamos reflectir <strong>de</strong> seguida. 95