nova Califórnia e outros contos / Lima Barreto - Projeto de Mão em ...
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LimA BArrEtO<br />
A NOVA<br />
CALIFÓRNIA<br />
E OUTROS CONTOS
Uma campanha <strong>de</strong> fomento à<br />
leitura da Secretaria Municipal<br />
<strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong> São Paulo, <strong>em</strong><br />
parceria com a Fundação<br />
Editora da Unesp.
Comissão Editorial<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Heloísa Jahn<br />
Jézio Hernani Bomfim Gutierre<br />
José <strong>de</strong> Souza Martins<br />
Luciana Veit<br />
Samuel Titan Jr.<br />
Sérgio Vaz
LIMA BARRETO<br />
A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong><br />
e <strong>outros</strong> <strong>contos</strong>
© 2012 Editora Unesp<br />
Fundação Editora da Unesp (FEU)<br />
Praça da Sé, 108<br />
01001-900 — São Paulo — SP<br />
Tel.: (0xx11) 3242-7171<br />
Fax: (0xx11) 3242-7172<br />
www.editoraunesp.com.br<br />
www.livrariaunesp.com.br<br />
feu@editora.unesp.br<br />
CIP — Brasil. Catalogação na fonte<br />
Sindicato Nacional dos Editores <strong>de</strong> Livros, RJ<br />
B26n<br />
<strong>Barreto</strong>, <strong>Lima</strong>, 1881-1922<br />
A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong> e <strong>outros</strong> <strong>contos</strong> / <strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong>. –<br />
São Paulo: Ed. Unesp: Prefeitura do Município <strong>de</strong> São<br />
Paulo, 2012.<br />
176p. (De <strong>Mão</strong> <strong>em</strong> <strong>Mão</strong>)<br />
ISBN 978-85-393-0241-3<br />
1. Conto brasileiro. I. Título. II. Série.<br />
12-2674 CDD: 869.93<br />
CDU: 821.134.3(81)-3<br />
Editora afiliada:
De <strong>Mão</strong> Em <strong>Mão</strong><br />
Com a distribuição <strong>de</strong> livros gratuitamente <strong>em</strong> locais<br />
<strong>de</strong> ampla circulação, este projeto procura incentivar o gosto<br />
pela leitura.<br />
O leitor po<strong>de</strong>rá levar as publicações, s<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> registro <strong>de</strong> retirada, com o compromisso <strong>de</strong> que as<br />
obras serão entregues <strong>em</strong> pontos <strong>de</strong> <strong>de</strong>volução e assim<br />
partilhadas com futuros leitores. A iniciativa se insere<br />
<strong>de</strong>ntro das ações da Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong><br />
São Paulo que buscam a efetivação das políticas <strong>de</strong> leitura<br />
e informação, permitindo que todos os cidadãos tenham<br />
acesso a ativida<strong>de</strong>s culturais.<br />
Conheça os pontos <strong>de</strong> distribuição dos livros “De<br />
<strong>Mão</strong> Em <strong>Mão</strong>” no site http://www.bibliotecas.com.br/<br />
<strong>de</strong>mao<strong>em</strong>mao.<br />
5
Sumário<br />
Prefácio 9<br />
A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong> 11<br />
O hom<strong>em</strong> que sabia javanês 25<br />
Um e outro 37<br />
Um especialista 51<br />
Como o “hom<strong>em</strong>” chegou 63<br />
Congresso Pan -Planetário 87<br />
Hussein Ben -Áli Al -Bálec 93<br />
e Miqueias Habacuc<br />
O feiticeiro e o <strong>de</strong>putado 109<br />
Uma noite no Lírico 115<br />
A biblioteca 123<br />
Sua Excelência 135<br />
Por que não se matava 139<br />
Ele e suas i<strong>de</strong>ias 145<br />
Uma aca<strong>de</strong>mia da roça 151<br />
Notas/Glossário 157<br />
En<strong>de</strong>reços úteis 165<br />
7
Prefácio<br />
Filho <strong>de</strong> um tipógrafo mulato nascido escravo e <strong>de</strong> uma<br />
escrava agregada, o escritor e jornalista Afonso Henriques<br />
<strong>de</strong> <strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong> (1881-1922) foi um dos mais severos críticos<br />
da República Velha (1889-1930). Seus textos <strong>de</strong>snudam<br />
a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po e apontam para a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> alternativas aos costumes e práticas que privilegiavam<br />
classes sociais e corporações.<br />
Favorável a todo tipo <strong>de</strong> ação que pusesse a nu a mediocrida<strong>de</strong><br />
das famílias aristocráticas, o autor, numa crônica<br />
dos subúrbios cariocas e <strong>de</strong> sua população, retrata a população<br />
pobre e oprimida, a ganância <strong>de</strong> políticos po<strong>de</strong>rosos<br />
e a incompetência e opressão dos militares.<br />
Mulato vítima <strong>de</strong> preconceito racial – experiência<br />
<strong>de</strong> vida que o coloca ao lado dos humilhados e ofendidos<br />
–, <strong>Lima</strong> apresenta um texto <strong>de</strong>spojado e coloquial que<br />
acabou por influenciar os escritores da S<strong>em</strong>ana <strong>de</strong> Arte<br />
Mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> 1922. Características realistas e naturalistas<br />
converg<strong>em</strong> num estilo saboroso, que recria tradições<br />
cômicas, carnavalescas e picarescas da cultura popular.<br />
<strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira vigorosa os pobres,<br />
boêmios e arruinados. Sua escrita é fluente e fiel à auten-<br />
9
lima barreto<br />
ticida<strong>de</strong> histórica <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po. O retrato contun<strong>de</strong>nte<br />
dos acontecimentos relevantes da recente vida republicana<br />
oferece ao leitor cont<strong>em</strong>porâneo uma crítica muito atual<br />
do nacionalismo ingênuo e dos privilégios <strong>de</strong> classe <strong>em</strong><br />
nosso país.<br />
10
A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong> *<br />
I<br />
Ninguém sabia don<strong>de</strong> viera aquele hom<strong>em</strong>. O agente<br />
do Correio pu<strong>de</strong>ra apenas informar que acudia ao nome<br />
<strong>de</strong> Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência<br />
que recebia. E era gran<strong>de</strong>. Quase diariamente,<br />
o carteiro lá ia a um dos extr<strong>em</strong>os da cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> morava<br />
o <strong>de</strong>sconhecido, sopesando um maço alentado <strong>de</strong> cartas<br />
vindas do mundo inteiro, grossas revistas <strong>em</strong> línguas<br />
arrevesadas, livros, pacotes…<br />
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou <strong>de</strong> um serviço <strong>em</strong><br />
casa do novo habitante, todos na venda perguntaram -lhe<br />
que trabalho lhe tinha sido <strong>de</strong>terminado.<br />
– Vou fazer um forno, disse o preto, na sala <strong>de</strong> jantar.<br />
Imagin<strong>em</strong> o espanto da pequena cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tubiacanga,<br />
ao saber <strong>de</strong> tão extravagante construção: um forno na sala<br />
<strong>de</strong> jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pô<strong>de</strong> contar<br />
que vira balões <strong>de</strong> vidros, facas s<strong>em</strong> corte, copos como os<br />
* Escrito <strong>em</strong> 10 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1910 e publicado na primeira edição<br />
do livro Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).<br />
11
lima barreto<br />
da farmácia – um rol <strong>de</strong> coisas esquisitas a se mostrar<strong>em</strong><br />
pelas mesas e prateleiras como utensílios <strong>de</strong> uma bateria<br />
<strong>de</strong> cozinha <strong>em</strong> que o próprio diabo cozinhasse.<br />
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados,<br />
era um fabricante <strong>de</strong> moeda falsa; para <strong>outros</strong>, os crentes<br />
e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.<br />
Chico da Tirana, o carreiro, 1 quando passava <strong>em</strong> frente<br />
da casa do hom<strong>em</strong> misterioso, ao lado do carro a chiar, e<br />
olhava a chaminé da sala <strong>de</strong> jantar a fumegar, não <strong>de</strong>ixava<br />
<strong>de</strong> persignar -se e rezar um “credo” <strong>em</strong> voz baixa; e, não<br />
fora a intervenção do farmacêutico, o sub<strong>de</strong>legado teria<br />
ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que<br />
inquietava a imaginação <strong>de</strong> toda uma população.<br />
Tomando <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração as informações <strong>de</strong> Fabrício,<br />
o boticário Bastos concluíra que o <strong>de</strong>sconhecido <strong>de</strong>via ser<br />
um sábio, um gran<strong>de</strong> químico, refugiado ali para mais<br />
sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.<br />
Hom<strong>em</strong> formado e respeitado na cida<strong>de</strong>, vereador,<br />
médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava<br />
<strong>de</strong> receitar e se fizera sócio da farmácia para mais <strong>em</strong> paz<br />
viver, a opinião <strong>de</strong> Bastos levou tranquilida<strong>de</strong> a todas as<br />
consciências e fez com que a população cercasse <strong>de</strong> uma<br />
silenciosa admiração à pessoa do gran<strong>de</strong> químico, que viera<br />
habitar a cida<strong>de</strong>.<br />
De tar<strong>de</strong>, se o viam a passear pela marg<strong>em</strong> do Tubiacanga,<br />
sentando -se aqui e ali, olhando perdidamente as<br />
águas claras do riacho, cismando diante da penetrante<br />
melancolia do crepúsculo, todos se <strong>de</strong>scobriam e não<br />
era raro que às “boas noites” acrescentass<strong>em</strong> “doutor”. E<br />
tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia<br />
com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as<br />
cont<strong>em</strong>plava, parecendo apiedar -se <strong>de</strong> que elas tivess<strong>em</strong><br />
nascido para sofrer e morrer.<br />
12
13<br />
a <strong>nova</strong> califórnia<br />
Na verda<strong>de</strong>, era <strong>de</strong> ver -se, sob a doçura suave da tar<strong>de</strong>, a<br />
bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Messias com que ele afagava aquelas crianças<br />
pretas, tão lisas <strong>de</strong> pele e tão tristes <strong>de</strong> modos, mergulhadas<br />
no seu cativeiro moral, e também as brancas, <strong>de</strong> pele<br />
baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária<br />
caquexia dos trópicos.<br />
Por vezes, vinha -lhe vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar qual a razão<br />
<strong>de</strong> ter Bernardin <strong>de</strong> Saint -Pierre gasto toda a sua ternura<br />
com Paulo e Virgínia 2 e esquecer -se dos escravos que os<br />
cercavam…<br />
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase<br />
geral, e não o era unicamente porque havia alguém que<br />
não tinha <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> conta os méritos do novo habitante.<br />
Capitão Pelino, mestre -escola e redator da Gazeta <strong>de</strong><br />
Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista,<br />
<strong>em</strong>birrava com o sábio. “Vocês hão <strong>de</strong> ver, dizia ele, qu<strong>em</strong><br />
é esse tipo… Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um<br />
ladrão fugido do Rio.”<br />
A sua opinião <strong>em</strong> nada se baseava, ou antes, baseava -se<br />
no seu oculto <strong>de</strong>speito vendo na terra um rival para a fama<br />
<strong>de</strong> sábio <strong>de</strong> que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe<br />
disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia<br />
<strong>em</strong> Tubiacanga que não levasse bordoada do capitão Pelino,<br />
e mesmo quando se falava <strong>em</strong> algum hom<strong>em</strong> notável<br />
lá no Rio, ele não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> dizer: “Não há dúvida! O<br />
hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> talento, mas escreve: ‘um outro’, ‘<strong>de</strong> resto’…”.<br />
E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa<br />
amarga.<br />
Toda a vila <strong>de</strong> Tubiacanga acostumou -se a respeitar o<br />
solene Pelino, que corrigia e <strong>em</strong>endava as maiores glórias<br />
nacionais. Um sábio…<br />
Ao entar<strong>de</strong>cer, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler um pouco o Sotero, o Cândido<br />
<strong>de</strong> Figueiredo ou o Castro Lopes, 3 e <strong>de</strong> ter passado
lima barreto<br />
mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre -escola<br />
saía vagarosamente <strong>de</strong> casa, muito abotoado no seu paletó<br />
<strong>de</strong> brim mineiro, e encaminhava -se para a botica do Bastos<br />
a dar dois <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> prosa. Conversar é um modo <strong>de</strong><br />
dizer, porque era Pelino avaro <strong>de</strong> palavras, limitando -se<br />
tão somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios <strong>de</strong> alguém<br />
escapava a menor incorreção <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>, intervinha e<br />
<strong>em</strong>endava. “Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que…”<br />
Por aí, o mestre -escola intervinha com mansuetu<strong>de</strong> evangélica:<br />
“Não diga ‘asseguro’, senhor Bernar<strong>de</strong>s; <strong>em</strong> português<br />
é garanto”.<br />
E a conversa continuava <strong>de</strong>pois da <strong>em</strong>enda, para ser<br />
<strong>de</strong> novo interrompida por uma outra. Por essas e outras,<br />
houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino,<br />
indiferente, seguro dos seus <strong>de</strong>veres, continuava o seu<br />
apostolado <strong>de</strong> vernaculismo. 4 A chegada do sábio veio<br />
distraí -lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço<br />
voltava -se agora para combater aquele rival, que surgia<br />
tão inopinadamente.<br />
Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só<br />
Raimundo Flamel pagava <strong>em</strong> dia as suas contas, como era<br />
generoso – pai da pobreza – e o farmacêutico vira numa<br />
revista <strong>de</strong> específicos seu nome citado como químico <strong>de</strong><br />
valor.<br />
II<br />
Havia já anos que o químico vivia <strong>em</strong> Tubiacanga,<br />
quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica<br />
a<strong>de</strong>ntro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio<br />
não se dignara até aí visitar fosse qu<strong>em</strong> fosse e, certo dia,<br />
quando o sacristão Orestes ousou penetrar <strong>em</strong> sua casa,<br />
14
15<br />
a <strong>nova</strong> califórnia<br />
pedindo -lhe uma esmola para a futura festa <strong>de</strong> Nossa<br />
Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o<br />
recebeu e aten<strong>de</strong>u.<br />
Vendo -o, Bastos saiu <strong>de</strong> <strong>de</strong>trás do balcão, correu a<br />
recebê -lo com a mais perfeita <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />
sabia com qu<strong>em</strong> tratava e foi quase <strong>em</strong> uma exclamação<br />
que disse:<br />
– Doutor, seja b<strong>em</strong> -vindo.<br />
O sábio pareceu não se surpreen<strong>de</strong>r n<strong>em</strong> com a<br />
<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> respeito do farmacêutico, n<strong>em</strong> com o<br />
tratamento universitário. Doc<strong>em</strong>ente, olhou um instante<br />
a armação cheia <strong>de</strong> medicamentos e respon<strong>de</strong>u:<br />
– Desejava falar -lhe <strong>em</strong> particular, senhor Bastos.<br />
O espanto do farmacêutico foi gran<strong>de</strong>. Em que po<strong>de</strong>ria<br />
ele ser útil ao hom<strong>em</strong>, cujo nome corria mundo e <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />
os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria<br />
dinheiro? Talvez… Um atraso no pagamento das rendas,<br />
qu<strong>em</strong> sabe? E foi conduzindo o químico para o interior<br />
da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um<br />
momento, <strong>de</strong>ixou a “mão” <strong>de</strong>scansar no gral 5 , on<strong>de</strong> macerava<br />
uma tisana 6 qualquer.<br />
Por fim, achou ao fundo, b<strong>em</strong> no fundo, o quartinho<br />
que lhe servia para exames médicos mais <strong>de</strong>tidos ou para<br />
as pequenas operações, porque Bastos também operava.<br />
Sentaram -se e Flamel não tardou a expor:<br />
– Como o senhor <strong>de</strong>ve saber, <strong>de</strong>dico -me à química,<br />
tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio…<br />
– Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado,<br />
aqui, aos meus amigos.<br />
– Obrigado. Pois b<strong>em</strong>: fiz uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta,<br />
extraordinária…<br />
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma<br />
pausa e <strong>de</strong>pois continuou:
lima barreto<br />
– Uma <strong>de</strong>scoberta… Mas não me convém, por ora,<br />
comunicar ao mundo sábio, compreen<strong>de</strong>?<br />
– Perfeitamente.<br />
– Por isso precisava <strong>de</strong> três pessoas conceituadas que<br />
foss<strong>em</strong> test<strong>em</strong>unhas <strong>de</strong> uma experiência <strong>de</strong>la e me <strong>de</strong>ss<strong>em</strong><br />
um atestado <strong>em</strong> forma, para resguardar a priorida<strong>de</strong><br />
da minha invenção… O senhor sabe: há acontecimentos<br />
imprevistos e…<br />
– Certamente! Não há dúvida!<br />
– Imagine o senhor que se trata <strong>de</strong> fazer ouro…<br />
– Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.<br />
– Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.<br />
– Como?<br />
– O senhor saberá – disse o químico secamente. A<br />
questão do momento são as pessoas que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> assistir à<br />
experiência, não acha?<br />
– Com certeza, é preciso que os seus direitos fiqu<strong>em</strong><br />
resguardados, porquanto…<br />
– Uma <strong>de</strong>las, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras<br />
duas, o senhor Bastos fará o favor <strong>de</strong> indicar -me.<br />
O boticário esteve um instante a pensar, passando <strong>em</strong><br />
revista os seus conhecimentos e, ao fim <strong>de</strong> uns três minutos,<br />
perguntou:<br />
– O coronel Bentes lhe serve? Conhece?<br />
– Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém<br />
aqui.<br />
– Posso garantir -lhe que é hom<strong>em</strong> sério, rico e muito<br />
discreto.<br />
– É religioso? Faço -lhe esta pergunta, acrescentou Flamel<br />
logo, porque t<strong>em</strong>os que lidar com ossos <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto e<br />
só estes serv<strong>em</strong>…<br />
– Qual! É quase ateu…<br />
– B<strong>em</strong>! Aceito. E o outro?<br />
16
17<br />
a <strong>nova</strong> califórnia<br />
Bastos voltou a pensar e <strong>de</strong>ssa vez <strong>de</strong>morou -se um pouco<br />
mais consultando a sua m<strong>em</strong>ória… Por fim, falou:<br />
– Será o tenente Carvalhais, o coletor, 7 conhece?<br />
– Como já lhe disse…<br />
– É verda<strong>de</strong>. É hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> confiança, sério, mas…<br />
– Que é que t<strong>em</strong>?<br />
– É maçom.<br />
– Melhor.<br />
– E quando é?<br />
– Domingo. Domingo, os três irão lá <strong>em</strong> casa assistir à<br />
experiência e espero que não me recusarão as suas firmas<br />
para autenticar a minha <strong>de</strong>scoberta.<br />
– Está tratado.<br />
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis<br />
<strong>de</strong> Tubiacanga foram à casa <strong>de</strong> Flamel, e, dias<br />
<strong>de</strong>pois, misteriosamente, ele <strong>de</strong>saparecia s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar vestígios<br />
ou explicação para o seu <strong>de</strong>saparecimento.<br />
III<br />
Tubiacanga era uma pequena cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> três ou quatro<br />
mil habitantes, muito pacífica, <strong>em</strong> cuja estação, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
<strong>em</strong> on<strong>de</strong>, os expressos davam a honra <strong>de</strong> parar. Há cinco<br />
anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas<br />
e janelas só eram usadas… porque o Rio as usava.<br />
O único crime notado <strong>em</strong> seu pobre cadastro fora um<br />
assassinato por ocasião das eleições municipais; mas,<br />
aten<strong>de</strong>ndo que o assassino era do partido do governo, e a<br />
vítima da oposição, o acontecimento <strong>em</strong> nada alterou os<br />
hábitos da cida<strong>de</strong>, continuando ela a exportar o seu café<br />
e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas<br />
águas do pequeno rio que a batizara.
lima barreto<br />
Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando<br />
se veio a verificar nela um dos mais repugnantes crimes <strong>de</strong><br />
que se t<strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória! Não se tratava <strong>de</strong> um esquartejamento<br />
ou parricídio; não era o assassinato <strong>de</strong> uma família inteira<br />
ou um assalto à coletoria; era coisa pior, sacrílega aos olhos<br />
<strong>de</strong> todas as religiões e consciências: violavam -se as sepulturas<br />
do “Sossego”, do seu c<strong>em</strong>itério, do seu campo -santo.<br />
Em começo, o coveiro julgou que foss<strong>em</strong> cães, mas,<br />
revistando b<strong>em</strong> o muro, não encontrou senão pequenos<br />
buracos. Fechou -os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo<br />
perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um<br />
carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou <strong>de</strong>mônio. O<br />
coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta,<br />
foi ao sub<strong>de</strong>legado e a notícia espalhou -se pela cida<strong>de</strong>.<br />
A indignação na cida<strong>de</strong> tomou todas as feições e todas<br />
as vonta<strong>de</strong>s. A religião da morte prece<strong>de</strong> todas e certamente<br />
será a última a morrer nas consciências. Contra a<br />
profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar – os<br />
bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o agrimensor<br />
Nicolau, antigo ca<strong>de</strong>te, e positivista do rito Teixeira Men<strong>de</strong>s;<br />
8 clamava o major Camanho, presi<strong>de</strong>nte da Loja Nova<br />
Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante<br />
<strong>de</strong> armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que<br />
vivia ao <strong>de</strong>us -dará, bebericando parati nas tavernas. A<br />
própria filha do engenheiro resi<strong>de</strong>nte da estrada <strong>de</strong> ferro,<br />
que vivia <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhando aquele lugarejo, s<strong>em</strong> notar sequer<br />
os suspiros dos apaixonados locais, s<strong>em</strong>pre esperando que<br />
o expresso trouxesse um príncipe a <strong>de</strong>sposá -la –, a linda<br />
e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa Cora não pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> compartilhar da<br />
indignação e do horror que tal ato provocara <strong>em</strong> todos do<br />
lugarejo. Que tinha ela com o túmulo <strong>de</strong> antigos escravos<br />
e humil<strong>de</strong>s roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos<br />
olhos pardos o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> tão humil<strong>de</strong>s ossos? Porven-<br />
18
19<br />
a <strong>nova</strong> califórnia<br />
tura o furto <strong>de</strong>les perturbaria o seu sonho <strong>de</strong> fazer radiar<br />
a beleza <strong>de</strong> sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas<br />
calçadas do Rio?<br />
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e<br />
onipotente, <strong>de</strong> que ela também se sentia escrava, e que não<br />
<strong>de</strong>ixaria um dia <strong>de</strong> levar a sua linda caveirinha para a paz<br />
eterna do c<strong>em</strong>itério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados,<br />
quietos e comodamente <strong>de</strong>scansando num caixão<br />
b<strong>em</strong> feito e num túmulo seguro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido a sua<br />
carne encanto e prazer dos vermes…<br />
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor <strong>de</strong>itara<br />
artigo <strong>de</strong> fundo, imprecando, bramindo, gritando:<br />
“Na história do crime, dizia ele, já bastante rica <strong>de</strong> fatos<br />
repugnantes, como sejam: o esquartejamento <strong>de</strong> Maria<br />
<strong>de</strong> Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se<br />
registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas<br />
do ‘Sossego’”.<br />
E a vila vivia <strong>em</strong> sobressalto. Nas faces não se lia mais<br />
paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos.<br />
Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras<br />
e, à noite, todos ouviam ruídos, g<strong>em</strong>idos, barulhos sobrenaturais…<br />
Parecia que os mortos pediam vingança…<br />
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas,<br />
três sepulturas abertas e esvaziadas <strong>de</strong> seu fúnebre conteúdo.<br />
Toda a população resolveu ir <strong>em</strong> massa guardar<br />
os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, <strong>em</strong> breve,<br />
ce<strong>de</strong>ndo à fadiga e ao sono, retirou -se um, <strong>de</strong>pois outro<br />
e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda<br />
nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham<br />
sido abertas e os ossos levados para <strong>de</strong>stino misterioso.<br />
Organizaram então uma guarda. Dez homens <strong>de</strong>cididos<br />
juraram perante o sub<strong>de</strong>legado vigiar durante a noite<br />
a mansão dos mortos.
lima barreto<br />
Nada houve <strong>de</strong> anormal na primeira noite, na segunda<br />
e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham<br />
a cochilar, um <strong>de</strong>les julgou lobrigar um vulto<br />
esgueirando -se por entre a quadra dos carneiros. Correram<br />
e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva<br />
e a indignação, até aí sopitadas no ânimo <strong>de</strong>les, não se<br />
contiveram mais e <strong>de</strong>ram tanta bordoada nos macabros<br />
ladrões, que os <strong>de</strong>ixaram estendidos como mortos.<br />
A notícia correu logo <strong>de</strong> casa <strong>em</strong> casa e, quando, <strong>de</strong><br />
manhã, se tratou <strong>de</strong> estabelecer a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos dois malfeitores,<br />
foi diante da população inteira que foram neles<br />
reconhecidos o coletor Carvalhais e o coronel Bentes, rico<br />
fazen<strong>de</strong>iro e presi<strong>de</strong>nte da Câmara. Este último ainda<br />
vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pô<strong>de</strong> dizer<br />
que juntava os ossos para fazer ouro e o companheiro que<br />
fugira era o farmacêutico.<br />
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro<br />
com ossos? Seria possível? Mas aquele hom<strong>em</strong> rico, respeitado,<br />
como <strong>de</strong>sceria ao papel <strong>de</strong> ladrão <strong>de</strong> mortos se a<br />
coisa não fosse verda<strong>de</strong>!<br />
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros <strong>de</strong>spojos<br />
fúnebres se pu<strong>de</strong>sse fazer alguns <strong>contos</strong> <strong>de</strong> réis, como não<br />
seria bom para todos eles!<br />
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho,<br />
viu logo ali meios <strong>de</strong> consegui -la. Castrioto, o escrivão do<br />
juiz <strong>de</strong> paz, que no ano passado conseguiu comprar uma<br />
casa, mas ainda não a pu<strong>de</strong>ra cercar, pensou no muro,<br />
que lhe <strong>de</strong>via proteger a horta e a criação. Pelos olhos do<br />
sitiante Marques, que andava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> anos atrapalhado para<br />
arranjar um pasto, pensou logo no prado ver<strong>de</strong> do Costa,<br />
on<strong>de</strong> os seus bois engordariam e ganhariam forças…<br />
Às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada um, aqueles ossos que eram<br />
ouro viriam aten<strong>de</strong>r, satisfazer e felicitá -los; e aqueles dois<br />
20
21<br />
a <strong>nova</strong> califórnia<br />
ou três milhares <strong>de</strong> pessoas, homens, crianças, mulheres,<br />
moços e velhos, como se foss<strong>em</strong> uma só pessoa, correram<br />
à casa do farmacêutico.<br />
A custo, o sub<strong>de</strong>legado pô<strong>de</strong> impedir que varejass<strong>em</strong><br />
a botica e conseguir que ficass<strong>em</strong> na praça, à espera do<br />
hom<strong>em</strong> que tinha o segredo <strong>de</strong> todo um Potosi. 9 Ele não<br />
tardou a aparecer. Trepado a uma ca<strong>de</strong>ira, tendo na mão<br />
uma pequena barra <strong>de</strong> ouro que reluzia ao forte sol da<br />
manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o<br />
segredo, se lhe poupass<strong>em</strong> a vida. “Quer<strong>em</strong>os já sabê -lo,”<br />
gritaram.<br />
Ele então explicou que era preciso redigir a receita,<br />
indicar a marcha do processo, os reativos – trabalho longo<br />
que só po<strong>de</strong>ria ser entregue impresso no dia seguinte.<br />
Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas<br />
o sub<strong>de</strong>legado falou e responsabilizou -se pelo resultado.<br />
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões<br />
furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo<br />
na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente<br />
a maior porção <strong>de</strong> ossos <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto que pu<strong>de</strong>sse.<br />
O sucesso chegou à casa do engenheiro resi<strong>de</strong>nte da<br />
estrada <strong>de</strong> ferro. Ao jantar, não se falou <strong>em</strong> outra coisa. O<br />
doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou<br />
que era impossível. Isto era alquimia, coisa morta:<br />
ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto,<br />
fosfato <strong>de</strong> cal.<br />
Pensar que se podia fazer <strong>de</strong> uma coisa outra era “besteira”.<br />
Cora aproveitou o caso para rir -se petropolimente<br />
da cruelda<strong>de</strong> daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona<br />
Emilia, tinha fé que a coisa era possível.<br />
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia,<br />
saltou a janela e correu <strong>em</strong> direitura ao c<strong>em</strong>itério;<br />
Cora, <strong>de</strong> pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a
lima barreto<br />
criada para ir<strong>em</strong> juntas à colheita <strong>de</strong> ossos. Não a encontrou,<br />
foi sozinha; e Dona Emília, vendo -se só, adivinhou<br />
o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cida<strong>de</strong><br />
inteira. O pai, s<strong>em</strong> dizer nada ao filho, saía; a mulher, julgando<br />
enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados<br />
– toda a população, sob a luz das estrelas assombradas,<br />
correu ao satânico ren<strong>de</strong>z ‑vous [encontro] no “Sossego”.<br />
E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam.<br />
Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo,<br />
o Major Camanho, Cora, a linda e <strong>de</strong>slumbrante<br />
Cora, com os seus lindos <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> alabastro, revolvia a<br />
sânie 10 das sepulturas, arrancava as carnes ainda podres<br />
agarradas tenazmente aos ossos e <strong>de</strong>les enchia o seu regaço<br />
até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas,<br />
que se abriam <strong>em</strong> asas rosadas e quase transparentes, não<br />
sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos <strong>em</strong> lama fedorenta…<br />
A <strong>de</strong>sinteligência não tardou a surgir; os mortos eram<br />
poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos.<br />
Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco<br />
por causa <strong>de</strong> um fêmur e mesmo entre as famílias questões<br />
surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram.<br />
Andaram juntos e <strong>de</strong> acordo e houve uma vez que o pequeno,<br />
uma esperta criança <strong>de</strong> onze anos, até aconselhou ao<br />
pai: “Papai vamos aon<strong>de</strong> está mamãe; ela era tão gorda…”.<br />
De manhã, o c<strong>em</strong>itério tinha mais mortos do que aqueles<br />
que recebera <strong>em</strong> trinta anos <strong>de</strong> existência. Uma única<br />
pessoa lá não estivera, não matara n<strong>em</strong> profanara sepulturas:<br />
fora o bêbedo Belmiro.<br />
Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando<br />
ninguém, enchera uma garrafa <strong>de</strong> parati e se <strong>de</strong>ixara<br />
ficar a beber sentado na marg<strong>em</strong> do Tubiacanga, vendo<br />
escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito <strong>de</strong><br />
22
23<br />
a <strong>nova</strong> califórnia<br />
granito – ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram,<br />
mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu<br />
segredo, sob o dossel eterno das estrelas.
O hom<strong>em</strong> que sabia javanês *<br />
Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro,<br />
contava eu as partidas que havia pregado às convicções e<br />
às respeitabilida<strong>de</strong>s, para po<strong>de</strong>r viver.<br />
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive <strong>em</strong><br />
Manaus, <strong>em</strong> que fui obrigado a escon<strong>de</strong>r a minha qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> bacharel, para mais confiança obter dos clientes,<br />
que afluíam ao meu escritório <strong>de</strong> feiticeiro e adivinho.<br />
Contava eu isso.<br />
O meu amigo ouvia -me calado, <strong>em</strong>bevecido, gostando<br />
daquele meu Gil Blas 11 vivido, até que, <strong>em</strong> uma pausa da<br />
conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:<br />
– Tens levado uma vida b<strong>em</strong> engraçada, Castelo!<br />
– Só assim se po<strong>de</strong> viver… Isto <strong>de</strong> uma ocupação única:<br />
sair <strong>de</strong> casa a certas horas, voltar a outras, aborrece,<br />
não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!<br />
– Cansa -se; mas, não é disso que me admiro. O que me<br />
admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste<br />
Brasil imbecil e burocrático.<br />
* Publicado <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1911 no jornal A Gazeta da Tar<strong>de</strong>.<br />
25
lima barreto<br />
– Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se po<strong>de</strong>m<br />
arranjar belas páginas <strong>de</strong> vida. Imagina tu que eu já fui<br />
professor <strong>de</strong> javanês!<br />
– Quando? Aqui, <strong>de</strong>pois que voltaste do consulado?<br />
– Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.<br />
– Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?<br />
– Bebo.<br />
Mandamos buscar mais outra garrafa, ench<strong>em</strong>os os<br />
copos, e continuei:<br />
– Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente<br />
na miséria. Vivia fugido <strong>de</strong> casa <strong>de</strong> pensão <strong>em</strong> casa<br />
<strong>de</strong> pensão, s<strong>em</strong> saber on<strong>de</strong> e como ganhar dinheiro, quando<br />
li no Jornal do Commercio o anúncio seguinte:<br />
“Precisa -se <strong>de</strong> um professor <strong>de</strong> língua javanesa. Cartas,<br />
etc.”<br />
Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não<br />
terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras,<br />
ia apresentar -me. Saí do café e an<strong>de</strong>i pelas ruas,<br />
s<strong>em</strong>pre a imaginar -me professor <strong>de</strong> javanês, ganhando<br />
dinheiro, andando <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> e s<strong>em</strong> encontros <strong>de</strong>sagradáveis<br />
com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi -me à<br />
Biblioteca Nacional. Não sabia b<strong>em</strong> que livro iria pedir;<br />
mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha<br />
e subi. Na escada, acudiu -me pedir a Gran<strong>de</strong> Encyclopé‑<br />
die, letra J, a fim <strong>de</strong> consultar o artigo relativo a Java e a<br />
língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim <strong>de</strong><br />
alguns minutos, que Java era uma gran<strong>de</strong> ilha do arquipélago<br />
<strong>de</strong> Sonda, colônia holan<strong>de</strong>sa, e o javanês, língua<br />
aglutinante do grupo malaio -polinésio, possuía uma literatura<br />
digna <strong>de</strong> nota e escrita <strong>em</strong> caracteres <strong>de</strong>rivados do<br />
velho alfabeto hindu.<br />
A Enciclopédia dava -me indicação <strong>de</strong> trabalhos sobre<br />
a tal língua malaia e não tive dúvidas <strong>em</strong> consultar um<br />
26
27<br />
o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />
<strong>de</strong>les. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e<br />
saí. An<strong>de</strong>i pelas ruas, perambulando e mastigando letras.<br />
Na minha cabeça dançavam hieróglifos; <strong>de</strong> quando <strong>em</strong><br />
quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins<br />
e escrevia estes calungas na areia para guardá -los b<strong>em</strong> na<br />
m<strong>em</strong>ória e habituar a mão a escrevê -los.<br />
À noite, quando pu<strong>de</strong> entrar <strong>em</strong> casa s<strong>em</strong> ser visto, para<br />
evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei<br />
no quarto a engolir o meu “a -b -c” malaio, e, com<br />
tanto afinco levei o propósito que, <strong>de</strong> manhã, o sabia perfeitamente.<br />
Convenci -me que aquela era a língua mais fácil do<br />
mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse<br />
com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:<br />
– Senhor Castelo, quando salda a sua conta?<br />
Respondi -lhe então eu, com a mais encantadora esperança:<br />
– Breve… Espere um pouco… Tenha paciência… Vou<br />
ser nomeado professor <strong>de</strong> javanês, e…<br />
Por aí o hom<strong>em</strong> interrompeu -me:<br />
– Que diabo v<strong>em</strong> a ser isso, Senhor Castelo?<br />
Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do hom<strong>em</strong>:<br />
– É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor.<br />
Sabe on<strong>de</strong> é?<br />
Oh! alma ingênua! O hom<strong>em</strong> esqueceu -se da minha<br />
dívida e disse -me com aquele falar forte dos portugueses:<br />
– Eu cá por mim, não sei b<strong>em</strong>; mas ouvi dizer que são<br />
umas terras que t<strong>em</strong>os lá para os lados <strong>de</strong> Macau. E o<br />
senhor sabe isso, senhor Castelo?<br />
Animado com esta saída feliz que me <strong>de</strong>u o javanês,<br />
voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente<br />
propor -me ao professorado do idioma oceânico.<br />
Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá <strong>de</strong>ixei a carta. Em
lima barreto<br />
seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos<br />
<strong>de</strong> javanês. Não fiz gran<strong>de</strong>s progressos nesse dia, não sei<br />
se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário<br />
a um professor <strong>de</strong> língua malaia ou se por ter me <strong>em</strong>penhado<br />
mais na bibliografia e história literária do idioma<br />
que ia ensinar.<br />
Ao cabo <strong>de</strong> dois dias, recebia eu uma carta para ir falar<br />
ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão <strong>de</strong><br />
Jacuecanga, à rua Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bonfim, não me recordo b<strong>em</strong><br />
que número. E preciso não te esqueceres que entr<strong>em</strong>entes<br />
continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês.<br />
Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome <strong>de</strong> alguns<br />
autores, também perguntar e respon<strong>de</strong>r “como está o<br />
senhor?” – e duas ou três regras <strong>de</strong> gramática, lastrado<br />
todo esse saber com vinte palavras do léxico.<br />
Não imaginas as gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s com que lutei,<br />
para arranjar os quatrocentos réis da viag<strong>em</strong>! É mais<br />
fácil – po<strong>de</strong>s ficar certo – apren<strong>de</strong>r o javanês… Fui a pé.<br />
Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas<br />
mangueiras, que se perfilavam <strong>em</strong> alameda diante da casa<br />
do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram.<br />
Em toda a minha vida, foi o único momento <strong>em</strong> que<br />
cheguei a sentir a simpatia da natureza…<br />
Era uma casa enorme que parecia estar <strong>de</strong>serta; estava<br />
maltratada, mas não sei porque me veio pensar que<br />
nesse mau tratamento havia mais <strong>de</strong>sleixo e cansaço <strong>de</strong><br />
viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era<br />
pintada. As pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scascavam e os beirais do telhado,<br />
daquelas telhas vidradas <strong>de</strong> <strong>outros</strong> t<strong>em</strong>pos, estavam <strong>de</strong>sguarnecidos<br />
aqui e ali, como <strong>de</strong>ntaduras <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes ou<br />
malcuidadas.<br />
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com<br />
que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinho-<br />
28
29<br />
o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />
rões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver<br />
com a sua folhag<strong>em</strong> <strong>de</strong> cores mortiças. Bati. Custaram -me<br />
a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas<br />
e cabelo <strong>de</strong> algodão davam à sua fisionomia uma aguda<br />
impressão <strong>de</strong> velhice, doçura e sofrimento.<br />
Na sala, havia uma galeria <strong>de</strong> retratos: arrogantes<br />
senhores <strong>de</strong> barba <strong>em</strong> colar se perfilavam enquadrados <strong>em</strong><br />
imensas molduras douradas, e doces perfis <strong>de</strong> senhoras,<br />
<strong>em</strong> bandós, 12 com gran<strong>de</strong>s leques, pareciam querer subir<br />
aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas,<br />
daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais<br />
antiguida<strong>de</strong> e respeito, a que gostei mais <strong>de</strong> ver foi um belo<br />
jarrão <strong>de</strong> porcelana da China ou da Índia, como se diz.<br />
Aquela pureza da louça, a sua fragilida<strong>de</strong>, a ingenuida<strong>de</strong><br />
do <strong>de</strong>senho e aquele seu fosco brilho <strong>de</strong> luar, diziam -me a<br />
mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos <strong>de</strong> criança,<br />
a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos<br />
<strong>de</strong>siludidos…<br />
Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco.<br />
Um tanto trôpego, com o lenço <strong>de</strong> alcobaça 13 na mão,<br />
tomando veneravelmente o simonte 14 <strong>de</strong> antanho, foi<br />
cheio <strong>de</strong> respeito que o vi chegar. Tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir -me<br />
<strong>em</strong>bora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era s<strong>em</strong>pre<br />
um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à<br />
tona do meu pensamento alguma coisa <strong>de</strong> augusto, <strong>de</strong><br />
sagrado. Hesitei, mas fiquei.<br />
– Eu sou – avancei – o professor <strong>de</strong> javanês, que o<br />
senhor disse precisar.<br />
– Sente -se, respon<strong>de</strong>u -me o velho. O senhor é daqui,<br />
do Rio?<br />
– Não, sou <strong>de</strong> Canavieiras.<br />
– Como? fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo.<br />
– Sou <strong>de</strong> Canavieiras, na Bahia, insisti eu.
lima barreto<br />
– On<strong>de</strong> fez os seus estudos?<br />
– Em São Salvador.<br />
– E on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>u o javanês? indagou ele, com aquela<br />
teimosia peculiar aos velhos.<br />
Não contava com essa pergunta, mas imediatamente<br />
arquitetei uma mentira. Contei -lhe que meu pai era javanês.<br />
Tripulante <strong>de</strong> um navio mercante, viera ter à Bahia,<br />
estabelecera -se nas proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Canavieiras como<br />
pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi<br />
javanês.<br />
– E ele acreditou? E o físico? perguntou meu amigo, que<br />
até então me ouvira calado.<br />
– Não sou, objetei, lá muito diferente <strong>de</strong> um javanês.<br />
Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha<br />
pele basané [bronzeada] po<strong>de</strong>m dar -me muito b<strong>em</strong> o<br />
aspecto <strong>de</strong> um mestiço <strong>de</strong> malaio… Tu sabes b<strong>em</strong> que,<br />
entre nós, há <strong>de</strong> tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches,<br />
guanches, até godos. É uma comparsaria <strong>de</strong> raças e<br />
tipos <strong>de</strong> fazer inveja ao mundo inteiro.<br />
– B<strong>em</strong>, fez o meu amigo, continua.<br />
– O velho, <strong>em</strong>en<strong>de</strong>i eu, ouviu -me atentamente, consi<strong>de</strong>rou<br />
<strong>de</strong>moradamente o meu físico, pareceu que me julgava<br />
<strong>de</strong> fato filho <strong>de</strong> malaio e perguntou -me com doçura:<br />
– Então está disposto a ensinar -me javanês?<br />
– A resposta saiu -me s<strong>em</strong> querer: – Pois não.<br />
– O senhor há <strong>de</strong> ficar admirado, aduziu o barão <strong>de</strong><br />
Jacuecanga, que eu, nesta ida<strong>de</strong>, ainda queira apren<strong>de</strong>r<br />
qualquer coisa, mas…<br />
– Não tenho que admirar. Têm -se visto ex<strong>em</strong>plos e<br />
ex<strong>em</strong>plos muito fecundos…<br />
– O que eu quero, meu caro senhor….<br />
– Castelo, adiantei eu.<br />
30
31<br />
o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />
– O que eu quero, meu caro senhor Castelo, é cumprir<br />
um juramento <strong>de</strong> família. Não sei se o senhor sabe que<br />
eu sou neto do conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou<br />
Pedro I, quando abdicou. Voltando <strong>de</strong> Londres,<br />
trouxe para aqui um livro <strong>em</strong> língua esquisita, a que<br />
tinha gran<strong>de</strong> estimação. Fora um hindu ou siamês que<br />
lho <strong>de</strong>ra, <strong>em</strong> Londres, <strong>em</strong> agra<strong>de</strong>cimento a não sei que<br />
serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou<br />
meu pai e lhe disse: “Filho, tenho este livro aqui,<br />
escrito <strong>em</strong> javanês. Disse -me qu<strong>em</strong> mo <strong>de</strong>u que ele evita<br />
<strong>de</strong>sgraças e traz felicida<strong>de</strong>s para qu<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>. Eu não sei<br />
nada ao certo. Em todo o caso, guarda -o; mas, se queres<br />
que o fado que me <strong>de</strong>itou o sábio oriental se cumpra, faze<br />
com que teu filho o entenda, para que s<strong>em</strong>pre a nossa raça<br />
seja feliz”. Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou<br />
muito na história; contudo, guardou o livro. Às<br />
portas da morte, ele mo <strong>de</strong>u e disse -me o que prometera<br />
ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro.<br />
Deitei -o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a<br />
esquecer -me <strong>de</strong>le; mas, <strong>de</strong> uns t<strong>em</strong>pos a esta parte, tenho<br />
passado por tanto <strong>de</strong>sgosto, tantas <strong>de</strong>sgraças têm caído<br />
sobre a minha velhice que me l<strong>em</strong>brei do talismã da família.<br />
Tenho que o ler, que o compreen<strong>de</strong>r, se não quero que<br />
os meus últimos dias anunci<strong>em</strong> o <strong>de</strong>sastre da minha posterida<strong>de</strong>;<br />
e, para entendê -lo, é claro que preciso enten<strong>de</strong>r<br />
o javanês. Eis aí.<br />
Calou -se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado.<br />
Enxugou discretamente os olhos e perguntou -me<br />
se queria ver o tal livro. Respondi -lhe que sim. Chamou o<br />
criado, <strong>de</strong>u -lhe as instruções e explicou -me que per<strong>de</strong>ra<br />
todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada,<br />
cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil <strong>de</strong><br />
corpo e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> frágil e oscilante.
lima barreto<br />
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in -quarto<br />
15 antigo, enca<strong>de</strong>rnado <strong>em</strong> couro, impresso <strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
letras, <strong>em</strong> um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do<br />
rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha<br />
ainda umas páginas <strong>de</strong> prefácio, escritas <strong>em</strong> inglês, on<strong>de</strong> li<br />
que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor<br />
javanês <strong>de</strong> muito mérito.<br />
Logo informei disso o velho barão que, não percebendo<br />
que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo <strong>em</strong> alta<br />
consi<strong>de</strong>ração o meu saber malaio. Estive ainda folheando<br />
o cartapácio, 16 à laia <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sabe magistralmente aquela<br />
espécie <strong>de</strong> vasconço, 17 até que afinal contratamos as condições<br />
<strong>de</strong> preço e <strong>de</strong> hora, comprometendo -me a fazer com<br />
que ele lesse o tal alfarrábio antes <strong>de</strong> um ano.<br />
Dentro <strong>em</strong> pouco, dava a minha primeira lição, mas<br />
o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia<br />
apren<strong>de</strong>r a distinguir e a escrever n<strong>em</strong> sequer quatro<br />
letras. Enfim, com meta<strong>de</strong> do alfabeto levamos um mês<br />
e o senhor barão <strong>de</strong> Jacuecanga não ficou lá muito senhor<br />
da matéria: aprendia e <strong>de</strong>saprendia.<br />
A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história<br />
do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho;<br />
não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa<br />
boa para distraí -lo.<br />
Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro,<br />
é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor<br />
<strong>de</strong> javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava <strong>de</strong><br />
repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso,<br />
ah! on<strong>de</strong> estava!”.<br />
O marido <strong>de</strong> Dona Maria da Glória (assim se chamava<br />
a filha do barão), era <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bargador, hom<strong>em</strong> relacionado<br />
e po<strong>de</strong>roso; mas não se pejava <strong>em</strong> mostrar diante <strong>de</strong> todo o<br />
mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado,<br />
32
33<br />
o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />
o barão estava contentíssimo. Ao fim <strong>de</strong> dois meses, <strong>de</strong>sistira<br />
da aprendizag<strong>em</strong> e pedira -me que lhe traduzisse, um<br />
dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava<br />
entendê -lo, disse -me ele; nada se opunha que outr<strong>em</strong> o<br />
traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo<br />
e cumpria o encargo.<br />
Sabes b<strong>em</strong> que até hoje nada sei <strong>de</strong> javanês, mas compus<br />
umas histórias b<strong>em</strong> tolas e impingi -as ao velhote<br />
como sendo do crônicon. 18 Como ele ouvia aquelas bobagens!…<br />
Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras <strong>de</strong><br />
um anjo. E eu crescia aos seus olhos!<br />
Fez -me morar <strong>em</strong> sua casa, enchia -me <strong>de</strong> presentes,<br />
aumentava -me o or<strong>de</strong>nado. Passava, enfim, uma vida<br />
regalada.<br />
Contribuiu muito para isso o fato <strong>de</strong> vir ele a receber<br />
uma herança <strong>de</strong> um seu parente esquecido que vivia <strong>em</strong><br />
Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e<br />
eu estive quase a crê -lo também.<br />
Fui per<strong>de</strong>ndo os r<strong>em</strong>orsos; mas, <strong>em</strong> todo o caso, s<strong>em</strong>pre<br />
tive medo que me aparecesse pela frente alguém que<br />
soubesse o tal patuá malaio. E esse meu t<strong>em</strong>or foi gran<strong>de</strong>,<br />
quando o doce barão me mandou com uma carta ao<br />
viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia.<br />
Fiz -lhe todas as objeções: a minha fealda<strong>de</strong>, a falta<br />
<strong>de</strong> elegância, o meu aspecto tagalo. 19 – “Qual! retrucava<br />
ele. Vá, menino; você sabe javanês!” Fui. Mandou -me o<br />
viscon<strong>de</strong> para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas<br />
recomendações. Foi um sucesso.<br />
O diretor chamou os chefes <strong>de</strong> seção: “Vejam só, um<br />
hom<strong>em</strong> que sabe javanês – que portento!”.<br />
Os chefes <strong>de</strong> secção levaram -me aos oficiais e amanuenses<br />
e houve um <strong>de</strong>stes que me olhou mais com ódio
lima barreto<br />
do que com inveja ou admiração. E todos diziam: “Então<br />
sabe javanês? É difícil? Não há qu<strong>em</strong> o saiba aqui!”.<br />
O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu<br />
então: “É verda<strong>de</strong>, mas eu sei canaque. O senhor sabe?”.<br />
Disse -lhe que não e fui à presença do ministro.<br />
A alta autorida<strong>de</strong> levantou -se, pôs as mãos às ca<strong>de</strong>iras,<br />
concertou o pince ‑nez [óculos] no nariz e perguntou:<br />
“Então, sabe javanês?”. Respondi -lhe que sim; e, à sua pergunta<br />
on<strong>de</strong> o tinha aprendido, contei -lhe a história do tal<br />
pai javanês. “B<strong>em</strong>, disse -me o ministro, o senhor não <strong>de</strong>ve<br />
ir para a diplomacia; o seu físico não se presta… O bom<br />
seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há<br />
vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De<br />
hoje <strong>em</strong> diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero<br />
que, para o ano, parta para Basileia, on<strong>de</strong> vai representar<br />
o Brasil no Congresso <strong>de</strong> Linguística. Estu<strong>de</strong>, leia o<br />
Hovelacque, 20 o Max Müller, 21 e <strong>outros</strong>!”<br />
Imagina tu que eu até aí nada sabia <strong>de</strong> javanês, mas<br />
estava <strong>em</strong>pregado e iria representar o Brasil <strong>em</strong> um congresso<br />
<strong>de</strong> sábios.<br />
O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro<br />
para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a ida<strong>de</strong><br />
conveniente e fez -me uma <strong>de</strong>ixa no testamento.<br />
Pus -me com afã no estudo das línguas malaio-<br />
-polinésicas; mas não havia meio!<br />
B<strong>em</strong> jantado, b<strong>em</strong> -vestido, b<strong>em</strong> dormido, não tinha<br />
energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas<br />
coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas:<br />
Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the<br />
English ‑Oceanic Association, Archivo Glottologico Italia‑<br />
no, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os<br />
informados apontavam -me, dizendo aos <strong>outros</strong>: “Lá vai<br />
o sujeito que sabe javanês”. Nas livrarias, os gramáticos<br />
34
35<br />
o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />
consultavam -me sobre a colocação dos pronomes no tal<br />
jargão das ilhas <strong>de</strong> Sonda. Recebia cartas dos eruditos do<br />
interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar<br />
uma turma <strong>de</strong> alunos sequiosos <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r<strong>em</strong> o tal javanês.<br />
A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commer‑<br />
cio um artigo <strong>de</strong> quatro colunas sobre a literatura javanesa<br />
antiga e mo<strong>de</strong>rna…<br />
– Como, se tu nada sabias? interrompeu -me o atento<br />
Castro.<br />
– Muito simplesmente: primeiramente, <strong>de</strong>screvi a ilha<br />
<strong>de</strong> Java, com o auxílio <strong>de</strong> dicionários e umas poucas <strong>de</strong><br />
geografias, e <strong>de</strong>pois citei a mais não po<strong>de</strong>r.<br />
– E nunca duvidaram? perguntou -me ainda o meu<br />
amigo.<br />
– Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia<br />
pren<strong>de</strong>u um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que<br />
só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes,<br />
ninguém o entendia. Fui também chamado, com<br />
todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente.<br />
D<strong>em</strong>orei -me <strong>em</strong> ir, mas fui afinal. O hom<strong>em</strong> já<br />
estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a<br />
qu<strong>em</strong> ele se fez compreen<strong>de</strong>r com meia dúzia <strong>de</strong> palavras<br />
holan<strong>de</strong>sas. E o tal marujo era javanês – uf!<br />
Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a<br />
Europa. Que <strong>de</strong>lícia! Assisti à inauguração e às sessões<br />
preparatórias. Inscreveram -me na seção do tupi -guarani<br />
e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Men‑<br />
sageiro <strong>de</strong> Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas.<br />
Quando voltei, o presi<strong>de</strong>nte pediu -me <strong>de</strong>sculpas<br />
por me ter dado aquela secção; não conhecia os meus trabalhos<br />
e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me<br />
estava naturalmente indicada a seção do tupi -guarani.<br />
Aceitei as explicações e até hoje ainda não pu<strong>de</strong> escrever
lima barreto<br />
as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme<br />
prometi.<br />
Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do<br />
Mensageiro <strong>de</strong> Bâle, <strong>em</strong> Berlim, <strong>em</strong> Turim e Paris, on<strong>de</strong><br />
os leitores <strong>de</strong> minhas obras me ofereceram um banquete,<br />
presidido pelo Senador Gorot. Custou -me toda essa brinca<strong>de</strong>ira,<br />
inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom<br />
barão <strong>de</strong> Jacuecanga.<br />
Não perdi meu t<strong>em</strong>po n<strong>em</strong> meu dinheiro. Passei a ser<br />
uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi<br />
uma ovação <strong>de</strong> todas as classes sociais e o presi<strong>de</strong>nte da<br />
República, dias <strong>de</strong>pois, convidava -me para almoçar <strong>em</strong><br />
sua companhia.<br />
Dentro <strong>de</strong> seis meses fui <strong>de</strong>spachado cônsul <strong>em</strong> Havana,<br />
on<strong>de</strong> estive seis anos e para on<strong>de</strong> voltarei, a fim <strong>de</strong><br />
aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia<br />
e Polinésia.<br />
– É fantástico, observou Castro, agarrando o copo <strong>de</strong><br />
cerveja.<br />
– Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?<br />
– Que?<br />
– Bacteriologista <strong>em</strong>inente. Vamos?<br />
– Vamos.<br />
36
Um e outro *<br />
37<br />
A Deodoro Leucht<br />
Não havia motivo para que ela procurasse aquela ligação,<br />
não havia razão para que a mantivesse. O Freitas a<br />
enfarava um pouco, é verda<strong>de</strong>. Os seus hábitos quase conjugais;<br />
o modo <strong>de</strong> tratá -la como sua mulher; os ro<strong>de</strong>ios <strong>de</strong><br />
que se servia para aludir à vida das outras raparigas; as<br />
precauções que tomava para enganá -la; a sua linguag<strong>em</strong><br />
s<strong>em</strong>pre escoimada <strong>de</strong> termos <strong>de</strong> calão ou duvidoso; enfim,<br />
aquele ar burguês da vida que levava, aquela regularida<strong>de</strong>,<br />
aquele equilíbrio davam -lhe a impressão <strong>de</strong> estar cumprindo<br />
pena.<br />
Isto era b<strong>em</strong> verda<strong>de</strong>, mas não a absolvia perante ela<br />
mesma <strong>de</strong> estar enganando o hom<strong>em</strong> que lhe dava tudo,<br />
que educava sua filha, que a mantinha como senhora,<br />
com o “chofer” do automóvel <strong>em</strong> que passeava duas vezes<br />
ou mais por s<strong>em</strong>ana. Por que não procurara outro mais<br />
* Escrito <strong>em</strong> março <strong>de</strong> 1913 e publicado na primeira edição do livro<br />
Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).
lima barreto<br />
<strong>de</strong>cente? A sua razão <strong>de</strong>sejava b<strong>em</strong> isso; mas o seu instinto<br />
a tinha levado para ali.<br />
A b<strong>em</strong> dizer, ela não gostava <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>, mas <strong>de</strong> homens;<br />
as exigências <strong>de</strong> sua imaginação, mais do que as <strong>de</strong> sua carne,<br />
eram para a poliandria. A vida a fizera assim e não havia<br />
<strong>de</strong> ser agora, ao roçar os cinquenta, que havia <strong>de</strong> corrigir -se.<br />
Ao l<strong>em</strong>brar -se <strong>de</strong> sua ida<strong>de</strong>, olhou -se um pouco no espelho<br />
e viu que uma ruga teimosa começava a surgir no canto<br />
<strong>de</strong> um dos olhos. Era preciso a massag<strong>em</strong>… Examinou-<br />
-se melhor. Estava <strong>de</strong> corpinho. O colo era ainda opulento,<br />
unido; o pescoço repousava b<strong>em</strong> sobre ele, e ambos, colo<br />
e pescoço, se ajustavam s<strong>em</strong> saliências n<strong>em</strong> <strong>de</strong>pressões.<br />
Teve satisfação <strong>de</strong> sua carne; teve orgulho mesmo.<br />
Há quanto t<strong>em</strong>po ela resistia aos estragos do t<strong>em</strong>po e ao<br />
<strong>de</strong>sejo dos homens? Não estava moça, mas se sentia ainda<br />
apetitosa. Quantos a provaram? Ela não podia sequer avaliar<br />
o número aproximado. Passavam por sua l<strong>em</strong>brança<br />
numerosas fisionomias. Muitas ela não fixara b<strong>em</strong> na<br />
m<strong>em</strong>ória e surgiam -lhe na recordação como coisas vagas,<br />
sombras, pareciam espíritos. L<strong>em</strong>brava -se às vezes <strong>de</strong> um<br />
gesto, às vezes <strong>de</strong> uma frase <strong>de</strong>ste ou daquele s<strong>em</strong> se l<strong>em</strong>brar<br />
dos seus traços; recordava -se às vezes da roupa s<strong>em</strong><br />
se recordar da pessoa. Era curioso que <strong>de</strong> certos que a<br />
conhecess<strong>em</strong> uma única noite e se foram para s<strong>em</strong>pre, ela<br />
se l<strong>em</strong>brasse b<strong>em</strong>; e <strong>de</strong> <strong>outros</strong> que se <strong>de</strong>moraram, tivesse<br />
uma imag<strong>em</strong> apagada.<br />
Os vestígios da sua primitiva educação religiosa e os<br />
mol<strong>de</strong>s da honestida<strong>de</strong> comum subiram à sua consciência.<br />
Seria pecado aquela sua vida? Iria para o inferno? Viu um<br />
instante o seu inferno <strong>de</strong> estampa popular: as labaredas<br />
muito rubras, as almas mergulhadas nelas e os diabos,<br />
com uns garfos enormes, a obrigar os penitentes a sofrer<strong>em</strong><br />
o suplício.<br />
38
39<br />
um e outro<br />
Haveria isso mesmo ou a morte seria…? A sombra da<br />
morte ofuscou -lhe o pensamento. Já não era tanto o inferno<br />
que lhe vinha aos olhos; era a morte só, o aniquilamento<br />
do seu corpo, da sua pessoa, o horror horrível da<br />
sepultura fria.<br />
Isto lhe pareceu uma injustiça. Que as vagabundas<br />
comuns morress<strong>em</strong>, vá! Que as criadas morress<strong>em</strong>, vá!<br />
Ela, porém, ela que tivera tantos amantes ricos; ela que<br />
causara rixas, suicídios e assassinatos, morrer era uma iniquida<strong>de</strong><br />
s<strong>em</strong> nome! Não era uma mulher comum, ela, a<br />
Lola, a Lola <strong>de</strong>sejada por tantos homens; a Lola, amante<br />
do Freitas, que gastava mais <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> réis por mês<br />
nas coisas triviais da casa, não podia n<strong>em</strong> <strong>de</strong>via morrer.<br />
Houve então nela um assomo íntimo <strong>de</strong> revolta contra o<br />
<strong>de</strong>stino implacável.<br />
Agarrou a blusa, ia vesti -la, mas reparou que faltava<br />
um botão. L<strong>em</strong>brou -se <strong>de</strong> pregá -lo, mas imediatamente<br />
lhe veio a invencível repugnância que s<strong>em</strong>pre tivera pelo<br />
trabalho manual. Quis chamar a criada: mas seria <strong>de</strong>morar.<br />
Lançou mão <strong>de</strong> alfinetes.<br />
Acabou <strong>de</strong> vestir -se, pôs o chapéu, e olhou um pouco<br />
os móveis. Eram caros, eram bons. Restava -lhe esse consolo:<br />
morreria, mas morreria no luxo, tendo nascido <strong>em</strong><br />
uma cabana. Como eram diferentes os dois momentos! Ao<br />
nascer, até aos vinte e tantos anos, mal tinha on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar<br />
após as labutas domésticas. Quando casada, o marido<br />
vinha suado dos trabalhos do campo e, mal lavados,<br />
<strong>de</strong>itavam -se. Como era diferente agora… Qual! Não seria<br />
capaz <strong>de</strong> suportá -lo mais… Como é que pô<strong>de</strong>?<br />
Seguiu -se a <strong>em</strong>igração… Como foi que veio até ali, até<br />
aquela cumeada 22 <strong>de</strong> que se orgulhava? Não apanhava<br />
b<strong>em</strong> o enca<strong>de</strong>amento. Apanhava alguns termos da série;<br />
como porém se ligaram, como se ajustaram para fazê -la
lima barreto<br />
subir <strong>de</strong> criada à amante opulenta do Freitas, não compreendia<br />
b<strong>em</strong>. Houve oscilações, houve <strong>de</strong>svios. Uma vez<br />
mesmo quase se viu <strong>em</strong>brulhada numa questão <strong>de</strong> furto;<br />
mas, após tantos anos, a ascensão parecia -lhe gloriosa e<br />
retilínea. Deu os últimos toques no chapéu, concertou o<br />
cabelo na nuca, abriu o quarto e foi até à sala <strong>de</strong> jantar.<br />
– Maria, on<strong>de</strong> está a Merce<strong>de</strong>s? Perguntou.<br />
Merce<strong>de</strong>s era a sua filha, filha <strong>de</strong> sua união legal, que<br />
orçava pelos vinte e poucos anos. Nascera no Brasil, dois<br />
anos após a sua chegada, um antes <strong>de</strong> abandonar o marido.<br />
A criada correu logo a aten<strong>de</strong>r a patroa:<br />
– Está no quintal conversando com a Aída, patroa.<br />
Maria era a sua copeira e Aída a lava<strong>de</strong>ira; no tr<strong>em</strong> 23 <strong>de</strong><br />
sua casa, havia três criadas e ela, a antiga criada, gostava<br />
<strong>de</strong> l<strong>em</strong>brar -se do número das que tinha agora, para avaliar<br />
o progresso que fizera na vida.<br />
Não insistiu mais <strong>em</strong> perguntar pela filha e recomendou:<br />
– Vou sair. Fecha b<strong>em</strong> a porta da rua… Toma cuidado<br />
com os ladrões.<br />
Abotoou as luvas, concertou a fisionomia e pisou a calçada<br />
com um imponente ar <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> dama sob o seu caro<br />
chapéu <strong>de</strong> plumas brancas.<br />
A rua dava -lhe mais força <strong>de</strong> fisionomia, mais consciência<br />
<strong>de</strong>la mesma. Como se sentia estar no seu reino, na<br />
região <strong>em</strong> que era rainha e imperatriz. O olhar cobiçoso<br />
dos homens e o <strong>de</strong> inveja das mulheres acabavam o sentimento<br />
<strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>, exaltavam -no até. Dirigiu-<br />
-se para a rua do Catete com o seu passo miúdo e sólido.<br />
Era manhã e, <strong>em</strong>bora andáss<strong>em</strong>os pelo meado do ano, o<br />
sol era forte como se já verão fosse. No caminho trocou<br />
cumprimentos com as raparigas pobres <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong><br />
cômodos da vizinhança.<br />
– Bom dia, madama.<br />
40
41<br />
um e outro<br />
– Bom dia.<br />
E <strong>de</strong>baixo dos olhares maravilhados das pobres raparigas,<br />
ela continuou o seu caminho, arrepanhando a saia,<br />
satisfeita que n<strong>em</strong> uma duquesa, atravessando os seus<br />
domínios.<br />
O ren<strong>de</strong>z ‑vous [encontro] era para uma hora; tinha<br />
t<strong>em</strong>po, portanto, <strong>de</strong> dar umas voltas à cida<strong>de</strong>. Precisava<br />
mesmo que o Freitas lhe <strong>de</strong>sse uma quantia maior. Já lhe<br />
falara a respeito pela manhã, quando ele saiu e tinha que<br />
buscá -la ao escritório <strong>de</strong>le.<br />
Tencionava comprar um mimo e oferecê-lo ao chofer<br />
do “seu” Pope, 24 o seu último amor, o ente sobre -humano<br />
que ela via coado através da beleza daquele “carro” negro,<br />
arrogante, insolente, cortando a multidão das ruas orgulhoso<br />
como um Deus.<br />
Na imaginação, ambos, “chofer” e “carro”, não os podia<br />
separar um do outro; e a imag<strong>em</strong> dos dois era uma única<br />
<strong>de</strong> supr<strong>em</strong>a beleza, tendo a seu dispor a força e a velocida<strong>de</strong><br />
do vento.<br />
Tomou o bon<strong>de</strong>. Não reparou nos companheiros <strong>de</strong><br />
viag<strong>em</strong>; <strong>em</strong> nenhum, ela sentiu uma alma; <strong>em</strong> nenhum,<br />
ela sentiu um s<strong>em</strong>elhante. Todo o seu pensamento era<br />
para o “chofer”, e o “carro”. O automóvel, aquela magnífica<br />
máquina, que passava pelas ruas que n<strong>em</strong> um triunfador,<br />
era b<strong>em</strong> a beleza do hom<strong>em</strong> que o guiava; e, quando<br />
ela o tinha nos braços, não era b<strong>em</strong> ele qu<strong>em</strong> a abraçava,<br />
era a beleza daquela máquina que punha nela ebrieda<strong>de</strong>,<br />
sonho e a alegria singular da velocida<strong>de</strong>. Não havia como<br />
aos sábados <strong>em</strong> que ela, recostada às almofadas amplas,<br />
percorria as ruas da cida<strong>de</strong>, concentrava os olhares e todos<br />
invejavam mais o carro que ela, a força que se continha<br />
nele e o arrojo que o chofer mo<strong>de</strong>rava. A vida <strong>de</strong> centenas<br />
<strong>de</strong> miseráveis, <strong>de</strong> tristes e mendicantes sujeitos que
lima barreto<br />
andavam a pé, estava ao dispor <strong>de</strong> uma simples e imperceptível<br />
volta no guidão; e o motorista que ela beijava, que<br />
ela acariciava, era como uma divinda<strong>de</strong> que dispusesse <strong>de</strong><br />
humil<strong>de</strong>s seres <strong>de</strong>ste triste e <strong>de</strong>sgraçado planeta.<br />
Em tal instante, ela se sentia vingada do <strong>de</strong>sdém com<br />
que a cobriam, e orgulhosa <strong>de</strong> sua vida.<br />
Entre ambos, “carro” e “chofer”, ela estabelecia um<br />
laço necessário, não só entre as imagens respectivas como<br />
entre os objetos. O “carro” era como os m<strong>em</strong>bros do outro<br />
e os dois completavam -se numa representação interna,<br />
maravilhosa <strong>de</strong> elegância, <strong>de</strong> beleza, <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> insolência,<br />
<strong>de</strong> orgulho e força.<br />
O bon<strong>de</strong> continuava a andar. Vinha jogando pelas ruas<br />
<strong>em</strong> fora, tilintando, parando aqui e ali. Passavam carroças,<br />
passavam carros, passavam automóveis. O <strong>de</strong>le não<br />
passaria certamente. Era <strong>de</strong> garag<strong>em</strong> e saía unicamente<br />
para certos e <strong>de</strong>terminados fregueses que só passeavam à<br />
tar<strong>de</strong> ou escolhiam -no para a volta das duas, alta noite. O<br />
bon<strong>de</strong> chegou à praça da Glória. Aquele trecho da cida<strong>de</strong><br />
t<strong>em</strong> um ar <strong>de</strong> fotografia, como que houve nele uma preocupação<br />
<strong>de</strong> vista, <strong>de</strong> efeito <strong>de</strong> perspectiva; e agradava -lhe.<br />
O bon<strong>de</strong> corria agora ao lado do mar. A baía estava calma,<br />
os horizontes eram límpidos e os barcos a vapor quebravam<br />
a harmonia da paisag<strong>em</strong>.<br />
A marinha pe<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre o barco a vela; ele como que<br />
nasceu do mar, é sua criação; o barco a vapor é um grosseiro<br />
engenho <strong>de</strong>masiado humano, s<strong>em</strong> relações com ela. A<br />
sua brutalida<strong>de</strong> a violenta. A Lola, porém, não se <strong>de</strong>morou<br />
<strong>em</strong> olhar o mar, n<strong>em</strong> o horizonte; a natureza lhe era completamente<br />
indiferente e não fez nenhuma reflexão sobre o<br />
trecho que a via passar. Consi<strong>de</strong>rou <strong>de</strong>ssa vez os vizinhos.<br />
Todos lhe pareciam <strong>de</strong>testáveis. Tinham um ar <strong>de</strong> pouco<br />
dinheiro e regularida<strong>de</strong> sexual abominável. Que gente!<br />
42
43<br />
um e outro<br />
O bon<strong>de</strong> passou pela frente do Passeio Público e o seu<br />
pensamento fixou -se num instante no chapéu que tencionava<br />
comprar. Ficar -lhe -ia b<strong>em</strong>? Seria mais belo que o da<br />
Lúcia, amante do Adão “Turco”? Saltava <strong>de</strong> uma probabilida<strong>de</strong><br />
para outra, quando lhe veio <strong>de</strong>sviar da preocupação<br />
a passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um automóvel. Pareceu ser ele, o chofer.<br />
Qual! Num “táxi”! Não era possível. Afugentou o pensamento<br />
e o bon<strong>de</strong> continuou. Enfrentou o “Theatro Municipal”.<br />
Olhou -lhe as colunas, os dourados, achou -o bonito,<br />
bonito como uma mulher cheia <strong>de</strong> atavios. Na Avenida,<br />
ajustou o passo, consertou a fisionomia, arrepanhou a saia<br />
com a mão esquerda e partiu ruas <strong>em</strong> fora com um ar <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> dama sob o enorme chapéu <strong>de</strong> plumas brancas.<br />
Nas ocasiões <strong>em</strong> que precisava falar ao Freitas no escritório,<br />
ela tinha por hábito ficar num restaurante próximo e<br />
mandar chamá -lo por um caixeiro. Assim ele lhe recomendava<br />
e assim ela fazia, convencida como estava <strong>de</strong> que as<br />
razões com que o Freitas lhe justificara esse procedimento<br />
eram sólidas e proce<strong>de</strong>ntes. Não ficava b<strong>em</strong> ao alto comércio<br />
<strong>de</strong> comissões e consignações que as damas foss<strong>em</strong> procurar<br />
os representantes <strong>de</strong>le nos respectivos escritórios; e, se b<strong>em</strong><br />
que o Freitas fosse um simples caixa da Casa Antunes, Costa<br />
e Cia., uma visita como a <strong>de</strong>la po<strong>de</strong>ria tirar <strong>de</strong> tão po<strong>de</strong>rosa<br />
firma a fama <strong>de</strong> soli<strong>de</strong>z e abalar -lhe o crédito na clientela.<br />
A espanhola ficou, portanto, próxima e, enquanto esperava<br />
o amante, pediu uma limonada e olhou a rua. Naquela<br />
hora, a rua 1 o <strong>de</strong> Março tinha o seu pesado trânsito habitual<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s carroções pejados <strong>de</strong> mercadorias. O movimento<br />
quase se cingia a homens; e se, <strong>de</strong> quando <strong>em</strong> quando,<br />
passava uma mulher, vinha num bando <strong>de</strong> estrangeiros<br />
recent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcados.<br />
Se passava um <strong>de</strong>stes, Lola tinha um imperceptível sorriso<br />
<strong>de</strong> mofa. Que gente! Que magras! On<strong>de</strong> é que foram
lima barreto<br />
<strong>de</strong>scobrir aquela magreza <strong>de</strong> mulher? Tinha como certo<br />
que, na Inglaterra, não havia mulheres bonitas n<strong>em</strong><br />
homens elegantes.<br />
Num dado momento, alguém passou que lhe fez crispar<br />
a fisionomia. Era a Rita. On<strong>de</strong> ia àquela hora? Não lhe<br />
foi dado ver b<strong>em</strong> o vestuário <strong>de</strong>la, mas viu o chapéu, cuja<br />
pleureuse 25 lhe pareceu mais cara que a do seu. Como é que<br />
arranjara aquilo? Como é que havia homens que <strong>de</strong>ss<strong>em</strong><br />
tal luxo a uma mulher daquelas? Uma mulata…<br />
O seu <strong>de</strong>sgosto sossegou com essa verificação e ficou<br />
possuída <strong>de</strong> um contentamento <strong>de</strong> vitória. A socieda<strong>de</strong><br />
regular <strong>de</strong>ra -lhe a arma infalível…<br />
Freitas chegou afinal e, como convinha à sua posição e<br />
à majesta<strong>de</strong> do alto comércio, veio <strong>em</strong> colete e s<strong>em</strong> chapéu.<br />
Os dois se encontraram muito casualmente, s<strong>em</strong> nenhum<br />
movimento, palavra, gesto ou olhar <strong>de</strong> ternura.<br />
– Não trouxeste Merce<strong>de</strong>s? Perguntou ele.<br />
– Não… fazia muito sol…<br />
O amante sentou -se e ela o examinou um momento.<br />
Não era bonito, muito menos simpático. Des<strong>de</strong> muito<br />
verificara isso; agora, porém, <strong>de</strong>scobrira o máximo <strong>de</strong>feito<br />
da sua fisionomia. Estava no olhar, um olhar s<strong>em</strong>pre o<br />
mesmo, fixo, esbugalhado, s<strong>em</strong> mutações e variações <strong>de</strong><br />
luz. Ele pediu cerveja, ela perguntou:<br />
– Arranjaste?<br />
Tratava -se <strong>de</strong> dinheiro e o seu orgulho <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> do<br />
comércio que s<strong>em</strong>pre se julga rico ou às portas da riqueza,<br />
ficou um pouco ferido com a pergunta da amante.<br />
– Não havia dificulda<strong>de</strong>… Era só vir ao escritório…<br />
Mais que fosse…<br />
Lola suspeitava que não lhe fosse tão fácil assim, mas nada<br />
disse. Explorava habilmente aquela sua ostentação <strong>de</strong> dinheiro,<br />
farejava “qualquer coisa” e já tomara as suas precauções.<br />
44
45<br />
um e outro<br />
Veio a cerveja e ambos, na mesa do restaurante, fizeram<br />
um numeroso esforço para conversar. O amante fazia -lhe<br />
perguntas: “Vais à modista? Sais hoje à tar<strong>de</strong>?” – Ela respondia:<br />
“sim, não”.<br />
Passou <strong>de</strong> novo a Rita. Lola aproveitou o momento e<br />
disse:<br />
– Lá vai aquela “negra”.<br />
– Qu<strong>em</strong>?<br />
– A Rita.<br />
– A Ritinha!… Está agora com o “Louro” croupier 26 do<br />
“Emporium”.<br />
E <strong>em</strong> seguida acrescentou:<br />
– Está muito b<strong>em</strong>.<br />
– Pu<strong>de</strong>ra! Há homens muito porcos.<br />
– Pois olha: acho -a b<strong>em</strong> bonita.<br />
– Não precisavas dizer -me. És como os <strong>outros</strong>… ainda<br />
há qu<strong>em</strong> se sacrifique por vocês.<br />
Era seu hábito s<strong>em</strong>pre procurar na conversa caminho<br />
para mostrar -se arrufada e dar a enten<strong>de</strong>r ao amante que<br />
ela se sacrificava vivendo com ele. Freitas não acreditava<br />
muito nesse sacrifício, mas não queria romper com ela,<br />
porque a sua ligação causava nas rodas <strong>de</strong> confeitarias,<br />
<strong>de</strong> pensões chiques e jogo muito sucesso. Muito célebre<br />
e conhecida, com quase vinte anos <strong>de</strong> “vida ativa”, o seu<br />
collage com a Lola que se não fora bela, fora s<strong>em</strong>pre tentadora<br />
e provocante, punha a sua pessoa <strong>em</strong> foco e garantia-<br />
-lhe um certo prestígio sobre as outras mulheres.<br />
Vendo -a arrufada, o amante fingiu -se arrependido do<br />
que dissera, e vieram a <strong>de</strong>spedir -se com palavras ternas.<br />
Ela saiu contente com o dinheiro na carteira. Havia<br />
dito ao Freitas que se <strong>de</strong>stinava a uma filha que estava<br />
na Espanha; mas a verda<strong>de</strong> era que mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> seria<br />
<strong>em</strong>pregada na compra <strong>de</strong> um presente para o seu moto-
lima barreto<br />
rista amado. Subiu a rua do Ouvidor, parando pelas montras<br />
27 das casas <strong>de</strong> joias. Que havia <strong>de</strong> ser? Um anel? Já<br />
lhe havia dado. Uma corrente? Também já lhe <strong>de</strong>ra uma.<br />
Parou numa vitrine e viu uma cigarreira. Simpatizou com<br />
o objeto. Parecia caro e era ofuscante: ouro e pedrarias –<br />
uma coisa <strong>de</strong> mau gosto evi<strong>de</strong>nte. Achou -a maravilhosa,<br />
entrou e comprou -a s<strong>em</strong> discutir.<br />
Encaminhou -se para o bon<strong>de</strong> cheia <strong>de</strong> satisfação.<br />
Aqueles presentes como que o prendiam mais a ela, como<br />
que o ligavam eternamente à sua carne e o faziam entrar<br />
no seu sangue.<br />
A sua paixão pelo chofer durava havia 6 meses e<br />
encontravam -se pelas bandas da Can<strong>de</strong>lária, <strong>em</strong> uma casa<br />
discreta e limpa, b<strong>em</strong> frequentada, cheia <strong>de</strong> precauções<br />
para que os frequentadores não se viss<strong>em</strong>.<br />
Faltava pouco para o encontro e ela aborrecia -se esperando<br />
o bon<strong>de</strong> conveniente. Havia mais impaciência nela<br />
que atraso no horário. O veículo chegou <strong>em</strong> boa hora e<br />
Lola tomou -o cheia <strong>de</strong> ardor e <strong>de</strong>sejo. Havia uma s<strong>em</strong>ana<br />
que ela não se encontrava com o motorista. A última<br />
vez <strong>em</strong> que se avistaram, nada <strong>de</strong> mais íntimo lhe pu<strong>de</strong>ra<br />
dizer. Freitas, ao contrário do costume, passeava com ela;<br />
e só lhe fora dado vê -lo soberbo, todo <strong>de</strong> branco, casquete,<br />
sentado à almofada, com o busto ereto, a guiar maravilhosamente<br />
o carro lustroso, brilhante, cuja niquelag<strong>em</strong><br />
areada faiscava como prata <strong>nova</strong>.<br />
Marcava -lhe aquele ren<strong>de</strong>z ‑vous com muita sauda<strong>de</strong> e<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vê -lo e agra<strong>de</strong>cer -lhe a imaterial satisfação que a<br />
máquina lhe dava. Dentro daquele bon<strong>de</strong> vulgar, um instante,<br />
ela teve <strong>nova</strong>mente diante dos olhos o automóvel orgulhoso,<br />
sentiu a sua trepidação, indício <strong>de</strong> sua força, e o viu<br />
<strong>de</strong>slizar, silencioso, severo, resoluto e insolente, pelas ruas<br />
<strong>em</strong> fora, dominado pela mão <strong>de</strong>stra do chofer que ela amava.<br />
46
47<br />
um e outro<br />
Logo ao chegar, perguntou à dona da casa se o dr. José<br />
estava. Soube que chegara mais cedo e já fora para o quarto.<br />
Não se <strong>de</strong>morou muito conversando com a patroa e<br />
correu aos aposentos.<br />
De fato, José estava lá. Fosse calor, fosse vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
ganhar t<strong>em</strong>po, o certo é que já havia tirado <strong>de</strong> cima <strong>de</strong> si o<br />
principal vestuário. Assim que a viu entrar, s<strong>em</strong> se erguer<br />
da cama, disse:<br />
– Pensei que não viesses.<br />
– O bon<strong>de</strong> custou muito a chegar, meu amor.<br />
Descansou a bolsa, tirou o chapéu com ambas as mãos<br />
e foi direita à cama. Sentou -se na borda, cravou o olhar no<br />
rosto grosseiro e vulgar do motorista; e, após um instante<br />
<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>plação, <strong>de</strong>bruçou -se e beijou -o, com volúpia,<br />
<strong>de</strong>moradamente.<br />
O chofer não retribuiu a carícia, ele as julgava <strong>de</strong>snecessárias<br />
naquele instante. Nele, o amor não tinha prefácios,<br />
n<strong>em</strong> epílogos; o assunto ataca -se logo. Ela não o conhecia<br />
assim: resíduos da profissão e o sincero <strong>de</strong>sejo daquele<br />
hom<strong>em</strong> faziam -na carinhosa.<br />
S<strong>em</strong> beijá -lo, sentada, à borda da cama, esteve um<br />
momento a olhar enternecida a má e forte catadura do<br />
chofer. José começava a impacientar -se com aquelas filigranas.<br />
Não compreendia tais ro<strong>de</strong>ios que lhe pareciam<br />
ridículos.<br />
– Despe -te!<br />
Aquela impaciência agradava -lhe e ela quis saboreá -la<br />
mais. Levantou -se s<strong>em</strong> pressa, começou a <strong>de</strong>sabotoar -se<br />
<strong>de</strong>vagar, parou e disse com meiguice:<br />
– Trago -te uma coisa.<br />
– Que é? – Fez ele logo.<br />
– Adivinha!<br />
– Dize lá <strong>de</strong> uma vez.
lima barreto<br />
Lola procurou a bolsa, abriu -a <strong>de</strong>vagar e <strong>de</strong> lá retirou a<br />
cigarreira. Foi até o leito e entregou -a ao chofer. Os olhos<br />
do hom<strong>em</strong> incendiaram -se <strong>de</strong> cupi<strong>de</strong>z; e os da mulher, ao<br />
vê -lo satisfeito, ficaram úmidos <strong>de</strong> contentamento.<br />
Continuou a <strong>de</strong>spir -se e, enquanto isso, ele não <strong>de</strong>ixava<br />
<strong>de</strong> apalpar, <strong>de</strong> abrir e fechar a cigarreira que recebera.<br />
Descalçava os sapatos quando José lhe perguntou com a<br />
sua voz dura e imperiosa:<br />
– Tens passeado muito no Pope?<br />
– Deves saber que não. Não o tenho mandado buscar e<br />
tu sabes que só saio no teu.<br />
– Não estou mais nele.<br />
– Como?<br />
– Saí da casa… Ando agora num táxi.<br />
Quando o chofer lhe disse isso, Lola quase <strong>de</strong>smaiou; a<br />
sensação que teve foi <strong>de</strong> receber uma pancada na cabeça.<br />
Pois então, aquele Deus, aquele dominador, aquele<br />
supr<strong>em</strong>o indivíduo <strong>de</strong>scera a guiar um táxi, sujo, chacoalhante,<br />
mal pintado, <strong>de</strong>sses que parec<strong>em</strong> feitos <strong>de</strong> folha <strong>de</strong><br />
flandres! 28 Então ele? Então…<br />
E aquela abundante beleza do automóvel <strong>de</strong> luxo que<br />
tão alta ela via nele, <strong>em</strong> um instante, <strong>em</strong> um segundo, <strong>de</strong><br />
todo se esvaiu. Havia internamente, entre as duas imagens,<br />
um nexo que lhe parecia indissolúvel, e o brusco<br />
rompimento perturbou -lhe completamente a representação<br />
mental e <strong>em</strong>ocional daquele hom<strong>em</strong>.<br />
Não era mais o mesmo, não era o s<strong>em</strong>i<strong>de</strong>us, ele que<br />
estava ali presente; era outro ou antes que ele era <strong>de</strong>gradado,<br />
mutilado, horrendamente mutilado. Guiando um<br />
táxi… Meu Deus!<br />
O seu <strong>de</strong>sejo era ir-se, mas, ao lhe vir esse pensamento,<br />
o José perguntou:<br />
– Vens ou não vens?<br />
48
49<br />
um e outro<br />
Quis pretextar qualquer coisa para sair; teve medo,<br />
porém, do seu orgulho masculino, do <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> seu<br />
<strong>de</strong>sejo ofendido.<br />
Deitou -se a seu lado com muita repugnância e pela última<br />
vez.
Um especialista *<br />
51<br />
A Bastos Tigre<br />
Era hábito dos dois, todas as tar<strong>de</strong>s, após o jantar, jogar<br />
uma partida <strong>de</strong> bilhar <strong>em</strong> cinquenta pontos, finda a qual<br />
iam, <strong>em</strong> pequenos passos, até ao largo da Carioca tomar<br />
café e licores, e, na mesa do botequim, trocando confidências,<br />
ficar<strong>em</strong> esperando a hora dos teatros, enquanto<br />
que, dos charutos, fumaças azuladas espiravam preguiçosamente<br />
pelo ar.<br />
Em geral, eram as conquistas amorosas o t<strong>em</strong>a da<br />
palestra; mas, às vezes; inci<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, tratavam dos<br />
negócios, do estado da praça e da cotação das apólices.<br />
Amor e dinheiro, eles juntavam b<strong>em</strong> e sabiamente.<br />
O comendador era português, tinha seus cinquenta<br />
anos, e viera para o Rio aos vinte e quatro, tendo estado<br />
antes seis no Recife. O seu amigo, o coronel Carvalho,<br />
também era português, viera, porém, aos sete para<br />
o Brasil, havendo sido no interior, logo ao chegar, caixei-<br />
* Escrito <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1904 e publicado na primeira edição do<br />
livro Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).
lima barreto<br />
ro <strong>de</strong> venda, feitor e administrador <strong>de</strong> fazenda, influência<br />
política; e, por fim, por ocasião da bolsa, especulara<br />
com proprieda<strong>de</strong>s, ficando daí <strong>em</strong> diante senhor <strong>de</strong> uma<br />
boa fortuna e da patente <strong>de</strong> coronel da Guarda Nacional.<br />
Era um plácido burguês, gordo, ventrudo, cheio <strong>de</strong> brilhantes,<br />
<strong>em</strong>pregando a sua mole ativida<strong>de</strong> na gerência <strong>de</strong><br />
uma fábrica <strong>de</strong> fósforos. Viúvo, s<strong>em</strong> filhos, levava a vida<br />
<strong>de</strong> moço rico. Frequentava cocotes; conhecia as escusas<br />
casas <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>z ‑vous, 29 on<strong>de</strong> era assíduo e consi<strong>de</strong>rado; o<br />
outro, o comendador, que era casado, <strong>de</strong>ixando, porém, a<br />
mulher só no vasto casarão do Engenho Velho a se interessar<br />
pelos namoricos das filhas, tinha a mesma vida solta<br />
do seu amigo e compadre.<br />
Gostava das mulheres <strong>de</strong> cor e as procurava com o afinco<br />
e ardor <strong>de</strong> um amador <strong>de</strong> rarida<strong>de</strong>s.<br />
À noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-<br />
-as, joeirando -as com olhos chispantes <strong>de</strong> lubricida<strong>de</strong> e,<br />
por vezes mesmo, se atrevia a seguir qualquer mais airosa<br />
pelas ruas <strong>de</strong> baixa prostituição.<br />
– A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta;<br />
é, enfim, a especiaria <strong>de</strong> requeime acre e capitoso que nós,<br />
os portugueses, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Vasco da Gama, andamos a buscar,<br />
a procurar.<br />
O coronel era justamente o contrário: só queria às<br />
estrangeiras; as francesas e italianas, bailarinas, cantoras<br />
ou simplesmente meretrizes, era o seu fraco.<br />
Entretanto havia já quinze dias, que não se encontravam<br />
no lugar aprazado, e a faltar era o comendador, a<br />
qu<strong>em</strong> o coronel sabia b<strong>em</strong> por informações do seu guarda-<br />
-livros.<br />
Ao acabar a segunda s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong>ssa ausência imprevista,<br />
o coronel, maçado e saudoso, foi procurar o amigo na<br />
sua loja à rua dos Pescadores. Lá o encontrou amável e <strong>de</strong><br />
52
53<br />
um especialista<br />
boa saú<strong>de</strong>. Explicaram -se; e entre eles ficou assentado que<br />
se veriam naquele dia, à tar<strong>de</strong>, na hora e lugar habituais.<br />
Como s<strong>em</strong>pre, jantaram fartamente e regiamente regaram<br />
o repasto com bons vinhos portugueses. Jogaram a<br />
partida <strong>de</strong> bilhar e <strong>de</strong>pois, como encarrilhados, seguiram<br />
para o café <strong>de</strong> costume no largo da Carioca.<br />
No princípio, conversaram sobre a questão das minas<br />
<strong>de</strong> Itaoca, vindo então à baila a inépcia e a <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong><br />
do governo; mas logo <strong>de</strong>pois, o coronel que “tinha a pulga<br />
atrás da orelha”, indagou do companheiro o motivo <strong>de</strong><br />
tão longa ausência.<br />
– Oh! Não te conto! Foi um “achado”, a coisa, disse o<br />
comendador, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> chupar fort<strong>em</strong>ente o charuto e soltar<br />
uma volumosa baforada; um petisco que encontrei…<br />
Uma mulata <strong>de</strong>liciosa, Chico! Só vendo o que é, disse a<br />
r<strong>em</strong>atar, estalando os beiços.<br />
– Como foi isso? inquiriu o coronel pressuroso. Como<br />
foi? Conta lá!<br />
– Assim. A última vez que estiv<strong>em</strong>os juntos, não te disse<br />
que no dia seguinte iria a bordo <strong>de</strong> um paquete 30 buscar<br />
um amigo que chegava do Norte?<br />
– Disseste -me. E daí?<br />
– Ouve. Espera. Cos diabos isto não vai a matar! Pois<br />
b<strong>em</strong>, fui a bordo. O amigo não veio… Não era b<strong>em</strong> meu<br />
amigo… Relações comerciais… Em troca…<br />
Por essa ocasião rolou um carro no calçamento. Travou<br />
<strong>em</strong> frente ao café e por ele a<strong>de</strong>ntro entrou uma gorda<br />
mulher, cheia <strong>de</strong> plumas e sedas, e para vê -la virou -se o<br />
comendador, que estava <strong>de</strong> costas, interrompendo a narração.<br />
Olhou -a e continuou <strong>de</strong>pois:<br />
– Como te dizia: não veio o hom<strong>em</strong>, mas enquanto<br />
tomava cerveja com o comissário, vi atravessar a sala uma<br />
esplêndida mulata; e tu sabes que eu…
lima barreto<br />
Deixou <strong>de</strong> fumar e com olhares canalhas sublinhou a<br />
frase magnificamente.<br />
– De indagação <strong>em</strong> indagação, soube que viera com um<br />
alferes do Exército; e murmuravam a bordo que a Alice<br />
(era seu nome, soube também) aproveitara a companhia,<br />
somente para melhor mercar aqui os seus encantos. Fazer<br />
a vida… Propositalmente, me pareceu, eu me achava ali e<br />
não perdia vaza, como tu vais ver.<br />
Dizendo isto, endireitou o corpo, alçou um tanto a<br />
cabeça, e seguiu narrando:<br />
– Saltamos juntos, pois vi<strong>em</strong>os juntos na mesma lancha<br />
– a que eu alugara. Compreen<strong>de</strong>s? E, quando <strong>em</strong>barcamos<br />
num carro, no largo do Paço, para a pensão, já<br />
éramos conhecimentos velhos; assim pois…<br />
– E o alferes?<br />
– Que alferes?<br />
– O alferes que vinha com a tua diva, filho? Já te esqueceste?<br />
– Ah! Sim! Esse saltou na lancha do Ministério da<br />
Guerra e nunca mais o vi.<br />
– Está direito. Continua lá a coisa.<br />
– E… e… On<strong>de</strong> é que estava? Hein?<br />
– Ficaste: quando ao saltar, foram para a pensão.<br />
– É isto! Fomos para a pensão Baldut, no Catete; e foi,<br />
pois, assim que me apossei <strong>de</strong> um lindo primor – uma<br />
maravilha, filho, que t<strong>em</strong> feito os meus encantos nestes<br />
quinze dias – com os raros intervalos <strong>em</strong> que me aborreço<br />
<strong>em</strong> casa, ou na loja, já se vê b<strong>em</strong>.<br />
Repousou um pouco e, retomando logo após a palavra,<br />
assim foi dizendo:<br />
– É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca<br />
vi mulata igual. Como esta, filho, n<strong>em</strong> a que conheci <strong>em</strong><br />
Pernambuco há uns vinte e sete anos! Qual! N<strong>em</strong> <strong>de</strong> lon-<br />
54
55<br />
um especialista<br />
ge! Calcula que ela é alta, esguia, <strong>de</strong> bom corpo; cabelos<br />
negros corridos, b<strong>em</strong> corridos: olhos pardos. É b<strong>em</strong> fornida<br />
<strong>de</strong> carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom!<br />
E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns<br />
lábios roxos, b<strong>em</strong> quentes… Só vendo mesmo! Só! Não<br />
se <strong>de</strong>screve.<br />
O comendador falara com um ardor <strong>de</strong>susado nele;<br />
acalorara -se e se entusiasmara <strong>de</strong>veras, a ponto <strong>de</strong> haver<br />
na sua fisionomia estranhas mutações. Por todo ele havia<br />
aspecto <strong>de</strong> um suíno, cheio <strong>de</strong> lascívia, inebriado <strong>de</strong> gozo.<br />
Os olhos arredondaram -se e diminuíram; os lábios se<br />
haviam apertado fort<strong>em</strong>ente e impelidos pra diante se<br />
juntavam ao jeito <strong>de</strong> um focinho; o rosto <strong>de</strong>stilava gordura;<br />
e, ajudado isto pelo seu físico, tudo nele era <strong>de</strong> um<br />
colossal suíno.<br />
– O que preten<strong>de</strong>s fazer <strong>de</strong>la? Dize lá.<br />
– É boa… Que pergunta! Prová -la, enfeitá -la, enfeitá -la<br />
e “lançá -la”. E é pouco?<br />
– Não! Acho até que te exce<strong>de</strong>s. Vê lá, tu!<br />
– Hein? Oh! Não! Tenho gasto pouco. Um conto e pouco…<br />
Uma miséria!<br />
Acen<strong>de</strong>u o charuto e disse subitamente, ao olhar o relógio:<br />
– Vou buscá -la <strong>de</strong> carro, porquanto vamos ao cassino,<br />
e tu me esperas lá, pois tenho um camarote.<br />
– Até já.<br />
Saindo o seu amigo, o coronel consi<strong>de</strong>rou um pouco,<br />
mandou vir água Apolináris, bebeu e saiu também.<br />
Eram oito horas da noite.<br />
Defronte ao café, o casarão <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m terceira<br />
ensombrava a praça parcamente iluminada pelos combustores<br />
<strong>de</strong> gás e por um foco elétrico ao centro. Das ruas<br />
que nela terminavam, <strong>de</strong>lgados filetes <strong>de</strong> gente saíam e
lima barreto<br />
entravam constant<strong>em</strong>ente. A praça era como um tanque<br />
a se encher e a se esvaziar equitativamente. Os bon<strong>de</strong>s da<br />
Jardim 31 s<strong>em</strong>eavam pelos lados a branca luz <strong>de</strong> seus focos<br />
e, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>em</strong> on<strong>de</strong>, um carro, um tílburi, 32 a atravessava<br />
célere.<br />
O coronel esteve algum t<strong>em</strong>po olhando o largo, preparou<br />
um novo charuto, acen<strong>de</strong>u -o, foi até à porta, mirou<br />
um e outro transeunte, olhou o céu recamado <strong>de</strong> estrelas,<br />
e, finalmente, <strong>de</strong>vagar, partiu <strong>em</strong> direção à Lapa.<br />
Quando entrou no cassino, ainda o espetáculo não<br />
havia começado.<br />
Sentou -se a um banco no jardim, serviu -se <strong>de</strong> cerveja<br />
e entrou a pensar.<br />
Aos poucos, vinham chegando os espectadores. Naquele<br />
instante entrava um. Via -se pelo acanhamento que era<br />
um estranho às usanças da casa. Esmerado no vestir, no<br />
calçar, não tinha <strong>em</strong> troca o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraço com que se<br />
anuncia o habitué. Moço, moreno, seria elegante se não<br />
fosse a estreiteza <strong>de</strong> seus movimentos. Era um visitante<br />
ocasional, recém -chegado, talvez, do interior, que procurava<br />
ali uma curiosida<strong>de</strong>, um prazer da cida<strong>de</strong>.<br />
Em seguida, entrou um senhor barbado, <strong>de</strong> maçãs<br />
salientes, rosto redondo, acobreado. Trazia cartola, e pelo<br />
ar solene, pelo olhar <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso que atirava <strong>em</strong> volta,<br />
<strong>de</strong>scobria -se nele um legislador da Ca<strong>de</strong>ia Velha, <strong>de</strong>putado,<br />
representante <strong>de</strong> algum estado do Norte, que, com<br />
certeza, há duas legislaturas influía po<strong>de</strong>rosamente nos<br />
<strong>de</strong>stinos do país com o seu resignado apoio. E assim, um a<br />
um, <strong>de</strong>pois aos magotes, foram entrando os espectadores.<br />
Ao fim, na cauda, retardados, vieram os frequentadores<br />
assíduos – pessoas variegadas <strong>de</strong> profissão e moral que<br />
com frequência blasonavam saber os nomes das cocotes,<br />
a proveniência <strong>de</strong>las e as suas excentricida<strong>de</strong>s libertinas.<br />
56
57<br />
um especialista<br />
Entre os que entravam naquele momento, entrara também<br />
o comendador e o “achado”.<br />
A primeira parte do espetáculo correra quase friamente.<br />
Todos, homens e mulheres, guardavam as maneiras<br />
convencionadas <strong>de</strong> se estar <strong>em</strong> público. Era cedo ainda.<br />
Em meio, porém, da segunda, as atitu<strong>de</strong>s mudaram.<br />
Na cena, uma <strong>de</strong>lgadinha senhora (chanteuse à diction<br />
[cantora <strong>de</strong> cabaré] – no cartaz) berrava uma cançoneta 33<br />
francesa. Os espectadores, com batidos das bengalas nas<br />
mesas, no assoalho, e com a voz mais ou menos comprometida,<br />
estribilhavam -na doidamente. O espetáculo<br />
ia no auge. Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro<br />
– um odor azedo <strong>de</strong> orgia.<br />
Centenas <strong>de</strong> charutos e cigarros a fumegar enevoavam<br />
todo ambiente.<br />
Desprendimentos do tabaco, <strong>em</strong>anações alcoólicas, e,<br />
a mais, uma fortíssima exalação <strong>de</strong> sensualida<strong>de</strong> e lubricida<strong>de</strong>,<br />
davam à sala o aspecto repugnante <strong>de</strong> uma vasta<br />
bo<strong>de</strong>ga.<br />
Mais ou menos <strong>em</strong>briagado, cada um dos espectadores<br />
tinha para com a mulher com qu<strong>em</strong> bebia gestos livres <strong>de</strong><br />
alcova. Francesas, italianas, húngaras, espanholas, essas<br />
mulheres, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro das rendas, surgiam espectrais, apagadas,<br />
lívidas como moribundas. Entretanto, ou fosse o<br />
álcool ou o prestígio <strong>de</strong> peregrinas, tinham sobre aqueles<br />
homens um misterioso ascen<strong>de</strong>nte. À esquerda, na plateia,<br />
o majestoso <strong>de</strong>putado da entrada coçava <strong>de</strong>spudoradamente<br />
a nuca da Dermalet, uma francesa; <strong>em</strong> frente o<br />
doutor Castrioto, lente <strong>de</strong> uma escola superior, babava -se<br />
todo a olhar as pernas da cantora <strong>em</strong> cena, enquanto <strong>em</strong><br />
um camarote <strong>de</strong>fronte, o juiz Siqueira apertava -se à Merce<strong>de</strong>s,<br />
uma bailarina espanhola, com o fogo <strong>de</strong> um recém-<br />
-casado à noiva.
lima barreto<br />
Um sopro <strong>de</strong> <strong>de</strong>boche percorria hom<strong>em</strong> a hom<strong>em</strong>.<br />
Dessa forma o espetáculo <strong>de</strong>senvolvia -se no mais fervoroso<br />
entusiasmo e o coronel, no camarote, <strong>de</strong> soslaio,<br />
pusera -se a observar a mulata. Era bonita <strong>de</strong> fato e elegante<br />
também. Viera com um vestido cr<strong>em</strong>e <strong>de</strong> pintas pretas,<br />
que lhe assentava magnificamente.<br />
O seu rosto harmonioso, enquadrado num magnífico<br />
chapéu <strong>de</strong> palha preta, saía firme do pescoço roliço que a<br />
blusa <strong>de</strong>cotada <strong>de</strong>ixava ver. Seus olhos curiosos, inquietos,<br />
voavam <strong>de</strong> um lado a outro e a tez <strong>de</strong> bronze novo cintilava<br />
à luz dos focos. Através do vestido se lhe adivinhavam<br />
as formas; e, por vezes, ao arfar, ela toda trepidava<br />
<strong>de</strong> volúpia…<br />
O comendador pachorrentamente assistia ao espetáculo<br />
e, fora do costume, pouco conversou. O amigo pudicamente<br />
não insistiu no exame.<br />
Quando saíram <strong>de</strong> permeio à multidão, acumulada no<br />
corredor da entrada, o coronel teve ocasião <strong>de</strong> verificar o<br />
efeito que fizera a companheira do amigo. Ficando mais<br />
atrás, pô<strong>de</strong> ir recolhendo os ditos e as observações que a<br />
passag<strong>em</strong> <strong>de</strong>les ia sugerindo a cada um.<br />
Um rapazola dissera:<br />
– Que “mulatão”!<br />
Um outro refletiu:<br />
– Esses portugueses são os <strong>de</strong>mônios para <strong>de</strong>scobrir<br />
boas mulatas. É faro. Ao passar<strong>em</strong> os dois, alguém, a qu<strong>em</strong><br />
ele não viu, maliciosamente observou:<br />
– Parec<strong>em</strong> pai e filha.<br />
E essa reflexão <strong>de</strong> pequeno alcance na boca que a proferiu<br />
calou fundo no ânimo do coronel.<br />
Os queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas,<br />
também; o ar, um não sei quê <strong>de</strong> ambos ass<strong>em</strong>elhavam-<br />
-se… Vagas s<strong>em</strong>elhanças, concluiu o coronel ao sair à rua,<br />
58
59<br />
um especialista<br />
quando uma baforada <strong>de</strong> brisa marinha lhe acariciou o<br />
rosto afogueado.<br />
Já o carro rolava rápido pela rua quieta – quietu<strong>de</strong> agora<br />
perturbada pelas vozes esquentadas dos espectadores saídos<br />
e pelas falsas risadas <strong>de</strong> suas companheiras – quando<br />
o comendador, levantando -se no estrado da carruag<strong>em</strong>,<br />
or<strong>de</strong>nou ao cocheiro que parasse no hotel, antes <strong>de</strong> tocar<br />
para a pensão. A sala sombria e pobre do hotel tinha s<strong>em</strong>pre<br />
por aquela hora uma aparência brilhante. A agitação que ia<br />
nela; as sedas roçagantes e os chapéus vistosos das mulheres;<br />
a profusão <strong>de</strong> luzes, o irisado das plumas, os perfumes<br />
requintados que voavam pelo ambiente transmudavam -na<br />
<strong>de</strong> sua habitual fisionomia pacata e r<strong>em</strong>ediada. As pequenas<br />
mesas, pejadas <strong>de</strong> pratos e garrafas, estavam todas elas<br />
ocupadas. Em cada, uma ou duas mulheres sentavam -se,<br />
seguidas <strong>de</strong> um ou dois cavalheiros. Sílabas breves do francês,<br />
sons guturais do espanhol, dulçorosas terminações<br />
italianas, chocavam -se, brigavam.<br />
Do português nada se ouvia, parecia que se escon<strong>de</strong>ra<br />
<strong>de</strong> vergonha.<br />
Alice, o comendador e o coronel, sentaram -se a uma<br />
mesa redonda <strong>em</strong> frente à entrada. A ceia foi lauta e abundante.<br />
À sobr<strong>em</strong>esa, os três convivas repentinamente animados,<br />
puseram -se a conversar com calor. A mulata não<br />
gostara do Rio; preferia o Recife. Lá sim! O céu era outro; as<br />
comidas tinham outro sabor, melhor e mais quente. Qu<strong>em</strong><br />
não se recordaria s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> uma frigi<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> camarões<br />
com maturins 34 ou <strong>de</strong> um bom feijão com leite <strong>de</strong> coco?<br />
Depois, mesmo a cida<strong>de</strong> era mais bonita; as pontes, os<br />
rios, o teatro, as igrejas.<br />
E os bairros então? A Madalena, Olinda… No Rio, ela<br />
concordava, havia mais povo, mais dinheiro; mas Recife<br />
era outra coisa, era tudo…
lima barreto<br />
– Você t<strong>em</strong> razão, disse o comendador; Recife é bonito,<br />
e muito mais…<br />
– O senhor, já esteve lá?<br />
– Seis anos; filha, seis anos; e levantou a mão esquerda à<br />
altura dos olhos, correu -a pela testa, contornou com ela a<br />
cabeça, <strong>de</strong>scansou -a afinal na perna e acrescentou: comecei<br />
lá minha carreira comercial e tenho muitas sauda<strong>de</strong>s.<br />
On<strong>de</strong> você morava?<br />
– Ultimamente à rua da Penha, mas nasci na <strong>de</strong> João <strong>de</strong><br />
Barro, perto do hospital <strong>de</strong> Santa Águeda…<br />
– Morei lá também, disse ele distraído.<br />
– Criei -me pelas bandas <strong>de</strong> Olinda, continuou Alice, e<br />
por morte <strong>de</strong> minha mãe vim para a casa do doutor Hil<strong>de</strong>brando,<br />
colocada pelo juiz…<br />
– Há muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.<br />
– Há oito anos quase, respon<strong>de</strong>u ela.<br />
– Há muito t<strong>em</strong>po, refletiu o coronel; e logo perguntou:<br />
que ida<strong>de</strong> tens?<br />
– Vinte e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos <strong>de</strong>zoito.<br />
Durante esses oito anos tenho rolado por esse mundo<br />
<strong>de</strong> Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando<br />
<strong>de</strong> mão <strong>em</strong> mão, ora nesta, ora naquela, a minha<br />
vida t<strong>em</strong> sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido<br />
três homens que me <strong>de</strong>ss<strong>em</strong> alguma coisa; os <strong>outros</strong> Deus<br />
me livre <strong>de</strong>les! – só quer<strong>em</strong> meu corpo e o meu trabalho.<br />
Nada me davam, espancavam -me, maltratavam -me.<br />
Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento<br />
<strong>de</strong> Polícia, ele chegou <strong>em</strong> casa <strong>em</strong>briagado, tendo jogado e<br />
perdido tudo, queria obrigar -me a lhe dar trinta mil -réis,<br />
fosse como fosse.<br />
Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas<br />
que eu lavava só chegava naquele mês para pagar a casa, ele<br />
fez um escarcéu. Descompôs -me. Ofen<strong>de</strong>u -me. Por fim,<br />
60
61<br />
um especialista<br />
cheio <strong>de</strong> fúria agarrou -me pelo pescoço, esbofeteou -me,<br />
<strong>de</strong>itou -me <strong>em</strong> terra, <strong>de</strong>ixando -me s<strong>em</strong> fala e a tratar -me<br />
no hospital. Um outro – um malvado <strong>em</strong> cujas mãos não<br />
sei como fui cair – certa vez, altercamos, e <strong>de</strong>u -me uma<br />
facada do lado esquerdo, da qual ainda tenho sinal!<br />
Ah! T<strong>em</strong> sido um tormento… B<strong>em</strong> me dizia minha<br />
mãe: toma cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses<br />
homens só quer<strong>em</strong> nosso corpo por segundos, <strong>de</strong>pois vão-<br />
-se e nos <strong>de</strong>ixam um filho nos quartos, quando não nos<br />
roubam como fez teu pai comigo…<br />
– Como?… Como foi isso? interrogou admirado o<br />
coronel.<br />
– Não sei b<strong>em</strong> como foi, retrucou ela. Minha mãe me<br />
contava que ela era honesta; que vivia na Cida<strong>de</strong> do Cabo<br />
com seus pais, <strong>de</strong> cuja companhia fora seduzida por um<br />
caixeiro português que lá aparecera e com qu<strong>em</strong> veio para<br />
o Recife. Nasci <strong>de</strong>les e dois meses ou mais <strong>de</strong>pois do meu<br />
nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança (um<br />
sítio, uma vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por<br />
morte <strong>de</strong> seus pais.<br />
Vindo <strong>de</strong> receber a herança, partiu dias <strong>de</strong>pois para<br />
aqui e nunca mais ela soube notícias <strong>de</strong>le, n<strong>em</strong> do dinheiro,<br />
que, vendido o herdado, lhe ficara dos meus avós.<br />
– Como se chamava teu pai? indagou o comendador<br />
com estranho entono. 35<br />
– Não me l<strong>em</strong>bro b<strong>em</strong>; era Mota ou Costa… Não sei…<br />
Mas o que é isso? disse ela <strong>de</strong> repente, olhando o comendador.<br />
Que t<strong>em</strong> o senhor?<br />
– Nada… Nada… retrucou o comendador experimentando<br />
um sorriso. Você não se l<strong>em</strong>bra das feições <strong>de</strong>sse<br />
hom<strong>em</strong>? interrogou ele.<br />
– Não me l<strong>em</strong>bra, não. Que interesse! Qu<strong>em</strong> sabe que<br />
o senhor não é meu pai? gracejou ela.
lima barreto<br />
O gracejo caiu <strong>de</strong> chofre naqueles dois espíritos tensos,<br />
como uma ducha frigidíssima. O coronel olhava o comendador<br />
que tinha as faces <strong>em</strong> brasa; este, àquele; por fim<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns segundos o coronel querendo dar uma<br />
saída à situação, simulou rir -se e perguntou:<br />
– Você nunca mais soube alguma coisa… qualquer coisa?<br />
Hein?<br />
– Nada… Que me l<strong>em</strong>bre, nada… Ah! Espere… Foi…<br />
É. Sim! Seis meses antes da morte <strong>de</strong> minha mãe, ouvi<br />
dizer <strong>em</strong> casa, não sei por qu<strong>em</strong>, que ele estava no Rio<br />
implicado num caso <strong>de</strong> moeda falsa. É o que me l<strong>em</strong>bro,<br />
disse ela.<br />
– O quê? Quando foi isso? indagou pressuroso o<br />
comendador.<br />
A mulata, que ainda não se havia b<strong>em</strong> apercebido<br />
do estado do comendador, respon<strong>de</strong>u ingenuamente: –<br />
Mamãe morreu <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1893, por ocasião da revolta…<br />
Ouvi contar essa história <strong>em</strong> fevereiro. É isso.<br />
O comendador não per<strong>de</strong>ra uma sílaba; e, com a boca<br />
meio aberta, parecia querê -las engolir uma a uma; com as<br />
faces congestionadas e os olhos esbugalhados, a sua fisionomia<br />
estava horrível.<br />
O coronel e a mulata, extáticos, estuporados,<br />
entreolhavam -se.<br />
Durante um segundo nada se lhes antolhava fazer.<br />
Ficaram como idiotas; <strong>em</strong> breve, porém, o comendador,<br />
num supr<strong>em</strong>o esforço, disse com voz sumida:<br />
– Meu Deus! É minha filha!<br />
62
Como o “hom<strong>em</strong>” chegou *<br />
Deus está morto; a sua pieda<strong>de</strong><br />
pelos homens matou ‑o.<br />
I<br />
63<br />
Nietzsche<br />
A polícia da República, como toda a gente sabe, é paternal<br />
e compassiva no tratamento das pessoas humil<strong>de</strong>s que<br />
<strong>de</strong>la necessitam; e s<strong>em</strong>pre, quer se trate <strong>de</strong> humil<strong>de</strong>s, quer<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos, a velha instituição cumpre religiosamente a<br />
lei. V<strong>em</strong> -lhe daí o respeito que aos políticos os seus <strong>em</strong>pregados<br />
tributam e a procura que ela merece <strong>de</strong>sses homens,<br />
quase s<strong>em</strong>pre interessados no cumprimento das leis que<br />
discut<strong>em</strong> e votam.<br />
O caso que vamos narrar não chegou ao conhecimento<br />
do público, certamente <strong>de</strong>vido à pouca atenção que lhe<br />
<strong>de</strong>ram os repórteres; e é pena, pois, se assim não fosse,<br />
* Escrito <strong>em</strong> 18 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1914 e publicado na primeira edição<br />
do livro Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).
lima barreto<br />
teriam nele encontrado pretexto para clichês b<strong>em</strong> macabramente<br />
mortuários que alegrass<strong>em</strong> as páginas <strong>de</strong> suas<br />
folhas volantes.<br />
O <strong>de</strong>legado que funcionou na questão talvez não tivesse<br />
notado o gran<strong>de</strong> alcance <strong>de</strong> sua obra; e tanto isso é <strong>de</strong><br />
admirar quanto as consequências do fato concordam com<br />
luxuriantes sorites 36 <strong>de</strong> um filósofo s<strong>em</strong>pre capaz <strong>de</strong> sugerir,<br />
do pé para a mão, novíssimas estéticas aos necessitados<br />
<strong>de</strong> apresentá -las ao público b<strong>em</strong> informado.<br />
Sabedores <strong>de</strong> acontecimento <strong>de</strong> tal monta, não nos era<br />
possível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> narrá -lo com alguma minudência, para<br />
edificação dos <strong>de</strong>legados passados, presentes e futuros.<br />
Naquela manhã, tinha a <strong>de</strong>legacia um movimento <strong>de</strong>susado.<br />
Passavam -se s<strong>em</strong>anas s<strong>em</strong> que houvesse uma simples<br />
prisão, uma pequena admoestação. A circunscrição era<br />
pacata e or<strong>de</strong>ira. Pobre, não havia furtos; s<strong>em</strong> comércio,<br />
não havia gatunos; s<strong>em</strong> indústria, não havia vagabundos,<br />
graças à sua extensão e aos capoeirões que lá havia; os que<br />
não tinham domicílio arranjavam -no facilmente <strong>em</strong> choças<br />
ligeiras sobre chãos <strong>de</strong> <strong>outros</strong> donos mal conhecidos.<br />
Os regulamentos policiais não encontravam <strong>em</strong>prego;<br />
os funcionários do distrito viviam <strong>de</strong>scansados e, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sconfiança,<br />
olhavam a população do lugarejo. Compunha-<br />
-se o <strong>de</strong>stacamento <strong>de</strong> um cabo e três soldados; todos os<br />
quatro, gente simples, esquecida <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> sustentáculos<br />
do Estado.<br />
O comandante, um cabo gordo que falava arrastando a<br />
voz, com a cantante preguiça <strong>de</strong> um carro <strong>de</strong> bois a chiar,<br />
habitava com a família um rancho próximo e plantava<br />
ao redor melancias, colhendo as <strong>de</strong> polpa b<strong>em</strong> rosada e<br />
doce, pelo verão inflexível da nossa terra. Um dos soldados<br />
tecia re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pescaria, chumbava -as com cuidado para<br />
dar cerco às tainhas; e era <strong>de</strong> vê -las saltar por cima do fru-<br />
64
65<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
to <strong>de</strong> sua indústria com a agilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acrobatas, agilida<strong>de</strong><br />
surpreen<strong>de</strong>nte naqueles entes s<strong>em</strong> mãos e pernas diferenciadas.<br />
Um outro camarada matava o ócio pescando <strong>de</strong><br />
caniço e quase nunca pescava crocorocas, pois diante do<br />
mar, da sua infinita gran<strong>de</strong>za, distraía -se, l<strong>em</strong>brando -se<br />
das quadrinhas que vinha compondo <strong>em</strong> louvor <strong>de</strong> uma<br />
beleza local.<br />
Tinham também os inspetores <strong>de</strong> polícia essa concepção<br />
idílica, e não se aborreciam no morno vilarejo. Conceição,<br />
um <strong>de</strong>les, fabricava carvão e os plantões os fazia<br />
junto às caieiras, b<strong>em</strong> protegidas por cruzes toscas para<br />
que o tinhoso não entrasse nelas e fabricasse cinza <strong>em</strong><br />
vez do combustível das engoma<strong>de</strong>iras. Um seu colega, <strong>de</strong><br />
nome Nunes, aborrecido com o ar elísico daquela <strong>de</strong>legacia,<br />
imaginou quebrá -lo e lançou o jogo do bicho. Era uma<br />
coisa inocente: o mínimo da pule, um vintém; o máximo,<br />
duzentos réis, mas, ao chegar à riqueza do lugar, aí pelo<br />
t<strong>em</strong>po do caju, quando o sol saudoso da tar<strong>de</strong> dourava<br />
as areias e os frutos amarelos e vermelhos mais se intumesciam<br />
nos cajueiros frágeis, jogavam -se pules <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
tostões.<br />
Vivia tudo <strong>em</strong> paz; o <strong>de</strong>legado não aparecia. Se o fazia<br />
<strong>de</strong> mês <strong>em</strong> mês, <strong>de</strong> s<strong>em</strong>estre <strong>em</strong> s<strong>em</strong>estre, <strong>de</strong> ano <strong>em</strong> ano,<br />
logo perguntava: houve alguma prisão? Respondiam<br />
alvissareiros: não, doutor; e a fronte do doutor se anuviava,<br />
como se sentisse naquele <strong>de</strong>suso do xadrez a morte<br />
próxima do Estado, da Civilização e do Progresso.<br />
De on<strong>de</strong> <strong>em</strong> on<strong>de</strong>, porém, havia um caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>floramento<br />
e este era o <strong>de</strong>lito, o crime, a infração do lugarejo–<br />
um crime, uma infração, um <strong>de</strong>lito muito próprio do<br />
Paraíso, que o t<strong>em</strong>po, porém, levou a ser julgado pelos<br />
policiais, quando, nas primeiras eras das nossas origens<br />
bíblicas, o fora pelo próprio Deus.
lima barreto<br />
Em geral, os inspetores por eles mesmos resolviam o<br />
caso; davam paternos conselhos suasórios e a lei sagrava<br />
o que já havia sido abençoado pelas prateadas folhas das<br />
imbaúbas, nos capoeirões cerrados.<br />
Não quis, porém, o <strong>de</strong>legado <strong>de</strong>ixar que os seus subordinados<br />
liquidass<strong>em</strong> aquele caso. A paciente era filha do<br />
Sambabaia, chefe político do partido do senador Melaço;<br />
e o agente era eleitor do partido contrário a Melaço. O programa<br />
do partido <strong>de</strong> Melaço era não fazer coisa alguma<br />
e o do contrário tinha o mesmo i<strong>de</strong>al; ambos, porém, se<br />
diziam adversários <strong>de</strong> morte e essa oposição, refletindo -se<br />
no caso, <strong>em</strong>baraçava sobr<strong>em</strong>odo o sub<strong>de</strong>legado.<br />
Interrogado, confessara -se o agente pronto a reparar o<br />
mal; e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito, a paciente <strong>de</strong>ra a tal respeito a sua<br />
indispensável opinião.<br />
A autorida<strong>de</strong>, entretanto, hesitava, por causa da incompatibilida<strong>de</strong><br />
política do casal. As audiências se sucediam e<br />
aquela era já a quarta. Estavam os soldados atônitos com<br />
tanta <strong>de</strong>mora, provinda <strong>de</strong> não saber b<strong>em</strong> o <strong>de</strong>legado se,<br />
unindo mais uma vez o par, não iria o caso <strong>de</strong>sgostar<br />
Melaço e mesmo o seu adversário Jati – ambos senadores<br />
po<strong>de</strong>rosos, aquele do governo e este da oposição; e,<br />
<strong>de</strong>sgostar qualquer <strong>de</strong>les punha <strong>em</strong> perigo o seu <strong>em</strong>prego<br />
porque, quase s<strong>em</strong>pre entre nós, a oposição passa a ser<br />
governo e o governo oposição instantaneamente. O consentimento<br />
dos rapazes não bastava ao caso; era preciso,<br />
além, uma reconciliação ou uma simples a<strong>de</strong>são política.<br />
Naquela manhã, o <strong>de</strong>legado tomava mais uma vez o<br />
<strong>de</strong>poimento do agente, inquirindo -o <strong>de</strong>sta forma:<br />
– Já se resolveu?<br />
– Pois não, doutor. Estou inteiramente a seu dispor…<br />
– Não é b<strong>em</strong> ao meu. Quero saber se o senhor t<strong>em</strong> tenção?<br />
66
67<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
– De que, doutor? De casar? Pois não, doutor.<br />
– Não é <strong>de</strong> casar… Isto já sei… É…<br />
– Mas <strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser então, doutor?<br />
– De entrar para o partido do doutor Melaço.<br />
– Eu s<strong>em</strong>pre, doutor, fui pelo doutor Jati. Não posso…<br />
– Que t<strong>em</strong> uma coisa com a outra? O senhor divi<strong>de</strong><br />
o seu voto: a meta<strong>de</strong> dá para um e a outra meta<strong>de</strong> para<br />
outro. Está aí!<br />
– Mas como?<br />
– Ora! O senhor saberá arranjar as coisas da melhor<br />
forma; e, se o fizer com habilida<strong>de</strong>, ficarei contente e o<br />
senhor será feliz, porquanto po<strong>de</strong> arranjar tanto com um<br />
como com outro, conforme andar a política no próximo<br />
quatriênio, um lugar <strong>de</strong> guarda dos mangues.<br />
– Não há vaga, doutor.<br />
– Qual! Há s<strong>em</strong>pre vaga, meu caro. O Felizardo não se<br />
t<strong>em</strong> querido alistar, não nasceu aqui, é <strong>de</strong> fora, é “estrangeiro”;<br />
e, <strong>de</strong>ssa maneira, não po<strong>de</strong> continuar a fiscalizar<br />
os mangues. É vaga certa. O senhor a<strong>de</strong>re ou antes: divi<strong>de</strong><br />
a votação?<br />
– Divido, doutor.<br />
– Pois então…<br />
Por aí, um dos inspetores veio avisar <strong>de</strong> que o guarda<br />
civil <strong>de</strong> nome Hane lhe queria falar. O doutor Cunsono<br />
estr<strong>em</strong>eceu. Era coisa do chefe, do geral lá <strong>de</strong> baixo; e,<br />
<strong>de</strong> relance, viu o seu hábil trabalho <strong>de</strong> harmonizar Jati e<br />
Melaço perdido inteiramente, talvez por causa <strong>de</strong> não ter,<br />
naquele ano, efetuado sequer uma prisão. Estava na rua,<br />
suspen<strong>de</strong>u o interrogatório e veio receber o visitador com<br />
muita angústia no coração. Que seria?<br />
– Doutor, foi logo dizendo o guarda, t<strong>em</strong>os um louco.<br />
Diante daquele caso novo, o <strong>de</strong>legado quis refletir, mas<br />
logo o guarda <strong>em</strong>endou:
lima barreto<br />
– O doutor Silly…<br />
Era assim o nome do ajudante do geral inacessível; e<br />
<strong>de</strong>le, os <strong>de</strong>legados têm mais medo do que do chefe supr<strong>em</strong>o<br />
todo -po<strong>de</strong>roso.<br />
Hane continuou:<br />
– O doutor Silly mandou dizer que o senhor o pren<strong>de</strong>sse<br />
e o enviasse à central.<br />
Cunsono pensou b<strong>em</strong> que esse negócio <strong>de</strong> reclusão <strong>de</strong><br />
loucos é por <strong>de</strong>mais grave e <strong>de</strong>licado e não era propriamente<br />
da sua competência fazê -lo, a menos que foss<strong>em</strong><br />
s<strong>em</strong> eira n<strong>em</strong> beira ou ameaçass<strong>em</strong> a segurança pública.<br />
Pediu a Hane que o esperasse e foi consultar o escrivão.<br />
Este serventuário vivia ali <strong>de</strong> mau humor. O sossego<br />
da <strong>de</strong>legacia o aborrecia, não porque gostasse da agitação<br />
pela agitação, mas pelo simples fato <strong>de</strong> não perceber<br />
<strong>em</strong>olumentos ou quer que seja, tendo que viver <strong>de</strong> seus<br />
vencimentos. Aconselhou -se com ele o <strong>de</strong>legado e ficou<br />
perfeitamente informado do que dispunham a lei e a praxe.<br />
Mas Silly…<br />
Voltando à sala, o guarda reiterou as or<strong>de</strong>ns do auxiliar,<br />
contando também que o louco estava <strong>em</strong> Manaus. Se<br />
o próprio Silly não o mandava buscar, elucidou o guarda,<br />
era porque competia a Cunsono <strong>de</strong>ter o “hom<strong>em</strong>”,<br />
porquanto a sua <strong>de</strong>legacia tinha costas do oceano e <strong>de</strong><br />
Manaus se vinha por mar.<br />
– É muito longe, objetou o <strong>de</strong>legado.<br />
O guarda teve o cuidado <strong>de</strong> explicar que Silly já vira a<br />
distância no mapa e era b<strong>em</strong> reduzida: obra <strong>de</strong> palmo e<br />
meio. Cunsono perguntou ainda:<br />
– Qual a profissão do “hom<strong>em</strong>”?<br />
– É <strong>em</strong>pregado da <strong>de</strong>legacia fiscal.<br />
– T<strong>em</strong> pai?<br />
– T<strong>em</strong>.<br />
68
69<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
Pensou o <strong>de</strong>legado que competia ao pai o pedido <strong>de</strong><br />
internação, mas o guarda adivinhou -lhe o pensamento<br />
e afirmou:<br />
– Eu conheço muito e meu primo é cunhado <strong>de</strong>le.<br />
Estava já Cunsono irritado com as objeções do escrivão<br />
e <strong>de</strong>sejava servir a Silly, tanto mais que o caso <strong>de</strong>safiava a<br />
sua competência policial. A lei era ele; e mandou fazer o<br />
expediente.<br />
Após o que, tratou Cunsono <strong>de</strong> ultimar o enlace <strong>de</strong><br />
Melaço e Jati, por intermédio do casamento da filha do<br />
Sambabaia. Tudo ficou assentado da melhor forma; e, <strong>em</strong><br />
pequena hora, voltava o <strong>de</strong>legado para as ruas on<strong>de</strong> não<br />
policiava, satisfeito consigo mesmo e com a sua tríplice<br />
obra, pois não convém esquecer a sua caridosa intervenção<br />
no caso do louco <strong>de</strong> Manaus.<br />
Tomava a condução que <strong>de</strong>via trazer à cida<strong>de</strong>, quando<br />
a l<strong>em</strong>brança do meio <strong>de</strong> transporte do <strong>de</strong>mentado lhe<br />
foi presente. Ao guarda civil, ao representante <strong>de</strong> Silly na<br />
zona, perguntou por esse instante:<br />
– Como há <strong>de</strong> vir o “sujeito”?<br />
O guarda, s<strong>em</strong> aten<strong>de</strong>r diretamente à pergunta, disse:<br />
– É… É, doutor; ele está muito furioso.<br />
Cunsono pensou um instante, l<strong>em</strong>brou -se dos seus<br />
estudos e acudiu:<br />
– Talvez um couraçado… O “Minas Gerais” não serve?<br />
Vou requisitá -lo.<br />
Hane, que tinha prática do serviço e conhecimento dos<br />
compassivos processos policiais, refletiu:<br />
– Doutor: não é preciso tanto. O “carro -forte” basta<br />
para trazer o “hom<strong>em</strong>”.<br />
Concordou Cunsono e olhou as alturas um instante<br />
s<strong>em</strong> notar as nuvens que vagavam s<strong>em</strong> rumo certo, entre<br />
o céu e a terra.
lima barreto<br />
II<br />
Silly, o doutor Silly, b<strong>em</strong> como Cunsono, graças à prática<br />
que tinham do oficio, dispunham da liberda<strong>de</strong> dos<br />
seus pares com a maior facilida<strong>de</strong>. Tinham substituído os<br />
graves exames íntimos provocados pelos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> seus<br />
cargos, as perigosas responsabilida<strong>de</strong>s que lhes são próprias,<br />
pelo automático ato <strong>de</strong> uma assinatura rápida. Era<br />
um contínuo trazer um oficio, logo, s<strong>em</strong> b<strong>em</strong> pensar no<br />
que faziam, s<strong>em</strong> lê -lo até, assinavam e ia com essa assinatura<br />
um sujeito para a ca<strong>de</strong>ia, on<strong>de</strong> ficava aguardando que<br />
se l<strong>em</strong>brasse <strong>de</strong> retirá -lo <strong>de</strong> lá a sua mão distraída e ligeira.<br />
Assim era; e foi s<strong>em</strong> dificulda<strong>de</strong> que aten<strong>de</strong>u ao pedido<br />
<strong>de</strong> Cunsono no que toca ao carro -forte. Prontamente <strong>de</strong>u<br />
as or<strong>de</strong>ns para que fosse fornecida a seu colega a masmorra<br />
ambulante, pior do que masmorra, do que solitária, pois<br />
nessas prisões sente -se ainda a algi<strong>de</strong>z da pedra, alguma<br />
coisa ainda <strong>de</strong> meiguice <strong>de</strong> sepultura, mas ainda assim<br />
meiguice; mas, no tal carro feroz, é tudo ferro, há inexorável<br />
antipatia do ferro na cabeça, ferro nos pés, aos lados<br />
uma igaçaba <strong>de</strong> ferro <strong>em</strong> que se v<strong>em</strong> sentado, imóvel, e<br />
para a qual se entra pelo próprio pé. É blindada e qu<strong>em</strong><br />
vai nela, levado aos trancos e barrancos <strong>de</strong> seu respeitável<br />
peso e do calçamento das vias públicas, t<strong>em</strong> a impressão<br />
<strong>de</strong> que se lhe quer poupar a morte por um bombar<strong>de</strong>io <strong>de</strong><br />
grossa artilharia para ser <strong>em</strong>palado aos olhos <strong>de</strong> um sultão.<br />
Um requinte <strong>de</strong> potentado asiático.<br />
Essa prisão <strong>de</strong> Calistenes, 37 blindada, chapeada, couraçada,<br />
foi posta <strong>em</strong> movimento; e saiu, abalando o calçamento,<br />
a chocalhar ferragens, a trovejar pelas ruas afora<br />
<strong>em</strong> busca <strong>de</strong> um inofensivo.<br />
O “hom<strong>em</strong>”, como diz<strong>em</strong> eles, era um ente pacato, lá<br />
dos confins <strong>de</strong> Manaus, que tinha a mania da Astronomia<br />
70
71<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
e abandonara, não <strong>de</strong> todo, mas quase totalmente, a terra<br />
pelo céu inacessível. Vivia com o pai velho nos arrabal<strong>de</strong>s<br />
da cida<strong>de</strong> e construíra na chácara <strong>de</strong> sua residência<br />
um pequeno observatório, on<strong>de</strong> montou lunetas que lhe<br />
davam pasto à inocente mania. Julgando insuficientes o<br />
olhar e as lentes, para chegar ao perfeito conhecimento da<br />
Al<strong>de</strong>barã 38 longínqua, atirou se ao cálculo, à inteligência<br />
pura, à mat<strong>em</strong>ática e a estudar com afinco e fúria <strong>de</strong> um<br />
doido ou <strong>de</strong> um gênio.<br />
Em uma terra inteiramente entregue à chatinag<strong>em</strong> 39 e<br />
à veniaga, 40 Fernando foi tomando a fama <strong>de</strong> louco, e não<br />
era ela s<strong>em</strong> algum motivo. Certos gestos, certas <strong>de</strong>spreocupações<br />
e mesmo outras manifestações mais palpáveis<br />
pareciam justificar o julgamento comum; entretanto, ele<br />
vivia b<strong>em</strong> com o pai e cumpria os seus <strong>de</strong>veres razoavelmente.<br />
Porém, parentes oficiosos e <strong>outros</strong> longínquos a<strong>de</strong>rentes<br />
enten<strong>de</strong>ram curá -lo, como se se curass<strong>em</strong> assomos<br />
<strong>de</strong> alma e anseios <strong>de</strong> pensamento.<br />
Não lhes vinha tal propósito <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong> inata, mas<br />
<strong>de</strong> estultice 41 congênita, juntamente com a comiseração<br />
explicável <strong>em</strong> parentes. Julgavam que o ser <strong>de</strong>scompassado<br />
envergonhava a família e esse julgamento era reforçado<br />
pelos cochichos que ouviam <strong>de</strong> alguns homens esforçados<br />
por parecer<strong>em</strong> inteligentes.<br />
O mais célebre <strong>de</strong>les era o doutor Barrado, um catita 42<br />
do lugar, cheiroso e apurado no corte das calças. Possuía<br />
esse doutor a obsessão das coisas extraordinárias, transcen<strong>de</strong>ntes,<br />
s<strong>em</strong> -par, originais; e, como sabia Fernando<br />
simples e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso pelos mandões, supôs que ele, com<br />
esse procedimento, censurava Barrado por <strong>de</strong>mais mesureiro<br />
com os magnates. Começou, então, Barrado a dizer<br />
que Fernando não sabia astronomia; ora, este último não<br />
afirmava s<strong>em</strong>elhante coisa. Lia, estudava e contava o que
lima barreto<br />
lia, mais ou menos o que aquele fazia nas salas, com os<br />
ditos e opiniões dos <strong>outros</strong>.<br />
Houve qu<strong>em</strong> o <strong>de</strong>smentisse; teimava, no entanto, Barrado<br />
no propósito. Enten<strong>de</strong>u também <strong>de</strong> estudar uma<br />
astronomia e b<strong>em</strong> oposta à <strong>de</strong> Fernando: a astronomia do<br />
centro da terra. O seu compêndio favorito era A morgadi‑<br />
nha <strong>de</strong> Val ‑Flor e os livros auxiliares: A dama <strong>de</strong> Monso‑<br />
reau e O rei dos grilhetas, numa biblioteca <strong>de</strong> Herschell. 43<br />
Com isto, e cantando, e espalhando que Fernando<br />
vivia nas tascas com vagabundos, auxiliado pelo poeta<br />
Machino, o jornalista Cosmético e o antropologista<br />
Tucolas, que fazia sábias mensurações nos crânios das<br />
formigas, conseguiu r<strong>em</strong>over os simplórios parentes <strong>de</strong><br />
Fernando, e foi bastante que, <strong>de</strong> parente para conhecido,<br />
<strong>de</strong> conhecido para Hane, <strong>de</strong> Hane, para Silly e Cunsono,<br />
as coisas se enca<strong>de</strong>ass<strong>em</strong> e fosse obtida a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> partida<br />
daquela fortaleza couraçada, roncando pelas ruas,<br />
chocalhando ferragens, abalando calçadas, para ponto<br />
tão longínquo.<br />
Quando, porém, o carro chegou à praça mais próxima,<br />
foi que o cocheiro l<strong>em</strong>brou -se <strong>de</strong> que não lhe tinham<br />
ensinado on<strong>de</strong> ficava Manaus. Voltou e Silly, com a energia<br />
<strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong> britânica, <strong>de</strong>terminou que fretass<strong>em</strong> uma<br />
falua 44 e foss<strong>em</strong> a reboque do primeiro paquete.<br />
Sabedor do caso e como tivesse conhecimento <strong>de</strong> que<br />
Fernando era <strong>de</strong>safeto do po<strong>de</strong>roso chefe político Sofonias,<br />
Barrado que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, lhe queria ser agradável,<br />
calou o seu <strong>de</strong>speito, apresentou -se pronto para auxiliar<br />
a diligência. Esse chefe político dispunha <strong>de</strong> um prestígio<br />
imenso e nada entendia <strong>de</strong> astronomia; mas, naquele<br />
t<strong>em</strong>po, era a ciência da moda e tinham <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração<br />
os m<strong>em</strong>bros da Socieda<strong>de</strong> Astronômica, da qual<br />
Barrado queria fazer parte.<br />
72
73<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
Sofonias influía nas eleições da Socieda<strong>de</strong>, como <strong>em</strong><br />
todas as outras, e podia <strong>de</strong>terminar que Barrado fosse<br />
escolhido. Andava, portanto, o doutor captando a boa<br />
vonta<strong>de</strong> da potente influência eleitoral, esperando obter,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eleito, o lugar <strong>de</strong> Diretor Geral das Estrelas <strong>de</strong><br />
Segunda Gran<strong>de</strong>za.<br />
Não é <strong>de</strong> estranhar, pois, que aceitasse tão árdua<br />
incumbência e, com Hane e carrião, 45 veio até à praia; mas<br />
não havia canoa, caíque, bote, jangada, catraia, chalana,<br />
falua, lancha, calunga, poveiro, peru, macacuano, pontão,<br />
alvarenga, saveiro que os quisesse levar a tais alturas.<br />
Hane <strong>de</strong>sesperava, mas o companheiro, l<strong>em</strong>brando -se<br />
dos seus conhecimentos <strong>de</strong> astronomia, indicou um alvitre:<br />
– O carro po<strong>de</strong> ir boiando.<br />
– Como, doutor? É <strong>de</strong> ferro… muito pesado, doutor!<br />
– Qual o quê! O “Minas”, o “Aragón”, o “São Paulo” não<br />
boiam? Ele vai, sim!<br />
– E os burros?<br />
– Irão a nadar, rebocando o carro.<br />
Curvou -se o guarda diante do saber do doutor e<br />
<strong>de</strong>ixou -lhe a missão confiada, conforme as or<strong>de</strong>ns terminantes<br />
que recebera.<br />
A calistênica entrou pela água a<strong>de</strong>ntro, consoante<br />
as or<strong>de</strong>ns promanadas do saber <strong>de</strong> Barrado e, logo que<br />
achou água suficiente, foi ao fundo com gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo<br />
pela hidrostática do doutor. Os burros, que tinham s<strong>em</strong>pre<br />
protestado contra a física do jov<strong>em</strong> sábio, partiram os<br />
arreios e salvaram -se; e graças a uma po<strong>de</strong>rosa cábrea, 46<br />
pô<strong>de</strong> a almanjarra 47 ser salva também.<br />
Havia poucos paquetes para Manaus e o t<strong>em</strong>po urgia.<br />
Barrado tinha or<strong>de</strong>m franca <strong>de</strong> fazer o que quisesse. Não<br />
hesitou e, energicamente, fez reparar as avarias e tratou<br />
<strong>de</strong> <strong>em</strong>barcar num paquete todo o tr<strong>em</strong>, fosse como fosse.
lima barreto<br />
Ao <strong>em</strong>barcá -lo, porém, surgiu uma dúvida entre ele e<br />
o pessoal <strong>de</strong> bordo. Teimava Barrado que o carro merecia<br />
ir para um camarote <strong>de</strong> primeira classe, teimavam os<br />
marítimos que isso não era próprio, tanto mais que ele não<br />
indicava o lagar dos burros.<br />
Era difícil essa questão da colocação dos burros. Os<br />
homens <strong>de</strong> bordo queriam que foss<strong>em</strong> para o interior do<br />
navio; mas, objetava o doutor:<br />
– Morr<strong>em</strong> asfixiados, tanto mais que são burros e mesmo<br />
por isso.<br />
De comum acordo, resolveram telegrafar a Silly para<br />
resolver a curiosa contenda. Não tardou viesse a resposta,<br />
que foi clara e precisa: “Burros s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> cima. Silly”.<br />
Opinião como esta, tão sábia e tão verda<strong>de</strong>ira, tão cheia<br />
<strong>de</strong> filosofia e sagacida<strong>de</strong> da vida, aliviou todos os corações<br />
e abraços fraternais foram trocados entre conhecidos e<br />
inimigos, entre amigos e <strong>de</strong>sconhecidos.<br />
A sentença era <strong>de</strong> Salomão e houve mesmo qu<strong>em</strong> quisesse<br />
aproveitar o apotegma 48 para construir uma <strong>nova</strong><br />
or<strong>de</strong>m social.<br />
Restava a pequena dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer entrar o carro<br />
para o camarote do doutor Barrado. O convés foi aberto<br />
convenient<strong>em</strong>ente, teve a sala <strong>de</strong> jantar mesas arrancadas<br />
e o ben<strong>de</strong>ngó 49 ficou no centro <strong>de</strong>la, <strong>em</strong> exposição, feio<br />
e brutal, estúpido e inútil, como um monstro <strong>de</strong> museu.<br />
O paquete moveu -se lentamente <strong>em</strong> <strong>de</strong>manda da barra.<br />
Antes fez uma doce curva, longa, muito suave, lentamente,<br />
como se, ao <strong>de</strong>spedir -se, cumprimentasse reverente a beleza<br />
da Guanabara. As gaivotas voavam tranquilas, cansavam-<br />
-se, pousavam na água – não precisavam <strong>de</strong> terra…<br />
A cida<strong>de</strong> sumia -se vagarosamente e o carro foi atraindo<br />
a atenção <strong>de</strong> bordo.<br />
– O que v<strong>em</strong> a ser isto?<br />
74
75<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
Diante da almanjarra, muitos viajantes murmuravam<br />
protestos contra a presença daquele estafermo ali; outras<br />
pessoas diziam que se <strong>de</strong>stinava a encarcerar um bandoleiro<br />
da Paraíba; outras que era um salva -vidas; mas, quando<br />
alguém disse que aquilo ia acompanhando um recomendado<br />
<strong>de</strong> Sofonias, a admiração foi geral e imprecisa.<br />
Um oficial disse:<br />
– Que construção engenhosa!<br />
Um médico afirmou:<br />
– Que linhas elegantes!<br />
Um advogado refletiu:<br />
– Que soberba criação mental!<br />
Um literato sustentou:<br />
– Parece um mármore <strong>de</strong> Fídias!<br />
Um sicofanta 50 berrou:<br />
– É obra mesmo <strong>de</strong> Sofonias! Que republicano!<br />
Uma moça adiantou:<br />
– Deve ter sons magníficos!<br />
Houve mesmo escala para dar ração aos burros, pois<br />
os mais graduados se disputavam a honraria. Um criado,<br />
porém, por ter passado junto ao monstro e o olhado com<br />
<strong>de</strong>sdém, quase foi duramente castigado pelos passageiros.<br />
O ergástulo 51 ambulante vingou -se do serviçal; durante<br />
todo o trajeto perturbou -lhe o serviço.<br />
Apesar <strong>de</strong> ir correndo a viag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> mais inci<strong>de</strong>ntes,<br />
quis ao meio <strong>de</strong>la Barrado <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcar e continuá -la por<br />
terra. Consultou, nestes termos, Silly: “Melhor carro ir<br />
terra faltam três <strong>de</strong>dos mar alonga caminho”; e a resposta<br />
veio <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns dias: “Não convém <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barque<br />
<strong>em</strong>bora mais curto carro chega sujo. Siga”.<br />
Obe<strong>de</strong>ceu e o meteorito, durante duas s<strong>em</strong>anas, foi<br />
objeto da adoração do paquete. Nos últimos dias, quando<br />
um qualquer dos passageiros <strong>de</strong>le se acercava, passava-
lima barreto<br />
-lhe pelo dorso negro a mão espalmada com a contrição<br />
religiosa <strong>de</strong> um maometano ao tocar na pedra negra da<br />
Caaba. 52<br />
Sofonias, que nada tinha com o caso, não teve nunca<br />
notícia <strong>de</strong>ssa tocante adoração.<br />
III<br />
Muito rica é Manaus, mas, como <strong>em</strong> todo o Amazonas,<br />
nela é vulgar a moeda <strong>de</strong> cobre. E um singular traço <strong>de</strong><br />
riqueza que muito impressiona o viajante, tanto mais que<br />
não se quer outra e as rendas do Estado são avultadas. O<br />
Eldorado não conhece o ouro, n<strong>em</strong> o estima.<br />
Outro traço <strong>de</strong> sua riqueza é o jogo. Lá, não é divertimento<br />
n<strong>em</strong> vício: é para quase todos profissão. O valor dos<br />
noivos, segundo diz<strong>em</strong>, é avaliado pela média das paradas<br />
felizes que faz<strong>em</strong>, e o das noivas pelo mesmo processo no<br />
tocante aos pais.<br />
Chegou o navio a tão curiosa cida<strong>de</strong> quinze dias após<br />
fazendo uma plácida viag<strong>em</strong>, com o fetiche a bordo.<br />
Des<strong>em</strong>barcá -lo foi motivo <strong>de</strong> absorvente cogitação para<br />
o doutor Barrado. T<strong>em</strong>ia que fosse <strong>de</strong> novo ao fundo, não<br />
porque o quisesse encaminhá -lo por sobre as águas do<br />
rio Negro; mas, pelo simples motivo <strong>de</strong> que, sendo o cais<br />
flutuante, o peso do carrião talvez trouxesse <strong>de</strong>sastrosas<br />
consequências para ambos, cais e carro.<br />
O capataz não encontrava perigo algum, pois <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcavam<br />
e <strong>em</strong>barcavam pelos flutuantes volumes pesadíssimos,<br />
toneladas até.<br />
Barrado, porém, que era observador, l<strong>em</strong>brava -se da<br />
aventura do rio, e objetou:<br />
– Mas não são <strong>de</strong> ferro.<br />
76
77<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
– Que t<strong>em</strong> isso? fez o capataz.<br />
Barrado, que era observador e inteligente, afinal compreen<strong>de</strong>u<br />
que um quilo <strong>de</strong> ferro pesa tanto quanto um<br />
<strong>de</strong> algodão; e só se convenceu inteiramente disso, como<br />
observador que era, quando viu o ergástulo <strong>em</strong> salvamento,<br />
rolando pelas ruas da cida<strong>de</strong>.<br />
Continuou a ser ídolo e o doutor agastou -se <strong>de</strong>veras<br />
porque o governador visitou a caranguejola, antes que ele<br />
o fizesse.<br />
Como não tivesse completas as instruções para <strong>de</strong>tenção<br />
<strong>de</strong> Fernando, pediu -as a Silly. A resposta veio num<br />
longo telegrama, minucioso e elucidativo. Devia requisitar<br />
força ao governador, arregimentar capangas e não <strong>de</strong>sprezar<br />
as balas <strong>de</strong> alteia. 53 Assim fez o comissário. Pediu<br />
uma companhia <strong>de</strong> soldados, foi às alfurjas 54 da cida<strong>de</strong><br />
catar bravos e adquirir uma confeitaria <strong>de</strong> alteia. Partiu<br />
<strong>em</strong> <strong>de</strong>manda do “hom<strong>em</strong>” com esse tr<strong>em</strong> <strong>de</strong> guerra; e,<br />
pondo -se cautelosamente <strong>em</strong> observação, lobrigou os óculos<br />
do observatório, don<strong>de</strong> concluiu que a sua força era<br />
insuficiente. Normas para o seu procedimento requereu<br />
a Silly. Vieram secas e per<strong>em</strong>ptórias: “Empregue também<br />
artilharia”.<br />
De novo pôs -se <strong>em</strong> marcha com um parque do Krupp.<br />
Desgraçadamente, não encontrou o hom<strong>em</strong> perigoso.<br />
Recolheu a expedição a quartéis; e, certo dia, quando <strong>de</strong><br />
passeio, por acaso, foi parar a um café do centro comercial.<br />
Todas as mesas estavam ocupadas; e só <strong>em</strong> uma <strong>de</strong>las<br />
havia um único consumidor. A esta ele sentou -se. Travou<br />
por qualquer motivo conversa com o mazombo; 55 e,<br />
durante alguns minutos, apren<strong>de</strong>u com o solitário alguma<br />
coisa.<br />
Ao <strong>de</strong>spedir<strong>em</strong> -se, foi que ligou o nome à pessoa, e<br />
ficou atarantado s<strong>em</strong> saber como proce<strong>de</strong>r no momento.
lima barreto<br />
A ação, porém, lhe veio prontamente; e, s<strong>em</strong> dificulda<strong>de</strong>,<br />
falando <strong>em</strong> nome da lei e da autorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>teve o pacífico<br />
ferrabrás 56 <strong>em</strong> um dos bailéus do cárcere ambulante.<br />
Não havia paquete naquele dia e Silly havia recomendado<br />
que o trouxess<strong>em</strong> imediatamente. “Venha por terra”,<br />
disse ele; e Barrado, l<strong>em</strong>brado do conselho, tratou <strong>de</strong><br />
segui -lo. Procurou qu<strong>em</strong> o guiasse até ao Rio, <strong>em</strong>bora lhe<br />
parecesse curta e fácil a viag<strong>em</strong>. Examinou b<strong>em</strong> o mapa e,<br />
vendo que a distância era <strong>de</strong> palmo e meio, consi<strong>de</strong>rou que<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la não lhe cabia o carro. Por este e aquele, soube<br />
que os fabricantes <strong>de</strong> mapas não têm critério seguro: era<br />
fazer uns muito gran<strong>de</strong>s, ou muito pequenos, conforme<br />
são para enfeitar livros ou adornar pare<strong>de</strong>s. Sendo assim,<br />
a tal distância <strong>de</strong> doze polegadas b<strong>em</strong> podia escon<strong>de</strong>r viag<strong>em</strong><br />
<strong>de</strong> um dia e mais.<br />
Aconselhado pelo cocheiro, tomou um guia e<br />
encontrou -o no seu antigo conhecido Tucolas, sabedor<br />
como ninguém do interior do Brasil, pois o palmilhara<br />
à cata <strong>de</strong> formigas para b<strong>em</strong> firmar documentos às suas<br />
investigações antropológicas.<br />
Aceitou a incumbência o curioso antropologista <strong>de</strong><br />
himenópteros, aconselhando, entretanto, a modificação<br />
do itinerário.<br />
– Não me parece, senhor Barrado, que <strong>de</strong>vamos atravessar<br />
o Amazonas. Melhor seria, senhor Barrado, irmos<br />
até a Venezuela, alcançar as Guianas e <strong>de</strong>scermos, senhor<br />
Barrado.<br />
– Não ter<strong>em</strong>os rios a atravessar, Tucolas?<br />
– Hom<strong>em</strong>! Meu caro senhor, eu não sei b<strong>em</strong>; mas,<br />
senhor Barrado me parece que não, e sabe por quê?<br />
– Por quê?<br />
– Por quê? Porque este Amazonas, senhor Barrado, não<br />
po<strong>de</strong> ir até lá, ao Norte, pois só corre <strong>de</strong> oeste para leste…<br />
78
79<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
Discutiram assim sabiamente o caminho; e, à proporção<br />
que manifestava o seu profundo trato com a geografia<br />
da América do Sul, mais Tucolas passava a mão pela cabeleira<br />
<strong>de</strong> inspirado.<br />
Achou que os conselhos do doutor eram justos, mas<br />
t<strong>em</strong>ia as surpresas do carrão. Ora, ia ao fundo, por ser<br />
pesado; ora, sendo pesado, não fazia ir ao fundo frágeis<br />
flutuantes. Não fosse ele estranhar o chão estrangeiro<br />
e pregar -lhe alguma peça? O cocheiro não queria também<br />
ir pela Venezuela, t<strong>em</strong>ia pisar <strong>em</strong> terra <strong>de</strong> gringos e<br />
encarregou -se da travessia do Amazonas – o que foi feito<br />
<strong>em</strong> paz e salvamento, com a máxima simplicida<strong>de</strong>.<br />
Logo que foi ultimada, Tucolas tratou <strong>de</strong> guiar a caravana.<br />
Prometeu que o faria com muito acerto e contentamento<br />
geral, pois aproveitá -la -ia, dilatando as suas<br />
pesquisas antropológicas aos moluscos dos nossos rios.<br />
Era sábio naturalista, e antropologista, e etnografista da<br />
novíssima escola do con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gobineau, 57 novida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
uns sessenta anos atrás; e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, <strong>de</strong>sejava fazer uma<br />
viag<strong>em</strong> daquelas para completar os seus estudos antropológicos<br />
nas formigas e nas ostras dos nossos rios.<br />
A viag<strong>em</strong> correu maravilhosamente durante as primeiras<br />
horas. Sob um sol <strong>de</strong> fogo, o carro solavancava pelos<br />
maus caminhos; e o doente, à mingua <strong>de</strong> não ter on<strong>de</strong> se<br />
agarrar, ia ao encontro <strong>de</strong> uma e outra pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua prisão<br />
couraçada. Os burros, impelidos pelas violentas oscilações<br />
dos varais, encontravam -se e repeliam -se, ainda<br />
mais aumentando os ásperos solavancos da traquitana;<br />
e o cocheiro, na boleia, oscilava <strong>de</strong> lá para cá, <strong>de</strong> cá para<br />
lá, marcando o compasso da música chocalhante daquela<br />
marcha vagarosa.<br />
Na primeira venda que passaram, uma <strong>de</strong>ssas vendas<br />
perdidas, quase isoladas, dos caminhos <strong>de</strong>sertos, on<strong>de</strong> o
lima barreto<br />
viajante se abastece e os vagabundos <strong>de</strong>scansam <strong>de</strong> sua<br />
errância pelos <strong>de</strong>scambados e montanhas, o encarcerado<br />
foi saudado com uma vaia: ó maluco! ó maluco!<br />
Andava Tucolas distraído a fossar e cavocar, catando<br />
formigas; e, mal encontrava uma mais assim, logo examinava<br />
b<strong>em</strong> o crânio do inseto, procurava -lhe os ossos componentes,<br />
enquanto não fazia uma mensuração cuidadosa<br />
do ângulo <strong>de</strong> Camper ou mesmo <strong>de</strong> Cloquet. 58 Barrado,<br />
cuja preocupação era ser êmulo do Padre Vieira, aproveitara<br />
o t<strong>em</strong>po para firmar b<strong>em</strong> as regras <strong>de</strong> colocação <strong>de</strong><br />
pronomes, sobretudo a que manda que o “que” atraia o<br />
pronome compl<strong>em</strong>ento.<br />
E assim andando foi o carro, após dias <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, até<br />
chegar a uma al<strong>de</strong>ia pobre, à marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> um rio, on<strong>de</strong> chalanas<br />
e naviecos a vapor tocavam <strong>de</strong> quando <strong>em</strong> quando.<br />
Cuidaram imediatamente <strong>de</strong> obter hospedag<strong>em</strong> e alimentação<br />
no lugarejo. O cocheiro l<strong>em</strong>brou o “hom<strong>em</strong>”<br />
que traziam. Barrado, a respeito, não tinha com segurança<br />
uma norma <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r. Não sabia mesmo se essa<br />
espécie <strong>de</strong> doentes comia e consultou Silly, por telegrama.<br />
Respon<strong>de</strong>u -lhe a autorida<strong>de</strong>, com a energia britânica que<br />
tinha no sangue, que não era do regulamento retirar aquela<br />
espécie <strong>de</strong> enfermos do carro, o “ar” s<strong>em</strong>pre lhes fazia<br />
mal. De resto, era curta a viag<strong>em</strong> e tão sábia recomendação<br />
foi cegamente obe<strong>de</strong>cida.<br />
Em pequena hora, Barrado e o guia sentavam -se à mesa<br />
do professor público, que lhes oferecera do jantar. O ágape<br />
59 ia fraternal e alegre, quando houve a visita da Discórdia,<br />
a visita da Gramática.<br />
O ingênuo professor não tinha conhecimento do pichoso<br />
saber gramatical do doutor Barrado e expunha candidamente<br />
os usos e costumes do lugar com a sua linguag<strong>em</strong><br />
roceira:<br />
80
81<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
– Há aqui entre nós muito pouco caso pelo estudo, doutor.<br />
Meus filhos mesmo e todos quase não quer<strong>em</strong> saber<br />
<strong>de</strong> livros. Tirante este <strong>de</strong>feito, doutor, a gente quer mesmo<br />
o progresso.<br />
Barrado implicou com o “tirante” e o “a gente”, e tentou<br />
ironizar. Sorriu e observou:<br />
– Fala -se mal, estou vendo.<br />
O matuto percebeu que o doutor se referia a ele. Indagou<br />
mansamente:<br />
– Por que o doutor diz isso?<br />
– Por nada, professor. Por nada!<br />
– Creio, aduziu o sertanejo, que, tirante eu, o doutor<br />
aqui não falou com mais ninguém.<br />
Barrado notou ainda o “tirante” e olhou com inteligência<br />
para Tucolas, que se distraía com um naco <strong>de</strong> tartaruga.<br />
Observou o caipira, momentaneamente, o afã <strong>de</strong> comer<br />
do antropologista e disse, meigamente:<br />
– Aqui, a gente come muito isso. Tirante a caça e a pesca,<br />
nós raramente t<strong>em</strong>os carne fresca.<br />
A insistência do professor sertanejo irritava sobr<strong>em</strong>aneira<br />
o doutor inigualável. S<strong>em</strong>pre aquele “tirante”,<br />
s<strong>em</strong>pre o tal “a gente, a gente, a gente”– um falar <strong>de</strong> preto<br />
mina! O professor, porém, continuou a informar calmamente:<br />
– A gente aqui planta pouco, mesmo não vale a pena.<br />
Felizardo do Catolé plantou uns leirões <strong>de</strong> horta, há anos,<br />
e quando veio o calor e a enchente…<br />
– É <strong>de</strong>mais! É <strong>de</strong>mais! exclamou Barrado.<br />
Doc<strong>em</strong>ente, o pedagogo indagou:<br />
– Por quê? Por quê, doutor?<br />
Estava o doutor sinistramente raivoso e explicou -se a<br />
custo:<br />
– Então, não sabe? Não sabe?
lima barreto<br />
– Não, doutor. Eu não sei, fez o professor, com segurança<br />
e mansuetu<strong>de</strong>.<br />
Tucolas tinha parado <strong>de</strong> saborear a tartaruga, a fim <strong>de</strong><br />
atinar com a orig<strong>em</strong> da disputa.<br />
– Não sabe, então, r<strong>em</strong>atou Barrado, não sabe que até<br />
agora o senhor não t<strong>em</strong> feito outra coisa senão errar <strong>em</strong><br />
português?<br />
– Como, doutor?<br />
– É “tirante”, é “a gente, a gente, a gente”; e, por cima <strong>de</strong><br />
tudo, um solecismo!<br />
– On<strong>de</strong>, doutor?<br />
– Veio o calor e a chuva – é português?<br />
– É, doutor, é, doutor! Veja o doutor João Ribeiro! Tudo<br />
isso está lá. Quer ver?<br />
O professor levantou -se, apanhou sobre a mesa próxima<br />
uma velha gramática ensebada e mostrou a respeitável<br />
autorida<strong>de</strong> ao sábio doutor Barrado. S<strong>em</strong> saber <strong>de</strong>sdéns<br />
simular, or<strong>de</strong>nou:<br />
– Tucolas, vamo -nos <strong>em</strong>bora.<br />
– E a tartaruga? diz o outro.<br />
O hóspe<strong>de</strong> ofereceu -a, o original antropologista<br />
<strong>em</strong>brulhou -a e saiu com o companheiro. Cá fora, tudo<br />
era silêncio e o céu estava negro. As estrelas pequeninas<br />
piscavam s<strong>em</strong> cessar o seu olhar eterno para a Terra muito<br />
gran<strong>de</strong>. O doutor foi ao encontro da curiosida<strong>de</strong> recalcada<br />
<strong>de</strong> Tucolas:<br />
– Vê, Tucolas, como anda o nosso ensino? Os professores<br />
não sab<strong>em</strong> os el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> gramática, e falam como<br />
negros <strong>de</strong> senzala.<br />
– Senhor Barrado, julgo que o senhor <strong>de</strong>ve a esse respeito<br />
chamar a atenção do ministro competente, pois me<br />
parece que o país, atualmente, possui um dos mais autorizados<br />
na matéria.<br />
82
83<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
– Vou tratar, Tucolas, tanto mais que o S<strong>em</strong>ica é amigo<br />
do Sofonias.<br />
– Senhor Barrado, uma coisa…<br />
– Que é?<br />
– Já falou, senhor Barrado, a meu respeito com o senhor<br />
Sofonias?<br />
– Des<strong>de</strong> muito, meu caro Tucolas. Está à espera da<br />
reforma do museu e tu vais para lá direitinho. É o teu<br />
lugar.<br />
– Obrigado, senhor Barrado. Obrigado.<br />
A viag<strong>em</strong> continuou monotonamente. Transmontaram<br />
serras, va<strong>de</strong>aram rios e, num <strong>de</strong>les, houve um ataque <strong>de</strong><br />
jacarés, dos quais se salvou Barrado graças à sua pele muito<br />
dura. Entretanto, um dos animais <strong>de</strong> tiro per<strong>de</strong>u uma<br />
das patas dianteiras e mesmo assim conseguiu pôr -se a<br />
salvo na marg<strong>em</strong> oposta.<br />
Sarou -lhe a ferida não se sabe como e o animal não <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>de</strong> acompanhar a caravana. Às vezes, distanciava se;<br />
às vezes, aproximava se; e s<strong>em</strong>pre a pobre alimária olhava<br />
longamente, <strong>de</strong>moradamente, aquele forno ambulante,<br />
manquejando s<strong>em</strong>pre, impotente para a carreira, e como<br />
se se lastimasse <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r auxiliar eficazmente o lento<br />
reboque daquela almanjarra pesadona.<br />
Em dado momento, o cocheiro avisa Barrado <strong>de</strong> que<br />
o “hom<strong>em</strong>” parecia estar morto; havia até um mau cheiro<br />
indicador. O regulamento não permitia a abertura da<br />
prisão e o doutor não quis verificar o que havia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong><br />
no caso. Comia aqui, dormia ali, Tucolas também e<br />
os burros também – que mais era preciso para ser agradável<br />
a Sofonias? Nada, ou antes: trazer o “hom<strong>em</strong>” até<br />
ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. As doze polegadas da sua cartografia<br />
<strong>de</strong>sdobravam -se <strong>em</strong> um infinito número <strong>de</strong> quilômetros.<br />
Tucolas que conhecia o caminho, dizia s<strong>em</strong>pre: estamos a
lima barreto<br />
chegar, senhor Barrado! Estamos a chegar! Assim levaram<br />
meses andando, com o burro aleijado a manquejar atrás<br />
do ergástulo ambulante, olhando -o doc<strong>em</strong>ente, cheio <strong>de</strong><br />
pieda<strong>de</strong> impotente.<br />
Os urubus crocitavam por sobre a caravana, estreitavam<br />
o voo, <strong>de</strong>sciam mais, mais, mais, até quase <strong>de</strong>bicar<br />
no carro -forte. Barrado punha -se furioso a enxotá -los a<br />
pedradas; Tucolas imaginava aparelhos para examinar a<br />
caixa craniana das ostras <strong>de</strong> que andava à caça; o cocheiro<br />
obe<strong>de</strong>cia.<br />
Mais ou menos assim, levaram dois anos e foram chegar<br />
à al<strong>de</strong>ia dos Serradores, marg<strong>em</strong> do Tocantins.<br />
Quando aportaram, havia na praça principal uma<br />
gran<strong>de</strong> disputa, tendo por motivo o preenchimento <strong>de</strong><br />
uma vaga na Aca<strong>de</strong>mia dos Lambrequins. 60<br />
Logo que Barrado soube do que se tratava, meteu -se<br />
na disputa e foi gritando lá a seu jeito e sacudindo as perninhas:<br />
– Eu também sou candidato! Eu também sou candidato!<br />
Um dos circunstantes perguntou -lhe a t<strong>em</strong>po, com<br />
toda a paciência:<br />
– Moço: o senhor sabe fazer lambrequins?<br />
– Não sei, não sei, mas aprendo na aca<strong>de</strong>mia e é para<br />
isso que quero entrar.<br />
A eleição teve lugar e a escolha recaiu sobre um outro<br />
mais hábil no uso da serra que o doutor recém -chegado.<br />
Precipitou -se por isso a partida e o carro continuou a<br />
sua odisseia, com o acompanhamento do burro, s<strong>em</strong>pre<br />
a olhá -lo longamente, infinitamente, <strong>de</strong>moradamente,<br />
cheio <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> impotente.<br />
Aos poucos os urubus se <strong>de</strong>spediram; e, no fim <strong>de</strong> quatro<br />
anos, o carrião entrou pelo Rio a<strong>de</strong>ntro, a roncar pelas<br />
84
85<br />
como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />
calçadas, chocalhando duramente as ferragens, com o seu<br />
manco e compassivo burro a manquejar -lhe à sirga.<br />
Logo que foi chegado, um hábil serralheiro veio abri -lo,<br />
pois a fechadura <strong>de</strong>sarranjara -se <strong>de</strong>vido aos trancos e às<br />
int<strong>em</strong>péries da viag<strong>em</strong>, e <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cia à chave competente.<br />
Silly <strong>de</strong>terminou que os médicos examinass<strong>em</strong> o doente,<br />
exame que, mergulhados numa atmosfera <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinfetantes,<br />
foi feito no necrotério público.<br />
Foi este o <strong>de</strong>stino do enfermo pelo qual o <strong>de</strong>legado<br />
Cunsono se interessou com tanta solicitu<strong>de</strong>.
Congresso Pan -Planetário *<br />
87<br />
Urubu pelado não se mete<br />
no meio dos coroados<br />
Ditado popular<br />
De tal forma se haviam multiplicado os congressos, que<br />
foi preciso ser original. Dentro <strong>de</strong> cada um dos oito planetas,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o mais bronco, que parece ser Vênus, até o mais<br />
inteligente, que <strong>de</strong>ve ser Netuno, não era possível reunir<br />
um que não fosse a milésima repartição dos <strong>outros</strong> anteriores.<br />
Congressos nunca foram coisas <strong>de</strong> primeira necessida<strong>de</strong>;<br />
mas a necessida<strong>de</strong> do espetáculo t<strong>em</strong> <strong>em</strong> todos nós<br />
fortes exigências como <strong>de</strong>svios convenientes.<br />
D<strong>em</strong>ais, Júpiter estava <strong>em</strong> tal estado <strong>de</strong> adiantamento<br />
que precisava mostrar -se ao sist<strong>em</strong>a todo. Produzia por<br />
ano 200.000$000 <strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> aperfeiçoadas farpas <strong>de</strong><br />
bambus (específico contra as dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes); e os seus<br />
filósofos e escritores, graças às mo<strong>de</strong>rnas máquinas elétricas<br />
<strong>de</strong> escrever, abarrotavam os armazéns das estradas<br />
<strong>de</strong> ferro com bilhões <strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> papel impresso. Hou-<br />
* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).
lima barreto<br />
ve um que, narrando todas as conversas e atos do ano,<br />
dia por dia, hora por hora, minuto por minuto, segundo<br />
por segundo, escreveu uma obra <strong>de</strong> 68.922 volumes, com<br />
20.677.711 páginas das quais 3.000.000 alvas e limpas – as<br />
melhores! – significavam as horas <strong>de</strong> seu sono s<strong>em</strong> sonhos.<br />
O autor não omitiu nelas n<strong>em</strong> as or<strong>de</strong>ns aos criados,<br />
n<strong>em</strong> tampouco as frases vulgares que trocamos ao cumprimentar.<br />
Tudo registrou porque, dizia ele, isso aumentava<br />
o peso da obra, portanto, o seu valor.<br />
Era unicamente Júpiter que estava assim: o resto dos<br />
satélites do Sol vivia sofrivelmente… Como, porém, houvess<strong>em</strong><br />
<strong>de</strong>scoberto que todos eles estavam ligados por<br />
uma força oculta que, <strong>em</strong>bora influindo mutuamente<br />
sobre todos eles, pesava mediocr<strong>em</strong>ente sobre os <strong>de</strong>stinos<br />
particulares <strong>de</strong> cada um; e, como também fosse preciso<br />
ser original nos congressos – Júpiter propôs, e todos os<br />
planetas restantes aceitaram, a reunião <strong>de</strong> um congresso<br />
Pan -Planetário.<br />
Era preciso, diziam os <strong>em</strong>baixadores <strong>de</strong> Júpiter, formar<br />
um espírito planetário, <strong>em</strong> contraposição ao espírito<br />
estelar. Com isso, eles escondiam o secreto <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
ven<strong>de</strong>r aos <strong>outros</strong> planetas farpas aperfeiçoadas, r<strong>em</strong>édio<br />
para calos, toneladas <strong>de</strong> um literário papel <strong>de</strong> <strong>em</strong>brulhos<br />
e <strong>outros</strong> produtos similares <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> limites,<br />
não esquecendo o fito <strong>de</strong> conquistar alguns <strong>de</strong>stes últimos<br />
ou parte <strong>de</strong>les.<br />
Todos os <strong>outros</strong> não viram b<strong>em</strong> esse propósito <strong>de</strong> Júpiter;<br />
mas este lhes venceu a resistência, convencendo -os <strong>de</strong><br />
que <strong>de</strong>viam ser originais e chamar a atenção do Universo…<br />
O mundo estelar não nos <strong>de</strong>bocha? Altair não está<br />
s<strong>em</strong>pre a rir -se sarcasticamente <strong>de</strong> nós?<br />
Al<strong>de</strong>barã não nos ameaça com seu rubor? Sírios não<br />
nos <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha? Hav<strong>em</strong>os <strong>de</strong> lho mostrar.<br />
88
89<br />
congresso pan -planetário<br />
A reunião – ficou <strong>de</strong>cidido – teria lugar na Terra. Não<br />
porque a Terra fosse muito po<strong>de</strong>rosa, mas porque, nos<br />
últimos anos, ela instalara nos seus polos uma imensa<br />
buzina que gritava para as estrelas: – “Sou o primeiro planeta<br />
do orbe, tenho estradas <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> metros, sou o<br />
paraíso do Universo” etc. etc.<br />
A buzina era indispensável, visto que os caminhos,<br />
palácios, jardins e teatros, etc. se <strong>de</strong>stinavam aos extraterrestres<br />
e tinham por fim atraí -los, no pensamento <strong>de</strong><br />
que os estranhos viess<strong>em</strong> trazer a segura prosperida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>la – a Terra.<br />
O seu povo, todos conhec<strong>em</strong> -no: é uma gente cheia <strong>de</strong><br />
uma nevoenta poesia, terna, loquaz, um tanto indolente,<br />
mas liberal, por ser relaxada, e generosa, por ser liberal.<br />
São <strong>de</strong>feitos e são qualida<strong>de</strong>s, mesmo porque, para os<br />
povos, não há <strong>de</strong>feitos n<strong>em</strong> qualida<strong>de</strong>s, há características,<br />
e mais nada.<br />
Os <strong>de</strong> Júpiter não são assim: são rígidos, duros e frios,<br />
e têm dois sentimentos dominadores: o do enorme, que é<br />
o seu critério <strong>de</strong> beleza, e o do dourado.<br />
Um habitante do gran<strong>de</strong> planeta, uma vez na Terra,<br />
ao ver pelo crepúsculo o céu banhado <strong>de</strong> ouro liquefeito,<br />
esperneou <strong>de</strong> tal modo e <strong>de</strong> tal modo subiu às montanhas<br />
para colhê -lo que nos antípodas houve um terr<strong>em</strong>oto.<br />
Em vendo a cor do ouro, eles sa<strong>em</strong> bufando, com o<br />
olhar injetado, <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> fúria; e sa<strong>em</strong> matando, estripando<br />
a indiferentes, a amigos, a parentes e até aos pais;<br />
e – curioso – só quer<strong>em</strong> ouro para construir caixões <strong>de</strong><br />
seis léguas <strong>de</strong> altura e seis polegadas quadradas <strong>de</strong> base.<br />
Eis como sent<strong>em</strong> a beleza… A isso juntam um horror<br />
pelos gatos, um ódio idiota e histérico; no entanto, os<br />
“gatos” são bons; se velhos, têm a candura <strong>de</strong> criança; se<br />
crianças, uma grácil espontaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encantar. Mesmo
lima barreto<br />
se não são melhores do que seus companheiros <strong>de</strong> planeta,<br />
são perfeitamente iguais a eles.<br />
Contudo, são doridos e auditivos, o que lhes dá a faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> criar uma poesia e uma música próprias, das quais<br />
os <strong>de</strong> Júpiter se aproveitam, à míngua <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r eles mesmos<br />
criar essas manifestações artísticas, pois a sua insensibilida<strong>de</strong><br />
não o permite.<br />
Mas os jupiterianos não os toleram, porque po<strong>de</strong>m os<br />
“gatos” votar, <strong>em</strong>bora foss<strong>em</strong> os próprios algozes <strong>de</strong>stes<br />
que lhes tivess<strong>em</strong> dado esse direito.<br />
Por qualquer dá cá aquela palha, os estúpidos jupiterianos<br />
se reún<strong>em</strong> <strong>em</strong> praça pública e matam a pauladas, à<br />
fouce, s<strong>em</strong> forma <strong>de</strong> processo alguma, sob o pretexto <strong>de</strong><br />
que o “gato” queria casar ou namorava uma filha <strong>de</strong>les.<br />
Lá se chama banditismo e é coisa parecida com o linchamento<br />
yankee.<br />
Um viajante, entretanto, que lá esteve, achou esses<br />
“gatos” excepcionalmente tímidos e doces, admirando-<br />
-se que lá não houvesse mais crimes, provocados pelos<br />
sofrimentos e humilhações que eles sofr<strong>em</strong>.<br />
Persegu<strong>em</strong> -nos <strong>de</strong> um modo bárbaro e covar<strong>de</strong>.<br />
Chamam -nos <strong>de</strong> poltrões, mas quando quer<strong>em</strong> guerrear,<br />
socorr<strong>em</strong> -se <strong>de</strong>les e os “gatos” se portam b<strong>em</strong>. V<strong>em</strong> a paz,<br />
oprim<strong>em</strong> -nos, encurralam -nos mas, assim mesmo, eles<br />
cresc<strong>em</strong> e multiplicam -se… Fraca raça!<br />
Júpiter, como ia dizendo, acudiu ao grito da buzina e<br />
reuniu o congresso na Terra.<br />
Na primeira sessão, logo os jupiterianos falaram na fraternida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> todos os animais do Universo: homens e gatos,<br />
burros e jupiterianos, marcianos e raposos. Um principal<br />
<strong>de</strong> Júpiter até, a esse respeito, fez um discurso muito bonito.<br />
É muito cediça 61 a manobra <strong>de</strong> Júpiter falar s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong><br />
liberda<strong>de</strong>, fraternida<strong>de</strong> etc. Certa vez, ele <strong>de</strong>clarou guerra<br />
90
91<br />
congresso pan -planetário<br />
a Saturno, para libertar -lhe os povos. Logo, porém, que o<br />
venceu, restabeleceu a escravatura que já estava absolvida.<br />
Tal e qual a América do Norte fez com o Texas, província<br />
do México, <strong>em</strong> 1837.<br />
Como todos esperavam, os trabalhos do Congresso<br />
prosseguiram com gran<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>.<br />
Além <strong>de</strong> tratar do estabelecimento <strong>de</strong> pontes pênseis<br />
que ligass<strong>em</strong> todos os planetas entre si, o Congresso votou<br />
as seguintes conclusões sobre a perfeita fraternida<strong>de</strong> animal,<br />
estabelecido nos seguintes pontos:<br />
a) Não se <strong>de</strong>veria comer qualquer animal (boi, carneiro,<br />
porco);<br />
b) As gaiolas dos pássaros <strong>de</strong>veriam ser aumentadas do<br />
dobro, no mínimo;<br />
c) Na caça, uma espingarda não po<strong>de</strong>ria ser carregada<br />
com mais <strong>de</strong> seis grãos <strong>de</strong> chumbo;<br />
d) Generalizar os jogos <strong>de</strong> bola na socieda<strong>de</strong> dos<br />
cabritos.<br />
O programa era vasto e piedoso; e até um principal <strong>de</strong><br />
Júpiter, a esse respeito, orou e citou largamente a Bíblia,<br />
tanto o Antigo como o Novo Testamento, fazendo pena<br />
não haver ali muitas beatas que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> chorar com tal<br />
hom<strong>em</strong>, tão digno <strong>de</strong> vir a substituir são Vicente <strong>de</strong> Paulo,<br />
porque não é próprio citar Sáquia -Múni. 62<br />
O povo da Terra – boa gente! – exultou e encheu -se<br />
<strong>de</strong> orgulho por po<strong>de</strong>r mandar às estrelas este grito: “Não<br />
com<strong>em</strong>os mais bois!! Nada t<strong>em</strong>os com as estrelas!”.<br />
Houve festas: banquetes e bailes para alguns; luminárias<br />
para qu<strong>em</strong> quisesse ver e fantasmagorias surpreen<strong>de</strong>ntes<br />
nos órgãos <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>.<br />
No Céu, porém Sírius sorriu e Altair mais amarela se<br />
fez. Da plêia<strong>de</strong>, duas estrelas <strong>em</strong>pali<strong>de</strong>ceram <strong>de</strong> espanto, e<br />
Al<strong>de</strong>barã quis avisar aos néscios, 63 mas não pô<strong>de</strong>.
lima barreto<br />
Júpiter ven<strong>de</strong>u a todos os seus irmãos toneladas <strong>de</strong> farpas,<br />
<strong>de</strong> r<strong>em</strong>édios para calos, <strong>de</strong> papel literário; e isso com<br />
alguma violência, que me eximo <strong>de</strong> contar. De passag<strong>em</strong>,<br />
digo -lhes que ele ocupou um pedaço <strong>de</strong> Mercúrio…<br />
Se tais produtos não estavam completamente envenenados,<br />
foram, no entanto, <strong>de</strong>letérios. A Terra banalizou -se;<br />
Marte per<strong>de</strong>u a inteligência; Vênus, o amor <strong>de</strong>sinteressado;<br />
Netuno, a bravura generosa; os “gatos” <strong>de</strong> todos os<br />
planetas, contudo, vieram a gozar dos benefícios das instituições<br />
jupiterianas, isto é, foram expulsos da comunhão<br />
dos patrícios.<br />
Sob os bons auspícios <strong>de</strong> Júpiter, foi assim que se fez a<br />
fraternida<strong>de</strong> animal <strong>em</strong> todo o sist<strong>em</strong>a planetário. Sírius<br />
nunca mais cessou <strong>de</strong> sorrir.<br />
92
Hussein Ben -Áli Al -Bálec<br />
e Miqueias Habacuc<br />
(Conto argelino) *<br />
93<br />
Ao senhor Cincinato Braga<br />
Antes da conquista francesa, havia, na Argélia, uma<br />
família composta <strong>de</strong> um velho pai doente e seis filhos<br />
varões. Des<strong>de</strong> muito que o pai, <strong>de</strong>vido aos achaques da<br />
ida<strong>de</strong>, não se entregava diretamente aos trabalhos da sua<br />
lavoura; mas, s<strong>em</strong>pre que o seu estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> lhe permitia,<br />
tinha o cuidado <strong>de</strong> correr as suas terras com plantações,<br />
que eram <strong>de</strong> tâmaras, alfa, oliveiras, laranjeiras,<br />
havendo somente uma parte que era <strong>de</strong>stinada à criação<br />
<strong>de</strong> ovelhas, cabras e bezerros. As plantações e a criação<br />
estavam entregues a cinco dos seus filhos, pois o mais<br />
velho, ele o tinha mandado ao Cairo, para estudar profundamente,<br />
na respectiva universida<strong>de</strong>, a lei do Profeta<br />
e vir a ser um ul<strong>em</strong>á 64 digno e sábio no Corão.<br />
Áli Bálec Al -Bálec era o nome <strong>de</strong>sse filho do velho árabe<br />
e esteve <strong>de</strong> fato no Cairo; mas, b<strong>em</strong> <strong>de</strong>pressa, abandonou<br />
o estudo das santas leis <strong>de</strong> Alá e do Profeta e procurou<br />
a socieda<strong>de</strong> dos infiéis.<br />
* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).
lima barreto<br />
Foi ter nas suas aventuras à Grécia, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>morou<br />
muito t<strong>em</strong>po e adquiriu dos gregos muitos hábitos, costumes<br />
e vícios. Não se po<strong>de</strong> <strong>em</strong> confiança dizer que os<br />
atuais sejam b<strong>em</strong> netos dos antigos; mas são aparentados.<br />
A finura e sagacida<strong>de</strong> dos últimos para abstrações filosóficas,<br />
para especulações científicas, para a análise dos<br />
sentimentos e paixões, do que dão provas as suas obras<br />
<strong>de</strong> filosofia, as suas criações científicas e as suas gran<strong>de</strong>s<br />
obras literárias, <strong>em</strong>pregam nos nossos dias os atuais na<br />
mercancia, no tráfico, no escambo, <strong>em</strong> que s<strong>em</strong>pre procuram,<br />
com a máxima habilida<strong>de</strong> e sabedoria enganar não só<br />
os estrangeiros, como os seus próprios patrícios.<br />
No Oriente, só há um traficante que não seja enganado<br />
pelo grego: é o armênio. Diz -se mesmo lá: o ju<strong>de</strong>u é enganado<br />
pelo grego, mas o armênio engana ambos.<br />
Os turcos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>em</strong> on<strong>de</strong>, matam estes últimos aos<br />
milheiros, não tanto por motivos religiosos, mas por ódio<br />
do comprador cavalheiresco, do hom<strong>em</strong> leal e crédulo,<br />
que se vê enganado <strong>de</strong>spudoradamente, e sente que não<br />
há, no outro que o ludibriou, nenhum princípio <strong>de</strong> honra,<br />
<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> honestida<strong>de</strong>, que as relações entre os<br />
homens o exig<strong>em</strong>.<br />
Ali Bálec Al -Bálec, apesar <strong>de</strong> ser muçulmano, foi atraído<br />
para o meio dos gregos e, com eles, apren<strong>de</strong>u as suas<br />
espertezas, maroscas 65 e habilida<strong>de</strong>s para enganar os<br />
<strong>outros</strong>.<br />
E assim foi que ele andou fora da casa paterna, fazendo<br />
o escambo dos mares do Levante, indo <strong>de</strong> Alexandria<br />
para Constantinopla, daí para Jafa, <strong>de</strong>ste porto para Salônica,<br />
<strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> para Corfu, perlustrando todos aqueles<br />
mares azuis, cheios <strong>de</strong> história, <strong>de</strong> lenda, <strong>de</strong> sangue e piratas,<br />
comerciando e mesmo pirateando quando a ocasião<br />
se lhe oferecia.<br />
94
hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />
Ao saber da morte do pai, ven<strong>de</strong>u logo a faluca 66 que<br />
possuía e correu a receber a herança. Coube -lhe uma gran<strong>de</strong><br />
data <strong>de</strong> terra, coberta <strong>de</strong> pés <strong>de</strong> tâmaras, enquanto os<br />
irmãos tinham as suas cultivadas com alfa, com laranjeiras,<br />
oliveiras e um mesmo recebeu a sua parte <strong>em</strong> terrenos<br />
<strong>de</strong> pastagens magras, on<strong>de</strong> pasciam rebanhos enfezados<br />
<strong>de</strong> ovelhas e cabras.<br />
Todos, porém, ficaram contentes com a partilha e iam<br />
vivendo.<br />
Áli Bálec Al -Bálec trouxera como sua mulher uma<br />
israelita que renegara o Talmu<strong>de</strong> pelo Corão, mas, apesar<br />
disso, tinha o maior <strong>de</strong>sprezo pelos muçulmanos, aos<br />
quais consi<strong>de</strong>rava grosseiros, convencendo <strong>de</strong> tal coisa o<br />
marido a ponto <strong>de</strong>le não dar mais importância aos seus<br />
próprios irmãos.<br />
Logo ao voltar ainda os atendia e os visitava; mas a<br />
mulher lhe dizia s<strong>em</strong>pre:<br />
– Esses teus irmãos são uns brutos! Parec<strong>em</strong> mochos!<br />
Uns bobos! Que sandálias! O pano das suas chéchias 67 é<br />
barato e s<strong>em</strong>pre está sujo! Deixa -os lá!<br />
Aos poucos, <strong>de</strong>vido aos conselhos <strong>de</strong> sua mulher, Salisa,<br />
da sua insistência, ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> procurar os irmãos,<br />
fez -lhes má cara, <strong>em</strong>bora os filhos <strong>de</strong>les viess<strong>em</strong> <strong>de</strong> quando<br />
<strong>em</strong> quando, à casa do tio, para ver o primo Hussein,<br />
que se ia criando mais pérfido que o pai e mais orgulhoso<br />
que a mãe.<br />
Em pouco, Áli ficou inteiramente convencido da sua<br />
imensa superiorida<strong>de</strong> sobre os seus humil<strong>de</strong>s e resignados<br />
irmãos.<br />
Por ter na sua sala um tapete <strong>de</strong> Esmirna, ser<strong>em</strong> as suas<br />
armas <strong>de</strong> aço <strong>de</strong> Damasco, tauxiadas <strong>de</strong> ouro, julgava os<br />
seus manos, que se tinham habituado à simplicida<strong>de</strong> e à<br />
modéstia, como inferiores, iguais aos das tribos negras<br />
95
lima barreto<br />
que viviam para além do <strong>de</strong>serto. Julgando -os assim,<br />
esquecia -se que, enquanto ele viajava, enquanto ele aprendia<br />
aquelas coisas finais, os irmãos plantavam, ceifavam e<br />
colhiam, para ele apren<strong>de</strong>r.<br />
Além disso, Áli, como falasse alguns patoás levantinos,<br />
julgava -se muito mais que todos os do vilaiete 68 e também,<br />
por possuir joias <strong>de</strong> ouro e pedras caras, valendo muitas<br />
piastras, imaginava que tudo podia.<br />
Por esse t<strong>em</strong>po, chegaram os franceses e o cai<strong>de</strong> 69 apelou<br />
para todos, a fim <strong>de</strong> socorrer o bei 70 com homens e<br />
valores. Áli ofereceu uma das joias do seu tesouro e quase<br />
por isso foi <strong>em</strong>palado. O joalheiro do palácio verificou<br />
que as joias eram inteiramente falsas e, vindo o bei a saber<br />
disso, tomou a coisa como afronta e mandou castigar severamente<br />
o doador.<br />
Salisa, sua mulher, ficou, ao conhecer a notícia, no mais<br />
completo <strong>de</strong>sespero, não porque o marido estivesse <strong>em</strong><br />
risco <strong>de</strong> vida, mas pelo fato que a fortuna representada<br />
por aquelas joias não era mais que fumaça.<br />
Áli foi solto e jurou que havia <strong>de</strong> enriquecer <strong>de</strong> novo.<br />
Aceitou s<strong>em</strong> resistência a dominação francesa e, com alegria,<br />
viu que essa dominação trazia uma gran<strong>de</strong> alta para<br />
as tâmaras que o seu terreno produzia prodigiosamente.<br />
Seus irmãos, a seu ex<strong>em</strong>plo, aceitaram os francos e continuaram<br />
na sua modéstia, observando muito religiosamente<br />
as leis do Corão.<br />
Áli, já habituado, <strong>em</strong> pouco se misturou com os infiéis a<br />
qu<strong>em</strong> vendia as tâmaras por bom preço e gastava o grosso<br />
do rendimento que ia tendo <strong>em</strong> bebidas, apesar da proibição<br />
do Corão, <strong>em</strong> orgias com os oficiais e funcionários franceses.<br />
Construiu um palácio que ele pretendia parecido com<br />
aquele do gran<strong>de</strong> califa Harum Al -Raxid, <strong>em</strong> Bagdá, conforme<br />
é <strong>de</strong>scrito no livro <strong>de</strong> histórias da princesa Xeraza<strong>de</strong>.<br />
96
hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />
Vendo que as tâmaras eram muito procuradas pelos<br />
francos que, por elas, pagavam bom dinheiro, por toda<br />
a parte começaram a plantar tâmaras; os irmãos <strong>de</strong> Áli,<br />
porém, não quiseram fazer tal, pois sabiam por experiência<br />
<strong>de</strong> seu pai, que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que houvesse muitas tâmaras<br />
para ven<strong>de</strong>r e, não se precisando <strong>de</strong>sse fruto para o nosso<br />
comer diário, não era possível que muita gente as quisesse<br />
comprar tão caro. Abundando tinham que vendê -las<br />
mais barato, para atingir e provocar os compradores mais<br />
pobres.<br />
Continuaram com a sua alfa, as suas laranjeiras, a pascer<br />
os seus rebanhos, s<strong>em</strong> nenhuma inveja do irmão que<br />
parecia rico e os <strong>de</strong>sprezava.<br />
Os seus sobrinhos, <strong>de</strong> quando <strong>em</strong> quando, iam às terras<br />
do tio e ele, por ostentação, por vaida<strong>de</strong> e para mostrar<br />
riqueza, lhes dava uma libra turca e as crianças voltavam<br />
para casa dos pais, dizendo:<br />
– Tio Áli é que é gente! T<strong>em</strong> tudo! Como ele é rico, por<br />
Alá!<br />
Os seus pais respondiam:<br />
– Cada um se <strong>de</strong>ve conformar com o que Alá lhe dá!<br />
É bom que prospere, pois t<strong>em</strong> família… Deus é Deus e<br />
Maomé é seu profeta.<br />
Veio a morrer Áli, quando as tâmaras começaram a<br />
cair <strong>de</strong> preço. Herdou -lhe os bens, além da mulher, o seu<br />
único filho Hussein Ben -Áli Al -Bálec que tinha todos os<br />
<strong>de</strong>feitos do pai aumentados com os <strong>de</strong> sua mãe.<br />
Era vaidoso, presunçoso, ávido, <strong>de</strong>sprezando os parentes,<br />
para os quais era somítico e avaro, <strong>de</strong>sprezando -os<br />
como se foss<strong>em</strong> animais imundos e tidos <strong>em</strong> maldição<br />
pelas Leis do Profeta. Com os franceses, entretanto, era<br />
mais pródigo do que o pai e fingia ter as suas maneiras<br />
e usos.<br />
97
lima barreto<br />
Nas gazetas que começaram a aparecer <strong>em</strong> Argel,<br />
Hussein Ben -Áli Al -Bálec era gabado e, apesar das leis do<br />
Corão proibir<strong>em</strong> a reprodução da figura humana, uma<br />
<strong>de</strong>las lhe publicou o retrato. As tâmaras começaram a<br />
<strong>de</strong>scer; e, como Hussein tivesse notícias que, duas léguas<br />
próximas, um outro muçulmano possuía uma gran<strong>de</strong><br />
plantação <strong>de</strong>las, começou a pensar que era esta que fazia<br />
<strong>de</strong>scer o preço das suas.<br />
Em Argel, sobretudo no vilaiete <strong>de</strong> Hussein, personificam<br />
-se s<strong>em</strong>pre os fenômenos e a sutileza <strong>de</strong> um plantador<br />
<strong>de</strong> tâmaras não po<strong>de</strong> b<strong>em</strong> conhecer, apesar <strong>de</strong> raça<br />
árabe, o filigranado das induções da economia política…<br />
Imaginou logo <strong>de</strong>struir a plantação e mesmo toda<br />
aquela que aparecesse na redon<strong>de</strong>za. Supôs <strong>de</strong> bom alvitre<br />
ir com alguns homens e queimar os coqueiros. O dono<br />
certamente queixar -se -ia ao cai<strong>de</strong>, às autorida<strong>de</strong>s francas;<br />
e seria uma complicação. Hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> expedientes,<br />
l<strong>em</strong>brou -se <strong>de</strong> conseguir do capitão francês da guarnição,<br />
Al -Durand ou Al -Burhant, a <strong>de</strong>struição do plantio<br />
rival. Habitualmente, fez -se amigo do rume, 71 encheu -o <strong>de</strong><br />
presentes, <strong>de</strong> festas, <strong>de</strong> bebidas, pois seguia o ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong><br />
seu pai nesse tocante; e o “cão do cristão” se fez afinal seu<br />
amigo. Um dia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma festa, o militar, que pisava<br />
indignamente a terra on<strong>de</strong> estavam os ossos do seu pai,<br />
após muitas queixas <strong>de</strong> Áli, apiedado do árabe, apressou-<br />
-se <strong>em</strong> ir à plantação do vizinho e castigá -lo. Assim fez,<br />
com os seus soldados e os ferozes serviçais <strong>de</strong> Hussein.<br />
Houve queixa; o capitão foi punido; mas o saas 72 <strong>de</strong> tâmaras<br />
não subiu n<strong>em</strong> meio gour<strong>de</strong>. 73<br />
As suas finanças iam <strong>de</strong> mal a pior, a casa magnífica<br />
ia dando mostras <strong>de</strong> ruína e os seus móveis e alfaias<br />
<strong>de</strong>terioravam -se com o t<strong>em</strong>po. Sua mãe não cessava <strong>de</strong><br />
censurar -lhe pelas faltas que não lhe cabiam. Ela, com<br />
98
hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />
aquela arrogância muito sua e inveja também muito sua,<br />
repreendia -o:<br />
– Vês: as tâmaras ca<strong>em</strong> <strong>de</strong> preço e tu não tomas providência<br />
alguma. Os meus não são assim… Mas tens o sangue<br />
<strong>de</strong> teu pai… É verda<strong>de</strong> que teus tios estão ven<strong>de</strong>ndo<br />
alfa, oliveiras, gado e laranjas e ganham… Se tu não fizeres<br />
esforço algum, ficarás como eles, uns macacos a viver<br />
<strong>em</strong> tocas e a dormir <strong>em</strong> pelegos <strong>de</strong> carneiro… Xmed, o<br />
teu segundo tio, ganhou duzentas piastras <strong>em</strong> azeitonas e<br />
ficou contente. Queres ser como ele?<br />
– Que hei <strong>de</strong> fazer, mãe?<br />
– Pensa; e não fiques aí a chorar como mulher. Saul<br />
chorou? Davi chorou? Só o Deus dos cristãos chorou: Jeová<br />
não ama o choro. Ele ama a guerra e o combate, até o<br />
extermínio. Lê os livros, os que foram os meus e os teus<br />
que são também agora os meus. L<strong>em</strong>bra -te <strong>de</strong> Débora e <strong>de</strong><br />
Judite e eram mulheres!<br />
Hussein Ben -Áli Al -Bálec não podia dormir com a<br />
impressão das palavras <strong>de</strong> sua mãe. O saas <strong>de</strong> tâmaras<br />
continuava a <strong>de</strong>scer <strong>de</strong> gour<strong>de</strong> <strong>em</strong> gour<strong>de</strong>, e ele só se l<strong>em</strong>brava<br />
<strong>de</strong> Áli, <strong>de</strong> Ornar, <strong>de</strong> todos aqueles <strong>de</strong> sua raça que as<br />
tinham levado <strong>em</strong> meio século, do Ganges ao Ebro. Mas o<br />
saas <strong>de</strong> tâmaras parecia não t<strong>em</strong>er aquelas sombras augustas<br />
e ferozes. Descia s<strong>em</strong>pre.<br />
Certo dia, apareceu -lhe um hom<strong>em</strong> que queria falar<br />
a sua mãe, Salisa. Era o irmão <strong>de</strong>la, Miqueias Habacuc.<br />
A irmã e o sobrinho acolheram muito b<strong>em</strong> tão próximo<br />
parente e lhe falaram na baixa das tâmaras que os atormentava.<br />
Miqueias, que era hom<strong>em</strong> esperto <strong>em</strong> negócios,<br />
disse para o sobrinho:<br />
– Filho <strong>de</strong> minha irmã, tens meu sangue, mas não a<br />
minha fé nos livros santos da sinagoga; mas teus avós Isaque,<br />
Baruque, Daniel, Azaf, Etã, Zabulon, Neftali e tantos<br />
99
lima barreto<br />
<strong>outros</strong> mandam que eu te auxilie nesse transe da tua vida<br />
que é preciosa a eles e a mim, pois ela é <strong>de</strong>les e também<br />
minha. Portanto, tais for<strong>em</strong> os presentes que tu me fizeres,<br />
eu posso purificar -me <strong>de</strong> ter socorrido um ente que não é<br />
<strong>de</strong> Israel. Dize -o que o rabino me perdoará.<br />
Hussein ficou <strong>de</strong> pensar e, à noite, conferenciou com<br />
sua mãe Salisa.<br />
– Filho, dá -lhe alguns cequins turcos e aquelas joias falsas<br />
que quase custaram a morte <strong>de</strong> teu pai. Porque – ouve<br />
b<strong>em</strong> – o conselho <strong>de</strong>le po<strong>de</strong> ser falaz. 74<br />
Despertando Miqueias, logo Hussein foi ter com ele<br />
e propôs -lhe o escambo. O israelita, ao ver as joias, n<strong>em</strong><br />
olhou mais os cequins. Ficou com os olhinhos fosforescentes<br />
<strong>de</strong> tigre na escuridão. Era como se fosse dar um<br />
salto <strong>de</strong> felino. Contou então ao sobrinho como <strong>de</strong>via proce<strong>de</strong>r.<br />
– Tu que tens o sangue <strong>de</strong> minha avó Micaia, que era da<br />
tribo <strong>de</strong> Jeroboão, e <strong>de</strong> Azarela, que era da casa <strong>de</strong> Leedã,<br />
ouve, comprarás todas as tâmaras que houver na redon<strong>de</strong>za,<br />
mesmo antes <strong>de</strong> amadurecer<strong>em</strong>, ficando elas nos pés.<br />
Quando for época <strong>de</strong> colhê -las, colhê -las -ás todas, guardando<br />
<strong>em</strong> surrões nos armazéns <strong>de</strong> tua casa e não ven<strong>de</strong>rás<br />
senão quando te oferecer<strong>em</strong> um lucro que dê a fartar<br />
para gastares…<br />
– Tio amado e sábio: elas não apodrecerão?<br />
– Não importa. As poucas “medidas” <strong>em</strong> que isto acontecer<br />
darão prejuízo, mas tu marcarás o lucro <strong>de</strong> modo<br />
que o cubras.<br />
Hussein Ben -Áli Al -Bálec <strong>de</strong>scansou um instante a<br />
cabeça sobre o peito, <strong>de</strong>pois a ergueu <strong>de</strong> repente e exclamou:<br />
– Falas com a sabedoria do Profeta, Miqueias Habacuc.<br />
Que Alá seja contigo!<br />
100
hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />
Miqueias Habacuc, filho <strong>de</strong> Uriel <strong>de</strong> Sepetai, não se<br />
quis <strong>de</strong>morar mais e partiu <strong>de</strong>spedindo -se da irmã Salisa<br />
e do sobrinho Hussein Ben -Áli Al -Bálec com lágrimas<br />
nos olhos, canastras pesadas com os cequins turcos e as<br />
joias falsas com que o sobrinho lhe pagara o seu profundo<br />
conselho <strong>de</strong> economia política hebraica.<br />
Hussein fez o que lhe foi aconselhado; e as tâmaras<br />
começaram a ter mais oferta <strong>de</strong> preço. Ven<strong>de</strong>u -as com<br />
gran<strong>de</strong> lucro no primeiro ano; no segundo, se sentia uma<br />
certa resistência no mercado, ele as reteve <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte;<br />
mas, no terceiro ano, ele teve que comprar a produção<br />
e viu que ia aumentando o estoque do que se po<strong>de</strong> chamar<br />
<strong>de</strong> valorização das tâmaras. Viu b<strong>em</strong> que se continuasse<br />
a comprar a produção, ficaria com ele <strong>de</strong>masiado aumentado,<br />
a sua fortuna comprometida e que fez? Ce<strong>de</strong>u. As<br />
tâmaras começaram a <strong>de</strong>scer gour<strong>de</strong> a gour<strong>de</strong>. Teve uma<br />
i<strong>de</strong>ia que um sargento francês lhe indicou. Vendo que elas<br />
encalhavam nos seus armazéns e os pedidos cresciam lentamente;<br />
vendo, pouco a pouco, os seus coquinhos per<strong>de</strong>ndo<br />
o valor, alugou alguns gritadores que berrass<strong>em</strong>,<br />
nas ruas <strong>de</strong> Argel, a guerreira:<br />
– Vivam as tâmaras! Não há coisa melhor que as tâmaras<br />
<strong>de</strong> Hussein Ben -Áli Al -Bálec!<br />
Nas gazetas, ele pagava anúncios das suas tâmaras, mas<br />
não vendia mais que dantes. Deu -as <strong>de</strong> graça e, como toda<br />
coisa dada <strong>de</strong> graça, elas só agradavam <strong>de</strong>sse modo.<br />
Em se tratando <strong>de</strong> vendê -las, nada! Os surrões <strong>de</strong> tâmaras<br />
aumentavam nos seus armazéns, pois teimava <strong>em</strong><br />
comprá -las e guardá -las, para que elas não viess<strong>em</strong> afinal<br />
a não valer nada.<br />
O tapete <strong>de</strong> Esmirna que o pai lhe <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong>sfiava -se,<br />
<strong>em</strong>penhou as armas preciosas, também a herança do pai,<br />
para comprar mais sacas <strong>de</strong> tâmaras. Comprou um tapete<br />
101
lima barreto<br />
falso e umas armas vagabundas <strong>de</strong> um cabila 75 mais vagabundo<br />
ainda, para pôr no lugar das antigas preciosida<strong>de</strong>s.<br />
Os <strong>outros</strong> plantadores, que se tinham limitado a colher e<br />
ven<strong>de</strong>r, iam vivendo das suas mo<strong>de</strong>stas plantações; ele,<br />
Hussein Ben -Áli Al -Bálec, corria para a ruína certa.<br />
Foi por aí que, <strong>nova</strong>mente, lhe apareceu Miqueias<br />
Habacuc, seu tio, hom<strong>em</strong> hábil e esperto nos negócios.<br />
Hussein ficou espantado, mas o tio lhe disse:<br />
– Rebento da minha querida irmã, pelo Deus <strong>de</strong><br />
Abraão, <strong>de</strong> Israel e <strong>de</strong> Jacó, não te amedrontes: vendi as<br />
joias por um bom preço a um grego, com o que ganhei<br />
duas coisas: dinheiro e a glória <strong>de</strong> ter enganado um cão<br />
<strong>de</strong>ssa espécie. Mas, pelo Eterno! Esta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pagar -me o<br />
conselho <strong>em</strong> joias falsas não é tua… Isto t<strong>em</strong> <strong>de</strong>do <strong>de</strong> pessoa<br />
inteiramente da minha raça <strong>de</strong> Mardoc e Malaquias…<br />
Isto é <strong>de</strong> minha irmã! Não foi tua mãe qu<strong>em</strong>…<br />
– Foi. E que fizeste do dinheiro, tio amado da minha<br />
alma; socorro da minha vida?<br />
– Emprestei -o aos turcos com bons juros e quando os<br />
cobrei, quase me esfolaram. Muito t<strong>em</strong> sofrido a raça <strong>de</strong><br />
Israel; mas o que sofri <strong>de</strong>les, n<strong>em</strong> contar te posso – ó <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte<br />
do gran<strong>de</strong> Al -Bálec, companheiro <strong>de</strong> Musa –<br />
conquistador das Espanhas!<br />
Acabava <strong>de</strong> dizer estas palavras, quando entra no aposento<br />
<strong>em</strong> que estavam Salisa, a feroz Judite, a eloquente<br />
Débora – que, ao dar com o irmão, se põe <strong>em</strong> prantos,<br />
exclamando:<br />
– Irmão do coração, sábio Miqueias! Tu que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>s<br />
como eu <strong>de</strong> Micaia, da tribo <strong>de</strong> Jeroboão, e <strong>de</strong> Azarela, que<br />
era da casa <strong>de</strong> Leedã, salva -me pelo nosso Deus <strong>de</strong> Abraão,<br />
<strong>de</strong> Israel e <strong>de</strong> Jacó – salva -me!<br />
E a feroz Judite e eloquente Débora chorou não a sua<br />
dor, n<strong>em</strong> a dos <strong>outros</strong>, mas o dinheiro que se sumia.<br />
102
hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />
Contou, então, Hussein ao tio, como a ruína se aproximava;<br />
como a valorização das tâmaras, no começo dando<br />
tão bom resultado, viera a acabar, no fim, <strong>em</strong> <strong>de</strong>sastre<br />
completo.<br />
O velho Miqueias, filho <strong>de</strong> Uriel <strong>de</strong> Sepetai, coçou as<br />
barbas hirsutas; os seus olhinhos luziram naquele quadro<br />
<strong>de</strong> pelos cerdosos; <strong>de</strong>pois, faiscando -os malignamente,<br />
perguntou ao sobrinho:<br />
– Com que dinheiro tu, sobrinho meu; com que dinheiro<br />
fizeste a operação?<br />
Hussein disse -lhe que fora com o dinheiro <strong>de</strong>le e o da<br />
sua mãe. Miqueias Habacuc, ju<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Salônica, hom<strong>em</strong><br />
esperto e hábil <strong>em</strong> negócios, sorriu com gosto e <strong>de</strong>mora,<br />
dizendo após:<br />
– Tolo que és!<br />
– Por quê?<br />
Habacuc assim falou <strong>de</strong> súbito, logo imediatamente à<br />
pergunta:<br />
– Que me darás <strong>em</strong> troca pela explicação?<br />
– A última bolsa <strong>de</strong> cequins <strong>de</strong> ouro que me resta.<br />
– És generoso e gran<strong>de</strong>, sobrinho meu, filho <strong>de</strong> Salisa,<br />
minha irmã, guarda -a. Ganhar<strong>em</strong>os mais. Fizeste mal <strong>em</strong><br />
<strong>em</strong>pregar o teu dinheiro e o da tua mãe. Devias <strong>em</strong>pregar<br />
o dos <strong>outros</strong>.<br />
– Como, tio Miqueias?<br />
– Tu não sabes, meu sobrinho, essas operações <strong>de</strong><br />
câmbio e <strong>de</strong> banco. Eu as sei. Nós agora vamos organizar<br />
a <strong>de</strong>fesa das tâmaras, isto é, impedir que especuladores<br />
reduzam à miséria e à <strong>de</strong>solação esta rica região do<br />
Magreb, como dizia o teu gran<strong>de</strong> avô, Al -Bálec. Vamos<br />
pedir dinheiro aos seus habitantes, para que não morram<br />
<strong>de</strong> fome e não pereçam à míngua por falta <strong>de</strong> trabalho.<br />
– Não me darão, tio.<br />
103
lima barreto<br />
– Dar -te -ão, sobrinho do meu coração; dar -te -ão. Chama<br />
teus tios, irmãos <strong>de</strong> teu pai, e os filhos, e convence -os<br />
que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> dar as economias que têm, <strong>em</strong> moeda, para<br />
po<strong>de</strong>res lutar com os que quer<strong>em</strong> acabar com as plantações<br />
<strong>de</strong> tâmaras do vilaiete. Dize -lhes que se não o fizer<strong>em</strong><br />
as plantações morrerão, os habitantes fugirão, aqui ficará<br />
tudo <strong>de</strong>serto, s<strong>em</strong> água e s<strong>em</strong> pastagens; e os bens <strong>de</strong>les<br />
nada valerão e serão também eles obrigados a fugir, per<strong>de</strong>ndo<br />
muito, senão tudo.<br />
– E <strong>em</strong> troca?<br />
– Tu lhes darás vales que vencerão juros e pagarás os<br />
vales <strong>em</strong> certo prazo.<br />
– Mas…<br />
– Nada objetes, meio do meu sangue <strong>de</strong> Sepetai, mas<br />
meu sobrinho inteiramente. Não sabes o que é a cobiça;<br />
não sabes o que é querer ter dinheiro s<strong>em</strong> trabalhar. Eles<br />
aceitarão na certa e, não sendo ricos <strong>em</strong> breve precisarão<br />
<strong>de</strong> dinheiro. Eu vou pôr um “bazar” com o saco <strong>de</strong> cequins<br />
<strong>de</strong> ouro que te resta e farei saber que <strong>de</strong>sconte esses vales<br />
teus, <strong>em</strong> dinheiro ou <strong>em</strong> mercadoria. O pouco dinheiro<br />
que tens atrairá o <strong>de</strong>les, tu comprarás tâmaras, mas pagarás<br />
<strong>em</strong> vales que vencerão o juro <strong>de</strong> dois por cento, mas<br />
que eu <strong>de</strong>scontarei a vinte, trinta e mais por cento.<br />
– Se não quiser<strong>em</strong> <strong>de</strong>scontar, tio que és sábio como o<br />
mais sábio dos ul<strong>em</strong>ás, como há <strong>de</strong> ser?<br />
– Tens o dinheiro dos teus parentes. Em começo, pagarás<br />
tudo <strong>em</strong> dinheiro. Mas teus parentes, precisando <strong>de</strong><br />
dinheiro, irão, como te disse, procurar -me. Eu os aten<strong>de</strong>rei<br />
imediatamente. A fama correrá e ninguém t<strong>em</strong>erá<br />
receber os teus vales.<br />
– Compreendo. E as tâmaras?<br />
– Irás ven<strong>de</strong>ndo a bom preço e guardando o dinheiro,<br />
<strong>de</strong>ixando que uma gran<strong>de</strong> parte apodreça. Tu viverás na<br />
104
hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />
pompa, na gran<strong>de</strong>za, e um belo dia, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> eu <strong>de</strong>scontar<br />
vales, adquiro -os com ágio. Toda a gente quererá os<br />
teus vales e encher<strong>em</strong>os as arcas <strong>de</strong> dinheiro.<br />
– E no fim, no pagamento, como será?<br />
– Marcarás um prazo longo, pela festa do Beirão, e<br />
daqui até lá ter<strong>em</strong>os t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> agir.<br />
Hussein Ben -Áli Al -Bálec <strong>em</strong>pregou todas as lábias<br />
que lhe ensinou Miqueias Habacuc. Seus tios e primos<br />
entregaram -lhe as economias, pois ficaram muito contentes<br />
que ele se l<strong>em</strong>brasse <strong>de</strong> <strong>de</strong>fendê -los, <strong>de</strong> impedir a ser<br />
completa a miséria. Tio e sobrinho encheram os simplórios<br />
homens <strong>de</strong> todos os afagos, <strong>de</strong> todas as blandícias, 76<br />
e iniciaram a <strong>de</strong>fesa das tâmaras, que era a própria <strong>de</strong>fesa<br />
do vilaiete.<br />
Um único não quis entregar as terras <strong>de</strong> pastag<strong>em</strong>. Foi<br />
o tio que herdara as terras <strong>de</strong> pastag<strong>em</strong>. Dissera o velho:<br />
– As tâmaras não são do gosto <strong>de</strong> todo o mundo e as que<br />
se colh<strong>em</strong> são <strong>de</strong> sobra para os que gostam <strong>de</strong>las. Hão <strong>de</strong><br />
se as ven<strong>de</strong>r barato por força, pois são <strong>de</strong>mais.<br />
Hussein Ben -Áli Al -Bálec, porém, <strong>de</strong>u início à sua obra<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> eficácia para todo o vilaiete, ostentando uma<br />
riqueza, um luxo e uma magnificência que reduziram,<br />
fascinaram a imaginação do povo do lugar e das circunvizinhanças.<br />
O seu palácio foi aumentado; as suas estrebarias ficaram<br />
cheias <strong>de</strong> soberbos ginetes do Hedjaz, nas suas piscinas<br />
só corriam águas perfumadas – tudo ficou sendo um<br />
encanto no seu alcáçar 77 e <strong>de</strong>pendências.<br />
A fama <strong>de</strong> sua riqueza corria por toda a parte e até, <strong>em</strong><br />
Argel, a branca, a guerreira, seu nome era falado. Dizia a<br />
boca do povo:<br />
– Se todos foss<strong>em</strong> como Hussein Ben -Áli Al -Bálec conquistaríamos<br />
todo o Magreb, expulsando os rumes.<br />
105
lima barreto<br />
O seu crédito ficou sendo tal que todo o dinheiro que<br />
havia naquelas terras entrou para as suas arcas.<br />
As tâmaras subiram <strong>de</strong> preço, <strong>de</strong> fato; mas pouco.<br />
Entretanto, enquanto vendia um terço, guardava dois.<br />
Miqueias Habacuc exultava, com os <strong>de</strong>s<strong>contos</strong> que fazia<br />
e com o dinheiro que era trazido para as mãos do sobrinho.<br />
Só a irmã, a feroz Salisa, t<strong>em</strong>ia o fim e perguntava<br />
ao irmão:<br />
– Como pagar<strong>em</strong>os tantos vales, se já gastamos o<br />
dinheiro <strong>de</strong>les e t<strong>em</strong>os mais tâmaras guardadas que vendidas?<br />
– Cala -te, irmã que és minha. Aí é que está a minha<br />
gran<strong>de</strong> sabedoria.<br />
O dinheiro amoedado <strong>de</strong>sapareceu e os vales <strong>de</strong><br />
Hussein corriam como moeda. No começo equivaliam ao<br />
seu valor <strong>em</strong> cequins; mas, b<strong>em</strong> <strong>de</strong>pressa, para se comprar<br />
com eles um saas <strong>de</strong> trigo, tinha -se <strong>de</strong> gastar o duplo do<br />
que se gastava antigamente. O povo começava a <strong>de</strong>sconfiar,<br />
quando veio rebentar a guerra <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>lcá<strong>de</strong>r, <strong>em</strong>ir<br />
<strong>de</strong> Mascara. Andava ele precisando <strong>de</strong> homens e víveres.<br />
O <strong>em</strong>ir, que sabia do prestígio <strong>de</strong> Hussein naquele vilaiete,<br />
oferece -lhe alguns milhares <strong>de</strong> libras turcas, para que<br />
mandasse homens.<br />
Miqueias, que sabe do caso, intervém, e propõe que o<br />
sobrinho aceite, contanto que o <strong>em</strong>ir lhe compre as tâmaras.<br />
O <strong>em</strong>ir ace<strong>de</strong>, paga as mil libras turcas, compra as<br />
tâmaras <strong>de</strong> que não precisava.<br />
E Hussein convence os parentes que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> partir para<br />
os goums. 78 Para isso falou como um santo marabuto. 79<br />
Antes da festa do Beirão, época que era marcada para<br />
o vencimento dos vales, fugia, com a mãe, a feroz Salisa,<br />
o tio Miqueias Habacuc, hom<strong>em</strong> hábil e esperto <strong>em</strong> negócios<br />
– cheios todos <strong>de</strong> ouro, ricos <strong>de</strong> apodrecer.<br />
106
hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />
No vilaiete a população caiu na miséria, menos aquele<br />
tio <strong>de</strong> Hussein Ben -Áli Al -Bálec, que não quis entrar na<br />
<strong>de</strong>fesa das tâmaras.<br />
Durante muito t<strong>em</strong>po, pastoreou as suas ovelhas e<br />
tosou os seus carneiros. Os seus netos ainda hoje faz<strong>em</strong><br />
a mesma coisa naquele lugarejo argelino, on<strong>de</strong> as inocentes<br />
tamareiras, se não constitu<strong>em</strong> objeto <strong>de</strong> maldição, são<br />
tidas como simples árvores <strong>de</strong> adorno.<br />
107
O feiticeiro e o <strong>de</strong>putado *<br />
Nos arredores do “Posto Agrícola <strong>de</strong> Cultura Experimental<br />
<strong>de</strong> Plantas Tropicais”, que, como se sabe, fica no<br />
município Contra -Almirante Doutor Fre<strong>de</strong>rico Antônio<br />
da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante<br />
singular.<br />
Conheciam -no no lugar, que, antes do batismo burocrático,<br />
tivera o nome doce e espontâneo <strong>de</strong> Inhangá, por “feiticeiro”;<br />
o mesmo, certa vez a ativa polícia local, <strong>em</strong> falta do<br />
que fazer, chamou -o a explicações. Não julgu<strong>em</strong> que fosse<br />
negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo<br />
o povo das redon<strong>de</strong>zas teimava <strong>em</strong> chamá -lo <strong>de</strong> “feiticeiro”.<br />
É b<strong>em</strong> possível que essa alcunha tivesse tido orig<strong>em</strong> no<br />
mistério <strong>de</strong> sua chegada e na extravagância <strong>de</strong> sua maneira<br />
<strong>de</strong> viver.<br />
Fora mítico o seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barque. Um dia apareceu numa<br />
das praias do município e ficou, tal e qual Manco Capac, 80<br />
no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas.<br />
Comprou, por algumas centenas <strong>de</strong> mil -réis, um pequeno<br />
sítio com uma miserável choça, coberta <strong>de</strong> sapé, pare<strong>de</strong>s a<br />
* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).<br />
109
lima barreto<br />
sopapo; e tratou <strong>de</strong> cultivar -lhe as terras, vivendo taciturno<br />
e s<strong>em</strong> relações quase.<br />
A meia encosta da colina, o seu casebre crescia como<br />
um cômoro <strong>de</strong> cupins; ao redor, os cajueiros, as bananeiras<br />
e as laranjeiras afagavam -no com amor; e cá <strong>em</strong>baixo,<br />
no sopé do morrote, <strong>em</strong> torno do poço <strong>de</strong> água salobre,<br />
as couves rever<strong>de</strong>sciam nos canteiros, aos seus cuidados<br />
incessantes e tenazes.<br />
Era moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos<br />
anos; e um olhar doce e triste, errante e triste e duro, se<br />
fitava qualquer coisa.<br />
Toda a manhã viam -no <strong>de</strong>scer à rega das couves; e, pelo<br />
dia <strong>em</strong> fora, roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe falavam,<br />
dizia:<br />
– “Seu” Ernesto t<strong>em</strong> visto como a seca anda “brava”.<br />
– É verda<strong>de</strong>.<br />
– Neste mês “todo” não t<strong>em</strong>os chuva.<br />
– Não acho… Abril, águas mil.<br />
Se lhe interrogavam sobre o passado, calava -se; ninguém<br />
se atrevia a insistir e ele continuava na sua faina hortícola,<br />
à marg<strong>em</strong> da estrada.<br />
À tar<strong>de</strong>, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando<br />
as tar<strong>de</strong>s são longas, ainda era visto <strong>de</strong>pois, sentado à porta <strong>de</strong><br />
sua choupana. A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia,<br />
o Dom Quixote, a Divina comédia, o Robinson e o Pensées,<br />
<strong>de</strong> Pascal. O seu primeiro ano ali <strong>de</strong>via ter sido <strong>de</strong> torturas.<br />
A <strong>de</strong>sconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas<br />
certamente teriam -no feito sofrer muito, tanto mais que<br />
já <strong>de</strong>via ter chegado sofrendo muito profundamente, por<br />
certo <strong>de</strong> amor, pois todo o sofrimento v<strong>em</strong> <strong>de</strong>le.<br />
Se se é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é<br />
b<strong>em</strong> este que nos provoca a dor moral: é a certeza <strong>de</strong> que<br />
ele não nos <strong>de</strong>ixa amar plenamente…<br />
110
111<br />
o feiticeiro e o <strong>de</strong>putado<br />
Cochichavam que matara, que roubara, que falsificara;<br />
mas a palavra do <strong>de</strong>legado do lugar, que indagara dos<br />
seus antece<strong>de</strong>ntes, levou a todos confiança no moço, s<strong>em</strong><br />
que per<strong>de</strong>sse a alcunha e a suspeita <strong>de</strong> feiticeiro. Não era<br />
um malfeitor; mas entendia <strong>de</strong> mandingas. A sua bonda<strong>de</strong><br />
natural para tudo e para todos acabou <strong>de</strong>sarmando a<br />
população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro<br />
bom.<br />
Um dia sinhá Chica animou -se a consultá -lo:<br />
– “Seu” Ernesto: viraram a cabeça <strong>de</strong> meu filho… Deu<br />
“pa bebê”… “Tá arrelaxando”…<br />
– Minha senhora, que hei <strong>de</strong> eu fazer?<br />
– O “sinhô” po<strong>de</strong>, sim! “Conversa cum” santo…<br />
O solitário, encontrando -se por acaso, naquele mesmo<br />
dia, com o filho da pobre rapariga, disse lhe doc<strong>em</strong>ente<br />
estas simples palavras:<br />
– Não beba, rapaz. É feio, estraga – não beba!<br />
E o rapaz pensou que era o Mistério qu<strong>em</strong> lhe falava e<br />
não bebeu mais. Foi um milagre que mais repercutiu com<br />
o que contou o Teófilo Can<strong>de</strong>eiro.<br />
Este incorrigível bebaço, a qu<strong>em</strong> atribuíam a invenção<br />
do tratamento das sezões, 81 pelo parati, dias <strong>de</strong>pois,<br />
<strong>em</strong> um cavaco <strong>de</strong> venda, narrou que vira, uma tardinha,<br />
aí quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do<br />
“hom<strong>em</strong>” um pássaro branco, gran<strong>de</strong>, maior do que um<br />
pato; e, por baixo do seu voo rasteiro, as árvores todas se<br />
abaixavam, como se quisess<strong>em</strong> beijar a terra.<br />
Com essas e outras, o solitário <strong>de</strong> Inhangá ficou sendo<br />
como um príncipe encantado, um gênio bom, a qu<strong>em</strong> não<br />
se <strong>de</strong>via fazer mal.<br />
Houve mesmo qu<strong>em</strong> o supusesse um Cristo, um Messias.<br />
Era a opinião do Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo<br />
sacristão, que dava a Deus e a César o que era <strong>de</strong> um
lima barreto<br />
e o que era <strong>de</strong> outro; mas o escriturário do posto, “seu”<br />
Almada, contrariava -o, dizendo que se o primeiro Cristo<br />
não existiu, então um segundo!…<br />
O escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que<br />
escrevia <strong>em</strong> ortografia pretensiosa os pálidos ofícios,<br />
r<strong>em</strong>etendo mudas <strong>de</strong> laranjeiras e abacateiros para o Rio.<br />
A opinião do escriturário era <strong>de</strong> exegeta, 82 mas a do<br />
médico era <strong>de</strong> psiquiatra.<br />
Esse “anelado” ainda hoje é um enfezadinho, muito<br />
lido <strong>em</strong> livros grossos e conhecedor <strong>de</strong> uma quantida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> nomes <strong>de</strong> sábios; e diagnosticou: um puro louco.<br />
Esse “anelado” ainda hoje é uma esperança <strong>de</strong> ciência…<br />
O “feiticeiro”, porém, continuava a viver no seu rancho<br />
sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas<br />
do doutor e do escriturário, o seu <strong>de</strong>sdém soberano <strong>de</strong><br />
miserável in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte; e ao estulto julgamento do bondoso<br />
Mané Bitu, a doce compaixão <strong>de</strong> sua alma terna e<br />
afeiçoada…<br />
De manhã e à tar<strong>de</strong>, regava as suas couves; pelo dia <strong>em</strong><br />
fora, plantava, colhia, fazia e rachava lenha, que vendia<br />
aos feixes, ao Mané Bitu, para po<strong>de</strong>r comprar as utilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> que necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase<br />
só naquele município <strong>de</strong> Inhangá, hoje burocraticamente<br />
chamado – “Contra -Almirante Doutor Fre<strong>de</strong>rico Antônio<br />
da Mota Batista”.<br />
Um belo dia foi visitar o posto o Deputado Braga, um<br />
elegante senhor, b<strong>em</strong> posto, polido e cético.<br />
O diretor não estava, mas o doutor Chupadinho, o<br />
sábio escriturário Almada e o ven<strong>de</strong>iro Bitu, representando<br />
o “capital” da localida<strong>de</strong>, receberam o parlamentar<br />
com todas as honras e não sabiam como agradá -lo.<br />
Mostraram -lhe os recantos mais agradáveis e pinturescos,<br />
as praias longas e brancas e também as estranguladas<br />
112
113<br />
o feiticeiro e o <strong>de</strong>putado<br />
entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios<br />
e cismadores do alto das colinas; as plantações <strong>de</strong> batatas-<br />
-doces; a ceva dos porcos…<br />
Por fim, ao <strong>de</strong>putado que já se ia fatigando com aqueles<br />
dias, a passar tão cheio <strong>de</strong> assessores, o doutor Chupadinho<br />
convidou:<br />
– Vamos ver, doutor, um <strong>de</strong>generado que passa por santo<br />
ou feiticeiro aqui. É um <strong>de</strong>mentado que, se a lei fosse lei,<br />
já <strong>de</strong> há muito estaria aos cuidados da ciência, <strong>em</strong> algum<br />
manicômio.<br />
E o escriturário acrescentou:<br />
– Um maníaco religioso, um raro ex<strong>em</strong>plar daquela<br />
espécie <strong>de</strong> gente com que as outras ida<strong>de</strong>s fabricavam os<br />
seus santos.<br />
E o Mané Bitu:<br />
– É um rapaz honesto… Bom moço – é o que posso<br />
dizer <strong>de</strong>le.<br />
O <strong>de</strong>putado, s<strong>em</strong>pre cético e complacente, concordou<br />
<strong>em</strong> acompanhá -los à morada do feiticeiro. Foi s<strong>em</strong> curiosida<strong>de</strong>,<br />
antes indiferente, com uma ponta <strong>de</strong> tristeza no olhar.<br />
O “feiticeiro” trabalhava na horta, que ficava ao redor<br />
do poço, na várzea, à beira da estrada.<br />
O <strong>de</strong>putado olhou -o e o solitário, ao tropel <strong>de</strong> gente,<br />
ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada,<br />
voltou -se e fitou os quatro. Encarou mais firm<strong>em</strong>ente o<br />
<strong>de</strong>sconhecido e parecia procurar r<strong>em</strong>iniscências. O legislador<br />
fitou -o também um instante e, antes que pu<strong>de</strong>sse o<br />
“feiticeiro” dizer qualquer coisa, correu até ele e abraçou -o<br />
muito e <strong>de</strong>moradamente.<br />
– És tu, Ernesto?<br />
– És tu, Braga?<br />
Entraram. Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte<br />
e os dois conversaram particularmente.
lima barreto<br />
Quando saíram, Almada perguntou:<br />
– O doutor conhecia -o?<br />
– Muito. Foi meu amigo e colega.<br />
– É formado? indagou o doutor Chupadinho.<br />
– É.<br />
– Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus ares,<br />
a maneira com que se porta fizeram -me crer isso; o povo,<br />
porém…<br />
– Eu também, observou Almada, s<strong>em</strong>pre tive essa opinião<br />
íntima; mas essa gente por aí leva a dizer…<br />
– Cá para mim, disse Bitu, s<strong>em</strong>pre o tive por honesto.<br />
Paga s<strong>em</strong>pre as suas contas.<br />
E os quatro voltaram <strong>em</strong> silêncio para a se<strong>de</strong> do “Posto<br />
Agrícola <strong>de</strong> Cultura Experimental <strong>de</strong> Plantas Tropicais”.<br />
114
Uma noite no Lírico *<br />
Poucas vezes ia ao antigo Pedro II, 83 e as poucas <strong>em</strong> que<br />
lá fui, era das galerias que assistia ao espetáculo.<br />
Munido do competente bilhete, às oito horas, entrava,<br />
subia, procurava o lugar marcado e nele mantinha -me,<br />
durante a representação. De forma que aquela socieda<strong>de</strong><br />
brilhante que eu via formigar nos camarotes e nas ca<strong>de</strong>iras,<br />
me aparecia distante, colocada muito afastada <strong>de</strong><br />
mim, <strong>em</strong> lugar inacessível, no fundo <strong>de</strong> cratera <strong>de</strong> vulcão<br />
extinto. Cá do alto, <strong>de</strong>bruçado na gra<strong>de</strong>, eu sorvia o<br />
vazio da sala com a volúpia <strong>de</strong> uma atração <strong>de</strong> abismo. As<br />
casacas corretas, os uniformes aparatosos, as altas toaletes<br />
das senhoras, s<strong>em</strong>eadas entre eles, tentavam -me,<br />
hipnotizavam -me. Decorava os movimentos, os gestos<br />
dos cavalheiros e procurava <strong>de</strong>scobrir a harmonia oculta<br />
entre eles e os risos e os a<strong>de</strong>manes 84 das damas.<br />
Nos intervalos, encostado a uma das colunas que sustentam<br />
o teto, observando os camarotes, apurava o meu<br />
estudo do hors ‑ligne, 85 do distinto, com os espectadores<br />
que ficavam nas lojas.<br />
* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).<br />
115
lima barreto<br />
Via correr<strong>em</strong> -se -lhes os reposteiros, e os cavalheiros<br />
b<strong>em</strong> encasacados, juntar<strong>em</strong> os pés, curvar<strong>em</strong> ligeiramente<br />
o corpo, apertar<strong>em</strong> ou mesmo beijar<strong>em</strong> a mão das damas<br />
que se mantinham eretas, encostadas a uma das ca<strong>de</strong>iras,<br />
<strong>de</strong> costas para a sala, com o leque <strong>em</strong> uma das mãos caídas<br />
ao longo do corpo. Quantas vezes não tive ímpetos <strong>de</strong><br />
ali mesmo, com risco <strong>de</strong> parecer doido ao polícia vizinho,<br />
imitar aquele cavalheiro?<br />
Quase tomava notas, <strong>de</strong>senhava esqu<strong>em</strong>as da postura,<br />
das maneiras, das mesuras do elegante senhor…<br />
Havia naquilo tudo, na singular concordância dos<br />
olhares e gestos, dos a<strong>de</strong>manes e posturas dos interlocutores,<br />
uma relação oculta, uma vaga harmonia, uma <strong>de</strong>liciosa<br />
equivalência que mais do que o espetáculo do palco,<br />
me interessavam e seduziam. E tal era o ascen<strong>de</strong>nte que<br />
tudo isso tinha sobre o meu espírito que, ao chegar <strong>em</strong><br />
casa, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>itar, quase repetia, com o meu velho chapéu<br />
<strong>de</strong> feltro, diante do meu espelho ordinário, as performances<br />
do cavalheiro.<br />
Quando cheguei ao quinto ano do curso e os meus <strong>de</strong>stinos<br />
me impuseram, resolvi habilitar -me com uma casaca<br />
e uma assinatura <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ira do Lírico. Fiz consignações e<br />
toda a espécie <strong>de</strong> agiotag<strong>em</strong> com os meus vencimentos <strong>de</strong><br />
funcionário público e para lá fui.<br />
Nas primeiras representações, pouco familiarizado<br />
com aquele mundo, não tive gran<strong>de</strong>s satisfações; mas, por<br />
fim, habituei -me.<br />
As criadas não se faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> instantes duquesas? Eu me<br />
fiz logo hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>.<br />
O meu colega Cardoso, moço rico, cujo pai enriquecera<br />
na indústria das in<strong>de</strong>nizações, muito concorreu para isso.<br />
Fora simples a ascensão do pai à riqueza. Pelo t<strong>em</strong>po<br />
do governo provisório, o velho Cardoso pedira concessão<br />
116
117<br />
uma noite no lírico<br />
para instalar uns poucos <strong>de</strong> burgos agrícolas, com colonos<br />
javaneses, nas nascentes do Purus; mas, não os tendo<br />
instalado no prazo, o governo seguinte cassou o contrato.<br />
Aconteceu, porém, que ele provou ter construído lá<br />
um rancho <strong>de</strong> palha. Foi para os tribunais que lhe <strong>de</strong>ram<br />
ganho <strong>de</strong> causa, e recebeu <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização cerca <strong>de</strong> quinhentos<br />
<strong>contos</strong>.<br />
Encarregou -se o jov<strong>em</strong> Cardoso <strong>de</strong> me apresentar<br />
ao “mundo”, <strong>de</strong> me informar sobre toda aquela gente.<br />
L<strong>em</strong>bro -me b<strong>em</strong> que, certa noite, me levou ao camarote<br />
dos viscon<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jacarepaguá. A viscon<strong>de</strong>ssa estava só; o<br />
marido e a filha tinham ido ao bufê. Era a viscon<strong>de</strong>ssa uma<br />
senhora idosa, <strong>de</strong> traços <strong>em</strong>pastados, s<strong>em</strong> relevo algum, <strong>de</strong><br />
ventre pro<strong>em</strong>inente, com um pince ‑nez <strong>de</strong> ouro trepado<br />
sobre o pequeno nariz e s<strong>em</strong>pre a agitar o cordão <strong>de</strong> ouro<br />
que prendia um gran<strong>de</strong> leque rococó.<br />
Quando entramos, estava sentada, com as mãos unidas<br />
sobre o ventre, tendo o fatal leque entre elas, o corpo<br />
inclinado para trás e a cabeça a repousar sobre o espaldar<br />
da ca<strong>de</strong>ira. Mal <strong>de</strong>smanchou a posição <strong>em</strong> que estava, respon<strong>de</strong>u<br />
maternalmente aos cumprimentos, e interrogou<br />
o meu amigo sobre a família.<br />
– Não <strong>de</strong>sceram <strong>de</strong> Petrópolis, este ano?<br />
– Meu pai não t<strong>em</strong> querido… Há tanta bexiga…<br />
– Que medo tolo! Não acha doutor? dirigindo -se a<br />
mim.<br />
Respondi:<br />
– Penso assim também, viscon<strong>de</strong>ssa.<br />
Ela ajuntou então:<br />
– Olhe, doutor… como é a sua graça?<br />
– Bastos, Fre<strong>de</strong>rico.<br />
– Olhe, doutor Fre<strong>de</strong>rico; lá <strong>em</strong> casa, havia uma rapariga…<br />
uma negra… boa rapariga…
lima barreto<br />
E, por aí, <strong>de</strong>sandou a contar a história vulgar <strong>de</strong> uma<br />
pessoa que trata <strong>de</strong> outra atacada <strong>de</strong> moléstia contagiosa<br />
e não apanha doença, enquanto a que foge v<strong>em</strong> a morrer<br />
<strong>de</strong>la.<br />
Depois da sua narração, houve um curto silêncio; ela,<br />
porém, o quebrou:<br />
– Que tal o tenor?<br />
– É bom, disse o meu amigo. Não é <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m,<br />
mas se o po<strong>de</strong> ouvir…<br />
– Ah! O Tamagno! suspirou a viscon<strong>de</strong>ssa.<br />
– O câmbio está mau, refleti; os <strong>em</strong>presários não po<strong>de</strong>m<br />
trazer notabilida<strong>de</strong>s.<br />
– N<strong>em</strong> tanto, doutor! Quando estive na Europa, pagava<br />
por um camarote quase a mesma coisa que aqui… Era<br />
outra coisa! Que diferença!<br />
Como houvess<strong>em</strong> anunciado o começo do ato seguinte,<br />
<strong>de</strong>spedimo -nos. No corredor, encontramos o viscon<strong>de</strong><br />
e a filha. Cumprimentamo -nos rapidamente e <strong>de</strong>sc<strong>em</strong>os<br />
para as ca<strong>de</strong>iras.<br />
Meu companheiro, segundo a praxe elegante e <strong>de</strong>sgraciosa,<br />
não quis entrar logo. Era mais chique esperar o<br />
começo do ato… Eu, porém, que era <strong>nova</strong>to, fui tratando<br />
<strong>de</strong> abancar -me. Ao entrar na sala, <strong>de</strong>i com o Alfredo Costa,<br />
o que me causou gran<strong>de</strong> surpresa, por sabê -lo, apesar<br />
<strong>de</strong> rico, o mais feroz inimigo daquela gente toda. Não foi<br />
durável o meu espanto. Juvenal tinha posto a casaca e cartola,<br />
para melhor zombar, satirizar e estudar aquele meio.<br />
– De que te admiras? Venho a este barracão imundo,<br />
feio, pechisbeque, 86 que faz todo o Brasil roubar, matar,<br />
prevaricar, adulterar, a fim <strong>de</strong> rir -me <strong>de</strong>ssa gente que t<strong>em</strong><br />
as almas candidatas ao pez ar<strong>de</strong>nte do inferno. On<strong>de</strong><br />
estás?<br />
Disse -lhe eu, ao que ele me convidou:<br />
118
119<br />
uma noite no lírico<br />
– V<strong>em</strong> para junto <strong>de</strong> mim… Ao meu lado, a ca<strong>de</strong>ira está<br />
vazia e o dono não virá. É a do Abrantes que me avisou<br />
disso, pois, no fim do primeiro ato, me disse que tinha <strong>de</strong><br />
estar <strong>em</strong> certo lugar especial… V<strong>em</strong> que o lugar é bom<br />
para observar.<br />
Aceitei. Não tardou que o ato começasse e a sala se<br />
enchesse…<br />
Ele, logo que a viu assim, falou -me:<br />
– Não te dizia que, daqui, tu po<strong>de</strong>rias ver quase toda<br />
a sala?<br />
– É verda<strong>de</strong>! Bela casa!<br />
– Cheia, rica! observou o meu amigo com um acento<br />
sarcástico.<br />
– Há muito que não via tanta gente po<strong>de</strong>rosa e rica reunida.<br />
– E eu há muito t<strong>em</strong>po que não via tantos casos notáveis<br />
da nossa triste humanida<strong>de</strong>. Estamos como que diante <strong>de</strong><br />
vitrinas <strong>de</strong> um museu <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> patologia social.<br />
Estiv<strong>em</strong>os calados, ouvindo a música; mas, ao surgir<br />
na boca <strong>de</strong> um camarote, à minha direita, já pelo meio do<br />
ato, uma mulher, alta, esguia, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, cuja tez<br />
moreno -claro e as joias rutilantes saíam muito friamente<br />
do fundo negro do vestido, discretamente <strong>de</strong>cotado <strong>em</strong><br />
quadrado, eu perguntei:<br />
– Qu<strong>em</strong> é?<br />
– Não conheces? A Pilar, a “Espanhola”.<br />
– Ah! Como se consente?<br />
– É um lugar público… Não há provas. D<strong>em</strong>ais, todas<br />
as “outras” a invejavam… T<strong>em</strong> joias caras, carros, palacetes…<br />
–Já vens tu…<br />
– Ora! Queres ver? Vê o sexto camarote <strong>de</strong> segunda<br />
or<strong>de</strong>m, contando <strong>de</strong> lá para cá! Viste?
lima barreto<br />
–Vi.<br />
– Conheces a senhora que lá está?<br />
– Não, respondi.<br />
– É a mulher do Aldong, que não t<strong>em</strong> rendimentos,<br />
s<strong>em</strong> profissão conhecida ou com a vaga <strong>de</strong> que trata <strong>de</strong><br />
negócios. Pois b<strong>em</strong>: há mais <strong>de</strong> vinte anos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />
gasto a fortuna da mulher, ele a sustenta como um nababo.<br />
Adiante, <strong>em</strong>baixo, no camarote <strong>de</strong> primeira Or<strong>de</strong>m vês<br />
aquela moça que está com a família?<br />
– Vejo. Qu<strong>em</strong> é?<br />
– É a filha do doutor Silva a qu<strong>em</strong>, certo dia, encontraram,<br />
<strong>em</strong> uma festa campestre, naquela atitu<strong>de</strong> que Anatole<br />
France, 87 num dos Bergerets, diz ter alguma coisa <strong>de</strong> luta<br />
e <strong>de</strong> amor… E os homens não ficam atrás…<br />
– És cruel!<br />
– Repara naquele que está na segunda fila, quarta<br />
ca<strong>de</strong>ira, primeira classe. Sabes <strong>de</strong> que vive?<br />
– Não.<br />
– N<strong>em</strong> eu. Mas, ao que corre, é banqueiro <strong>de</strong> casa <strong>de</strong><br />
jogo. E aquele general, acolá? Qu<strong>em</strong> é?<br />
– Não sei.<br />
– O nome não v<strong>em</strong> ao acaso; mas s<strong>em</strong>pre ganhou as<br />
batalhas… nos jornais. Aquele almirante que tu vês,<br />
naquele camarote, possui todas as bravuras, menos a <strong>de</strong><br />
afrontar os perigos do mar. Mais além, está o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bargador<br />
Genserico…<br />
Costa não pô<strong>de</strong> acabar. O ato terminava: palmas<br />
entrelaçavam -se, bravos soavam. A sala toda era uma<br />
vibração única <strong>de</strong> entusiasmo. Saímos para o saguão e eu<br />
me pus a ver todos aqueles homens e mulheres tão maldosamente<br />
catalogados pelo meu amigo. Notei -lhe as feições<br />
transtornadas, o tormento do futuro, a certeza da instabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> suas posições. Vi todos eles a arrombar portas,<br />
120
121<br />
uma noite no lírico<br />
arcas, sôfregos, febris, preocupados por não fazer bulha,<br />
a correr à menor que fosse…<br />
E ali, entre eles, a “Espanhola” era a única que me aparecia<br />
calma, segura dos dias a vir, s<strong>em</strong> pressa, s<strong>em</strong> querer<br />
atropelar os <strong>outros</strong>, com o brilho estranho da pessoa<br />
humana que po<strong>de</strong> e não se atormenta…
A biblioteca *<br />
123<br />
A Pereira da Silva<br />
À proporção que avançava <strong>em</strong> anos, mais nítidas lhe<br />
vinham as r<strong>em</strong>iniscências das coisas da casa paterna. Ficava<br />
ela lá pelas bandas da rua do Con<strong>de</strong>, por on<strong>de</strong> passavam<br />
então as estrondosas e fagulhentas “maxambombas” 88 da<br />
Tijuca. Era um casarão gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong> dois andares, rés do<br />
chão, chácara cheia <strong>de</strong> fruteiras, rico <strong>de</strong> salas, quartos,<br />
alcovas, povoado <strong>de</strong> parentes, contraparentes, fâmulos, 89<br />
escravos; e a escada que servia os dois pavimentos, situada<br />
um pouco além da fachada, a <strong>de</strong>sdobrar -se <strong>em</strong> toda a<br />
largura do prédio, era iluminada por uma gran<strong>de</strong> e larga<br />
claraboia <strong>de</strong> vidros multicores. Todo ele era assoalhado<br />
<strong>de</strong> peroba <strong>de</strong> Campos, com vastas tábuas largas, quase<br />
da largura da tora <strong>de</strong> que nasceram; e as esquadrias, portas,<br />
janelas, eram <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei. Mesmo a cocheira e<br />
o albergue da sege eram <strong>de</strong> boa ma<strong>de</strong>ira e tudo coberto<br />
<strong>de</strong> excelentes e pesadas telhas. Que coisas curiosas<br />
havia entre os seus móveis e alfaias? Aquela mobília <strong>de</strong><br />
* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).
lima barreto<br />
jacarandá -cabiúna com o seu vasto canapé, <strong>de</strong> três espaldares,<br />
ovalados e vastos, que mais parecia uma cama que<br />
mesmo um móvel <strong>de</strong> sala; aqueles imensos consolos, pesados,<br />
e ainda mais com aqueles enormes jarrões <strong>de</strong> porcelana<br />
da Índia que não v<strong>em</strong>os mais; aqueles <strong>de</strong>smedidos<br />
retratos dos seus antepassados, a ocupar as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alto<br />
a baixo – on<strong>de</strong> andava tudo aquilo? Não sabia… Ven<strong>de</strong>ra<br />
ele, aqueles objetos? Alguns; e <strong>de</strong>ra muitos.<br />
Umas coisas, porém, ficaram com o irmão que morrera<br />
cônsul na Inglaterra e lá <strong>de</strong>ixara a prole; outras, com a<br />
irmã que se casara para o Pará… Tudo, enfim, <strong>de</strong>saparecera.<br />
O que ele estranhava ter <strong>de</strong>saparecido eram as alfaias<br />
<strong>de</strong> prata, as colheres, as facas, o coador <strong>de</strong> chá…<br />
E o espevitador 90 <strong>de</strong> velas? Como ele se l<strong>em</strong>brava <strong>de</strong>sse<br />
utensílio obsoleto, <strong>de</strong> prata! Era com ternura que se<br />
recordava <strong>de</strong>le, nas mãos <strong>de</strong> sua mãe, quando, nos longos<br />
serões, na sala <strong>de</strong> jantar, à espera do chá – que chá! – ele o<br />
via aparar os morrões das velas do can<strong>de</strong>labro, enquanto<br />
ela, sua mãe, não interrompia a história do Príncipe Tatu,<br />
que estava contando…<br />
A tia Maria Benedita, muito velha, ao lado, sentada<br />
na estreita ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> jacarandá, tendo o busto ereto,<br />
encostado ao alto espaldar, ficava do lado, com os braços<br />
estendidos sobre os da ca<strong>de</strong>ira, o tamborete aos pés,<br />
olhando atenta aquela sessão familiar, com o seu agudo<br />
olhar <strong>de</strong> velha e a sua hierática pose <strong>de</strong> estátua tebana<br />
tumular. Eram os nhonhôs e nhanhãs, nas ca<strong>de</strong>iras; e as<br />
crias e molecotes acocorados no assoalho, a ouvir… Era<br />
me nino…<br />
O aparelho <strong>de</strong> chá, o usual, o <strong>de</strong> todo o dia, como era<br />
lindo! Feito <strong>de</strong> uma louça negra, com ornatos <strong>em</strong> relevo, e<br />
um discreto esmalte muito igual <strong>de</strong> brilho – don<strong>de</strong> viera<br />
aquilo? Da China, da Índia?<br />
124
125<br />
a biblioteca<br />
E a gamela 91 <strong>de</strong> bacurubu <strong>em</strong> que a Inácia, a sua ama,<br />
lhe dava banho – on<strong>de</strong> estava? Ah! As mudanças! Antes<br />
nunca tivesse vendido a casa paterna…<br />
A casa é que conserva todas as recordações <strong>de</strong> família.<br />
Perdida que seja, como que ela se vinga fazendo dispersar<br />
as relíquias familiares que, <strong>de</strong> algum modo, conservavam<br />
a alma e a essência das pessoas queridas e mortas… Ele<br />
não podia, entretanto, manter o casarão… Foram o t<strong>em</strong>po,<br />
as leis, o progresso…<br />
Todos aqueles trastes, todos aqueles objetos, no seu<br />
t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> menino, s<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> valia, hoje valeriam muito…<br />
Tinha ainda o bule do aparelho <strong>de</strong> chá, um escumador,<br />
um guéridon 92 com trabalho <strong>de</strong> <strong>em</strong>butido… Se ele<br />
tivesse (insistia) conservado a casa, tê -los -ia todos hoje,<br />
para po<strong>de</strong>r rever o perfil aquilino, duro e severo do seu<br />
pai, tal qual estava ali, no retrato <strong>de</strong> Agostinho da Mota,<br />
professor <strong>de</strong> aca<strong>de</strong>mia; e também a figurinha <strong>de</strong> Sèvres<br />
que era a sua mãe <strong>em</strong> moça, mas que os retratistas da terra<br />
nunca souberam pôr na tela. Mas não pô<strong>de</strong> conservar<br />
a casa… A constituição da família carioca foi insensivelmente<br />
se modificando; e ela era gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para a sua.<br />
De resto, o inventário, as partilhas, a diminuição <strong>de</strong> rendas,<br />
tudo isso tirou -a <strong>de</strong>le. A culpa não era sua, <strong>de</strong>le, era<br />
da marcha da socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> que vivia…<br />
Essas recordações lhe vinham s<strong>em</strong>pre e cada vez mais<br />
fortes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os quarenta e cinco anos; estivesse triste ou<br />
alegre, elas lhe acudiam. Seu pai, o conselheiro Fernan<strong>de</strong>s<br />
Carregal, tenente -coronel do Corpo <strong>de</strong> Engenheiros<br />
e lente da Escola Central, era filho do sargento -mor <strong>de</strong><br />
engenharia e também lente da Aca<strong>de</strong>mia Real Militar que<br />
o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Linhares, ministro <strong>de</strong> dom João VI, fundou<br />
<strong>em</strong> 1810, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, com o fim <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver<strong>em</strong><br />
entre nós os estudos <strong>de</strong> ciências mat<strong>em</strong>áticas, físicas
lima barreto<br />
e naturais, como lá diz o ato oficial que a instituiu. Desta<br />
aca<strong>de</strong>mia todos sab<strong>em</strong> como vieram a surgir a atual Escola<br />
Politécnica e a extinta Escola Militar da Praia Vermelha. O<br />
filho <strong>de</strong> Carregal, porém, não passara por nenhuma <strong>de</strong>las;<br />
e, apesar <strong>de</strong> farmacêutico, nunca se sentira atraído pela<br />
especialida<strong>de</strong> dos estudos do pai. Este <strong>de</strong>dicara -se, a seu<br />
modo e ao nosso jeito, à Química. Tinha por ela uma gran<strong>de</strong><br />
mania… bibliográfica. A sua biblioteca a esse respeito<br />
era completa e valiosa. Possuía verda<strong>de</strong>iros “incunábulos”<br />
93 , se assim se po<strong>de</strong> dizer, da química mo<strong>de</strong>rna. No original<br />
ou <strong>em</strong> tradução, lá havia preciosida<strong>de</strong>s. De Lavoisier,<br />
encontravam -se quase todas as m<strong>em</strong>órias, além do seu<br />
extraordinário e sagacíssimo Traité élémentaire <strong>de</strong> chimie,<br />
présenté dans un ordre et d’après les découvertes mo<strong>de</strong>rnes<br />
[Tratado el<strong>em</strong>entar <strong>de</strong> química, apresentado <strong>em</strong> uma <strong>nova</strong><br />
or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong> acordo com as <strong>de</strong>scobertas mo<strong>de</strong>rnas].<br />
O velho lente, no dizer do filho, não podia pegar nesse<br />
respeitável livro que não fosse tomado <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />
<strong>em</strong>oção.<br />
– Veja só meu filho, como os homens são maus! Lavoisier<br />
publicou esta maravilhosa obra no início da Revolução,<br />
a qual ele sinceramente aplaudiu… Ela o mandou<br />
para o cadafalso – sabe você por quê?<br />
– Não, papai.<br />
– Porque Lavoisier tinha sido uma espécie <strong>de</strong> coletor ou<br />
coisa parecida no t<strong>em</strong>po do rei. Ele o foi, meu filho, para<br />
ter dinheiro com que custeasse as suas experiências. Veja<br />
você como são as coisas e como é preciso ser mais do que<br />
hom<strong>em</strong> para b<strong>em</strong> servir aos homens…<br />
Além <strong>de</strong>sta g<strong>em</strong>a que era a sua menina dos olhos, o<br />
Conselheiro Carregal tinha também o Proust, Novo sis‑<br />
t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> filosofia química; o Priestley, Expériences sur les<br />
différentes espèces d’air [Experimentos sobre os diferentes<br />
126
127<br />
a biblioteca<br />
tipos <strong>de</strong> ar]; as obras <strong>de</strong> Guyton <strong>de</strong> Morveau; o Traité [Tratado]<br />
<strong>de</strong> Berzelius, tradução <strong>de</strong> Hoefer e Esslinger; a Stati‑<br />
que chimique [Estatística química] do gran<strong>de</strong> Berthollet; a<br />
Química orgânica <strong>de</strong> Liebig, tradução <strong>de</strong> Gerhardt – todos<br />
livros antigos e sólidos, sendo <strong>de</strong>ntre eles o mais mo<strong>de</strong>rno<br />
as Lições <strong>de</strong> filosofia química, <strong>de</strong> Wurtz, que são <strong>de</strong> 1864;<br />
mas, o estado do livro dava a enten<strong>de</strong>r que nunca tinham<br />
sido consultadas. Havia mesmo algumas obras <strong>de</strong> alquimia,<br />
edições dos primeiros t<strong>em</strong>pos da tipografia, enormes,<br />
que exig<strong>em</strong> ser lidas <strong>em</strong> altas escrivaninhas, o leitor <strong>de</strong> pé,<br />
com um burel 94 <strong>de</strong> monge ou nigromante; 95 e, entre os <strong>de</strong>sta<br />
natureza, lá estava um ex<strong>em</strong>plar do – Le livre <strong>de</strong>s figu‑<br />
res hiéroglyphiques [O livro das figuras hieroglíficas] que<br />
a tradição atribui ao alquimista francês Nicolas Flamel.<br />
Sobravam, porém, além <strong>de</strong>stes, muitos <strong>outros</strong> livros<br />
<strong>de</strong> diferente natureza, mas também preciosos e estimáveis:<br />
um ex<strong>em</strong>plar da Geometria <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s, <strong>em</strong> latim,<br />
impresso <strong>em</strong> Upsal, na Suécia, nos fins do século XVI;<br />
os Principia <strong>de</strong> Newton, não a primeira edição, mas uma<br />
<strong>de</strong> Cambridge muito apreciada; e as edições princeps 96 da<br />
Méchanique analytique [Mecânica analítica], <strong>de</strong> Lagrange,<br />
e da Géométrie <strong>de</strong>scriptive [Geometria <strong>de</strong>scritiva], <strong>de</strong><br />
Monge.<br />
Era uma biblioteca rica assim <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> ciências físicas<br />
e mat<strong>em</strong>áticas que o filho do conselheiro Carregal, há<br />
quarenta anos para cinquenta, piedosamente carregava <strong>de</strong><br />
casa <strong>em</strong> casa, aos azares das mudanças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que per<strong>de</strong>ra<br />
o pai e ven<strong>de</strong>ra o casarão <strong>em</strong> que ela quietamente tinha<br />
vivido durante <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos, a gosto e à vonta<strong>de</strong>.<br />
Po<strong>de</strong>rão supor que ela só tivesse obras <strong>de</strong>ssa especialida<strong>de</strong>;<br />
mas tal não acontecia. Havia as <strong>de</strong> <strong>outros</strong> feitios <strong>de</strong><br />
espírito. Encontravam -se lá os clássicos latinos; Voyage<br />
autour du mon<strong>de</strong> [Viag<strong>em</strong> ao redor do mundo] <strong>de</strong> Bou-
lima barreto<br />
gainville; uma Nouvelle Héloïse [Nova Heloísa], <strong>de</strong> Rousseau,<br />
com gravuras abertas <strong>em</strong> aço; uma linda edição dos<br />
Lusíadas, <strong>em</strong> caracteres elzevirianos; e um ex<strong>em</strong>plar do<br />
Brasil e a Oceania, <strong>de</strong> Gonçalves Dias, com uma <strong>de</strong>dicatória,<br />
do próprio punho do autor, ao conselheiro Carregal.<br />
Fausto Carregal, assim era o nome do filho, até ali<br />
nunca se separara da biblioteca que lhe coubera como<br />
herança. Do mais que herdara, tudo dissipara, b<strong>em</strong> ou<br />
mal; mas os livros do conselheiro, ele os guardara intatos<br />
e conservados religiosamente, apesar <strong>de</strong> não os enten<strong>de</strong>r.<br />
Estudara alguma coisa, era até farmacêutico, mas s<strong>em</strong>pre<br />
vivera alheado do que é verda<strong>de</strong>iramente a substância<br />
dos livros – o pensamento e a absorção da pessoa humana<br />
neles.<br />
Logo que pô<strong>de</strong>, arranjou um <strong>em</strong>prego público que nada<br />
tinha a ver com o seu diploma, afogou -se no seu ofício<br />
burocrático, esqueceu -se do pouco que estudara, chegou<br />
a chefe <strong>de</strong> seção, mas não abandonou jamais os livros do<br />
pai que s<strong>em</strong>pre o acompanharam, e as suas velhas estantes<br />
<strong>de</strong> vinhático com incrustação <strong>de</strong> madrepérola.<br />
A sua esperança era que um dos seus filhos os viesse<br />
a enten<strong>de</strong>r um dia; e todo o seu esforço <strong>de</strong> pai s<strong>em</strong>pre se<br />
encaminhou para isso. O mais velho dos filhos, o Álvaro,<br />
conseguiu ele matriculá -lo no Pedro II; mas logo, no<br />
segundo ano, o pequeno meteu -se <strong>em</strong> calaçarias <strong>de</strong> namoros,<br />
<strong>de</strong>u <strong>em</strong> noivo e, mal fez <strong>de</strong>zoito anos, <strong>em</strong>pregou -se<br />
nos correios, praticante pro rata, casando -se daí <strong>em</strong> pouco.<br />
Arrastava agora uma vida triste <strong>de</strong> casal pobre, moço,<br />
cheio <strong>de</strong> filhos, mais triste era ele ainda porquanto, não<br />
havendo alegria naquele lar, n<strong>em</strong> por isso havia <strong>de</strong>sarmonia.<br />
Marido e mulher puxavam o carro igualmente…<br />
O segundo filho não quisera ir além do curso primário.<br />
Empregara -se logo <strong>em</strong> um escritório comercial, fizera -se<br />
128
129<br />
a biblioteca<br />
r<strong>em</strong>ador <strong>de</strong> um clube <strong>de</strong> regatas, ganhava b<strong>em</strong> e andava<br />
pelas tolas festas domingueiras <strong>de</strong> sport, com umas calças<br />
sungadas pelas canelas e um canotier 97 muito limpo, tendo<br />
na fita uma ban<strong>de</strong>irinha idiota.<br />
A filha casara -se com um <strong>em</strong>pregado da Câmara Municipal<br />
<strong>de</strong> Niterói e lá vivia.<br />
Restava -lhe o filho mais moço, o Jaime, tão bom, tão<br />
meigo e tão seu amigo, que lhe pareceu, quando veio ao<br />
mundo, ser aquele que estava <strong>de</strong>stinado a ser o inteligente,<br />
o intelectual da família, o digno her<strong>de</strong>iro do avô e do<br />
bisavô. Mas não foi; e ele se l<strong>em</strong>brava agora como recomendava<br />
s<strong>em</strong>pre à mulher, nos primeiros anos <strong>de</strong> vida do<br />
caçula, ao ir para a repartição:<br />
– Irene, cuida b<strong>em</strong> do Jaime! Ele é que vai ler os papéis<br />
do meu pai.<br />
Porque o pequeno, <strong>em</strong> criança, era tão doentinho, tão<br />
mirrado, apesar dos seus olhos muito claros e vivos, que<br />
o pai t<strong>em</strong>ia fosse com ele a sua última esperança <strong>de</strong> um<br />
her<strong>de</strong>iro capaz da biblioteca do conselheiro.<br />
Jaime tinha nascido quando o mais velho entrava nos<br />
doze anos; e o inesperado daquela concepção alegrava -lhe<br />
muito, mas inquietara a mãe.<br />
Pelos seus quatro anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, Fausto Carregal já<br />
tinha podido ver o <strong>de</strong>senvolvimento dos dois <strong>outros</strong> seus<br />
filhos varões e havia <strong>de</strong>sesperado <strong>de</strong> ver qualquer um <strong>de</strong>les<br />
enten<strong>de</strong>r, quer hoje ou amanhã, os livros do avô e do bisavô,<br />
que jaziam limpos, tratados, <strong>em</strong>balsamados, nos jazigos<br />
das prateleiras das estantes <strong>de</strong> vinhático, à espera <strong>de</strong><br />
uma inteligência, na <strong>de</strong>scendência dos seus primeiros proprietários,<br />
para <strong>de</strong> novo fazê -los voltar à completa e total<br />
vida do pensamento e da ativida<strong>de</strong> mental fecunda.<br />
Certo dia, l<strong>em</strong>brando -se <strong>de</strong> seu pai <strong>em</strong> face das esperanças<br />
que <strong>de</strong>positava no seu filho t<strong>em</strong>porão, Fausto Car-
lima barreto<br />
regal consi<strong>de</strong>rou que, apesar do amor <strong>de</strong> seu progenitor<br />
à Química, nunca ele o vira com éprouvettes [tubos <strong>de</strong><br />
ensaio], com copos graduados, com retortas. Eram só<br />
livros que ele procurava. Como os velhos sábios brasileiros,<br />
seu pai tinha horror ao laboratório, à experiência feita<br />
com as suas mãos, ele mesmo…<br />
O seu filho, porém, o Jaime, não seria assim. Ele o queria<br />
com o maçarico, com o bico <strong>de</strong> Bunsen, com a baqueta<br />
<strong>de</strong> vidro, com o copo <strong>de</strong> laboratório…<br />
– Irene tu vais ver como o Jaime vai além do avô! Fará<br />
<strong>de</strong>scobertas.<br />
Sua mulher, entretanto, filha <strong>de</strong> um clínico que tivera<br />
fama quando moço, não tinha nenhum entusiasmo<br />
por essas coisas. A vida, para ela, se resumia <strong>em</strong> viver o<br />
mais simplesmente possível. Nada <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s esforços, ou<br />
mesmo <strong>de</strong> pequenos, para se ir além do comum <strong>de</strong> todos;<br />
nada <strong>de</strong> escaladas, <strong>de</strong> ascensões; tudo terra a terra, muito<br />
cá <strong>em</strong>baixo… Viver, e só! Para que sabedorias? Para que<br />
nomeadas? Quase nunca davam dinheiro e quase s<strong>em</strong>pre<br />
<strong>de</strong>sgostos. Por isso, jamais se esforçou para que os seus<br />
filhos foss<strong>em</strong> além do ler, escrever e contar; e isso mesmo<br />
a fim <strong>de</strong> arranjar<strong>em</strong> um <strong>em</strong>prego que não fosse braçal,<br />
pesado ou servil.<br />
O Jaime cresceu s<strong>em</strong>pre muito meigo, muito dócil,<br />
muito bom; mas com venetas estranhas. Implicava com<br />
uma vela acesa <strong>em</strong> cima <strong>de</strong> um móvel porque lhe pareciam<br />
os círios que vira <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um <strong>de</strong>funto, na vizinhança;<br />
quando trovejava ficava a um canto calado, t<strong>em</strong>eroso; o<br />
relâmpago fazia -o estr<strong>em</strong>ecer <strong>de</strong> medo, e logo após, ria -se<br />
<strong>de</strong> um modo estranho… Não era contudo doente; com o<br />
crescimento, até adquirira certa robustez. Havia noites,<br />
porém, <strong>em</strong> que tinha uma espécie <strong>de</strong> ataque, seguido <strong>de</strong><br />
um choro convulso, uma coisa inexplicável que passava e<br />
130
131<br />
a biblioteca<br />
voltava s<strong>em</strong> causa, n<strong>em</strong> motivo. Quando chegou aos sete<br />
anos, logo o pai quis pôr -lhe na mão a cartilha, porquanto<br />
vinha notando com singular satisfação a curiosida<strong>de</strong><br />
do filho pelos livros, pelos <strong>de</strong>senhos e figuras, que os jornais<br />
e revistas traziam. Ele os cont<strong>em</strong>plava horas e horas,<br />
absorvido, fixando nas gravuras os seus olhos castanhos,<br />
bons, leais…<br />
Pôs -lhe a cartilha na mão:<br />
– “A -e -i -o -u” – diga: “a”.<br />
O pequeno dizia: “a”; o pai seguia: “e”; Jaime repetia:<br />
“e”; mas quando chegava a “o”, parecia que lhe invadia<br />
um cansaço mental, enfarava -se subitamente, não queria<br />
mais aten<strong>de</strong>r, não obe<strong>de</strong>cia mais ao pai e, se este insistia e<br />
ralhava, o filho <strong>de</strong>satava a chorar:<br />
– Não quero mais, papaizinho! Não quero mais!<br />
Consultou médicos amigos. Aconselharam -no esperar<br />
que a criança tivesse mais ida<strong>de</strong>. Aguardou mais um<br />
ano, durante o qual, para estimular o filho, não cessava<br />
<strong>de</strong> recomendar:<br />
– Jaime, você precisa apren<strong>de</strong>r a ler. Qu<strong>em</strong> não sabe ler,<br />
não arranja nada na vida.<br />
Foi <strong>em</strong> vão. As coisas se vieram a passar como da primeira<br />
vez. Aos doze anos, contratou um professor paciente,<br />
um velho <strong>em</strong>pregado público aposentado, no intuito <strong>de</strong><br />
ver se instilava na inteligência do filho o mínimo <strong>de</strong> saber<br />
ler e escrever. O professor começou com toda a paciência e<br />
tenacida<strong>de</strong>; mas, a criança que era incapaz <strong>de</strong> ódio até ali,<br />
per<strong>de</strong>u a doçura, a meiguice para com o professor.<br />
Era falar -lhe no nome, a menos que o pai estivesse presente,<br />
ele <strong>de</strong>sandava <strong>em</strong> <strong>de</strong>scomposturas, <strong>em</strong> doestos, 98 <strong>em</strong><br />
sarcasmos ao físico e às maneiras do bom velho. Cansado,<br />
o antigo burocrata, ao fim <strong>de</strong> dois anos, <strong>de</strong>spediu -se tendo<br />
conseguido que Jaime soletrasse e contasse alguma coisa.
lima barreto<br />
Carregal meditou ainda um r<strong>em</strong>édio, mas não encontrou.<br />
Consultou médicos, amigos, conhecidos. Era um<br />
caso excepcional; era um caso mórbido esse <strong>de</strong> seu filho.<br />
R<strong>em</strong>édio, se um houvesse, não existia aqui; só na Europa…<br />
Não podia, o pequeno, apren<strong>de</strong>r b<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> mesmo<br />
ler, escrever, contar!… Oh! Meu Deus!<br />
A conclusão lhe chegou s<strong>em</strong> choque, s<strong>em</strong> nenhuma<br />
brusca violência; chegou sorrateiramente, mansamente,<br />
pé ante pé, <strong>de</strong>vagar, como uma conclusão fatal que era.<br />
Tinha o velho Carregal, por hábito, ficar na sala <strong>em</strong> que<br />
estavam os livros e as estantes do pai, a ler, pela manhã, os<br />
jornais do dia. À proporção que os anos se passavam e os<br />
<strong>de</strong>sgostos aumentavam -lhe na alma, mais religiosamente<br />
ele cumpria essa <strong>de</strong>voção à m<strong>em</strong>ória do pai. Chorava às<br />
vezes <strong>de</strong> arrependimento, vendo aquele pensamento todo,<br />
ali sepultado, mas ainda vivo, s<strong>em</strong> que entretanto pu<strong>de</strong>sse<br />
fecundar <strong>outros</strong> pensamentos… Por que não estudara?<br />
Dava -se assim, com aquela <strong>de</strong>voção diária, a ele mesmo,<br />
a ilusão <strong>de</strong> que, se não compreendia aqueles livros<br />
profundos e antigos, os respeitava e amava como a seu pai,<br />
esquecido <strong>de</strong> que para amá -los sinceramente era preciso<br />
compreendê -los primeiro. São <strong>de</strong>uses os livros, que precisam<br />
ser analisados, para <strong>de</strong>pois ser<strong>em</strong> adorados; e eles<br />
não aceitam a adoração senão <strong>de</strong>ssa forma…<br />
Naquela manhã, como <strong>de</strong> costume, fora para a sala dos<br />
livros, ler os jornais; mas não os pô<strong>de</strong> ler logo.<br />
Pôs -se a cont<strong>em</strong>plar os volumes nas suas molduras <strong>de</strong><br />
vinhático. Viu o pai, o casarão, os moleques, as mucamas,<br />
as crias, o fardão do seu avô, os retratos… L<strong>em</strong>brou -se<br />
mais fort<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> seu pai e viu -o lendo, entre aquelas<br />
obras, sentado a uma gran<strong>de</strong> mesa, tomando <strong>de</strong> quando<br />
<strong>em</strong> quando rapé, que ele tirava às pitadas <strong>de</strong> uma boceta 99<br />
<strong>de</strong> tartaruga, espirrar <strong>de</strong>pois, assoar -se num gran<strong>de</strong> len-<br />
132
133<br />
a biblioteca<br />
ço <strong>de</strong> Alcobaça, s<strong>em</strong>pre lendo, com o cenho carregado, os<br />
seus gran<strong>de</strong>s e estimados livros.<br />
As lágrimas vieram aos olhos daquele velho e avô. Teve<br />
<strong>de</strong> sustê -las logo. O filho mais novo entrava na <strong>de</strong>pendência<br />
da casa <strong>em</strong> que ele se havia recolhido. Não tinha Jaime,<br />
porém, por esse t<strong>em</strong>po, um olhar <strong>de</strong> mais curiosida<strong>de</strong> para<br />
aqueles veneráveis volumes avoengos. 100 Cheio dos seus<br />
<strong>de</strong>zesseis anos, muito robusto, não havia nele n<strong>em</strong> angústias,<br />
n<strong>em</strong> dúvidas. Não era corroído pelas i<strong>de</strong>ias e era b<strong>em</strong><br />
nutrido pela limitação e estreiteza <strong>de</strong> sua inteligência. Foi<br />
logo falando, s<strong>em</strong> mais <strong>de</strong>tença, ao pai:<br />
– Papai, você me dá cinco mil -réis, para eu ir hoje ao<br />
futebol.<br />
O velho olhou o filho. Olhou a sua adolescência estúpida<br />
e forte, olhou seu mau feitio <strong>de</strong> cabeça; olhou b<strong>em</strong><br />
aquele último fruto direto <strong>de</strong> sua carne e <strong>de</strong> seu sangue; e<br />
não se l<strong>em</strong>brou do pai. Respon<strong>de</strong>u:<br />
– Dou, meu filho. Dentro <strong>em</strong> pouco, você terá.<br />
E <strong>em</strong> seguida como se acudisse alguma coisa <strong>de</strong>sl<strong>em</strong>brada<br />
que aquelas palavras lhe fizeram surgir à tona do<br />
pensamento, acrescentou com pausa:<br />
– Diga a sua mãe que me man<strong>de</strong> buscar na venda uma<br />
lata <strong>de</strong> querosene, antes que feche. Não se esqueça, está<br />
ouvindo!<br />
Era domingo. Almoçaram. O filho foi para o futebol; a<br />
mulher foi visitar a filha e os netos, <strong>em</strong> Niterói; e o velho<br />
Fausto Carregal ficou só <strong>em</strong> casa, pois a cozinheira teve<br />
também folga.<br />
Com os seus ainda robustos setenta anos, o velho<br />
Fausto Fernan<strong>de</strong>s Carregal, filho do tenente -coronel <strong>de</strong><br />
engenharia, conselheiro Fernan<strong>de</strong>s Carregal, lente da<br />
Escola Central, tendo consertado mais uma vez o seu antigo<br />
cavanhaque inteiramente branco e pontiagudo, s<strong>em</strong>
lima barreto<br />
tropeço, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sfalecimento, aos dois, aos quatro, aos<br />
seis, ele só, sacerdotalmente, ritualmente, foi carregando<br />
os livros que tinham sido do pai e do avô para o quintal<br />
da casa. Amontoou -os <strong>em</strong> vários grupos, aqui e ali, untou<br />
<strong>de</strong> petróleo cada um, muito cuidadosamente, e ateou -lhes<br />
fogo sucessivamente.<br />
No começo a espessa fumaça negra do querosene não<br />
<strong>de</strong>ixava ver b<strong>em</strong> as chamas brilhar<strong>em</strong>; mas logo que ele se<br />
evolou, o clarão <strong>de</strong>las, muito amarelo, brilhou vitoriosamente<br />
com a cor que o povo diz ser a do <strong>de</strong>sespero…<br />
134
Sua Excelência *<br />
O ministro saiu do baile da Embaixada, <strong>em</strong>barcando<br />
logo no carro. Des<strong>de</strong> duas horas estivera a sonhar com<br />
aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento,<br />
pesando b<strong>em</strong> as palavras que proferira, rel<strong>em</strong>brando<br />
as atitu<strong>de</strong>s e os pasmos olhares dos circunstantes.<br />
Por isso entrara no coupé 101 <strong>de</strong>pressa, sôfrego, s<strong>em</strong> mesmo<br />
reparar se, <strong>de</strong> fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido<br />
por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaida<strong>de</strong>.<br />
Todo ele era um poço <strong>de</strong> certeza. Estava certo do seu<br />
valor intrínseco; estava certo das suas qualida<strong>de</strong>s extraordinárias<br />
e excepcionais. A respeitosa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos e a<br />
<strong>de</strong>ferência universal que o cercava eram nada mais, nada<br />
menos que o sinal da convicção geral <strong>de</strong> ser ele o resumo<br />
do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam<br />
os doridos queixumes dos humil<strong>de</strong>s e os espetaculosos<br />
<strong>de</strong>sejos dos ricos. As obscuras <strong>de</strong>terminações das coisas,<br />
acertadamente, haviam -no erguido até ali, e mais alto<br />
levá -lo -iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria<br />
* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).<br />
135
lima barreto<br />
capaz <strong>de</strong> fazer o país chegar aos <strong>de</strong>stinos que os antece<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong>le impunham…<br />
E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos,<br />
totalmente escrita <strong>em</strong> caracteres <strong>de</strong> imprensa, <strong>em</strong> um livro<br />
ou <strong>em</strong> um jornal qualquer. L<strong>em</strong>brou -se do seu discurso<br />
<strong>de</strong> ainda agora.<br />
“Na vida das socieda<strong>de</strong>s, como na dos indivíduos…”<br />
Que maravilha! Tinha algo <strong>de</strong> filosófico, <strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>nte.<br />
E o sucesso daquele trecho? Recordou -se <strong>de</strong>le por<br />
inteiro:<br />
“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como<br />
Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos,<br />
todos os juristas afirmam que as leis <strong>de</strong>v<strong>em</strong> se basear nos<br />
costumes…”<br />
O olhar, muito brilhante, cheio <strong>de</strong> admiração – o olhar<br />
do lí<strong>de</strong>r da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito<br />
da frase…<br />
E quando terminou! Oh!<br />
“Senhor, o nosso t<strong>em</strong>po é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s reformas; estejamos<br />
com ele: reform<strong>em</strong>os!”<br />
A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo<br />
com que esse final foi recebido.<br />
O auditório <strong>de</strong>lirou. As palmas estrugiram; e, <strong>de</strong>ntro<br />
do gran<strong>de</strong> salão iluminado, pareceu -lhe que recebia as<br />
palmas da Terra toda.<br />
O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam<br />
como um só traço <strong>de</strong> fogo; <strong>de</strong>pois sumiram -se.<br />
O veículo agora corria vertiginosamente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
névoa fosforescente. Era <strong>em</strong> vão que seus augustos olhos<br />
se abriam <strong>de</strong>smedidamente; não havia contornos, formas,<br />
on<strong>de</strong> eles pousass<strong>em</strong>.<br />
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava<br />
a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.<br />
136
137<br />
sua excelência<br />
– Cocheiro, on<strong>de</strong> vamos?<br />
Quis arriar as vidraças. Não pô<strong>de</strong>; queimavam.<br />
Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.<br />
Gritou ao cocheiro:<br />
– On<strong>de</strong> vamos? Miserável, on<strong>de</strong> me levas?<br />
Apesar <strong>de</strong> ter o carro algumas vidraças arriadas, no<br />
seu interior fazia um calor <strong>de</strong> forja. Quando lhe veio esta<br />
imag<strong>em</strong>, apalpou b<strong>em</strong>, no peito, as grã -cruzes magníficas.<br />
Graças a Deus, ainda não se haviam <strong>de</strong>rretido. O leão da<br />
Birmânia, o dragão da China, o lingão da Índia estavam<br />
ali, entre todas as outras, intactas.<br />
– Cocheiro, on<strong>de</strong> me levas?<br />
Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele<br />
hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> nariz adunco, queixo longo com uma barbicha,<br />
não era o seu fiel Manuel.<br />
– Canalha para, para, senão caro me pagarás!<br />
O carro voava e o ministro continuava a vociferar:<br />
– Miserável! Traidor! Para! Para!<br />
Em uma <strong>de</strong>ssas vezes voltou -se o cocheiro; mas a escuridão<br />
que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe<br />
permitiu ver os olhos do guia da carruag<strong>em</strong>, a brilhar <strong>de</strong><br />
um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu -lhe que<br />
estava a rir -se.<br />
O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não<br />
po<strong>de</strong>ndo suportar o calor, <strong>de</strong>spiu -se. Tirou a agaloada<br />
casaca, <strong>de</strong>pois o espadim, o colete, as calças…<br />
Sufocado, estonteado, parecia -lhe que continuava com<br />
vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua<br />
cabeça dançavam, separados.<br />
Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu -se vestido<br />
com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à<br />
porta do palácio <strong>em</strong> que estivera ainda há pouco e <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
saíra triunfalmente, não havia minutos.
lima barreto<br />
Nas proximida<strong>de</strong>s um coupé estacionava.<br />
Quis verificar b<strong>em</strong> as coisas circundantes; mas não<br />
houve t<strong>em</strong>po.<br />
Pelas escadas <strong>de</strong> mármore, grav<strong>em</strong>ente, solen<strong>em</strong>ente,<br />
um hom<strong>em</strong> (pareceu -lhe isso) <strong>de</strong>scia os <strong>de</strong>graus, envolvido<br />
no fardão que <strong>de</strong>spira, tendo no peito as mesmas magníficas<br />
grã -cruzes.<br />
Logo que o personag<strong>em</strong> pisou na soleira, <strong>de</strong> um só<br />
ímpeto aproximou -se e, abjectamente, como se até ali não<br />
tivesse feito outra coisa, indagou:<br />
– V. Exa. quer o carro?<br />
138
Por que não se matava *<br />
Esse meu amigo era o hom<strong>em</strong> mais enigmático que<br />
conheci.<br />
Era a um t<strong>em</strong>po taciturno e expansivo, egoísta e generoso,<br />
bravo e covar<strong>de</strong>, trabalhador e vadio. Havia no seu<br />
t<strong>em</strong>peramento uma <strong>de</strong>sesperadora mistura <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s<br />
opostas e, na sua inteligência, um encontro curioso <strong>de</strong><br />
luci<strong>de</strong>z e confusão, <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za e <strong>em</strong>botamento.<br />
Nós nos dávamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito t<strong>em</strong>po. Aí pelos doze<br />
anos, quando comecei a estudar os preparatórios,<br />
encontrei -o no colégio e fiz<strong>em</strong>os relações. Gostei da sua<br />
fisionomia, da estranheza do seu caráter e mesmo ao <strong>de</strong>scansarmos<br />
no recreio, após as aulas, a minha meninice<br />
cont<strong>em</strong>plava maravilhada aquele seu longo olhar cismático,<br />
que se ia tão <strong>de</strong>moradamente pelas coisas e pelas pessoas.<br />
Continuamos s<strong>em</strong>pre juntos até à escola superior, on<strong>de</strong><br />
an<strong>de</strong>i conversando; e, aos poucos, fui verificando que as<br />
suas qualida<strong>de</strong>s se acentuavam e os seus <strong>de</strong>feitos também.<br />
* Publicado <strong>em</strong> Outras histórias, que integra a segunda edição do<br />
livro Histórias e sonhos (1951).<br />
139
lima barreto<br />
Ele entendia maravilhosamente a mecânica, mas não<br />
havia jeito <strong>de</strong> estudar essas coisas <strong>de</strong> câmbio, <strong>de</strong> jogo <strong>de</strong><br />
bolsa. Era assim: para umas coisas, muita penetração; para<br />
outras, incompreensão.<br />
Formou -se, mas nunca fez uso da carta. Tinha um<br />
pequeno rendimento e s<strong>em</strong>pre viveu <strong>de</strong>le, afastado <strong>de</strong>ssa<br />
humilhante coisa que é a caça ao <strong>em</strong>prego.<br />
Era sentimental, era <strong>em</strong>otivo; mas nunca lhe conheci<br />
amor. Isto eu consegui <strong>de</strong>cifrar, e era fácil. A sua <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za<br />
e a sua timi<strong>de</strong>z faziam a compartilha com outro, as<br />
coisas secretas <strong>de</strong> sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que<br />
havia <strong>de</strong> secreto e profundo na sua alma.<br />
Há dias encontrei o no chope, diante <strong>de</strong> uma alta pilha<br />
<strong>de</strong> ro<strong>de</strong>las <strong>de</strong> papelão, marcando com solenida<strong>de</strong> o número<br />
<strong>de</strong> copos bebidos.<br />
Foi ali, no Adolfo, à rua da Ass<strong>em</strong>bleia, on<strong>de</strong> aos poucos<br />
t<strong>em</strong>os conseguido reunir uma roda <strong>de</strong> poetas, literatos,<br />
jornalistas, médicos, advogados, a viver na máxima<br />
harmonia, trocando i<strong>de</strong>ias, conversando e bebendo<br />
s<strong>em</strong>pre.<br />
É uma casa por <strong>de</strong>mais simpática, talvez a mais antiga<br />
no gênero, e que já conheceu duas gerações <strong>de</strong> poetas.<br />
Por ela, passaram o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga<br />
Duque, o B. Lopes, o Mário Pe<strong>de</strong>rneiras, o <strong>Lima</strong> Campos,<br />
o Malagutti e <strong>outros</strong> pintores que completavam essa brilhante<br />
socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens inteligentes.<br />
Escura e oculta à vista da rua, é um ninho e também<br />
uma aca<strong>de</strong>mia. Mais do que uma aca<strong>de</strong>mia. São duas ou<br />
três. Somos tantos e <strong>de</strong> feições mentais tão diferentes, que<br />
b<strong>em</strong> formamos uma mo<strong>de</strong>sta miniatura do Silogeu. 102<br />
Não se faz<strong>em</strong> discursos à entrada: bebe -se e joga -se<br />
bagatela, lá ao fundo, cercado <strong>de</strong> uma plateia ansiosa por<br />
ver o Amorim Júnior fazer sucessivos <strong>de</strong>zoitos.<br />
140
141<br />
por que não se matava<br />
Fui encontrá -lo lá, mas o meu amigo se havia afastado do<br />
ruidoso cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.<br />
Pareceu -me triste e a nossa conversa não foi logo abundant<strong>em</strong>ente<br />
sustentada. Estiv<strong>em</strong>os alguns minutos calados,<br />
sorvendo aos goles a cerveja consoladora.<br />
O gasto <strong>de</strong> copos aumentou e ele então falou com mais<br />
abundância e calor. Em princípio, tratamos <strong>de</strong> coisas<br />
gerais <strong>de</strong> arte e letras. Ele não é literato, mas gosta das<br />
letras, e as acompanha com carinho e atenção. Ao fim <strong>de</strong><br />
digressões a tal respeito, ele me disse <strong>de</strong> repente:<br />
– Sabes por que não me mato?<br />
Não me espantei, porque tenho por hábito não me<br />
espantar com as coisas que se passam no chope. Disse -lhe<br />
muito naturalmente:<br />
–Não.<br />
– És contra o suicídio?<br />
– N<strong>em</strong> contra, n<strong>em</strong> a favor; aceito -o.<br />
– B<strong>em</strong>. Compreen<strong>de</strong>s perfeitamente que não tenho<br />
mais motivo para viver. Estou s<strong>em</strong> <strong>de</strong>stino, a minha vida<br />
não t<strong>em</strong> fim <strong>de</strong>terminado. Não quero ser senador, não<br />
quero ser <strong>de</strong>putado, não quero ser nada. Não tenho ambições<br />
<strong>de</strong> riqueza, não tenho paixões n<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejos. A minha<br />
vida me aparece <strong>de</strong> uma inutilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trapo. Já <strong>de</strong>scri <strong>de</strong><br />
tudo, da arte, da religião e da ciência.<br />
O Manuel serviu -nos mais dois chopes, com aquela<br />
<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za tão <strong>de</strong>le, e o meu amigo continuou:<br />
– Tudo o que há na vida, o que lhe dá encanto, já não<br />
me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes,<br />
é coisa que sai s<strong>em</strong>pre uma caceteação; não quero mulher,<br />
esposa, porque não quero ter filhos, continuar assim a<br />
longa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraças que her<strong>de</strong>i e está <strong>em</strong> mim <strong>em</strong><br />
estado virtual para passar aos <strong>outros</strong>. Não quero viajar;<br />
enfada. Que hei <strong>de</strong> fazer?
lima barreto<br />
Eu quis dar -lhe um conselho final, mas abstive -me, e<br />
respondi, <strong>em</strong> contestação:<br />
– Matar -te.<br />
– É isso que eu penso; mas…<br />
A luz elétrica enfraqueceu um pouco e cri que uma<br />
nuv<strong>em</strong> lhe passava no olhar doce e tranquilo.<br />
– Não tens corag<strong>em</strong>? – perguntei eu.<br />
– Um pouco; mas não é isso o que me afasta do fim<br />
natural da minha vida.<br />
– Que é, então?<br />
– É a falta <strong>de</strong> dinheiro!<br />
– Como? Um revólver é barato.<br />
– Eu me explico. Admito a pieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> mim, para os<br />
<strong>outros</strong>; mas não admito a pieda<strong>de</strong> dos <strong>outros</strong> para mim.<br />
Compreen<strong>de</strong>s b<strong>em</strong> que não vivo b<strong>em</strong>; o dinheiro que<br />
tenho é curto, mas dá para as minhas <strong>de</strong>spesas, <strong>de</strong> forma<br />
que estou s<strong>em</strong>pre com cobres curtos. Se eu ingerir aí<br />
qualquer droga, as autorida<strong>de</strong>s vão dar com o meu cadáver<br />
miseravelmente privado <strong>de</strong> notas do Tesouro. Que comentários<br />
farão? Como vão explicar o meu suicídio? Por falta<br />
<strong>de</strong> dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha<br />
vida, ato <strong>de</strong> supr<strong>em</strong>a justiça e profunda sincerida<strong>de</strong>, vai<br />
ser interpretado, através da pieda<strong>de</strong> profissional dos jornais,<br />
como reles questão <strong>de</strong> dinheiro. Eu não quero isso…<br />
Do fundo da sala, vinha a alegria dos jogadores <strong>de</strong><br />
bagatela; mas aquele casquinar não diminuía <strong>em</strong> nada a<br />
exposição das palavras sinistras do meu amigo.<br />
– Eu não quero isso – continuou ele. Quero que se dê ao<br />
ato o seu justo valor e que nenhuma consi<strong>de</strong>ração subalterna<br />
lhe diminua a elevação.<br />
– Mas escreve.<br />
– Não sei escrever. A aversão que há na minha alma<br />
exce<strong>de</strong> às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo<br />
142
143<br />
por que não se matava<br />
o que <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na<br />
banalida<strong>de</strong> e as nuanças fugidias dos meus sentimentos<br />
não serão registradas. Eu queria mostrar a todos que fui<br />
traído; que me prometeram muito e nada me <strong>de</strong>ram; que<br />
tudo isso é vão e s<strong>em</strong> sentido, estando no fundo <strong>de</strong>ssas<br />
coisas pomposas, arte, ciência, religião, a impotência <strong>de</strong><br />
todos nós diante <strong>de</strong> augusto mistério do mundo. Nada<br />
disso nos dá o sentido do nosso <strong>de</strong>stino; nada disto nos dá<br />
uma regra exata <strong>de</strong> conduta, não nos leva à felicida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong><br />
tira as coisas hediondas da socieda<strong>de</strong>. Era isso…<br />
– Mas v<strong>em</strong> cá: se tu morresses com dinheiro na algibeira,<br />
n<strong>em</strong> por tal…<br />
– Há nisso uma causa: a causa da miséria ficaria arredada.<br />
– Mas podia ser atribuído ao amor.<br />
– Qual. Não recebo cartas <strong>de</strong> mulher, não namoro, não<br />
requesto mulher alguma; e não podiam, portanto, atribuir<br />
ao amor o meu <strong>de</strong>sespero.<br />
– Entretanto, a causa não viria à tona e o teu ato não<br />
seria aquilatado <strong>de</strong>vidamente.<br />
– De fato, é verda<strong>de</strong>; mas a causa -miséria não seria evi<strong>de</strong>nte.<br />
Queres saber <strong>de</strong> uma coisa? Uma vez, eu me dispus.<br />
Fiz uma transação, arranjei uns quinhentos mil -réis. Queria<br />
morrer <strong>em</strong> beleza; man<strong>de</strong>i fazer uma casaca; comprei<br />
camisas etc. Quando contei o dinheiro, já era pouco. De<br />
outra, fiz o mesmo. Meti -me <strong>em</strong> uma gran<strong>de</strong>za e, ao amanhecer<br />
<strong>em</strong> casa, estava a níqueis.<br />
– De forma que é ter dinheiro para matar -te, zás, tens<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> divertir -te.<br />
– T<strong>em</strong> me acontecido isso; mas não julgues que estou<br />
prosando. Falo sério e franco.<br />
Nós nos calamos um pouco, beb<strong>em</strong>os um pouco <strong>de</strong> cerveja,<br />
e <strong>de</strong>pois eu observei:
lima barreto<br />
– O teu modo <strong>de</strong> matar -te não é violento, é suave. Estás<br />
a afogar -te <strong>em</strong> cerveja e é pena que não tenhas quinhentos<br />
<strong>contos</strong>, porque nunca te matarias.<br />
– Não. Quando o dinheiro acabasse, era fatal.<br />
– Zás, para o necrotério na miséria; e então?<br />
– É verda<strong>de</strong>… Continuava a viver.<br />
Rimo -nos um pouco do encaminhamento que a nossa<br />
palestra tomava.<br />
Pagamos a <strong>de</strong>spesa, apertamos a mão ao Adolfo, diss<strong>em</strong>os<br />
duas pilhérias ao Quincas e saímos.<br />
Na rua, os bon<strong>de</strong>s passavam com estrépido; homens e<br />
mulheres se agitavam nas calçadas; carros e automóveis<br />
iam e vinham…<br />
A vida continuava s<strong>em</strong> esmorecimentos, indiferente<br />
que houvesse tristes e alegres, felizes e <strong>de</strong>sgraçados, aproveitando<br />
a todos eles para o seu drama e a sua complexida<strong>de</strong>.<br />
144
Ele e suas i<strong>de</strong>ias *<br />
Conheci -o no t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que trabalhava na Fon ‑Fon. 103<br />
Era um hom<strong>em</strong> pequeno, magro, com um reduzido cavanhaque,<br />
b<strong>em</strong> tratado; mas a sua tragédia íntima e interior<br />
só a vim conhecer perfeitamente mais tar<strong>de</strong>. Não foram<br />
precisos muitos dias, mas foram precisos alguns.<br />
Andávamos por esse t<strong>em</strong>po na febre dos melhoramentos,<br />
das construções; e, a todo momento, ele l<strong>em</strong>brava a<br />
este ou aquele jornal uma i<strong>de</strong>ia.<br />
Um dia, era uma avenida; outro dia, era uma ponte, um<br />
jardim; e, <strong>de</strong> tal modo, a mania <strong>de</strong> ter i<strong>de</strong>ias o tomou, que<br />
não se limitava a <strong>de</strong>ixá -las pelos jornais. Ia além. Procurava<br />
<strong>em</strong> ministros, fazia requerimentos aos corpos legislativos,<br />
propondo tais e tais medidas.<br />
Era um pingar <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias diário, constante e teimoso.<br />
É <strong>de</strong> crer que, após o almoço, ele dissesse à mulher:<br />
“Filha, hoje tenho quatro i<strong>de</strong>ias”, e saísse contente a procurar<br />
redações, <strong>de</strong>putados, proprietários, ministros, chefes<br />
<strong>de</strong> serviço, escorrendo i<strong>de</strong>ias.<br />
* Publicado <strong>em</strong> Outras histórias, que integra a segunda edição do<br />
livro Histórias e sonhos (1951).<br />
145
lima barreto<br />
Nos jornais, ele propunha melhoramentos na folha,<br />
sessões, “enquetes”, autores para folhetim.<br />
Os secretários já o t<strong>em</strong>iam; e, quando ele apontava na<br />
porta da sala, coçava a cabeça e lá diziam consigo: – “lá<br />
v<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> que t<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ias”.<br />
E ele não tinha nenhuma pieda<strong>de</strong>; abancava -se ao lado<br />
do redator e, zás, duas i<strong>de</strong>ias. Para aquela fecundida<strong>de</strong>,<br />
não havia quase t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> gestação. Certas vezes, mesmo,<br />
entre duas i<strong>de</strong>ias, brotava outra; e, se esta era <strong>de</strong> um<br />
melhoramento urbano, enquanto a primeira era <strong>de</strong> coisa<br />
jornalística, ele <strong>de</strong>ixava o secretário e corria ao prefeito.<br />
O prefeito e o seu gabinete já conheciam o extraordinário<br />
e fecundo hom<strong>em</strong>; e, logo que ele se fazia anunciar,<br />
o chefe da cida<strong>de</strong> dizia para o secretário: “Esse diabo! Lá<br />
t<strong>em</strong>os o hom<strong>em</strong> das i<strong>de</strong>ias”.<br />
As suas i<strong>de</strong>ias eram as mais disparatadas possíveis.<br />
Quase s<strong>em</strong>pre eram inviáveis ou inúteis. Ele tinha viajado,<br />
<strong>de</strong> modo que queria ver no Rio todas as coisas soberbas<br />
do mundo: os jardins do Píncio, a torre Eiffel, o túnel<br />
sobre o Tâmisa.<br />
E ao acudir -lhe, por ex<strong>em</strong>plo, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar o Paraíba<br />
para a baía <strong>de</strong> Guanabara, corria às nossas autorida<strong>de</strong>s<br />
<strong>em</strong> engenharia e pedia o parecer <strong>de</strong>las.<br />
Ficaram os mesmos engenheiros atarantados, atordoados,<br />
apavorados, diante das extravagantes inutilida<strong>de</strong>s do<br />
homenzinho. Mas não se po<strong>de</strong> executar? Perguntava ele à<br />
menor objeção. Se tivesse resposta favorável, a sua fisionomia<br />
irradiava. Era <strong>de</strong> vê -lo nos momentos <strong>de</strong> concentração<br />
ou senão quando expendia as suas cogitações. Tinha<br />
então uma po<strong>de</strong>rosa beleza, que <strong>em</strong>polgava e a tornava<br />
simpática.<br />
Para levar os dias a <strong>de</strong>stilar i<strong>de</strong>ias, ele tinha que passar<br />
as noites a pensar. Creio que dormia pouco: todo ele<br />
146
147<br />
ele e suas i<strong>de</strong>ias<br />
se encontrava na função <strong>de</strong> ter i<strong>de</strong>ias. E era pródigo, e era<br />
generoso, e era <strong>de</strong>sperdiçado: pensava, tinha i<strong>de</strong>ias e dava<br />
aos <strong>outros</strong>.<br />
Em sua casa, a sua mania se propagara. A mulher, os<br />
filhos, os criados também tinhas i<strong>de</strong>ias. Quando lhe faltavam,<br />
recorria a eles.<br />
Uma vez, o cozinheiro até lhe <strong>de</strong>ra uma muito interessante:<br />
a dos bon<strong>de</strong>s restaurantes; e ele correra logo à<br />
Light 104 para l<strong>em</strong>brar a coisa.<br />
Ocasiões havia que ele ficava <strong>de</strong>solado, <strong>de</strong>sesperado e<br />
aflito: era quando não tinha nenhuma e da família nada<br />
podia sacar.<br />
– Ah! Chiquinha – dizia ele –, hoje saio s<strong>em</strong> nenhuma<br />
i<strong>de</strong>ia. Que vão dizer <strong>de</strong> mim? Estou <strong>de</strong>smoralizado…<br />
Quando, porém, lhe vinham muitas, que alegria! Que<br />
regozijo! A manhã ficava -lhe sorri<strong>de</strong>nte; cantarolava,<br />
arreliava…<br />
No bon<strong>de</strong>, logo ao encontrar o primeiro amigo, agitava<br />
a conversa e pespegava:<br />
– Aurélio, se o prefeito quisesse, podia fazer um gran<strong>de</strong><br />
melhoramento.<br />
– Qual é? Indagava o amigo.<br />
– Estabelecer um imenso foco elétrico no alto do Corcovado.<br />
Devia, por isso, a iluminação da cida<strong>de</strong> ficar mais<br />
perfeita.<br />
E dizia a coisa b<strong>em</strong> alto, para que os vizinhos ouviss<strong>em</strong>.<br />
Após ter dito, observava uma por uma as fisionomias e<br />
tomava -lhes o espanto pela admiração causada pelo arrojo<br />
<strong>de</strong> sua imaginação.<br />
Este hom<strong>em</strong> singular, este hom<strong>em</strong> que, no seu gênero<br />
era um Edison 105 ou um Marconi, 106 nunca foi apreciado.<br />
Os po<strong>de</strong>res públicos não tomaram na <strong>de</strong>vida consi<strong>de</strong>ração<br />
os seus projetos: os jornais não o apontavam à admiração
lima barreto<br />
do público, e ele vive hoje – triste, abandonado, <strong>de</strong>solado,<br />
<strong>em</strong> uma pequena cida<strong>de</strong> do interior.<br />
Estive com ele há dias, lá; e senti -me confrangido, diante<br />
<strong>de</strong> sua <strong>de</strong>solação, do seu abatimento. Conversamos sossegados<br />
<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma jaqueira úmida, e l<strong>em</strong>brei -lhe o<br />
seu passado e a glória que lhe escapou. Ele me ouviu triste,<br />
olhou -me <strong>de</strong>pois longamente e me disse:<br />
– Que se há <strong>de</strong> fazer? Esta terra não estima seus filhos…<br />
– Não é só aqui – disse -lhe eu – <strong>em</strong> toda parte é assim.<br />
– Mas nas outras terras, na França, na Inglaterra, nos<br />
Estados Unidos, há esperança <strong>de</strong> uma recompensa final;<br />
mas, no Brasil, que nos po<strong>de</strong> sustentar na luta?<br />
E abaixou a cabeça para o chão ingrato da pátria, que o<br />
havia criado, mas que não o soubera animar no árduo trabalho<br />
<strong>de</strong> ter i<strong>de</strong>ias. Não era um Mário nas ruínas <strong>de</strong> Cartago,<br />
107 porque afinal ele estava <strong>em</strong> sua pátria; era alguma<br />
coisa mais angustiosa, como que o próprio <strong>de</strong>salento <strong>em</strong><br />
pessoa. Eu lhe respeitei a dor; fugi ao assunto e tiv<strong>em</strong>os a<br />
conversar sobre umas várias e s<strong>em</strong> importância.<br />
Entar<strong>de</strong>cia e o crepúsculo vinha lentamente, pondo nas<br />
coisas a sua poesia dolente e a sua <strong>de</strong>liquescência. 108<br />
Levantei -me para me <strong>de</strong>spedir e ele veio até a porteira.<br />
Estiv<strong>em</strong>os ainda parados, a ver a imensa sebe <strong>de</strong><br />
bambus, curvados <strong>em</strong> nervuras <strong>de</strong> ogivas. Uma cigarra<br />
começou a estridular e os bambus agitaram -se um pouco,<br />
a um leve vento. Despedi -me afinal; mas, quando ia<br />
partir <strong>de</strong> vez, o hom<strong>em</strong> me disse, <strong>de</strong> repente cheio <strong>de</strong><br />
contenta mento:<br />
– Acabo <strong>de</strong> ter uma i<strong>de</strong>ia.<br />
– Qual é? – perguntei -lhe.<br />
– O aproveitamento do bambu para encanamento<br />
d’água, nas cida<strong>de</strong>s. Há economia e será uma fonte <strong>de</strong><br />
renda para o Brasil.<br />
148
149<br />
ele e suas i<strong>de</strong>ias<br />
Olhei -o atento, nada lhe disse e segui <strong>de</strong>vagar pela<br />
estrada <strong>em</strong> fora.
Uma aca<strong>de</strong>mia da roça *<br />
Na botica do Segadas – Farmácia Esperança – que pompeava<br />
a sua enorme tabuleta, na principal rua <strong>de</strong> Itaçaraí,<br />
cida<strong>de</strong> do estado <strong>de</strong>…, cabeça da respectiva comarca,<br />
reunia -se todas as tar<strong>de</strong>s um grupo seleto dos habitantes<br />
do lugarejo, para discutir letras, filosofia e artes.<br />
Era esse grupo formado das seguintes pessoas: doutor<br />
Aristogen Tebano das Verda<strong>de</strong>s, promotor público; doutor<br />
Joaquim Petronilho, médico clínico na comarca; Sebastião<br />
Canindé, sacristão da matriz; e o doutor Francisco<br />
Carlos Kauffman, austríaco e alveitar 109 <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />
fazenda <strong>de</strong> criação nos arredores. Dele, também fazia parte<br />
o proprietário da botica – o Segadas.<br />
O espanhol Santiago Ximénez, principal barbeiro da<br />
localida<strong>de</strong>, proprietário do Salão Verdun, aparecia, às<br />
vezes, na tertúlia; recitava um pouco <strong>de</strong> Campoamor 110 ou<br />
citava Escrich; 111 mas <strong>de</strong>spedia -se logo, a fim <strong>de</strong> ir para o<br />
botequim do Cunha, on<strong>de</strong> podia unir o útil ao agradável,<br />
isto é, juntar o parati ou a genebra ao poeta <strong>de</strong> sua paixão –<br />
* Publicado <strong>em</strong> Outras histórias, que integra a segunda edição do<br />
livro Histórias e sonhos (1951).<br />
151
lima barreto<br />
Campoamor – ou ao romancista <strong>de</strong> sua admiração – Pérez<br />
Escrich. Na botica, não havia disso e a sua literatura necessitava<br />
<strong>de</strong> um acompanhamento <strong>de</strong> beberiques.<br />
O presi<strong>de</strong>nte do grupo era espontaneamente o promotor<br />
que s<strong>em</strong>pre tinha versos a recitar e questões literárias<br />
a propor. A b<strong>em</strong> querida <strong>de</strong>le era indagar se mais valia a<br />
forma que o fundo ou vice -versa; inclinava -se pelo último,<br />
por isso gostava muito <strong>de</strong> Casimiro <strong>de</strong> Abreu e <strong>de</strong><br />
Fagun<strong>de</strong>s Varela.<br />
O doutor Petronilho não tinha opinião segura sobre<br />
o caso, tanto mais que, a não ser Bilac, ele não suportava<br />
outro poeta; entretanto, vivia possuído <strong>de</strong> particular<br />
admiração por Aristogen e a sua versalhada <strong>de</strong>senxabida.<br />
Coisas…<br />
Sebastião Canindé era, pela forma, parnasiano da g<strong>em</strong>a;<br />
mas os versos que publicava no jornal da localida<strong>de</strong> eram<br />
horrivelmente errados e rimados a martelo; eram piores do<br />
que os <strong>de</strong> Aristogen. Tinha as charadas por especialida<strong>de</strong>.<br />
O austríaco não sabia nada <strong>de</strong>ssas coisas. Lera os poetas<br />
<strong>de</strong> sua pátria, alguns al<strong>em</strong>ães e italianos, a Bíblia, Shakespeare<br />
e o Dom Quixote.<br />
Não percebia nada <strong>de</strong>ssa história <strong>de</strong> épocas e escolas<br />
literárias. Ia à reunião para distrair -se.<br />
Um belo dia, Aristogen l<strong>em</strong>brou aos companheiros:<br />
– Vamos fundar uma Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Letras?<br />
Canindé indagou:<br />
– Daqui, do município?<br />
– Sim, respon<strong>de</strong>u Aristogen. Vamos?<br />
O doutor Petronilho observou:<br />
– Quantos m<strong>em</strong>bros?<br />
Aristogen acudiu logo:<br />
– Quarenta, por certo!<br />
O doutor Kauffman refletiu:<br />
152
153<br />
uma aca<strong>de</strong>mia da roça<br />
– Oh! Eu acho muito.<br />
Aristogen objetou:<br />
– Muito! Não há tal! Há, além dos resi<strong>de</strong>ntes aqui nascidos<br />
ou não no lugar, muito filho do município ilustre<br />
que anda por aí.<br />
Olhe: o doutor Penido Veiga, nosso representante na<br />
Câmara Fe<strong>de</strong>ral, é um fino intelectual; po<strong>de</strong>, portanto,<br />
fazer parte <strong>de</strong>la. O tenente Barnabé, que aqui nasceu, acaba<br />
<strong>de</strong> fazer com brilho o curso <strong>de</strong> aviação; po<strong>de</strong> também<br />
fazer parte. O Jesuíno, filho do Inácio, ali do “armazém”,<br />
vive <strong>em</strong> <strong>de</strong>staque no Tribunal <strong>de</strong> Contas, para on<strong>de</strong> entrou<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um concurso brilhante: está naturalmente indicado<br />
a ser um dos m<strong>em</strong>bros.<br />
E, assim, muitos <strong>outros</strong>.<br />
Com sujeitos portadores <strong>de</strong> s<strong>em</strong>elhantes títulos literários,<br />
Aristogen organizou a sua aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> letras <strong>de</strong><br />
quarenta m<strong>em</strong>bros, porque ela não podia ficar por baixo<br />
das outras, inclusive a brasileira, tendo menos imortais<br />
que elas.<br />
Veio o dia da instalação solene que, <strong>em</strong> falta <strong>de</strong> local<br />
mais a<strong>de</strong>quado, teve lugar na barraca <strong>de</strong> lona do circo <strong>de</strong><br />
cavalinhos que trabalhava na cida<strong>de</strong>, por aquela ocasião.<br />
Os acadêmicos presentes, inclusive o barbeiro Ximénez<br />
e o austríaco Kauffman, que eram do número <strong>de</strong>les,<br />
sentaram -se ao redor <strong>de</strong> uma longa mesa, que fora colocada<br />
no centro do pica<strong>de</strong>iro.<br />
Os convidados especiais tomaram lugar nas ca<strong>de</strong>iras,<br />
arrumadas na linha da circunferência que fechava o círculo<br />
das acrobacias, peloticas 112 e correrias <strong>de</strong> cavalos. As<br />
arquibancadas, para o povo miúdo, entrada franca.<br />
Uma charanga, a Banda Flor das Dores <strong>de</strong> Nossa<br />
Senhora, tocava à entrada da barraca, dobrados estri<strong>de</strong>ntes<br />
e polcas chorosas.
lima barreto<br />
Aristogen tomou a presidência, tendo ao lado direito<br />
o presi<strong>de</strong>nte da câmara, coronel Manuel Pafúncio; e, à<br />
esquerda, o secretário -geral, o sacristão Canindé.<br />
Depois <strong>de</strong> lido o expediente, começou a pronunciar o<br />
seu discurso <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> castigada, porque, se não o era<br />
no verso, na prosa ele era parnasiano e clássico.<br />
Começou:<br />
– Senhores: Após longo <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po, lamentavelmente<br />
riçado por dificulda<strong>de</strong>s, impedimentos, estorvos<br />
gran<strong>de</strong>s, que adversaram a instituição <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>sta<br />
Aca<strong>de</strong>mia – é possível, alfim, realizar o ato <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> sua<br />
diretoria, e eu procurarei salientar a <strong>de</strong>terminante fundamental<br />
<strong>de</strong>ste Instituto.<br />
Logo neste período, o doutor Petronilho observou baixinho<br />
ao austríaco:<br />
– É castiço. Fala que n<strong>em</strong> o Aluísio. Não achas?<br />
O austríaco respon<strong>de</strong>u <strong>em</strong> voz baixa também:<br />
– Oh! Eu não sape essas coisas.<br />
Aristogen continuou:<br />
– Basta que, à fé sincera, eu vo -lo afirme: há, <strong>de</strong>ntre os<br />
eleitos para esta Egrégia Companhia, os que <strong>de</strong>salentaram<br />
<strong>em</strong> meio da jornada; há os que se <strong>de</strong>ixaram <strong>em</strong>polgar<br />
<strong>de</strong> tanta vaida<strong>de</strong> que já se sent<strong>em</strong> sobrelevados aos<br />
que lhes foram pares na eleição; há os que do alto do seu<br />
valor, gozando a convicção própria <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> olímpicos,<br />
supr<strong>em</strong>os, sorriram, num sorriso complacente <strong>de</strong> superior<br />
con<strong>de</strong>scendência, aos pigmeus que lhes buscaram a honra<br />
<strong>em</strong>inente do convívio. É, pois, urgente, inadiável <strong>de</strong>tergir<br />
esta Aca<strong>de</strong>mia. Petronilho, ainda cochichando, confi<strong>de</strong>nciou<br />
aos ouvidos do al<strong>em</strong>ão:<br />
– Não te dizia? É mais que o Aluísio; é o próprio Rui.<br />
A assistência estava <strong>em</strong>bascada com fraseado tão bonito,<br />
que, na sua maioria, ela mal compreendia.<br />
154
155<br />
uma aca<strong>de</strong>mia da roça<br />
Chegava ao final com este período:<br />
– Se proce<strong>de</strong>rmos concor<strong>de</strong> ao padrão que ora vos<br />
proponho, <strong>em</strong>bora fosse ele discutido às rebatinhas, 113<br />
estou certo que ganharão timbre <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> as palavras<br />
refregentes [sic] <strong>de</strong> Canindé, <strong>de</strong> Barnabé, <strong>de</strong> Kauffman e<br />
<strong>outros</strong>, quando, d’alma inspirada, anteviram no apogeu<br />
esta Aca<strong>de</strong>mia, qual n<strong>em</strong> eu quisera!<br />
Não teve t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> sentar -se o orador, porque, no exato<br />
momento <strong>em</strong> que acabava a sua oração, os cavalos do circo,<br />
livrando -se das prisões que os subjugavam, invadiram<br />
a arena <strong>em</strong> que estavam os acadêmicos, e os afugentaram<br />
a todos eles, unicamente por ação <strong>de</strong> presença.<br />
Nunca mais a Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Letras <strong>de</strong> Itaçaraí se reuniu.
Notas/Glossário<br />
1. Carreiro: indivíduo que conduz carro <strong>de</strong> boi; cocheiro.<br />
2. Referência ao romance Paulo e Virgínia, escrito <strong>em</strong> 1787<br />
pelo francês Bernardin <strong>de</strong> Saint -Pierre.<br />
3. Sotero, Cândido <strong>de</strong> Figueiredo, Castro Lopes: referência<br />
a Francisco Sotero dos Reis, Antônio Cândido <strong>de</strong> Figueiredo<br />
e Antônio <strong>de</strong> Castro Lopes, gramáticos e filólogos da<br />
língua portuguesa no século XIX.<br />
4. Vernaculismo: tendência a utilizar a língua, escrita ou<br />
falada, respeitando seus valores vernáculos <strong>de</strong> pureza e<br />
correção.<br />
5. Gral: recipiente usado para triturar e homogeneizar substâncias<br />
sólidas; pilão.<br />
6. Tisana: medicamento líquido extraído <strong>de</strong> alguma planta<br />
medicinal.<br />
7. Coletor: pessoa (geralmente da Fazenda Pública) encarregada<br />
do lançamento e da arrecadação <strong>de</strong> tributos;<br />
cobrador.<br />
8. Referência a Raimundo Teixeira Men<strong>de</strong>s, autor da ban<strong>de</strong>ira<br />
nacional republicana e um dos fundadores da Igreja Positivista<br />
do Brasil, entida<strong>de</strong> que na época aglutinava a<strong>de</strong>ptos<br />
da abolição da escravatura e da proclamação da República.<br />
157
lima barreto<br />
9. Potosi: referência à cida<strong>de</strong> boliviana <strong>de</strong> Potosí, famosa pela<br />
exploração <strong>de</strong> prata durante o século XVII.<br />
10. Sânie: líquido fétido, com pus e sangue, que escoa <strong>de</strong> uma<br />
úlcera, ferida ou fístula; podridão.<br />
11. Referência ao personag<strong>em</strong> do romance Gil Blas <strong>de</strong> San‑<br />
tillana, <strong>de</strong> Alain -Rene LeSage (1668-1747), publicado <strong>em</strong><br />
1715; na novela, o protagonista <strong>de</strong> baixa extração social é<br />
forçado a trabalhar como criado a serviço <strong>de</strong> diferentes<br />
amos ao longo da vida, mas acaba na corte como o favorito<br />
do Rei.<br />
12. Bandó: cada uma das partes <strong>em</strong> que, num certo tipo <strong>de</strong><br />
penteado, o cabelo é repartido ao meio e esticado para os<br />
lados da cabeça, sendo preso atrás geralmente num coque.<br />
13. Alcobaça: gran<strong>de</strong> lenço <strong>de</strong> algodão, geralmente <strong>de</strong> cor<br />
vermelha.<br />
14. Simonte: tabaco <strong>de</strong> pó fino, usado geralmente como rapé,<br />
para cheirar.<br />
15. In -quarto: formato <strong>de</strong> livro cujas folhas <strong>de</strong> impressão são<br />
dobradas duas vezes, resultando num ca<strong>de</strong>rno com quatro<br />
folhas ou oito páginas.<br />
16. Cartapácio: livro gran<strong>de</strong> e antigo; calhamaço; livro gran<strong>de</strong><br />
e fútil; alfarrábio.<br />
17. Vasconço: linguag<strong>em</strong> confusa, ininteligível ou afetada.<br />
18. Crônicon: história medieval volumosa, com excessos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>talhes.<br />
19. Tagalo: malaio; filipino.<br />
20. Referência a Abel Hovelacque (1843-1896), linguista<br />
francês.<br />
21. Referência a Friedrich Max Müller (1823-1900), linguista,<br />
orientalista e mitólogo al<strong>em</strong>ão.<br />
22. Cumeada: apogeu; ápice.<br />
23. Tr<strong>em</strong>: comitiva.<br />
24. Pope: antiga marca <strong>de</strong> automóvel.<br />
158
25. Pleureuse: ornamento <strong>de</strong> plumas <strong>de</strong> avestruz.<br />
159<br />
notas/glossário<br />
26. Croupier: caixa; indivíduo que registra vendas e recebe<br />
pagamentos.<br />
27. Montra: vitrine.<br />
28. Folha <strong>de</strong> flandres: fina chapa <strong>de</strong> ferro laminado coberta<br />
com uma camada <strong>de</strong> estanho.<br />
29. Casas <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>z ‑vous: prostíbulos.<br />
30. Paquete: navio; barco.<br />
31. Referência à Companhia Ferro -Carril do Jardim Botânico,<br />
<strong>em</strong>presa <strong>de</strong> transportes públicos no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
32. Tílburi: carro <strong>de</strong> duas rodas e dois assentos puxado por<br />
um só animal.<br />
33. Cançoneta: canção ligeira, b<strong>em</strong> -humorada, às vezes<br />
satírica.<br />
34. Maturi: castanha <strong>de</strong> caju ainda ver<strong>de</strong>.<br />
35. Entono: altivez; arrogância.<br />
36. Sorites: raciocínio composto <strong>de</strong> um número in<strong>de</strong>terminado<br />
<strong>de</strong> proposições, <strong>de</strong> modo que o atributo da primeira<br />
se torna sujeito da segunda, o atributo da segunda sujeito<br />
da terceira, e assim por diante até a conclusão, na qual se<br />
une o sujeito da primeira e o atributo da última.<br />
37. Calistenes (c. 357-327 a.C.): referência a um historiador<br />
grego do grupo <strong>de</strong> cientistas e engenheiros que acompanhavam<br />
Alexandre, o Gran<strong>de</strong>, <strong>em</strong> suas conquistas pela<br />
Ásia. Envolveu -se <strong>em</strong> um fracassado atentado contra<br />
a vida <strong>de</strong> Alexandre, sendo julgado, con<strong>de</strong>nado e preso<br />
como traidor. Há, porém, controvérsias quanto a Calistenes<br />
ter sido executado a mando <strong>de</strong> Alexandre ou morrido<br />
na prisão.<br />
38. Al<strong>de</strong>barã: estrela mais brilhante da constelação Taurus.<br />
39. Chatinag<strong>em</strong>: charlatanice; <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong>.<br />
40. Veniaga: trapaça; negociata.<br />
41. Estultice: tolice; estupi<strong>de</strong>z.
lima barreto<br />
42. Catita: elegante; atraente.<br />
43. Referência a Sir William Herschel (1738-1822), astrônomo<br />
inglês nascido na Al<strong>em</strong>anha.<br />
44. Falua: <strong>em</strong>barcação <strong>de</strong> duas velas, para águas pouco<br />
profundas.<br />
45. Carrião: eixo com duas rodas.<br />
46. Cábrea: espécie <strong>de</strong> guindaste para suspen<strong>de</strong>r gran<strong>de</strong>s<br />
pesos.<br />
47. Almanjarra: pau ou trave por on<strong>de</strong> puxa o animal.<br />
48. Apotegma: palavra m<strong>em</strong>orável; máxima.<br />
49. Ben<strong>de</strong>ngó: coisa imensa, pesadíssima.<br />
50. Sicofanta: acusador; caluniador, mentiroso; adulador servil,<br />
interesseiro.<br />
51. Ergástulo: cárcere, prisão, calabouço.<br />
52. Caaba ou Kaaba: construção que é reverenciada pelos<br />
muçulmanos, na mesquita sagrada <strong>de</strong> Al Masjid<br />
Al -Haram, <strong>em</strong> Meca.<br />
53. Alteia: gênero <strong>de</strong> plantas, da família das malváceas, com<br />
proprieda<strong>de</strong>s medicinais.<br />
54. Alfurja: antro; lugar frequentado por gente <strong>de</strong>sclassificada.<br />
55. Mazombo: filho <strong>de</strong> pais estrangeiros, sobretudo <strong>de</strong> portugueses,<br />
que nasce no Brasil; indivíduo sorumbático,<br />
mal -humorado.<br />
56. Ferrabrás: aquele que alar<strong>de</strong>ia corag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> ser corajoso;<br />
fanfarrão.<br />
57. Referência a Joseph Arthur <strong>de</strong> Gobineau (1816-1882), diplomata,<br />
escritor e filósofo francês, um dos mais importantes<br />
teóricos do racismo no século XIX.<br />
58. Referência sarcástica a medidas <strong>de</strong> ângulo facial usadas<br />
pela antropologia criminal na aferição <strong>de</strong> características<br />
como a raça do indivíduo; tais métodos foram largamente<br />
utilizados <strong>em</strong> teorias racistas, ligando características biométricas<br />
a padrões <strong>de</strong> inteligência e comportamento.<br />
160
161<br />
notas/glossário<br />
59. Ágape: banquete ou almoço <strong>de</strong> confraternização.<br />
60. Lambrequim: ornato <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ou metal utilizado <strong>em</strong><br />
beiras <strong>de</strong> telhados, cortinas etc. <strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong> ironiza aqui,<br />
como <strong>em</strong> <strong>outros</strong> <strong>contos</strong>, a Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras.<br />
61. Cediça: ultrapassada; <strong>de</strong>sagradável.<br />
62. Referência a Sidarta Gautama (c. 563 a.C. ou 623 a.C.), também<br />
conhecido como Sakyamuni ou Shakyamuni (“sábio<br />
dos Shakyas”) e popularmente chamado <strong>de</strong> Buda, professor<br />
espiritual e fundador do budismo.<br />
63. Néscio: estúpido; ignorante.<br />
64. Ul<strong>em</strong>á: entre os muçulmanos, um doutor <strong>em</strong> leis e religião,<br />
que explica o Alcorão, presi<strong>de</strong> os exercícios religiosos e<br />
administra a justiça.<br />
65. Marosca: trapaça, tramoia.<br />
66. Faluca: <strong>em</strong>barcação da costa marroquina.<br />
67. Chéchia: turbante.<br />
68. Vilaiete: província do Império Otomano administrada por<br />
um uale, que, na Argélia, é o responsável por uma divisão<br />
administrativa.<br />
69. Cai<strong>de</strong> (do árabe qaid): lí<strong>de</strong>r, mestre; título aplicado aos<br />
funcionários palatinos e m<strong>em</strong>bros da cúria, geralmente<br />
para aqueles que eram muçulmanos.<br />
70. Bei: entre os turcos, título atribuído a oficiais superiores<br />
do exército, a altos funcionários da administração e aos<br />
príncipes vassalos do sultão otomano.<br />
71. Rume: nome que os europeus davam aos turcos entre os<br />
séculos XV e XVIII.<br />
72. Saas (do árabe saa’): medida correspon<strong>de</strong>nte a dois<br />
punhados.<br />
73. Gour<strong>de</strong>: unida<strong>de</strong> monetária do Haiti. O termo já era usado<br />
como padrão monetário <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1813.<br />
74. Falaz: enganador.
lima barreto<br />
75. Cabila: grupo nôma<strong>de</strong> que vive mudando <strong>de</strong> lugar <strong>em</strong><br />
busca <strong>de</strong> pasto.<br />
76. Blandícia: mimo; adulação.<br />
77. Alcáçar: fortaleza, castelo, palácio fortificado, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong><br />
moura, residência <strong>de</strong> governador, alcai<strong>de</strong> ou mesmo <strong>de</strong> rei.<br />
78. Goum: no Norte da África, um esquadrão do exército francês<br />
formado por soldados nativos.<br />
79. Marabuto: sacerdote muçulmano <strong>de</strong> vida ascética, venerado<br />
<strong>em</strong> vida e após a morte como um santo; morabito.<br />
80. Referência a Manco Capac, primeiro rei da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Cuzco, nascido no século XI.<br />
81. Sezões: febre intermitente ou cíclica; malária.<br />
82. Exegeta: indivíduo que realiza exegese (interpretação) <strong>de</strong><br />
uma obra; comentarista, intérprete.<br />
83. Referência ao Teatro D. Pedro II, inaugurado no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro <strong>em</strong> 1871 e <strong>de</strong>molido, já com o nome <strong>de</strong> Teatro<br />
Lírico, <strong>em</strong> 1934.<br />
84. A<strong>de</strong>mane: aceno.<br />
85. Hors ‑ligne: <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> acima da média; excepcional, fora<br />
do comum.<br />
86. Pechisbeque: ouro falso; objeto <strong>de</strong> pouco valor.<br />
87. Referência a Jacques Anatole François Thibault, mais<br />
conhecido como Anatole France (1844-1924), escritor<br />
francês.<br />
88. Maxambomba: (corruptela <strong>de</strong> machine pump) era um<br />
veículo <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> passageiros constituído <strong>de</strong> uma<br />
pequena locomotiva que puxava dois ou três vagões, <strong>de</strong><br />
um ou dois andares.<br />
89. Fâmulo: pessoa que presta serviços domésticos; criado,<br />
<strong>em</strong>pregado.<br />
90. Espevitador: atiçador.<br />
91. Gamela: vasilha <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ou <strong>de</strong> barro, <strong>de</strong> vários tamanhos,<br />
usada para banhos, lavagens e <strong>outros</strong> fins.<br />
162
163<br />
notas/glossário<br />
92. Guéridon: pequena mesa com tampo redondo e um único<br />
pé central.<br />
93. Incunábulo: diz -se <strong>de</strong> obra rara ou que data do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />
que sua técnica foi <strong>de</strong>senvolvida.<br />
94. Burel: tecido grosseiro <strong>de</strong> lã.<br />
95. Nigromante: indivíduo que adivinha o futuro por meio <strong>de</strong><br />
contato com os mortos; bruxo.<br />
96. Edição princeps: primeira edição <strong>de</strong> qualquer obra. Usa-<br />
-se a expressão principalmente para se referir às primeiras<br />
edições <strong>de</strong> textos clássicos.<br />
97. Canotier: chapéu <strong>de</strong> palha oval com a borda inferior plana,<br />
geralmente adornado com uma fita.<br />
98. Doesto: injúria; insulto.<br />
99. Boceta: caixinha pequena, cilíndrica ou oval, usada para<br />
guardar pequenos objetos.<br />
100. Avoengo: que se herda ou se obtém dos avós ou<br />
antepassados.<br />
101. Coupé: carruag<strong>em</strong> fechada, <strong>de</strong> tração animal, <strong>de</strong> duas portas<br />
e geralmente dois lugares, com o cocheiro num banco<br />
à frente.<br />
102. Silogeu: antigo prédio que abrigou por vários anos, no Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a<br />
Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Medicina, o Instituto dos Advogados do Brasil<br />
e a Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Recebeu esse nome<br />
porque a palavra silogeu significa “casa ou local para reunião<br />
<strong>de</strong> associação literária ou científica”.<br />
103. Fon ‑Fon: revista brasileira surgida no Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>em</strong><br />
1907. Seu nome era uma onomatopeia do barulho produzido<br />
pela buzina dos automóveis.<br />
104. Light: companhia <strong>de</strong> energia elétrica do Estado do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro.
lima barreto<br />
105. Referência a Thomas Alva Edison (1847-1931), inventor da<br />
lâmpada elétrica incan<strong>de</strong>scente e um dos precursores da<br />
revolução tecnológica do século XX.<br />
106. Referência a Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor<br />
italiano, consi<strong>de</strong>rado o inventor do rádio e ganhador<br />
do Prêmio Nobel <strong>de</strong> Física <strong>de</strong> 1909.<br />
107. Referência a Caio Mário (c. 157 a.C. -86 a.C.), político e<br />
general da República Romana que participou da Terceira<br />
Guerra Púnica, última das guerras a opor Roma e Cartago.<br />
108. Deliquescência: <strong>de</strong>sagregação; <strong>de</strong>cadência.<br />
109. Alveitar: pessoa que trata animais doentes com base<br />
somente na experiência, s<strong>em</strong> os necessários conhecimentos<br />
<strong>de</strong> veterinária; médico incompetente.<br />
110. Referência a Ramón <strong>de</strong> Campoamor y Campoosorio (1817-<br />
1901), poeta espanhol.<br />
111. Referência a Enrique Perez Escrich (1829-1897), popular<br />
romancista e dramaturgo espanhol.<br />
112. Pelotica: arte ou técnica <strong>de</strong> iludir com truques que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<br />
da agilida<strong>de</strong> das mãos; prestidigitação.<br />
113. Rebatinha: coisa muito disputada, muito <strong>de</strong>batida.<br />
164
En<strong>de</strong>reços úteis<br />
Além dos pontos <strong>de</strong> distribuição da Coleção De <strong>Mão</strong><br />
Em <strong>Mão</strong>, conheça também as unida<strong>de</strong>s do Sist<strong>em</strong>a Municipal<br />
<strong>de</strong> Bibliotecas, on<strong>de</strong> é possível consultar e <strong>em</strong>prestar<br />
livros e <strong>outros</strong> materiais, b<strong>em</strong> como usufruir <strong>de</strong> ampla<br />
programação cultural.<br />
Para efetuar <strong>em</strong>préstimo <strong>em</strong> uma das unida<strong>de</strong>s, basta<br />
se inscrever e obter seu cartão <strong>de</strong> leitor, levando documento<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e comprovante <strong>de</strong> residência. Seu cartão<br />
do leitor valerá para todas as bibliotecas do Sist<strong>em</strong>a. Confira<br />
o regulamento <strong>de</strong> <strong>em</strong>préstimo no site ou <strong>em</strong> uma das<br />
unida<strong>de</strong>s.<br />
Para consultar o acervo disponível <strong>em</strong> cada biblioteca,<br />
a programação cultural e outras informações, acesse o site<br />
www.bibliotecas.sp.gov.br.<br />
Toda a programação do Sist<strong>em</strong>a Municipal <strong>de</strong> Bibliotecas<br />
é gratuita.<br />
A seguir estão listados en<strong>de</strong>reços <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s vinculadas<br />
à Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura.<br />
165
lima barreto<br />
Bibliotecas públicas <strong>de</strong>scentralizadas<br />
Ao todo, são 52 bibliotecas espalhadas pelos bairros<br />
da cida<strong>de</strong>. Oito <strong>de</strong>las faz<strong>em</strong> parte do projeto Bibliotecas<br />
T<strong>em</strong>áticas, que oferece acervo e ativida<strong>de</strong>s específicas nas<br />
suas áreas <strong>de</strong> atuação.<br />
A<strong>de</strong>lpha Figueiredo<br />
Pça. Ilo Ottani, 146, Canindé, tel.: 2292-3439<br />
Afonso Taunay<br />
R. Taquari, 549, Mooca, tel.: 2292-5126<br />
Afonso Schmidt<br />
Av. Elisio Teixeira Leite, 1470, Cruz das Almas, tel.: 3975-2305<br />
Alceu Amoroso <strong>Lima</strong> – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> poesia<br />
Av. Henrique Schaumann, 777, Pinheiros, tels.: 3082-5023 /<br />
3081-6092<br />
Álvares <strong>de</strong> Azevedo<br />
Pça. Joaquim José da Nova, s/n, V. Maria, tel.: 2954-2813<br />
Álvaro Guerra<br />
Av. Pedroso <strong>de</strong> Moraes, 1919, Pinheiros, tel.: 3031-7784<br />
Ama<strong>de</strong>u Amaral<br />
R. José C. Castro, s/n, Jd. da Saú<strong>de</strong>, tel.: 5061-3320<br />
Anne Frank<br />
R. Cojuba, 45, Itaim Bibi, tel.: 3078-6352<br />
Arnaldo Magalhães Giácomo, Prof.<br />
R. Restinga, 136, Tatuapé, tel.: 2295-0785<br />
Aureliano Leite<br />
R. Otto Schubart, 196, Pq. São Lucas, tel.: 2211-7716<br />
Belmonte – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> cultura popular<br />
R. Paulo Eiró, 525, Santo Amaro, tels.: 5687-0408 / 5691-0433<br />
Brito Broca<br />
Av. Mutinga, 1425, Pirituba, tels.: 3904-1444 / 3904-2476<br />
166
167<br />
en<strong>de</strong>reços úteis<br />
Camila Cerqueira César<br />
R. Wal<strong>de</strong>mar Sanches, 41, Butantã, tel.: 3731-5210<br />
Cassiano Ricardo – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> música<br />
Av. Celso Garcia, 4200, Tatuapé, tel.: 2092-4570<br />
Castro Alves<br />
R. Abrahão Mussa, s/n, Jd. Patente, tel.: 2946-4562<br />
Clarice Lispector<br />
R. Jaricunas, 458, Siciliano, tel.: 3672-1423<br />
Cora Coralina<br />
R. Otelo Augusto Ribeiro, 113, Guaianases, tel.: 2557-8004<br />
Érico Veríssimo<br />
R. Diógenes Dourado, 101, Parada <strong>de</strong> Taipas, tel.: 3972-0450<br />
Gilberto Freyre<br />
R. José Joaquim, 290, Sapop<strong>em</strong>ba, tel.: 2143-1811<br />
Hans Christian An<strong>de</strong>rsen – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> <strong>contos</strong> <strong>de</strong> fadas<br />
Av. Celso Garcia, 4142, Tatuapé, tel.: 2295-3447<br />
Helena Silveira<br />
R. João Batista Reimão, 146, Campo Limpo, tel.: 5841-1259<br />
Jamil Almansur Haddad<br />
R. An<strong>de</strong>s, 491-A, Guaianases, tel.: 2557-0067<br />
José <strong>de</strong> Anchieta, Pe.<br />
R. Antonio Maia, 651, Perus, tel.: 3917-0751<br />
José Mauro <strong>de</strong> Vasconcelos<br />
Pça. Com. Eduardo Oliveira, 100, Pq. Edu Chaves, tels.: 2242-<br />
8196 / 2242-1072<br />
José Paulo Paes<br />
Lgo. do Rosário, 20, Penha, tels.: 2295-9624 / 2295-0401<br />
Jovina Rocha Álvares Pessoa<br />
Av. Pe. Francisco <strong>de</strong> Toledo, 331, Itaquera, tels.: 2741-7371 /<br />
2741-0371<br />
Lenira Fraccaroli<br />
Pça. Haroldo Daltro, 451, Vila Manchester, tel.: 2295-2295
lima barreto<br />
Malba Tahan<br />
R. Brás Pires Meira, 100, Veleiros, tel.: 5523-4556<br />
Marcos Rey<br />
Av. Anacê, 92, Jardim Umarizal, tel.: 5845-2572<br />
Mário Schenberg – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> ciências<br />
R. Catão, 611, Lapa, tel.: 3672-0456<br />
Menotti Del Picchia<br />
R. São Romualdo, 382, Limão, tels.: 3966-4814 / 3956-5070<br />
Milton Santos<br />
Av. Aricanduva, 5777, Jardim Aricanduva, tel.: 2726-4882<br />
Narbal Fontes<br />
R. Cons. Moreira <strong>de</strong> Barros, 170, Santana, tel.: 2973-4461<br />
Nuto Sant’Anna<br />
Pça. Tenório Aguiar, 32, Santana, tel.: 2973-0072<br />
Paulo Duarte<br />
R. Arsênio Tavollieri, 45, Jabaquara, tels.: 5011-8819 / 5011-7445<br />
Paulo Sérgio Milliet<br />
Pça. Ituzaingó, s/n, Tatuapé, tel.: 2671-4974<br />
Paulo Setúbal<br />
Av. Renata, 163, Vila Formosa, tels.: 2211-1508 / 2211-1507<br />
Pedro Nava<br />
Av. Eng. Caetano Álvares, 5903, Mandaqui, tels.: 2973-7293 /<br />
2950-3598<br />
Prestes Maia, Pref. (fechada para reforma, retomará as ativida‑<br />
<strong>de</strong>s no 2o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2012)<br />
Av. João Dias, 822, Santo Amaro, tel.: 5687-0513<br />
Raimundo <strong>de</strong> Menezes<br />
Av. Nor<strong>de</strong>stina, 780, São Miguel Paulista, tel.: 2297-4053<br />
Raul Bopp – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> meio ambiente<br />
R. Muniz <strong>de</strong> Sousa, 1155, Aclimação, tel.: 3208-1895<br />
Ricardo Ramos<br />
Pça. Centenário <strong>de</strong> Vila Pru<strong>de</strong>nte, 25, Vila Pru<strong>de</strong>nte, tel.:<br />
2273-4860<br />
168
Roberto Santos – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> cin<strong>em</strong>a<br />
169<br />
en<strong>de</strong>reços úteis<br />
R. Cisplatina, 505, Ipiranga, tels.: 2273-2390 / 2063-0901<br />
Rubens Borba <strong>de</strong> Moraes<br />
R. Sampei Sato, 440, Ermelino Matarazzo, tel.: 2943-5255<br />
Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda<br />
R. Augusto C. Baumman, 564, Itaquera, tel.: 2205-7406<br />
Sylvia Orthof<br />
Av. Tucuruvi, 808, Tucuruvi, tels.: 2981-6264 / 2981-6263<br />
Thales Castanho <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
R. Dr. Artur Fajardo, 447, Freguesia do Ó, tel.: 3975-7439<br />
Vicente <strong>de</strong> Carvalho<br />
R. Guilherme Valência, 210, Itaquera, tel.: 2521-0553<br />
Vicente Paulo Guimarães<br />
R. Jaguar, 225, V. Curuçá, tels.: 2035-5322 / 2034-0646<br />
Vinicius <strong>de</strong> Moraes<br />
Av. Jardim Tamoio, 1119, Itaquera, tel.: 2521-6914<br />
Viriato Corrêa – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> literatura fantástica<br />
R. Sena Madureira, 298, V. Mariana, tels.: 5573-4017 /<br />
5574-0389<br />
Bibliotecas centrais<br />
Tradicional instituição do país, a Biblioteca Mário <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong> possui acervo expressivo com <strong>de</strong>staque para as<br />
coleções <strong>de</strong> artes, mapas, periódicos, obras raras e acervo<br />
da ONU.<br />
Já a Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato reúne<br />
significativo acervo <strong>de</strong> literatura brasileira, infantil e<br />
juvenil, acervo bibliográfico e museológico sobre Monteiro<br />
Lobato <strong>de</strong> textos teatrais.
lima barreto<br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Av. São Luis, 235, República, tel. 3256-5270<br />
Monteiro Lobato<br />
R. Gal. Jardim, 485, V. Buarque, tel.: 3256-4038<br />
Bibliotecas do Centro Cultural São Paulo<br />
Abrigam um dos mais significativos patrimônios<br />
bibliográficos do país.<br />
Na Biblioteca Sérgio Milliet <strong>de</strong>stacam-se obras nas<br />
áreas <strong>de</strong> literatura latino-americana, filosofia, religião,<br />
ciências sociais e história. Possui seções especializadas<br />
<strong>em</strong> artes, h<strong>em</strong>eroteca, recursos audiovisuais e banco <strong>de</strong><br />
peças teatrais.<br />
A Biblioteca Louis Braille, planejada e equipada para<br />
aten<strong>de</strong>r a pessoas com <strong>de</strong>ficiência visual, possui acervo<br />
<strong>em</strong> braile e áudio.<br />
A Gibiteca Henfil t<strong>em</strong> mais <strong>de</strong> 8 mil títulos entre quadrinhos,<br />
fanzines, periódicos e livros sobre histórias <strong>em</strong><br />
quadrinhos.<br />
A Discoteca Oneyda Alvarenga possui acervo especializado<br />
<strong>em</strong> música erudita e popular, nacional e estrangeira,<br />
constituído por livros, partituras, discos <strong>de</strong> 33 e<br />
78 rpm e CDs.<br />
Centro Cultural São Paulo<br />
R. Vergueiro, 1000, Paraíso<br />
Biblioteca Sérgio Milliet – tels.: 3397-4003 / 3397-4074 / 3397-4075<br />
Biblioteca Louis Braille – tel.: 3397-4088<br />
Gibiteca Henfil – tel.: 3397-4090<br />
Discoteca Oneyda Alvarenga – tels.: 3397-4071 / 3397-4072<br />
170
171<br />
en<strong>de</strong>reços úteis<br />
Biblioteca do Centro Cultural da Juventu<strong>de</strong><br />
A Biblioteca Jayme Cortez possui um acervo com mais<br />
<strong>de</strong> 10 mil ex<strong>em</strong>plares entre livros, álbuns <strong>de</strong> HQ, mangás,<br />
periódicos e material audiovisual. Conta também com um<br />
Laboratório <strong>de</strong> Idiomas.<br />
Biblioteca Jayme Cortez<br />
Av. Deputado Emílio Carlos, 3641, Cachoeirinha, tel.: 3984-<br />
2466, ramal 24<br />
Pontos <strong>de</strong> leitura<br />
Espaços criados <strong>em</strong> bairros <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> equipamentos<br />
culturais ou <strong>de</strong> difícil acesso a Bibliotecas Públicas.<br />
André Vital<br />
Av. dos Metalúrgicos, 2255, Cida<strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, tel.: 2282-2562<br />
Carolina Maria <strong>de</strong> Jesus<br />
R. Teresinha do Prado Oliveira, 119, Parelheiros, tel.: 5921-3665<br />
Graciliano Ramos<br />
R. Prof. Oscar <strong>Barreto</strong> Filho, 252 (Calçadão Cultural do Grajaú),<br />
Parque América – Grajaú, tel.: 5924-9135<br />
Jardim Lapenna<br />
R. Serra da Juruoca, s/n (Galpão da Cultura e Cidadania), Jardim<br />
Lapenna, tel.: 2297-3532<br />
Juscelino Kubitschek<br />
Av. Inácio Monteiro, 55, Cida<strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, tel.: 2556-3036<br />
Olido<br />
Av. São João, 473, Centro, tel.: 3397-0176<br />
Parque do Piqueri<br />
R. Tuiuti, 515, Tatuapé, tel.: 2092-6524
lima barreto<br />
Parque do Ro<strong>de</strong>io<br />
R. Igarapé da Bela Aurora, s/n, Cida<strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, tel.: 2555-4276<br />
Praça do Bambuzal<br />
R. da Colônia Nova, s/n (Praça Nativo Rosa <strong>de</strong> Oliveira – Praça<br />
do Bambuzal), Jardim Ângela, tel.: 5833-3567<br />
São Mateus<br />
R. Fortaleza <strong>de</strong> Itap<strong>em</strong>a, 268, Jardim Vera Cruz – São Mateus,<br />
tel.: 2019-1718<br />
Severino do Ramo<br />
R. Barão <strong>de</strong> Alagoas, 340, Itaim Paulista, tels.: 2963-2742 /<br />
2568-3329<br />
União dos moradores do Parque Anhanguera<br />
R. Ama<strong>de</strong>u Caego Monteiro, 209, Parque Anhanguera, tel.:<br />
3911-3394<br />
Vila Mara<br />
R. Conceição <strong>de</strong> Almeida, 170, São Miguel Paulista, tel.:<br />
2586-2526<br />
Bosques <strong>de</strong> leitura<br />
Ambientes culturais alternativos <strong>em</strong> parques da cida<strong>de</strong>.<br />
Abr<strong>em</strong> aos domingos e, <strong>em</strong> alguns en<strong>de</strong>reços, também aos<br />
sábados. Confira os dias e horários <strong>de</strong> funcionamento no<br />
site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone 3675-8096.<br />
Anhanguera<br />
Av. Fortunata Tadiello Natucci, 1000, Perus<br />
Carmo<br />
Av. Afonso <strong>de</strong> Sampaio Souza, 951, Itaquera<br />
Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Toronto<br />
Av. Car<strong>de</strong>al Motta, 84, Pirituba<br />
172
Esportivo dos Trabalhadores<br />
R. Canuto Abreu, s/n, Tatuapé<br />
Ibirapuera<br />
Av. República do Líbano, 1151 – Portão 7A, Mo<strong>em</strong>a<br />
Jardim da Luz<br />
R. Ribeiro <strong>de</strong> <strong>Lima</strong>, 99, Luz<br />
Lajeado<br />
R. Antonio Tha<strong>de</strong>o, 74, Lajeado<br />
Lions Clube Tucuruvi<br />
R. Alcindo Bueno <strong>de</strong> Assis, 500, Tucuruvi<br />
Raposo Tavares<br />
R. Telmo Coelho Filho, 200, Vila Albano – Butantã<br />
Santo Dias<br />
R. Jasmim da Beirada, 71, Capão Redondo<br />
Ônibus‑biblioteca<br />
173<br />
en<strong>de</strong>reços úteis<br />
Os ônibus-biblioteca levam livros, jornais, revistas,<br />
gibis e programação cultural às comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bairros<br />
periféricos da cida<strong>de</strong>. Conta com paradas pre<strong>de</strong>terminadas<br />
para cada dia da s<strong>em</strong>ana. Confira os roteiros da sua<br />
região no site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone<br />
2291-5763.
SOBRE O LIVRO<br />
Formato: 12 x 21 cm<br />
Mancha: 18 x 37 paicas<br />
Tipologia: Minion Pro 10/13,5<br />
Papel: Off-white 80 g/m² (miolo)<br />
Supr<strong>em</strong>o 250 g/m² (capa)<br />
1 a edição: 2012<br />
EQUIPE DE REALIZAÇÃO<br />
Assistência Editorial<br />
Olívia Fra<strong>de</strong> Zambone<br />
Edição <strong>de</strong> texto<br />
Nair Hitomi Kayo (Copi<strong>de</strong>sque)<br />
Fabiana Mioto (Preparação <strong>de</strong> original)<br />
Editoração Eletrônica<br />
Estúdio Bogari<br />
Capa<br />
Estúdio Bogari<br />
Imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> capa<br />
“Rio Antigo”, <strong>de</strong> Emiliano Di Cavalcanti, 1969.<br />
© Elisabeth di Cavalcanti<br />
Coor<strong>de</strong>nação De <strong>Mão</strong> <strong>em</strong> <strong>Mão</strong><br />
Ananda Stücker (Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura)<br />
Bruno Langeani (Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura)<br />
Oscar D’Ambrosio (Editora Unesp)