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nova Califórnia e outros contos / Lima Barreto - Projeto de Mão em ...

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LimA BArrEtO<br />

A NOVA<br />

CALIFÓRNIA<br />

E OUTROS CONTOS


Uma campanha <strong>de</strong> fomento à<br />

leitura da Secretaria Municipal<br />

<strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong> São Paulo, <strong>em</strong><br />

parceria com a Fundação<br />

Editora da Unesp.


Comissão Editorial<br />

Carlos Augusto Calil<br />

Heloísa Jahn<br />

Jézio Hernani Bomfim Gutierre<br />

José <strong>de</strong> Souza Martins<br />

Luciana Veit<br />

Samuel Titan Jr.<br />

Sérgio Vaz


LIMA BARRETO<br />

A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong><br />

e <strong>outros</strong> <strong>contos</strong>


© 2012 Editora Unesp<br />

Fundação Editora da Unesp (FEU)<br />

Praça da Sé, 108<br />

01001-900 — São Paulo — SP<br />

Tel.: (0xx11) 3242-7171<br />

Fax: (0xx11) 3242-7172<br />

www.editoraunesp.com.br<br />

www.livrariaunesp.com.br<br />

feu@editora.unesp.br<br />

CIP — Brasil. Catalogação na fonte<br />

Sindicato Nacional dos Editores <strong>de</strong> Livros, RJ<br />

B26n<br />

<strong>Barreto</strong>, <strong>Lima</strong>, 1881-1922<br />

A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong> e <strong>outros</strong> <strong>contos</strong> / <strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong>. –<br />

São Paulo: Ed. Unesp: Prefeitura do Município <strong>de</strong> São<br />

Paulo, 2012.<br />

176p. (De <strong>Mão</strong> <strong>em</strong> <strong>Mão</strong>)<br />

ISBN 978-85-393-0241-3<br />

1. Conto brasileiro. I. Título. II. Série.<br />

12-2674 CDD: 869.93<br />

CDU: 821.134.3(81)-3<br />

Editora afiliada:


De <strong>Mão</strong> Em <strong>Mão</strong><br />

Com a distribuição <strong>de</strong> livros gratuitamente <strong>em</strong> locais<br />

<strong>de</strong> ampla circulação, este projeto procura incentivar o gosto<br />

pela leitura.<br />

O leitor po<strong>de</strong>rá levar as publicações, s<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> registro <strong>de</strong> retirada, com o compromisso <strong>de</strong> que as<br />

obras serão entregues <strong>em</strong> pontos <strong>de</strong> <strong>de</strong>volução e assim<br />

partilhadas com futuros leitores. A iniciativa se insere<br />

<strong>de</strong>ntro das ações da Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong><br />

São Paulo que buscam a efetivação das políticas <strong>de</strong> leitura<br />

e informação, permitindo que todos os cidadãos tenham<br />

acesso a ativida<strong>de</strong>s culturais.<br />

Conheça os pontos <strong>de</strong> distribuição dos livros “De<br />

<strong>Mão</strong> Em <strong>Mão</strong>” no site http://www.bibliotecas.com.br/<br />

<strong>de</strong>mao<strong>em</strong>mao.<br />

5


Sumário<br />

Prefácio 9<br />

A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong> 11<br />

O hom<strong>em</strong> que sabia javanês 25<br />

Um e outro 37<br />

Um especialista 51<br />

Como o “hom<strong>em</strong>” chegou 63<br />

Congresso Pan -Planetário 87<br />

Hussein Ben -Áli Al -Bálec 93<br />

e Miqueias Habacuc<br />

O feiticeiro e o <strong>de</strong>putado 109<br />

Uma noite no Lírico 115<br />

A biblioteca 123<br />

Sua Excelência 135<br />

Por que não se matava 139<br />

Ele e suas i<strong>de</strong>ias 145<br />

Uma aca<strong>de</strong>mia da roça 151<br />

Notas/Glossário 157<br />

En<strong>de</strong>reços úteis 165<br />

7


Prefácio<br />

Filho <strong>de</strong> um tipógrafo mulato nascido escravo e <strong>de</strong> uma<br />

escrava agregada, o escritor e jornalista Afonso Henriques<br />

<strong>de</strong> <strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong> (1881-1922) foi um dos mais severos críticos<br />

da República Velha (1889-1930). Seus textos <strong>de</strong>snudam<br />

a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po e apontam para a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> alternativas aos costumes e práticas que privilegiavam<br />

classes sociais e corporações.<br />

Favorável a todo tipo <strong>de</strong> ação que pusesse a nu a mediocrida<strong>de</strong><br />

das famílias aristocráticas, o autor, numa crônica<br />

dos subúrbios cariocas e <strong>de</strong> sua população, retrata a população<br />

pobre e oprimida, a ganância <strong>de</strong> políticos po<strong>de</strong>rosos<br />

e a incompetência e opressão dos militares.<br />

Mulato vítima <strong>de</strong> preconceito racial – experiência<br />

<strong>de</strong> vida que o coloca ao lado dos humilhados e ofendidos<br />

–, <strong>Lima</strong> apresenta um texto <strong>de</strong>spojado e coloquial que<br />

acabou por influenciar os escritores da S<strong>em</strong>ana <strong>de</strong> Arte<br />

Mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> 1922. Características realistas e naturalistas<br />

converg<strong>em</strong> num estilo saboroso, que recria tradições<br />

cômicas, carnavalescas e picarescas da cultura popular.<br />

<strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira vigorosa os pobres,<br />

boêmios e arruinados. Sua escrita é fluente e fiel à auten-<br />

9


lima barreto<br />

ticida<strong>de</strong> histórica <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po. O retrato contun<strong>de</strong>nte<br />

dos acontecimentos relevantes da recente vida republicana<br />

oferece ao leitor cont<strong>em</strong>porâneo uma crítica muito atual<br />

do nacionalismo ingênuo e dos privilégios <strong>de</strong> classe <strong>em</strong><br />

nosso país.<br />

10


A <strong>nova</strong> <strong>Califórnia</strong> *<br />

I<br />

Ninguém sabia don<strong>de</strong> viera aquele hom<strong>em</strong>. O agente<br />

do Correio pu<strong>de</strong>ra apenas informar que acudia ao nome<br />

<strong>de</strong> Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência<br />

que recebia. E era gran<strong>de</strong>. Quase diariamente,<br />

o carteiro lá ia a um dos extr<strong>em</strong>os da cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> morava<br />

o <strong>de</strong>sconhecido, sopesando um maço alentado <strong>de</strong> cartas<br />

vindas do mundo inteiro, grossas revistas <strong>em</strong> línguas<br />

arrevesadas, livros, pacotes…<br />

Quando Fabrício, o pedreiro, voltou <strong>de</strong> um serviço <strong>em</strong><br />

casa do novo habitante, todos na venda perguntaram -lhe<br />

que trabalho lhe tinha sido <strong>de</strong>terminado.<br />

– Vou fazer um forno, disse o preto, na sala <strong>de</strong> jantar.<br />

Imagin<strong>em</strong> o espanto da pequena cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tubiacanga,<br />

ao saber <strong>de</strong> tão extravagante construção: um forno na sala<br />

<strong>de</strong> jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pô<strong>de</strong> contar<br />

que vira balões <strong>de</strong> vidros, facas s<strong>em</strong> corte, copos como os<br />

* Escrito <strong>em</strong> 10 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1910 e publicado na primeira edição<br />

do livro Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).<br />

11


lima barreto<br />

da farmácia – um rol <strong>de</strong> coisas esquisitas a se mostrar<strong>em</strong><br />

pelas mesas e prateleiras como utensílios <strong>de</strong> uma bateria<br />

<strong>de</strong> cozinha <strong>em</strong> que o próprio diabo cozinhasse.<br />

O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados,<br />

era um fabricante <strong>de</strong> moeda falsa; para <strong>outros</strong>, os crentes<br />

e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.<br />

Chico da Tirana, o carreiro, 1 quando passava <strong>em</strong> frente<br />

da casa do hom<strong>em</strong> misterioso, ao lado do carro a chiar, e<br />

olhava a chaminé da sala <strong>de</strong> jantar a fumegar, não <strong>de</strong>ixava<br />

<strong>de</strong> persignar -se e rezar um “credo” <strong>em</strong> voz baixa; e, não<br />

fora a intervenção do farmacêutico, o sub<strong>de</strong>legado teria<br />

ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que<br />

inquietava a imaginação <strong>de</strong> toda uma população.<br />

Tomando <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração as informações <strong>de</strong> Fabrício,<br />

o boticário Bastos concluíra que o <strong>de</strong>sconhecido <strong>de</strong>via ser<br />

um sábio, um gran<strong>de</strong> químico, refugiado ali para mais<br />

sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.<br />

Hom<strong>em</strong> formado e respeitado na cida<strong>de</strong>, vereador,<br />

médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava<br />

<strong>de</strong> receitar e se fizera sócio da farmácia para mais <strong>em</strong> paz<br />

viver, a opinião <strong>de</strong> Bastos levou tranquilida<strong>de</strong> a todas as<br />

consciências e fez com que a população cercasse <strong>de</strong> uma<br />

silenciosa admiração à pessoa do gran<strong>de</strong> químico, que viera<br />

habitar a cida<strong>de</strong>.<br />

De tar<strong>de</strong>, se o viam a passear pela marg<strong>em</strong> do Tubiacanga,<br />

sentando -se aqui e ali, olhando perdidamente as<br />

águas claras do riacho, cismando diante da penetrante<br />

melancolia do crepúsculo, todos se <strong>de</strong>scobriam e não<br />

era raro que às “boas noites” acrescentass<strong>em</strong> “doutor”. E<br />

tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia<br />

com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as<br />

cont<strong>em</strong>plava, parecendo apiedar -se <strong>de</strong> que elas tivess<strong>em</strong><br />

nascido para sofrer e morrer.<br />

12


13<br />

a <strong>nova</strong> califórnia<br />

Na verda<strong>de</strong>, era <strong>de</strong> ver -se, sob a doçura suave da tar<strong>de</strong>, a<br />

bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Messias com que ele afagava aquelas crianças<br />

pretas, tão lisas <strong>de</strong> pele e tão tristes <strong>de</strong> modos, mergulhadas<br />

no seu cativeiro moral, e também as brancas, <strong>de</strong> pele<br />

baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária<br />

caquexia dos trópicos.<br />

Por vezes, vinha -lhe vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar qual a razão<br />

<strong>de</strong> ter Bernardin <strong>de</strong> Saint -Pierre gasto toda a sua ternura<br />

com Paulo e Virgínia 2 e esquecer -se dos escravos que os<br />

cercavam…<br />

Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase<br />

geral, e não o era unicamente porque havia alguém que<br />

não tinha <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> conta os méritos do novo habitante.<br />

Capitão Pelino, mestre -escola e redator da Gazeta <strong>de</strong><br />

Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista,<br />

<strong>em</strong>birrava com o sábio. “Vocês hão <strong>de</strong> ver, dizia ele, qu<strong>em</strong><br />

é esse tipo… Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um<br />

ladrão fugido do Rio.”<br />

A sua opinião <strong>em</strong> nada se baseava, ou antes, baseava -se<br />

no seu oculto <strong>de</strong>speito vendo na terra um rival para a fama<br />

<strong>de</strong> sábio <strong>de</strong> que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe<br />

disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia<br />

<strong>em</strong> Tubiacanga que não levasse bordoada do capitão Pelino,<br />

e mesmo quando se falava <strong>em</strong> algum hom<strong>em</strong> notável<br />

lá no Rio, ele não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> dizer: “Não há dúvida! O<br />

hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> talento, mas escreve: ‘um outro’, ‘<strong>de</strong> resto’…”.<br />

E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa<br />

amarga.<br />

Toda a vila <strong>de</strong> Tubiacanga acostumou -se a respeitar o<br />

solene Pelino, que corrigia e <strong>em</strong>endava as maiores glórias<br />

nacionais. Um sábio…<br />

Ao entar<strong>de</strong>cer, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler um pouco o Sotero, o Cândido<br />

<strong>de</strong> Figueiredo ou o Castro Lopes, 3 e <strong>de</strong> ter passado


lima barreto<br />

mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre -escola<br />

saía vagarosamente <strong>de</strong> casa, muito abotoado no seu paletó<br />

<strong>de</strong> brim mineiro, e encaminhava -se para a botica do Bastos<br />

a dar dois <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> prosa. Conversar é um modo <strong>de</strong><br />

dizer, porque era Pelino avaro <strong>de</strong> palavras, limitando -se<br />

tão somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios <strong>de</strong> alguém<br />

escapava a menor incorreção <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>, intervinha e<br />

<strong>em</strong>endava. “Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que…”<br />

Por aí, o mestre -escola intervinha com mansuetu<strong>de</strong> evangélica:<br />

“Não diga ‘asseguro’, senhor Bernar<strong>de</strong>s; <strong>em</strong> português<br />

é garanto”.<br />

E a conversa continuava <strong>de</strong>pois da <strong>em</strong>enda, para ser<br />

<strong>de</strong> novo interrompida por uma outra. Por essas e outras,<br />

houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino,<br />

indiferente, seguro dos seus <strong>de</strong>veres, continuava o seu<br />

apostolado <strong>de</strong> vernaculismo. 4 A chegada do sábio veio<br />

distraí -lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço<br />

voltava -se agora para combater aquele rival, que surgia<br />

tão inopinadamente.<br />

Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só<br />

Raimundo Flamel pagava <strong>em</strong> dia as suas contas, como era<br />

generoso – pai da pobreza – e o farmacêutico vira numa<br />

revista <strong>de</strong> específicos seu nome citado como químico <strong>de</strong><br />

valor.<br />

II<br />

Havia já anos que o químico vivia <strong>em</strong> Tubiacanga,<br />

quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica<br />

a<strong>de</strong>ntro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio<br />

não se dignara até aí visitar fosse qu<strong>em</strong> fosse e, certo dia,<br />

quando o sacristão Orestes ousou penetrar <strong>em</strong> sua casa,<br />

14


15<br />

a <strong>nova</strong> califórnia<br />

pedindo -lhe uma esmola para a futura festa <strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o<br />

recebeu e aten<strong>de</strong>u.<br />

Vendo -o, Bastos saiu <strong>de</strong> <strong>de</strong>trás do balcão, correu a<br />

recebê -lo com a mais perfeita <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />

sabia com qu<strong>em</strong> tratava e foi quase <strong>em</strong> uma exclamação<br />

que disse:<br />

– Doutor, seja b<strong>em</strong> -vindo.<br />

O sábio pareceu não se surpreen<strong>de</strong>r n<strong>em</strong> com a<br />

<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> respeito do farmacêutico, n<strong>em</strong> com o<br />

tratamento universitário. Doc<strong>em</strong>ente, olhou um instante<br />

a armação cheia <strong>de</strong> medicamentos e respon<strong>de</strong>u:<br />

– Desejava falar -lhe <strong>em</strong> particular, senhor Bastos.<br />

O espanto do farmacêutico foi gran<strong>de</strong>. Em que po<strong>de</strong>ria<br />

ele ser útil ao hom<strong>em</strong>, cujo nome corria mundo e <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />

os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria<br />

dinheiro? Talvez… Um atraso no pagamento das rendas,<br />

qu<strong>em</strong> sabe? E foi conduzindo o químico para o interior<br />

da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um<br />

momento, <strong>de</strong>ixou a “mão” <strong>de</strong>scansar no gral 5 , on<strong>de</strong> macerava<br />

uma tisana 6 qualquer.<br />

Por fim, achou ao fundo, b<strong>em</strong> no fundo, o quartinho<br />

que lhe servia para exames médicos mais <strong>de</strong>tidos ou para<br />

as pequenas operações, porque Bastos também operava.<br />

Sentaram -se e Flamel não tardou a expor:<br />

– Como o senhor <strong>de</strong>ve saber, <strong>de</strong>dico -me à química,<br />

tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio…<br />

– Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado,<br />

aqui, aos meus amigos.<br />

– Obrigado. Pois b<strong>em</strong>: fiz uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta,<br />

extraordinária…<br />

Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma<br />

pausa e <strong>de</strong>pois continuou:


lima barreto<br />

– Uma <strong>de</strong>scoberta… Mas não me convém, por ora,<br />

comunicar ao mundo sábio, compreen<strong>de</strong>?<br />

– Perfeitamente.<br />

– Por isso precisava <strong>de</strong> três pessoas conceituadas que<br />

foss<strong>em</strong> test<strong>em</strong>unhas <strong>de</strong> uma experiência <strong>de</strong>la e me <strong>de</strong>ss<strong>em</strong><br />

um atestado <strong>em</strong> forma, para resguardar a priorida<strong>de</strong><br />

da minha invenção… O senhor sabe: há acontecimentos<br />

imprevistos e…<br />

– Certamente! Não há dúvida!<br />

– Imagine o senhor que se trata <strong>de</strong> fazer ouro…<br />

– Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.<br />

– Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.<br />

– Como?<br />

– O senhor saberá – disse o químico secamente. A<br />

questão do momento são as pessoas que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> assistir à<br />

experiência, não acha?<br />

– Com certeza, é preciso que os seus direitos fiqu<strong>em</strong><br />

resguardados, porquanto…<br />

– Uma <strong>de</strong>las, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras<br />

duas, o senhor Bastos fará o favor <strong>de</strong> indicar -me.<br />

O boticário esteve um instante a pensar, passando <strong>em</strong><br />

revista os seus conhecimentos e, ao fim <strong>de</strong> uns três minutos,<br />

perguntou:<br />

– O coronel Bentes lhe serve? Conhece?<br />

– Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém<br />

aqui.<br />

– Posso garantir -lhe que é hom<strong>em</strong> sério, rico e muito<br />

discreto.<br />

– É religioso? Faço -lhe esta pergunta, acrescentou Flamel<br />

logo, porque t<strong>em</strong>os que lidar com ossos <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto e<br />

só estes serv<strong>em</strong>…<br />

– Qual! É quase ateu…<br />

– B<strong>em</strong>! Aceito. E o outro?<br />

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17<br />

a <strong>nova</strong> califórnia<br />

Bastos voltou a pensar e <strong>de</strong>ssa vez <strong>de</strong>morou -se um pouco<br />

mais consultando a sua m<strong>em</strong>ória… Por fim, falou:<br />

– Será o tenente Carvalhais, o coletor, 7 conhece?<br />

– Como já lhe disse…<br />

– É verda<strong>de</strong>. É hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> confiança, sério, mas…<br />

– Que é que t<strong>em</strong>?<br />

– É maçom.<br />

– Melhor.<br />

– E quando é?<br />

– Domingo. Domingo, os três irão lá <strong>em</strong> casa assistir à<br />

experiência e espero que não me recusarão as suas firmas<br />

para autenticar a minha <strong>de</strong>scoberta.<br />

– Está tratado.<br />

Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis<br />

<strong>de</strong> Tubiacanga foram à casa <strong>de</strong> Flamel, e, dias<br />

<strong>de</strong>pois, misteriosamente, ele <strong>de</strong>saparecia s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar vestígios<br />

ou explicação para o seu <strong>de</strong>saparecimento.<br />

III<br />

Tubiacanga era uma pequena cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> três ou quatro<br />

mil habitantes, muito pacífica, <strong>em</strong> cuja estação, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> on<strong>de</strong>, os expressos davam a honra <strong>de</strong> parar. Há cinco<br />

anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas<br />

e janelas só eram usadas… porque o Rio as usava.<br />

O único crime notado <strong>em</strong> seu pobre cadastro fora um<br />

assassinato por ocasião das eleições municipais; mas,<br />

aten<strong>de</strong>ndo que o assassino era do partido do governo, e a<br />

vítima da oposição, o acontecimento <strong>em</strong> nada alterou os<br />

hábitos da cida<strong>de</strong>, continuando ela a exportar o seu café<br />

e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas<br />

águas do pequeno rio que a batizara.


lima barreto<br />

Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando<br />

se veio a verificar nela um dos mais repugnantes crimes <strong>de</strong><br />

que se t<strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória! Não se tratava <strong>de</strong> um esquartejamento<br />

ou parricídio; não era o assassinato <strong>de</strong> uma família inteira<br />

ou um assalto à coletoria; era coisa pior, sacrílega aos olhos<br />

<strong>de</strong> todas as religiões e consciências: violavam -se as sepulturas<br />

do “Sossego”, do seu c<strong>em</strong>itério, do seu campo -santo.<br />

Em começo, o coveiro julgou que foss<strong>em</strong> cães, mas,<br />

revistando b<strong>em</strong> o muro, não encontrou senão pequenos<br />

buracos. Fechou -os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo<br />

perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um<br />

carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou <strong>de</strong>mônio. O<br />

coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta,<br />

foi ao sub<strong>de</strong>legado e a notícia espalhou -se pela cida<strong>de</strong>.<br />

A indignação na cida<strong>de</strong> tomou todas as feições e todas<br />

as vonta<strong>de</strong>s. A religião da morte prece<strong>de</strong> todas e certamente<br />

será a última a morrer nas consciências. Contra a<br />

profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar – os<br />

bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o agrimensor<br />

Nicolau, antigo ca<strong>de</strong>te, e positivista do rito Teixeira Men<strong>de</strong>s;<br />

8 clamava o major Camanho, presi<strong>de</strong>nte da Loja Nova<br />

Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante<br />

<strong>de</strong> armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que<br />

vivia ao <strong>de</strong>us -dará, bebericando parati nas tavernas. A<br />

própria filha do engenheiro resi<strong>de</strong>nte da estrada <strong>de</strong> ferro,<br />

que vivia <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhando aquele lugarejo, s<strong>em</strong> notar sequer<br />

os suspiros dos apaixonados locais, s<strong>em</strong>pre esperando que<br />

o expresso trouxesse um príncipe a <strong>de</strong>sposá -la –, a linda<br />

e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa Cora não pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> compartilhar da<br />

indignação e do horror que tal ato provocara <strong>em</strong> todos do<br />

lugarejo. Que tinha ela com o túmulo <strong>de</strong> antigos escravos<br />

e humil<strong>de</strong>s roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos<br />

olhos pardos o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> tão humil<strong>de</strong>s ossos? Porven-<br />

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19<br />

a <strong>nova</strong> califórnia<br />

tura o furto <strong>de</strong>les perturbaria o seu sonho <strong>de</strong> fazer radiar<br />

a beleza <strong>de</strong> sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas<br />

calçadas do Rio?<br />

Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e<br />

onipotente, <strong>de</strong> que ela também se sentia escrava, e que não<br />

<strong>de</strong>ixaria um dia <strong>de</strong> levar a sua linda caveirinha para a paz<br />

eterna do c<strong>em</strong>itério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados,<br />

quietos e comodamente <strong>de</strong>scansando num caixão<br />

b<strong>em</strong> feito e num túmulo seguro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido a sua<br />

carne encanto e prazer dos vermes…<br />

O mais indignado, porém, era Pelino. O professor <strong>de</strong>itara<br />

artigo <strong>de</strong> fundo, imprecando, bramindo, gritando:<br />

“Na história do crime, dizia ele, já bastante rica <strong>de</strong> fatos<br />

repugnantes, como sejam: o esquartejamento <strong>de</strong> Maria<br />

<strong>de</strong> Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se<br />

registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas<br />

do ‘Sossego’”.<br />

E a vila vivia <strong>em</strong> sobressalto. Nas faces não se lia mais<br />

paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos.<br />

Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras<br />

e, à noite, todos ouviam ruídos, g<strong>em</strong>idos, barulhos sobrenaturais…<br />

Parecia que os mortos pediam vingança…<br />

O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas,<br />

três sepulturas abertas e esvaziadas <strong>de</strong> seu fúnebre conteúdo.<br />

Toda a população resolveu ir <strong>em</strong> massa guardar<br />

os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, <strong>em</strong> breve,<br />

ce<strong>de</strong>ndo à fadiga e ao sono, retirou -se um, <strong>de</strong>pois outro<br />

e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda<br />

nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham<br />

sido abertas e os ossos levados para <strong>de</strong>stino misterioso.<br />

Organizaram então uma guarda. Dez homens <strong>de</strong>cididos<br />

juraram perante o sub<strong>de</strong>legado vigiar durante a noite<br />

a mansão dos mortos.


lima barreto<br />

Nada houve <strong>de</strong> anormal na primeira noite, na segunda<br />

e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham<br />

a cochilar, um <strong>de</strong>les julgou lobrigar um vulto<br />

esgueirando -se por entre a quadra dos carneiros. Correram<br />

e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva<br />

e a indignação, até aí sopitadas no ânimo <strong>de</strong>les, não se<br />

contiveram mais e <strong>de</strong>ram tanta bordoada nos macabros<br />

ladrões, que os <strong>de</strong>ixaram estendidos como mortos.<br />

A notícia correu logo <strong>de</strong> casa <strong>em</strong> casa e, quando, <strong>de</strong><br />

manhã, se tratou <strong>de</strong> estabelecer a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos dois malfeitores,<br />

foi diante da população inteira que foram neles<br />

reconhecidos o coletor Carvalhais e o coronel Bentes, rico<br />

fazen<strong>de</strong>iro e presi<strong>de</strong>nte da Câmara. Este último ainda<br />

vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pô<strong>de</strong> dizer<br />

que juntava os ossos para fazer ouro e o companheiro que<br />

fugira era o farmacêutico.<br />

Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro<br />

com ossos? Seria possível? Mas aquele hom<strong>em</strong> rico, respeitado,<br />

como <strong>de</strong>sceria ao papel <strong>de</strong> ladrão <strong>de</strong> mortos se a<br />

coisa não fosse verda<strong>de</strong>!<br />

Se fosse possível fazer, se daqueles míseros <strong>de</strong>spojos<br />

fúnebres se pu<strong>de</strong>sse fazer alguns <strong>contos</strong> <strong>de</strong> réis, como não<br />

seria bom para todos eles!<br />

O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho,<br />

viu logo ali meios <strong>de</strong> consegui -la. Castrioto, o escrivão do<br />

juiz <strong>de</strong> paz, que no ano passado conseguiu comprar uma<br />

casa, mas ainda não a pu<strong>de</strong>ra cercar, pensou no muro,<br />

que lhe <strong>de</strong>via proteger a horta e a criação. Pelos olhos do<br />

sitiante Marques, que andava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> anos atrapalhado para<br />

arranjar um pasto, pensou logo no prado ver<strong>de</strong> do Costa,<br />

on<strong>de</strong> os seus bois engordariam e ganhariam forças…<br />

Às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada um, aqueles ossos que eram<br />

ouro viriam aten<strong>de</strong>r, satisfazer e felicitá -los; e aqueles dois<br />

20


21<br />

a <strong>nova</strong> califórnia<br />

ou três milhares <strong>de</strong> pessoas, homens, crianças, mulheres,<br />

moços e velhos, como se foss<strong>em</strong> uma só pessoa, correram<br />

à casa do farmacêutico.<br />

A custo, o sub<strong>de</strong>legado pô<strong>de</strong> impedir que varejass<strong>em</strong><br />

a botica e conseguir que ficass<strong>em</strong> na praça, à espera do<br />

hom<strong>em</strong> que tinha o segredo <strong>de</strong> todo um Potosi. 9 Ele não<br />

tardou a aparecer. Trepado a uma ca<strong>de</strong>ira, tendo na mão<br />

uma pequena barra <strong>de</strong> ouro que reluzia ao forte sol da<br />

manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o<br />

segredo, se lhe poupass<strong>em</strong> a vida. “Quer<strong>em</strong>os já sabê -lo,”<br />

gritaram.<br />

Ele então explicou que era preciso redigir a receita,<br />

indicar a marcha do processo, os reativos – trabalho longo<br />

que só po<strong>de</strong>ria ser entregue impresso no dia seguinte.<br />

Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas<br />

o sub<strong>de</strong>legado falou e responsabilizou -se pelo resultado.<br />

Docilmente, com aquela doçura particular às multidões<br />

furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo<br />

na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente<br />

a maior porção <strong>de</strong> ossos <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto que pu<strong>de</strong>sse.<br />

O sucesso chegou à casa do engenheiro resi<strong>de</strong>nte da<br />

estrada <strong>de</strong> ferro. Ao jantar, não se falou <strong>em</strong> outra coisa. O<br />

doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou<br />

que era impossível. Isto era alquimia, coisa morta:<br />

ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto,<br />

fosfato <strong>de</strong> cal.<br />

Pensar que se podia fazer <strong>de</strong> uma coisa outra era “besteira”.<br />

Cora aproveitou o caso para rir -se petropolimente<br />

da cruelda<strong>de</strong> daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona<br />

Emilia, tinha fé que a coisa era possível.<br />

À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia,<br />

saltou a janela e correu <strong>em</strong> direitura ao c<strong>em</strong>itério;<br />

Cora, <strong>de</strong> pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a


lima barreto<br />

criada para ir<strong>em</strong> juntas à colheita <strong>de</strong> ossos. Não a encontrou,<br />

foi sozinha; e Dona Emília, vendo -se só, adivinhou<br />

o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cida<strong>de</strong><br />

inteira. O pai, s<strong>em</strong> dizer nada ao filho, saía; a mulher, julgando<br />

enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados<br />

– toda a população, sob a luz das estrelas assombradas,<br />

correu ao satânico ren<strong>de</strong>z ‑vous [encontro] no “Sossego”.<br />

E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam.<br />

Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo,<br />

o Major Camanho, Cora, a linda e <strong>de</strong>slumbrante<br />

Cora, com os seus lindos <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> alabastro, revolvia a<br />

sânie 10 das sepulturas, arrancava as carnes ainda podres<br />

agarradas tenazmente aos ossos e <strong>de</strong>les enchia o seu regaço<br />

até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas,<br />

que se abriam <strong>em</strong> asas rosadas e quase transparentes, não<br />

sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos <strong>em</strong> lama fedorenta…<br />

A <strong>de</strong>sinteligência não tardou a surgir; os mortos eram<br />

poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos.<br />

Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco<br />

por causa <strong>de</strong> um fêmur e mesmo entre as famílias questões<br />

surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram.<br />

Andaram juntos e <strong>de</strong> acordo e houve uma vez que o pequeno,<br />

uma esperta criança <strong>de</strong> onze anos, até aconselhou ao<br />

pai: “Papai vamos aon<strong>de</strong> está mamãe; ela era tão gorda…”.<br />

De manhã, o c<strong>em</strong>itério tinha mais mortos do que aqueles<br />

que recebera <strong>em</strong> trinta anos <strong>de</strong> existência. Uma única<br />

pessoa lá não estivera, não matara n<strong>em</strong> profanara sepulturas:<br />

fora o bêbedo Belmiro.<br />

Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando<br />

ninguém, enchera uma garrafa <strong>de</strong> parati e se <strong>de</strong>ixara<br />

ficar a beber sentado na marg<strong>em</strong> do Tubiacanga, vendo<br />

escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito <strong>de</strong><br />

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23<br />

a <strong>nova</strong> califórnia<br />

granito – ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram,<br />

mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu<br />

segredo, sob o dossel eterno das estrelas.


O hom<strong>em</strong> que sabia javanês *<br />

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro,<br />

contava eu as partidas que havia pregado às convicções e<br />

às respeitabilida<strong>de</strong>s, para po<strong>de</strong>r viver.<br />

Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive <strong>em</strong><br />

Manaus, <strong>em</strong> que fui obrigado a escon<strong>de</strong>r a minha qualida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> bacharel, para mais confiança obter dos clientes,<br />

que afluíam ao meu escritório <strong>de</strong> feiticeiro e adivinho.<br />

Contava eu isso.<br />

O meu amigo ouvia -me calado, <strong>em</strong>bevecido, gostando<br />

daquele meu Gil Blas 11 vivido, até que, <strong>em</strong> uma pausa da<br />

conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:<br />

– Tens levado uma vida b<strong>em</strong> engraçada, Castelo!<br />

– Só assim se po<strong>de</strong> viver… Isto <strong>de</strong> uma ocupação única:<br />

sair <strong>de</strong> casa a certas horas, voltar a outras, aborrece,<br />

não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!<br />

– Cansa -se; mas, não é disso que me admiro. O que me<br />

admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste<br />

Brasil imbecil e burocrático.<br />

* Publicado <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1911 no jornal A Gazeta da Tar<strong>de</strong>.<br />

25


lima barreto<br />

– Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se po<strong>de</strong>m<br />

arranjar belas páginas <strong>de</strong> vida. Imagina tu que eu já fui<br />

professor <strong>de</strong> javanês!<br />

– Quando? Aqui, <strong>de</strong>pois que voltaste do consulado?<br />

– Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.<br />

– Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?<br />

– Bebo.<br />

Mandamos buscar mais outra garrafa, ench<strong>em</strong>os os<br />

copos, e continuei:<br />

– Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente<br />

na miséria. Vivia fugido <strong>de</strong> casa <strong>de</strong> pensão <strong>em</strong> casa<br />

<strong>de</strong> pensão, s<strong>em</strong> saber on<strong>de</strong> e como ganhar dinheiro, quando<br />

li no Jornal do Commercio o anúncio seguinte:<br />

“Precisa -se <strong>de</strong> um professor <strong>de</strong> língua javanesa. Cartas,<br />

etc.”<br />

Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não<br />

terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras,<br />

ia apresentar -me. Saí do café e an<strong>de</strong>i pelas ruas,<br />

s<strong>em</strong>pre a imaginar -me professor <strong>de</strong> javanês, ganhando<br />

dinheiro, andando <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> e s<strong>em</strong> encontros <strong>de</strong>sagradáveis<br />

com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi -me à<br />

Biblioteca Nacional. Não sabia b<strong>em</strong> que livro iria pedir;<br />

mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha<br />

e subi. Na escada, acudiu -me pedir a Gran<strong>de</strong> Encyclopé‑<br />

die, letra J, a fim <strong>de</strong> consultar o artigo relativo a Java e a<br />

língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim <strong>de</strong><br />

alguns minutos, que Java era uma gran<strong>de</strong> ilha do arquipélago<br />

<strong>de</strong> Sonda, colônia holan<strong>de</strong>sa, e o javanês, língua<br />

aglutinante do grupo malaio -polinésio, possuía uma literatura<br />

digna <strong>de</strong> nota e escrita <strong>em</strong> caracteres <strong>de</strong>rivados do<br />

velho alfabeto hindu.<br />

A Enciclopédia dava -me indicação <strong>de</strong> trabalhos sobre<br />

a tal língua malaia e não tive dúvidas <strong>em</strong> consultar um<br />

26


27<br />

o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />

<strong>de</strong>les. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e<br />

saí. An<strong>de</strong>i pelas ruas, perambulando e mastigando letras.<br />

Na minha cabeça dançavam hieróglifos; <strong>de</strong> quando <strong>em</strong><br />

quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins<br />

e escrevia estes calungas na areia para guardá -los b<strong>em</strong> na<br />

m<strong>em</strong>ória e habituar a mão a escrevê -los.<br />

À noite, quando pu<strong>de</strong> entrar <strong>em</strong> casa s<strong>em</strong> ser visto, para<br />

evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei<br />

no quarto a engolir o meu “a -b -c” malaio, e, com<br />

tanto afinco levei o propósito que, <strong>de</strong> manhã, o sabia perfeitamente.<br />

Convenci -me que aquela era a língua mais fácil do<br />

mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse<br />

com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:<br />

– Senhor Castelo, quando salda a sua conta?<br />

Respondi -lhe então eu, com a mais encantadora esperança:<br />

– Breve… Espere um pouco… Tenha paciência… Vou<br />

ser nomeado professor <strong>de</strong> javanês, e…<br />

Por aí o hom<strong>em</strong> interrompeu -me:<br />

– Que diabo v<strong>em</strong> a ser isso, Senhor Castelo?<br />

Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do hom<strong>em</strong>:<br />

– É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor.<br />

Sabe on<strong>de</strong> é?<br />

Oh! alma ingênua! O hom<strong>em</strong> esqueceu -se da minha<br />

dívida e disse -me com aquele falar forte dos portugueses:<br />

– Eu cá por mim, não sei b<strong>em</strong>; mas ouvi dizer que são<br />

umas terras que t<strong>em</strong>os lá para os lados <strong>de</strong> Macau. E o<br />

senhor sabe isso, senhor Castelo?<br />

Animado com esta saída feliz que me <strong>de</strong>u o javanês,<br />

voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente<br />

propor -me ao professorado do idioma oceânico.<br />

Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá <strong>de</strong>ixei a carta. Em


lima barreto<br />

seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos<br />

<strong>de</strong> javanês. Não fiz gran<strong>de</strong>s progressos nesse dia, não sei<br />

se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário<br />

a um professor <strong>de</strong> língua malaia ou se por ter me <strong>em</strong>penhado<br />

mais na bibliografia e história literária do idioma<br />

que ia ensinar.<br />

Ao cabo <strong>de</strong> dois dias, recebia eu uma carta para ir falar<br />

ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão <strong>de</strong><br />

Jacuecanga, à rua Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bonfim, não me recordo b<strong>em</strong><br />

que número. E preciso não te esqueceres que entr<strong>em</strong>entes<br />

continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês.<br />

Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome <strong>de</strong> alguns<br />

autores, também perguntar e respon<strong>de</strong>r “como está o<br />

senhor?” – e duas ou três regras <strong>de</strong> gramática, lastrado<br />

todo esse saber com vinte palavras do léxico.<br />

Não imaginas as gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s com que lutei,<br />

para arranjar os quatrocentos réis da viag<strong>em</strong>! É mais<br />

fácil – po<strong>de</strong>s ficar certo – apren<strong>de</strong>r o javanês… Fui a pé.<br />

Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas<br />

mangueiras, que se perfilavam <strong>em</strong> alameda diante da casa<br />

do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram.<br />

Em toda a minha vida, foi o único momento <strong>em</strong> que<br />

cheguei a sentir a simpatia da natureza…<br />

Era uma casa enorme que parecia estar <strong>de</strong>serta; estava<br />

maltratada, mas não sei porque me veio pensar que<br />

nesse mau tratamento havia mais <strong>de</strong>sleixo e cansaço <strong>de</strong><br />

viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era<br />

pintada. As pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scascavam e os beirais do telhado,<br />

daquelas telhas vidradas <strong>de</strong> <strong>outros</strong> t<strong>em</strong>pos, estavam <strong>de</strong>sguarnecidos<br />

aqui e ali, como <strong>de</strong>ntaduras <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes ou<br />

malcuidadas.<br />

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com<br />

que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinho-<br />

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29<br />

o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />

rões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver<br />

com a sua folhag<strong>em</strong> <strong>de</strong> cores mortiças. Bati. Custaram -me<br />

a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas<br />

e cabelo <strong>de</strong> algodão davam à sua fisionomia uma aguda<br />

impressão <strong>de</strong> velhice, doçura e sofrimento.<br />

Na sala, havia uma galeria <strong>de</strong> retratos: arrogantes<br />

senhores <strong>de</strong> barba <strong>em</strong> colar se perfilavam enquadrados <strong>em</strong><br />

imensas molduras douradas, e doces perfis <strong>de</strong> senhoras,<br />

<strong>em</strong> bandós, 12 com gran<strong>de</strong>s leques, pareciam querer subir<br />

aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas,<br />

daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais<br />

antiguida<strong>de</strong> e respeito, a que gostei mais <strong>de</strong> ver foi um belo<br />

jarrão <strong>de</strong> porcelana da China ou da Índia, como se diz.<br />

Aquela pureza da louça, a sua fragilida<strong>de</strong>, a ingenuida<strong>de</strong><br />

do <strong>de</strong>senho e aquele seu fosco brilho <strong>de</strong> luar, diziam -me a<br />

mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos <strong>de</strong> criança,<br />

a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos<br />

<strong>de</strong>siludidos…<br />

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco.<br />

Um tanto trôpego, com o lenço <strong>de</strong> alcobaça 13 na mão,<br />

tomando veneravelmente o simonte 14 <strong>de</strong> antanho, foi<br />

cheio <strong>de</strong> respeito que o vi chegar. Tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir -me<br />

<strong>em</strong>bora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era s<strong>em</strong>pre<br />

um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à<br />

tona do meu pensamento alguma coisa <strong>de</strong> augusto, <strong>de</strong><br />

sagrado. Hesitei, mas fiquei.<br />

– Eu sou – avancei – o professor <strong>de</strong> javanês, que o<br />

senhor disse precisar.<br />

– Sente -se, respon<strong>de</strong>u -me o velho. O senhor é daqui,<br />

do Rio?<br />

– Não, sou <strong>de</strong> Canavieiras.<br />

– Como? fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo.<br />

– Sou <strong>de</strong> Canavieiras, na Bahia, insisti eu.


lima barreto<br />

– On<strong>de</strong> fez os seus estudos?<br />

– Em São Salvador.<br />

– E on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>u o javanês? indagou ele, com aquela<br />

teimosia peculiar aos velhos.<br />

Não contava com essa pergunta, mas imediatamente<br />

arquitetei uma mentira. Contei -lhe que meu pai era javanês.<br />

Tripulante <strong>de</strong> um navio mercante, viera ter à Bahia,<br />

estabelecera -se nas proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Canavieiras como<br />

pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi<br />

javanês.<br />

– E ele acreditou? E o físico? perguntou meu amigo, que<br />

até então me ouvira calado.<br />

– Não sou, objetei, lá muito diferente <strong>de</strong> um javanês.<br />

Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha<br />

pele basané [bronzeada] po<strong>de</strong>m dar -me muito b<strong>em</strong> o<br />

aspecto <strong>de</strong> um mestiço <strong>de</strong> malaio… Tu sabes b<strong>em</strong> que,<br />

entre nós, há <strong>de</strong> tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches,<br />

guanches, até godos. É uma comparsaria <strong>de</strong> raças e<br />

tipos <strong>de</strong> fazer inveja ao mundo inteiro.<br />

– B<strong>em</strong>, fez o meu amigo, continua.<br />

– O velho, <strong>em</strong>en<strong>de</strong>i eu, ouviu -me atentamente, consi<strong>de</strong>rou<br />

<strong>de</strong>moradamente o meu físico, pareceu que me julgava<br />

<strong>de</strong> fato filho <strong>de</strong> malaio e perguntou -me com doçura:<br />

– Então está disposto a ensinar -me javanês?<br />

– A resposta saiu -me s<strong>em</strong> querer: – Pois não.<br />

– O senhor há <strong>de</strong> ficar admirado, aduziu o barão <strong>de</strong><br />

Jacuecanga, que eu, nesta ida<strong>de</strong>, ainda queira apren<strong>de</strong>r<br />

qualquer coisa, mas…<br />

– Não tenho que admirar. Têm -se visto ex<strong>em</strong>plos e<br />

ex<strong>em</strong>plos muito fecundos…<br />

– O que eu quero, meu caro senhor….<br />

– Castelo, adiantei eu.<br />

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31<br />

o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />

– O que eu quero, meu caro senhor Castelo, é cumprir<br />

um juramento <strong>de</strong> família. Não sei se o senhor sabe que<br />

eu sou neto do conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou<br />

Pedro I, quando abdicou. Voltando <strong>de</strong> Londres,<br />

trouxe para aqui um livro <strong>em</strong> língua esquisita, a que<br />

tinha gran<strong>de</strong> estimação. Fora um hindu ou siamês que<br />

lho <strong>de</strong>ra, <strong>em</strong> Londres, <strong>em</strong> agra<strong>de</strong>cimento a não sei que<br />

serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou<br />

meu pai e lhe disse: “Filho, tenho este livro aqui,<br />

escrito <strong>em</strong> javanês. Disse -me qu<strong>em</strong> mo <strong>de</strong>u que ele evita<br />

<strong>de</strong>sgraças e traz felicida<strong>de</strong>s para qu<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>. Eu não sei<br />

nada ao certo. Em todo o caso, guarda -o; mas, se queres<br />

que o fado que me <strong>de</strong>itou o sábio oriental se cumpra, faze<br />

com que teu filho o entenda, para que s<strong>em</strong>pre a nossa raça<br />

seja feliz”. Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou<br />

muito na história; contudo, guardou o livro. Às<br />

portas da morte, ele mo <strong>de</strong>u e disse -me o que prometera<br />

ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro.<br />

Deitei -o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a<br />

esquecer -me <strong>de</strong>le; mas, <strong>de</strong> uns t<strong>em</strong>pos a esta parte, tenho<br />

passado por tanto <strong>de</strong>sgosto, tantas <strong>de</strong>sgraças têm caído<br />

sobre a minha velhice que me l<strong>em</strong>brei do talismã da família.<br />

Tenho que o ler, que o compreen<strong>de</strong>r, se não quero que<br />

os meus últimos dias anunci<strong>em</strong> o <strong>de</strong>sastre da minha posterida<strong>de</strong>;<br />

e, para entendê -lo, é claro que preciso enten<strong>de</strong>r<br />

o javanês. Eis aí.<br />

Calou -se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado.<br />

Enxugou discretamente os olhos e perguntou -me<br />

se queria ver o tal livro. Respondi -lhe que sim. Chamou o<br />

criado, <strong>de</strong>u -lhe as instruções e explicou -me que per<strong>de</strong>ra<br />

todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada,<br />

cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil <strong>de</strong><br />

corpo e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> frágil e oscilante.


lima barreto<br />

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in -quarto<br />

15 antigo, enca<strong>de</strong>rnado <strong>em</strong> couro, impresso <strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

letras, <strong>em</strong> um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do<br />

rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha<br />

ainda umas páginas <strong>de</strong> prefácio, escritas <strong>em</strong> inglês, on<strong>de</strong> li<br />

que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor<br />

javanês <strong>de</strong> muito mérito.<br />

Logo informei disso o velho barão que, não percebendo<br />

que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo <strong>em</strong> alta<br />

consi<strong>de</strong>ração o meu saber malaio. Estive ainda folheando<br />

o cartapácio, 16 à laia <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sabe magistralmente aquela<br />

espécie <strong>de</strong> vasconço, 17 até que afinal contratamos as condições<br />

<strong>de</strong> preço e <strong>de</strong> hora, comprometendo -me a fazer com<br />

que ele lesse o tal alfarrábio antes <strong>de</strong> um ano.<br />

Dentro <strong>em</strong> pouco, dava a minha primeira lição, mas<br />

o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia<br />

apren<strong>de</strong>r a distinguir e a escrever n<strong>em</strong> sequer quatro<br />

letras. Enfim, com meta<strong>de</strong> do alfabeto levamos um mês<br />

e o senhor barão <strong>de</strong> Jacuecanga não ficou lá muito senhor<br />

da matéria: aprendia e <strong>de</strong>saprendia.<br />

A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história<br />

do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho;<br />

não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa<br />

boa para distraí -lo.<br />

Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro,<br />

é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor<br />

<strong>de</strong> javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava <strong>de</strong><br />

repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso,<br />

ah! on<strong>de</strong> estava!”.<br />

O marido <strong>de</strong> Dona Maria da Glória (assim se chamava<br />

a filha do barão), era <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bargador, hom<strong>em</strong> relacionado<br />

e po<strong>de</strong>roso; mas não se pejava <strong>em</strong> mostrar diante <strong>de</strong> todo o<br />

mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado,<br />

32


33<br />

o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />

o barão estava contentíssimo. Ao fim <strong>de</strong> dois meses, <strong>de</strong>sistira<br />

da aprendizag<strong>em</strong> e pedira -me que lhe traduzisse, um<br />

dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava<br />

entendê -lo, disse -me ele; nada se opunha que outr<strong>em</strong> o<br />

traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo<br />

e cumpria o encargo.<br />

Sabes b<strong>em</strong> que até hoje nada sei <strong>de</strong> javanês, mas compus<br />

umas histórias b<strong>em</strong> tolas e impingi -as ao velhote<br />

como sendo do crônicon. 18 Como ele ouvia aquelas bobagens!…<br />

Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras <strong>de</strong><br />

um anjo. E eu crescia aos seus olhos!<br />

Fez -me morar <strong>em</strong> sua casa, enchia -me <strong>de</strong> presentes,<br />

aumentava -me o or<strong>de</strong>nado. Passava, enfim, uma vida<br />

regalada.<br />

Contribuiu muito para isso o fato <strong>de</strong> vir ele a receber<br />

uma herança <strong>de</strong> um seu parente esquecido que vivia <strong>em</strong><br />

Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e<br />

eu estive quase a crê -lo também.<br />

Fui per<strong>de</strong>ndo os r<strong>em</strong>orsos; mas, <strong>em</strong> todo o caso, s<strong>em</strong>pre<br />

tive medo que me aparecesse pela frente alguém que<br />

soubesse o tal patuá malaio. E esse meu t<strong>em</strong>or foi gran<strong>de</strong>,<br />

quando o doce barão me mandou com uma carta ao<br />

viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia.<br />

Fiz -lhe todas as objeções: a minha fealda<strong>de</strong>, a falta<br />

<strong>de</strong> elegância, o meu aspecto tagalo. 19 – “Qual! retrucava<br />

ele. Vá, menino; você sabe javanês!” Fui. Mandou -me o<br />

viscon<strong>de</strong> para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas<br />

recomendações. Foi um sucesso.<br />

O diretor chamou os chefes <strong>de</strong> seção: “Vejam só, um<br />

hom<strong>em</strong> que sabe javanês – que portento!”.<br />

Os chefes <strong>de</strong> secção levaram -me aos oficiais e amanuenses<br />

e houve um <strong>de</strong>stes que me olhou mais com ódio


lima barreto<br />

do que com inveja ou admiração. E todos diziam: “Então<br />

sabe javanês? É difícil? Não há qu<strong>em</strong> o saiba aqui!”.<br />

O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu<br />

então: “É verda<strong>de</strong>, mas eu sei canaque. O senhor sabe?”.<br />

Disse -lhe que não e fui à presença do ministro.<br />

A alta autorida<strong>de</strong> levantou -se, pôs as mãos às ca<strong>de</strong>iras,<br />

concertou o pince ‑nez [óculos] no nariz e perguntou:<br />

“Então, sabe javanês?”. Respondi -lhe que sim; e, à sua pergunta<br />

on<strong>de</strong> o tinha aprendido, contei -lhe a história do tal<br />

pai javanês. “B<strong>em</strong>, disse -me o ministro, o senhor não <strong>de</strong>ve<br />

ir para a diplomacia; o seu físico não se presta… O bom<br />

seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há<br />

vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De<br />

hoje <strong>em</strong> diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero<br />

que, para o ano, parta para Basileia, on<strong>de</strong> vai representar<br />

o Brasil no Congresso <strong>de</strong> Linguística. Estu<strong>de</strong>, leia o<br />

Hovelacque, 20 o Max Müller, 21 e <strong>outros</strong>!”<br />

Imagina tu que eu até aí nada sabia <strong>de</strong> javanês, mas<br />

estava <strong>em</strong>pregado e iria representar o Brasil <strong>em</strong> um congresso<br />

<strong>de</strong> sábios.<br />

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro<br />

para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a ida<strong>de</strong><br />

conveniente e fez -me uma <strong>de</strong>ixa no testamento.<br />

Pus -me com afã no estudo das línguas malaio-<br />

-polinésicas; mas não havia meio!<br />

B<strong>em</strong> jantado, b<strong>em</strong> -vestido, b<strong>em</strong> dormido, não tinha<br />

energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas<br />

coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas:<br />

Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the<br />

English ‑Oceanic Association, Archivo Glottologico Italia‑<br />

no, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os<br />

informados apontavam -me, dizendo aos <strong>outros</strong>: “Lá vai<br />

o sujeito que sabe javanês”. Nas livrarias, os gramáticos<br />

34


35<br />

o hom<strong>em</strong> que sabia javanês<br />

consultavam -me sobre a colocação dos pronomes no tal<br />

jargão das ilhas <strong>de</strong> Sonda. Recebia cartas dos eruditos do<br />

interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar<br />

uma turma <strong>de</strong> alunos sequiosos <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r<strong>em</strong> o tal javanês.<br />

A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commer‑<br />

cio um artigo <strong>de</strong> quatro colunas sobre a literatura javanesa<br />

antiga e mo<strong>de</strong>rna…<br />

– Como, se tu nada sabias? interrompeu -me o atento<br />

Castro.<br />

– Muito simplesmente: primeiramente, <strong>de</strong>screvi a ilha<br />

<strong>de</strong> Java, com o auxílio <strong>de</strong> dicionários e umas poucas <strong>de</strong><br />

geografias, e <strong>de</strong>pois citei a mais não po<strong>de</strong>r.<br />

– E nunca duvidaram? perguntou -me ainda o meu<br />

amigo.<br />

– Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia<br />

pren<strong>de</strong>u um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que<br />

só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes,<br />

ninguém o entendia. Fui também chamado, com<br />

todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente.<br />

D<strong>em</strong>orei -me <strong>em</strong> ir, mas fui afinal. O hom<strong>em</strong> já<br />

estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a<br />

qu<strong>em</strong> ele se fez compreen<strong>de</strong>r com meia dúzia <strong>de</strong> palavras<br />

holan<strong>de</strong>sas. E o tal marujo era javanês – uf!<br />

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a<br />

Europa. Que <strong>de</strong>lícia! Assisti à inauguração e às sessões<br />

preparatórias. Inscreveram -me na seção do tupi -guarani<br />

e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Men‑<br />

sageiro <strong>de</strong> Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas.<br />

Quando voltei, o presi<strong>de</strong>nte pediu -me <strong>de</strong>sculpas<br />

por me ter dado aquela secção; não conhecia os meus trabalhos<br />

e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me<br />

estava naturalmente indicada a seção do tupi -guarani.<br />

Aceitei as explicações e até hoje ainda não pu<strong>de</strong> escrever


lima barreto<br />

as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme<br />

prometi.<br />

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do<br />

Mensageiro <strong>de</strong> Bâle, <strong>em</strong> Berlim, <strong>em</strong> Turim e Paris, on<strong>de</strong><br />

os leitores <strong>de</strong> minhas obras me ofereceram um banquete,<br />

presidido pelo Senador Gorot. Custou -me toda essa brinca<strong>de</strong>ira,<br />

inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom<br />

barão <strong>de</strong> Jacuecanga.<br />

Não perdi meu t<strong>em</strong>po n<strong>em</strong> meu dinheiro. Passei a ser<br />

uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi<br />

uma ovação <strong>de</strong> todas as classes sociais e o presi<strong>de</strong>nte da<br />

República, dias <strong>de</strong>pois, convidava -me para almoçar <strong>em</strong><br />

sua companhia.<br />

Dentro <strong>de</strong> seis meses fui <strong>de</strong>spachado cônsul <strong>em</strong> Havana,<br />

on<strong>de</strong> estive seis anos e para on<strong>de</strong> voltarei, a fim <strong>de</strong><br />

aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia<br />

e Polinésia.<br />

– É fantástico, observou Castro, agarrando o copo <strong>de</strong><br />

cerveja.<br />

– Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?<br />

– Que?<br />

– Bacteriologista <strong>em</strong>inente. Vamos?<br />

– Vamos.<br />

36


Um e outro *<br />

37<br />

A Deodoro Leucht<br />

Não havia motivo para que ela procurasse aquela ligação,<br />

não havia razão para que a mantivesse. O Freitas a<br />

enfarava um pouco, é verda<strong>de</strong>. Os seus hábitos quase conjugais;<br />

o modo <strong>de</strong> tratá -la como sua mulher; os ro<strong>de</strong>ios <strong>de</strong><br />

que se servia para aludir à vida das outras raparigas; as<br />

precauções que tomava para enganá -la; a sua linguag<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre escoimada <strong>de</strong> termos <strong>de</strong> calão ou duvidoso; enfim,<br />

aquele ar burguês da vida que levava, aquela regularida<strong>de</strong>,<br />

aquele equilíbrio davam -lhe a impressão <strong>de</strong> estar cumprindo<br />

pena.<br />

Isto era b<strong>em</strong> verda<strong>de</strong>, mas não a absolvia perante ela<br />

mesma <strong>de</strong> estar enganando o hom<strong>em</strong> que lhe dava tudo,<br />

que educava sua filha, que a mantinha como senhora,<br />

com o “chofer” do automóvel <strong>em</strong> que passeava duas vezes<br />

ou mais por s<strong>em</strong>ana. Por que não procurara outro mais<br />

* Escrito <strong>em</strong> março <strong>de</strong> 1913 e publicado na primeira edição do livro<br />

Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).


lima barreto<br />

<strong>de</strong>cente? A sua razão <strong>de</strong>sejava b<strong>em</strong> isso; mas o seu instinto<br />

a tinha levado para ali.<br />

A b<strong>em</strong> dizer, ela não gostava <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>, mas <strong>de</strong> homens;<br />

as exigências <strong>de</strong> sua imaginação, mais do que as <strong>de</strong> sua carne,<br />

eram para a poliandria. A vida a fizera assim e não havia<br />

<strong>de</strong> ser agora, ao roçar os cinquenta, que havia <strong>de</strong> corrigir -se.<br />

Ao l<strong>em</strong>brar -se <strong>de</strong> sua ida<strong>de</strong>, olhou -se um pouco no espelho<br />

e viu que uma ruga teimosa começava a surgir no canto<br />

<strong>de</strong> um dos olhos. Era preciso a massag<strong>em</strong>… Examinou-<br />

-se melhor. Estava <strong>de</strong> corpinho. O colo era ainda opulento,<br />

unido; o pescoço repousava b<strong>em</strong> sobre ele, e ambos, colo<br />

e pescoço, se ajustavam s<strong>em</strong> saliências n<strong>em</strong> <strong>de</strong>pressões.<br />

Teve satisfação <strong>de</strong> sua carne; teve orgulho mesmo.<br />

Há quanto t<strong>em</strong>po ela resistia aos estragos do t<strong>em</strong>po e ao<br />

<strong>de</strong>sejo dos homens? Não estava moça, mas se sentia ainda<br />

apetitosa. Quantos a provaram? Ela não podia sequer avaliar<br />

o número aproximado. Passavam por sua l<strong>em</strong>brança<br />

numerosas fisionomias. Muitas ela não fixara b<strong>em</strong> na<br />

m<strong>em</strong>ória e surgiam -lhe na recordação como coisas vagas,<br />

sombras, pareciam espíritos. L<strong>em</strong>brava -se às vezes <strong>de</strong> um<br />

gesto, às vezes <strong>de</strong> uma frase <strong>de</strong>ste ou daquele s<strong>em</strong> se l<strong>em</strong>brar<br />

dos seus traços; recordava -se às vezes da roupa s<strong>em</strong><br />

se recordar da pessoa. Era curioso que <strong>de</strong> certos que a<br />

conhecess<strong>em</strong> uma única noite e se foram para s<strong>em</strong>pre, ela<br />

se l<strong>em</strong>brasse b<strong>em</strong>; e <strong>de</strong> <strong>outros</strong> que se <strong>de</strong>moraram, tivesse<br />

uma imag<strong>em</strong> apagada.<br />

Os vestígios da sua primitiva educação religiosa e os<br />

mol<strong>de</strong>s da honestida<strong>de</strong> comum subiram à sua consciência.<br />

Seria pecado aquela sua vida? Iria para o inferno? Viu um<br />

instante o seu inferno <strong>de</strong> estampa popular: as labaredas<br />

muito rubras, as almas mergulhadas nelas e os diabos,<br />

com uns garfos enormes, a obrigar os penitentes a sofrer<strong>em</strong><br />

o suplício.<br />

38


39<br />

um e outro<br />

Haveria isso mesmo ou a morte seria…? A sombra da<br />

morte ofuscou -lhe o pensamento. Já não era tanto o inferno<br />

que lhe vinha aos olhos; era a morte só, o aniquilamento<br />

do seu corpo, da sua pessoa, o horror horrível da<br />

sepultura fria.<br />

Isto lhe pareceu uma injustiça. Que as vagabundas<br />

comuns morress<strong>em</strong>, vá! Que as criadas morress<strong>em</strong>, vá!<br />

Ela, porém, ela que tivera tantos amantes ricos; ela que<br />

causara rixas, suicídios e assassinatos, morrer era uma iniquida<strong>de</strong><br />

s<strong>em</strong> nome! Não era uma mulher comum, ela, a<br />

Lola, a Lola <strong>de</strong>sejada por tantos homens; a Lola, amante<br />

do Freitas, que gastava mais <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> réis por mês<br />

nas coisas triviais da casa, não podia n<strong>em</strong> <strong>de</strong>via morrer.<br />

Houve então nela um assomo íntimo <strong>de</strong> revolta contra o<br />

<strong>de</strong>stino implacável.<br />

Agarrou a blusa, ia vesti -la, mas reparou que faltava<br />

um botão. L<strong>em</strong>brou -se <strong>de</strong> pregá -lo, mas imediatamente<br />

lhe veio a invencível repugnância que s<strong>em</strong>pre tivera pelo<br />

trabalho manual. Quis chamar a criada: mas seria <strong>de</strong>morar.<br />

Lançou mão <strong>de</strong> alfinetes.<br />

Acabou <strong>de</strong> vestir -se, pôs o chapéu, e olhou um pouco<br />

os móveis. Eram caros, eram bons. Restava -lhe esse consolo:<br />

morreria, mas morreria no luxo, tendo nascido <strong>em</strong><br />

uma cabana. Como eram diferentes os dois momentos! Ao<br />

nascer, até aos vinte e tantos anos, mal tinha on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar<br />

após as labutas domésticas. Quando casada, o marido<br />

vinha suado dos trabalhos do campo e, mal lavados,<br />

<strong>de</strong>itavam -se. Como era diferente agora… Qual! Não seria<br />

capaz <strong>de</strong> suportá -lo mais… Como é que pô<strong>de</strong>?<br />

Seguiu -se a <strong>em</strong>igração… Como foi que veio até ali, até<br />

aquela cumeada 22 <strong>de</strong> que se orgulhava? Não apanhava<br />

b<strong>em</strong> o enca<strong>de</strong>amento. Apanhava alguns termos da série;<br />

como porém se ligaram, como se ajustaram para fazê -la


lima barreto<br />

subir <strong>de</strong> criada à amante opulenta do Freitas, não compreendia<br />

b<strong>em</strong>. Houve oscilações, houve <strong>de</strong>svios. Uma vez<br />

mesmo quase se viu <strong>em</strong>brulhada numa questão <strong>de</strong> furto;<br />

mas, após tantos anos, a ascensão parecia -lhe gloriosa e<br />

retilínea. Deu os últimos toques no chapéu, concertou o<br />

cabelo na nuca, abriu o quarto e foi até à sala <strong>de</strong> jantar.<br />

– Maria, on<strong>de</strong> está a Merce<strong>de</strong>s? Perguntou.<br />

Merce<strong>de</strong>s era a sua filha, filha <strong>de</strong> sua união legal, que<br />

orçava pelos vinte e poucos anos. Nascera no Brasil, dois<br />

anos após a sua chegada, um antes <strong>de</strong> abandonar o marido.<br />

A criada correu logo a aten<strong>de</strong>r a patroa:<br />

– Está no quintal conversando com a Aída, patroa.<br />

Maria era a sua copeira e Aída a lava<strong>de</strong>ira; no tr<strong>em</strong> 23 <strong>de</strong><br />

sua casa, havia três criadas e ela, a antiga criada, gostava<br />

<strong>de</strong> l<strong>em</strong>brar -se do número das que tinha agora, para avaliar<br />

o progresso que fizera na vida.<br />

Não insistiu mais <strong>em</strong> perguntar pela filha e recomendou:<br />

– Vou sair. Fecha b<strong>em</strong> a porta da rua… Toma cuidado<br />

com os ladrões.<br />

Abotoou as luvas, concertou a fisionomia e pisou a calçada<br />

com um imponente ar <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> dama sob o seu caro<br />

chapéu <strong>de</strong> plumas brancas.<br />

A rua dava -lhe mais força <strong>de</strong> fisionomia, mais consciência<br />

<strong>de</strong>la mesma. Como se sentia estar no seu reino, na<br />

região <strong>em</strong> que era rainha e imperatriz. O olhar cobiçoso<br />

dos homens e o <strong>de</strong> inveja das mulheres acabavam o sentimento<br />

<strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>, exaltavam -no até. Dirigiu-<br />

-se para a rua do Catete com o seu passo miúdo e sólido.<br />

Era manhã e, <strong>em</strong>bora andáss<strong>em</strong>os pelo meado do ano, o<br />

sol era forte como se já verão fosse. No caminho trocou<br />

cumprimentos com as raparigas pobres <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong><br />

cômodos da vizinhança.<br />

– Bom dia, madama.<br />

40


41<br />

um e outro<br />

– Bom dia.<br />

E <strong>de</strong>baixo dos olhares maravilhados das pobres raparigas,<br />

ela continuou o seu caminho, arrepanhando a saia,<br />

satisfeita que n<strong>em</strong> uma duquesa, atravessando os seus<br />

domínios.<br />

O ren<strong>de</strong>z ‑vous [encontro] era para uma hora; tinha<br />

t<strong>em</strong>po, portanto, <strong>de</strong> dar umas voltas à cida<strong>de</strong>. Precisava<br />

mesmo que o Freitas lhe <strong>de</strong>sse uma quantia maior. Já lhe<br />

falara a respeito pela manhã, quando ele saiu e tinha que<br />

buscá -la ao escritório <strong>de</strong>le.<br />

Tencionava comprar um mimo e oferecê-lo ao chofer<br />

do “seu” Pope, 24 o seu último amor, o ente sobre -humano<br />

que ela via coado através da beleza daquele “carro” negro,<br />

arrogante, insolente, cortando a multidão das ruas orgulhoso<br />

como um Deus.<br />

Na imaginação, ambos, “chofer” e “carro”, não os podia<br />

separar um do outro; e a imag<strong>em</strong> dos dois era uma única<br />

<strong>de</strong> supr<strong>em</strong>a beleza, tendo a seu dispor a força e a velocida<strong>de</strong><br />

do vento.<br />

Tomou o bon<strong>de</strong>. Não reparou nos companheiros <strong>de</strong><br />

viag<strong>em</strong>; <strong>em</strong> nenhum, ela sentiu uma alma; <strong>em</strong> nenhum,<br />

ela sentiu um s<strong>em</strong>elhante. Todo o seu pensamento era<br />

para o “chofer”, e o “carro”. O automóvel, aquela magnífica<br />

máquina, que passava pelas ruas que n<strong>em</strong> um triunfador,<br />

era b<strong>em</strong> a beleza do hom<strong>em</strong> que o guiava; e, quando<br />

ela o tinha nos braços, não era b<strong>em</strong> ele qu<strong>em</strong> a abraçava,<br />

era a beleza daquela máquina que punha nela ebrieda<strong>de</strong>,<br />

sonho e a alegria singular da velocida<strong>de</strong>. Não havia como<br />

aos sábados <strong>em</strong> que ela, recostada às almofadas amplas,<br />

percorria as ruas da cida<strong>de</strong>, concentrava os olhares e todos<br />

invejavam mais o carro que ela, a força que se continha<br />

nele e o arrojo que o chofer mo<strong>de</strong>rava. A vida <strong>de</strong> centenas<br />

<strong>de</strong> miseráveis, <strong>de</strong> tristes e mendicantes sujeitos que


lima barreto<br />

andavam a pé, estava ao dispor <strong>de</strong> uma simples e imperceptível<br />

volta no guidão; e o motorista que ela beijava, que<br />

ela acariciava, era como uma divinda<strong>de</strong> que dispusesse <strong>de</strong><br />

humil<strong>de</strong>s seres <strong>de</strong>ste triste e <strong>de</strong>sgraçado planeta.<br />

Em tal instante, ela se sentia vingada do <strong>de</strong>sdém com<br />

que a cobriam, e orgulhosa <strong>de</strong> sua vida.<br />

Entre ambos, “carro” e “chofer”, ela estabelecia um<br />

laço necessário, não só entre as imagens respectivas como<br />

entre os objetos. O “carro” era como os m<strong>em</strong>bros do outro<br />

e os dois completavam -se numa representação interna,<br />

maravilhosa <strong>de</strong> elegância, <strong>de</strong> beleza, <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> insolência,<br />

<strong>de</strong> orgulho e força.<br />

O bon<strong>de</strong> continuava a andar. Vinha jogando pelas ruas<br />

<strong>em</strong> fora, tilintando, parando aqui e ali. Passavam carroças,<br />

passavam carros, passavam automóveis. O <strong>de</strong>le não<br />

passaria certamente. Era <strong>de</strong> garag<strong>em</strong> e saía unicamente<br />

para certos e <strong>de</strong>terminados fregueses que só passeavam à<br />

tar<strong>de</strong> ou escolhiam -no para a volta das duas, alta noite. O<br />

bon<strong>de</strong> chegou à praça da Glória. Aquele trecho da cida<strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong> um ar <strong>de</strong> fotografia, como que houve nele uma preocupação<br />

<strong>de</strong> vista, <strong>de</strong> efeito <strong>de</strong> perspectiva; e agradava -lhe.<br />

O bon<strong>de</strong> corria agora ao lado do mar. A baía estava calma,<br />

os horizontes eram límpidos e os barcos a vapor quebravam<br />

a harmonia da paisag<strong>em</strong>.<br />

A marinha pe<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre o barco a vela; ele como que<br />

nasceu do mar, é sua criação; o barco a vapor é um grosseiro<br />

engenho <strong>de</strong>masiado humano, s<strong>em</strong> relações com ela. A<br />

sua brutalida<strong>de</strong> a violenta. A Lola, porém, não se <strong>de</strong>morou<br />

<strong>em</strong> olhar o mar, n<strong>em</strong> o horizonte; a natureza lhe era completamente<br />

indiferente e não fez nenhuma reflexão sobre o<br />

trecho que a via passar. Consi<strong>de</strong>rou <strong>de</strong>ssa vez os vizinhos.<br />

Todos lhe pareciam <strong>de</strong>testáveis. Tinham um ar <strong>de</strong> pouco<br />

dinheiro e regularida<strong>de</strong> sexual abominável. Que gente!<br />

42


43<br />

um e outro<br />

O bon<strong>de</strong> passou pela frente do Passeio Público e o seu<br />

pensamento fixou -se num instante no chapéu que tencionava<br />

comprar. Ficar -lhe -ia b<strong>em</strong>? Seria mais belo que o da<br />

Lúcia, amante do Adão “Turco”? Saltava <strong>de</strong> uma probabilida<strong>de</strong><br />

para outra, quando lhe veio <strong>de</strong>sviar da preocupação<br />

a passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um automóvel. Pareceu ser ele, o chofer.<br />

Qual! Num “táxi”! Não era possível. Afugentou o pensamento<br />

e o bon<strong>de</strong> continuou. Enfrentou o “Theatro Municipal”.<br />

Olhou -lhe as colunas, os dourados, achou -o bonito,<br />

bonito como uma mulher cheia <strong>de</strong> atavios. Na Avenida,<br />

ajustou o passo, consertou a fisionomia, arrepanhou a saia<br />

com a mão esquerda e partiu ruas <strong>em</strong> fora com um ar <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> dama sob o enorme chapéu <strong>de</strong> plumas brancas.<br />

Nas ocasiões <strong>em</strong> que precisava falar ao Freitas no escritório,<br />

ela tinha por hábito ficar num restaurante próximo e<br />

mandar chamá -lo por um caixeiro. Assim ele lhe recomendava<br />

e assim ela fazia, convencida como estava <strong>de</strong> que as<br />

razões com que o Freitas lhe justificara esse procedimento<br />

eram sólidas e proce<strong>de</strong>ntes. Não ficava b<strong>em</strong> ao alto comércio<br />

<strong>de</strong> comissões e consignações que as damas foss<strong>em</strong> procurar<br />

os representantes <strong>de</strong>le nos respectivos escritórios; e, se b<strong>em</strong><br />

que o Freitas fosse um simples caixa da Casa Antunes, Costa<br />

e Cia., uma visita como a <strong>de</strong>la po<strong>de</strong>ria tirar <strong>de</strong> tão po<strong>de</strong>rosa<br />

firma a fama <strong>de</strong> soli<strong>de</strong>z e abalar -lhe o crédito na clientela.<br />

A espanhola ficou, portanto, próxima e, enquanto esperava<br />

o amante, pediu uma limonada e olhou a rua. Naquela<br />

hora, a rua 1 o <strong>de</strong> Março tinha o seu pesado trânsito habitual<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s carroções pejados <strong>de</strong> mercadorias. O movimento<br />

quase se cingia a homens; e se, <strong>de</strong> quando <strong>em</strong> quando,<br />

passava uma mulher, vinha num bando <strong>de</strong> estrangeiros<br />

recent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcados.<br />

Se passava um <strong>de</strong>stes, Lola tinha um imperceptível sorriso<br />

<strong>de</strong> mofa. Que gente! Que magras! On<strong>de</strong> é que foram


lima barreto<br />

<strong>de</strong>scobrir aquela magreza <strong>de</strong> mulher? Tinha como certo<br />

que, na Inglaterra, não havia mulheres bonitas n<strong>em</strong><br />

homens elegantes.<br />

Num dado momento, alguém passou que lhe fez crispar<br />

a fisionomia. Era a Rita. On<strong>de</strong> ia àquela hora? Não lhe<br />

foi dado ver b<strong>em</strong> o vestuário <strong>de</strong>la, mas viu o chapéu, cuja<br />

pleureuse 25 lhe pareceu mais cara que a do seu. Como é que<br />

arranjara aquilo? Como é que havia homens que <strong>de</strong>ss<strong>em</strong><br />

tal luxo a uma mulher daquelas? Uma mulata…<br />

O seu <strong>de</strong>sgosto sossegou com essa verificação e ficou<br />

possuída <strong>de</strong> um contentamento <strong>de</strong> vitória. A socieda<strong>de</strong><br />

regular <strong>de</strong>ra -lhe a arma infalível…<br />

Freitas chegou afinal e, como convinha à sua posição e<br />

à majesta<strong>de</strong> do alto comércio, veio <strong>em</strong> colete e s<strong>em</strong> chapéu.<br />

Os dois se encontraram muito casualmente, s<strong>em</strong> nenhum<br />

movimento, palavra, gesto ou olhar <strong>de</strong> ternura.<br />

– Não trouxeste Merce<strong>de</strong>s? Perguntou ele.<br />

– Não… fazia muito sol…<br />

O amante sentou -se e ela o examinou um momento.<br />

Não era bonito, muito menos simpático. Des<strong>de</strong> muito<br />

verificara isso; agora, porém, <strong>de</strong>scobrira o máximo <strong>de</strong>feito<br />

da sua fisionomia. Estava no olhar, um olhar s<strong>em</strong>pre o<br />

mesmo, fixo, esbugalhado, s<strong>em</strong> mutações e variações <strong>de</strong><br />

luz. Ele pediu cerveja, ela perguntou:<br />

– Arranjaste?<br />

Tratava -se <strong>de</strong> dinheiro e o seu orgulho <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> do<br />

comércio que s<strong>em</strong>pre se julga rico ou às portas da riqueza,<br />

ficou um pouco ferido com a pergunta da amante.<br />

– Não havia dificulda<strong>de</strong>… Era só vir ao escritório…<br />

Mais que fosse…<br />

Lola suspeitava que não lhe fosse tão fácil assim, mas nada<br />

disse. Explorava habilmente aquela sua ostentação <strong>de</strong> dinheiro,<br />

farejava “qualquer coisa” e já tomara as suas precauções.<br />

44


45<br />

um e outro<br />

Veio a cerveja e ambos, na mesa do restaurante, fizeram<br />

um numeroso esforço para conversar. O amante fazia -lhe<br />

perguntas: “Vais à modista? Sais hoje à tar<strong>de</strong>?” – Ela respondia:<br />

“sim, não”.<br />

Passou <strong>de</strong> novo a Rita. Lola aproveitou o momento e<br />

disse:<br />

– Lá vai aquela “negra”.<br />

– Qu<strong>em</strong>?<br />

– A Rita.<br />

– A Ritinha!… Está agora com o “Louro” croupier 26 do<br />

“Emporium”.<br />

E <strong>em</strong> seguida acrescentou:<br />

– Está muito b<strong>em</strong>.<br />

– Pu<strong>de</strong>ra! Há homens muito porcos.<br />

– Pois olha: acho -a b<strong>em</strong> bonita.<br />

– Não precisavas dizer -me. És como os <strong>outros</strong>… ainda<br />

há qu<strong>em</strong> se sacrifique por vocês.<br />

Era seu hábito s<strong>em</strong>pre procurar na conversa caminho<br />

para mostrar -se arrufada e dar a enten<strong>de</strong>r ao amante que<br />

ela se sacrificava vivendo com ele. Freitas não acreditava<br />

muito nesse sacrifício, mas não queria romper com ela,<br />

porque a sua ligação causava nas rodas <strong>de</strong> confeitarias,<br />

<strong>de</strong> pensões chiques e jogo muito sucesso. Muito célebre<br />

e conhecida, com quase vinte anos <strong>de</strong> “vida ativa”, o seu<br />

collage com a Lola que se não fora bela, fora s<strong>em</strong>pre tentadora<br />

e provocante, punha a sua pessoa <strong>em</strong> foco e garantia-<br />

-lhe um certo prestígio sobre as outras mulheres.<br />

Vendo -a arrufada, o amante fingiu -se arrependido do<br />

que dissera, e vieram a <strong>de</strong>spedir -se com palavras ternas.<br />

Ela saiu contente com o dinheiro na carteira. Havia<br />

dito ao Freitas que se <strong>de</strong>stinava a uma filha que estava<br />

na Espanha; mas a verda<strong>de</strong> era que mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> seria<br />

<strong>em</strong>pregada na compra <strong>de</strong> um presente para o seu moto-


lima barreto<br />

rista amado. Subiu a rua do Ouvidor, parando pelas montras<br />

27 das casas <strong>de</strong> joias. Que havia <strong>de</strong> ser? Um anel? Já<br />

lhe havia dado. Uma corrente? Também já lhe <strong>de</strong>ra uma.<br />

Parou numa vitrine e viu uma cigarreira. Simpatizou com<br />

o objeto. Parecia caro e era ofuscante: ouro e pedrarias –<br />

uma coisa <strong>de</strong> mau gosto evi<strong>de</strong>nte. Achou -a maravilhosa,<br />

entrou e comprou -a s<strong>em</strong> discutir.<br />

Encaminhou -se para o bon<strong>de</strong> cheia <strong>de</strong> satisfação.<br />

Aqueles presentes como que o prendiam mais a ela, como<br />

que o ligavam eternamente à sua carne e o faziam entrar<br />

no seu sangue.<br />

A sua paixão pelo chofer durava havia 6 meses e<br />

encontravam -se pelas bandas da Can<strong>de</strong>lária, <strong>em</strong> uma casa<br />

discreta e limpa, b<strong>em</strong> frequentada, cheia <strong>de</strong> precauções<br />

para que os frequentadores não se viss<strong>em</strong>.<br />

Faltava pouco para o encontro e ela aborrecia -se esperando<br />

o bon<strong>de</strong> conveniente. Havia mais impaciência nela<br />

que atraso no horário. O veículo chegou <strong>em</strong> boa hora e<br />

Lola tomou -o cheia <strong>de</strong> ardor e <strong>de</strong>sejo. Havia uma s<strong>em</strong>ana<br />

que ela não se encontrava com o motorista. A última<br />

vez <strong>em</strong> que se avistaram, nada <strong>de</strong> mais íntimo lhe pu<strong>de</strong>ra<br />

dizer. Freitas, ao contrário do costume, passeava com ela;<br />

e só lhe fora dado vê -lo soberbo, todo <strong>de</strong> branco, casquete,<br />

sentado à almofada, com o busto ereto, a guiar maravilhosamente<br />

o carro lustroso, brilhante, cuja niquelag<strong>em</strong><br />

areada faiscava como prata <strong>nova</strong>.<br />

Marcava -lhe aquele ren<strong>de</strong>z ‑vous com muita sauda<strong>de</strong> e<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vê -lo e agra<strong>de</strong>cer -lhe a imaterial satisfação que a<br />

máquina lhe dava. Dentro daquele bon<strong>de</strong> vulgar, um instante,<br />

ela teve <strong>nova</strong>mente diante dos olhos o automóvel orgulhoso,<br />

sentiu a sua trepidação, indício <strong>de</strong> sua força, e o viu<br />

<strong>de</strong>slizar, silencioso, severo, resoluto e insolente, pelas ruas<br />

<strong>em</strong> fora, dominado pela mão <strong>de</strong>stra do chofer que ela amava.<br />

46


47<br />

um e outro<br />

Logo ao chegar, perguntou à dona da casa se o dr. José<br />

estava. Soube que chegara mais cedo e já fora para o quarto.<br />

Não se <strong>de</strong>morou muito conversando com a patroa e<br />

correu aos aposentos.<br />

De fato, José estava lá. Fosse calor, fosse vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ganhar t<strong>em</strong>po, o certo é que já havia tirado <strong>de</strong> cima <strong>de</strong> si o<br />

principal vestuário. Assim que a viu entrar, s<strong>em</strong> se erguer<br />

da cama, disse:<br />

– Pensei que não viesses.<br />

– O bon<strong>de</strong> custou muito a chegar, meu amor.<br />

Descansou a bolsa, tirou o chapéu com ambas as mãos<br />

e foi direita à cama. Sentou -se na borda, cravou o olhar no<br />

rosto grosseiro e vulgar do motorista; e, após um instante<br />

<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>plação, <strong>de</strong>bruçou -se e beijou -o, com volúpia,<br />

<strong>de</strong>moradamente.<br />

O chofer não retribuiu a carícia, ele as julgava <strong>de</strong>snecessárias<br />

naquele instante. Nele, o amor não tinha prefácios,<br />

n<strong>em</strong> epílogos; o assunto ataca -se logo. Ela não o conhecia<br />

assim: resíduos da profissão e o sincero <strong>de</strong>sejo daquele<br />

hom<strong>em</strong> faziam -na carinhosa.<br />

S<strong>em</strong> beijá -lo, sentada, à borda da cama, esteve um<br />

momento a olhar enternecida a má e forte catadura do<br />

chofer. José começava a impacientar -se com aquelas filigranas.<br />

Não compreendia tais ro<strong>de</strong>ios que lhe pareciam<br />

ridículos.<br />

– Despe -te!<br />

Aquela impaciência agradava -lhe e ela quis saboreá -la<br />

mais. Levantou -se s<strong>em</strong> pressa, começou a <strong>de</strong>sabotoar -se<br />

<strong>de</strong>vagar, parou e disse com meiguice:<br />

– Trago -te uma coisa.<br />

– Que é? – Fez ele logo.<br />

– Adivinha!<br />

– Dize lá <strong>de</strong> uma vez.


lima barreto<br />

Lola procurou a bolsa, abriu -a <strong>de</strong>vagar e <strong>de</strong> lá retirou a<br />

cigarreira. Foi até o leito e entregou -a ao chofer. Os olhos<br />

do hom<strong>em</strong> incendiaram -se <strong>de</strong> cupi<strong>de</strong>z; e os da mulher, ao<br />

vê -lo satisfeito, ficaram úmidos <strong>de</strong> contentamento.<br />

Continuou a <strong>de</strong>spir -se e, enquanto isso, ele não <strong>de</strong>ixava<br />

<strong>de</strong> apalpar, <strong>de</strong> abrir e fechar a cigarreira que recebera.<br />

Descalçava os sapatos quando José lhe perguntou com a<br />

sua voz dura e imperiosa:<br />

– Tens passeado muito no Pope?<br />

– Deves saber que não. Não o tenho mandado buscar e<br />

tu sabes que só saio no teu.<br />

– Não estou mais nele.<br />

– Como?<br />

– Saí da casa… Ando agora num táxi.<br />

Quando o chofer lhe disse isso, Lola quase <strong>de</strong>smaiou; a<br />

sensação que teve foi <strong>de</strong> receber uma pancada na cabeça.<br />

Pois então, aquele Deus, aquele dominador, aquele<br />

supr<strong>em</strong>o indivíduo <strong>de</strong>scera a guiar um táxi, sujo, chacoalhante,<br />

mal pintado, <strong>de</strong>sses que parec<strong>em</strong> feitos <strong>de</strong> folha <strong>de</strong><br />

flandres! 28 Então ele? Então…<br />

E aquela abundante beleza do automóvel <strong>de</strong> luxo que<br />

tão alta ela via nele, <strong>em</strong> um instante, <strong>em</strong> um segundo, <strong>de</strong><br />

todo se esvaiu. Havia internamente, entre as duas imagens,<br />

um nexo que lhe parecia indissolúvel, e o brusco<br />

rompimento perturbou -lhe completamente a representação<br />

mental e <strong>em</strong>ocional daquele hom<strong>em</strong>.<br />

Não era mais o mesmo, não era o s<strong>em</strong>i<strong>de</strong>us, ele que<br />

estava ali presente; era outro ou antes que ele era <strong>de</strong>gradado,<br />

mutilado, horrendamente mutilado. Guiando um<br />

táxi… Meu Deus!<br />

O seu <strong>de</strong>sejo era ir-se, mas, ao lhe vir esse pensamento,<br />

o José perguntou:<br />

– Vens ou não vens?<br />

48


49<br />

um e outro<br />

Quis pretextar qualquer coisa para sair; teve medo,<br />

porém, do seu orgulho masculino, do <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> seu<br />

<strong>de</strong>sejo ofendido.<br />

Deitou -se a seu lado com muita repugnância e pela última<br />

vez.


Um especialista *<br />

51<br />

A Bastos Tigre<br />

Era hábito dos dois, todas as tar<strong>de</strong>s, após o jantar, jogar<br />

uma partida <strong>de</strong> bilhar <strong>em</strong> cinquenta pontos, finda a qual<br />

iam, <strong>em</strong> pequenos passos, até ao largo da Carioca tomar<br />

café e licores, e, na mesa do botequim, trocando confidências,<br />

ficar<strong>em</strong> esperando a hora dos teatros, enquanto<br />

que, dos charutos, fumaças azuladas espiravam preguiçosamente<br />

pelo ar.<br />

Em geral, eram as conquistas amorosas o t<strong>em</strong>a da<br />

palestra; mas, às vezes; inci<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, tratavam dos<br />

negócios, do estado da praça e da cotação das apólices.<br />

Amor e dinheiro, eles juntavam b<strong>em</strong> e sabiamente.<br />

O comendador era português, tinha seus cinquenta<br />

anos, e viera para o Rio aos vinte e quatro, tendo estado<br />

antes seis no Recife. O seu amigo, o coronel Carvalho,<br />

também era português, viera, porém, aos sete para<br />

o Brasil, havendo sido no interior, logo ao chegar, caixei-<br />

* Escrito <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1904 e publicado na primeira edição do<br />

livro Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).


lima barreto<br />

ro <strong>de</strong> venda, feitor e administrador <strong>de</strong> fazenda, influência<br />

política; e, por fim, por ocasião da bolsa, especulara<br />

com proprieda<strong>de</strong>s, ficando daí <strong>em</strong> diante senhor <strong>de</strong> uma<br />

boa fortuna e da patente <strong>de</strong> coronel da Guarda Nacional.<br />

Era um plácido burguês, gordo, ventrudo, cheio <strong>de</strong> brilhantes,<br />

<strong>em</strong>pregando a sua mole ativida<strong>de</strong> na gerência <strong>de</strong><br />

uma fábrica <strong>de</strong> fósforos. Viúvo, s<strong>em</strong> filhos, levava a vida<br />

<strong>de</strong> moço rico. Frequentava cocotes; conhecia as escusas<br />

casas <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>z ‑vous, 29 on<strong>de</strong> era assíduo e consi<strong>de</strong>rado; o<br />

outro, o comendador, que era casado, <strong>de</strong>ixando, porém, a<br />

mulher só no vasto casarão do Engenho Velho a se interessar<br />

pelos namoricos das filhas, tinha a mesma vida solta<br />

do seu amigo e compadre.<br />

Gostava das mulheres <strong>de</strong> cor e as procurava com o afinco<br />

e ardor <strong>de</strong> um amador <strong>de</strong> rarida<strong>de</strong>s.<br />

À noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-<br />

-as, joeirando -as com olhos chispantes <strong>de</strong> lubricida<strong>de</strong> e,<br />

por vezes mesmo, se atrevia a seguir qualquer mais airosa<br />

pelas ruas <strong>de</strong> baixa prostituição.<br />

– A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta;<br />

é, enfim, a especiaria <strong>de</strong> requeime acre e capitoso que nós,<br />

os portugueses, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Vasco da Gama, andamos a buscar,<br />

a procurar.<br />

O coronel era justamente o contrário: só queria às<br />

estrangeiras; as francesas e italianas, bailarinas, cantoras<br />

ou simplesmente meretrizes, era o seu fraco.<br />

Entretanto havia já quinze dias, que não se encontravam<br />

no lugar aprazado, e a faltar era o comendador, a<br />

qu<strong>em</strong> o coronel sabia b<strong>em</strong> por informações do seu guarda-<br />

-livros.<br />

Ao acabar a segunda s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong>ssa ausência imprevista,<br />

o coronel, maçado e saudoso, foi procurar o amigo na<br />

sua loja à rua dos Pescadores. Lá o encontrou amável e <strong>de</strong><br />

52


53<br />

um especialista<br />

boa saú<strong>de</strong>. Explicaram -se; e entre eles ficou assentado que<br />

se veriam naquele dia, à tar<strong>de</strong>, na hora e lugar habituais.<br />

Como s<strong>em</strong>pre, jantaram fartamente e regiamente regaram<br />

o repasto com bons vinhos portugueses. Jogaram a<br />

partida <strong>de</strong> bilhar e <strong>de</strong>pois, como encarrilhados, seguiram<br />

para o café <strong>de</strong> costume no largo da Carioca.<br />

No princípio, conversaram sobre a questão das minas<br />

<strong>de</strong> Itaoca, vindo então à baila a inépcia e a <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong><br />

do governo; mas logo <strong>de</strong>pois, o coronel que “tinha a pulga<br />

atrás da orelha”, indagou do companheiro o motivo <strong>de</strong><br />

tão longa ausência.<br />

– Oh! Não te conto! Foi um “achado”, a coisa, disse o<br />

comendador, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> chupar fort<strong>em</strong>ente o charuto e soltar<br />

uma volumosa baforada; um petisco que encontrei…<br />

Uma mulata <strong>de</strong>liciosa, Chico! Só vendo o que é, disse a<br />

r<strong>em</strong>atar, estalando os beiços.<br />

– Como foi isso? inquiriu o coronel pressuroso. Como<br />

foi? Conta lá!<br />

– Assim. A última vez que estiv<strong>em</strong>os juntos, não te disse<br />

que no dia seguinte iria a bordo <strong>de</strong> um paquete 30 buscar<br />

um amigo que chegava do Norte?<br />

– Disseste -me. E daí?<br />

– Ouve. Espera. Cos diabos isto não vai a matar! Pois<br />

b<strong>em</strong>, fui a bordo. O amigo não veio… Não era b<strong>em</strong> meu<br />

amigo… Relações comerciais… Em troca…<br />

Por essa ocasião rolou um carro no calçamento. Travou<br />

<strong>em</strong> frente ao café e por ele a<strong>de</strong>ntro entrou uma gorda<br />

mulher, cheia <strong>de</strong> plumas e sedas, e para vê -la virou -se o<br />

comendador, que estava <strong>de</strong> costas, interrompendo a narração.<br />

Olhou -a e continuou <strong>de</strong>pois:<br />

– Como te dizia: não veio o hom<strong>em</strong>, mas enquanto<br />

tomava cerveja com o comissário, vi atravessar a sala uma<br />

esplêndida mulata; e tu sabes que eu…


lima barreto<br />

Deixou <strong>de</strong> fumar e com olhares canalhas sublinhou a<br />

frase magnificamente.<br />

– De indagação <strong>em</strong> indagação, soube que viera com um<br />

alferes do Exército; e murmuravam a bordo que a Alice<br />

(era seu nome, soube também) aproveitara a companhia,<br />

somente para melhor mercar aqui os seus encantos. Fazer<br />

a vida… Propositalmente, me pareceu, eu me achava ali e<br />

não perdia vaza, como tu vais ver.<br />

Dizendo isto, endireitou o corpo, alçou um tanto a<br />

cabeça, e seguiu narrando:<br />

– Saltamos juntos, pois vi<strong>em</strong>os juntos na mesma lancha<br />

– a que eu alugara. Compreen<strong>de</strong>s? E, quando <strong>em</strong>barcamos<br />

num carro, no largo do Paço, para a pensão, já<br />

éramos conhecimentos velhos; assim pois…<br />

– E o alferes?<br />

– Que alferes?<br />

– O alferes que vinha com a tua diva, filho? Já te esqueceste?<br />

– Ah! Sim! Esse saltou na lancha do Ministério da<br />

Guerra e nunca mais o vi.<br />

– Está direito. Continua lá a coisa.<br />

– E… e… On<strong>de</strong> é que estava? Hein?<br />

– Ficaste: quando ao saltar, foram para a pensão.<br />

– É isto! Fomos para a pensão Baldut, no Catete; e foi,<br />

pois, assim que me apossei <strong>de</strong> um lindo primor – uma<br />

maravilha, filho, que t<strong>em</strong> feito os meus encantos nestes<br />

quinze dias – com os raros intervalos <strong>em</strong> que me aborreço<br />

<strong>em</strong> casa, ou na loja, já se vê b<strong>em</strong>.<br />

Repousou um pouco e, retomando logo após a palavra,<br />

assim foi dizendo:<br />

– É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca<br />

vi mulata igual. Como esta, filho, n<strong>em</strong> a que conheci <strong>em</strong><br />

Pernambuco há uns vinte e sete anos! Qual! N<strong>em</strong> <strong>de</strong> lon-<br />

54


55<br />

um especialista<br />

ge! Calcula que ela é alta, esguia, <strong>de</strong> bom corpo; cabelos<br />

negros corridos, b<strong>em</strong> corridos: olhos pardos. É b<strong>em</strong> fornida<br />

<strong>de</strong> carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom!<br />

E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns<br />

lábios roxos, b<strong>em</strong> quentes… Só vendo mesmo! Só! Não<br />

se <strong>de</strong>screve.<br />

O comendador falara com um ardor <strong>de</strong>susado nele;<br />

acalorara -se e se entusiasmara <strong>de</strong>veras, a ponto <strong>de</strong> haver<br />

na sua fisionomia estranhas mutações. Por todo ele havia<br />

aspecto <strong>de</strong> um suíno, cheio <strong>de</strong> lascívia, inebriado <strong>de</strong> gozo.<br />

Os olhos arredondaram -se e diminuíram; os lábios se<br />

haviam apertado fort<strong>em</strong>ente e impelidos pra diante se<br />

juntavam ao jeito <strong>de</strong> um focinho; o rosto <strong>de</strong>stilava gordura;<br />

e, ajudado isto pelo seu físico, tudo nele era <strong>de</strong> um<br />

colossal suíno.<br />

– O que preten<strong>de</strong>s fazer <strong>de</strong>la? Dize lá.<br />

– É boa… Que pergunta! Prová -la, enfeitá -la, enfeitá -la<br />

e “lançá -la”. E é pouco?<br />

– Não! Acho até que te exce<strong>de</strong>s. Vê lá, tu!<br />

– Hein? Oh! Não! Tenho gasto pouco. Um conto e pouco…<br />

Uma miséria!<br />

Acen<strong>de</strong>u o charuto e disse subitamente, ao olhar o relógio:<br />

– Vou buscá -la <strong>de</strong> carro, porquanto vamos ao cassino,<br />

e tu me esperas lá, pois tenho um camarote.<br />

– Até já.<br />

Saindo o seu amigo, o coronel consi<strong>de</strong>rou um pouco,<br />

mandou vir água Apolináris, bebeu e saiu também.<br />

Eram oito horas da noite.<br />

Defronte ao café, o casarão <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m terceira<br />

ensombrava a praça parcamente iluminada pelos combustores<br />

<strong>de</strong> gás e por um foco elétrico ao centro. Das ruas<br />

que nela terminavam, <strong>de</strong>lgados filetes <strong>de</strong> gente saíam e


lima barreto<br />

entravam constant<strong>em</strong>ente. A praça era como um tanque<br />

a se encher e a se esvaziar equitativamente. Os bon<strong>de</strong>s da<br />

Jardim 31 s<strong>em</strong>eavam pelos lados a branca luz <strong>de</strong> seus focos<br />

e, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>em</strong> on<strong>de</strong>, um carro, um tílburi, 32 a atravessava<br />

célere.<br />

O coronel esteve algum t<strong>em</strong>po olhando o largo, preparou<br />

um novo charuto, acen<strong>de</strong>u -o, foi até à porta, mirou<br />

um e outro transeunte, olhou o céu recamado <strong>de</strong> estrelas,<br />

e, finalmente, <strong>de</strong>vagar, partiu <strong>em</strong> direção à Lapa.<br />

Quando entrou no cassino, ainda o espetáculo não<br />

havia começado.<br />

Sentou -se a um banco no jardim, serviu -se <strong>de</strong> cerveja<br />

e entrou a pensar.<br />

Aos poucos, vinham chegando os espectadores. Naquele<br />

instante entrava um. Via -se pelo acanhamento que era<br />

um estranho às usanças da casa. Esmerado no vestir, no<br />

calçar, não tinha <strong>em</strong> troca o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraço com que se<br />

anuncia o habitué. Moço, moreno, seria elegante se não<br />

fosse a estreiteza <strong>de</strong> seus movimentos. Era um visitante<br />

ocasional, recém -chegado, talvez, do interior, que procurava<br />

ali uma curiosida<strong>de</strong>, um prazer da cida<strong>de</strong>.<br />

Em seguida, entrou um senhor barbado, <strong>de</strong> maçãs<br />

salientes, rosto redondo, acobreado. Trazia cartola, e pelo<br />

ar solene, pelo olhar <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso que atirava <strong>em</strong> volta,<br />

<strong>de</strong>scobria -se nele um legislador da Ca<strong>de</strong>ia Velha, <strong>de</strong>putado,<br />

representante <strong>de</strong> algum estado do Norte, que, com<br />

certeza, há duas legislaturas influía po<strong>de</strong>rosamente nos<br />

<strong>de</strong>stinos do país com o seu resignado apoio. E assim, um a<br />

um, <strong>de</strong>pois aos magotes, foram entrando os espectadores.<br />

Ao fim, na cauda, retardados, vieram os frequentadores<br />

assíduos – pessoas variegadas <strong>de</strong> profissão e moral que<br />

com frequência blasonavam saber os nomes das cocotes,<br />

a proveniência <strong>de</strong>las e as suas excentricida<strong>de</strong>s libertinas.<br />

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57<br />

um especialista<br />

Entre os que entravam naquele momento, entrara também<br />

o comendador e o “achado”.<br />

A primeira parte do espetáculo correra quase friamente.<br />

Todos, homens e mulheres, guardavam as maneiras<br />

convencionadas <strong>de</strong> se estar <strong>em</strong> público. Era cedo ainda.<br />

Em meio, porém, da segunda, as atitu<strong>de</strong>s mudaram.<br />

Na cena, uma <strong>de</strong>lgadinha senhora (chanteuse à diction<br />

[cantora <strong>de</strong> cabaré] – no cartaz) berrava uma cançoneta 33<br />

francesa. Os espectadores, com batidos das bengalas nas<br />

mesas, no assoalho, e com a voz mais ou menos comprometida,<br />

estribilhavam -na doidamente. O espetáculo<br />

ia no auge. Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro<br />

– um odor azedo <strong>de</strong> orgia.<br />

Centenas <strong>de</strong> charutos e cigarros a fumegar enevoavam<br />

todo ambiente.<br />

Desprendimentos do tabaco, <strong>em</strong>anações alcoólicas, e,<br />

a mais, uma fortíssima exalação <strong>de</strong> sensualida<strong>de</strong> e lubricida<strong>de</strong>,<br />

davam à sala o aspecto repugnante <strong>de</strong> uma vasta<br />

bo<strong>de</strong>ga.<br />

Mais ou menos <strong>em</strong>briagado, cada um dos espectadores<br />

tinha para com a mulher com qu<strong>em</strong> bebia gestos livres <strong>de</strong><br />

alcova. Francesas, italianas, húngaras, espanholas, essas<br />

mulheres, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro das rendas, surgiam espectrais, apagadas,<br />

lívidas como moribundas. Entretanto, ou fosse o<br />

álcool ou o prestígio <strong>de</strong> peregrinas, tinham sobre aqueles<br />

homens um misterioso ascen<strong>de</strong>nte. À esquerda, na plateia,<br />

o majestoso <strong>de</strong>putado da entrada coçava <strong>de</strong>spudoradamente<br />

a nuca da Dermalet, uma francesa; <strong>em</strong> frente o<br />

doutor Castrioto, lente <strong>de</strong> uma escola superior, babava -se<br />

todo a olhar as pernas da cantora <strong>em</strong> cena, enquanto <strong>em</strong><br />

um camarote <strong>de</strong>fronte, o juiz Siqueira apertava -se à Merce<strong>de</strong>s,<br />

uma bailarina espanhola, com o fogo <strong>de</strong> um recém-<br />

-casado à noiva.


lima barreto<br />

Um sopro <strong>de</strong> <strong>de</strong>boche percorria hom<strong>em</strong> a hom<strong>em</strong>.<br />

Dessa forma o espetáculo <strong>de</strong>senvolvia -se no mais fervoroso<br />

entusiasmo e o coronel, no camarote, <strong>de</strong> soslaio,<br />

pusera -se a observar a mulata. Era bonita <strong>de</strong> fato e elegante<br />

também. Viera com um vestido cr<strong>em</strong>e <strong>de</strong> pintas pretas,<br />

que lhe assentava magnificamente.<br />

O seu rosto harmonioso, enquadrado num magnífico<br />

chapéu <strong>de</strong> palha preta, saía firme do pescoço roliço que a<br />

blusa <strong>de</strong>cotada <strong>de</strong>ixava ver. Seus olhos curiosos, inquietos,<br />

voavam <strong>de</strong> um lado a outro e a tez <strong>de</strong> bronze novo cintilava<br />

à luz dos focos. Através do vestido se lhe adivinhavam<br />

as formas; e, por vezes, ao arfar, ela toda trepidava<br />

<strong>de</strong> volúpia…<br />

O comendador pachorrentamente assistia ao espetáculo<br />

e, fora do costume, pouco conversou. O amigo pudicamente<br />

não insistiu no exame.<br />

Quando saíram <strong>de</strong> permeio à multidão, acumulada no<br />

corredor da entrada, o coronel teve ocasião <strong>de</strong> verificar o<br />

efeito que fizera a companheira do amigo. Ficando mais<br />

atrás, pô<strong>de</strong> ir recolhendo os ditos e as observações que a<br />

passag<strong>em</strong> <strong>de</strong>les ia sugerindo a cada um.<br />

Um rapazola dissera:<br />

– Que “mulatão”!<br />

Um outro refletiu:<br />

– Esses portugueses são os <strong>de</strong>mônios para <strong>de</strong>scobrir<br />

boas mulatas. É faro. Ao passar<strong>em</strong> os dois, alguém, a qu<strong>em</strong><br />

ele não viu, maliciosamente observou:<br />

– Parec<strong>em</strong> pai e filha.<br />

E essa reflexão <strong>de</strong> pequeno alcance na boca que a proferiu<br />

calou fundo no ânimo do coronel.<br />

Os queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas,<br />

também; o ar, um não sei quê <strong>de</strong> ambos ass<strong>em</strong>elhavam-<br />

-se… Vagas s<strong>em</strong>elhanças, concluiu o coronel ao sair à rua,<br />

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59<br />

um especialista<br />

quando uma baforada <strong>de</strong> brisa marinha lhe acariciou o<br />

rosto afogueado.<br />

Já o carro rolava rápido pela rua quieta – quietu<strong>de</strong> agora<br />

perturbada pelas vozes esquentadas dos espectadores saídos<br />

e pelas falsas risadas <strong>de</strong> suas companheiras – quando<br />

o comendador, levantando -se no estrado da carruag<strong>em</strong>,<br />

or<strong>de</strong>nou ao cocheiro que parasse no hotel, antes <strong>de</strong> tocar<br />

para a pensão. A sala sombria e pobre do hotel tinha s<strong>em</strong>pre<br />

por aquela hora uma aparência brilhante. A agitação que ia<br />

nela; as sedas roçagantes e os chapéus vistosos das mulheres;<br />

a profusão <strong>de</strong> luzes, o irisado das plumas, os perfumes<br />

requintados que voavam pelo ambiente transmudavam -na<br />

<strong>de</strong> sua habitual fisionomia pacata e r<strong>em</strong>ediada. As pequenas<br />

mesas, pejadas <strong>de</strong> pratos e garrafas, estavam todas elas<br />

ocupadas. Em cada, uma ou duas mulheres sentavam -se,<br />

seguidas <strong>de</strong> um ou dois cavalheiros. Sílabas breves do francês,<br />

sons guturais do espanhol, dulçorosas terminações<br />

italianas, chocavam -se, brigavam.<br />

Do português nada se ouvia, parecia que se escon<strong>de</strong>ra<br />

<strong>de</strong> vergonha.<br />

Alice, o comendador e o coronel, sentaram -se a uma<br />

mesa redonda <strong>em</strong> frente à entrada. A ceia foi lauta e abundante.<br />

À sobr<strong>em</strong>esa, os três convivas repentinamente animados,<br />

puseram -se a conversar com calor. A mulata não<br />

gostara do Rio; preferia o Recife. Lá sim! O céu era outro; as<br />

comidas tinham outro sabor, melhor e mais quente. Qu<strong>em</strong><br />

não se recordaria s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> uma frigi<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> camarões<br />

com maturins 34 ou <strong>de</strong> um bom feijão com leite <strong>de</strong> coco?<br />

Depois, mesmo a cida<strong>de</strong> era mais bonita; as pontes, os<br />

rios, o teatro, as igrejas.<br />

E os bairros então? A Madalena, Olinda… No Rio, ela<br />

concordava, havia mais povo, mais dinheiro; mas Recife<br />

era outra coisa, era tudo…


lima barreto<br />

– Você t<strong>em</strong> razão, disse o comendador; Recife é bonito,<br />

e muito mais…<br />

– O senhor, já esteve lá?<br />

– Seis anos; filha, seis anos; e levantou a mão esquerda à<br />

altura dos olhos, correu -a pela testa, contornou com ela a<br />

cabeça, <strong>de</strong>scansou -a afinal na perna e acrescentou: comecei<br />

lá minha carreira comercial e tenho muitas sauda<strong>de</strong>s.<br />

On<strong>de</strong> você morava?<br />

– Ultimamente à rua da Penha, mas nasci na <strong>de</strong> João <strong>de</strong><br />

Barro, perto do hospital <strong>de</strong> Santa Águeda…<br />

– Morei lá também, disse ele distraído.<br />

– Criei -me pelas bandas <strong>de</strong> Olinda, continuou Alice, e<br />

por morte <strong>de</strong> minha mãe vim para a casa do doutor Hil<strong>de</strong>brando,<br />

colocada pelo juiz…<br />

– Há muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.<br />

– Há oito anos quase, respon<strong>de</strong>u ela.<br />

– Há muito t<strong>em</strong>po, refletiu o coronel; e logo perguntou:<br />

que ida<strong>de</strong> tens?<br />

– Vinte e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos <strong>de</strong>zoito.<br />

Durante esses oito anos tenho rolado por esse mundo<br />

<strong>de</strong> Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando<br />

<strong>de</strong> mão <strong>em</strong> mão, ora nesta, ora naquela, a minha<br />

vida t<strong>em</strong> sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido<br />

três homens que me <strong>de</strong>ss<strong>em</strong> alguma coisa; os <strong>outros</strong> Deus<br />

me livre <strong>de</strong>les! – só quer<strong>em</strong> meu corpo e o meu trabalho.<br />

Nada me davam, espancavam -me, maltratavam -me.<br />

Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento<br />

<strong>de</strong> Polícia, ele chegou <strong>em</strong> casa <strong>em</strong>briagado, tendo jogado e<br />

perdido tudo, queria obrigar -me a lhe dar trinta mil -réis,<br />

fosse como fosse.<br />

Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas<br />

que eu lavava só chegava naquele mês para pagar a casa, ele<br />

fez um escarcéu. Descompôs -me. Ofen<strong>de</strong>u -me. Por fim,<br />

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61<br />

um especialista<br />

cheio <strong>de</strong> fúria agarrou -me pelo pescoço, esbofeteou -me,<br />

<strong>de</strong>itou -me <strong>em</strong> terra, <strong>de</strong>ixando -me s<strong>em</strong> fala e a tratar -me<br />

no hospital. Um outro – um malvado <strong>em</strong> cujas mãos não<br />

sei como fui cair – certa vez, altercamos, e <strong>de</strong>u -me uma<br />

facada do lado esquerdo, da qual ainda tenho sinal!<br />

Ah! T<strong>em</strong> sido um tormento… B<strong>em</strong> me dizia minha<br />

mãe: toma cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses<br />

homens só quer<strong>em</strong> nosso corpo por segundos, <strong>de</strong>pois vão-<br />

-se e nos <strong>de</strong>ixam um filho nos quartos, quando não nos<br />

roubam como fez teu pai comigo…<br />

– Como?… Como foi isso? interrogou admirado o<br />

coronel.<br />

– Não sei b<strong>em</strong> como foi, retrucou ela. Minha mãe me<br />

contava que ela era honesta; que vivia na Cida<strong>de</strong> do Cabo<br />

com seus pais, <strong>de</strong> cuja companhia fora seduzida por um<br />

caixeiro português que lá aparecera e com qu<strong>em</strong> veio para<br />

o Recife. Nasci <strong>de</strong>les e dois meses ou mais <strong>de</strong>pois do meu<br />

nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança (um<br />

sítio, uma vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por<br />

morte <strong>de</strong> seus pais.<br />

Vindo <strong>de</strong> receber a herança, partiu dias <strong>de</strong>pois para<br />

aqui e nunca mais ela soube notícias <strong>de</strong>le, n<strong>em</strong> do dinheiro,<br />

que, vendido o herdado, lhe ficara dos meus avós.<br />

– Como se chamava teu pai? indagou o comendador<br />

com estranho entono. 35<br />

– Não me l<strong>em</strong>bro b<strong>em</strong>; era Mota ou Costa… Não sei…<br />

Mas o que é isso? disse ela <strong>de</strong> repente, olhando o comendador.<br />

Que t<strong>em</strong> o senhor?<br />

– Nada… Nada… retrucou o comendador experimentando<br />

um sorriso. Você não se l<strong>em</strong>bra das feições <strong>de</strong>sse<br />

hom<strong>em</strong>? interrogou ele.<br />

– Não me l<strong>em</strong>bra, não. Que interesse! Qu<strong>em</strong> sabe que<br />

o senhor não é meu pai? gracejou ela.


lima barreto<br />

O gracejo caiu <strong>de</strong> chofre naqueles dois espíritos tensos,<br />

como uma ducha frigidíssima. O coronel olhava o comendador<br />

que tinha as faces <strong>em</strong> brasa; este, àquele; por fim<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns segundos o coronel querendo dar uma<br />

saída à situação, simulou rir -se e perguntou:<br />

– Você nunca mais soube alguma coisa… qualquer coisa?<br />

Hein?<br />

– Nada… Que me l<strong>em</strong>bre, nada… Ah! Espere… Foi…<br />

É. Sim! Seis meses antes da morte <strong>de</strong> minha mãe, ouvi<br />

dizer <strong>em</strong> casa, não sei por qu<strong>em</strong>, que ele estava no Rio<br />

implicado num caso <strong>de</strong> moeda falsa. É o que me l<strong>em</strong>bro,<br />

disse ela.<br />

– O quê? Quando foi isso? indagou pressuroso o<br />

comendador.<br />

A mulata, que ainda não se havia b<strong>em</strong> apercebido<br />

do estado do comendador, respon<strong>de</strong>u ingenuamente: –<br />

Mamãe morreu <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1893, por ocasião da revolta…<br />

Ouvi contar essa história <strong>em</strong> fevereiro. É isso.<br />

O comendador não per<strong>de</strong>ra uma sílaba; e, com a boca<br />

meio aberta, parecia querê -las engolir uma a uma; com as<br />

faces congestionadas e os olhos esbugalhados, a sua fisionomia<br />

estava horrível.<br />

O coronel e a mulata, extáticos, estuporados,<br />

entreolhavam -se.<br />

Durante um segundo nada se lhes antolhava fazer.<br />

Ficaram como idiotas; <strong>em</strong> breve, porém, o comendador,<br />

num supr<strong>em</strong>o esforço, disse com voz sumida:<br />

– Meu Deus! É minha filha!<br />

62


Como o “hom<strong>em</strong>” chegou *<br />

Deus está morto; a sua pieda<strong>de</strong><br />

pelos homens matou ‑o.<br />

I<br />

63<br />

Nietzsche<br />

A polícia da República, como toda a gente sabe, é paternal<br />

e compassiva no tratamento das pessoas humil<strong>de</strong>s que<br />

<strong>de</strong>la necessitam; e s<strong>em</strong>pre, quer se trate <strong>de</strong> humil<strong>de</strong>s, quer<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos, a velha instituição cumpre religiosamente a<br />

lei. V<strong>em</strong> -lhe daí o respeito que aos políticos os seus <strong>em</strong>pregados<br />

tributam e a procura que ela merece <strong>de</strong>sses homens,<br />

quase s<strong>em</strong>pre interessados no cumprimento das leis que<br />

discut<strong>em</strong> e votam.<br />

O caso que vamos narrar não chegou ao conhecimento<br />

do público, certamente <strong>de</strong>vido à pouca atenção que lhe<br />

<strong>de</strong>ram os repórteres; e é pena, pois, se assim não fosse,<br />

* Escrito <strong>em</strong> 18 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1914 e publicado na primeira edição<br />

do livro Triste fim <strong>de</strong> Policarpo Quaresma (1915).


lima barreto<br />

teriam nele encontrado pretexto para clichês b<strong>em</strong> macabramente<br />

mortuários que alegrass<strong>em</strong> as páginas <strong>de</strong> suas<br />

folhas volantes.<br />

O <strong>de</strong>legado que funcionou na questão talvez não tivesse<br />

notado o gran<strong>de</strong> alcance <strong>de</strong> sua obra; e tanto isso é <strong>de</strong><br />

admirar quanto as consequências do fato concordam com<br />

luxuriantes sorites 36 <strong>de</strong> um filósofo s<strong>em</strong>pre capaz <strong>de</strong> sugerir,<br />

do pé para a mão, novíssimas estéticas aos necessitados<br />

<strong>de</strong> apresentá -las ao público b<strong>em</strong> informado.<br />

Sabedores <strong>de</strong> acontecimento <strong>de</strong> tal monta, não nos era<br />

possível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> narrá -lo com alguma minudência, para<br />

edificação dos <strong>de</strong>legados passados, presentes e futuros.<br />

Naquela manhã, tinha a <strong>de</strong>legacia um movimento <strong>de</strong>susado.<br />

Passavam -se s<strong>em</strong>anas s<strong>em</strong> que houvesse uma simples<br />

prisão, uma pequena admoestação. A circunscrição era<br />

pacata e or<strong>de</strong>ira. Pobre, não havia furtos; s<strong>em</strong> comércio,<br />

não havia gatunos; s<strong>em</strong> indústria, não havia vagabundos,<br />

graças à sua extensão e aos capoeirões que lá havia; os que<br />

não tinham domicílio arranjavam -no facilmente <strong>em</strong> choças<br />

ligeiras sobre chãos <strong>de</strong> <strong>outros</strong> donos mal conhecidos.<br />

Os regulamentos policiais não encontravam <strong>em</strong>prego;<br />

os funcionários do distrito viviam <strong>de</strong>scansados e, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sconfiança,<br />

olhavam a população do lugarejo. Compunha-<br />

-se o <strong>de</strong>stacamento <strong>de</strong> um cabo e três soldados; todos os<br />

quatro, gente simples, esquecida <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> sustentáculos<br />

do Estado.<br />

O comandante, um cabo gordo que falava arrastando a<br />

voz, com a cantante preguiça <strong>de</strong> um carro <strong>de</strong> bois a chiar,<br />

habitava com a família um rancho próximo e plantava<br />

ao redor melancias, colhendo as <strong>de</strong> polpa b<strong>em</strong> rosada e<br />

doce, pelo verão inflexível da nossa terra. Um dos soldados<br />

tecia re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pescaria, chumbava -as com cuidado para<br />

dar cerco às tainhas; e era <strong>de</strong> vê -las saltar por cima do fru-<br />

64


65<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

to <strong>de</strong> sua indústria com a agilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acrobatas, agilida<strong>de</strong><br />

surpreen<strong>de</strong>nte naqueles entes s<strong>em</strong> mãos e pernas diferenciadas.<br />

Um outro camarada matava o ócio pescando <strong>de</strong><br />

caniço e quase nunca pescava crocorocas, pois diante do<br />

mar, da sua infinita gran<strong>de</strong>za, distraía -se, l<strong>em</strong>brando -se<br />

das quadrinhas que vinha compondo <strong>em</strong> louvor <strong>de</strong> uma<br />

beleza local.<br />

Tinham também os inspetores <strong>de</strong> polícia essa concepção<br />

idílica, e não se aborreciam no morno vilarejo. Conceição,<br />

um <strong>de</strong>les, fabricava carvão e os plantões os fazia<br />

junto às caieiras, b<strong>em</strong> protegidas por cruzes toscas para<br />

que o tinhoso não entrasse nelas e fabricasse cinza <strong>em</strong><br />

vez do combustível das engoma<strong>de</strong>iras. Um seu colega, <strong>de</strong><br />

nome Nunes, aborrecido com o ar elísico daquela <strong>de</strong>legacia,<br />

imaginou quebrá -lo e lançou o jogo do bicho. Era uma<br />

coisa inocente: o mínimo da pule, um vintém; o máximo,<br />

duzentos réis, mas, ao chegar à riqueza do lugar, aí pelo<br />

t<strong>em</strong>po do caju, quando o sol saudoso da tar<strong>de</strong> dourava<br />

as areias e os frutos amarelos e vermelhos mais se intumesciam<br />

nos cajueiros frágeis, jogavam -se pules <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />

tostões.<br />

Vivia tudo <strong>em</strong> paz; o <strong>de</strong>legado não aparecia. Se o fazia<br />

<strong>de</strong> mês <strong>em</strong> mês, <strong>de</strong> s<strong>em</strong>estre <strong>em</strong> s<strong>em</strong>estre, <strong>de</strong> ano <strong>em</strong> ano,<br />

logo perguntava: houve alguma prisão? Respondiam<br />

alvissareiros: não, doutor; e a fronte do doutor se anuviava,<br />

como se sentisse naquele <strong>de</strong>suso do xadrez a morte<br />

próxima do Estado, da Civilização e do Progresso.<br />

De on<strong>de</strong> <strong>em</strong> on<strong>de</strong>, porém, havia um caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>floramento<br />

e este era o <strong>de</strong>lito, o crime, a infração do lugarejo–<br />

um crime, uma infração, um <strong>de</strong>lito muito próprio do<br />

Paraíso, que o t<strong>em</strong>po, porém, levou a ser julgado pelos<br />

policiais, quando, nas primeiras eras das nossas origens<br />

bíblicas, o fora pelo próprio Deus.


lima barreto<br />

Em geral, os inspetores por eles mesmos resolviam o<br />

caso; davam paternos conselhos suasórios e a lei sagrava<br />

o que já havia sido abençoado pelas prateadas folhas das<br />

imbaúbas, nos capoeirões cerrados.<br />

Não quis, porém, o <strong>de</strong>legado <strong>de</strong>ixar que os seus subordinados<br />

liquidass<strong>em</strong> aquele caso. A paciente era filha do<br />

Sambabaia, chefe político do partido do senador Melaço;<br />

e o agente era eleitor do partido contrário a Melaço. O programa<br />

do partido <strong>de</strong> Melaço era não fazer coisa alguma<br />

e o do contrário tinha o mesmo i<strong>de</strong>al; ambos, porém, se<br />

diziam adversários <strong>de</strong> morte e essa oposição, refletindo -se<br />

no caso, <strong>em</strong>baraçava sobr<strong>em</strong>odo o sub<strong>de</strong>legado.<br />

Interrogado, confessara -se o agente pronto a reparar o<br />

mal; e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito, a paciente <strong>de</strong>ra a tal respeito a sua<br />

indispensável opinião.<br />

A autorida<strong>de</strong>, entretanto, hesitava, por causa da incompatibilida<strong>de</strong><br />

política do casal. As audiências se sucediam e<br />

aquela era já a quarta. Estavam os soldados atônitos com<br />

tanta <strong>de</strong>mora, provinda <strong>de</strong> não saber b<strong>em</strong> o <strong>de</strong>legado se,<br />

unindo mais uma vez o par, não iria o caso <strong>de</strong>sgostar<br />

Melaço e mesmo o seu adversário Jati – ambos senadores<br />

po<strong>de</strong>rosos, aquele do governo e este da oposição; e,<br />

<strong>de</strong>sgostar qualquer <strong>de</strong>les punha <strong>em</strong> perigo o seu <strong>em</strong>prego<br />

porque, quase s<strong>em</strong>pre entre nós, a oposição passa a ser<br />

governo e o governo oposição instantaneamente. O consentimento<br />

dos rapazes não bastava ao caso; era preciso,<br />

além, uma reconciliação ou uma simples a<strong>de</strong>são política.<br />

Naquela manhã, o <strong>de</strong>legado tomava mais uma vez o<br />

<strong>de</strong>poimento do agente, inquirindo -o <strong>de</strong>sta forma:<br />

– Já se resolveu?<br />

– Pois não, doutor. Estou inteiramente a seu dispor…<br />

– Não é b<strong>em</strong> ao meu. Quero saber se o senhor t<strong>em</strong> tenção?<br />

66


67<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

– De que, doutor? De casar? Pois não, doutor.<br />

– Não é <strong>de</strong> casar… Isto já sei… É…<br />

– Mas <strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser então, doutor?<br />

– De entrar para o partido do doutor Melaço.<br />

– Eu s<strong>em</strong>pre, doutor, fui pelo doutor Jati. Não posso…<br />

– Que t<strong>em</strong> uma coisa com a outra? O senhor divi<strong>de</strong><br />

o seu voto: a meta<strong>de</strong> dá para um e a outra meta<strong>de</strong> para<br />

outro. Está aí!<br />

– Mas como?<br />

– Ora! O senhor saberá arranjar as coisas da melhor<br />

forma; e, se o fizer com habilida<strong>de</strong>, ficarei contente e o<br />

senhor será feliz, porquanto po<strong>de</strong> arranjar tanto com um<br />

como com outro, conforme andar a política no próximo<br />

quatriênio, um lugar <strong>de</strong> guarda dos mangues.<br />

– Não há vaga, doutor.<br />

– Qual! Há s<strong>em</strong>pre vaga, meu caro. O Felizardo não se<br />

t<strong>em</strong> querido alistar, não nasceu aqui, é <strong>de</strong> fora, é “estrangeiro”;<br />

e, <strong>de</strong>ssa maneira, não po<strong>de</strong> continuar a fiscalizar<br />

os mangues. É vaga certa. O senhor a<strong>de</strong>re ou antes: divi<strong>de</strong><br />

a votação?<br />

– Divido, doutor.<br />

– Pois então…<br />

Por aí, um dos inspetores veio avisar <strong>de</strong> que o guarda<br />

civil <strong>de</strong> nome Hane lhe queria falar. O doutor Cunsono<br />

estr<strong>em</strong>eceu. Era coisa do chefe, do geral lá <strong>de</strong> baixo; e,<br />

<strong>de</strong> relance, viu o seu hábil trabalho <strong>de</strong> harmonizar Jati e<br />

Melaço perdido inteiramente, talvez por causa <strong>de</strong> não ter,<br />

naquele ano, efetuado sequer uma prisão. Estava na rua,<br />

suspen<strong>de</strong>u o interrogatório e veio receber o visitador com<br />

muita angústia no coração. Que seria?<br />

– Doutor, foi logo dizendo o guarda, t<strong>em</strong>os um louco.<br />

Diante daquele caso novo, o <strong>de</strong>legado quis refletir, mas<br />

logo o guarda <strong>em</strong>endou:


lima barreto<br />

– O doutor Silly…<br />

Era assim o nome do ajudante do geral inacessível; e<br />

<strong>de</strong>le, os <strong>de</strong>legados têm mais medo do que do chefe supr<strong>em</strong>o<br />

todo -po<strong>de</strong>roso.<br />

Hane continuou:<br />

– O doutor Silly mandou dizer que o senhor o pren<strong>de</strong>sse<br />

e o enviasse à central.<br />

Cunsono pensou b<strong>em</strong> que esse negócio <strong>de</strong> reclusão <strong>de</strong><br />

loucos é por <strong>de</strong>mais grave e <strong>de</strong>licado e não era propriamente<br />

da sua competência fazê -lo, a menos que foss<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong> eira n<strong>em</strong> beira ou ameaçass<strong>em</strong> a segurança pública.<br />

Pediu a Hane que o esperasse e foi consultar o escrivão.<br />

Este serventuário vivia ali <strong>de</strong> mau humor. O sossego<br />

da <strong>de</strong>legacia o aborrecia, não porque gostasse da agitação<br />

pela agitação, mas pelo simples fato <strong>de</strong> não perceber<br />

<strong>em</strong>olumentos ou quer que seja, tendo que viver <strong>de</strong> seus<br />

vencimentos. Aconselhou -se com ele o <strong>de</strong>legado e ficou<br />

perfeitamente informado do que dispunham a lei e a praxe.<br />

Mas Silly…<br />

Voltando à sala, o guarda reiterou as or<strong>de</strong>ns do auxiliar,<br />

contando também que o louco estava <strong>em</strong> Manaus. Se<br />

o próprio Silly não o mandava buscar, elucidou o guarda,<br />

era porque competia a Cunsono <strong>de</strong>ter o “hom<strong>em</strong>”,<br />

porquanto a sua <strong>de</strong>legacia tinha costas do oceano e <strong>de</strong><br />

Manaus se vinha por mar.<br />

– É muito longe, objetou o <strong>de</strong>legado.<br />

O guarda teve o cuidado <strong>de</strong> explicar que Silly já vira a<br />

distância no mapa e era b<strong>em</strong> reduzida: obra <strong>de</strong> palmo e<br />

meio. Cunsono perguntou ainda:<br />

– Qual a profissão do “hom<strong>em</strong>”?<br />

– É <strong>em</strong>pregado da <strong>de</strong>legacia fiscal.<br />

– T<strong>em</strong> pai?<br />

– T<strong>em</strong>.<br />

68


69<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

Pensou o <strong>de</strong>legado que competia ao pai o pedido <strong>de</strong><br />

internação, mas o guarda adivinhou -lhe o pensamento<br />

e afirmou:<br />

– Eu conheço muito e meu primo é cunhado <strong>de</strong>le.<br />

Estava já Cunsono irritado com as objeções do escrivão<br />

e <strong>de</strong>sejava servir a Silly, tanto mais que o caso <strong>de</strong>safiava a<br />

sua competência policial. A lei era ele; e mandou fazer o<br />

expediente.<br />

Após o que, tratou Cunsono <strong>de</strong> ultimar o enlace <strong>de</strong><br />

Melaço e Jati, por intermédio do casamento da filha do<br />

Sambabaia. Tudo ficou assentado da melhor forma; e, <strong>em</strong><br />

pequena hora, voltava o <strong>de</strong>legado para as ruas on<strong>de</strong> não<br />

policiava, satisfeito consigo mesmo e com a sua tríplice<br />

obra, pois não convém esquecer a sua caridosa intervenção<br />

no caso do louco <strong>de</strong> Manaus.<br />

Tomava a condução que <strong>de</strong>via trazer à cida<strong>de</strong>, quando<br />

a l<strong>em</strong>brança do meio <strong>de</strong> transporte do <strong>de</strong>mentado lhe<br />

foi presente. Ao guarda civil, ao representante <strong>de</strong> Silly na<br />

zona, perguntou por esse instante:<br />

– Como há <strong>de</strong> vir o “sujeito”?<br />

O guarda, s<strong>em</strong> aten<strong>de</strong>r diretamente à pergunta, disse:<br />

– É… É, doutor; ele está muito furioso.<br />

Cunsono pensou um instante, l<strong>em</strong>brou -se dos seus<br />

estudos e acudiu:<br />

– Talvez um couraçado… O “Minas Gerais” não serve?<br />

Vou requisitá -lo.<br />

Hane, que tinha prática do serviço e conhecimento dos<br />

compassivos processos policiais, refletiu:<br />

– Doutor: não é preciso tanto. O “carro -forte” basta<br />

para trazer o “hom<strong>em</strong>”.<br />

Concordou Cunsono e olhou as alturas um instante<br />

s<strong>em</strong> notar as nuvens que vagavam s<strong>em</strong> rumo certo, entre<br />

o céu e a terra.


lima barreto<br />

II<br />

Silly, o doutor Silly, b<strong>em</strong> como Cunsono, graças à prática<br />

que tinham do oficio, dispunham da liberda<strong>de</strong> dos<br />

seus pares com a maior facilida<strong>de</strong>. Tinham substituído os<br />

graves exames íntimos provocados pelos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> seus<br />

cargos, as perigosas responsabilida<strong>de</strong>s que lhes são próprias,<br />

pelo automático ato <strong>de</strong> uma assinatura rápida. Era<br />

um contínuo trazer um oficio, logo, s<strong>em</strong> b<strong>em</strong> pensar no<br />

que faziam, s<strong>em</strong> lê -lo até, assinavam e ia com essa assinatura<br />

um sujeito para a ca<strong>de</strong>ia, on<strong>de</strong> ficava aguardando que<br />

se l<strong>em</strong>brasse <strong>de</strong> retirá -lo <strong>de</strong> lá a sua mão distraída e ligeira.<br />

Assim era; e foi s<strong>em</strong> dificulda<strong>de</strong> que aten<strong>de</strong>u ao pedido<br />

<strong>de</strong> Cunsono no que toca ao carro -forte. Prontamente <strong>de</strong>u<br />

as or<strong>de</strong>ns para que fosse fornecida a seu colega a masmorra<br />

ambulante, pior do que masmorra, do que solitária, pois<br />

nessas prisões sente -se ainda a algi<strong>de</strong>z da pedra, alguma<br />

coisa ainda <strong>de</strong> meiguice <strong>de</strong> sepultura, mas ainda assim<br />

meiguice; mas, no tal carro feroz, é tudo ferro, há inexorável<br />

antipatia do ferro na cabeça, ferro nos pés, aos lados<br />

uma igaçaba <strong>de</strong> ferro <strong>em</strong> que se v<strong>em</strong> sentado, imóvel, e<br />

para a qual se entra pelo próprio pé. É blindada e qu<strong>em</strong><br />

vai nela, levado aos trancos e barrancos <strong>de</strong> seu respeitável<br />

peso e do calçamento das vias públicas, t<strong>em</strong> a impressão<br />

<strong>de</strong> que se lhe quer poupar a morte por um bombar<strong>de</strong>io <strong>de</strong><br />

grossa artilharia para ser <strong>em</strong>palado aos olhos <strong>de</strong> um sultão.<br />

Um requinte <strong>de</strong> potentado asiático.<br />

Essa prisão <strong>de</strong> Calistenes, 37 blindada, chapeada, couraçada,<br />

foi posta <strong>em</strong> movimento; e saiu, abalando o calçamento,<br />

a chocalhar ferragens, a trovejar pelas ruas afora<br />

<strong>em</strong> busca <strong>de</strong> um inofensivo.<br />

O “hom<strong>em</strong>”, como diz<strong>em</strong> eles, era um ente pacato, lá<br />

dos confins <strong>de</strong> Manaus, que tinha a mania da Astronomia<br />

70


71<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

e abandonara, não <strong>de</strong> todo, mas quase totalmente, a terra<br />

pelo céu inacessível. Vivia com o pai velho nos arrabal<strong>de</strong>s<br />

da cida<strong>de</strong> e construíra na chácara <strong>de</strong> sua residência<br />

um pequeno observatório, on<strong>de</strong> montou lunetas que lhe<br />

davam pasto à inocente mania. Julgando insuficientes o<br />

olhar e as lentes, para chegar ao perfeito conhecimento da<br />

Al<strong>de</strong>barã 38 longínqua, atirou se ao cálculo, à inteligência<br />

pura, à mat<strong>em</strong>ática e a estudar com afinco e fúria <strong>de</strong> um<br />

doido ou <strong>de</strong> um gênio.<br />

Em uma terra inteiramente entregue à chatinag<strong>em</strong> 39 e<br />

à veniaga, 40 Fernando foi tomando a fama <strong>de</strong> louco, e não<br />

era ela s<strong>em</strong> algum motivo. Certos gestos, certas <strong>de</strong>spreocupações<br />

e mesmo outras manifestações mais palpáveis<br />

pareciam justificar o julgamento comum; entretanto, ele<br />

vivia b<strong>em</strong> com o pai e cumpria os seus <strong>de</strong>veres razoavelmente.<br />

Porém, parentes oficiosos e <strong>outros</strong> longínquos a<strong>de</strong>rentes<br />

enten<strong>de</strong>ram curá -lo, como se se curass<strong>em</strong> assomos<br />

<strong>de</strong> alma e anseios <strong>de</strong> pensamento.<br />

Não lhes vinha tal propósito <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong> inata, mas<br />

<strong>de</strong> estultice 41 congênita, juntamente com a comiseração<br />

explicável <strong>em</strong> parentes. Julgavam que o ser <strong>de</strong>scompassado<br />

envergonhava a família e esse julgamento era reforçado<br />

pelos cochichos que ouviam <strong>de</strong> alguns homens esforçados<br />

por parecer<strong>em</strong> inteligentes.<br />

O mais célebre <strong>de</strong>les era o doutor Barrado, um catita 42<br />

do lugar, cheiroso e apurado no corte das calças. Possuía<br />

esse doutor a obsessão das coisas extraordinárias, transcen<strong>de</strong>ntes,<br />

s<strong>em</strong> -par, originais; e, como sabia Fernando<br />

simples e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso pelos mandões, supôs que ele, com<br />

esse procedimento, censurava Barrado por <strong>de</strong>mais mesureiro<br />

com os magnates. Começou, então, Barrado a dizer<br />

que Fernando não sabia astronomia; ora, este último não<br />

afirmava s<strong>em</strong>elhante coisa. Lia, estudava e contava o que


lima barreto<br />

lia, mais ou menos o que aquele fazia nas salas, com os<br />

ditos e opiniões dos <strong>outros</strong>.<br />

Houve qu<strong>em</strong> o <strong>de</strong>smentisse; teimava, no entanto, Barrado<br />

no propósito. Enten<strong>de</strong>u também <strong>de</strong> estudar uma<br />

astronomia e b<strong>em</strong> oposta à <strong>de</strong> Fernando: a astronomia do<br />

centro da terra. O seu compêndio favorito era A morgadi‑<br />

nha <strong>de</strong> Val ‑Flor e os livros auxiliares: A dama <strong>de</strong> Monso‑<br />

reau e O rei dos grilhetas, numa biblioteca <strong>de</strong> Herschell. 43<br />

Com isto, e cantando, e espalhando que Fernando<br />

vivia nas tascas com vagabundos, auxiliado pelo poeta<br />

Machino, o jornalista Cosmético e o antropologista<br />

Tucolas, que fazia sábias mensurações nos crânios das<br />

formigas, conseguiu r<strong>em</strong>over os simplórios parentes <strong>de</strong><br />

Fernando, e foi bastante que, <strong>de</strong> parente para conhecido,<br />

<strong>de</strong> conhecido para Hane, <strong>de</strong> Hane, para Silly e Cunsono,<br />

as coisas se enca<strong>de</strong>ass<strong>em</strong> e fosse obtida a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> partida<br />

daquela fortaleza couraçada, roncando pelas ruas,<br />

chocalhando ferragens, abalando calçadas, para ponto<br />

tão longínquo.<br />

Quando, porém, o carro chegou à praça mais próxima,<br />

foi que o cocheiro l<strong>em</strong>brou -se <strong>de</strong> que não lhe tinham<br />

ensinado on<strong>de</strong> ficava Manaus. Voltou e Silly, com a energia<br />

<strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong> britânica, <strong>de</strong>terminou que fretass<strong>em</strong> uma<br />

falua 44 e foss<strong>em</strong> a reboque do primeiro paquete.<br />

Sabedor do caso e como tivesse conhecimento <strong>de</strong> que<br />

Fernando era <strong>de</strong>safeto do po<strong>de</strong>roso chefe político Sofonias,<br />

Barrado que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, lhe queria ser agradável,<br />

calou o seu <strong>de</strong>speito, apresentou -se pronto para auxiliar<br />

a diligência. Esse chefe político dispunha <strong>de</strong> um prestígio<br />

imenso e nada entendia <strong>de</strong> astronomia; mas, naquele<br />

t<strong>em</strong>po, era a ciência da moda e tinham <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração<br />

os m<strong>em</strong>bros da Socieda<strong>de</strong> Astronômica, da qual<br />

Barrado queria fazer parte.<br />

72


73<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

Sofonias influía nas eleições da Socieda<strong>de</strong>, como <strong>em</strong><br />

todas as outras, e podia <strong>de</strong>terminar que Barrado fosse<br />

escolhido. Andava, portanto, o doutor captando a boa<br />

vonta<strong>de</strong> da potente influência eleitoral, esperando obter,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eleito, o lugar <strong>de</strong> Diretor Geral das Estrelas <strong>de</strong><br />

Segunda Gran<strong>de</strong>za.<br />

Não é <strong>de</strong> estranhar, pois, que aceitasse tão árdua<br />

incumbência e, com Hane e carrião, 45 veio até à praia; mas<br />

não havia canoa, caíque, bote, jangada, catraia, chalana,<br />

falua, lancha, calunga, poveiro, peru, macacuano, pontão,<br />

alvarenga, saveiro que os quisesse levar a tais alturas.<br />

Hane <strong>de</strong>sesperava, mas o companheiro, l<strong>em</strong>brando -se<br />

dos seus conhecimentos <strong>de</strong> astronomia, indicou um alvitre:<br />

– O carro po<strong>de</strong> ir boiando.<br />

– Como, doutor? É <strong>de</strong> ferro… muito pesado, doutor!<br />

– Qual o quê! O “Minas”, o “Aragón”, o “São Paulo” não<br />

boiam? Ele vai, sim!<br />

– E os burros?<br />

– Irão a nadar, rebocando o carro.<br />

Curvou -se o guarda diante do saber do doutor e<br />

<strong>de</strong>ixou -lhe a missão confiada, conforme as or<strong>de</strong>ns terminantes<br />

que recebera.<br />

A calistênica entrou pela água a<strong>de</strong>ntro, consoante<br />

as or<strong>de</strong>ns promanadas do saber <strong>de</strong> Barrado e, logo que<br />

achou água suficiente, foi ao fundo com gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo<br />

pela hidrostática do doutor. Os burros, que tinham s<strong>em</strong>pre<br />

protestado contra a física do jov<strong>em</strong> sábio, partiram os<br />

arreios e salvaram -se; e graças a uma po<strong>de</strong>rosa cábrea, 46<br />

pô<strong>de</strong> a almanjarra 47 ser salva também.<br />

Havia poucos paquetes para Manaus e o t<strong>em</strong>po urgia.<br />

Barrado tinha or<strong>de</strong>m franca <strong>de</strong> fazer o que quisesse. Não<br />

hesitou e, energicamente, fez reparar as avarias e tratou<br />

<strong>de</strong> <strong>em</strong>barcar num paquete todo o tr<strong>em</strong>, fosse como fosse.


lima barreto<br />

Ao <strong>em</strong>barcá -lo, porém, surgiu uma dúvida entre ele e<br />

o pessoal <strong>de</strong> bordo. Teimava Barrado que o carro merecia<br />

ir para um camarote <strong>de</strong> primeira classe, teimavam os<br />

marítimos que isso não era próprio, tanto mais que ele não<br />

indicava o lagar dos burros.<br />

Era difícil essa questão da colocação dos burros. Os<br />

homens <strong>de</strong> bordo queriam que foss<strong>em</strong> para o interior do<br />

navio; mas, objetava o doutor:<br />

– Morr<strong>em</strong> asfixiados, tanto mais que são burros e mesmo<br />

por isso.<br />

De comum acordo, resolveram telegrafar a Silly para<br />

resolver a curiosa contenda. Não tardou viesse a resposta,<br />

que foi clara e precisa: “Burros s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> cima. Silly”.<br />

Opinião como esta, tão sábia e tão verda<strong>de</strong>ira, tão cheia<br />

<strong>de</strong> filosofia e sagacida<strong>de</strong> da vida, aliviou todos os corações<br />

e abraços fraternais foram trocados entre conhecidos e<br />

inimigos, entre amigos e <strong>de</strong>sconhecidos.<br />

A sentença era <strong>de</strong> Salomão e houve mesmo qu<strong>em</strong> quisesse<br />

aproveitar o apotegma 48 para construir uma <strong>nova</strong><br />

or<strong>de</strong>m social.<br />

Restava a pequena dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer entrar o carro<br />

para o camarote do doutor Barrado. O convés foi aberto<br />

convenient<strong>em</strong>ente, teve a sala <strong>de</strong> jantar mesas arrancadas<br />

e o ben<strong>de</strong>ngó 49 ficou no centro <strong>de</strong>la, <strong>em</strong> exposição, feio<br />

e brutal, estúpido e inútil, como um monstro <strong>de</strong> museu.<br />

O paquete moveu -se lentamente <strong>em</strong> <strong>de</strong>manda da barra.<br />

Antes fez uma doce curva, longa, muito suave, lentamente,<br />

como se, ao <strong>de</strong>spedir -se, cumprimentasse reverente a beleza<br />

da Guanabara. As gaivotas voavam tranquilas, cansavam-<br />

-se, pousavam na água – não precisavam <strong>de</strong> terra…<br />

A cida<strong>de</strong> sumia -se vagarosamente e o carro foi atraindo<br />

a atenção <strong>de</strong> bordo.<br />

– O que v<strong>em</strong> a ser isto?<br />

74


75<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

Diante da almanjarra, muitos viajantes murmuravam<br />

protestos contra a presença daquele estafermo ali; outras<br />

pessoas diziam que se <strong>de</strong>stinava a encarcerar um bandoleiro<br />

da Paraíba; outras que era um salva -vidas; mas, quando<br />

alguém disse que aquilo ia acompanhando um recomendado<br />

<strong>de</strong> Sofonias, a admiração foi geral e imprecisa.<br />

Um oficial disse:<br />

– Que construção engenhosa!<br />

Um médico afirmou:<br />

– Que linhas elegantes!<br />

Um advogado refletiu:<br />

– Que soberba criação mental!<br />

Um literato sustentou:<br />

– Parece um mármore <strong>de</strong> Fídias!<br />

Um sicofanta 50 berrou:<br />

– É obra mesmo <strong>de</strong> Sofonias! Que republicano!<br />

Uma moça adiantou:<br />

– Deve ter sons magníficos!<br />

Houve mesmo escala para dar ração aos burros, pois<br />

os mais graduados se disputavam a honraria. Um criado,<br />

porém, por ter passado junto ao monstro e o olhado com<br />

<strong>de</strong>sdém, quase foi duramente castigado pelos passageiros.<br />

O ergástulo 51 ambulante vingou -se do serviçal; durante<br />

todo o trajeto perturbou -lhe o serviço.<br />

Apesar <strong>de</strong> ir correndo a viag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> mais inci<strong>de</strong>ntes,<br />

quis ao meio <strong>de</strong>la Barrado <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcar e continuá -la por<br />

terra. Consultou, nestes termos, Silly: “Melhor carro ir<br />

terra faltam três <strong>de</strong>dos mar alonga caminho”; e a resposta<br />

veio <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns dias: “Não convém <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barque<br />

<strong>em</strong>bora mais curto carro chega sujo. Siga”.<br />

Obe<strong>de</strong>ceu e o meteorito, durante duas s<strong>em</strong>anas, foi<br />

objeto da adoração do paquete. Nos últimos dias, quando<br />

um qualquer dos passageiros <strong>de</strong>le se acercava, passava-


lima barreto<br />

-lhe pelo dorso negro a mão espalmada com a contrição<br />

religiosa <strong>de</strong> um maometano ao tocar na pedra negra da<br />

Caaba. 52<br />

Sofonias, que nada tinha com o caso, não teve nunca<br />

notícia <strong>de</strong>ssa tocante adoração.<br />

III<br />

Muito rica é Manaus, mas, como <strong>em</strong> todo o Amazonas,<br />

nela é vulgar a moeda <strong>de</strong> cobre. E um singular traço <strong>de</strong><br />

riqueza que muito impressiona o viajante, tanto mais que<br />

não se quer outra e as rendas do Estado são avultadas. O<br />

Eldorado não conhece o ouro, n<strong>em</strong> o estima.<br />

Outro traço <strong>de</strong> sua riqueza é o jogo. Lá, não é divertimento<br />

n<strong>em</strong> vício: é para quase todos profissão. O valor dos<br />

noivos, segundo diz<strong>em</strong>, é avaliado pela média das paradas<br />

felizes que faz<strong>em</strong>, e o das noivas pelo mesmo processo no<br />

tocante aos pais.<br />

Chegou o navio a tão curiosa cida<strong>de</strong> quinze dias após<br />

fazendo uma plácida viag<strong>em</strong>, com o fetiche a bordo.<br />

Des<strong>em</strong>barcá -lo foi motivo <strong>de</strong> absorvente cogitação para<br />

o doutor Barrado. T<strong>em</strong>ia que fosse <strong>de</strong> novo ao fundo, não<br />

porque o quisesse encaminhá -lo por sobre as águas do<br />

rio Negro; mas, pelo simples motivo <strong>de</strong> que, sendo o cais<br />

flutuante, o peso do carrião talvez trouxesse <strong>de</strong>sastrosas<br />

consequências para ambos, cais e carro.<br />

O capataz não encontrava perigo algum, pois <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcavam<br />

e <strong>em</strong>barcavam pelos flutuantes volumes pesadíssimos,<br />

toneladas até.<br />

Barrado, porém, que era observador, l<strong>em</strong>brava -se da<br />

aventura do rio, e objetou:<br />

– Mas não são <strong>de</strong> ferro.<br />

76


77<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

– Que t<strong>em</strong> isso? fez o capataz.<br />

Barrado, que era observador e inteligente, afinal compreen<strong>de</strong>u<br />

que um quilo <strong>de</strong> ferro pesa tanto quanto um<br />

<strong>de</strong> algodão; e só se convenceu inteiramente disso, como<br />

observador que era, quando viu o ergástulo <strong>em</strong> salvamento,<br />

rolando pelas ruas da cida<strong>de</strong>.<br />

Continuou a ser ídolo e o doutor agastou -se <strong>de</strong>veras<br />

porque o governador visitou a caranguejola, antes que ele<br />

o fizesse.<br />

Como não tivesse completas as instruções para <strong>de</strong>tenção<br />

<strong>de</strong> Fernando, pediu -as a Silly. A resposta veio num<br />

longo telegrama, minucioso e elucidativo. Devia requisitar<br />

força ao governador, arregimentar capangas e não <strong>de</strong>sprezar<br />

as balas <strong>de</strong> alteia. 53 Assim fez o comissário. Pediu<br />

uma companhia <strong>de</strong> soldados, foi às alfurjas 54 da cida<strong>de</strong><br />

catar bravos e adquirir uma confeitaria <strong>de</strong> alteia. Partiu<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>manda do “hom<strong>em</strong>” com esse tr<strong>em</strong> <strong>de</strong> guerra; e,<br />

pondo -se cautelosamente <strong>em</strong> observação, lobrigou os óculos<br />

do observatório, don<strong>de</strong> concluiu que a sua força era<br />

insuficiente. Normas para o seu procedimento requereu<br />

a Silly. Vieram secas e per<strong>em</strong>ptórias: “Empregue também<br />

artilharia”.<br />

De novo pôs -se <strong>em</strong> marcha com um parque do Krupp.<br />

Desgraçadamente, não encontrou o hom<strong>em</strong> perigoso.<br />

Recolheu a expedição a quartéis; e, certo dia, quando <strong>de</strong><br />

passeio, por acaso, foi parar a um café do centro comercial.<br />

Todas as mesas estavam ocupadas; e só <strong>em</strong> uma <strong>de</strong>las<br />

havia um único consumidor. A esta ele sentou -se. Travou<br />

por qualquer motivo conversa com o mazombo; 55 e,<br />

durante alguns minutos, apren<strong>de</strong>u com o solitário alguma<br />

coisa.<br />

Ao <strong>de</strong>spedir<strong>em</strong> -se, foi que ligou o nome à pessoa, e<br />

ficou atarantado s<strong>em</strong> saber como proce<strong>de</strong>r no momento.


lima barreto<br />

A ação, porém, lhe veio prontamente; e, s<strong>em</strong> dificulda<strong>de</strong>,<br />

falando <strong>em</strong> nome da lei e da autorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>teve o pacífico<br />

ferrabrás 56 <strong>em</strong> um dos bailéus do cárcere ambulante.<br />

Não havia paquete naquele dia e Silly havia recomendado<br />

que o trouxess<strong>em</strong> imediatamente. “Venha por terra”,<br />

disse ele; e Barrado, l<strong>em</strong>brado do conselho, tratou <strong>de</strong><br />

segui -lo. Procurou qu<strong>em</strong> o guiasse até ao Rio, <strong>em</strong>bora lhe<br />

parecesse curta e fácil a viag<strong>em</strong>. Examinou b<strong>em</strong> o mapa e,<br />

vendo que a distância era <strong>de</strong> palmo e meio, consi<strong>de</strong>rou que<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la não lhe cabia o carro. Por este e aquele, soube<br />

que os fabricantes <strong>de</strong> mapas não têm critério seguro: era<br />

fazer uns muito gran<strong>de</strong>s, ou muito pequenos, conforme<br />

são para enfeitar livros ou adornar pare<strong>de</strong>s. Sendo assim,<br />

a tal distância <strong>de</strong> doze polegadas b<strong>em</strong> podia escon<strong>de</strong>r viag<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> um dia e mais.<br />

Aconselhado pelo cocheiro, tomou um guia e<br />

encontrou -o no seu antigo conhecido Tucolas, sabedor<br />

como ninguém do interior do Brasil, pois o palmilhara<br />

à cata <strong>de</strong> formigas para b<strong>em</strong> firmar documentos às suas<br />

investigações antropológicas.<br />

Aceitou a incumbência o curioso antropologista <strong>de</strong><br />

himenópteros, aconselhando, entretanto, a modificação<br />

do itinerário.<br />

– Não me parece, senhor Barrado, que <strong>de</strong>vamos atravessar<br />

o Amazonas. Melhor seria, senhor Barrado, irmos<br />

até a Venezuela, alcançar as Guianas e <strong>de</strong>scermos, senhor<br />

Barrado.<br />

– Não ter<strong>em</strong>os rios a atravessar, Tucolas?<br />

– Hom<strong>em</strong>! Meu caro senhor, eu não sei b<strong>em</strong>; mas,<br />

senhor Barrado me parece que não, e sabe por quê?<br />

– Por quê?<br />

– Por quê? Porque este Amazonas, senhor Barrado, não<br />

po<strong>de</strong> ir até lá, ao Norte, pois só corre <strong>de</strong> oeste para leste…<br />

78


79<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

Discutiram assim sabiamente o caminho; e, à proporção<br />

que manifestava o seu profundo trato com a geografia<br />

da América do Sul, mais Tucolas passava a mão pela cabeleira<br />

<strong>de</strong> inspirado.<br />

Achou que os conselhos do doutor eram justos, mas<br />

t<strong>em</strong>ia as surpresas do carrão. Ora, ia ao fundo, por ser<br />

pesado; ora, sendo pesado, não fazia ir ao fundo frágeis<br />

flutuantes. Não fosse ele estranhar o chão estrangeiro<br />

e pregar -lhe alguma peça? O cocheiro não queria também<br />

ir pela Venezuela, t<strong>em</strong>ia pisar <strong>em</strong> terra <strong>de</strong> gringos e<br />

encarregou -se da travessia do Amazonas – o que foi feito<br />

<strong>em</strong> paz e salvamento, com a máxima simplicida<strong>de</strong>.<br />

Logo que foi ultimada, Tucolas tratou <strong>de</strong> guiar a caravana.<br />

Prometeu que o faria com muito acerto e contentamento<br />

geral, pois aproveitá -la -ia, dilatando as suas<br />

pesquisas antropológicas aos moluscos dos nossos rios.<br />

Era sábio naturalista, e antropologista, e etnografista da<br />

novíssima escola do con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gobineau, 57 novida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uns sessenta anos atrás; e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, <strong>de</strong>sejava fazer uma<br />

viag<strong>em</strong> daquelas para completar os seus estudos antropológicos<br />

nas formigas e nas ostras dos nossos rios.<br />

A viag<strong>em</strong> correu maravilhosamente durante as primeiras<br />

horas. Sob um sol <strong>de</strong> fogo, o carro solavancava pelos<br />

maus caminhos; e o doente, à mingua <strong>de</strong> não ter on<strong>de</strong> se<br />

agarrar, ia ao encontro <strong>de</strong> uma e outra pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua prisão<br />

couraçada. Os burros, impelidos pelas violentas oscilações<br />

dos varais, encontravam -se e repeliam -se, ainda<br />

mais aumentando os ásperos solavancos da traquitana;<br />

e o cocheiro, na boleia, oscilava <strong>de</strong> lá para cá, <strong>de</strong> cá para<br />

lá, marcando o compasso da música chocalhante daquela<br />

marcha vagarosa.<br />

Na primeira venda que passaram, uma <strong>de</strong>ssas vendas<br />

perdidas, quase isoladas, dos caminhos <strong>de</strong>sertos, on<strong>de</strong> o


lima barreto<br />

viajante se abastece e os vagabundos <strong>de</strong>scansam <strong>de</strong> sua<br />

errância pelos <strong>de</strong>scambados e montanhas, o encarcerado<br />

foi saudado com uma vaia: ó maluco! ó maluco!<br />

Andava Tucolas distraído a fossar e cavocar, catando<br />

formigas; e, mal encontrava uma mais assim, logo examinava<br />

b<strong>em</strong> o crânio do inseto, procurava -lhe os ossos componentes,<br />

enquanto não fazia uma mensuração cuidadosa<br />

do ângulo <strong>de</strong> Camper ou mesmo <strong>de</strong> Cloquet. 58 Barrado,<br />

cuja preocupação era ser êmulo do Padre Vieira, aproveitara<br />

o t<strong>em</strong>po para firmar b<strong>em</strong> as regras <strong>de</strong> colocação <strong>de</strong><br />

pronomes, sobretudo a que manda que o “que” atraia o<br />

pronome compl<strong>em</strong>ento.<br />

E assim andando foi o carro, após dias <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, até<br />

chegar a uma al<strong>de</strong>ia pobre, à marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> um rio, on<strong>de</strong> chalanas<br />

e naviecos a vapor tocavam <strong>de</strong> quando <strong>em</strong> quando.<br />

Cuidaram imediatamente <strong>de</strong> obter hospedag<strong>em</strong> e alimentação<br />

no lugarejo. O cocheiro l<strong>em</strong>brou o “hom<strong>em</strong>”<br />

que traziam. Barrado, a respeito, não tinha com segurança<br />

uma norma <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r. Não sabia mesmo se essa<br />

espécie <strong>de</strong> doentes comia e consultou Silly, por telegrama.<br />

Respon<strong>de</strong>u -lhe a autorida<strong>de</strong>, com a energia britânica que<br />

tinha no sangue, que não era do regulamento retirar aquela<br />

espécie <strong>de</strong> enfermos do carro, o “ar” s<strong>em</strong>pre lhes fazia<br />

mal. De resto, era curta a viag<strong>em</strong> e tão sábia recomendação<br />

foi cegamente obe<strong>de</strong>cida.<br />

Em pequena hora, Barrado e o guia sentavam -se à mesa<br />

do professor público, que lhes oferecera do jantar. O ágape<br />

59 ia fraternal e alegre, quando houve a visita da Discórdia,<br />

a visita da Gramática.<br />

O ingênuo professor não tinha conhecimento do pichoso<br />

saber gramatical do doutor Barrado e expunha candidamente<br />

os usos e costumes do lugar com a sua linguag<strong>em</strong><br />

roceira:<br />

80


81<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

– Há aqui entre nós muito pouco caso pelo estudo, doutor.<br />

Meus filhos mesmo e todos quase não quer<strong>em</strong> saber<br />

<strong>de</strong> livros. Tirante este <strong>de</strong>feito, doutor, a gente quer mesmo<br />

o progresso.<br />

Barrado implicou com o “tirante” e o “a gente”, e tentou<br />

ironizar. Sorriu e observou:<br />

– Fala -se mal, estou vendo.<br />

O matuto percebeu que o doutor se referia a ele. Indagou<br />

mansamente:<br />

– Por que o doutor diz isso?<br />

– Por nada, professor. Por nada!<br />

– Creio, aduziu o sertanejo, que, tirante eu, o doutor<br />

aqui não falou com mais ninguém.<br />

Barrado notou ainda o “tirante” e olhou com inteligência<br />

para Tucolas, que se distraía com um naco <strong>de</strong> tartaruga.<br />

Observou o caipira, momentaneamente, o afã <strong>de</strong> comer<br />

do antropologista e disse, meigamente:<br />

– Aqui, a gente come muito isso. Tirante a caça e a pesca,<br />

nós raramente t<strong>em</strong>os carne fresca.<br />

A insistência do professor sertanejo irritava sobr<strong>em</strong>aneira<br />

o doutor inigualável. S<strong>em</strong>pre aquele “tirante”,<br />

s<strong>em</strong>pre o tal “a gente, a gente, a gente”– um falar <strong>de</strong> preto<br />

mina! O professor, porém, continuou a informar calmamente:<br />

– A gente aqui planta pouco, mesmo não vale a pena.<br />

Felizardo do Catolé plantou uns leirões <strong>de</strong> horta, há anos,<br />

e quando veio o calor e a enchente…<br />

– É <strong>de</strong>mais! É <strong>de</strong>mais! exclamou Barrado.<br />

Doc<strong>em</strong>ente, o pedagogo indagou:<br />

– Por quê? Por quê, doutor?<br />

Estava o doutor sinistramente raivoso e explicou -se a<br />

custo:<br />

– Então, não sabe? Não sabe?


lima barreto<br />

– Não, doutor. Eu não sei, fez o professor, com segurança<br />

e mansuetu<strong>de</strong>.<br />

Tucolas tinha parado <strong>de</strong> saborear a tartaruga, a fim <strong>de</strong><br />

atinar com a orig<strong>em</strong> da disputa.<br />

– Não sabe, então, r<strong>em</strong>atou Barrado, não sabe que até<br />

agora o senhor não t<strong>em</strong> feito outra coisa senão errar <strong>em</strong><br />

português?<br />

– Como, doutor?<br />

– É “tirante”, é “a gente, a gente, a gente”; e, por cima <strong>de</strong><br />

tudo, um solecismo!<br />

– On<strong>de</strong>, doutor?<br />

– Veio o calor e a chuva – é português?<br />

– É, doutor, é, doutor! Veja o doutor João Ribeiro! Tudo<br />

isso está lá. Quer ver?<br />

O professor levantou -se, apanhou sobre a mesa próxima<br />

uma velha gramática ensebada e mostrou a respeitável<br />

autorida<strong>de</strong> ao sábio doutor Barrado. S<strong>em</strong> saber <strong>de</strong>sdéns<br />

simular, or<strong>de</strong>nou:<br />

– Tucolas, vamo -nos <strong>em</strong>bora.<br />

– E a tartaruga? diz o outro.<br />

O hóspe<strong>de</strong> ofereceu -a, o original antropologista<br />

<strong>em</strong>brulhou -a e saiu com o companheiro. Cá fora, tudo<br />

era silêncio e o céu estava negro. As estrelas pequeninas<br />

piscavam s<strong>em</strong> cessar o seu olhar eterno para a Terra muito<br />

gran<strong>de</strong>. O doutor foi ao encontro da curiosida<strong>de</strong> recalcada<br />

<strong>de</strong> Tucolas:<br />

– Vê, Tucolas, como anda o nosso ensino? Os professores<br />

não sab<strong>em</strong> os el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> gramática, e falam como<br />

negros <strong>de</strong> senzala.<br />

– Senhor Barrado, julgo que o senhor <strong>de</strong>ve a esse respeito<br />

chamar a atenção do ministro competente, pois me<br />

parece que o país, atualmente, possui um dos mais autorizados<br />

na matéria.<br />

82


83<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

– Vou tratar, Tucolas, tanto mais que o S<strong>em</strong>ica é amigo<br />

do Sofonias.<br />

– Senhor Barrado, uma coisa…<br />

– Que é?<br />

– Já falou, senhor Barrado, a meu respeito com o senhor<br />

Sofonias?<br />

– Des<strong>de</strong> muito, meu caro Tucolas. Está à espera da<br />

reforma do museu e tu vais para lá direitinho. É o teu<br />

lugar.<br />

– Obrigado, senhor Barrado. Obrigado.<br />

A viag<strong>em</strong> continuou monotonamente. Transmontaram<br />

serras, va<strong>de</strong>aram rios e, num <strong>de</strong>les, houve um ataque <strong>de</strong><br />

jacarés, dos quais se salvou Barrado graças à sua pele muito<br />

dura. Entretanto, um dos animais <strong>de</strong> tiro per<strong>de</strong>u uma<br />

das patas dianteiras e mesmo assim conseguiu pôr -se a<br />

salvo na marg<strong>em</strong> oposta.<br />

Sarou -lhe a ferida não se sabe como e o animal não <strong>de</strong>ixou<br />

<strong>de</strong> acompanhar a caravana. Às vezes, distanciava se;<br />

às vezes, aproximava se; e s<strong>em</strong>pre a pobre alimária olhava<br />

longamente, <strong>de</strong>moradamente, aquele forno ambulante,<br />

manquejando s<strong>em</strong>pre, impotente para a carreira, e como<br />

se se lastimasse <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r auxiliar eficazmente o lento<br />

reboque daquela almanjarra pesadona.<br />

Em dado momento, o cocheiro avisa Barrado <strong>de</strong> que<br />

o “hom<strong>em</strong>” parecia estar morto; havia até um mau cheiro<br />

indicador. O regulamento não permitia a abertura da<br />

prisão e o doutor não quis verificar o que havia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong><br />

no caso. Comia aqui, dormia ali, Tucolas também e<br />

os burros também – que mais era preciso para ser agradável<br />

a Sofonias? Nada, ou antes: trazer o “hom<strong>em</strong>” até<br />

ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. As doze polegadas da sua cartografia<br />

<strong>de</strong>sdobravam -se <strong>em</strong> um infinito número <strong>de</strong> quilômetros.<br />

Tucolas que conhecia o caminho, dizia s<strong>em</strong>pre: estamos a


lima barreto<br />

chegar, senhor Barrado! Estamos a chegar! Assim levaram<br />

meses andando, com o burro aleijado a manquejar atrás<br />

do ergástulo ambulante, olhando -o doc<strong>em</strong>ente, cheio <strong>de</strong><br />

pieda<strong>de</strong> impotente.<br />

Os urubus crocitavam por sobre a caravana, estreitavam<br />

o voo, <strong>de</strong>sciam mais, mais, mais, até quase <strong>de</strong>bicar<br />

no carro -forte. Barrado punha -se furioso a enxotá -los a<br />

pedradas; Tucolas imaginava aparelhos para examinar a<br />

caixa craniana das ostras <strong>de</strong> que andava à caça; o cocheiro<br />

obe<strong>de</strong>cia.<br />

Mais ou menos assim, levaram dois anos e foram chegar<br />

à al<strong>de</strong>ia dos Serradores, marg<strong>em</strong> do Tocantins.<br />

Quando aportaram, havia na praça principal uma<br />

gran<strong>de</strong> disputa, tendo por motivo o preenchimento <strong>de</strong><br />

uma vaga na Aca<strong>de</strong>mia dos Lambrequins. 60<br />

Logo que Barrado soube do que se tratava, meteu -se<br />

na disputa e foi gritando lá a seu jeito e sacudindo as perninhas:<br />

– Eu também sou candidato! Eu também sou candidato!<br />

Um dos circunstantes perguntou -lhe a t<strong>em</strong>po, com<br />

toda a paciência:<br />

– Moço: o senhor sabe fazer lambrequins?<br />

– Não sei, não sei, mas aprendo na aca<strong>de</strong>mia e é para<br />

isso que quero entrar.<br />

A eleição teve lugar e a escolha recaiu sobre um outro<br />

mais hábil no uso da serra que o doutor recém -chegado.<br />

Precipitou -se por isso a partida e o carro continuou a<br />

sua odisseia, com o acompanhamento do burro, s<strong>em</strong>pre<br />

a olhá -lo longamente, infinitamente, <strong>de</strong>moradamente,<br />

cheio <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> impotente.<br />

Aos poucos os urubus se <strong>de</strong>spediram; e, no fim <strong>de</strong> quatro<br />

anos, o carrião entrou pelo Rio a<strong>de</strong>ntro, a roncar pelas<br />

84


85<br />

como o “hom<strong>em</strong>” chegou<br />

calçadas, chocalhando duramente as ferragens, com o seu<br />

manco e compassivo burro a manquejar -lhe à sirga.<br />

Logo que foi chegado, um hábil serralheiro veio abri -lo,<br />

pois a fechadura <strong>de</strong>sarranjara -se <strong>de</strong>vido aos trancos e às<br />

int<strong>em</strong>péries da viag<strong>em</strong>, e <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cia à chave competente.<br />

Silly <strong>de</strong>terminou que os médicos examinass<strong>em</strong> o doente,<br />

exame que, mergulhados numa atmosfera <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinfetantes,<br />

foi feito no necrotério público.<br />

Foi este o <strong>de</strong>stino do enfermo pelo qual o <strong>de</strong>legado<br />

Cunsono se interessou com tanta solicitu<strong>de</strong>.


Congresso Pan -Planetário *<br />

87<br />

Urubu pelado não se mete<br />

no meio dos coroados<br />

Ditado popular<br />

De tal forma se haviam multiplicado os congressos, que<br />

foi preciso ser original. Dentro <strong>de</strong> cada um dos oito planetas,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o mais bronco, que parece ser Vênus, até o mais<br />

inteligente, que <strong>de</strong>ve ser Netuno, não era possível reunir<br />

um que não fosse a milésima repartição dos <strong>outros</strong> anteriores.<br />

Congressos nunca foram coisas <strong>de</strong> primeira necessida<strong>de</strong>;<br />

mas a necessida<strong>de</strong> do espetáculo t<strong>em</strong> <strong>em</strong> todos nós<br />

fortes exigências como <strong>de</strong>svios convenientes.<br />

D<strong>em</strong>ais, Júpiter estava <strong>em</strong> tal estado <strong>de</strong> adiantamento<br />

que precisava mostrar -se ao sist<strong>em</strong>a todo. Produzia por<br />

ano 200.000$000 <strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> aperfeiçoadas farpas <strong>de</strong><br />

bambus (específico contra as dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes); e os seus<br />

filósofos e escritores, graças às mo<strong>de</strong>rnas máquinas elétricas<br />

<strong>de</strong> escrever, abarrotavam os armazéns das estradas<br />

<strong>de</strong> ferro com bilhões <strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> papel impresso. Hou-<br />

* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).


lima barreto<br />

ve um que, narrando todas as conversas e atos do ano,<br />

dia por dia, hora por hora, minuto por minuto, segundo<br />

por segundo, escreveu uma obra <strong>de</strong> 68.922 volumes, com<br />

20.677.711 páginas das quais 3.000.000 alvas e limpas – as<br />

melhores! – significavam as horas <strong>de</strong> seu sono s<strong>em</strong> sonhos.<br />

O autor não omitiu nelas n<strong>em</strong> as or<strong>de</strong>ns aos criados,<br />

n<strong>em</strong> tampouco as frases vulgares que trocamos ao cumprimentar.<br />

Tudo registrou porque, dizia ele, isso aumentava<br />

o peso da obra, portanto, o seu valor.<br />

Era unicamente Júpiter que estava assim: o resto dos<br />

satélites do Sol vivia sofrivelmente… Como, porém, houvess<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>scoberto que todos eles estavam ligados por<br />

uma força oculta que, <strong>em</strong>bora influindo mutuamente<br />

sobre todos eles, pesava mediocr<strong>em</strong>ente sobre os <strong>de</strong>stinos<br />

particulares <strong>de</strong> cada um; e, como também fosse preciso<br />

ser original nos congressos – Júpiter propôs, e todos os<br />

planetas restantes aceitaram, a reunião <strong>de</strong> um congresso<br />

Pan -Planetário.<br />

Era preciso, diziam os <strong>em</strong>baixadores <strong>de</strong> Júpiter, formar<br />

um espírito planetário, <strong>em</strong> contraposição ao espírito<br />

estelar. Com isso, eles escondiam o secreto <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

ven<strong>de</strong>r aos <strong>outros</strong> planetas farpas aperfeiçoadas, r<strong>em</strong>édio<br />

para calos, toneladas <strong>de</strong> um literário papel <strong>de</strong> <strong>em</strong>brulhos<br />

e <strong>outros</strong> produtos similares <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> limites,<br />

não esquecendo o fito <strong>de</strong> conquistar alguns <strong>de</strong>stes últimos<br />

ou parte <strong>de</strong>les.<br />

Todos os <strong>outros</strong> não viram b<strong>em</strong> esse propósito <strong>de</strong> Júpiter;<br />

mas este lhes venceu a resistência, convencendo -os <strong>de</strong><br />

que <strong>de</strong>viam ser originais e chamar a atenção do Universo…<br />

O mundo estelar não nos <strong>de</strong>bocha? Altair não está<br />

s<strong>em</strong>pre a rir -se sarcasticamente <strong>de</strong> nós?<br />

Al<strong>de</strong>barã não nos ameaça com seu rubor? Sírios não<br />

nos <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha? Hav<strong>em</strong>os <strong>de</strong> lho mostrar.<br />

88


89<br />

congresso pan -planetário<br />

A reunião – ficou <strong>de</strong>cidido – teria lugar na Terra. Não<br />

porque a Terra fosse muito po<strong>de</strong>rosa, mas porque, nos<br />

últimos anos, ela instalara nos seus polos uma imensa<br />

buzina que gritava para as estrelas: – “Sou o primeiro planeta<br />

do orbe, tenho estradas <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> metros, sou o<br />

paraíso do Universo” etc. etc.<br />

A buzina era indispensável, visto que os caminhos,<br />

palácios, jardins e teatros, etc. se <strong>de</strong>stinavam aos extraterrestres<br />

e tinham por fim atraí -los, no pensamento <strong>de</strong><br />

que os estranhos viess<strong>em</strong> trazer a segura prosperida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>la – a Terra.<br />

O seu povo, todos conhec<strong>em</strong> -no: é uma gente cheia <strong>de</strong><br />

uma nevoenta poesia, terna, loquaz, um tanto indolente,<br />

mas liberal, por ser relaxada, e generosa, por ser liberal.<br />

São <strong>de</strong>feitos e são qualida<strong>de</strong>s, mesmo porque, para os<br />

povos, não há <strong>de</strong>feitos n<strong>em</strong> qualida<strong>de</strong>s, há características,<br />

e mais nada.<br />

Os <strong>de</strong> Júpiter não são assim: são rígidos, duros e frios,<br />

e têm dois sentimentos dominadores: o do enorme, que é<br />

o seu critério <strong>de</strong> beleza, e o do dourado.<br />

Um habitante do gran<strong>de</strong> planeta, uma vez na Terra,<br />

ao ver pelo crepúsculo o céu banhado <strong>de</strong> ouro liquefeito,<br />

esperneou <strong>de</strong> tal modo e <strong>de</strong> tal modo subiu às montanhas<br />

para colhê -lo que nos antípodas houve um terr<strong>em</strong>oto.<br />

Em vendo a cor do ouro, eles sa<strong>em</strong> bufando, com o<br />

olhar injetado, <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> fúria; e sa<strong>em</strong> matando, estripando<br />

a indiferentes, a amigos, a parentes e até aos pais;<br />

e – curioso – só quer<strong>em</strong> ouro para construir caixões <strong>de</strong><br />

seis léguas <strong>de</strong> altura e seis polegadas quadradas <strong>de</strong> base.<br />

Eis como sent<strong>em</strong> a beleza… A isso juntam um horror<br />

pelos gatos, um ódio idiota e histérico; no entanto, os<br />

“gatos” são bons; se velhos, têm a candura <strong>de</strong> criança; se<br />

crianças, uma grácil espontaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encantar. Mesmo


lima barreto<br />

se não são melhores do que seus companheiros <strong>de</strong> planeta,<br />

são perfeitamente iguais a eles.<br />

Contudo, são doridos e auditivos, o que lhes dá a faculda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> criar uma poesia e uma música próprias, das quais<br />

os <strong>de</strong> Júpiter se aproveitam, à míngua <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r eles mesmos<br />

criar essas manifestações artísticas, pois a sua insensibilida<strong>de</strong><br />

não o permite.<br />

Mas os jupiterianos não os toleram, porque po<strong>de</strong>m os<br />

“gatos” votar, <strong>em</strong>bora foss<strong>em</strong> os próprios algozes <strong>de</strong>stes<br />

que lhes tivess<strong>em</strong> dado esse direito.<br />

Por qualquer dá cá aquela palha, os estúpidos jupiterianos<br />

se reún<strong>em</strong> <strong>em</strong> praça pública e matam a pauladas, à<br />

fouce, s<strong>em</strong> forma <strong>de</strong> processo alguma, sob o pretexto <strong>de</strong><br />

que o “gato” queria casar ou namorava uma filha <strong>de</strong>les.<br />

Lá se chama banditismo e é coisa parecida com o linchamento<br />

yankee.<br />

Um viajante, entretanto, que lá esteve, achou esses<br />

“gatos” excepcionalmente tímidos e doces, admirando-<br />

-se que lá não houvesse mais crimes, provocados pelos<br />

sofrimentos e humilhações que eles sofr<strong>em</strong>.<br />

Persegu<strong>em</strong> -nos <strong>de</strong> um modo bárbaro e covar<strong>de</strong>.<br />

Chamam -nos <strong>de</strong> poltrões, mas quando quer<strong>em</strong> guerrear,<br />

socorr<strong>em</strong> -se <strong>de</strong>les e os “gatos” se portam b<strong>em</strong>. V<strong>em</strong> a paz,<br />

oprim<strong>em</strong> -nos, encurralam -nos mas, assim mesmo, eles<br />

cresc<strong>em</strong> e multiplicam -se… Fraca raça!<br />

Júpiter, como ia dizendo, acudiu ao grito da buzina e<br />

reuniu o congresso na Terra.<br />

Na primeira sessão, logo os jupiterianos falaram na fraternida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> todos os animais do Universo: homens e gatos,<br />

burros e jupiterianos, marcianos e raposos. Um principal<br />

<strong>de</strong> Júpiter até, a esse respeito, fez um discurso muito bonito.<br />

É muito cediça 61 a manobra <strong>de</strong> Júpiter falar s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong><br />

liberda<strong>de</strong>, fraternida<strong>de</strong> etc. Certa vez, ele <strong>de</strong>clarou guerra<br />

90


91<br />

congresso pan -planetário<br />

a Saturno, para libertar -lhe os povos. Logo, porém, que o<br />

venceu, restabeleceu a escravatura que já estava absolvida.<br />

Tal e qual a América do Norte fez com o Texas, província<br />

do México, <strong>em</strong> 1837.<br />

Como todos esperavam, os trabalhos do Congresso<br />

prosseguiram com gran<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>.<br />

Além <strong>de</strong> tratar do estabelecimento <strong>de</strong> pontes pênseis<br />

que ligass<strong>em</strong> todos os planetas entre si, o Congresso votou<br />

as seguintes conclusões sobre a perfeita fraternida<strong>de</strong> animal,<br />

estabelecido nos seguintes pontos:<br />

a) Não se <strong>de</strong>veria comer qualquer animal (boi, carneiro,<br />

porco);<br />

b) As gaiolas dos pássaros <strong>de</strong>veriam ser aumentadas do<br />

dobro, no mínimo;<br />

c) Na caça, uma espingarda não po<strong>de</strong>ria ser carregada<br />

com mais <strong>de</strong> seis grãos <strong>de</strong> chumbo;<br />

d) Generalizar os jogos <strong>de</strong> bola na socieda<strong>de</strong> dos<br />

cabritos.<br />

O programa era vasto e piedoso; e até um principal <strong>de</strong><br />

Júpiter, a esse respeito, orou e citou largamente a Bíblia,<br />

tanto o Antigo como o Novo Testamento, fazendo pena<br />

não haver ali muitas beatas que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> chorar com tal<br />

hom<strong>em</strong>, tão digno <strong>de</strong> vir a substituir são Vicente <strong>de</strong> Paulo,<br />

porque não é próprio citar Sáquia -Múni. 62<br />

O povo da Terra – boa gente! – exultou e encheu -se<br />

<strong>de</strong> orgulho por po<strong>de</strong>r mandar às estrelas este grito: “Não<br />

com<strong>em</strong>os mais bois!! Nada t<strong>em</strong>os com as estrelas!”.<br />

Houve festas: banquetes e bailes para alguns; luminárias<br />

para qu<strong>em</strong> quisesse ver e fantasmagorias surpreen<strong>de</strong>ntes<br />

nos órgãos <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>.<br />

No Céu, porém Sírius sorriu e Altair mais amarela se<br />

fez. Da plêia<strong>de</strong>, duas estrelas <strong>em</strong>pali<strong>de</strong>ceram <strong>de</strong> espanto, e<br />

Al<strong>de</strong>barã quis avisar aos néscios, 63 mas não pô<strong>de</strong>.


lima barreto<br />

Júpiter ven<strong>de</strong>u a todos os seus irmãos toneladas <strong>de</strong> farpas,<br />

<strong>de</strong> r<strong>em</strong>édios para calos, <strong>de</strong> papel literário; e isso com<br />

alguma violência, que me eximo <strong>de</strong> contar. De passag<strong>em</strong>,<br />

digo -lhes que ele ocupou um pedaço <strong>de</strong> Mercúrio…<br />

Se tais produtos não estavam completamente envenenados,<br />

foram, no entanto, <strong>de</strong>letérios. A Terra banalizou -se;<br />

Marte per<strong>de</strong>u a inteligência; Vênus, o amor <strong>de</strong>sinteressado;<br />

Netuno, a bravura generosa; os “gatos” <strong>de</strong> todos os<br />

planetas, contudo, vieram a gozar dos benefícios das instituições<br />

jupiterianas, isto é, foram expulsos da comunhão<br />

dos patrícios.<br />

Sob os bons auspícios <strong>de</strong> Júpiter, foi assim que se fez a<br />

fraternida<strong>de</strong> animal <strong>em</strong> todo o sist<strong>em</strong>a planetário. Sírius<br />

nunca mais cessou <strong>de</strong> sorrir.<br />

92


Hussein Ben -Áli Al -Bálec<br />

e Miqueias Habacuc<br />

(Conto argelino) *<br />

93<br />

Ao senhor Cincinato Braga<br />

Antes da conquista francesa, havia, na Argélia, uma<br />

família composta <strong>de</strong> um velho pai doente e seis filhos<br />

varões. Des<strong>de</strong> muito que o pai, <strong>de</strong>vido aos achaques da<br />

ida<strong>de</strong>, não se entregava diretamente aos trabalhos da sua<br />

lavoura; mas, s<strong>em</strong>pre que o seu estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> lhe permitia,<br />

tinha o cuidado <strong>de</strong> correr as suas terras com plantações,<br />

que eram <strong>de</strong> tâmaras, alfa, oliveiras, laranjeiras,<br />

havendo somente uma parte que era <strong>de</strong>stinada à criação<br />

<strong>de</strong> ovelhas, cabras e bezerros. As plantações e a criação<br />

estavam entregues a cinco dos seus filhos, pois o mais<br />

velho, ele o tinha mandado ao Cairo, para estudar profundamente,<br />

na respectiva universida<strong>de</strong>, a lei do Profeta<br />

e vir a ser um ul<strong>em</strong>á 64 digno e sábio no Corão.<br />

Áli Bálec Al -Bálec era o nome <strong>de</strong>sse filho do velho árabe<br />

e esteve <strong>de</strong> fato no Cairo; mas, b<strong>em</strong> <strong>de</strong>pressa, abandonou<br />

o estudo das santas leis <strong>de</strong> Alá e do Profeta e procurou<br />

a socieda<strong>de</strong> dos infiéis.<br />

* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).


lima barreto<br />

Foi ter nas suas aventuras à Grécia, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>morou<br />

muito t<strong>em</strong>po e adquiriu dos gregos muitos hábitos, costumes<br />

e vícios. Não se po<strong>de</strong> <strong>em</strong> confiança dizer que os<br />

atuais sejam b<strong>em</strong> netos dos antigos; mas são aparentados.<br />

A finura e sagacida<strong>de</strong> dos últimos para abstrações filosóficas,<br />

para especulações científicas, para a análise dos<br />

sentimentos e paixões, do que dão provas as suas obras<br />

<strong>de</strong> filosofia, as suas criações científicas e as suas gran<strong>de</strong>s<br />

obras literárias, <strong>em</strong>pregam nos nossos dias os atuais na<br />

mercancia, no tráfico, no escambo, <strong>em</strong> que s<strong>em</strong>pre procuram,<br />

com a máxima habilida<strong>de</strong> e sabedoria enganar não só<br />

os estrangeiros, como os seus próprios patrícios.<br />

No Oriente, só há um traficante que não seja enganado<br />

pelo grego: é o armênio. Diz -se mesmo lá: o ju<strong>de</strong>u é enganado<br />

pelo grego, mas o armênio engana ambos.<br />

Os turcos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>em</strong> on<strong>de</strong>, matam estes últimos aos<br />

milheiros, não tanto por motivos religiosos, mas por ódio<br />

do comprador cavalheiresco, do hom<strong>em</strong> leal e crédulo,<br />

que se vê enganado <strong>de</strong>spudoradamente, e sente que não<br />

há, no outro que o ludibriou, nenhum princípio <strong>de</strong> honra,<br />

<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> honestida<strong>de</strong>, que as relações entre os<br />

homens o exig<strong>em</strong>.<br />

Ali Bálec Al -Bálec, apesar <strong>de</strong> ser muçulmano, foi atraído<br />

para o meio dos gregos e, com eles, apren<strong>de</strong>u as suas<br />

espertezas, maroscas 65 e habilida<strong>de</strong>s para enganar os<br />

<strong>outros</strong>.<br />

E assim foi que ele andou fora da casa paterna, fazendo<br />

o escambo dos mares do Levante, indo <strong>de</strong> Alexandria<br />

para Constantinopla, daí para Jafa, <strong>de</strong>ste porto para Salônica,<br />

<strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> para Corfu, perlustrando todos aqueles<br />

mares azuis, cheios <strong>de</strong> história, <strong>de</strong> lenda, <strong>de</strong> sangue e piratas,<br />

comerciando e mesmo pirateando quando a ocasião<br />

se lhe oferecia.<br />

94


hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />

Ao saber da morte do pai, ven<strong>de</strong>u logo a faluca 66 que<br />

possuía e correu a receber a herança. Coube -lhe uma gran<strong>de</strong><br />

data <strong>de</strong> terra, coberta <strong>de</strong> pés <strong>de</strong> tâmaras, enquanto os<br />

irmãos tinham as suas cultivadas com alfa, com laranjeiras,<br />

oliveiras e um mesmo recebeu a sua parte <strong>em</strong> terrenos<br />

<strong>de</strong> pastagens magras, on<strong>de</strong> pasciam rebanhos enfezados<br />

<strong>de</strong> ovelhas e cabras.<br />

Todos, porém, ficaram contentes com a partilha e iam<br />

vivendo.<br />

Áli Bálec Al -Bálec trouxera como sua mulher uma<br />

israelita que renegara o Talmu<strong>de</strong> pelo Corão, mas, apesar<br />

disso, tinha o maior <strong>de</strong>sprezo pelos muçulmanos, aos<br />

quais consi<strong>de</strong>rava grosseiros, convencendo <strong>de</strong> tal coisa o<br />

marido a ponto <strong>de</strong>le não dar mais importância aos seus<br />

próprios irmãos.<br />

Logo ao voltar ainda os atendia e os visitava; mas a<br />

mulher lhe dizia s<strong>em</strong>pre:<br />

– Esses teus irmãos são uns brutos! Parec<strong>em</strong> mochos!<br />

Uns bobos! Que sandálias! O pano das suas chéchias 67 é<br />

barato e s<strong>em</strong>pre está sujo! Deixa -os lá!<br />

Aos poucos, <strong>de</strong>vido aos conselhos <strong>de</strong> sua mulher, Salisa,<br />

da sua insistência, ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> procurar os irmãos,<br />

fez -lhes má cara, <strong>em</strong>bora os filhos <strong>de</strong>les viess<strong>em</strong> <strong>de</strong> quando<br />

<strong>em</strong> quando, à casa do tio, para ver o primo Hussein,<br />

que se ia criando mais pérfido que o pai e mais orgulhoso<br />

que a mãe.<br />

Em pouco, Áli ficou inteiramente convencido da sua<br />

imensa superiorida<strong>de</strong> sobre os seus humil<strong>de</strong>s e resignados<br />

irmãos.<br />

Por ter na sua sala um tapete <strong>de</strong> Esmirna, ser<strong>em</strong> as suas<br />

armas <strong>de</strong> aço <strong>de</strong> Damasco, tauxiadas <strong>de</strong> ouro, julgava os<br />

seus manos, que se tinham habituado à simplicida<strong>de</strong> e à<br />

modéstia, como inferiores, iguais aos das tribos negras<br />

95


lima barreto<br />

que viviam para além do <strong>de</strong>serto. Julgando -os assim,<br />

esquecia -se que, enquanto ele viajava, enquanto ele aprendia<br />

aquelas coisas finais, os irmãos plantavam, ceifavam e<br />

colhiam, para ele apren<strong>de</strong>r.<br />

Além disso, Áli, como falasse alguns patoás levantinos,<br />

julgava -se muito mais que todos os do vilaiete 68 e também,<br />

por possuir joias <strong>de</strong> ouro e pedras caras, valendo muitas<br />

piastras, imaginava que tudo podia.<br />

Por esse t<strong>em</strong>po, chegaram os franceses e o cai<strong>de</strong> 69 apelou<br />

para todos, a fim <strong>de</strong> socorrer o bei 70 com homens e<br />

valores. Áli ofereceu uma das joias do seu tesouro e quase<br />

por isso foi <strong>em</strong>palado. O joalheiro do palácio verificou<br />

que as joias eram inteiramente falsas e, vindo o bei a saber<br />

disso, tomou a coisa como afronta e mandou castigar severamente<br />

o doador.<br />

Salisa, sua mulher, ficou, ao conhecer a notícia, no mais<br />

completo <strong>de</strong>sespero, não porque o marido estivesse <strong>em</strong><br />

risco <strong>de</strong> vida, mas pelo fato que a fortuna representada<br />

por aquelas joias não era mais que fumaça.<br />

Áli foi solto e jurou que havia <strong>de</strong> enriquecer <strong>de</strong> novo.<br />

Aceitou s<strong>em</strong> resistência a dominação francesa e, com alegria,<br />

viu que essa dominação trazia uma gran<strong>de</strong> alta para<br />

as tâmaras que o seu terreno produzia prodigiosamente.<br />

Seus irmãos, a seu ex<strong>em</strong>plo, aceitaram os francos e continuaram<br />

na sua modéstia, observando muito religiosamente<br />

as leis do Corão.<br />

Áli, já habituado, <strong>em</strong> pouco se misturou com os infiéis a<br />

qu<strong>em</strong> vendia as tâmaras por bom preço e gastava o grosso<br />

do rendimento que ia tendo <strong>em</strong> bebidas, apesar da proibição<br />

do Corão, <strong>em</strong> orgias com os oficiais e funcionários franceses.<br />

Construiu um palácio que ele pretendia parecido com<br />

aquele do gran<strong>de</strong> califa Harum Al -Raxid, <strong>em</strong> Bagdá, conforme<br />

é <strong>de</strong>scrito no livro <strong>de</strong> histórias da princesa Xeraza<strong>de</strong>.<br />

96


hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />

Vendo que as tâmaras eram muito procuradas pelos<br />

francos que, por elas, pagavam bom dinheiro, por toda<br />

a parte começaram a plantar tâmaras; os irmãos <strong>de</strong> Áli,<br />

porém, não quiseram fazer tal, pois sabiam por experiência<br />

<strong>de</strong> seu pai, que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que houvesse muitas tâmaras<br />

para ven<strong>de</strong>r e, não se precisando <strong>de</strong>sse fruto para o nosso<br />

comer diário, não era possível que muita gente as quisesse<br />

comprar tão caro. Abundando tinham que vendê -las<br />

mais barato, para atingir e provocar os compradores mais<br />

pobres.<br />

Continuaram com a sua alfa, as suas laranjeiras, a pascer<br />

os seus rebanhos, s<strong>em</strong> nenhuma inveja do irmão que<br />

parecia rico e os <strong>de</strong>sprezava.<br />

Os seus sobrinhos, <strong>de</strong> quando <strong>em</strong> quando, iam às terras<br />

do tio e ele, por ostentação, por vaida<strong>de</strong> e para mostrar<br />

riqueza, lhes dava uma libra turca e as crianças voltavam<br />

para casa dos pais, dizendo:<br />

– Tio Áli é que é gente! T<strong>em</strong> tudo! Como ele é rico, por<br />

Alá!<br />

Os seus pais respondiam:<br />

– Cada um se <strong>de</strong>ve conformar com o que Alá lhe dá!<br />

É bom que prospere, pois t<strong>em</strong> família… Deus é Deus e<br />

Maomé é seu profeta.<br />

Veio a morrer Áli, quando as tâmaras começaram a<br />

cair <strong>de</strong> preço. Herdou -lhe os bens, além da mulher, o seu<br />

único filho Hussein Ben -Áli Al -Bálec que tinha todos os<br />

<strong>de</strong>feitos do pai aumentados com os <strong>de</strong> sua mãe.<br />

Era vaidoso, presunçoso, ávido, <strong>de</strong>sprezando os parentes,<br />

para os quais era somítico e avaro, <strong>de</strong>sprezando -os<br />

como se foss<strong>em</strong> animais imundos e tidos <strong>em</strong> maldição<br />

pelas Leis do Profeta. Com os franceses, entretanto, era<br />

mais pródigo do que o pai e fingia ter as suas maneiras<br />

e usos.<br />

97


lima barreto<br />

Nas gazetas que começaram a aparecer <strong>em</strong> Argel,<br />

Hussein Ben -Áli Al -Bálec era gabado e, apesar das leis do<br />

Corão proibir<strong>em</strong> a reprodução da figura humana, uma<br />

<strong>de</strong>las lhe publicou o retrato. As tâmaras começaram a<br />

<strong>de</strong>scer; e, como Hussein tivesse notícias que, duas léguas<br />

próximas, um outro muçulmano possuía uma gran<strong>de</strong><br />

plantação <strong>de</strong>las, começou a pensar que era esta que fazia<br />

<strong>de</strong>scer o preço das suas.<br />

Em Argel, sobretudo no vilaiete <strong>de</strong> Hussein, personificam<br />

-se s<strong>em</strong>pre os fenômenos e a sutileza <strong>de</strong> um plantador<br />

<strong>de</strong> tâmaras não po<strong>de</strong> b<strong>em</strong> conhecer, apesar <strong>de</strong> raça<br />

árabe, o filigranado das induções da economia política…<br />

Imaginou logo <strong>de</strong>struir a plantação e mesmo toda<br />

aquela que aparecesse na redon<strong>de</strong>za. Supôs <strong>de</strong> bom alvitre<br />

ir com alguns homens e queimar os coqueiros. O dono<br />

certamente queixar -se -ia ao cai<strong>de</strong>, às autorida<strong>de</strong>s francas;<br />

e seria uma complicação. Hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> expedientes,<br />

l<strong>em</strong>brou -se <strong>de</strong> conseguir do capitão francês da guarnição,<br />

Al -Durand ou Al -Burhant, a <strong>de</strong>struição do plantio<br />

rival. Habitualmente, fez -se amigo do rume, 71 encheu -o <strong>de</strong><br />

presentes, <strong>de</strong> festas, <strong>de</strong> bebidas, pois seguia o ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong><br />

seu pai nesse tocante; e o “cão do cristão” se fez afinal seu<br />

amigo. Um dia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma festa, o militar, que pisava<br />

indignamente a terra on<strong>de</strong> estavam os ossos do seu pai,<br />

após muitas queixas <strong>de</strong> Áli, apiedado do árabe, apressou-<br />

-se <strong>em</strong> ir à plantação do vizinho e castigá -lo. Assim fez,<br />

com os seus soldados e os ferozes serviçais <strong>de</strong> Hussein.<br />

Houve queixa; o capitão foi punido; mas o saas 72 <strong>de</strong> tâmaras<br />

não subiu n<strong>em</strong> meio gour<strong>de</strong>. 73<br />

As suas finanças iam <strong>de</strong> mal a pior, a casa magnífica<br />

ia dando mostras <strong>de</strong> ruína e os seus móveis e alfaias<br />

<strong>de</strong>terioravam -se com o t<strong>em</strong>po. Sua mãe não cessava <strong>de</strong><br />

censurar -lhe pelas faltas que não lhe cabiam. Ela, com<br />

98


hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />

aquela arrogância muito sua e inveja também muito sua,<br />

repreendia -o:<br />

– Vês: as tâmaras ca<strong>em</strong> <strong>de</strong> preço e tu não tomas providência<br />

alguma. Os meus não são assim… Mas tens o sangue<br />

<strong>de</strong> teu pai… É verda<strong>de</strong> que teus tios estão ven<strong>de</strong>ndo<br />

alfa, oliveiras, gado e laranjas e ganham… Se tu não fizeres<br />

esforço algum, ficarás como eles, uns macacos a viver<br />

<strong>em</strong> tocas e a dormir <strong>em</strong> pelegos <strong>de</strong> carneiro… Xmed, o<br />

teu segundo tio, ganhou duzentas piastras <strong>em</strong> azeitonas e<br />

ficou contente. Queres ser como ele?<br />

– Que hei <strong>de</strong> fazer, mãe?<br />

– Pensa; e não fiques aí a chorar como mulher. Saul<br />

chorou? Davi chorou? Só o Deus dos cristãos chorou: Jeová<br />

não ama o choro. Ele ama a guerra e o combate, até o<br />

extermínio. Lê os livros, os que foram os meus e os teus<br />

que são também agora os meus. L<strong>em</strong>bra -te <strong>de</strong> Débora e <strong>de</strong><br />

Judite e eram mulheres!<br />

Hussein Ben -Áli Al -Bálec não podia dormir com a<br />

impressão das palavras <strong>de</strong> sua mãe. O saas <strong>de</strong> tâmaras<br />

continuava a <strong>de</strong>scer <strong>de</strong> gour<strong>de</strong> <strong>em</strong> gour<strong>de</strong>, e ele só se l<strong>em</strong>brava<br />

<strong>de</strong> Áli, <strong>de</strong> Ornar, <strong>de</strong> todos aqueles <strong>de</strong> sua raça que as<br />

tinham levado <strong>em</strong> meio século, do Ganges ao Ebro. Mas o<br />

saas <strong>de</strong> tâmaras parecia não t<strong>em</strong>er aquelas sombras augustas<br />

e ferozes. Descia s<strong>em</strong>pre.<br />

Certo dia, apareceu -lhe um hom<strong>em</strong> que queria falar<br />

a sua mãe, Salisa. Era o irmão <strong>de</strong>la, Miqueias Habacuc.<br />

A irmã e o sobrinho acolheram muito b<strong>em</strong> tão próximo<br />

parente e lhe falaram na baixa das tâmaras que os atormentava.<br />

Miqueias, que era hom<strong>em</strong> esperto <strong>em</strong> negócios,<br />

disse para o sobrinho:<br />

– Filho <strong>de</strong> minha irmã, tens meu sangue, mas não a<br />

minha fé nos livros santos da sinagoga; mas teus avós Isaque,<br />

Baruque, Daniel, Azaf, Etã, Zabulon, Neftali e tantos<br />

99


lima barreto<br />

<strong>outros</strong> mandam que eu te auxilie nesse transe da tua vida<br />

que é preciosa a eles e a mim, pois ela é <strong>de</strong>les e também<br />

minha. Portanto, tais for<strong>em</strong> os presentes que tu me fizeres,<br />

eu posso purificar -me <strong>de</strong> ter socorrido um ente que não é<br />

<strong>de</strong> Israel. Dize -o que o rabino me perdoará.<br />

Hussein ficou <strong>de</strong> pensar e, à noite, conferenciou com<br />

sua mãe Salisa.<br />

– Filho, dá -lhe alguns cequins turcos e aquelas joias falsas<br />

que quase custaram a morte <strong>de</strong> teu pai. Porque – ouve<br />

b<strong>em</strong> – o conselho <strong>de</strong>le po<strong>de</strong> ser falaz. 74<br />

Despertando Miqueias, logo Hussein foi ter com ele<br />

e propôs -lhe o escambo. O israelita, ao ver as joias, n<strong>em</strong><br />

olhou mais os cequins. Ficou com os olhinhos fosforescentes<br />

<strong>de</strong> tigre na escuridão. Era como se fosse dar um<br />

salto <strong>de</strong> felino. Contou então ao sobrinho como <strong>de</strong>via proce<strong>de</strong>r.<br />

– Tu que tens o sangue <strong>de</strong> minha avó Micaia, que era da<br />

tribo <strong>de</strong> Jeroboão, e <strong>de</strong> Azarela, que era da casa <strong>de</strong> Leedã,<br />

ouve, comprarás todas as tâmaras que houver na redon<strong>de</strong>za,<br />

mesmo antes <strong>de</strong> amadurecer<strong>em</strong>, ficando elas nos pés.<br />

Quando for época <strong>de</strong> colhê -las, colhê -las -ás todas, guardando<br />

<strong>em</strong> surrões nos armazéns <strong>de</strong> tua casa e não ven<strong>de</strong>rás<br />

senão quando te oferecer<strong>em</strong> um lucro que dê a fartar<br />

para gastares…<br />

– Tio amado e sábio: elas não apodrecerão?<br />

– Não importa. As poucas “medidas” <strong>em</strong> que isto acontecer<br />

darão prejuízo, mas tu marcarás o lucro <strong>de</strong> modo<br />

que o cubras.<br />

Hussein Ben -Áli Al -Bálec <strong>de</strong>scansou um instante a<br />

cabeça sobre o peito, <strong>de</strong>pois a ergueu <strong>de</strong> repente e exclamou:<br />

– Falas com a sabedoria do Profeta, Miqueias Habacuc.<br />

Que Alá seja contigo!<br />

100


hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />

Miqueias Habacuc, filho <strong>de</strong> Uriel <strong>de</strong> Sepetai, não se<br />

quis <strong>de</strong>morar mais e partiu <strong>de</strong>spedindo -se da irmã Salisa<br />

e do sobrinho Hussein Ben -Áli Al -Bálec com lágrimas<br />

nos olhos, canastras pesadas com os cequins turcos e as<br />

joias falsas com que o sobrinho lhe pagara o seu profundo<br />

conselho <strong>de</strong> economia política hebraica.<br />

Hussein fez o que lhe foi aconselhado; e as tâmaras<br />

começaram a ter mais oferta <strong>de</strong> preço. Ven<strong>de</strong>u -as com<br />

gran<strong>de</strong> lucro no primeiro ano; no segundo, se sentia uma<br />

certa resistência no mercado, ele as reteve <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte;<br />

mas, no terceiro ano, ele teve que comprar a produção<br />

e viu que ia aumentando o estoque do que se po<strong>de</strong> chamar<br />

<strong>de</strong> valorização das tâmaras. Viu b<strong>em</strong> que se continuasse<br />

a comprar a produção, ficaria com ele <strong>de</strong>masiado aumentado,<br />

a sua fortuna comprometida e que fez? Ce<strong>de</strong>u. As<br />

tâmaras começaram a <strong>de</strong>scer gour<strong>de</strong> a gour<strong>de</strong>. Teve uma<br />

i<strong>de</strong>ia que um sargento francês lhe indicou. Vendo que elas<br />

encalhavam nos seus armazéns e os pedidos cresciam lentamente;<br />

vendo, pouco a pouco, os seus coquinhos per<strong>de</strong>ndo<br />

o valor, alugou alguns gritadores que berrass<strong>em</strong>,<br />

nas ruas <strong>de</strong> Argel, a guerreira:<br />

– Vivam as tâmaras! Não há coisa melhor que as tâmaras<br />

<strong>de</strong> Hussein Ben -Áli Al -Bálec!<br />

Nas gazetas, ele pagava anúncios das suas tâmaras, mas<br />

não vendia mais que dantes. Deu -as <strong>de</strong> graça e, como toda<br />

coisa dada <strong>de</strong> graça, elas só agradavam <strong>de</strong>sse modo.<br />

Em se tratando <strong>de</strong> vendê -las, nada! Os surrões <strong>de</strong> tâmaras<br />

aumentavam nos seus armazéns, pois teimava <strong>em</strong><br />

comprá -las e guardá -las, para que elas não viess<strong>em</strong> afinal<br />

a não valer nada.<br />

O tapete <strong>de</strong> Esmirna que o pai lhe <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong>sfiava -se,<br />

<strong>em</strong>penhou as armas preciosas, também a herança do pai,<br />

para comprar mais sacas <strong>de</strong> tâmaras. Comprou um tapete<br />

101


lima barreto<br />

falso e umas armas vagabundas <strong>de</strong> um cabila 75 mais vagabundo<br />

ainda, para pôr no lugar das antigas preciosida<strong>de</strong>s.<br />

Os <strong>outros</strong> plantadores, que se tinham limitado a colher e<br />

ven<strong>de</strong>r, iam vivendo das suas mo<strong>de</strong>stas plantações; ele,<br />

Hussein Ben -Áli Al -Bálec, corria para a ruína certa.<br />

Foi por aí que, <strong>nova</strong>mente, lhe apareceu Miqueias<br />

Habacuc, seu tio, hom<strong>em</strong> hábil e esperto nos negócios.<br />

Hussein ficou espantado, mas o tio lhe disse:<br />

– Rebento da minha querida irmã, pelo Deus <strong>de</strong><br />

Abraão, <strong>de</strong> Israel e <strong>de</strong> Jacó, não te amedrontes: vendi as<br />

joias por um bom preço a um grego, com o que ganhei<br />

duas coisas: dinheiro e a glória <strong>de</strong> ter enganado um cão<br />

<strong>de</strong>ssa espécie. Mas, pelo Eterno! Esta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pagar -me o<br />

conselho <strong>em</strong> joias falsas não é tua… Isto t<strong>em</strong> <strong>de</strong>do <strong>de</strong> pessoa<br />

inteiramente da minha raça <strong>de</strong> Mardoc e Malaquias…<br />

Isto é <strong>de</strong> minha irmã! Não foi tua mãe qu<strong>em</strong>…<br />

– Foi. E que fizeste do dinheiro, tio amado da minha<br />

alma; socorro da minha vida?<br />

– Emprestei -o aos turcos com bons juros e quando os<br />

cobrei, quase me esfolaram. Muito t<strong>em</strong> sofrido a raça <strong>de</strong><br />

Israel; mas o que sofri <strong>de</strong>les, n<strong>em</strong> contar te posso – ó <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte<br />

do gran<strong>de</strong> Al -Bálec, companheiro <strong>de</strong> Musa –<br />

conquistador das Espanhas!<br />

Acabava <strong>de</strong> dizer estas palavras, quando entra no aposento<br />

<strong>em</strong> que estavam Salisa, a feroz Judite, a eloquente<br />

Débora – que, ao dar com o irmão, se põe <strong>em</strong> prantos,<br />

exclamando:<br />

– Irmão do coração, sábio Miqueias! Tu que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>s<br />

como eu <strong>de</strong> Micaia, da tribo <strong>de</strong> Jeroboão, e <strong>de</strong> Azarela, que<br />

era da casa <strong>de</strong> Leedã, salva -me pelo nosso Deus <strong>de</strong> Abraão,<br />

<strong>de</strong> Israel e <strong>de</strong> Jacó – salva -me!<br />

E a feroz Judite e eloquente Débora chorou não a sua<br />

dor, n<strong>em</strong> a dos <strong>outros</strong>, mas o dinheiro que se sumia.<br />

102


hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />

Contou, então, Hussein ao tio, como a ruína se aproximava;<br />

como a valorização das tâmaras, no começo dando<br />

tão bom resultado, viera a acabar, no fim, <strong>em</strong> <strong>de</strong>sastre<br />

completo.<br />

O velho Miqueias, filho <strong>de</strong> Uriel <strong>de</strong> Sepetai, coçou as<br />

barbas hirsutas; os seus olhinhos luziram naquele quadro<br />

<strong>de</strong> pelos cerdosos; <strong>de</strong>pois, faiscando -os malignamente,<br />

perguntou ao sobrinho:<br />

– Com que dinheiro tu, sobrinho meu; com que dinheiro<br />

fizeste a operação?<br />

Hussein disse -lhe que fora com o dinheiro <strong>de</strong>le e o da<br />

sua mãe. Miqueias Habacuc, ju<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Salônica, hom<strong>em</strong><br />

esperto e hábil <strong>em</strong> negócios, sorriu com gosto e <strong>de</strong>mora,<br />

dizendo após:<br />

– Tolo que és!<br />

– Por quê?<br />

Habacuc assim falou <strong>de</strong> súbito, logo imediatamente à<br />

pergunta:<br />

– Que me darás <strong>em</strong> troca pela explicação?<br />

– A última bolsa <strong>de</strong> cequins <strong>de</strong> ouro que me resta.<br />

– És generoso e gran<strong>de</strong>, sobrinho meu, filho <strong>de</strong> Salisa,<br />

minha irmã, guarda -a. Ganhar<strong>em</strong>os mais. Fizeste mal <strong>em</strong><br />

<strong>em</strong>pregar o teu dinheiro e o da tua mãe. Devias <strong>em</strong>pregar<br />

o dos <strong>outros</strong>.<br />

– Como, tio Miqueias?<br />

– Tu não sabes, meu sobrinho, essas operações <strong>de</strong><br />

câmbio e <strong>de</strong> banco. Eu as sei. Nós agora vamos organizar<br />

a <strong>de</strong>fesa das tâmaras, isto é, impedir que especuladores<br />

reduzam à miséria e à <strong>de</strong>solação esta rica região do<br />

Magreb, como dizia o teu gran<strong>de</strong> avô, Al -Bálec. Vamos<br />

pedir dinheiro aos seus habitantes, para que não morram<br />

<strong>de</strong> fome e não pereçam à míngua por falta <strong>de</strong> trabalho.<br />

– Não me darão, tio.<br />

103


lima barreto<br />

– Dar -te -ão, sobrinho do meu coração; dar -te -ão. Chama<br />

teus tios, irmãos <strong>de</strong> teu pai, e os filhos, e convence -os<br />

que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> dar as economias que têm, <strong>em</strong> moeda, para<br />

po<strong>de</strong>res lutar com os que quer<strong>em</strong> acabar com as plantações<br />

<strong>de</strong> tâmaras do vilaiete. Dize -lhes que se não o fizer<strong>em</strong><br />

as plantações morrerão, os habitantes fugirão, aqui ficará<br />

tudo <strong>de</strong>serto, s<strong>em</strong> água e s<strong>em</strong> pastagens; e os bens <strong>de</strong>les<br />

nada valerão e serão também eles obrigados a fugir, per<strong>de</strong>ndo<br />

muito, senão tudo.<br />

– E <strong>em</strong> troca?<br />

– Tu lhes darás vales que vencerão juros e pagarás os<br />

vales <strong>em</strong> certo prazo.<br />

– Mas…<br />

– Nada objetes, meio do meu sangue <strong>de</strong> Sepetai, mas<br />

meu sobrinho inteiramente. Não sabes o que é a cobiça;<br />

não sabes o que é querer ter dinheiro s<strong>em</strong> trabalhar. Eles<br />

aceitarão na certa e, não sendo ricos <strong>em</strong> breve precisarão<br />

<strong>de</strong> dinheiro. Eu vou pôr um “bazar” com o saco <strong>de</strong> cequins<br />

<strong>de</strong> ouro que te resta e farei saber que <strong>de</strong>sconte esses vales<br />

teus, <strong>em</strong> dinheiro ou <strong>em</strong> mercadoria. O pouco dinheiro<br />

que tens atrairá o <strong>de</strong>les, tu comprarás tâmaras, mas pagarás<br />

<strong>em</strong> vales que vencerão o juro <strong>de</strong> dois por cento, mas<br />

que eu <strong>de</strong>scontarei a vinte, trinta e mais por cento.<br />

– Se não quiser<strong>em</strong> <strong>de</strong>scontar, tio que és sábio como o<br />

mais sábio dos ul<strong>em</strong>ás, como há <strong>de</strong> ser?<br />

– Tens o dinheiro dos teus parentes. Em começo, pagarás<br />

tudo <strong>em</strong> dinheiro. Mas teus parentes, precisando <strong>de</strong><br />

dinheiro, irão, como te disse, procurar -me. Eu os aten<strong>de</strong>rei<br />

imediatamente. A fama correrá e ninguém t<strong>em</strong>erá<br />

receber os teus vales.<br />

– Compreendo. E as tâmaras?<br />

– Irás ven<strong>de</strong>ndo a bom preço e guardando o dinheiro,<br />

<strong>de</strong>ixando que uma gran<strong>de</strong> parte apodreça. Tu viverás na<br />

104


hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />

pompa, na gran<strong>de</strong>za, e um belo dia, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> eu <strong>de</strong>scontar<br />

vales, adquiro -os com ágio. Toda a gente quererá os<br />

teus vales e encher<strong>em</strong>os as arcas <strong>de</strong> dinheiro.<br />

– E no fim, no pagamento, como será?<br />

– Marcarás um prazo longo, pela festa do Beirão, e<br />

daqui até lá ter<strong>em</strong>os t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> agir.<br />

Hussein Ben -Áli Al -Bálec <strong>em</strong>pregou todas as lábias<br />

que lhe ensinou Miqueias Habacuc. Seus tios e primos<br />

entregaram -lhe as economias, pois ficaram muito contentes<br />

que ele se l<strong>em</strong>brasse <strong>de</strong> <strong>de</strong>fendê -los, <strong>de</strong> impedir a ser<br />

completa a miséria. Tio e sobrinho encheram os simplórios<br />

homens <strong>de</strong> todos os afagos, <strong>de</strong> todas as blandícias, 76<br />

e iniciaram a <strong>de</strong>fesa das tâmaras, que era a própria <strong>de</strong>fesa<br />

do vilaiete.<br />

Um único não quis entregar as terras <strong>de</strong> pastag<strong>em</strong>. Foi<br />

o tio que herdara as terras <strong>de</strong> pastag<strong>em</strong>. Dissera o velho:<br />

– As tâmaras não são do gosto <strong>de</strong> todo o mundo e as que<br />

se colh<strong>em</strong> são <strong>de</strong> sobra para os que gostam <strong>de</strong>las. Hão <strong>de</strong><br />

se as ven<strong>de</strong>r barato por força, pois são <strong>de</strong>mais.<br />

Hussein Ben -Áli Al -Bálec, porém, <strong>de</strong>u início à sua obra<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> eficácia para todo o vilaiete, ostentando uma<br />

riqueza, um luxo e uma magnificência que reduziram,<br />

fascinaram a imaginação do povo do lugar e das circunvizinhanças.<br />

O seu palácio foi aumentado; as suas estrebarias ficaram<br />

cheias <strong>de</strong> soberbos ginetes do Hedjaz, nas suas piscinas<br />

só corriam águas perfumadas – tudo ficou sendo um<br />

encanto no seu alcáçar 77 e <strong>de</strong>pendências.<br />

A fama <strong>de</strong> sua riqueza corria por toda a parte e até, <strong>em</strong><br />

Argel, a branca, a guerreira, seu nome era falado. Dizia a<br />

boca do povo:<br />

– Se todos foss<strong>em</strong> como Hussein Ben -Áli Al -Bálec conquistaríamos<br />

todo o Magreb, expulsando os rumes.<br />

105


lima barreto<br />

O seu crédito ficou sendo tal que todo o dinheiro que<br />

havia naquelas terras entrou para as suas arcas.<br />

As tâmaras subiram <strong>de</strong> preço, <strong>de</strong> fato; mas pouco.<br />

Entretanto, enquanto vendia um terço, guardava dois.<br />

Miqueias Habacuc exultava, com os <strong>de</strong>s<strong>contos</strong> que fazia<br />

e com o dinheiro que era trazido para as mãos do sobrinho.<br />

Só a irmã, a feroz Salisa, t<strong>em</strong>ia o fim e perguntava<br />

ao irmão:<br />

– Como pagar<strong>em</strong>os tantos vales, se já gastamos o<br />

dinheiro <strong>de</strong>les e t<strong>em</strong>os mais tâmaras guardadas que vendidas?<br />

– Cala -te, irmã que és minha. Aí é que está a minha<br />

gran<strong>de</strong> sabedoria.<br />

O dinheiro amoedado <strong>de</strong>sapareceu e os vales <strong>de</strong><br />

Hussein corriam como moeda. No começo equivaliam ao<br />

seu valor <strong>em</strong> cequins; mas, b<strong>em</strong> <strong>de</strong>pressa, para se comprar<br />

com eles um saas <strong>de</strong> trigo, tinha -se <strong>de</strong> gastar o duplo do<br />

que se gastava antigamente. O povo começava a <strong>de</strong>sconfiar,<br />

quando veio rebentar a guerra <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>lcá<strong>de</strong>r, <strong>em</strong>ir<br />

<strong>de</strong> Mascara. Andava ele precisando <strong>de</strong> homens e víveres.<br />

O <strong>em</strong>ir, que sabia do prestígio <strong>de</strong> Hussein naquele vilaiete,<br />

oferece -lhe alguns milhares <strong>de</strong> libras turcas, para que<br />

mandasse homens.<br />

Miqueias, que sabe do caso, intervém, e propõe que o<br />

sobrinho aceite, contanto que o <strong>em</strong>ir lhe compre as tâmaras.<br />

O <strong>em</strong>ir ace<strong>de</strong>, paga as mil libras turcas, compra as<br />

tâmaras <strong>de</strong> que não precisava.<br />

E Hussein convence os parentes que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> partir para<br />

os goums. 78 Para isso falou como um santo marabuto. 79<br />

Antes da festa do Beirão, época que era marcada para<br />

o vencimento dos vales, fugia, com a mãe, a feroz Salisa,<br />

o tio Miqueias Habacuc, hom<strong>em</strong> hábil e esperto <strong>em</strong> negócios<br />

– cheios todos <strong>de</strong> ouro, ricos <strong>de</strong> apodrecer.<br />

106


hussein ben -áli al -bálec e miqueias habacuc<br />

No vilaiete a população caiu na miséria, menos aquele<br />

tio <strong>de</strong> Hussein Ben -Áli Al -Bálec, que não quis entrar na<br />

<strong>de</strong>fesa das tâmaras.<br />

Durante muito t<strong>em</strong>po, pastoreou as suas ovelhas e<br />

tosou os seus carneiros. Os seus netos ainda hoje faz<strong>em</strong><br />

a mesma coisa naquele lugarejo argelino, on<strong>de</strong> as inocentes<br />

tamareiras, se não constitu<strong>em</strong> objeto <strong>de</strong> maldição, são<br />

tidas como simples árvores <strong>de</strong> adorno.<br />

107


O feiticeiro e o <strong>de</strong>putado *<br />

Nos arredores do “Posto Agrícola <strong>de</strong> Cultura Experimental<br />

<strong>de</strong> Plantas Tropicais”, que, como se sabe, fica no<br />

município Contra -Almirante Doutor Fre<strong>de</strong>rico Antônio<br />

da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante<br />

singular.<br />

Conheciam -no no lugar, que, antes do batismo burocrático,<br />

tivera o nome doce e espontâneo <strong>de</strong> Inhangá, por “feiticeiro”;<br />

o mesmo, certa vez a ativa polícia local, <strong>em</strong> falta do<br />

que fazer, chamou -o a explicações. Não julgu<strong>em</strong> que fosse<br />

negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo<br />

o povo das redon<strong>de</strong>zas teimava <strong>em</strong> chamá -lo <strong>de</strong> “feiticeiro”.<br />

É b<strong>em</strong> possível que essa alcunha tivesse tido orig<strong>em</strong> no<br />

mistério <strong>de</strong> sua chegada e na extravagância <strong>de</strong> sua maneira<br />

<strong>de</strong> viver.<br />

Fora mítico o seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barque. Um dia apareceu numa<br />

das praias do município e ficou, tal e qual Manco Capac, 80<br />

no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas.<br />

Comprou, por algumas centenas <strong>de</strong> mil -réis, um pequeno<br />

sítio com uma miserável choça, coberta <strong>de</strong> sapé, pare<strong>de</strong>s a<br />

* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).<br />

109


lima barreto<br />

sopapo; e tratou <strong>de</strong> cultivar -lhe as terras, vivendo taciturno<br />

e s<strong>em</strong> relações quase.<br />

A meia encosta da colina, o seu casebre crescia como<br />

um cômoro <strong>de</strong> cupins; ao redor, os cajueiros, as bananeiras<br />

e as laranjeiras afagavam -no com amor; e cá <strong>em</strong>baixo,<br />

no sopé do morrote, <strong>em</strong> torno do poço <strong>de</strong> água salobre,<br />

as couves rever<strong>de</strong>sciam nos canteiros, aos seus cuidados<br />

incessantes e tenazes.<br />

Era moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos<br />

anos; e um olhar doce e triste, errante e triste e duro, se<br />

fitava qualquer coisa.<br />

Toda a manhã viam -no <strong>de</strong>scer à rega das couves; e, pelo<br />

dia <strong>em</strong> fora, roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe falavam,<br />

dizia:<br />

– “Seu” Ernesto t<strong>em</strong> visto como a seca anda “brava”.<br />

– É verda<strong>de</strong>.<br />

– Neste mês “todo” não t<strong>em</strong>os chuva.<br />

– Não acho… Abril, águas mil.<br />

Se lhe interrogavam sobre o passado, calava -se; ninguém<br />

se atrevia a insistir e ele continuava na sua faina hortícola,<br />

à marg<strong>em</strong> da estrada.<br />

À tar<strong>de</strong>, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando<br />

as tar<strong>de</strong>s são longas, ainda era visto <strong>de</strong>pois, sentado à porta <strong>de</strong><br />

sua choupana. A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia,<br />

o Dom Quixote, a Divina comédia, o Robinson e o Pensées,<br />

<strong>de</strong> Pascal. O seu primeiro ano ali <strong>de</strong>via ter sido <strong>de</strong> torturas.<br />

A <strong>de</strong>sconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas<br />

certamente teriam -no feito sofrer muito, tanto mais que<br />

já <strong>de</strong>via ter chegado sofrendo muito profundamente, por<br />

certo <strong>de</strong> amor, pois todo o sofrimento v<strong>em</strong> <strong>de</strong>le.<br />

Se se é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é<br />

b<strong>em</strong> este que nos provoca a dor moral: é a certeza <strong>de</strong> que<br />

ele não nos <strong>de</strong>ixa amar plenamente…<br />

110


111<br />

o feiticeiro e o <strong>de</strong>putado<br />

Cochichavam que matara, que roubara, que falsificara;<br />

mas a palavra do <strong>de</strong>legado do lugar, que indagara dos<br />

seus antece<strong>de</strong>ntes, levou a todos confiança no moço, s<strong>em</strong><br />

que per<strong>de</strong>sse a alcunha e a suspeita <strong>de</strong> feiticeiro. Não era<br />

um malfeitor; mas entendia <strong>de</strong> mandingas. A sua bonda<strong>de</strong><br />

natural para tudo e para todos acabou <strong>de</strong>sarmando a<br />

população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro<br />

bom.<br />

Um dia sinhá Chica animou -se a consultá -lo:<br />

– “Seu” Ernesto: viraram a cabeça <strong>de</strong> meu filho… Deu<br />

“pa bebê”… “Tá arrelaxando”…<br />

– Minha senhora, que hei <strong>de</strong> eu fazer?<br />

– O “sinhô” po<strong>de</strong>, sim! “Conversa cum” santo…<br />

O solitário, encontrando -se por acaso, naquele mesmo<br />

dia, com o filho da pobre rapariga, disse lhe doc<strong>em</strong>ente<br />

estas simples palavras:<br />

– Não beba, rapaz. É feio, estraga – não beba!<br />

E o rapaz pensou que era o Mistério qu<strong>em</strong> lhe falava e<br />

não bebeu mais. Foi um milagre que mais repercutiu com<br />

o que contou o Teófilo Can<strong>de</strong>eiro.<br />

Este incorrigível bebaço, a qu<strong>em</strong> atribuíam a invenção<br />

do tratamento das sezões, 81 pelo parati, dias <strong>de</strong>pois,<br />

<strong>em</strong> um cavaco <strong>de</strong> venda, narrou que vira, uma tardinha,<br />

aí quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do<br />

“hom<strong>em</strong>” um pássaro branco, gran<strong>de</strong>, maior do que um<br />

pato; e, por baixo do seu voo rasteiro, as árvores todas se<br />

abaixavam, como se quisess<strong>em</strong> beijar a terra.<br />

Com essas e outras, o solitário <strong>de</strong> Inhangá ficou sendo<br />

como um príncipe encantado, um gênio bom, a qu<strong>em</strong> não<br />

se <strong>de</strong>via fazer mal.<br />

Houve mesmo qu<strong>em</strong> o supusesse um Cristo, um Messias.<br />

Era a opinião do Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo<br />

sacristão, que dava a Deus e a César o que era <strong>de</strong> um


lima barreto<br />

e o que era <strong>de</strong> outro; mas o escriturário do posto, “seu”<br />

Almada, contrariava -o, dizendo que se o primeiro Cristo<br />

não existiu, então um segundo!…<br />

O escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que<br />

escrevia <strong>em</strong> ortografia pretensiosa os pálidos ofícios,<br />

r<strong>em</strong>etendo mudas <strong>de</strong> laranjeiras e abacateiros para o Rio.<br />

A opinião do escriturário era <strong>de</strong> exegeta, 82 mas a do<br />

médico era <strong>de</strong> psiquiatra.<br />

Esse “anelado” ainda hoje é um enfezadinho, muito<br />

lido <strong>em</strong> livros grossos e conhecedor <strong>de</strong> uma quantida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> nomes <strong>de</strong> sábios; e diagnosticou: um puro louco.<br />

Esse “anelado” ainda hoje é uma esperança <strong>de</strong> ciência…<br />

O “feiticeiro”, porém, continuava a viver no seu rancho<br />

sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas<br />

do doutor e do escriturário, o seu <strong>de</strong>sdém soberano <strong>de</strong><br />

miserável in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte; e ao estulto julgamento do bondoso<br />

Mané Bitu, a doce compaixão <strong>de</strong> sua alma terna e<br />

afeiçoada…<br />

De manhã e à tar<strong>de</strong>, regava as suas couves; pelo dia <strong>em</strong><br />

fora, plantava, colhia, fazia e rachava lenha, que vendia<br />

aos feixes, ao Mané Bitu, para po<strong>de</strong>r comprar as utilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> que necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase<br />

só naquele município <strong>de</strong> Inhangá, hoje burocraticamente<br />

chamado – “Contra -Almirante Doutor Fre<strong>de</strong>rico Antônio<br />

da Mota Batista”.<br />

Um belo dia foi visitar o posto o Deputado Braga, um<br />

elegante senhor, b<strong>em</strong> posto, polido e cético.<br />

O diretor não estava, mas o doutor Chupadinho, o<br />

sábio escriturário Almada e o ven<strong>de</strong>iro Bitu, representando<br />

o “capital” da localida<strong>de</strong>, receberam o parlamentar<br />

com todas as honras e não sabiam como agradá -lo.<br />

Mostraram -lhe os recantos mais agradáveis e pinturescos,<br />

as praias longas e brancas e também as estranguladas<br />

112


113<br />

o feiticeiro e o <strong>de</strong>putado<br />

entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios<br />

e cismadores do alto das colinas; as plantações <strong>de</strong> batatas-<br />

-doces; a ceva dos porcos…<br />

Por fim, ao <strong>de</strong>putado que já se ia fatigando com aqueles<br />

dias, a passar tão cheio <strong>de</strong> assessores, o doutor Chupadinho<br />

convidou:<br />

– Vamos ver, doutor, um <strong>de</strong>generado que passa por santo<br />

ou feiticeiro aqui. É um <strong>de</strong>mentado que, se a lei fosse lei,<br />

já <strong>de</strong> há muito estaria aos cuidados da ciência, <strong>em</strong> algum<br />

manicômio.<br />

E o escriturário acrescentou:<br />

– Um maníaco religioso, um raro ex<strong>em</strong>plar daquela<br />

espécie <strong>de</strong> gente com que as outras ida<strong>de</strong>s fabricavam os<br />

seus santos.<br />

E o Mané Bitu:<br />

– É um rapaz honesto… Bom moço – é o que posso<br />

dizer <strong>de</strong>le.<br />

O <strong>de</strong>putado, s<strong>em</strong>pre cético e complacente, concordou<br />

<strong>em</strong> acompanhá -los à morada do feiticeiro. Foi s<strong>em</strong> curiosida<strong>de</strong>,<br />

antes indiferente, com uma ponta <strong>de</strong> tristeza no olhar.<br />

O “feiticeiro” trabalhava na horta, que ficava ao redor<br />

do poço, na várzea, à beira da estrada.<br />

O <strong>de</strong>putado olhou -o e o solitário, ao tropel <strong>de</strong> gente,<br />

ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada,<br />

voltou -se e fitou os quatro. Encarou mais firm<strong>em</strong>ente o<br />

<strong>de</strong>sconhecido e parecia procurar r<strong>em</strong>iniscências. O legislador<br />

fitou -o também um instante e, antes que pu<strong>de</strong>sse o<br />

“feiticeiro” dizer qualquer coisa, correu até ele e abraçou -o<br />

muito e <strong>de</strong>moradamente.<br />

– És tu, Ernesto?<br />

– És tu, Braga?<br />

Entraram. Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte<br />

e os dois conversaram particularmente.


lima barreto<br />

Quando saíram, Almada perguntou:<br />

– O doutor conhecia -o?<br />

– Muito. Foi meu amigo e colega.<br />

– É formado? indagou o doutor Chupadinho.<br />

– É.<br />

– Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus ares,<br />

a maneira com que se porta fizeram -me crer isso; o povo,<br />

porém…<br />

– Eu também, observou Almada, s<strong>em</strong>pre tive essa opinião<br />

íntima; mas essa gente por aí leva a dizer…<br />

– Cá para mim, disse Bitu, s<strong>em</strong>pre o tive por honesto.<br />

Paga s<strong>em</strong>pre as suas contas.<br />

E os quatro voltaram <strong>em</strong> silêncio para a se<strong>de</strong> do “Posto<br />

Agrícola <strong>de</strong> Cultura Experimental <strong>de</strong> Plantas Tropicais”.<br />

114


Uma noite no Lírico *<br />

Poucas vezes ia ao antigo Pedro II, 83 e as poucas <strong>em</strong> que<br />

lá fui, era das galerias que assistia ao espetáculo.<br />

Munido do competente bilhete, às oito horas, entrava,<br />

subia, procurava o lugar marcado e nele mantinha -me,<br />

durante a representação. De forma que aquela socieda<strong>de</strong><br />

brilhante que eu via formigar nos camarotes e nas ca<strong>de</strong>iras,<br />

me aparecia distante, colocada muito afastada <strong>de</strong><br />

mim, <strong>em</strong> lugar inacessível, no fundo <strong>de</strong> cratera <strong>de</strong> vulcão<br />

extinto. Cá do alto, <strong>de</strong>bruçado na gra<strong>de</strong>, eu sorvia o<br />

vazio da sala com a volúpia <strong>de</strong> uma atração <strong>de</strong> abismo. As<br />

casacas corretas, os uniformes aparatosos, as altas toaletes<br />

das senhoras, s<strong>em</strong>eadas entre eles, tentavam -me,<br />

hipnotizavam -me. Decorava os movimentos, os gestos<br />

dos cavalheiros e procurava <strong>de</strong>scobrir a harmonia oculta<br />

entre eles e os risos e os a<strong>de</strong>manes 84 das damas.<br />

Nos intervalos, encostado a uma das colunas que sustentam<br />

o teto, observando os camarotes, apurava o meu<br />

estudo do hors ‑ligne, 85 do distinto, com os espectadores<br />

que ficavam nas lojas.<br />

* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).<br />

115


lima barreto<br />

Via correr<strong>em</strong> -se -lhes os reposteiros, e os cavalheiros<br />

b<strong>em</strong> encasacados, juntar<strong>em</strong> os pés, curvar<strong>em</strong> ligeiramente<br />

o corpo, apertar<strong>em</strong> ou mesmo beijar<strong>em</strong> a mão das damas<br />

que se mantinham eretas, encostadas a uma das ca<strong>de</strong>iras,<br />

<strong>de</strong> costas para a sala, com o leque <strong>em</strong> uma das mãos caídas<br />

ao longo do corpo. Quantas vezes não tive ímpetos <strong>de</strong><br />

ali mesmo, com risco <strong>de</strong> parecer doido ao polícia vizinho,<br />

imitar aquele cavalheiro?<br />

Quase tomava notas, <strong>de</strong>senhava esqu<strong>em</strong>as da postura,<br />

das maneiras, das mesuras do elegante senhor…<br />

Havia naquilo tudo, na singular concordância dos<br />

olhares e gestos, dos a<strong>de</strong>manes e posturas dos interlocutores,<br />

uma relação oculta, uma vaga harmonia, uma <strong>de</strong>liciosa<br />

equivalência que mais do que o espetáculo do palco,<br />

me interessavam e seduziam. E tal era o ascen<strong>de</strong>nte que<br />

tudo isso tinha sobre o meu espírito que, ao chegar <strong>em</strong><br />

casa, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>itar, quase repetia, com o meu velho chapéu<br />

<strong>de</strong> feltro, diante do meu espelho ordinário, as performances<br />

do cavalheiro.<br />

Quando cheguei ao quinto ano do curso e os meus <strong>de</strong>stinos<br />

me impuseram, resolvi habilitar -me com uma casaca<br />

e uma assinatura <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ira do Lírico. Fiz consignações e<br />

toda a espécie <strong>de</strong> agiotag<strong>em</strong> com os meus vencimentos <strong>de</strong><br />

funcionário público e para lá fui.<br />

Nas primeiras representações, pouco familiarizado<br />

com aquele mundo, não tive gran<strong>de</strong>s satisfações; mas, por<br />

fim, habituei -me.<br />

As criadas não se faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> instantes duquesas? Eu me<br />

fiz logo hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>.<br />

O meu colega Cardoso, moço rico, cujo pai enriquecera<br />

na indústria das in<strong>de</strong>nizações, muito concorreu para isso.<br />

Fora simples a ascensão do pai à riqueza. Pelo t<strong>em</strong>po<br />

do governo provisório, o velho Cardoso pedira concessão<br />

116


117<br />

uma noite no lírico<br />

para instalar uns poucos <strong>de</strong> burgos agrícolas, com colonos<br />

javaneses, nas nascentes do Purus; mas, não os tendo<br />

instalado no prazo, o governo seguinte cassou o contrato.<br />

Aconteceu, porém, que ele provou ter construído lá<br />

um rancho <strong>de</strong> palha. Foi para os tribunais que lhe <strong>de</strong>ram<br />

ganho <strong>de</strong> causa, e recebeu <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização cerca <strong>de</strong> quinhentos<br />

<strong>contos</strong>.<br />

Encarregou -se o jov<strong>em</strong> Cardoso <strong>de</strong> me apresentar<br />

ao “mundo”, <strong>de</strong> me informar sobre toda aquela gente.<br />

L<strong>em</strong>bro -me b<strong>em</strong> que, certa noite, me levou ao camarote<br />

dos viscon<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jacarepaguá. A viscon<strong>de</strong>ssa estava só; o<br />

marido e a filha tinham ido ao bufê. Era a viscon<strong>de</strong>ssa uma<br />

senhora idosa, <strong>de</strong> traços <strong>em</strong>pastados, s<strong>em</strong> relevo algum, <strong>de</strong><br />

ventre pro<strong>em</strong>inente, com um pince ‑nez <strong>de</strong> ouro trepado<br />

sobre o pequeno nariz e s<strong>em</strong>pre a agitar o cordão <strong>de</strong> ouro<br />

que prendia um gran<strong>de</strong> leque rococó.<br />

Quando entramos, estava sentada, com as mãos unidas<br />

sobre o ventre, tendo o fatal leque entre elas, o corpo<br />

inclinado para trás e a cabeça a repousar sobre o espaldar<br />

da ca<strong>de</strong>ira. Mal <strong>de</strong>smanchou a posição <strong>em</strong> que estava, respon<strong>de</strong>u<br />

maternalmente aos cumprimentos, e interrogou<br />

o meu amigo sobre a família.<br />

– Não <strong>de</strong>sceram <strong>de</strong> Petrópolis, este ano?<br />

– Meu pai não t<strong>em</strong> querido… Há tanta bexiga…<br />

– Que medo tolo! Não acha doutor? dirigindo -se a<br />

mim.<br />

Respondi:<br />

– Penso assim também, viscon<strong>de</strong>ssa.<br />

Ela ajuntou então:<br />

– Olhe, doutor… como é a sua graça?<br />

– Bastos, Fre<strong>de</strong>rico.<br />

– Olhe, doutor Fre<strong>de</strong>rico; lá <strong>em</strong> casa, havia uma rapariga…<br />

uma negra… boa rapariga…


lima barreto<br />

E, por aí, <strong>de</strong>sandou a contar a história vulgar <strong>de</strong> uma<br />

pessoa que trata <strong>de</strong> outra atacada <strong>de</strong> moléstia contagiosa<br />

e não apanha doença, enquanto a que foge v<strong>em</strong> a morrer<br />

<strong>de</strong>la.<br />

Depois da sua narração, houve um curto silêncio; ela,<br />

porém, o quebrou:<br />

– Que tal o tenor?<br />

– É bom, disse o meu amigo. Não é <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m,<br />

mas se o po<strong>de</strong> ouvir…<br />

– Ah! O Tamagno! suspirou a viscon<strong>de</strong>ssa.<br />

– O câmbio está mau, refleti; os <strong>em</strong>presários não po<strong>de</strong>m<br />

trazer notabilida<strong>de</strong>s.<br />

– N<strong>em</strong> tanto, doutor! Quando estive na Europa, pagava<br />

por um camarote quase a mesma coisa que aqui… Era<br />

outra coisa! Que diferença!<br />

Como houvess<strong>em</strong> anunciado o começo do ato seguinte,<br />

<strong>de</strong>spedimo -nos. No corredor, encontramos o viscon<strong>de</strong><br />

e a filha. Cumprimentamo -nos rapidamente e <strong>de</strong>sc<strong>em</strong>os<br />

para as ca<strong>de</strong>iras.<br />

Meu companheiro, segundo a praxe elegante e <strong>de</strong>sgraciosa,<br />

não quis entrar logo. Era mais chique esperar o<br />

começo do ato… Eu, porém, que era <strong>nova</strong>to, fui tratando<br />

<strong>de</strong> abancar -me. Ao entrar na sala, <strong>de</strong>i com o Alfredo Costa,<br />

o que me causou gran<strong>de</strong> surpresa, por sabê -lo, apesar<br />

<strong>de</strong> rico, o mais feroz inimigo daquela gente toda. Não foi<br />

durável o meu espanto. Juvenal tinha posto a casaca e cartola,<br />

para melhor zombar, satirizar e estudar aquele meio.<br />

– De que te admiras? Venho a este barracão imundo,<br />

feio, pechisbeque, 86 que faz todo o Brasil roubar, matar,<br />

prevaricar, adulterar, a fim <strong>de</strong> rir -me <strong>de</strong>ssa gente que t<strong>em</strong><br />

as almas candidatas ao pez ar<strong>de</strong>nte do inferno. On<strong>de</strong><br />

estás?<br />

Disse -lhe eu, ao que ele me convidou:<br />

118


119<br />

uma noite no lírico<br />

– V<strong>em</strong> para junto <strong>de</strong> mim… Ao meu lado, a ca<strong>de</strong>ira está<br />

vazia e o dono não virá. É a do Abrantes que me avisou<br />

disso, pois, no fim do primeiro ato, me disse que tinha <strong>de</strong><br />

estar <strong>em</strong> certo lugar especial… V<strong>em</strong> que o lugar é bom<br />

para observar.<br />

Aceitei. Não tardou que o ato começasse e a sala se<br />

enchesse…<br />

Ele, logo que a viu assim, falou -me:<br />

– Não te dizia que, daqui, tu po<strong>de</strong>rias ver quase toda<br />

a sala?<br />

– É verda<strong>de</strong>! Bela casa!<br />

– Cheia, rica! observou o meu amigo com um acento<br />

sarcástico.<br />

– Há muito que não via tanta gente po<strong>de</strong>rosa e rica reunida.<br />

– E eu há muito t<strong>em</strong>po que não via tantos casos notáveis<br />

da nossa triste humanida<strong>de</strong>. Estamos como que diante <strong>de</strong><br />

vitrinas <strong>de</strong> um museu <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> patologia social.<br />

Estiv<strong>em</strong>os calados, ouvindo a música; mas, ao surgir<br />

na boca <strong>de</strong> um camarote, à minha direita, já pelo meio do<br />

ato, uma mulher, alta, esguia, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, cuja tez<br />

moreno -claro e as joias rutilantes saíam muito friamente<br />

do fundo negro do vestido, discretamente <strong>de</strong>cotado <strong>em</strong><br />

quadrado, eu perguntei:<br />

– Qu<strong>em</strong> é?<br />

– Não conheces? A Pilar, a “Espanhola”.<br />

– Ah! Como se consente?<br />

– É um lugar público… Não há provas. D<strong>em</strong>ais, todas<br />

as “outras” a invejavam… T<strong>em</strong> joias caras, carros, palacetes…<br />

–Já vens tu…<br />

– Ora! Queres ver? Vê o sexto camarote <strong>de</strong> segunda<br />

or<strong>de</strong>m, contando <strong>de</strong> lá para cá! Viste?


lima barreto<br />

–Vi.<br />

– Conheces a senhora que lá está?<br />

– Não, respondi.<br />

– É a mulher do Aldong, que não t<strong>em</strong> rendimentos,<br />

s<strong>em</strong> profissão conhecida ou com a vaga <strong>de</strong> que trata <strong>de</strong><br />

negócios. Pois b<strong>em</strong>: há mais <strong>de</strong> vinte anos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

gasto a fortuna da mulher, ele a sustenta como um nababo.<br />

Adiante, <strong>em</strong>baixo, no camarote <strong>de</strong> primeira Or<strong>de</strong>m vês<br />

aquela moça que está com a família?<br />

– Vejo. Qu<strong>em</strong> é?<br />

– É a filha do doutor Silva a qu<strong>em</strong>, certo dia, encontraram,<br />

<strong>em</strong> uma festa campestre, naquela atitu<strong>de</strong> que Anatole<br />

France, 87 num dos Bergerets, diz ter alguma coisa <strong>de</strong> luta<br />

e <strong>de</strong> amor… E os homens não ficam atrás…<br />

– És cruel!<br />

– Repara naquele que está na segunda fila, quarta<br />

ca<strong>de</strong>ira, primeira classe. Sabes <strong>de</strong> que vive?<br />

– Não.<br />

– N<strong>em</strong> eu. Mas, ao que corre, é banqueiro <strong>de</strong> casa <strong>de</strong><br />

jogo. E aquele general, acolá? Qu<strong>em</strong> é?<br />

– Não sei.<br />

– O nome não v<strong>em</strong> ao acaso; mas s<strong>em</strong>pre ganhou as<br />

batalhas… nos jornais. Aquele almirante que tu vês,<br />

naquele camarote, possui todas as bravuras, menos a <strong>de</strong><br />

afrontar os perigos do mar. Mais além, está o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bargador<br />

Genserico…<br />

Costa não pô<strong>de</strong> acabar. O ato terminava: palmas<br />

entrelaçavam -se, bravos soavam. A sala toda era uma<br />

vibração única <strong>de</strong> entusiasmo. Saímos para o saguão e eu<br />

me pus a ver todos aqueles homens e mulheres tão maldosamente<br />

catalogados pelo meu amigo. Notei -lhe as feições<br />

transtornadas, o tormento do futuro, a certeza da instabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> suas posições. Vi todos eles a arrombar portas,<br />

120


121<br />

uma noite no lírico<br />

arcas, sôfregos, febris, preocupados por não fazer bulha,<br />

a correr à menor que fosse…<br />

E ali, entre eles, a “Espanhola” era a única que me aparecia<br />

calma, segura dos dias a vir, s<strong>em</strong> pressa, s<strong>em</strong> querer<br />

atropelar os <strong>outros</strong>, com o brilho estranho da pessoa<br />

humana que po<strong>de</strong> e não se atormenta…


A biblioteca *<br />

123<br />

A Pereira da Silva<br />

À proporção que avançava <strong>em</strong> anos, mais nítidas lhe<br />

vinham as r<strong>em</strong>iniscências das coisas da casa paterna. Ficava<br />

ela lá pelas bandas da rua do Con<strong>de</strong>, por on<strong>de</strong> passavam<br />

então as estrondosas e fagulhentas “maxambombas” 88 da<br />

Tijuca. Era um casarão gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong> dois andares, rés do<br />

chão, chácara cheia <strong>de</strong> fruteiras, rico <strong>de</strong> salas, quartos,<br />

alcovas, povoado <strong>de</strong> parentes, contraparentes, fâmulos, 89<br />

escravos; e a escada que servia os dois pavimentos, situada<br />

um pouco além da fachada, a <strong>de</strong>sdobrar -se <strong>em</strong> toda a<br />

largura do prédio, era iluminada por uma gran<strong>de</strong> e larga<br />

claraboia <strong>de</strong> vidros multicores. Todo ele era assoalhado<br />

<strong>de</strong> peroba <strong>de</strong> Campos, com vastas tábuas largas, quase<br />

da largura da tora <strong>de</strong> que nasceram; e as esquadrias, portas,<br />

janelas, eram <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei. Mesmo a cocheira e<br />

o albergue da sege eram <strong>de</strong> boa ma<strong>de</strong>ira e tudo coberto<br />

<strong>de</strong> excelentes e pesadas telhas. Que coisas curiosas<br />

havia entre os seus móveis e alfaias? Aquela mobília <strong>de</strong><br />

* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).


lima barreto<br />

jacarandá -cabiúna com o seu vasto canapé, <strong>de</strong> três espaldares,<br />

ovalados e vastos, que mais parecia uma cama que<br />

mesmo um móvel <strong>de</strong> sala; aqueles imensos consolos, pesados,<br />

e ainda mais com aqueles enormes jarrões <strong>de</strong> porcelana<br />

da Índia que não v<strong>em</strong>os mais; aqueles <strong>de</strong>smedidos<br />

retratos dos seus antepassados, a ocupar as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alto<br />

a baixo – on<strong>de</strong> andava tudo aquilo? Não sabia… Ven<strong>de</strong>ra<br />

ele, aqueles objetos? Alguns; e <strong>de</strong>ra muitos.<br />

Umas coisas, porém, ficaram com o irmão que morrera<br />

cônsul na Inglaterra e lá <strong>de</strong>ixara a prole; outras, com a<br />

irmã que se casara para o Pará… Tudo, enfim, <strong>de</strong>saparecera.<br />

O que ele estranhava ter <strong>de</strong>saparecido eram as alfaias<br />

<strong>de</strong> prata, as colheres, as facas, o coador <strong>de</strong> chá…<br />

E o espevitador 90 <strong>de</strong> velas? Como ele se l<strong>em</strong>brava <strong>de</strong>sse<br />

utensílio obsoleto, <strong>de</strong> prata! Era com ternura que se<br />

recordava <strong>de</strong>le, nas mãos <strong>de</strong> sua mãe, quando, nos longos<br />

serões, na sala <strong>de</strong> jantar, à espera do chá – que chá! – ele o<br />

via aparar os morrões das velas do can<strong>de</strong>labro, enquanto<br />

ela, sua mãe, não interrompia a história do Príncipe Tatu,<br />

que estava contando…<br />

A tia Maria Benedita, muito velha, ao lado, sentada<br />

na estreita ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> jacarandá, tendo o busto ereto,<br />

encostado ao alto espaldar, ficava do lado, com os braços<br />

estendidos sobre os da ca<strong>de</strong>ira, o tamborete aos pés,<br />

olhando atenta aquela sessão familiar, com o seu agudo<br />

olhar <strong>de</strong> velha e a sua hierática pose <strong>de</strong> estátua tebana<br />

tumular. Eram os nhonhôs e nhanhãs, nas ca<strong>de</strong>iras; e as<br />

crias e molecotes acocorados no assoalho, a ouvir… Era<br />

me nino…<br />

O aparelho <strong>de</strong> chá, o usual, o <strong>de</strong> todo o dia, como era<br />

lindo! Feito <strong>de</strong> uma louça negra, com ornatos <strong>em</strong> relevo, e<br />

um discreto esmalte muito igual <strong>de</strong> brilho – don<strong>de</strong> viera<br />

aquilo? Da China, da Índia?<br />

124


125<br />

a biblioteca<br />

E a gamela 91 <strong>de</strong> bacurubu <strong>em</strong> que a Inácia, a sua ama,<br />

lhe dava banho – on<strong>de</strong> estava? Ah! As mudanças! Antes<br />

nunca tivesse vendido a casa paterna…<br />

A casa é que conserva todas as recordações <strong>de</strong> família.<br />

Perdida que seja, como que ela se vinga fazendo dispersar<br />

as relíquias familiares que, <strong>de</strong> algum modo, conservavam<br />

a alma e a essência das pessoas queridas e mortas… Ele<br />

não podia, entretanto, manter o casarão… Foram o t<strong>em</strong>po,<br />

as leis, o progresso…<br />

Todos aqueles trastes, todos aqueles objetos, no seu<br />

t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> menino, s<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> valia, hoje valeriam muito…<br />

Tinha ainda o bule do aparelho <strong>de</strong> chá, um escumador,<br />

um guéridon 92 com trabalho <strong>de</strong> <strong>em</strong>butido… Se ele<br />

tivesse (insistia) conservado a casa, tê -los -ia todos hoje,<br />

para po<strong>de</strong>r rever o perfil aquilino, duro e severo do seu<br />

pai, tal qual estava ali, no retrato <strong>de</strong> Agostinho da Mota,<br />

professor <strong>de</strong> aca<strong>de</strong>mia; e também a figurinha <strong>de</strong> Sèvres<br />

que era a sua mãe <strong>em</strong> moça, mas que os retratistas da terra<br />

nunca souberam pôr na tela. Mas não pô<strong>de</strong> conservar<br />

a casa… A constituição da família carioca foi insensivelmente<br />

se modificando; e ela era gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para a sua.<br />

De resto, o inventário, as partilhas, a diminuição <strong>de</strong> rendas,<br />

tudo isso tirou -a <strong>de</strong>le. A culpa não era sua, <strong>de</strong>le, era<br />

da marcha da socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> que vivia…<br />

Essas recordações lhe vinham s<strong>em</strong>pre e cada vez mais<br />

fortes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os quarenta e cinco anos; estivesse triste ou<br />

alegre, elas lhe acudiam. Seu pai, o conselheiro Fernan<strong>de</strong>s<br />

Carregal, tenente -coronel do Corpo <strong>de</strong> Engenheiros<br />

e lente da Escola Central, era filho do sargento -mor <strong>de</strong><br />

engenharia e também lente da Aca<strong>de</strong>mia Real Militar que<br />

o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Linhares, ministro <strong>de</strong> dom João VI, fundou<br />

<strong>em</strong> 1810, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, com o fim <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver<strong>em</strong><br />

entre nós os estudos <strong>de</strong> ciências mat<strong>em</strong>áticas, físicas


lima barreto<br />

e naturais, como lá diz o ato oficial que a instituiu. Desta<br />

aca<strong>de</strong>mia todos sab<strong>em</strong> como vieram a surgir a atual Escola<br />

Politécnica e a extinta Escola Militar da Praia Vermelha. O<br />

filho <strong>de</strong> Carregal, porém, não passara por nenhuma <strong>de</strong>las;<br />

e, apesar <strong>de</strong> farmacêutico, nunca se sentira atraído pela<br />

especialida<strong>de</strong> dos estudos do pai. Este <strong>de</strong>dicara -se, a seu<br />

modo e ao nosso jeito, à Química. Tinha por ela uma gran<strong>de</strong><br />

mania… bibliográfica. A sua biblioteca a esse respeito<br />

era completa e valiosa. Possuía verda<strong>de</strong>iros “incunábulos”<br />

93 , se assim se po<strong>de</strong> dizer, da química mo<strong>de</strong>rna. No original<br />

ou <strong>em</strong> tradução, lá havia preciosida<strong>de</strong>s. De Lavoisier,<br />

encontravam -se quase todas as m<strong>em</strong>órias, além do seu<br />

extraordinário e sagacíssimo Traité élémentaire <strong>de</strong> chimie,<br />

présenté dans un ordre et d’après les découvertes mo<strong>de</strong>rnes<br />

[Tratado el<strong>em</strong>entar <strong>de</strong> química, apresentado <strong>em</strong> uma <strong>nova</strong><br />

or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong> acordo com as <strong>de</strong>scobertas mo<strong>de</strong>rnas].<br />

O velho lente, no dizer do filho, não podia pegar nesse<br />

respeitável livro que não fosse tomado <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>oção.<br />

– Veja só meu filho, como os homens são maus! Lavoisier<br />

publicou esta maravilhosa obra no início da Revolução,<br />

a qual ele sinceramente aplaudiu… Ela o mandou<br />

para o cadafalso – sabe você por quê?<br />

– Não, papai.<br />

– Porque Lavoisier tinha sido uma espécie <strong>de</strong> coletor ou<br />

coisa parecida no t<strong>em</strong>po do rei. Ele o foi, meu filho, para<br />

ter dinheiro com que custeasse as suas experiências. Veja<br />

você como são as coisas e como é preciso ser mais do que<br />

hom<strong>em</strong> para b<strong>em</strong> servir aos homens…<br />

Além <strong>de</strong>sta g<strong>em</strong>a que era a sua menina dos olhos, o<br />

Conselheiro Carregal tinha também o Proust, Novo sis‑<br />

t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> filosofia química; o Priestley, Expériences sur les<br />

différentes espèces d’air [Experimentos sobre os diferentes<br />

126


127<br />

a biblioteca<br />

tipos <strong>de</strong> ar]; as obras <strong>de</strong> Guyton <strong>de</strong> Morveau; o Traité [Tratado]<br />

<strong>de</strong> Berzelius, tradução <strong>de</strong> Hoefer e Esslinger; a Stati‑<br />

que chimique [Estatística química] do gran<strong>de</strong> Berthollet; a<br />

Química orgânica <strong>de</strong> Liebig, tradução <strong>de</strong> Gerhardt – todos<br />

livros antigos e sólidos, sendo <strong>de</strong>ntre eles o mais mo<strong>de</strong>rno<br />

as Lições <strong>de</strong> filosofia química, <strong>de</strong> Wurtz, que são <strong>de</strong> 1864;<br />

mas, o estado do livro dava a enten<strong>de</strong>r que nunca tinham<br />

sido consultadas. Havia mesmo algumas obras <strong>de</strong> alquimia,<br />

edições dos primeiros t<strong>em</strong>pos da tipografia, enormes,<br />

que exig<strong>em</strong> ser lidas <strong>em</strong> altas escrivaninhas, o leitor <strong>de</strong> pé,<br />

com um burel 94 <strong>de</strong> monge ou nigromante; 95 e, entre os <strong>de</strong>sta<br />

natureza, lá estava um ex<strong>em</strong>plar do – Le livre <strong>de</strong>s figu‑<br />

res hiéroglyphiques [O livro das figuras hieroglíficas] que<br />

a tradição atribui ao alquimista francês Nicolas Flamel.<br />

Sobravam, porém, além <strong>de</strong>stes, muitos <strong>outros</strong> livros<br />

<strong>de</strong> diferente natureza, mas também preciosos e estimáveis:<br />

um ex<strong>em</strong>plar da Geometria <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s, <strong>em</strong> latim,<br />

impresso <strong>em</strong> Upsal, na Suécia, nos fins do século XVI;<br />

os Principia <strong>de</strong> Newton, não a primeira edição, mas uma<br />

<strong>de</strong> Cambridge muito apreciada; e as edições princeps 96 da<br />

Méchanique analytique [Mecânica analítica], <strong>de</strong> Lagrange,<br />

e da Géométrie <strong>de</strong>scriptive [Geometria <strong>de</strong>scritiva], <strong>de</strong><br />

Monge.<br />

Era uma biblioteca rica assim <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> ciências físicas<br />

e mat<strong>em</strong>áticas que o filho do conselheiro Carregal, há<br />

quarenta anos para cinquenta, piedosamente carregava <strong>de</strong><br />

casa <strong>em</strong> casa, aos azares das mudanças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que per<strong>de</strong>ra<br />

o pai e ven<strong>de</strong>ra o casarão <strong>em</strong> que ela quietamente tinha<br />

vivido durante <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos, a gosto e à vonta<strong>de</strong>.<br />

Po<strong>de</strong>rão supor que ela só tivesse obras <strong>de</strong>ssa especialida<strong>de</strong>;<br />

mas tal não acontecia. Havia as <strong>de</strong> <strong>outros</strong> feitios <strong>de</strong><br />

espírito. Encontravam -se lá os clássicos latinos; Voyage<br />

autour du mon<strong>de</strong> [Viag<strong>em</strong> ao redor do mundo] <strong>de</strong> Bou-


lima barreto<br />

gainville; uma Nouvelle Héloïse [Nova Heloísa], <strong>de</strong> Rousseau,<br />

com gravuras abertas <strong>em</strong> aço; uma linda edição dos<br />

Lusíadas, <strong>em</strong> caracteres elzevirianos; e um ex<strong>em</strong>plar do<br />

Brasil e a Oceania, <strong>de</strong> Gonçalves Dias, com uma <strong>de</strong>dicatória,<br />

do próprio punho do autor, ao conselheiro Carregal.<br />

Fausto Carregal, assim era o nome do filho, até ali<br />

nunca se separara da biblioteca que lhe coubera como<br />

herança. Do mais que herdara, tudo dissipara, b<strong>em</strong> ou<br />

mal; mas os livros do conselheiro, ele os guardara intatos<br />

e conservados religiosamente, apesar <strong>de</strong> não os enten<strong>de</strong>r.<br />

Estudara alguma coisa, era até farmacêutico, mas s<strong>em</strong>pre<br />

vivera alheado do que é verda<strong>de</strong>iramente a substância<br />

dos livros – o pensamento e a absorção da pessoa humana<br />

neles.<br />

Logo que pô<strong>de</strong>, arranjou um <strong>em</strong>prego público que nada<br />

tinha a ver com o seu diploma, afogou -se no seu ofício<br />

burocrático, esqueceu -se do pouco que estudara, chegou<br />

a chefe <strong>de</strong> seção, mas não abandonou jamais os livros do<br />

pai que s<strong>em</strong>pre o acompanharam, e as suas velhas estantes<br />

<strong>de</strong> vinhático com incrustação <strong>de</strong> madrepérola.<br />

A sua esperança era que um dos seus filhos os viesse<br />

a enten<strong>de</strong>r um dia; e todo o seu esforço <strong>de</strong> pai s<strong>em</strong>pre se<br />

encaminhou para isso. O mais velho dos filhos, o Álvaro,<br />

conseguiu ele matriculá -lo no Pedro II; mas logo, no<br />

segundo ano, o pequeno meteu -se <strong>em</strong> calaçarias <strong>de</strong> namoros,<br />

<strong>de</strong>u <strong>em</strong> noivo e, mal fez <strong>de</strong>zoito anos, <strong>em</strong>pregou -se<br />

nos correios, praticante pro rata, casando -se daí <strong>em</strong> pouco.<br />

Arrastava agora uma vida triste <strong>de</strong> casal pobre, moço,<br />

cheio <strong>de</strong> filhos, mais triste era ele ainda porquanto, não<br />

havendo alegria naquele lar, n<strong>em</strong> por isso havia <strong>de</strong>sarmonia.<br />

Marido e mulher puxavam o carro igualmente…<br />

O segundo filho não quisera ir além do curso primário.<br />

Empregara -se logo <strong>em</strong> um escritório comercial, fizera -se<br />

128


129<br />

a biblioteca<br />

r<strong>em</strong>ador <strong>de</strong> um clube <strong>de</strong> regatas, ganhava b<strong>em</strong> e andava<br />

pelas tolas festas domingueiras <strong>de</strong> sport, com umas calças<br />

sungadas pelas canelas e um canotier 97 muito limpo, tendo<br />

na fita uma ban<strong>de</strong>irinha idiota.<br />

A filha casara -se com um <strong>em</strong>pregado da Câmara Municipal<br />

<strong>de</strong> Niterói e lá vivia.<br />

Restava -lhe o filho mais moço, o Jaime, tão bom, tão<br />

meigo e tão seu amigo, que lhe pareceu, quando veio ao<br />

mundo, ser aquele que estava <strong>de</strong>stinado a ser o inteligente,<br />

o intelectual da família, o digno her<strong>de</strong>iro do avô e do<br />

bisavô. Mas não foi; e ele se l<strong>em</strong>brava agora como recomendava<br />

s<strong>em</strong>pre à mulher, nos primeiros anos <strong>de</strong> vida do<br />

caçula, ao ir para a repartição:<br />

– Irene, cuida b<strong>em</strong> do Jaime! Ele é que vai ler os papéis<br />

do meu pai.<br />

Porque o pequeno, <strong>em</strong> criança, era tão doentinho, tão<br />

mirrado, apesar dos seus olhos muito claros e vivos, que<br />

o pai t<strong>em</strong>ia fosse com ele a sua última esperança <strong>de</strong> um<br />

her<strong>de</strong>iro capaz da biblioteca do conselheiro.<br />

Jaime tinha nascido quando o mais velho entrava nos<br />

doze anos; e o inesperado daquela concepção alegrava -lhe<br />

muito, mas inquietara a mãe.<br />

Pelos seus quatro anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, Fausto Carregal já<br />

tinha podido ver o <strong>de</strong>senvolvimento dos dois <strong>outros</strong> seus<br />

filhos varões e havia <strong>de</strong>sesperado <strong>de</strong> ver qualquer um <strong>de</strong>les<br />

enten<strong>de</strong>r, quer hoje ou amanhã, os livros do avô e do bisavô,<br />

que jaziam limpos, tratados, <strong>em</strong>balsamados, nos jazigos<br />

das prateleiras das estantes <strong>de</strong> vinhático, à espera <strong>de</strong><br />

uma inteligência, na <strong>de</strong>scendência dos seus primeiros proprietários,<br />

para <strong>de</strong> novo fazê -los voltar à completa e total<br />

vida do pensamento e da ativida<strong>de</strong> mental fecunda.<br />

Certo dia, l<strong>em</strong>brando -se <strong>de</strong> seu pai <strong>em</strong> face das esperanças<br />

que <strong>de</strong>positava no seu filho t<strong>em</strong>porão, Fausto Car-


lima barreto<br />

regal consi<strong>de</strong>rou que, apesar do amor <strong>de</strong> seu progenitor<br />

à Química, nunca ele o vira com éprouvettes [tubos <strong>de</strong><br />

ensaio], com copos graduados, com retortas. Eram só<br />

livros que ele procurava. Como os velhos sábios brasileiros,<br />

seu pai tinha horror ao laboratório, à experiência feita<br />

com as suas mãos, ele mesmo…<br />

O seu filho, porém, o Jaime, não seria assim. Ele o queria<br />

com o maçarico, com o bico <strong>de</strong> Bunsen, com a baqueta<br />

<strong>de</strong> vidro, com o copo <strong>de</strong> laboratório…<br />

– Irene tu vais ver como o Jaime vai além do avô! Fará<br />

<strong>de</strong>scobertas.<br />

Sua mulher, entretanto, filha <strong>de</strong> um clínico que tivera<br />

fama quando moço, não tinha nenhum entusiasmo<br />

por essas coisas. A vida, para ela, se resumia <strong>em</strong> viver o<br />

mais simplesmente possível. Nada <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s esforços, ou<br />

mesmo <strong>de</strong> pequenos, para se ir além do comum <strong>de</strong> todos;<br />

nada <strong>de</strong> escaladas, <strong>de</strong> ascensões; tudo terra a terra, muito<br />

cá <strong>em</strong>baixo… Viver, e só! Para que sabedorias? Para que<br />

nomeadas? Quase nunca davam dinheiro e quase s<strong>em</strong>pre<br />

<strong>de</strong>sgostos. Por isso, jamais se esforçou para que os seus<br />

filhos foss<strong>em</strong> além do ler, escrever e contar; e isso mesmo<br />

a fim <strong>de</strong> arranjar<strong>em</strong> um <strong>em</strong>prego que não fosse braçal,<br />

pesado ou servil.<br />

O Jaime cresceu s<strong>em</strong>pre muito meigo, muito dócil,<br />

muito bom; mas com venetas estranhas. Implicava com<br />

uma vela acesa <strong>em</strong> cima <strong>de</strong> um móvel porque lhe pareciam<br />

os círios que vira <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um <strong>de</strong>funto, na vizinhança;<br />

quando trovejava ficava a um canto calado, t<strong>em</strong>eroso; o<br />

relâmpago fazia -o estr<strong>em</strong>ecer <strong>de</strong> medo, e logo após, ria -se<br />

<strong>de</strong> um modo estranho… Não era contudo doente; com o<br />

crescimento, até adquirira certa robustez. Havia noites,<br />

porém, <strong>em</strong> que tinha uma espécie <strong>de</strong> ataque, seguido <strong>de</strong><br />

um choro convulso, uma coisa inexplicável que passava e<br />

130


131<br />

a biblioteca<br />

voltava s<strong>em</strong> causa, n<strong>em</strong> motivo. Quando chegou aos sete<br />

anos, logo o pai quis pôr -lhe na mão a cartilha, porquanto<br />

vinha notando com singular satisfação a curiosida<strong>de</strong><br />

do filho pelos livros, pelos <strong>de</strong>senhos e figuras, que os jornais<br />

e revistas traziam. Ele os cont<strong>em</strong>plava horas e horas,<br />

absorvido, fixando nas gravuras os seus olhos castanhos,<br />

bons, leais…<br />

Pôs -lhe a cartilha na mão:<br />

– “A -e -i -o -u” – diga: “a”.<br />

O pequeno dizia: “a”; o pai seguia: “e”; Jaime repetia:<br />

“e”; mas quando chegava a “o”, parecia que lhe invadia<br />

um cansaço mental, enfarava -se subitamente, não queria<br />

mais aten<strong>de</strong>r, não obe<strong>de</strong>cia mais ao pai e, se este insistia e<br />

ralhava, o filho <strong>de</strong>satava a chorar:<br />

– Não quero mais, papaizinho! Não quero mais!<br />

Consultou médicos amigos. Aconselharam -no esperar<br />

que a criança tivesse mais ida<strong>de</strong>. Aguardou mais um<br />

ano, durante o qual, para estimular o filho, não cessava<br />

<strong>de</strong> recomendar:<br />

– Jaime, você precisa apren<strong>de</strong>r a ler. Qu<strong>em</strong> não sabe ler,<br />

não arranja nada na vida.<br />

Foi <strong>em</strong> vão. As coisas se vieram a passar como da primeira<br />

vez. Aos doze anos, contratou um professor paciente,<br />

um velho <strong>em</strong>pregado público aposentado, no intuito <strong>de</strong><br />

ver se instilava na inteligência do filho o mínimo <strong>de</strong> saber<br />

ler e escrever. O professor começou com toda a paciência e<br />

tenacida<strong>de</strong>; mas, a criança que era incapaz <strong>de</strong> ódio até ali,<br />

per<strong>de</strong>u a doçura, a meiguice para com o professor.<br />

Era falar -lhe no nome, a menos que o pai estivesse presente,<br />

ele <strong>de</strong>sandava <strong>em</strong> <strong>de</strong>scomposturas, <strong>em</strong> doestos, 98 <strong>em</strong><br />

sarcasmos ao físico e às maneiras do bom velho. Cansado,<br />

o antigo burocrata, ao fim <strong>de</strong> dois anos, <strong>de</strong>spediu -se tendo<br />

conseguido que Jaime soletrasse e contasse alguma coisa.


lima barreto<br />

Carregal meditou ainda um r<strong>em</strong>édio, mas não encontrou.<br />

Consultou médicos, amigos, conhecidos. Era um<br />

caso excepcional; era um caso mórbido esse <strong>de</strong> seu filho.<br />

R<strong>em</strong>édio, se um houvesse, não existia aqui; só na Europa…<br />

Não podia, o pequeno, apren<strong>de</strong>r b<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> mesmo<br />

ler, escrever, contar!… Oh! Meu Deus!<br />

A conclusão lhe chegou s<strong>em</strong> choque, s<strong>em</strong> nenhuma<br />

brusca violência; chegou sorrateiramente, mansamente,<br />

pé ante pé, <strong>de</strong>vagar, como uma conclusão fatal que era.<br />

Tinha o velho Carregal, por hábito, ficar na sala <strong>em</strong> que<br />

estavam os livros e as estantes do pai, a ler, pela manhã, os<br />

jornais do dia. À proporção que os anos se passavam e os<br />

<strong>de</strong>sgostos aumentavam -lhe na alma, mais religiosamente<br />

ele cumpria essa <strong>de</strong>voção à m<strong>em</strong>ória do pai. Chorava às<br />

vezes <strong>de</strong> arrependimento, vendo aquele pensamento todo,<br />

ali sepultado, mas ainda vivo, s<strong>em</strong> que entretanto pu<strong>de</strong>sse<br />

fecundar <strong>outros</strong> pensamentos… Por que não estudara?<br />

Dava -se assim, com aquela <strong>de</strong>voção diária, a ele mesmo,<br />

a ilusão <strong>de</strong> que, se não compreendia aqueles livros<br />

profundos e antigos, os respeitava e amava como a seu pai,<br />

esquecido <strong>de</strong> que para amá -los sinceramente era preciso<br />

compreendê -los primeiro. São <strong>de</strong>uses os livros, que precisam<br />

ser analisados, para <strong>de</strong>pois ser<strong>em</strong> adorados; e eles<br />

não aceitam a adoração senão <strong>de</strong>ssa forma…<br />

Naquela manhã, como <strong>de</strong> costume, fora para a sala dos<br />

livros, ler os jornais; mas não os pô<strong>de</strong> ler logo.<br />

Pôs -se a cont<strong>em</strong>plar os volumes nas suas molduras <strong>de</strong><br />

vinhático. Viu o pai, o casarão, os moleques, as mucamas,<br />

as crias, o fardão do seu avô, os retratos… L<strong>em</strong>brou -se<br />

mais fort<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> seu pai e viu -o lendo, entre aquelas<br />

obras, sentado a uma gran<strong>de</strong> mesa, tomando <strong>de</strong> quando<br />

<strong>em</strong> quando rapé, que ele tirava às pitadas <strong>de</strong> uma boceta 99<br />

<strong>de</strong> tartaruga, espirrar <strong>de</strong>pois, assoar -se num gran<strong>de</strong> len-<br />

132


133<br />

a biblioteca<br />

ço <strong>de</strong> Alcobaça, s<strong>em</strong>pre lendo, com o cenho carregado, os<br />

seus gran<strong>de</strong>s e estimados livros.<br />

As lágrimas vieram aos olhos daquele velho e avô. Teve<br />

<strong>de</strong> sustê -las logo. O filho mais novo entrava na <strong>de</strong>pendência<br />

da casa <strong>em</strong> que ele se havia recolhido. Não tinha Jaime,<br />

porém, por esse t<strong>em</strong>po, um olhar <strong>de</strong> mais curiosida<strong>de</strong> para<br />

aqueles veneráveis volumes avoengos. 100 Cheio dos seus<br />

<strong>de</strong>zesseis anos, muito robusto, não havia nele n<strong>em</strong> angústias,<br />

n<strong>em</strong> dúvidas. Não era corroído pelas i<strong>de</strong>ias e era b<strong>em</strong><br />

nutrido pela limitação e estreiteza <strong>de</strong> sua inteligência. Foi<br />

logo falando, s<strong>em</strong> mais <strong>de</strong>tença, ao pai:<br />

– Papai, você me dá cinco mil -réis, para eu ir hoje ao<br />

futebol.<br />

O velho olhou o filho. Olhou a sua adolescência estúpida<br />

e forte, olhou seu mau feitio <strong>de</strong> cabeça; olhou b<strong>em</strong><br />

aquele último fruto direto <strong>de</strong> sua carne e <strong>de</strong> seu sangue; e<br />

não se l<strong>em</strong>brou do pai. Respon<strong>de</strong>u:<br />

– Dou, meu filho. Dentro <strong>em</strong> pouco, você terá.<br />

E <strong>em</strong> seguida como se acudisse alguma coisa <strong>de</strong>sl<strong>em</strong>brada<br />

que aquelas palavras lhe fizeram surgir à tona do<br />

pensamento, acrescentou com pausa:<br />

– Diga a sua mãe que me man<strong>de</strong> buscar na venda uma<br />

lata <strong>de</strong> querosene, antes que feche. Não se esqueça, está<br />

ouvindo!<br />

Era domingo. Almoçaram. O filho foi para o futebol; a<br />

mulher foi visitar a filha e os netos, <strong>em</strong> Niterói; e o velho<br />

Fausto Carregal ficou só <strong>em</strong> casa, pois a cozinheira teve<br />

também folga.<br />

Com os seus ainda robustos setenta anos, o velho<br />

Fausto Fernan<strong>de</strong>s Carregal, filho do tenente -coronel <strong>de</strong><br />

engenharia, conselheiro Fernan<strong>de</strong>s Carregal, lente da<br />

Escola Central, tendo consertado mais uma vez o seu antigo<br />

cavanhaque inteiramente branco e pontiagudo, s<strong>em</strong>


lima barreto<br />

tropeço, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sfalecimento, aos dois, aos quatro, aos<br />

seis, ele só, sacerdotalmente, ritualmente, foi carregando<br />

os livros que tinham sido do pai e do avô para o quintal<br />

da casa. Amontoou -os <strong>em</strong> vários grupos, aqui e ali, untou<br />

<strong>de</strong> petróleo cada um, muito cuidadosamente, e ateou -lhes<br />

fogo sucessivamente.<br />

No começo a espessa fumaça negra do querosene não<br />

<strong>de</strong>ixava ver b<strong>em</strong> as chamas brilhar<strong>em</strong>; mas logo que ele se<br />

evolou, o clarão <strong>de</strong>las, muito amarelo, brilhou vitoriosamente<br />

com a cor que o povo diz ser a do <strong>de</strong>sespero…<br />

134


Sua Excelência *<br />

O ministro saiu do baile da Embaixada, <strong>em</strong>barcando<br />

logo no carro. Des<strong>de</strong> duas horas estivera a sonhar com<br />

aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento,<br />

pesando b<strong>em</strong> as palavras que proferira, rel<strong>em</strong>brando<br />

as atitu<strong>de</strong>s e os pasmos olhares dos circunstantes.<br />

Por isso entrara no coupé 101 <strong>de</strong>pressa, sôfrego, s<strong>em</strong> mesmo<br />

reparar se, <strong>de</strong> fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido<br />

por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaida<strong>de</strong>.<br />

Todo ele era um poço <strong>de</strong> certeza. Estava certo do seu<br />

valor intrínseco; estava certo das suas qualida<strong>de</strong>s extraordinárias<br />

e excepcionais. A respeitosa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos e a<br />

<strong>de</strong>ferência universal que o cercava eram nada mais, nada<br />

menos que o sinal da convicção geral <strong>de</strong> ser ele o resumo<br />

do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam<br />

os doridos queixumes dos humil<strong>de</strong>s e os espetaculosos<br />

<strong>de</strong>sejos dos ricos. As obscuras <strong>de</strong>terminações das coisas,<br />

acertadamente, haviam -no erguido até ali, e mais alto<br />

levá -lo -iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria<br />

* Publicado na primeira edição do livro Histórias e sonhos (1920).<br />

135


lima barreto<br />

capaz <strong>de</strong> fazer o país chegar aos <strong>de</strong>stinos que os antece<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong>le impunham…<br />

E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos,<br />

totalmente escrita <strong>em</strong> caracteres <strong>de</strong> imprensa, <strong>em</strong> um livro<br />

ou <strong>em</strong> um jornal qualquer. L<strong>em</strong>brou -se do seu discurso<br />

<strong>de</strong> ainda agora.<br />

“Na vida das socieda<strong>de</strong>s, como na dos indivíduos…”<br />

Que maravilha! Tinha algo <strong>de</strong> filosófico, <strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>nte.<br />

E o sucesso daquele trecho? Recordou -se <strong>de</strong>le por<br />

inteiro:<br />

“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como<br />

Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos,<br />

todos os juristas afirmam que as leis <strong>de</strong>v<strong>em</strong> se basear nos<br />

costumes…”<br />

O olhar, muito brilhante, cheio <strong>de</strong> admiração – o olhar<br />

do lí<strong>de</strong>r da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito<br />

da frase…<br />

E quando terminou! Oh!<br />

“Senhor, o nosso t<strong>em</strong>po é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s reformas; estejamos<br />

com ele: reform<strong>em</strong>os!”<br />

A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo<br />

com que esse final foi recebido.<br />

O auditório <strong>de</strong>lirou. As palmas estrugiram; e, <strong>de</strong>ntro<br />

do gran<strong>de</strong> salão iluminado, pareceu -lhe que recebia as<br />

palmas da Terra toda.<br />

O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam<br />

como um só traço <strong>de</strong> fogo; <strong>de</strong>pois sumiram -se.<br />

O veículo agora corria vertiginosamente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

névoa fosforescente. Era <strong>em</strong> vão que seus augustos olhos<br />

se abriam <strong>de</strong>smedidamente; não havia contornos, formas,<br />

on<strong>de</strong> eles pousass<strong>em</strong>.<br />

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava<br />

a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.<br />

136


137<br />

sua excelência<br />

– Cocheiro, on<strong>de</strong> vamos?<br />

Quis arriar as vidraças. Não pô<strong>de</strong>; queimavam.<br />

Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.<br />

Gritou ao cocheiro:<br />

– On<strong>de</strong> vamos? Miserável, on<strong>de</strong> me levas?<br />

Apesar <strong>de</strong> ter o carro algumas vidraças arriadas, no<br />

seu interior fazia um calor <strong>de</strong> forja. Quando lhe veio esta<br />

imag<strong>em</strong>, apalpou b<strong>em</strong>, no peito, as grã -cruzes magníficas.<br />

Graças a Deus, ainda não se haviam <strong>de</strong>rretido. O leão da<br />

Birmânia, o dragão da China, o lingão da Índia estavam<br />

ali, entre todas as outras, intactas.<br />

– Cocheiro, on<strong>de</strong> me levas?<br />

Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele<br />

hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> nariz adunco, queixo longo com uma barbicha,<br />

não era o seu fiel Manuel.<br />

– Canalha para, para, senão caro me pagarás!<br />

O carro voava e o ministro continuava a vociferar:<br />

– Miserável! Traidor! Para! Para!<br />

Em uma <strong>de</strong>ssas vezes voltou -se o cocheiro; mas a escuridão<br />

que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe<br />

permitiu ver os olhos do guia da carruag<strong>em</strong>, a brilhar <strong>de</strong><br />

um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu -lhe que<br />

estava a rir -se.<br />

O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não<br />

po<strong>de</strong>ndo suportar o calor, <strong>de</strong>spiu -se. Tirou a agaloada<br />

casaca, <strong>de</strong>pois o espadim, o colete, as calças…<br />

Sufocado, estonteado, parecia -lhe que continuava com<br />

vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua<br />

cabeça dançavam, separados.<br />

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu -se vestido<br />

com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à<br />

porta do palácio <strong>em</strong> que estivera ainda há pouco e <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

saíra triunfalmente, não havia minutos.


lima barreto<br />

Nas proximida<strong>de</strong>s um coupé estacionava.<br />

Quis verificar b<strong>em</strong> as coisas circundantes; mas não<br />

houve t<strong>em</strong>po.<br />

Pelas escadas <strong>de</strong> mármore, grav<strong>em</strong>ente, solen<strong>em</strong>ente,<br />

um hom<strong>em</strong> (pareceu -lhe isso) <strong>de</strong>scia os <strong>de</strong>graus, envolvido<br />

no fardão que <strong>de</strong>spira, tendo no peito as mesmas magníficas<br />

grã -cruzes.<br />

Logo que o personag<strong>em</strong> pisou na soleira, <strong>de</strong> um só<br />

ímpeto aproximou -se e, abjectamente, como se até ali não<br />

tivesse feito outra coisa, indagou:<br />

– V. Exa. quer o carro?<br />

138


Por que não se matava *<br />

Esse meu amigo era o hom<strong>em</strong> mais enigmático que<br />

conheci.<br />

Era a um t<strong>em</strong>po taciturno e expansivo, egoísta e generoso,<br />

bravo e covar<strong>de</strong>, trabalhador e vadio. Havia no seu<br />

t<strong>em</strong>peramento uma <strong>de</strong>sesperadora mistura <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s<br />

opostas e, na sua inteligência, um encontro curioso <strong>de</strong><br />

luci<strong>de</strong>z e confusão, <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za e <strong>em</strong>botamento.<br />

Nós nos dávamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito t<strong>em</strong>po. Aí pelos doze<br />

anos, quando comecei a estudar os preparatórios,<br />

encontrei -o no colégio e fiz<strong>em</strong>os relações. Gostei da sua<br />

fisionomia, da estranheza do seu caráter e mesmo ao <strong>de</strong>scansarmos<br />

no recreio, após as aulas, a minha meninice<br />

cont<strong>em</strong>plava maravilhada aquele seu longo olhar cismático,<br />

que se ia tão <strong>de</strong>moradamente pelas coisas e pelas pessoas.<br />

Continuamos s<strong>em</strong>pre juntos até à escola superior, on<strong>de</strong><br />

an<strong>de</strong>i conversando; e, aos poucos, fui verificando que as<br />

suas qualida<strong>de</strong>s se acentuavam e os seus <strong>de</strong>feitos também.<br />

* Publicado <strong>em</strong> Outras histórias, que integra a segunda edição do<br />

livro Histórias e sonhos (1951).<br />

139


lima barreto<br />

Ele entendia maravilhosamente a mecânica, mas não<br />

havia jeito <strong>de</strong> estudar essas coisas <strong>de</strong> câmbio, <strong>de</strong> jogo <strong>de</strong><br />

bolsa. Era assim: para umas coisas, muita penetração; para<br />

outras, incompreensão.<br />

Formou -se, mas nunca fez uso da carta. Tinha um<br />

pequeno rendimento e s<strong>em</strong>pre viveu <strong>de</strong>le, afastado <strong>de</strong>ssa<br />

humilhante coisa que é a caça ao <strong>em</strong>prego.<br />

Era sentimental, era <strong>em</strong>otivo; mas nunca lhe conheci<br />

amor. Isto eu consegui <strong>de</strong>cifrar, e era fácil. A sua <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za<br />

e a sua timi<strong>de</strong>z faziam a compartilha com outro, as<br />

coisas secretas <strong>de</strong> sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que<br />

havia <strong>de</strong> secreto e profundo na sua alma.<br />

Há dias encontrei o no chope, diante <strong>de</strong> uma alta pilha<br />

<strong>de</strong> ro<strong>de</strong>las <strong>de</strong> papelão, marcando com solenida<strong>de</strong> o número<br />

<strong>de</strong> copos bebidos.<br />

Foi ali, no Adolfo, à rua da Ass<strong>em</strong>bleia, on<strong>de</strong> aos poucos<br />

t<strong>em</strong>os conseguido reunir uma roda <strong>de</strong> poetas, literatos,<br />

jornalistas, médicos, advogados, a viver na máxima<br />

harmonia, trocando i<strong>de</strong>ias, conversando e bebendo<br />

s<strong>em</strong>pre.<br />

É uma casa por <strong>de</strong>mais simpática, talvez a mais antiga<br />

no gênero, e que já conheceu duas gerações <strong>de</strong> poetas.<br />

Por ela, passaram o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga<br />

Duque, o B. Lopes, o Mário Pe<strong>de</strong>rneiras, o <strong>Lima</strong> Campos,<br />

o Malagutti e <strong>outros</strong> pintores que completavam essa brilhante<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens inteligentes.<br />

Escura e oculta à vista da rua, é um ninho e também<br />

uma aca<strong>de</strong>mia. Mais do que uma aca<strong>de</strong>mia. São duas ou<br />

três. Somos tantos e <strong>de</strong> feições mentais tão diferentes, que<br />

b<strong>em</strong> formamos uma mo<strong>de</strong>sta miniatura do Silogeu. 102<br />

Não se faz<strong>em</strong> discursos à entrada: bebe -se e joga -se<br />

bagatela, lá ao fundo, cercado <strong>de</strong> uma plateia ansiosa por<br />

ver o Amorim Júnior fazer sucessivos <strong>de</strong>zoitos.<br />

140


141<br />

por que não se matava<br />

Fui encontrá -lo lá, mas o meu amigo se havia afastado do<br />

ruidoso cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.<br />

Pareceu -me triste e a nossa conversa não foi logo abundant<strong>em</strong>ente<br />

sustentada. Estiv<strong>em</strong>os alguns minutos calados,<br />

sorvendo aos goles a cerveja consoladora.<br />

O gasto <strong>de</strong> copos aumentou e ele então falou com mais<br />

abundância e calor. Em princípio, tratamos <strong>de</strong> coisas<br />

gerais <strong>de</strong> arte e letras. Ele não é literato, mas gosta das<br />

letras, e as acompanha com carinho e atenção. Ao fim <strong>de</strong><br />

digressões a tal respeito, ele me disse <strong>de</strong> repente:<br />

– Sabes por que não me mato?<br />

Não me espantei, porque tenho por hábito não me<br />

espantar com as coisas que se passam no chope. Disse -lhe<br />

muito naturalmente:<br />

–Não.<br />

– És contra o suicídio?<br />

– N<strong>em</strong> contra, n<strong>em</strong> a favor; aceito -o.<br />

– B<strong>em</strong>. Compreen<strong>de</strong>s perfeitamente que não tenho<br />

mais motivo para viver. Estou s<strong>em</strong> <strong>de</strong>stino, a minha vida<br />

não t<strong>em</strong> fim <strong>de</strong>terminado. Não quero ser senador, não<br />

quero ser <strong>de</strong>putado, não quero ser nada. Não tenho ambições<br />

<strong>de</strong> riqueza, não tenho paixões n<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejos. A minha<br />

vida me aparece <strong>de</strong> uma inutilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trapo. Já <strong>de</strong>scri <strong>de</strong><br />

tudo, da arte, da religião e da ciência.<br />

O Manuel serviu -nos mais dois chopes, com aquela<br />

<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za tão <strong>de</strong>le, e o meu amigo continuou:<br />

– Tudo o que há na vida, o que lhe dá encanto, já não<br />

me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes,<br />

é coisa que sai s<strong>em</strong>pre uma caceteação; não quero mulher,<br />

esposa, porque não quero ter filhos, continuar assim a<br />

longa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraças que her<strong>de</strong>i e está <strong>em</strong> mim <strong>em</strong><br />

estado virtual para passar aos <strong>outros</strong>. Não quero viajar;<br />

enfada. Que hei <strong>de</strong> fazer?


lima barreto<br />

Eu quis dar -lhe um conselho final, mas abstive -me, e<br />

respondi, <strong>em</strong> contestação:<br />

– Matar -te.<br />

– É isso que eu penso; mas…<br />

A luz elétrica enfraqueceu um pouco e cri que uma<br />

nuv<strong>em</strong> lhe passava no olhar doce e tranquilo.<br />

– Não tens corag<strong>em</strong>? – perguntei eu.<br />

– Um pouco; mas não é isso o que me afasta do fim<br />

natural da minha vida.<br />

– Que é, então?<br />

– É a falta <strong>de</strong> dinheiro!<br />

– Como? Um revólver é barato.<br />

– Eu me explico. Admito a pieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> mim, para os<br />

<strong>outros</strong>; mas não admito a pieda<strong>de</strong> dos <strong>outros</strong> para mim.<br />

Compreen<strong>de</strong>s b<strong>em</strong> que não vivo b<strong>em</strong>; o dinheiro que<br />

tenho é curto, mas dá para as minhas <strong>de</strong>spesas, <strong>de</strong> forma<br />

que estou s<strong>em</strong>pre com cobres curtos. Se eu ingerir aí<br />

qualquer droga, as autorida<strong>de</strong>s vão dar com o meu cadáver<br />

miseravelmente privado <strong>de</strong> notas do Tesouro. Que comentários<br />

farão? Como vão explicar o meu suicídio? Por falta<br />

<strong>de</strong> dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha<br />

vida, ato <strong>de</strong> supr<strong>em</strong>a justiça e profunda sincerida<strong>de</strong>, vai<br />

ser interpretado, através da pieda<strong>de</strong> profissional dos jornais,<br />

como reles questão <strong>de</strong> dinheiro. Eu não quero isso…<br />

Do fundo da sala, vinha a alegria dos jogadores <strong>de</strong><br />

bagatela; mas aquele casquinar não diminuía <strong>em</strong> nada a<br />

exposição das palavras sinistras do meu amigo.<br />

– Eu não quero isso – continuou ele. Quero que se dê ao<br />

ato o seu justo valor e que nenhuma consi<strong>de</strong>ração subalterna<br />

lhe diminua a elevação.<br />

– Mas escreve.<br />

– Não sei escrever. A aversão que há na minha alma<br />

exce<strong>de</strong> às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo<br />

142


143<br />

por que não se matava<br />

o que <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na<br />

banalida<strong>de</strong> e as nuanças fugidias dos meus sentimentos<br />

não serão registradas. Eu queria mostrar a todos que fui<br />

traído; que me prometeram muito e nada me <strong>de</strong>ram; que<br />

tudo isso é vão e s<strong>em</strong> sentido, estando no fundo <strong>de</strong>ssas<br />

coisas pomposas, arte, ciência, religião, a impotência <strong>de</strong><br />

todos nós diante <strong>de</strong> augusto mistério do mundo. Nada<br />

disso nos dá o sentido do nosso <strong>de</strong>stino; nada disto nos dá<br />

uma regra exata <strong>de</strong> conduta, não nos leva à felicida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong><br />

tira as coisas hediondas da socieda<strong>de</strong>. Era isso…<br />

– Mas v<strong>em</strong> cá: se tu morresses com dinheiro na algibeira,<br />

n<strong>em</strong> por tal…<br />

– Há nisso uma causa: a causa da miséria ficaria arredada.<br />

– Mas podia ser atribuído ao amor.<br />

– Qual. Não recebo cartas <strong>de</strong> mulher, não namoro, não<br />

requesto mulher alguma; e não podiam, portanto, atribuir<br />

ao amor o meu <strong>de</strong>sespero.<br />

– Entretanto, a causa não viria à tona e o teu ato não<br />

seria aquilatado <strong>de</strong>vidamente.<br />

– De fato, é verda<strong>de</strong>; mas a causa -miséria não seria evi<strong>de</strong>nte.<br />

Queres saber <strong>de</strong> uma coisa? Uma vez, eu me dispus.<br />

Fiz uma transação, arranjei uns quinhentos mil -réis. Queria<br />

morrer <strong>em</strong> beleza; man<strong>de</strong>i fazer uma casaca; comprei<br />

camisas etc. Quando contei o dinheiro, já era pouco. De<br />

outra, fiz o mesmo. Meti -me <strong>em</strong> uma gran<strong>de</strong>za e, ao amanhecer<br />

<strong>em</strong> casa, estava a níqueis.<br />

– De forma que é ter dinheiro para matar -te, zás, tens<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> divertir -te.<br />

– T<strong>em</strong> me acontecido isso; mas não julgues que estou<br />

prosando. Falo sério e franco.<br />

Nós nos calamos um pouco, beb<strong>em</strong>os um pouco <strong>de</strong> cerveja,<br />

e <strong>de</strong>pois eu observei:


lima barreto<br />

– O teu modo <strong>de</strong> matar -te não é violento, é suave. Estás<br />

a afogar -te <strong>em</strong> cerveja e é pena que não tenhas quinhentos<br />

<strong>contos</strong>, porque nunca te matarias.<br />

– Não. Quando o dinheiro acabasse, era fatal.<br />

– Zás, para o necrotério na miséria; e então?<br />

– É verda<strong>de</strong>… Continuava a viver.<br />

Rimo -nos um pouco do encaminhamento que a nossa<br />

palestra tomava.<br />

Pagamos a <strong>de</strong>spesa, apertamos a mão ao Adolfo, diss<strong>em</strong>os<br />

duas pilhérias ao Quincas e saímos.<br />

Na rua, os bon<strong>de</strong>s passavam com estrépido; homens e<br />

mulheres se agitavam nas calçadas; carros e automóveis<br />

iam e vinham…<br />

A vida continuava s<strong>em</strong> esmorecimentos, indiferente<br />

que houvesse tristes e alegres, felizes e <strong>de</strong>sgraçados, aproveitando<br />

a todos eles para o seu drama e a sua complexida<strong>de</strong>.<br />

144


Ele e suas i<strong>de</strong>ias *<br />

Conheci -o no t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que trabalhava na Fon ‑Fon. 103<br />

Era um hom<strong>em</strong> pequeno, magro, com um reduzido cavanhaque,<br />

b<strong>em</strong> tratado; mas a sua tragédia íntima e interior<br />

só a vim conhecer perfeitamente mais tar<strong>de</strong>. Não foram<br />

precisos muitos dias, mas foram precisos alguns.<br />

Andávamos por esse t<strong>em</strong>po na febre dos melhoramentos,<br />

das construções; e, a todo momento, ele l<strong>em</strong>brava a<br />

este ou aquele jornal uma i<strong>de</strong>ia.<br />

Um dia, era uma avenida; outro dia, era uma ponte, um<br />

jardim; e, <strong>de</strong> tal modo, a mania <strong>de</strong> ter i<strong>de</strong>ias o tomou, que<br />

não se limitava a <strong>de</strong>ixá -las pelos jornais. Ia além. Procurava<br />

<strong>em</strong> ministros, fazia requerimentos aos corpos legislativos,<br />

propondo tais e tais medidas.<br />

Era um pingar <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias diário, constante e teimoso.<br />

É <strong>de</strong> crer que, após o almoço, ele dissesse à mulher:<br />

“Filha, hoje tenho quatro i<strong>de</strong>ias”, e saísse contente a procurar<br />

redações, <strong>de</strong>putados, proprietários, ministros, chefes<br />

<strong>de</strong> serviço, escorrendo i<strong>de</strong>ias.<br />

* Publicado <strong>em</strong> Outras histórias, que integra a segunda edição do<br />

livro Histórias e sonhos (1951).<br />

145


lima barreto<br />

Nos jornais, ele propunha melhoramentos na folha,<br />

sessões, “enquetes”, autores para folhetim.<br />

Os secretários já o t<strong>em</strong>iam; e, quando ele apontava na<br />

porta da sala, coçava a cabeça e lá diziam consigo: – “lá<br />

v<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> que t<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ias”.<br />

E ele não tinha nenhuma pieda<strong>de</strong>; abancava -se ao lado<br />

do redator e, zás, duas i<strong>de</strong>ias. Para aquela fecundida<strong>de</strong>,<br />

não havia quase t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> gestação. Certas vezes, mesmo,<br />

entre duas i<strong>de</strong>ias, brotava outra; e, se esta era <strong>de</strong> um<br />

melhoramento urbano, enquanto a primeira era <strong>de</strong> coisa<br />

jornalística, ele <strong>de</strong>ixava o secretário e corria ao prefeito.<br />

O prefeito e o seu gabinete já conheciam o extraordinário<br />

e fecundo hom<strong>em</strong>; e, logo que ele se fazia anunciar,<br />

o chefe da cida<strong>de</strong> dizia para o secretário: “Esse diabo! Lá<br />

t<strong>em</strong>os o hom<strong>em</strong> das i<strong>de</strong>ias”.<br />

As suas i<strong>de</strong>ias eram as mais disparatadas possíveis.<br />

Quase s<strong>em</strong>pre eram inviáveis ou inúteis. Ele tinha viajado,<br />

<strong>de</strong> modo que queria ver no Rio todas as coisas soberbas<br />

do mundo: os jardins do Píncio, a torre Eiffel, o túnel<br />

sobre o Tâmisa.<br />

E ao acudir -lhe, por ex<strong>em</strong>plo, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar o Paraíba<br />

para a baía <strong>de</strong> Guanabara, corria às nossas autorida<strong>de</strong>s<br />

<strong>em</strong> engenharia e pedia o parecer <strong>de</strong>las.<br />

Ficaram os mesmos engenheiros atarantados, atordoados,<br />

apavorados, diante das extravagantes inutilida<strong>de</strong>s do<br />

homenzinho. Mas não se po<strong>de</strong> executar? Perguntava ele à<br />

menor objeção. Se tivesse resposta favorável, a sua fisionomia<br />

irradiava. Era <strong>de</strong> vê -lo nos momentos <strong>de</strong> concentração<br />

ou senão quando expendia as suas cogitações. Tinha<br />

então uma po<strong>de</strong>rosa beleza, que <strong>em</strong>polgava e a tornava<br />

simpática.<br />

Para levar os dias a <strong>de</strong>stilar i<strong>de</strong>ias, ele tinha que passar<br />

as noites a pensar. Creio que dormia pouco: todo ele<br />

146


147<br />

ele e suas i<strong>de</strong>ias<br />

se encontrava na função <strong>de</strong> ter i<strong>de</strong>ias. E era pródigo, e era<br />

generoso, e era <strong>de</strong>sperdiçado: pensava, tinha i<strong>de</strong>ias e dava<br />

aos <strong>outros</strong>.<br />

Em sua casa, a sua mania se propagara. A mulher, os<br />

filhos, os criados também tinhas i<strong>de</strong>ias. Quando lhe faltavam,<br />

recorria a eles.<br />

Uma vez, o cozinheiro até lhe <strong>de</strong>ra uma muito interessante:<br />

a dos bon<strong>de</strong>s restaurantes; e ele correra logo à<br />

Light 104 para l<strong>em</strong>brar a coisa.<br />

Ocasiões havia que ele ficava <strong>de</strong>solado, <strong>de</strong>sesperado e<br />

aflito: era quando não tinha nenhuma e da família nada<br />

podia sacar.<br />

– Ah! Chiquinha – dizia ele –, hoje saio s<strong>em</strong> nenhuma<br />

i<strong>de</strong>ia. Que vão dizer <strong>de</strong> mim? Estou <strong>de</strong>smoralizado…<br />

Quando, porém, lhe vinham muitas, que alegria! Que<br />

regozijo! A manhã ficava -lhe sorri<strong>de</strong>nte; cantarolava,<br />

arreliava…<br />

No bon<strong>de</strong>, logo ao encontrar o primeiro amigo, agitava<br />

a conversa e pespegava:<br />

– Aurélio, se o prefeito quisesse, podia fazer um gran<strong>de</strong><br />

melhoramento.<br />

– Qual é? Indagava o amigo.<br />

– Estabelecer um imenso foco elétrico no alto do Corcovado.<br />

Devia, por isso, a iluminação da cida<strong>de</strong> ficar mais<br />

perfeita.<br />

E dizia a coisa b<strong>em</strong> alto, para que os vizinhos ouviss<strong>em</strong>.<br />

Após ter dito, observava uma por uma as fisionomias e<br />

tomava -lhes o espanto pela admiração causada pelo arrojo<br />

<strong>de</strong> sua imaginação.<br />

Este hom<strong>em</strong> singular, este hom<strong>em</strong> que, no seu gênero<br />

era um Edison 105 ou um Marconi, 106 nunca foi apreciado.<br />

Os po<strong>de</strong>res públicos não tomaram na <strong>de</strong>vida consi<strong>de</strong>ração<br />

os seus projetos: os jornais não o apontavam à admiração


lima barreto<br />

do público, e ele vive hoje – triste, abandonado, <strong>de</strong>solado,<br />

<strong>em</strong> uma pequena cida<strong>de</strong> do interior.<br />

Estive com ele há dias, lá; e senti -me confrangido, diante<br />

<strong>de</strong> sua <strong>de</strong>solação, do seu abatimento. Conversamos sossegados<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma jaqueira úmida, e l<strong>em</strong>brei -lhe o<br />

seu passado e a glória que lhe escapou. Ele me ouviu triste,<br />

olhou -me <strong>de</strong>pois longamente e me disse:<br />

– Que se há <strong>de</strong> fazer? Esta terra não estima seus filhos…<br />

– Não é só aqui – disse -lhe eu – <strong>em</strong> toda parte é assim.<br />

– Mas nas outras terras, na França, na Inglaterra, nos<br />

Estados Unidos, há esperança <strong>de</strong> uma recompensa final;<br />

mas, no Brasil, que nos po<strong>de</strong> sustentar na luta?<br />

E abaixou a cabeça para o chão ingrato da pátria, que o<br />

havia criado, mas que não o soubera animar no árduo trabalho<br />

<strong>de</strong> ter i<strong>de</strong>ias. Não era um Mário nas ruínas <strong>de</strong> Cartago,<br />

107 porque afinal ele estava <strong>em</strong> sua pátria; era alguma<br />

coisa mais angustiosa, como que o próprio <strong>de</strong>salento <strong>em</strong><br />

pessoa. Eu lhe respeitei a dor; fugi ao assunto e tiv<strong>em</strong>os a<br />

conversar sobre umas várias e s<strong>em</strong> importância.<br />

Entar<strong>de</strong>cia e o crepúsculo vinha lentamente, pondo nas<br />

coisas a sua poesia dolente e a sua <strong>de</strong>liquescência. 108<br />

Levantei -me para me <strong>de</strong>spedir e ele veio até a porteira.<br />

Estiv<strong>em</strong>os ainda parados, a ver a imensa sebe <strong>de</strong><br />

bambus, curvados <strong>em</strong> nervuras <strong>de</strong> ogivas. Uma cigarra<br />

começou a estridular e os bambus agitaram -se um pouco,<br />

a um leve vento. Despedi -me afinal; mas, quando ia<br />

partir <strong>de</strong> vez, o hom<strong>em</strong> me disse, <strong>de</strong> repente cheio <strong>de</strong><br />

contenta mento:<br />

– Acabo <strong>de</strong> ter uma i<strong>de</strong>ia.<br />

– Qual é? – perguntei -lhe.<br />

– O aproveitamento do bambu para encanamento<br />

d’água, nas cida<strong>de</strong>s. Há economia e será uma fonte <strong>de</strong><br />

renda para o Brasil.<br />

148


149<br />

ele e suas i<strong>de</strong>ias<br />

Olhei -o atento, nada lhe disse e segui <strong>de</strong>vagar pela<br />

estrada <strong>em</strong> fora.


Uma aca<strong>de</strong>mia da roça *<br />

Na botica do Segadas – Farmácia Esperança – que pompeava<br />

a sua enorme tabuleta, na principal rua <strong>de</strong> Itaçaraí,<br />

cida<strong>de</strong> do estado <strong>de</strong>…, cabeça da respectiva comarca,<br />

reunia -se todas as tar<strong>de</strong>s um grupo seleto dos habitantes<br />

do lugarejo, para discutir letras, filosofia e artes.<br />

Era esse grupo formado das seguintes pessoas: doutor<br />

Aristogen Tebano das Verda<strong>de</strong>s, promotor público; doutor<br />

Joaquim Petronilho, médico clínico na comarca; Sebastião<br />

Canindé, sacristão da matriz; e o doutor Francisco<br />

Carlos Kauffman, austríaco e alveitar 109 <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />

fazenda <strong>de</strong> criação nos arredores. Dele, também fazia parte<br />

o proprietário da botica – o Segadas.<br />

O espanhol Santiago Ximénez, principal barbeiro da<br />

localida<strong>de</strong>, proprietário do Salão Verdun, aparecia, às<br />

vezes, na tertúlia; recitava um pouco <strong>de</strong> Campoamor 110 ou<br />

citava Escrich; 111 mas <strong>de</strong>spedia -se logo, a fim <strong>de</strong> ir para o<br />

botequim do Cunha, on<strong>de</strong> podia unir o útil ao agradável,<br />

isto é, juntar o parati ou a genebra ao poeta <strong>de</strong> sua paixão –<br />

* Publicado <strong>em</strong> Outras histórias, que integra a segunda edição do<br />

livro Histórias e sonhos (1951).<br />

151


lima barreto<br />

Campoamor – ou ao romancista <strong>de</strong> sua admiração – Pérez<br />

Escrich. Na botica, não havia disso e a sua literatura necessitava<br />

<strong>de</strong> um acompanhamento <strong>de</strong> beberiques.<br />

O presi<strong>de</strong>nte do grupo era espontaneamente o promotor<br />

que s<strong>em</strong>pre tinha versos a recitar e questões literárias<br />

a propor. A b<strong>em</strong> querida <strong>de</strong>le era indagar se mais valia a<br />

forma que o fundo ou vice -versa; inclinava -se pelo último,<br />

por isso gostava muito <strong>de</strong> Casimiro <strong>de</strong> Abreu e <strong>de</strong><br />

Fagun<strong>de</strong>s Varela.<br />

O doutor Petronilho não tinha opinião segura sobre<br />

o caso, tanto mais que, a não ser Bilac, ele não suportava<br />

outro poeta; entretanto, vivia possuído <strong>de</strong> particular<br />

admiração por Aristogen e a sua versalhada <strong>de</strong>senxabida.<br />

Coisas…<br />

Sebastião Canindé era, pela forma, parnasiano da g<strong>em</strong>a;<br />

mas os versos que publicava no jornal da localida<strong>de</strong> eram<br />

horrivelmente errados e rimados a martelo; eram piores do<br />

que os <strong>de</strong> Aristogen. Tinha as charadas por especialida<strong>de</strong>.<br />

O austríaco não sabia nada <strong>de</strong>ssas coisas. Lera os poetas<br />

<strong>de</strong> sua pátria, alguns al<strong>em</strong>ães e italianos, a Bíblia, Shakespeare<br />

e o Dom Quixote.<br />

Não percebia nada <strong>de</strong>ssa história <strong>de</strong> épocas e escolas<br />

literárias. Ia à reunião para distrair -se.<br />

Um belo dia, Aristogen l<strong>em</strong>brou aos companheiros:<br />

– Vamos fundar uma Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Letras?<br />

Canindé indagou:<br />

– Daqui, do município?<br />

– Sim, respon<strong>de</strong>u Aristogen. Vamos?<br />

O doutor Petronilho observou:<br />

– Quantos m<strong>em</strong>bros?<br />

Aristogen acudiu logo:<br />

– Quarenta, por certo!<br />

O doutor Kauffman refletiu:<br />

152


153<br />

uma aca<strong>de</strong>mia da roça<br />

– Oh! Eu acho muito.<br />

Aristogen objetou:<br />

– Muito! Não há tal! Há, além dos resi<strong>de</strong>ntes aqui nascidos<br />

ou não no lugar, muito filho do município ilustre<br />

que anda por aí.<br />

Olhe: o doutor Penido Veiga, nosso representante na<br />

Câmara Fe<strong>de</strong>ral, é um fino intelectual; po<strong>de</strong>, portanto,<br />

fazer parte <strong>de</strong>la. O tenente Barnabé, que aqui nasceu, acaba<br />

<strong>de</strong> fazer com brilho o curso <strong>de</strong> aviação; po<strong>de</strong> também<br />

fazer parte. O Jesuíno, filho do Inácio, ali do “armazém”,<br />

vive <strong>em</strong> <strong>de</strong>staque no Tribunal <strong>de</strong> Contas, para on<strong>de</strong> entrou<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um concurso brilhante: está naturalmente indicado<br />

a ser um dos m<strong>em</strong>bros.<br />

E, assim, muitos <strong>outros</strong>.<br />

Com sujeitos portadores <strong>de</strong> s<strong>em</strong>elhantes títulos literários,<br />

Aristogen organizou a sua aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> letras <strong>de</strong><br />

quarenta m<strong>em</strong>bros, porque ela não podia ficar por baixo<br />

das outras, inclusive a brasileira, tendo menos imortais<br />

que elas.<br />

Veio o dia da instalação solene que, <strong>em</strong> falta <strong>de</strong> local<br />

mais a<strong>de</strong>quado, teve lugar na barraca <strong>de</strong> lona do circo <strong>de</strong><br />

cavalinhos que trabalhava na cida<strong>de</strong>, por aquela ocasião.<br />

Os acadêmicos presentes, inclusive o barbeiro Ximénez<br />

e o austríaco Kauffman, que eram do número <strong>de</strong>les,<br />

sentaram -se ao redor <strong>de</strong> uma longa mesa, que fora colocada<br />

no centro do pica<strong>de</strong>iro.<br />

Os convidados especiais tomaram lugar nas ca<strong>de</strong>iras,<br />

arrumadas na linha da circunferência que fechava o círculo<br />

das acrobacias, peloticas 112 e correrias <strong>de</strong> cavalos. As<br />

arquibancadas, para o povo miúdo, entrada franca.<br />

Uma charanga, a Banda Flor das Dores <strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora, tocava à entrada da barraca, dobrados estri<strong>de</strong>ntes<br />

e polcas chorosas.


lima barreto<br />

Aristogen tomou a presidência, tendo ao lado direito<br />

o presi<strong>de</strong>nte da câmara, coronel Manuel Pafúncio; e, à<br />

esquerda, o secretário -geral, o sacristão Canindé.<br />

Depois <strong>de</strong> lido o expediente, começou a pronunciar o<br />

seu discurso <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> castigada, porque, se não o era<br />

no verso, na prosa ele era parnasiano e clássico.<br />

Começou:<br />

– Senhores: Após longo <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po, lamentavelmente<br />

riçado por dificulda<strong>de</strong>s, impedimentos, estorvos<br />

gran<strong>de</strong>s, que adversaram a instituição <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>sta<br />

Aca<strong>de</strong>mia – é possível, alfim, realizar o ato <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> sua<br />

diretoria, e eu procurarei salientar a <strong>de</strong>terminante fundamental<br />

<strong>de</strong>ste Instituto.<br />

Logo neste período, o doutor Petronilho observou baixinho<br />

ao austríaco:<br />

– É castiço. Fala que n<strong>em</strong> o Aluísio. Não achas?<br />

O austríaco respon<strong>de</strong>u <strong>em</strong> voz baixa também:<br />

– Oh! Eu não sape essas coisas.<br />

Aristogen continuou:<br />

– Basta que, à fé sincera, eu vo -lo afirme: há, <strong>de</strong>ntre os<br />

eleitos para esta Egrégia Companhia, os que <strong>de</strong>salentaram<br />

<strong>em</strong> meio da jornada; há os que se <strong>de</strong>ixaram <strong>em</strong>polgar<br />

<strong>de</strong> tanta vaida<strong>de</strong> que já se sent<strong>em</strong> sobrelevados aos<br />

que lhes foram pares na eleição; há os que do alto do seu<br />

valor, gozando a convicção própria <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> olímpicos,<br />

supr<strong>em</strong>os, sorriram, num sorriso complacente <strong>de</strong> superior<br />

con<strong>de</strong>scendência, aos pigmeus que lhes buscaram a honra<br />

<strong>em</strong>inente do convívio. É, pois, urgente, inadiável <strong>de</strong>tergir<br />

esta Aca<strong>de</strong>mia. Petronilho, ainda cochichando, confi<strong>de</strong>nciou<br />

aos ouvidos do al<strong>em</strong>ão:<br />

– Não te dizia? É mais que o Aluísio; é o próprio Rui.<br />

A assistência estava <strong>em</strong>bascada com fraseado tão bonito,<br />

que, na sua maioria, ela mal compreendia.<br />

154


155<br />

uma aca<strong>de</strong>mia da roça<br />

Chegava ao final com este período:<br />

– Se proce<strong>de</strong>rmos concor<strong>de</strong> ao padrão que ora vos<br />

proponho, <strong>em</strong>bora fosse ele discutido às rebatinhas, 113<br />

estou certo que ganharão timbre <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> as palavras<br />

refregentes [sic] <strong>de</strong> Canindé, <strong>de</strong> Barnabé, <strong>de</strong> Kauffman e<br />

<strong>outros</strong>, quando, d’alma inspirada, anteviram no apogeu<br />

esta Aca<strong>de</strong>mia, qual n<strong>em</strong> eu quisera!<br />

Não teve t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> sentar -se o orador, porque, no exato<br />

momento <strong>em</strong> que acabava a sua oração, os cavalos do circo,<br />

livrando -se das prisões que os subjugavam, invadiram<br />

a arena <strong>em</strong> que estavam os acadêmicos, e os afugentaram<br />

a todos eles, unicamente por ação <strong>de</strong> presença.<br />

Nunca mais a Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Letras <strong>de</strong> Itaçaraí se reuniu.


Notas/Glossário<br />

1. Carreiro: indivíduo que conduz carro <strong>de</strong> boi; cocheiro.<br />

2. Referência ao romance Paulo e Virgínia, escrito <strong>em</strong> 1787<br />

pelo francês Bernardin <strong>de</strong> Saint -Pierre.<br />

3. Sotero, Cândido <strong>de</strong> Figueiredo, Castro Lopes: referência<br />

a Francisco Sotero dos Reis, Antônio Cândido <strong>de</strong> Figueiredo<br />

e Antônio <strong>de</strong> Castro Lopes, gramáticos e filólogos da<br />

língua portuguesa no século XIX.<br />

4. Vernaculismo: tendência a utilizar a língua, escrita ou<br />

falada, respeitando seus valores vernáculos <strong>de</strong> pureza e<br />

correção.<br />

5. Gral: recipiente usado para triturar e homogeneizar substâncias<br />

sólidas; pilão.<br />

6. Tisana: medicamento líquido extraído <strong>de</strong> alguma planta<br />

medicinal.<br />

7. Coletor: pessoa (geralmente da Fazenda Pública) encarregada<br />

do lançamento e da arrecadação <strong>de</strong> tributos;<br />

cobrador.<br />

8. Referência a Raimundo Teixeira Men<strong>de</strong>s, autor da ban<strong>de</strong>ira<br />

nacional republicana e um dos fundadores da Igreja Positivista<br />

do Brasil, entida<strong>de</strong> que na época aglutinava a<strong>de</strong>ptos<br />

da abolição da escravatura e da proclamação da República.<br />

157


lima barreto<br />

9. Potosi: referência à cida<strong>de</strong> boliviana <strong>de</strong> Potosí, famosa pela<br />

exploração <strong>de</strong> prata durante o século XVII.<br />

10. Sânie: líquido fétido, com pus e sangue, que escoa <strong>de</strong> uma<br />

úlcera, ferida ou fístula; podridão.<br />

11. Referência ao personag<strong>em</strong> do romance Gil Blas <strong>de</strong> San‑<br />

tillana, <strong>de</strong> Alain -Rene LeSage (1668-1747), publicado <strong>em</strong><br />

1715; na novela, o protagonista <strong>de</strong> baixa extração social é<br />

forçado a trabalhar como criado a serviço <strong>de</strong> diferentes<br />

amos ao longo da vida, mas acaba na corte como o favorito<br />

do Rei.<br />

12. Bandó: cada uma das partes <strong>em</strong> que, num certo tipo <strong>de</strong><br />

penteado, o cabelo é repartido ao meio e esticado para os<br />

lados da cabeça, sendo preso atrás geralmente num coque.<br />

13. Alcobaça: gran<strong>de</strong> lenço <strong>de</strong> algodão, geralmente <strong>de</strong> cor<br />

vermelha.<br />

14. Simonte: tabaco <strong>de</strong> pó fino, usado geralmente como rapé,<br />

para cheirar.<br />

15. In -quarto: formato <strong>de</strong> livro cujas folhas <strong>de</strong> impressão são<br />

dobradas duas vezes, resultando num ca<strong>de</strong>rno com quatro<br />

folhas ou oito páginas.<br />

16. Cartapácio: livro gran<strong>de</strong> e antigo; calhamaço; livro gran<strong>de</strong><br />

e fútil; alfarrábio.<br />

17. Vasconço: linguag<strong>em</strong> confusa, ininteligível ou afetada.<br />

18. Crônicon: história medieval volumosa, com excessos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>talhes.<br />

19. Tagalo: malaio; filipino.<br />

20. Referência a Abel Hovelacque (1843-1896), linguista<br />

francês.<br />

21. Referência a Friedrich Max Müller (1823-1900), linguista,<br />

orientalista e mitólogo al<strong>em</strong>ão.<br />

22. Cumeada: apogeu; ápice.<br />

23. Tr<strong>em</strong>: comitiva.<br />

24. Pope: antiga marca <strong>de</strong> automóvel.<br />

158


25. Pleureuse: ornamento <strong>de</strong> plumas <strong>de</strong> avestruz.<br />

159<br />

notas/glossário<br />

26. Croupier: caixa; indivíduo que registra vendas e recebe<br />

pagamentos.<br />

27. Montra: vitrine.<br />

28. Folha <strong>de</strong> flandres: fina chapa <strong>de</strong> ferro laminado coberta<br />

com uma camada <strong>de</strong> estanho.<br />

29. Casas <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>z ‑vous: prostíbulos.<br />

30. Paquete: navio; barco.<br />

31. Referência à Companhia Ferro -Carril do Jardim Botânico,<br />

<strong>em</strong>presa <strong>de</strong> transportes públicos no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

32. Tílburi: carro <strong>de</strong> duas rodas e dois assentos puxado por<br />

um só animal.<br />

33. Cançoneta: canção ligeira, b<strong>em</strong> -humorada, às vezes<br />

satírica.<br />

34. Maturi: castanha <strong>de</strong> caju ainda ver<strong>de</strong>.<br />

35. Entono: altivez; arrogância.<br />

36. Sorites: raciocínio composto <strong>de</strong> um número in<strong>de</strong>terminado<br />

<strong>de</strong> proposições, <strong>de</strong> modo que o atributo da primeira<br />

se torna sujeito da segunda, o atributo da segunda sujeito<br />

da terceira, e assim por diante até a conclusão, na qual se<br />

une o sujeito da primeira e o atributo da última.<br />

37. Calistenes (c. 357-327 a.C.): referência a um historiador<br />

grego do grupo <strong>de</strong> cientistas e engenheiros que acompanhavam<br />

Alexandre, o Gran<strong>de</strong>, <strong>em</strong> suas conquistas pela<br />

Ásia. Envolveu -se <strong>em</strong> um fracassado atentado contra<br />

a vida <strong>de</strong> Alexandre, sendo julgado, con<strong>de</strong>nado e preso<br />

como traidor. Há, porém, controvérsias quanto a Calistenes<br />

ter sido executado a mando <strong>de</strong> Alexandre ou morrido<br />

na prisão.<br />

38. Al<strong>de</strong>barã: estrela mais brilhante da constelação Taurus.<br />

39. Chatinag<strong>em</strong>: charlatanice; <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong>.<br />

40. Veniaga: trapaça; negociata.<br />

41. Estultice: tolice; estupi<strong>de</strong>z.


lima barreto<br />

42. Catita: elegante; atraente.<br />

43. Referência a Sir William Herschel (1738-1822), astrônomo<br />

inglês nascido na Al<strong>em</strong>anha.<br />

44. Falua: <strong>em</strong>barcação <strong>de</strong> duas velas, para águas pouco<br />

profundas.<br />

45. Carrião: eixo com duas rodas.<br />

46. Cábrea: espécie <strong>de</strong> guindaste para suspen<strong>de</strong>r gran<strong>de</strong>s<br />

pesos.<br />

47. Almanjarra: pau ou trave por on<strong>de</strong> puxa o animal.<br />

48. Apotegma: palavra m<strong>em</strong>orável; máxima.<br />

49. Ben<strong>de</strong>ngó: coisa imensa, pesadíssima.<br />

50. Sicofanta: acusador; caluniador, mentiroso; adulador servil,<br />

interesseiro.<br />

51. Ergástulo: cárcere, prisão, calabouço.<br />

52. Caaba ou Kaaba: construção que é reverenciada pelos<br />

muçulmanos, na mesquita sagrada <strong>de</strong> Al Masjid<br />

Al -Haram, <strong>em</strong> Meca.<br />

53. Alteia: gênero <strong>de</strong> plantas, da família das malváceas, com<br />

proprieda<strong>de</strong>s medicinais.<br />

54. Alfurja: antro; lugar frequentado por gente <strong>de</strong>sclassificada.<br />

55. Mazombo: filho <strong>de</strong> pais estrangeiros, sobretudo <strong>de</strong> portugueses,<br />

que nasce no Brasil; indivíduo sorumbático,<br />

mal -humorado.<br />

56. Ferrabrás: aquele que alar<strong>de</strong>ia corag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> ser corajoso;<br />

fanfarrão.<br />

57. Referência a Joseph Arthur <strong>de</strong> Gobineau (1816-1882), diplomata,<br />

escritor e filósofo francês, um dos mais importantes<br />

teóricos do racismo no século XIX.<br />

58. Referência sarcástica a medidas <strong>de</strong> ângulo facial usadas<br />

pela antropologia criminal na aferição <strong>de</strong> características<br />

como a raça do indivíduo; tais métodos foram largamente<br />

utilizados <strong>em</strong> teorias racistas, ligando características biométricas<br />

a padrões <strong>de</strong> inteligência e comportamento.<br />

160


161<br />

notas/glossário<br />

59. Ágape: banquete ou almoço <strong>de</strong> confraternização.<br />

60. Lambrequim: ornato <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ou metal utilizado <strong>em</strong><br />

beiras <strong>de</strong> telhados, cortinas etc. <strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong> ironiza aqui,<br />

como <strong>em</strong> <strong>outros</strong> <strong>contos</strong>, a Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras.<br />

61. Cediça: ultrapassada; <strong>de</strong>sagradável.<br />

62. Referência a Sidarta Gautama (c. 563 a.C. ou 623 a.C.), também<br />

conhecido como Sakyamuni ou Shakyamuni (“sábio<br />

dos Shakyas”) e popularmente chamado <strong>de</strong> Buda, professor<br />

espiritual e fundador do budismo.<br />

63. Néscio: estúpido; ignorante.<br />

64. Ul<strong>em</strong>á: entre os muçulmanos, um doutor <strong>em</strong> leis e religião,<br />

que explica o Alcorão, presi<strong>de</strong> os exercícios religiosos e<br />

administra a justiça.<br />

65. Marosca: trapaça, tramoia.<br />

66. Faluca: <strong>em</strong>barcação da costa marroquina.<br />

67. Chéchia: turbante.<br />

68. Vilaiete: província do Império Otomano administrada por<br />

um uale, que, na Argélia, é o responsável por uma divisão<br />

administrativa.<br />

69. Cai<strong>de</strong> (do árabe qaid): lí<strong>de</strong>r, mestre; título aplicado aos<br />

funcionários palatinos e m<strong>em</strong>bros da cúria, geralmente<br />

para aqueles que eram muçulmanos.<br />

70. Bei: entre os turcos, título atribuído a oficiais superiores<br />

do exército, a altos funcionários da administração e aos<br />

príncipes vassalos do sultão otomano.<br />

71. Rume: nome que os europeus davam aos turcos entre os<br />

séculos XV e XVIII.<br />

72. Saas (do árabe saa’): medida correspon<strong>de</strong>nte a dois<br />

punhados.<br />

73. Gour<strong>de</strong>: unida<strong>de</strong> monetária do Haiti. O termo já era usado<br />

como padrão monetário <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1813.<br />

74. Falaz: enganador.


lima barreto<br />

75. Cabila: grupo nôma<strong>de</strong> que vive mudando <strong>de</strong> lugar <strong>em</strong><br />

busca <strong>de</strong> pasto.<br />

76. Blandícia: mimo; adulação.<br />

77. Alcáçar: fortaleza, castelo, palácio fortificado, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong><br />

moura, residência <strong>de</strong> governador, alcai<strong>de</strong> ou mesmo <strong>de</strong> rei.<br />

78. Goum: no Norte da África, um esquadrão do exército francês<br />

formado por soldados nativos.<br />

79. Marabuto: sacerdote muçulmano <strong>de</strong> vida ascética, venerado<br />

<strong>em</strong> vida e após a morte como um santo; morabito.<br />

80. Referência a Manco Capac, primeiro rei da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Cuzco, nascido no século XI.<br />

81. Sezões: febre intermitente ou cíclica; malária.<br />

82. Exegeta: indivíduo que realiza exegese (interpretação) <strong>de</strong><br />

uma obra; comentarista, intérprete.<br />

83. Referência ao Teatro D. Pedro II, inaugurado no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro <strong>em</strong> 1871 e <strong>de</strong>molido, já com o nome <strong>de</strong> Teatro<br />

Lírico, <strong>em</strong> 1934.<br />

84. A<strong>de</strong>mane: aceno.<br />

85. Hors ‑ligne: <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> acima da média; excepcional, fora<br />

do comum.<br />

86. Pechisbeque: ouro falso; objeto <strong>de</strong> pouco valor.<br />

87. Referência a Jacques Anatole François Thibault, mais<br />

conhecido como Anatole France (1844-1924), escritor<br />

francês.<br />

88. Maxambomba: (corruptela <strong>de</strong> machine pump) era um<br />

veículo <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> passageiros constituído <strong>de</strong> uma<br />

pequena locomotiva que puxava dois ou três vagões, <strong>de</strong><br />

um ou dois andares.<br />

89. Fâmulo: pessoa que presta serviços domésticos; criado,<br />

<strong>em</strong>pregado.<br />

90. Espevitador: atiçador.<br />

91. Gamela: vasilha <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ou <strong>de</strong> barro, <strong>de</strong> vários tamanhos,<br />

usada para banhos, lavagens e <strong>outros</strong> fins.<br />

162


163<br />

notas/glossário<br />

92. Guéridon: pequena mesa com tampo redondo e um único<br />

pé central.<br />

93. Incunábulo: diz -se <strong>de</strong> obra rara ou que data do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que sua técnica foi <strong>de</strong>senvolvida.<br />

94. Burel: tecido grosseiro <strong>de</strong> lã.<br />

95. Nigromante: indivíduo que adivinha o futuro por meio <strong>de</strong><br />

contato com os mortos; bruxo.<br />

96. Edição princeps: primeira edição <strong>de</strong> qualquer obra. Usa-<br />

-se a expressão principalmente para se referir às primeiras<br />

edições <strong>de</strong> textos clássicos.<br />

97. Canotier: chapéu <strong>de</strong> palha oval com a borda inferior plana,<br />

geralmente adornado com uma fita.<br />

98. Doesto: injúria; insulto.<br />

99. Boceta: caixinha pequena, cilíndrica ou oval, usada para<br />

guardar pequenos objetos.<br />

100. Avoengo: que se herda ou se obtém dos avós ou<br />

antepassados.<br />

101. Coupé: carruag<strong>em</strong> fechada, <strong>de</strong> tração animal, <strong>de</strong> duas portas<br />

e geralmente dois lugares, com o cocheiro num banco<br />

à frente.<br />

102. Silogeu: antigo prédio que abrigou por vários anos, no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a<br />

Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Medicina, o Instituto dos Advogados do Brasil<br />

e a Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Recebeu esse nome<br />

porque a palavra silogeu significa “casa ou local para reunião<br />

<strong>de</strong> associação literária ou científica”.<br />

103. Fon ‑Fon: revista brasileira surgida no Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>em</strong><br />

1907. Seu nome era uma onomatopeia do barulho produzido<br />

pela buzina dos automóveis.<br />

104. Light: companhia <strong>de</strong> energia elétrica do Estado do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro.


lima barreto<br />

105. Referência a Thomas Alva Edison (1847-1931), inventor da<br />

lâmpada elétrica incan<strong>de</strong>scente e um dos precursores da<br />

revolução tecnológica do século XX.<br />

106. Referência a Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor<br />

italiano, consi<strong>de</strong>rado o inventor do rádio e ganhador<br />

do Prêmio Nobel <strong>de</strong> Física <strong>de</strong> 1909.<br />

107. Referência a Caio Mário (c. 157 a.C. -86 a.C.), político e<br />

general da República Romana que participou da Terceira<br />

Guerra Púnica, última das guerras a opor Roma e Cartago.<br />

108. Deliquescência: <strong>de</strong>sagregação; <strong>de</strong>cadência.<br />

109. Alveitar: pessoa que trata animais doentes com base<br />

somente na experiência, s<strong>em</strong> os necessários conhecimentos<br />

<strong>de</strong> veterinária; médico incompetente.<br />

110. Referência a Ramón <strong>de</strong> Campoamor y Campoosorio (1817-<br />

1901), poeta espanhol.<br />

111. Referência a Enrique Perez Escrich (1829-1897), popular<br />

romancista e dramaturgo espanhol.<br />

112. Pelotica: arte ou técnica <strong>de</strong> iludir com truques que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<br />

da agilida<strong>de</strong> das mãos; prestidigitação.<br />

113. Rebatinha: coisa muito disputada, muito <strong>de</strong>batida.<br />

164


En<strong>de</strong>reços úteis<br />

Além dos pontos <strong>de</strong> distribuição da Coleção De <strong>Mão</strong><br />

Em <strong>Mão</strong>, conheça também as unida<strong>de</strong>s do Sist<strong>em</strong>a Municipal<br />

<strong>de</strong> Bibliotecas, on<strong>de</strong> é possível consultar e <strong>em</strong>prestar<br />

livros e <strong>outros</strong> materiais, b<strong>em</strong> como usufruir <strong>de</strong> ampla<br />

programação cultural.<br />

Para efetuar <strong>em</strong>préstimo <strong>em</strong> uma das unida<strong>de</strong>s, basta<br />

se inscrever e obter seu cartão <strong>de</strong> leitor, levando documento<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e comprovante <strong>de</strong> residência. Seu cartão<br />

do leitor valerá para todas as bibliotecas do Sist<strong>em</strong>a. Confira<br />

o regulamento <strong>de</strong> <strong>em</strong>préstimo no site ou <strong>em</strong> uma das<br />

unida<strong>de</strong>s.<br />

Para consultar o acervo disponível <strong>em</strong> cada biblioteca,<br />

a programação cultural e outras informações, acesse o site<br />

www.bibliotecas.sp.gov.br.<br />

Toda a programação do Sist<strong>em</strong>a Municipal <strong>de</strong> Bibliotecas<br />

é gratuita.<br />

A seguir estão listados en<strong>de</strong>reços <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s vinculadas<br />

à Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura.<br />

165


lima barreto<br />

Bibliotecas públicas <strong>de</strong>scentralizadas<br />

Ao todo, são 52 bibliotecas espalhadas pelos bairros<br />

da cida<strong>de</strong>. Oito <strong>de</strong>las faz<strong>em</strong> parte do projeto Bibliotecas<br />

T<strong>em</strong>áticas, que oferece acervo e ativida<strong>de</strong>s específicas nas<br />

suas áreas <strong>de</strong> atuação.<br />

A<strong>de</strong>lpha Figueiredo<br />

Pça. Ilo Ottani, 146, Canindé, tel.: 2292-3439<br />

Afonso Taunay<br />

R. Taquari, 549, Mooca, tel.: 2292-5126<br />

Afonso Schmidt<br />

Av. Elisio Teixeira Leite, 1470, Cruz das Almas, tel.: 3975-2305<br />

Alceu Amoroso <strong>Lima</strong> – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> poesia<br />

Av. Henrique Schaumann, 777, Pinheiros, tels.: 3082-5023 /<br />

3081-6092<br />

Álvares <strong>de</strong> Azevedo<br />

Pça. Joaquim José da Nova, s/n, V. Maria, tel.: 2954-2813<br />

Álvaro Guerra<br />

Av. Pedroso <strong>de</strong> Moraes, 1919, Pinheiros, tel.: 3031-7784<br />

Ama<strong>de</strong>u Amaral<br />

R. José C. Castro, s/n, Jd. da Saú<strong>de</strong>, tel.: 5061-3320<br />

Anne Frank<br />

R. Cojuba, 45, Itaim Bibi, tel.: 3078-6352<br />

Arnaldo Magalhães Giácomo, Prof.<br />

R. Restinga, 136, Tatuapé, tel.: 2295-0785<br />

Aureliano Leite<br />

R. Otto Schubart, 196, Pq. São Lucas, tel.: 2211-7716<br />

Belmonte – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> cultura popular<br />

R. Paulo Eiró, 525, Santo Amaro, tels.: 5687-0408 / 5691-0433<br />

Brito Broca<br />

Av. Mutinga, 1425, Pirituba, tels.: 3904-1444 / 3904-2476<br />

166


167<br />

en<strong>de</strong>reços úteis<br />

Camila Cerqueira César<br />

R. Wal<strong>de</strong>mar Sanches, 41, Butantã, tel.: 3731-5210<br />

Cassiano Ricardo – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> música<br />

Av. Celso Garcia, 4200, Tatuapé, tel.: 2092-4570<br />

Castro Alves<br />

R. Abrahão Mussa, s/n, Jd. Patente, tel.: 2946-4562<br />

Clarice Lispector<br />

R. Jaricunas, 458, Siciliano, tel.: 3672-1423<br />

Cora Coralina<br />

R. Otelo Augusto Ribeiro, 113, Guaianases, tel.: 2557-8004<br />

Érico Veríssimo<br />

R. Diógenes Dourado, 101, Parada <strong>de</strong> Taipas, tel.: 3972-0450<br />

Gilberto Freyre<br />

R. José Joaquim, 290, Sapop<strong>em</strong>ba, tel.: 2143-1811<br />

Hans Christian An<strong>de</strong>rsen – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> <strong>contos</strong> <strong>de</strong> fadas<br />

Av. Celso Garcia, 4142, Tatuapé, tel.: 2295-3447<br />

Helena Silveira<br />

R. João Batista Reimão, 146, Campo Limpo, tel.: 5841-1259<br />

Jamil Almansur Haddad<br />

R. An<strong>de</strong>s, 491-A, Guaianases, tel.: 2557-0067<br />

José <strong>de</strong> Anchieta, Pe.<br />

R. Antonio Maia, 651, Perus, tel.: 3917-0751<br />

José Mauro <strong>de</strong> Vasconcelos<br />

Pça. Com. Eduardo Oliveira, 100, Pq. Edu Chaves, tels.: 2242-<br />

8196 / 2242-1072<br />

José Paulo Paes<br />

Lgo. do Rosário, 20, Penha, tels.: 2295-9624 / 2295-0401<br />

Jovina Rocha Álvares Pessoa<br />

Av. Pe. Francisco <strong>de</strong> Toledo, 331, Itaquera, tels.: 2741-7371 /<br />

2741-0371<br />

Lenira Fraccaroli<br />

Pça. Haroldo Daltro, 451, Vila Manchester, tel.: 2295-2295


lima barreto<br />

Malba Tahan<br />

R. Brás Pires Meira, 100, Veleiros, tel.: 5523-4556<br />

Marcos Rey<br />

Av. Anacê, 92, Jardim Umarizal, tel.: 5845-2572<br />

Mário Schenberg – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> ciências<br />

R. Catão, 611, Lapa, tel.: 3672-0456<br />

Menotti Del Picchia<br />

R. São Romualdo, 382, Limão, tels.: 3966-4814 / 3956-5070<br />

Milton Santos<br />

Av. Aricanduva, 5777, Jardim Aricanduva, tel.: 2726-4882<br />

Narbal Fontes<br />

R. Cons. Moreira <strong>de</strong> Barros, 170, Santana, tel.: 2973-4461<br />

Nuto Sant’Anna<br />

Pça. Tenório Aguiar, 32, Santana, tel.: 2973-0072<br />

Paulo Duarte<br />

R. Arsênio Tavollieri, 45, Jabaquara, tels.: 5011-8819 / 5011-7445<br />

Paulo Sérgio Milliet<br />

Pça. Ituzaingó, s/n, Tatuapé, tel.: 2671-4974<br />

Paulo Setúbal<br />

Av. Renata, 163, Vila Formosa, tels.: 2211-1508 / 2211-1507<br />

Pedro Nava<br />

Av. Eng. Caetano Álvares, 5903, Mandaqui, tels.: 2973-7293 /<br />

2950-3598<br />

Prestes Maia, Pref. (fechada para reforma, retomará as ativida‑<br />

<strong>de</strong>s no 2o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2012)<br />

Av. João Dias, 822, Santo Amaro, tel.: 5687-0513<br />

Raimundo <strong>de</strong> Menezes<br />

Av. Nor<strong>de</strong>stina, 780, São Miguel Paulista, tel.: 2297-4053<br />

Raul Bopp – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> meio ambiente<br />

R. Muniz <strong>de</strong> Sousa, 1155, Aclimação, tel.: 3208-1895<br />

Ricardo Ramos<br />

Pça. Centenário <strong>de</strong> Vila Pru<strong>de</strong>nte, 25, Vila Pru<strong>de</strong>nte, tel.:<br />

2273-4860<br />

168


Roberto Santos – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> cin<strong>em</strong>a<br />

169<br />

en<strong>de</strong>reços úteis<br />

R. Cisplatina, 505, Ipiranga, tels.: 2273-2390 / 2063-0901<br />

Rubens Borba <strong>de</strong> Moraes<br />

R. Sampei Sato, 440, Ermelino Matarazzo, tel.: 2943-5255<br />

Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda<br />

R. Augusto C. Baumman, 564, Itaquera, tel.: 2205-7406<br />

Sylvia Orthof<br />

Av. Tucuruvi, 808, Tucuruvi, tels.: 2981-6264 / 2981-6263<br />

Thales Castanho <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

R. Dr. Artur Fajardo, 447, Freguesia do Ó, tel.: 3975-7439<br />

Vicente <strong>de</strong> Carvalho<br />

R. Guilherme Valência, 210, Itaquera, tel.: 2521-0553<br />

Vicente Paulo Guimarães<br />

R. Jaguar, 225, V. Curuçá, tels.: 2035-5322 / 2034-0646<br />

Vinicius <strong>de</strong> Moraes<br />

Av. Jardim Tamoio, 1119, Itaquera, tel.: 2521-6914<br />

Viriato Corrêa – T<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> literatura fantástica<br />

R. Sena Madureira, 298, V. Mariana, tels.: 5573-4017 /<br />

5574-0389<br />

Bibliotecas centrais<br />

Tradicional instituição do país, a Biblioteca Mário <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> possui acervo expressivo com <strong>de</strong>staque para as<br />

coleções <strong>de</strong> artes, mapas, periódicos, obras raras e acervo<br />

da ONU.<br />

Já a Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato reúne<br />

significativo acervo <strong>de</strong> literatura brasileira, infantil e<br />

juvenil, acervo bibliográfico e museológico sobre Monteiro<br />

Lobato <strong>de</strong> textos teatrais.


lima barreto<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Av. São Luis, 235, República, tel. 3256-5270<br />

Monteiro Lobato<br />

R. Gal. Jardim, 485, V. Buarque, tel.: 3256-4038<br />

Bibliotecas do Centro Cultural São Paulo<br />

Abrigam um dos mais significativos patrimônios<br />

bibliográficos do país.<br />

Na Biblioteca Sérgio Milliet <strong>de</strong>stacam-se obras nas<br />

áreas <strong>de</strong> literatura latino-americana, filosofia, religião,<br />

ciências sociais e história. Possui seções especializadas<br />

<strong>em</strong> artes, h<strong>em</strong>eroteca, recursos audiovisuais e banco <strong>de</strong><br />

peças teatrais.<br />

A Biblioteca Louis Braille, planejada e equipada para<br />

aten<strong>de</strong>r a pessoas com <strong>de</strong>ficiência visual, possui acervo<br />

<strong>em</strong> braile e áudio.<br />

A Gibiteca Henfil t<strong>em</strong> mais <strong>de</strong> 8 mil títulos entre quadrinhos,<br />

fanzines, periódicos e livros sobre histórias <strong>em</strong><br />

quadrinhos.<br />

A Discoteca Oneyda Alvarenga possui acervo especializado<br />

<strong>em</strong> música erudita e popular, nacional e estrangeira,<br />

constituído por livros, partituras, discos <strong>de</strong> 33 e<br />

78 rpm e CDs.<br />

Centro Cultural São Paulo<br />

R. Vergueiro, 1000, Paraíso<br />

Biblioteca Sérgio Milliet – tels.: 3397-4003 / 3397-4074 / 3397-4075<br />

Biblioteca Louis Braille – tel.: 3397-4088<br />

Gibiteca Henfil – tel.: 3397-4090<br />

Discoteca Oneyda Alvarenga – tels.: 3397-4071 / 3397-4072<br />

170


171<br />

en<strong>de</strong>reços úteis<br />

Biblioteca do Centro Cultural da Juventu<strong>de</strong><br />

A Biblioteca Jayme Cortez possui um acervo com mais<br />

<strong>de</strong> 10 mil ex<strong>em</strong>plares entre livros, álbuns <strong>de</strong> HQ, mangás,<br />

periódicos e material audiovisual. Conta também com um<br />

Laboratório <strong>de</strong> Idiomas.<br />

Biblioteca Jayme Cortez<br />

Av. Deputado Emílio Carlos, 3641, Cachoeirinha, tel.: 3984-<br />

2466, ramal 24<br />

Pontos <strong>de</strong> leitura<br />

Espaços criados <strong>em</strong> bairros <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> equipamentos<br />

culturais ou <strong>de</strong> difícil acesso a Bibliotecas Públicas.<br />

André Vital<br />

Av. dos Metalúrgicos, 2255, Cida<strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, tel.: 2282-2562<br />

Carolina Maria <strong>de</strong> Jesus<br />

R. Teresinha do Prado Oliveira, 119, Parelheiros, tel.: 5921-3665<br />

Graciliano Ramos<br />

R. Prof. Oscar <strong>Barreto</strong> Filho, 252 (Calçadão Cultural do Grajaú),<br />

Parque América – Grajaú, tel.: 5924-9135<br />

Jardim Lapenna<br />

R. Serra da Juruoca, s/n (Galpão da Cultura e Cidadania), Jardim<br />

Lapenna, tel.: 2297-3532<br />

Juscelino Kubitschek<br />

Av. Inácio Monteiro, 55, Cida<strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, tel.: 2556-3036<br />

Olido<br />

Av. São João, 473, Centro, tel.: 3397-0176<br />

Parque do Piqueri<br />

R. Tuiuti, 515, Tatuapé, tel.: 2092-6524


lima barreto<br />

Parque do Ro<strong>de</strong>io<br />

R. Igarapé da Bela Aurora, s/n, Cida<strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes, tel.: 2555-4276<br />

Praça do Bambuzal<br />

R. da Colônia Nova, s/n (Praça Nativo Rosa <strong>de</strong> Oliveira – Praça<br />

do Bambuzal), Jardim Ângela, tel.: 5833-3567<br />

São Mateus<br />

R. Fortaleza <strong>de</strong> Itap<strong>em</strong>a, 268, Jardim Vera Cruz – São Mateus,<br />

tel.: 2019-1718<br />

Severino do Ramo<br />

R. Barão <strong>de</strong> Alagoas, 340, Itaim Paulista, tels.: 2963-2742 /<br />

2568-3329<br />

União dos moradores do Parque Anhanguera<br />

R. Ama<strong>de</strong>u Caego Monteiro, 209, Parque Anhanguera, tel.:<br />

3911-3394<br />

Vila Mara<br />

R. Conceição <strong>de</strong> Almeida, 170, São Miguel Paulista, tel.:<br />

2586-2526<br />

Bosques <strong>de</strong> leitura<br />

Ambientes culturais alternativos <strong>em</strong> parques da cida<strong>de</strong>.<br />

Abr<strong>em</strong> aos domingos e, <strong>em</strong> alguns en<strong>de</strong>reços, também aos<br />

sábados. Confira os dias e horários <strong>de</strong> funcionamento no<br />

site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone 3675-8096.<br />

Anhanguera<br />

Av. Fortunata Tadiello Natucci, 1000, Perus<br />

Carmo<br />

Av. Afonso <strong>de</strong> Sampaio Souza, 951, Itaquera<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Toronto<br />

Av. Car<strong>de</strong>al Motta, 84, Pirituba<br />

172


Esportivo dos Trabalhadores<br />

R. Canuto Abreu, s/n, Tatuapé<br />

Ibirapuera<br />

Av. República do Líbano, 1151 – Portão 7A, Mo<strong>em</strong>a<br />

Jardim da Luz<br />

R. Ribeiro <strong>de</strong> <strong>Lima</strong>, 99, Luz<br />

Lajeado<br />

R. Antonio Tha<strong>de</strong>o, 74, Lajeado<br />

Lions Clube Tucuruvi<br />

R. Alcindo Bueno <strong>de</strong> Assis, 500, Tucuruvi<br />

Raposo Tavares<br />

R. Telmo Coelho Filho, 200, Vila Albano – Butantã<br />

Santo Dias<br />

R. Jasmim da Beirada, 71, Capão Redondo<br />

Ônibus‑biblioteca<br />

173<br />

en<strong>de</strong>reços úteis<br />

Os ônibus-biblioteca levam livros, jornais, revistas,<br />

gibis e programação cultural às comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bairros<br />

periféricos da cida<strong>de</strong>. Conta com paradas pre<strong>de</strong>terminadas<br />

para cada dia da s<strong>em</strong>ana. Confira os roteiros da sua<br />

região no site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone<br />

2291-5763.


SOBRE O LIVRO<br />

Formato: 12 x 21 cm<br />

Mancha: 18 x 37 paicas<br />

Tipologia: Minion Pro 10/13,5<br />

Papel: Off-white 80 g/m² (miolo)<br />

Supr<strong>em</strong>o 250 g/m² (capa)<br />

1 a edição: 2012<br />

EQUIPE DE REALIZAÇÃO<br />

Assistência Editorial<br />

Olívia Fra<strong>de</strong> Zambone<br />

Edição <strong>de</strong> texto<br />

Nair Hitomi Kayo (Copi<strong>de</strong>sque)<br />

Fabiana Mioto (Preparação <strong>de</strong> original)<br />

Editoração Eletrônica<br />

Estúdio Bogari<br />

Capa<br />

Estúdio Bogari<br />

Imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> capa<br />

“Rio Antigo”, <strong>de</strong> Emiliano Di Cavalcanti, 1969.<br />

© Elisabeth di Cavalcanti<br />

Coor<strong>de</strong>nação De <strong>Mão</strong> <strong>em</strong> <strong>Mão</strong><br />

Ananda Stücker (Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura)<br />

Bruno Langeani (Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura)<br />

Oscar D’Ambrosio (Editora Unesp)

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