O Brasil na obra de Goethe - APA-Rio

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O Brasil na obra de Goethe * Celeste H. M. Ribeiro de Sousa (USP- São Paulo) FD 4 (2000) ARTIGOS Folheando o volume de poesias da obra completa de Goethe, 3 títulos chamam a atenção especial do brasileiro: Todeslied eines Gefangenen. Brasilianisch (Canção de morte de um prisioneiro. Brasileiro) de 1782, Liebeslied eines Wilden. Brasilianisch (Canção de amor de um selvagem. Brasileiro) também de 1782 e Brasilianisch (Brasileiro) de 1825. A pergunta sobre as fontes usadas por Goethe para ter informações do Brasil é inevitável. Dentro da chamada alta literatura alemã, Goethe é um dos primeiros poetas a plasmar uma imagem do Brasil em sua obra 1 . Antes dele só temos conhecimento de uma breve alusão ao nosso país na obra de Grimmelshausen Der abenteuerliche Simplizissimus Teutsch de 1698. Goethe nasce em 28 de agosto de 1749 em Frankfurt a. Main. Em agosto de 1771, forma-se em Direito. Em 1773 é publicada a sua peça Götz von Berlichingen. Em 1774 vêm a lume a peça Clavigo e o romance Die Leiden des jungen Werthers (Os sofrimentos do jovem Werther). Sucedem-se inúmeras obras. Em 1808, por exemplo, surge a primeira parte do Faust e, em 1810, Zur Farbenlehre (Sobre a teoria das cores). Em 1821 é publicado o romance Wilhelm Meister e, em 1832, a segunda parte do Faust. Goethe morre em 2 de fevereiro de 1832. Tendo começado na literatura como Stürmer und Dränger, isto é, como adepto dos ideais do movimento literário conhecido por Sturm und Drang, às vezes traduzido por Tempestade e Ímpeto, termina como cultor do Classicismo sob a influência de uma viagem à Itália em 1786. Goethe, no entanto, não é apenas um grande poeta, um grande prosador, um grande dramaturgo ou um teórico da literatura, que formulou o até hoje famoso conceito de Weltliteratur (literatura universal). Goethe é um homem de saber enciclopédico: interessa-se por filosofia, astrologia, alquimia, mas 1* - Este texto foi originalmente apresentado durante o Colóquio Alemanha na Amazônia na Casa de Estudos Germânicos da Universidade Federal do Pará em 26.11.98, com o título Os índios brasileiros chegam a Goethe. 1 - Para outras informações sobre o tema, pode-se consultar o livro Retratos do Brasil. Hetero-imagens literárias alemãs de Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, publicado em 1996 pela editora Arte & Ciência em São Paulo. 26

O <strong>Brasil</strong> <strong>na</strong> <strong>obra</strong> <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong> *<br />

Celeste H. M. Ribeiro <strong>de</strong> Sousa (USP- São Paulo)<br />

FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

Folheando o volume <strong>de</strong> poesias da <strong>obra</strong> completa <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong>, 3<br />

títulos chamam a atenção especial do brasileiro: To<strong>de</strong>slied eines<br />

Gefangenen. <strong>Brasil</strong>ianisch (Canção <strong>de</strong> morte <strong>de</strong> um prisioneiro.<br />

<strong>Brasil</strong>eiro) <strong>de</strong> 1782, Liebeslied eines Wil<strong>de</strong>n. <strong>Brasil</strong>ianisch (Canção <strong>de</strong><br />

amor <strong>de</strong> um selvagem. <strong>Brasil</strong>eiro) também <strong>de</strong> 1782 e <strong>Brasil</strong>ianisch<br />

(<strong>Brasil</strong>eiro) <strong>de</strong> 1825. A pergunta sobre as fontes usadas por <strong>Goethe</strong> para<br />

ter informações do <strong>Brasil</strong> é inevitável.<br />

Dentro da chamada alta literatura alemã, <strong>Goethe</strong> é um dos<br />

primeiros poetas a plasmar uma imagem do <strong>Brasil</strong> em sua <strong>obra</strong> 1 . Antes<br />

<strong>de</strong>le só temos conhecimento <strong>de</strong> uma breve alusão ao nosso país <strong>na</strong> <strong>obra</strong> <strong>de</strong><br />

Grimmelshausen Der abenteuerliche Simplizissimus Teutsch <strong>de</strong> 1698.<br />

<strong>Goethe</strong> <strong>na</strong>sce em 28 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1749 em Frankfurt a. Main. Em<br />

agosto <strong>de</strong> 1771, forma-se em Direito. Em 1773 é publicada a sua peça<br />

Götz von Berlichingen. Em 1774 vêm a lume a peça Clavigo e o romance<br />

Die Lei<strong>de</strong>n <strong>de</strong>s jungen Werthers (Os sofrimentos do jovem Werther).<br />

Suce<strong>de</strong>m-se inúmeras <strong>obra</strong>s. Em 1808, por exemplo, surge a primeira<br />

parte do Faust e, em 1810, Zur Farbenlehre (Sobre a teoria das cores). Em<br />

1821 é publicado o romance Wilhelm Meister e, em 1832, a segunda parte<br />

do Faust. <strong>Goethe</strong> morre em 2 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1832. Tendo começado <strong>na</strong><br />

literatura como Stürmer und Dränger, isto é, como a<strong>de</strong>pto dos i<strong>de</strong>ais do<br />

movimento literário conhecido por Sturm und Drang, às vezes traduzido<br />

por Tempesta<strong>de</strong> e Ímpeto, termi<strong>na</strong> como cultor do Classicismo sob a<br />

influência <strong>de</strong> uma viagem à Itália em 1786. <strong>Goethe</strong>, no entanto, não é<br />

ape<strong>na</strong>s um gran<strong>de</strong> poeta, um gran<strong>de</strong> prosador, um gran<strong>de</strong> dramaturgo ou<br />

um teórico da literatura, que formulou o até hoje famoso conceito <strong>de</strong><br />

Weltliteratur (literatura universal). <strong>Goethe</strong> é um homem <strong>de</strong> saber<br />

enciclopédico: interessa-se por filosofia, astrologia, alquimia, mas<br />

1* - Este texto foi origi<strong>na</strong>lmente apresentado durante o Colóquio Alemanha <strong>na</strong> Amazônia <strong>na</strong> Casa <strong>de</strong> Estudos<br />

Germânicos da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Pará em 26.11.98, com o título Os índios brasileiros chegam a<br />

<strong>Goethe</strong>.<br />

1 - Para outras informações sobre o tema, po<strong>de</strong>-se consultar o livro Retratos do <strong>Brasil</strong>. Hetero-imagens<br />

literárias alemãs <strong>de</strong> Celeste H. M. Ribeiro <strong>de</strong> Sousa, publicado em 1996 pela editora Arte & Ciência em São<br />

Paulo.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

também por a<strong>na</strong>tomia, tendo <strong>de</strong>scoberto, por exemplo, o menor dos ossos<br />

humanos - o osso intermaxilar -, pela física com suas investigações sobre<br />

as cores ou ainda pela botânica. Seu interesse pelas ciências <strong>na</strong>turais não<br />

visa, porém, a simples dissecação do mundo a fim <strong>de</strong> tipologizá-lo ou <strong>de</strong> o<br />

classificar. <strong>Goethe</strong> é um gran<strong>de</strong> humanista que quer enten<strong>de</strong>r os<br />

mecanismos sutis que ligam o homem à realida<strong>de</strong>, formando os dois um<br />

todo que, em princípio, <strong>de</strong>ve ser harmonioso. <strong>Goethe</strong> é também um<br />

homem cosmopolita, com interesse por outras literaturas e culturas não<br />

só européias, mas também asiáticas e, sobretudo, pelas do novo mundo <strong>na</strong><br />

América.<br />

Entretanto, em 1749, ano do <strong>na</strong>scimento <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong>, o <strong>Brasil</strong> ainda é<br />

uma colônia <strong>de</strong> Portugal, e o governo da metrópole interessa-se,<br />

sobretudo, em assegurar as fronteiras políticas <strong>de</strong> seu território<br />

americano, fazendo com que, nesse ano, João <strong>de</strong> Sousa Azevedo, por<br />

exemplo, efetue uma viagem <strong>de</strong> exploração geográfica, <strong>de</strong>scendo o rio<br />

Guaporé, passando pelo Mamoré e o Ma<strong>de</strong>ira e continuando pelo<br />

Amazo<strong>na</strong>s até Belém, a fim <strong>de</strong> reconhecer as missões dos jesuítas<br />

espanhóis que disputam, à época, a soberania <strong>na</strong> região em favor do rei<br />

espanhol. Até a morte <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong>, o <strong>Brasil</strong> assiste, entre outras coisas, à<br />

transferência da capital do Maranhão, <strong>de</strong> São Luís para Belém em 1751,<br />

à criação <strong>de</strong> um diploma, proclamando a incondicio<strong>na</strong>da liberda<strong>de</strong> do<br />

índio em 1755, à promulgação do diploma sobre a abolição <strong>de</strong>finitiva da<br />

escravidão do índio em 1756, à abolição da Companhia <strong>de</strong> Jesus em 1759.<br />

Em 1760, o Aleijadinho executa a talha dos altares laterais <strong>de</strong> Santo<br />

Antônio e <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Paula <strong>na</strong> igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora do Bom<br />

Sucesso <strong>de</strong> Caeté em Mi<strong>na</strong>s Gerais. Em 1768 são publicadas as Obras<br />

poéticas <strong>de</strong> Cláudio Manuel da Costa, e poemas <strong>de</strong> Silva Alvarenga<br />

também vêm a público durante estes anos. Em 1769 é publicado o poema<br />

épico Uruguai <strong>de</strong> Basílio da Gama, em que é <strong>na</strong>rrada a campanha<br />

empreendida pelo con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la contra os indíge<strong>na</strong>s das missões<br />

jesuíticas no sul do <strong>Brasil</strong>. Em 1771 é fundada no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro a<br />

Aca<strong>de</strong>mia Científica com o objetivo <strong>de</strong> estudar a transplantação <strong>de</strong><br />

vegetais úteis <strong>de</strong> modo a fomentar as indústrias agro-pecuárias. Em 1772,<br />

o Aleijadinho executa o trabalho do altar <strong>de</strong> São José <strong>de</strong> Ouro Preto.<br />

Depois da publicação das <strong>obra</strong>s <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong> Clavigo e Os sofrimentos do<br />

jovem Werther em 1774 e do célebre poema Über allen Gipfeln ist Ruh (Em<br />

todos os cimos rei<strong>na</strong> a paz) em 1780, vem a lume em 1781, a epopéia <strong>de</strong><br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

Santa Rita Durão O Caramuru que <strong>na</strong>rra os feitos <strong>de</strong> Diogo Álvares<br />

Correia entre os índios quando <strong>de</strong> sua chegada à Bahia nos primeiros<br />

anos <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>scoberta do <strong>Brasil</strong>. Em 1782, quando <strong>Goethe</strong> escreve os<br />

dois primeiras poemas sobre os índios brasileiros, é fundada no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong><br />

Janeiro a Escola <strong>de</strong> Retórica e Poética. Em 1783 é publicada a O<strong>de</strong> ao<br />

homem selvagem do padre Antônio Pereira <strong>de</strong> Sousa Caldas. Em 1786<br />

começa a ser publicada a Italiänische Reise (Viagem à Itália) <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong>.<br />

Em 1792 começam a ser publicadas as poesias <strong>de</strong> Marília <strong>de</strong> Dirceu <strong>de</strong><br />

Tomás Antônio Gonzaga. No mesmo ano da publicação <strong>de</strong> Wilhelm<br />

Meisters Lehrjahre (Os anos <strong>de</strong> aprendizado <strong>de</strong> Wilhelm Meister) em<br />

1796, é criado em Belém um posto botânico que <strong>de</strong>veria servir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />

a todos os jardins botânicos que viessem a se estabelecer no <strong>Brasil</strong>. No<br />

mesmo ano em que <strong>Goethe</strong> publica Die Metamorphose <strong>de</strong>r Pflanzen (A<br />

metamorfose das plantas), isto é, em 1799, Alexan<strong>de</strong>r von Humboldt<br />

chega à América do Sul e viaja também pela Amazônia até 1804. Depois<br />

da publicação <strong>de</strong> Iphigenie auf Tauris (Efigênia em Tauris) <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong> em<br />

1802 e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma importante reunião do autor alemão com<br />

pesquisadores das ciências <strong>na</strong>turais em 1805, chega ao <strong>Brasil</strong>, fugida das<br />

invasões <strong>na</strong>poleônicas em 1808, a família real portuguesa que, logo,<br />

promove a abertura dos portos brasileiros às <strong>na</strong>ções amigas. Depois da<br />

publicação <strong>de</strong> Sobre a teoria das cores em 1810, e do começo da publicação<br />

da <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Humboldt Nova Genera et species plantarum em 1815 (serão 7<br />

volumes em latim até 1825), Spix e Martius chegam ao <strong>Brasil</strong> em 1817<br />

para pesquisar a flora da terra. Neste ano <strong>de</strong> 1817, D. João VI é coroado<br />

rei <strong>de</strong> Portugal no <strong>Brasil</strong>. Neste mesmo ano ainda, é celebrado o<br />

casamento do príncipe D. Pedro I com a arquiduquesa Do<strong>na</strong> Leopoldi<strong>na</strong><br />

filha do imperador da Áustria D. Francisco, o que atrai a atenção dos<br />

europeus para as terras brasileiras. Em 1820, Spix e Martius retor<strong>na</strong>m à<br />

Alemanha. Em 1822, a 7 <strong>de</strong> setembro, a in<strong>de</strong>pendência política do <strong>Brasil</strong><br />

é formalmente proclamada por D. Pedro I. Em 1822 começa a ser<br />

publicada <strong>na</strong> Alemanha a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Martius e Spix Reise in <strong>Brasil</strong>ien<br />

(Viagem pelo <strong>Brasil</strong>). Em 1825 <strong>na</strong>sce o príncipe D. Pedro II, no mesmo<br />

ano em que sai publicada a terceira poesia <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong> sobre o <strong>Brasil</strong>.<br />

<strong>Goethe</strong> morre em 1832, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter concluído o Faust II em 1831.<br />

<strong>Goethe</strong> assiste, assim, à transformação do <strong>Brasil</strong> <strong>de</strong> simples colônia<br />

portuguesa numa colônia que se tor<strong>na</strong>, durante as invasões <strong>na</strong>poleônicas,<br />

<strong>na</strong> se<strong>de</strong> provisória do governo do império português, e <strong>de</strong>pois em país<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte em 1822, com um primeiro imperador, Dom Pedro I,<br />

casado com uma princesa austríaca. (A república só virá em 15 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 1879).<br />

Entre o mundo <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong> e o mundo dos brasileiros há um fosso<br />

histórico-cultural: <strong>de</strong> um lado, um espaço que, embora ainda não conheça<br />

a unida<strong>de</strong> política, experimenta pleno esplendor cultural e literário; <strong>de</strong><br />

outro, um espaço que vive simultaneamente o processo da configuração<br />

política e o que Antônio Cândido chama <strong>de</strong> configuração do sistema<br />

literário, em que se observam a transformação do Barroco, tentativas <strong>de</strong><br />

renovação arcádica e neo-clássica e, mais tar<strong>de</strong>, o surgimento do<br />

Romantismo, às voltas com o processo <strong>de</strong> procura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, já que o<br />

começo do país não é lento nem gradual à semelhança das <strong>na</strong>ções<br />

européias, mas súbito e marcado pelo transplante e intersecção <strong>de</strong> várias<br />

culturas.<br />

As fontes do conhecimento que <strong>Goethe</strong> tem do <strong>Brasil</strong>, registradas<br />

em seus diários e em sua numerosa correspondência, são as várias leituras<br />

que fez e também conversas 2 que manteve com conhecedores do <strong>Brasil</strong>..<br />

<strong>Goethe</strong> tem acesso tanto a publicações estrangeiras sobre o nosso país,<br />

quanto a <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Dentre as estrangeiras, po<strong>de</strong>r-se-iam citar, entre<br />

outras, os livros <strong>de</strong> Montaigne, <strong>de</strong> Mawe, <strong>de</strong> Robert Southey. Dentre os<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, há a apontar como já existentes no mercado alemão, pelo<br />

menos, Zwei Reisen in <strong>Brasil</strong>ien (Duas viagens ao <strong>Brasil</strong>) <strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n,<br />

Reisen in <strong>Brasil</strong>ien (Viagens pelo <strong>Brasil</strong>) <strong>de</strong> Heinrich Koster e Neuestes<br />

Gemäl<strong>de</strong> von <strong>Brasil</strong>ien (Novíssimo retrato do <strong>Brasil</strong>) <strong>de</strong> Ch. Fischer. Entre<br />

vários interlocutores, conhecedores do <strong>Brasil</strong> in loco, que com ele<br />

mantiveram conversas como, por exemplo, Eschwege 3 que teria mostrado<br />

a <strong>Goethe</strong> amostras <strong>de</strong> pedras preciosas, e o Dr. Pohl, dois nomes se<br />

evi<strong>de</strong>nciam: o <strong>de</strong> Alexan<strong>de</strong>r von Humboldt (1769-1859), que conheceu<br />

pessoalmente e com quem trocou várias cartas, e o <strong>de</strong> Karl Friedrich<br />

Philipp von Martius (1794-1868), que também o visitou e com quem<br />

manteve correspondência.<br />

Das leituras <strong>de</strong> Montaigne, em especial, <strong>de</strong> seus Ensaios publicados<br />

em 1580 (os dois primeiros volumes), <strong>na</strong>scem os dois primeiros poemas<br />

<strong>de</strong>dicados aos índios brasileiros Canção <strong>de</strong> morte <strong>de</strong> um prisioneiro e<br />

2<br />

- Leia-se Hoffmann-Harnisch, Wolf - “<strong>Goethe</strong> e o <strong>Brasil</strong>”. In: Humboldt 11. Hamburg, Übersee, 1965, p.12-<br />

22.<br />

3<br />

- Bücherl, Wolfgang (ed.) - Sta<strong>de</strong>n-Jahrbuch 25/26. São Paulo, Instituto Hans Sta<strong>de</strong>n, 1977-78.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

Canção <strong>de</strong> amor <strong>de</strong> um selvagem, primeiramente publicados no Tiefurter<br />

Jour<strong>na</strong>l nº 38 do ano <strong>de</strong> 1782.<br />

Michel <strong>de</strong> Montaigne, leitor <strong>de</strong> Jean <strong>de</strong> Léry, embora não tenha<br />

viajado à América do Sul, à chamada França Antártica (<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro e<br />

Maranhão), ao tentar fazer carreira <strong>na</strong> corte francesa, acompanha em<br />

1562 o imperador Carlos IX a Ruão, on<strong>de</strong> tem contato com viajantes, que<br />

lhe relatam suas experiências, e com índios por eles levados para a<br />

França, conforme <strong>de</strong>clara no capítulo XXXI <strong>de</strong> seus Ensaios, intitulado<br />

“Dos canibais”. 4 Assim se expressa o filósofo francês: Três <strong>de</strong>ntre eles (e<br />

como lastimo que se tenham <strong>de</strong>ixado tentar pela novida<strong>de</strong> e trocado seu<br />

clima suave pelo nosso!), ignorando quanto lhes custará <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong> e<br />

felicida<strong>de</strong> o conhecimento <strong>de</strong> nossos costumes corrompidos, e quão rápida<br />

será a sua perda, que suponho já iniciada, estiveram em Ruão quando ali se<br />

encontrava Carlos IX. E ainda: Durante muito tempo tive a meu lado um<br />

homem que permanecera <strong>de</strong>z ou doze anos nessa parte do Novo Mundo<br />

<strong>de</strong>scoberto neste século, no lugar em que tomou pé Villegaignon e a que <strong>de</strong>u<br />

o nome <strong>de</strong> “França Antártica”. [...] O homem que tinha a meu serviço, e<br />

que voltava do Novo Mundo, era simples e grosseiro <strong>de</strong> espírito, o que dá<br />

mais valor a seu testemunho. [...] Assim era o meu informante, o qual,<br />

a<strong>de</strong>mais, me apresentou marinheiros e comerciantes que conhecera <strong>na</strong><br />

viagem, [...] não vejo <strong>na</strong>da <strong>de</strong> bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles<br />

povos; e, <strong>na</strong> verda<strong>de</strong> cada qual consi<strong>de</strong>ra bárbaro o que não se pratica em<br />

sua terra.[...] A essa gente chamamos selvagens como <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>mos<br />

selvagens os frutos que a <strong>na</strong>tureza produz sem intervenção do homem. No<br />

entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos <strong>de</strong> cultura e cujo<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>na</strong>tural modificamos, é que <strong>de</strong>veríamos aplicar o epíteto.<br />

[...] Estes povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo <strong>de</strong> selvagens<br />

somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência<br />

do espírito humano e não haverem quase <strong>na</strong>da perdido <strong>de</strong> sua simplicida<strong>de</strong><br />

primitiva. [...] É um país, diria eu a Platão, on<strong>de</strong> não há comércio <strong>de</strong><br />

qualquer <strong>na</strong>tureza, nem literatura, nem matemáticas; on<strong>de</strong> não se conhece<br />

sequer <strong>de</strong> nome um magistrado; on<strong>de</strong> não existe hierarquia política, nem<br />

domesticida<strong>de</strong>, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão, partilhas aí são<br />

<strong>de</strong>sconhecidos; em matéria <strong>de</strong> trabalho só sabem da ociosida<strong>de</strong>; o respeito<br />

aos parentes é o mesmo que <strong>de</strong>dicam a todos; o vestuário, a agricultura, o<br />

trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo; as próprias<br />

4 - Montaigne, Michel <strong>de</strong> - Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo, Abril (Col. Pensadores), 1972, vol. XI,<br />

p. 104-111.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

palavras que exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a<br />

inveja, a calúnia, o perdão, só excepcio<strong>na</strong>lmente se ouvem. Quanto a<br />

República que imagi<strong>na</strong>va lhe pareceria longe <strong>de</strong> tamanha perfeição! “São<br />

homens que saem das mãos dos <strong>de</strong>uses”. “Como essas foram as primeiras<br />

leis da <strong>na</strong>tureza”. A região em que esses povos habitam é <strong>de</strong> resto muito<br />

agradável. O clima é temperado a ponto <strong>de</strong>, segundo minhas testemunhas,<br />

raramente se encontrar um enfermo.[...] A região esten<strong>de</strong>-se à beira-mar e é<br />

limitada do lado da terra por platôs e altas montanhas, [...] Têm peixe e<br />

carne em abundância, e <strong>de</strong> excelente qualida<strong>de</strong>, contentando-se com os<br />

grelhar para os comer.[...] Suas residências constituem-se <strong>de</strong> barracões com<br />

capacida<strong>de</strong> para duzentas a trezentas pessoas, e são edificadas com troncos<br />

e galhos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s árvores enfiados no solo [...] Acreditam <strong>na</strong> imortalida<strong>de</strong><br />

da alma.[...] Esses povos guerreiam os que se encontram além das<br />

montanhas, <strong>na</strong> terra firme. Fazem-no inteiramente nus, tendo como armas<br />

ape<strong>na</strong>s seus arcos e suas espadas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, pontiagudas como as nossas<br />

lanças. E é admirável a resolução com que agem nesses combates que<br />

sempre termi<strong>na</strong>m com efusão <strong>de</strong> sangue e mortes, pois ignoram a fuga e o<br />

medo. Como troféu, traz cada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual<br />

penduram à entrada <strong>de</strong> suas residências. Quanto aos prisioneiros, guardamnos<br />

durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo <strong>de</strong> que<br />

precisam até o dia em que resolvem acabar com eles. Aquele a quem<br />

pertence o prisioneiro convoca todos os seus amigos. No momento propício,<br />

amarra a um dos braços da vítima uma corda cuja outra extremida<strong>de</strong> ele<br />

segura <strong>na</strong>s mãos, o mesmo fazendo com o outro braço que fica entregue a<br />

seu melhor amigo, <strong>de</strong> modo a manter o con<strong>de</strong><strong>na</strong>do afastado <strong>de</strong> alguns<br />

passos e incapaz <strong>de</strong> reação. Isso feito, ambos o moem <strong>de</strong> bordoadas às vistas<br />

da assistência, assando-o em seguida, comendo-o e presenteando os amigos<br />

ausentes com pedaços da vítima. Não o fazem, entretanto para se<br />

alimentarem,[...] mas sim em si<strong>na</strong>l <strong>de</strong> vingança. [...] Não me parece<br />

excessivo julgar bárbaros tais atos <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>, mas que o fato <strong>de</strong> con<strong>de</strong><strong>na</strong>r<br />

tais <strong>de</strong>feitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos.[...] Po<strong>de</strong>mos<br />

portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando ape<strong>na</strong>s ouvidos à<br />

inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os<br />

exce<strong>de</strong>mos em toda sorte <strong>de</strong> barbarida<strong>de</strong>s.[...] Não entram em conflito a fim<br />

<strong>de</strong> conquistar novos territórios, porquanto gozam ainda <strong>de</strong> uma uberda<strong>de</strong><br />

<strong>na</strong>tural que sem trabalhos nem fadigas lhes fornece tudo <strong>de</strong> que necessitam<br />

e em tal abundância que não teriam motivo para <strong>de</strong>sejar ampliar suas<br />

terras. Não se vê nenhum que não prefira ser matado e comido a pedir<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

mercê.[...] “A vitória verda<strong>de</strong>ira é a que constrange o inimigo a confessar-se<br />

vencido”. Tenho em meu po<strong>de</strong>r o canto <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses prisioneiros. Eis o que<br />

diz: “Que se aproximem todos com coragem e se juntem para comê-lo; em o<br />

fazendo comerão seus pais e seus avós que já serviram <strong>de</strong> alimento a ele<br />

próprio e <strong>de</strong>les seu corpo se constituiu. Estes músculos, esta carne, estas<br />

veias, diz-lhes, são vossas, pobres loucos. Não reconheceis a substância dos<br />

membros <strong>de</strong> vossos antepassados que no entanto ainda se encontram em<br />

mim? Saboreai-os atentamente, sentireis o gosto <strong>de</strong> vossa própria carne”. 5<br />

O texto <strong>de</strong> Montaigne foi aproveitado não ape<strong>na</strong>s por <strong>Goethe</strong>, mas<br />

também, por exemplo, por Gonçalves Dias, igualmente leitor do filósofo<br />

francês: a cerimônia canibalista virá a ser poetizada em seu Y-Juca-<br />

Pirama <strong>de</strong> 1846.<br />

É curioso verificar que, não um canto, mas uma <strong>de</strong>claração<br />

semelhante também é anotada por José <strong>de</strong> Anchieta, conhecedor do tupiguarani,<br />

numa carta datada <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1565. O padre Anchieta<br />

refere-se a uma experiência sua, vivida durante a evangelização dos índios<br />

brasileiros. Diz o padre que, certa vez, ao tentar batizar um índio<br />

prisioneiro, um tupi, con<strong>de</strong><strong>na</strong>do à morte antropofágica, este recusa-se a<br />

receber o sacramento católico, dizendo-lhe que os que [ele batizava] não<br />

morriam como valentes, e ele queria morrer morte formosa e mostrar sua<br />

valentia. E assim posto em o terreiro atado com cordas mui longas pela<br />

cinta, que três ou quatro mancebos tem bem estiradas, começou a dizer:<br />

“Matai-me, que bem ten<strong>de</strong>s que vos vingar em mim, que eu comi a fulano<br />

vosso pai, a tal vosso irmão, e a tal vosso filho”, fazendo um gran<strong>de</strong><br />

processo <strong>de</strong> muitos que havia comido <strong>de</strong> estoutros, com tão gran<strong>de</strong> ânimo e<br />

festa, que mais parecia ele que estava para matar os outros que para ser<br />

morto. 6 A antropofagia é, assim, um ritual aborígene que espicaça e<br />

assombra o entendimento dos europeus.<br />

É, porém, o canto em prosa do índio prisioneiro, registrado por<br />

Montaigne, que <strong>Goethe</strong> passa para a língua alemã no poema que se segue.<br />

5 - Id. ibid., p.109.<br />

Origi<strong>na</strong>l francês do canto: “J’ay une chanson faicte par un prisonnier, où il y a ce traicht: ‘Qu’ils viennent<br />

hardiment trétous e s’assemblent pour disner <strong>de</strong> luy; car ils mangeront quant et quant leurs pères et leurs<br />

ayeux, qui on servy d’aliment et <strong>de</strong> nourriture à son corps. Ces muscles, dit-il, cette chair et ces veines, ce<br />

sont les votres, pauvres fols que vous étes, vous ne recognoissez pas que la substance <strong>de</strong>s membres <strong>de</strong> vos<br />

ancestres s’y tient encore; savourez les bien vous trouverez le gout <strong>de</strong> votre propre chair’”. Apud Wolf<br />

Hoffmann-Harnisch, p. 22.<br />

6 - Anchieta, José <strong>de</strong> - “Carta do IR. José <strong>de</strong> Anchieta ao geral P. Diogo Laínes, Roma”. In: Id. - Cartas. São<br />

Paulo, Edições Loyola, 1984, p. 234.<br />

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<strong>Goethe</strong> tem, portanto neste caso, conhecimentos dos índios sulamericanos<br />

<strong>de</strong> terceira mão.<br />

To<strong>de</strong>slied eines Gefangenen Canção da morte <strong>de</strong> um<br />

<strong>Brasil</strong>ianisch prisioneiro<br />

1782 <strong>Brasil</strong>eiro 1782<br />

Kommt nur kühnlich,kommt nur alle, Vin<strong>de</strong> com coragem,vin<strong>de</strong> todos,<br />

Und versammelt euch zum Schmause! E juntai-vos para o festim!<br />

Denn ihr wer<strong>de</strong>t mich mit Dräuen, Pois com ameaças,com esperanças<br />

Mich mit Hoffnung nimmer beugen, Nunca me d<strong>obra</strong>reis.<br />

Seht,hier bin ich, bin gefangen, Ve<strong>de</strong>, aqui estou, sou prisioneiro,<br />

Aber noch nicht überwun<strong>de</strong>n. Mas ainda não vencido.<br />

Kommt, verzehret meine Glie<strong>de</strong>r Vin<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vorai meus membros<br />

Und verzehrt zugleich mit ihnen E, junto com eles, <strong>de</strong>vorai<br />

Eure Ahnherrn, eure Väter, Vossos ancestrais, vossos pais,<br />

Die zur Speise mir gewor<strong>de</strong>n. Que foram meu alimento.<br />

Dieses Fleisch, das ich euch reiche, Esta carne, que vos dou,<br />

Ist, ihr Toren, eurer eigenes, Insensatos, é a vossa,<br />

Und in meinen innern Knochen E em minha medula está<br />

Stickt das Mark von euren Ahnherrn. Cravada a marca <strong>de</strong> vossos<br />

ancestrais. 7<br />

Kommt nur, kommt, mit je<strong>de</strong>m Bissen Vin<strong>de</strong>, vin<strong>de</strong>, a cada mordida<br />

Kann sie euer Gaumen schmecken 8 . Vossa boca po<strong>de</strong>rá saboreá-los.<br />

A intertextualida<strong>de</strong> ou a “antropofagia” praticada por <strong>Goethe</strong> em<br />

relação ao texto francês é evi<strong>de</strong>nte. O poema em pauta mostra a coragem<br />

e valentia ostentadas por um índio, prisioneiro <strong>de</strong> seus inimigos tribais,<br />

7<br />

- Estes dois versos, se traduzidos bem ao pé da letra, ficariam: E nos meus ossos interiores/ Está a medula<br />

<strong>de</strong> vossos ancestrais.<br />

8<br />

- <strong>Goethe</strong>, J.W. - Sämtliche Werke. Zürich, Artemis, 1953, Vol. 2, p. 327.<br />

33


FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

mas também ilustra uma <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da maneira <strong>de</strong> estar no mundo. Essa<br />

ilustração está estruturada em 6 partes ou períodos sintáticos, compostos<br />

<strong>de</strong> versos <strong>de</strong> sete sílabas: a primeira é constituída pelos dois primeiros<br />

versos e expressa um chamado imperativo para a festa. A segunda parte,<br />

também formada por dois versos, expressa a coragem heróica do<br />

prisioneiro. A terceira parte, igualmente constituída por dois versos,<br />

atesta o reconhecimento racio<strong>na</strong>l da situação por parte <strong>de</strong>sse mesmo<br />

prisioneiro. A quarta parte já é mais longa e <strong>de</strong>sd<strong>obra</strong>-se pelos quatro<br />

versos seguintes, que dão conta do significado do ritual prestes a ser<br />

praticado, significado este que precisa ainda <strong>de</strong> outra parte - a quinta,<br />

também <strong>de</strong> quatro versos, - para ser esclarecido. Fi<strong>na</strong>lmente, a última<br />

parte do poema - a sexta -, constituída <strong>de</strong> novo por dois versos, traduz o<br />

chamado para o ato antropofágico e, ao mesmo tempo, empresta ao<br />

poema uma construção circular, <strong>de</strong> cadência septilábica, <strong>na</strong> medida em<br />

que começo e fim seguem um <strong>de</strong>senho lingüístico paralelo. Assim,<br />

verificamos que a ênfase do poema recai no significado do rito em<br />

questão.<br />

O poema trata da antropofagia <strong>de</strong> uma perspectiva bastante<br />

esclarecida. Notícias da prática da antropofagia entre vários povos, ditos<br />

primitivos, não são tão raras <strong>na</strong>s publicações da área antropológica.<br />

Lembremo-nos que, até hoje, os índios ianomâni, por exemplo, comem as<br />

cinzas <strong>de</strong> seus próprios mortos como forma simbólica <strong>de</strong> perpetuá-los.<br />

Essa prática, longe <strong>de</strong> ser um meio <strong>de</strong> subsistência em épocas <strong>de</strong> fome, é<br />

antes um ritual <strong>de</strong> comunhão, um ritual que abre a esses povos a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comungar com os ancestrais <strong>de</strong> seus inimigos que, por<br />

sua vez já fizeram o mesmo, recuando no tempo até o primeiro homem,<br />

este verda<strong>de</strong>iramente criado por Deus. Portanto, o sentido mais profundo<br />

do ritual antropofágico é a abertura do caminho que leva ao contato<br />

direto com o sagrado. A carne e a medula funcio<strong>na</strong>m aqui como um<br />

veículo daquilo a que Carl Gustav Jung veio a chamar <strong>de</strong> inconsciente<br />

coletivo que, se atualizado e compreendido, protege o homem da alie<strong>na</strong>ção<br />

e o faz sentir-se uno com a <strong>na</strong>tureza, uno com o Criador. Diz Mircea<br />

Elia<strong>de</strong> em seu livro O mito do eterno retorno que se trata <strong>de</strong> um ato<br />

humano cujo significado e valor não se pren<strong>de</strong> ao seu puro valor físico, mas<br />

à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> um ato primordial, <strong>de</strong> repetição <strong>de</strong> um<br />

exemplar mítico. A alimentação não é uma simples operação fisiológica,<br />

mas renova uma comunhão com o ser divino criador do homem. O<br />

guerreiro imita um herói e procura aproximar-se o mais possível do mo<strong>de</strong>lo<br />

34


FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

arquetípico in illo tempore. 9 O tempo histórico é, aqui, anulado. E, mais<br />

adiante à pági<strong>na</strong> 110, Mircea Elia<strong>de</strong> continua: Viver <strong>de</strong> acordo com os<br />

arquétipos equivalia a respeitar a lei, pois que a lei não era mais que uma<br />

hierofania primordial, a revelação in illo tempore das normas <strong>de</strong> existência,<br />

feita por uma divinda<strong>de</strong> ou por um ser mítico [...] Nesta perspectiva, o que<br />

po<strong>de</strong>rão significar o sofrimento e a dor? Eles nunca são encarados como<br />

uma experiência <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> sentido, que o homem tem <strong>de</strong> aceitar <strong>na</strong><br />

medida em que é inevitável, tal como aceita, por exemplo, os rigores do<br />

clima. O ato antropofágico é, <strong>de</strong>sta forma, elemento mediador <strong>de</strong> que se<br />

serve o homem para superar a oposição entre <strong>na</strong>tureza e cultura,<br />

mantendo-as, assim, como totalida<strong>de</strong>, uma visão <strong>de</strong> mundo cara a <strong>Goethe</strong>.<br />

Clau<strong>de</strong> Levy-Strauss também assim se pronuncia em seu livro O<br />

pensamento selvagem: o sacrifício representa um rito <strong>de</strong> comunhão [e]<br />

estabelece a conexão <strong>de</strong>sejada entre dois domínios inicialmente separados. 10<br />

Embora nem Montaigne nem <strong>Goethe</strong> tenham podido ter, <strong>na</strong> época,<br />

acesso a estudos antropológicos como estes, intuiram <strong>de</strong> certa forma<br />

explicações semelhantes, que tiravam dos indíge<strong>na</strong>s a pecha <strong>de</strong> totalmente<br />

selvagens, monstruosos e perversos e, ao lhes atribuirem um<br />

comportamento corajoso e cheio <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong>, emprestavam-lhes uma<br />

aura huma<strong>na</strong> com laivos europeus.<br />

É neste sentido, e aqui por curiosida<strong>de</strong>, que vemos nos anos 20 a<br />

elite cultural paulista<strong>na</strong> li<strong>de</strong>rada por Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> resolver dar<br />

uma interpretação origi<strong>na</strong>l ao arraigado hábito do brasileiro em assimilar<br />

influências exter<strong>na</strong>s. Diz o escritor brasileiro em seu manifesto, referindose<br />

a supostas raízes da cultura brasileira, isto é, aos índios brasileiros que<br />

comiam a carne dos inimigos <strong>na</strong> esperança <strong>de</strong> assimilar sua força, o<br />

seguinte: [...] Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do<br />

antropófago.[...] Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do kosmos<br />

ao axioma kosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. 11<br />

Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> parte do princípio <strong>de</strong> que, se os índios praticam o<br />

canibalismo para absorver po<strong>de</strong>res, conhecimentos e magias do outro, os<br />

artistas, quando se alimentam das idéias alheias, também fazem<br />

canibalismo ou antropofagia intelectual. Tarsila do Amaral, por exemplo,<br />

9 - Elia<strong>de</strong>, Mircea - O mito do eterno retorno. Trad. Manuela Torres. Lisboa, Edições 70, 1978, p. 19.<br />

10 - Levy-Strauss, Clau<strong>de</strong> - O pensamento selvagem. Trad. Maria Celeste da Costa e Souza e Almir <strong>de</strong><br />

Oliveira Aguiar. São Paulo, Comp. Editora Nacio<strong>na</strong>l, 1976, p. 259.<br />

11 - Andra<strong>de</strong>, Oswald <strong>de</strong> - “Manifesto antropófago”. Revista <strong>de</strong> antropofagia. Reedição da revista literária<br />

publicada em São Paulo, 1 a e 2 a <strong>de</strong>ntições, 1928-1929, introd. <strong>de</strong> Augusto <strong>de</strong> Campos. São Paulo, 1976, p. 5 e<br />

7.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

em sua viagem a Paris ter-se-ia alimentado das idéias <strong>de</strong> Léger,<br />

transformando-as em linguagem brasileira, seguindo uma prática <strong>de</strong> seus<br />

“ancestrais”.<br />

O segundo poema <strong>de</strong> <strong>Goethe</strong> sobre o <strong>Brasil</strong> também é inspirado no<br />

ensaio <strong>de</strong> Montaigne sobre os canibais. Diz o texto do filósofo francês que<br />

os homens têm várias mulheres, em tanto maior número quanto mais<br />

famosos e valentes. Particularida<strong>de</strong> que não carece <strong>de</strong> beleza, nesses lares o<br />

ciúme, que entre nós impele nossas esposas a impedir que busquemos a<br />

amiza<strong>de</strong> e as boas graças <strong>de</strong> outras mulheres, entre eles as induz a<br />

arranjarem outras para seus maridos. A honra <strong>de</strong>ste primando entre todas<br />

as <strong>de</strong>mais consi<strong>de</strong>rações, põem elas todo o cuidado em ter o maior número<br />

possível <strong>de</strong> companheiras, pois esse número comprova a coragem do<br />

esposo.[...] E não se imagine que se trate da observação servil <strong>de</strong> um<br />

costume, imposta pela autorida<strong>de</strong> dos costumes tradicio<strong>na</strong>is, e que se<br />

aplique sem maior discussão, porquanto são os selvagens <strong>de</strong>masiado<br />

estúpidos para se rebelarem. Eis alguns traços que <strong>de</strong>monstram o contrário.<br />

Transcrevi aqui um <strong>de</strong> seus cantos guerreiros: pois tenho também uma<br />

canção <strong>de</strong> amor: ‘Serpente, pára; pára, serpente, a fim <strong>de</strong> que minha irmã<br />

copie as cores com que te enfeitas; a fim <strong>de</strong> que eu faça um colar para dar à<br />

minha amante; que tua beleza e tua elegância sejam sempre preferidas entre<br />

as das <strong>de</strong>mais serpentes’. É a primeira estrofe e o estribilho da canção; ora,<br />

eu conheço bastante a poesia para julgar que este produto <strong>de</strong> sua<br />

imagi<strong>na</strong>ção <strong>na</strong>da tem <strong>de</strong> bárbaro, antes me parece <strong>de</strong> espírito a<strong>na</strong>creôntico.<br />

Aliás a língua que falam não carece <strong>de</strong> doçura. Os sons são agradáveis e as<br />

<strong>de</strong>sinências das palavras aproximam-se das gregas.” 12<br />

<strong>Goethe</strong> transforma o canto em prosa anotado por Montaigne no<br />

seguinte poema:<br />

Liebeslied eines Wil<strong>de</strong>n Canção <strong>de</strong> amor <strong>de</strong> um selvagem<br />

<strong>Brasil</strong>ianisch <strong>Brasil</strong>eiro<br />

1782 1782<br />

Schlange, warte, warte, Schlange, C<strong>obra</strong>, espera, espera, c<strong>obra</strong>,<br />

Daß <strong>na</strong>ch <strong>de</strong>inen schönen Farben, Que, igual a tuas belas cores,<br />

Nach <strong>de</strong>r Zeichnung <strong>de</strong>iner Ringe Igual ao <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> teus anéis,<br />

Meine Schwester Band und Gürtel Minha irmã me teça<br />

Mir für meine Liebste flechte. Fita e cinto para a minha amada.<br />

Deine Schönheit, <strong>de</strong>ine Bildung Tua beleza, tua forma<br />

12 - Montaigne, p. 109.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

Wird vor allen an<strong>de</strong>ren Schlangen Será ante todas as outras c<strong>obra</strong>s<br />

Herrlich dann gepriesen wer<strong>de</strong>n. 13 Então soberbamente apreciada.<br />

A intertextualida<strong>de</strong> presente nestes dois textos, o francês e o<br />

alemão, também é evi<strong>de</strong>nte. O poema compõe-se <strong>de</strong> duas partes sintáticas,<br />

assi<strong>na</strong>ladas pelos pontos fi<strong>na</strong>is. O primeiro verso da primeira parte<br />

expressa, através da repetição <strong>de</strong> um imperativo, o pedido do eu lírico,<br />

confundido com a voz do índio, ao animal c<strong>obra</strong>: ele quer que sua irmã<br />

teça uma fita e um cinto imitando as cores e os <strong>de</strong>senhos da pele do ofídio.<br />

Percebe-se a tentativa <strong>de</strong> manter unidos o mundo homi<strong>na</strong>l e o mundo<br />

animal, <strong>na</strong> medida em que o índio imita o belo da <strong>na</strong>tureza. O rastejar da<br />

c<strong>obra</strong> ouve-se através da imagem sonora criada pelos sons fricativos<br />

sch/w/ß/ch/f/z/st e a sua imagem visual também se impõe sobreposta à<br />

imagem da fita (Band) e do cinto (Gürtel), mostrando a estatura da<br />

importância da <strong>na</strong>tureza, metonimicamente representada pela c<strong>obra</strong>,<br />

para o indíge<strong>na</strong> e, por extensão, para o eu lírico e para o seu leitor. Afi<strong>na</strong>l,<br />

o eu lírico dirige-se ao réptil, como se este o enten<strong>de</strong>sse. E as trocas entre<br />

mundo animal e mundo homi<strong>na</strong>l não páram por aí. Na segunda parte do<br />

poema, quando a amada apresentar sua fita e seu cinto, tecidos segundo o<br />

mo<strong>de</strong>lo da c<strong>obra</strong>, todas as outras c<strong>obra</strong>s o apreciarão e se verão assim<br />

home<strong>na</strong>geadas. Esta harmonia edênica evocada, utópica e algo panteísta,<br />

é ainda expressa pela regularida<strong>de</strong> da construção dos versos - todos <strong>de</strong> 7<br />

sílabas - em redondilha.<br />

<strong>Goethe</strong> também tem acesso a informações sobre a região amazônica<br />

através <strong>de</strong> Alexan<strong>de</strong>r von Humboldt, um cientista orientado por uma<br />

“filosofia cósmica” da terra, explicada da seguinte maneira: Vou<br />

consi<strong>de</strong>rar sempre [...] a correlação e interação das forças, a influência da<br />

criação não viva no mundo animal e vegetal; nessa harmonia fixar-se-ão<br />

permanentemente os meus olhos 14 . Custeia uma expedição à América do<br />

Sul durante os anos <strong>de</strong> 1799 a 1804, em que <strong>de</strong>scobre a corrente fria do<br />

Pacífico que acompanha a costa perua<strong>na</strong>, atribuindo-lhe a falta <strong>de</strong><br />

manguezais neste lado do continente, <strong>de</strong>screve, classifica e <strong>de</strong>svenda a<br />

13 - <strong>Goethe</strong>, loc. cit.<br />

Origi<strong>na</strong>l francês do canto: „Couleuvre, arreste toy, arreste toy, couleuvre, afin que ma soeur tire sur le patron<br />

<strong>de</strong> ta peinure la façon et l’ouvrage, d’un riche cordon que je puisse donner à m’amie: ainsi soit en tout temps<br />

ta beauté e ta disposition preferée à tous les autres serpens.“. Wolf Hoffmann-Harnisch, p. 22.<br />

14 - Romariz, Dora <strong>de</strong> Amarante - Humboldt e a fitogeografia. São Paulo, Lemos Editorial & Gráficos Ltda.,<br />

1996, p. 3.<br />

37


FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

paisagem do novo mundo - os minerais, as plantas e os animais - e<br />

também fala <strong>de</strong> sua gente, tanto dos índios quanto dos europeus aí<br />

estabelecidos. <strong>Goethe</strong>, já amigo <strong>de</strong> seu irmão, o diplomata Wilhelm von<br />

Humboldt, trava conhecimento com Alexan<strong>de</strong>r em 1795, portanto, antes<br />

da expedição <strong>de</strong>ste à América do Sul e, em 1816, chega a <strong>de</strong>dicar-lhe um<br />

poema 15 que alu<strong>de</strong> ao intercâmbio <strong>de</strong> informações científicas entre os<br />

dois.<br />

Quando Alexan<strong>de</strong>r von Humboldt volta da América do Sul, relata a<br />

<strong>Goethe</strong> suas impressões e observações sobre o novo continente: em todas<br />

as suas viagens tinha sempre em mira dois propósitos: 1º o conhecimento<br />

das áreas visitadas, bem como a coleta <strong>de</strong> novos fatos e dados que<br />

ensejassem a ampliação <strong>de</strong> uma ciência pouco <strong>de</strong>senvolvida; 2º e que lhe<br />

parecia mais significativo: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer correlações com<br />

outros fenômenos já conhecidos, fato esse a que atribuía maior importância<br />

do que ao da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novas plantas. 16 Tal como <strong>Goethe</strong>, reverencia a<br />

<strong>na</strong>tureza e confessa no volume II <strong>de</strong> sua <strong>obra</strong> Cosmos: sem dúvida a<br />

sublime grandiosida<strong>de</strong> da Criação, seria melhor conhecida e compreendida<br />

se, <strong>na</strong>s gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, junto aos museus, fossem livremente expostos ao<br />

público, panoramas nos quais, quadros sucessivos, representariam<br />

paisagens correspon<strong>de</strong>ntes a diferentes regiões, tanto em longitu<strong>de</strong> quanto<br />

em latitu<strong>de</strong>. Multiplicando-se as formas, por meio das quais possamos<br />

reproduzir imagens atraentes do conjunto dos fenômenos <strong>na</strong>turais, será<br />

15 -<br />

An Alexan<strong>de</strong>r von Humboldt A Alexan<strong>de</strong>r von Humboldt<br />

Weimar, <strong>de</strong>n 12. Juni 1816 Weimar, 12 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1816<br />

An Trauertagen Em dias <strong>de</strong> tristeza<br />

Gelangte zu mir <strong>de</strong>in herrlich Heft! Alcançou-me teu magnífico ca<strong>de</strong>rno!<br />

Es schien zu sagen: Parecia dizer:<br />

Ermanne dich zu fröhlichem Geschäft! Coragem, olha as coisas alegres!<br />

Die Welt in allen Zonen grünt und blüht O mundo em todas as zo<strong>na</strong>s ver<strong>de</strong>ja e<br />

floresce<br />

Nach ewigen beweglichen Gesetzen; Segundo eter<strong>na</strong>s e ágeis leis;<br />

Das wußtest du ja sonst zu schätzen, Isto já tu sabias aliás apreciar,<br />

Erheitre so durch mich <strong>de</strong>in schwer bedrängt Gemüt! Anima, então, através <strong>de</strong> mim, teu<br />

coração tão aflito!<br />

<strong>Goethe</strong>, J. W. - Sämtliche Werke. Zürich, Artemis, 1953, vol. 2, p. 277.<br />

16 - Romariz, Dora <strong>de</strong> Amarante - Humboldt e a fitogeografia. São Paulo, Lemos Editorial & Gráficos Ltda.,<br />

1996, p. 4.<br />

38


FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

possível familiarizar os homens com a unida<strong>de</strong> do Universo, fazendo-lhes<br />

sentir, mais vivamente, a estrutura harmoniosa da Natureza. 17 E ainda: A<br />

<strong>na</strong>tureza é o reino da liberda<strong>de</strong> e, para <strong>de</strong>screver com toda intensida<strong>de</strong> as<br />

concepções e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gozo, <strong>de</strong>spertadas por uma apreciação<br />

profunda da <strong>na</strong>tureza, seria preciso, igualmente, dar ao pensamento uma<br />

expressão livre e nobre, em harmonia com a gran<strong>de</strong>za e majesta<strong>de</strong> da<br />

Criação. 18 Trata-se <strong>de</strong> uma mundividência da qual <strong>Goethe</strong> também<br />

comunga.<br />

Embora não tenha podido entrar em território brasileiro por<br />

questões políticas (viajava com visto espanhol), conheceu e pesquisou toda<br />

a parte norte da região amazônica: <strong>de</strong>terminou o curso do rio Cassiquiare<br />

e localizou o seu ponto <strong>de</strong> entrada no rio Negro e no rio Orinoco.<br />

Penetrou <strong>na</strong> gran<strong>de</strong> floresta virgem equatorial, cuja superabundância e<br />

varieda<strong>de</strong> vegetal chamou <strong>de</strong> hiléa, uma i<strong>de</strong>ntificação que perdura até<br />

hoje. Atravessou as regiões pla<strong>na</strong>s da Venezuela. Observou as variações<br />

<strong>de</strong> temperatura e as condicionou ao relevo e à distribuição da vegetação.<br />

Subiu ao vulcão Pichinha perto <strong>de</strong> Quito e também ao Chimborazo a<br />

6.000 m <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>. Descobriu uma nova espécie <strong>de</strong> macaco muito peludo.<br />

Mostrou ao mundo que a Amazônia, longe <strong>de</strong> constituir um espaço <strong>de</strong><br />

fisionomia homogênea, possui uma enorme varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> paisagens. Desta<br />

viagem haveria <strong>de</strong> sair a <strong>obra</strong> monumental intitulada Voyage <strong>de</strong><br />

Humboldt et Bonpland em 30 volumes (<strong>de</strong> 1805 a 1834), às vezes citada<br />

como Voyage aux régions équinoxiales du nouveau continent.<br />

Karl Friedrich Phillipp von Martius, o outro gran<strong>de</strong> interlocutor <strong>de</strong><br />

<strong>Goethe</strong> em assuntos brasileiros e amigo 19 , médico <strong>de</strong> formação, chega ao<br />

17 - Id. ibid., p. 22.<br />

18 - Id. ibid., p.23-24.<br />

19 - A amiza<strong>de</strong> entre ambos chega a ser ilustrada por um poema <strong>de</strong>dicado à esposa <strong>de</strong> Martius:<br />

An Frau von Martius À senhora von Martius<br />

Bei übersendung einer Artischocke por ocasião <strong>de</strong> remessa <strong>de</strong> uma alcachofra<br />

Weimar, <strong>de</strong>n 11. August 1831 Weimar, 11 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1831<br />

Gegen Früchte aller Arten, Em retribuição a frutos <strong>de</strong> todas as espécies,<br />

Saftig-süßen, schmacklich-zarten, Suculentos-doces, saborosos-<strong>de</strong>licados,<br />

Aus gepflegtestem Revier - De mui bem cuidado pomar -<br />

Send ich starre Disteln dir. Envio-te rijos cardos.<br />

Diese Distel, laß sie gelten! Este cardo, nota-lhe o valor!<br />

Ich vermag sie nicht zu schelten, Não posso censurá-lo,<br />

Die, was uns am besten schmeckt, Ele que, o mais gostoso,<br />

In <strong>de</strong>m Busen tief versteckt. Escon<strong>de</strong> profundamente no seio.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

nosso país em 1817 como botânico da corte bávara do rei Maximilian I e<br />

como lí<strong>de</strong>r da comitiva austro-bávara <strong>de</strong> cientistas que acompanhou a<br />

arquiduquesa austríaca Do<strong>na</strong> Leopoldi<strong>na</strong>, noiva do príncipe D. Pedro <strong>de</strong><br />

Alcântara, ao <strong>Brasil</strong>. Desta comitiva faziam parte também, entre outros,<br />

os zoólogos Johann Baptiste von Spix, J. C. Mikan e Johann von Natterer.<br />

Spix e Martius formaram uma dupla que empreen<strong>de</strong>u uma viagem <strong>de</strong><br />

exploração do <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro à Amazônia, termi<strong>na</strong>da no ano <strong>de</strong> 1820. Um<br />

dos resultados <strong>de</strong>ssa viagem foi a publicação dos três volumes da <strong>obra</strong><br />

Viagem pelo <strong>Brasil</strong> em 1823, 1828 e 1831. O primeiro volume, composto<br />

<strong>de</strong> 4 livros, relata com minúcias, no primeiro, os preparativos da viagem,<br />

a partida <strong>de</strong> Munique, a partida <strong>de</strong> Trieste, a viagem pelo Mediterrâneo<br />

até Gibraltar, a passagem pela Ma<strong>de</strong>ira, a travessia do Atlântico até o <strong>Rio</strong><br />

<strong>de</strong> Janeiro. No segundo livro é-se apresentado à “cida<strong>de</strong> maravilhosa”, à<br />

sua paisagem e à sua gente e acompanha-se uma viagem a São Paulo. No<br />

terceiro e no quarto livros segue-se <strong>de</strong> São Paulo a Mi<strong>na</strong>s Gerais. No<br />

segundo volume, 5º livro, prossegue-se até o rio São Francisco, no 6º livro<br />

continua-se até a fronteira <strong>de</strong> Goiás e, <strong>de</strong>pois, até a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador.<br />

No 7 º livro embrenham-se os autores pelo sertão da Bahia até<br />

Per<strong>na</strong>mbuco, voltando, <strong>de</strong>pois, até São Luis do Maranhão, e prosseguindo<br />

por mar até Santa Maria <strong>de</strong> Belém do Grão-Pará. O volume 3 e livro 8<br />

iniciam-se, portanto, <strong>na</strong> cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belém e seu relato prossegue com o rio<br />

Amazo<strong>na</strong>s até a Fortaleza da Barra do <strong>Rio</strong> Negro, on<strong>de</strong> começa o livro 9,<br />

percorrendo, então, o Solimões, o Japurá até a catarata <strong>de</strong> Araraquara,<br />

volta ao rio Negro, vai até o rio Ma<strong>de</strong>ira, volta a Belém e termi<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />

Alemanha, com dois aborígenes levados para Munique. É neste 3º volume<br />

que quero <strong>de</strong>ter-me um pouco, pois trata-se aqui <strong>de</strong> uma região em que<br />

há maior número <strong>de</strong> índios e, por isso, eles são frequentes <strong>na</strong>s <strong>de</strong>scrições<br />

feitas. Martius e Spix chegam a fazer um inventário das várias tribos<br />

indíge<strong>na</strong>s que têm oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer, bem como comentam que à<br />

época <strong>de</strong> sua expedição gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> outras tribos, das quais<br />

ouviram ou ainda ouvem falar, já se extinguiram. Não só os aborígenes<br />

são <strong>de</strong>scritos fisicamente em <strong>de</strong>talhes, comparados com os indivíduos <strong>de</strong><br />

outras tribos, como também sua língua, seus costumes e suas lendas.<br />

Também seus cantos são anotados e transcritos, alguns acompanhados da<br />

pauta musical. Há índios extremamente agressivos, bravios, e outros até<br />

<strong>Goethe</strong>, J. W. - Sämtliche Werke. Zürich, Artemis, 1953, vol. 2, p. 311.<br />

40


FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

dóceis. Alguns admitem não lhes ser estranha a prática do canibalismo,<br />

mas fora do alcance dos protetorados. Destas <strong>de</strong>scrições, quero recortar<br />

as seguintes passagens:<br />

Quando cheguei a Tabatinga, vi diversas igaras dirigidas para terra,<br />

cheias <strong>de</strong> índios nus, enfeitados com braça<strong>de</strong>iras, ligaduras, ombreiras e<br />

testeiras <strong>de</strong> pe<strong>na</strong>s, e os quadris revestidos com <strong>de</strong>licado cinto <strong>de</strong><br />

entrecasca. 20<br />

Quando entrei, à tar<strong>de</strong>, <strong>na</strong> caba<strong>na</strong>, on<strong>de</strong> Gregório, cercado <strong>de</strong><br />

mulheres e crianças nuas, se preparava para prosseguir viagem, assusteime,<br />

vendo uma c<strong>obra</strong> <strong>de</strong> quatro côvados <strong>de</strong> comprimento, das mais belas<br />

to<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> e amarelo, empi<strong>na</strong>da a meta<strong>de</strong> e dançando em minha<br />

direção; obe<strong>de</strong>cendo à voz dum velho índio se pôs a dançar em círculo, <strong>de</strong><br />

um lado para outro, e, por fim, retirou-se para o ninho quente <strong>de</strong> capim a<br />

um canto sem molestar as crianças nem os numerosos macacos<br />

domesticados. Contaram-me que existem aqui domadores <strong>de</strong> serpentes, que<br />

as sabem amansar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhes arrancar os <strong>de</strong>ntuços, e as empregam <strong>na</strong>s<br />

suas mágicas e <strong>na</strong>s curas <strong>de</strong> picada <strong>de</strong> c<strong>obra</strong>. 21<br />

Ora, <strong>Goethe</strong> volta a encontrar-se com Martius várias vezes para<br />

conversar sobre esta viagem e troca com ele várias cartas em que<br />

amostras do material colhido durante a expedição são-lhe enviadas, para<br />

que ele próprio possa avaliá-las, antes da publicação da <strong>obra</strong> que atrás<br />

referimos. Numa carta datada <strong>de</strong> 29 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1825 enviada a<br />

Martius, <strong>Goethe</strong> assim expressa sua opinião sobre o assunto:<br />

Os cantos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is anotados aumentam minha coleção <strong>de</strong> maneira<br />

bem característica. Os tiroleses alegres e grosseiros contrastam<br />

estranhamente com os brasileiros <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza ru<strong>de</strong> e sombria; nós já bem<br />

que conhecemos um gaguejar semelhante da Austrália. O poema que segue<br />

( que eu peço, bem como o anexo, para <strong>de</strong>volver oportu<strong>na</strong>mente) aponta<br />

para uma cultura elevada sob céu turvo, ingrato. 22<br />

Chama-nos, portanto, a atenção o fato <strong>de</strong> ter feito <strong>Goethe</strong> publicar<br />

<strong>na</strong> revista Über Kunst und Alterthum (Sobre arte e antigüida<strong>de</strong>) do ano <strong>de</strong><br />

20<br />

- Spix & Martius - Viagem pelo <strong>Brasil</strong>. Trad. Lúcia Furquim Lahmeyer. São Paulo, Edusp, 1981, vol. 3,<br />

p.198.<br />

21<br />

- Id. ibid., p. 212.<br />

22<br />

- <strong>Goethe</strong>, J. W. - <strong>Goethe</strong>s Briefe. Weimar, Hermann Böhlhaus Nachfolger, 1907, vol. 39, p.96: Die<br />

mitgetheilten Natio<strong>na</strong>llie<strong>de</strong>r vermehrten meine Sammlung gar charakteristisch; wun<strong>de</strong>rsam contrastiren die<br />

heiter<strong>de</strong>rbgesitteten Tyroler mit <strong>de</strong>n roh- und düster- ge<strong>na</strong>turten <strong>Brasil</strong>ianern; ist uns doch auch schon ein<br />

ähnliches Stammeln von Australien her bekannt gewor<strong>de</strong>n. Beykommen<strong>de</strong>s Gedicht (das ich mir sowie die<br />

Beylage gelegentlich zurückerbitte) weist auf eine höhere Cultur unter trübem, undankbarem Himmel.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

1826 uma nova versão do poema Canção <strong>de</strong> amor <strong>de</strong> um selvagem agora<br />

somente com o título <strong>de</strong> <strong>Brasil</strong>ianisch (<strong>Brasil</strong>eiro). Refere-se ele a esta<br />

remo<strong>de</strong>lação, em seu diário <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong>ste mesmo ano, como<br />

<strong>Brasil</strong>ianisches Gedicht an die Schlange (Poema brasileiro <strong>de</strong>dicado à<br />

c<strong>obra</strong>) e, nela, parecem repercutir as anotações <strong>de</strong> Martius, assi<strong>na</strong>ladas<br />

acima, que, por sua vez, lembram o canto registrado por Montaigne:<br />

<strong>Brasil</strong>ianisch <strong>Brasil</strong>eiro<br />

1825 1825<br />

Schlange, halte stille! C<strong>obra</strong>, pára quieta!<br />

Halte stille, Schlange! Pára quieta, c<strong>obra</strong>!<br />

Meine Schwester will von dir ab Minha irmã quer <strong>de</strong> ti<br />

Sich ein Muster nehmen; Tirar um mo<strong>de</strong>lo;<br />

Sie will eine Schnur mir flechten, Quer tecer-me um galão<br />

Reich und bunt, wie du bist, Rico e colorido como tu,<br />

Daß ich sie <strong>de</strong>r Liebsten schenke. Para eu oferecer à minha<br />

amada.<br />

Trägt sie die, so wirst du Se ela o usar, serás<br />

Überall vor allen Schlangen Em toda parte, ante todas as c<strong>obra</strong>s<br />

Herrlich schön gepriesen. 23 Mui soberbamente<br />

apreciada.<br />

A remo<strong>de</strong>lação do poema acima acarreta uma sensível mudança <strong>de</strong><br />

significado: A or<strong>de</strong>m emitida à c<strong>obra</strong> tor<strong>na</strong>-se mais autoritária. Não há<br />

mais um apelo, nem mais o uso do verbo esperar, mas uma or<strong>de</strong>m em que<br />

não há permissão para qualquer movimento. A irmã do eu lírico tor<strong>na</strong>-se<br />

mais importante, pois sua evocação é puxada para cima. A fita e o cinto a<br />

serem tecidos são substituídos por um galão. Não há mais menção aos<br />

anéis da c<strong>obra</strong>. E a exaltação do animal fica condicio<strong>na</strong>da ao <strong>de</strong>sejo da<br />

amada em usar o atavio. Percebe-se que, <strong>de</strong> uma troca entre os reinos<br />

homi<strong>na</strong>l e animal, passa-se a enfatizar o homem enquanto senhor da<br />

<strong>na</strong>tureza, evocada no título. Talvez possamos arriscar dizer que o<br />

primeiro poema está mais próximo dos i<strong>de</strong>ais do Sturm und Drang,<br />

imbuído da atmosfera emocio<strong>na</strong>l das origens, do primevo, primitivo, e o<br />

segundo mais perto dos i<strong>de</strong>ais clássicos, em que o homem racio<strong>na</strong>l é a<br />

23 - <strong>Goethe</strong>, Sämtliche Werke, p. 338.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

medida <strong>de</strong> todas as coisas. Afi<strong>na</strong>l, em 1825 <strong>Goethe</strong> já está <strong>de</strong> volta da sua<br />

viagem à Itália.<br />

Como disse Hoffmann-Harnisch em seu artigo “<strong>Goethe</strong> e o <strong>Brasil</strong>”,<br />

a nenhum outro país fora da Europa <strong>Goethe</strong> <strong>de</strong>dicou tanto interesse quanto<br />

ao <strong>Brasil</strong>, “esse continente imenso”, conforme o chamou. 24 No entanto, não<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> observar que, embora <strong>Goethe</strong> tenha <strong>de</strong>ixado<br />

testemunhos escritos <strong>de</strong> que também acompanhou a evolução política do<br />

país, <strong>de</strong> colônia portuguesa a império, é o <strong>Brasil</strong> enquanto espaço<br />

povoado por índios, índios configurados segundo as duas gran<strong>de</strong>s<br />

perspectivas abertas <strong>na</strong> Europa: a do índio canibal (humanizado por<br />

<strong>Goethe</strong> e também por Montaigne) e a do bom selvagem, que estimula e<br />

sensibiliza a imagi<strong>na</strong>ção poética do escritor e, certamente, também a <strong>de</strong><br />

seus leitores.<br />

Fontes bibliográficas:<br />

24 - Hoffmann-Harnisch, p. 12.<br />

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FD 4 (2000) ARTIGOS<br />

ANCHIETA, José <strong>de</strong> - “Carta do IR. José <strong>de</strong> Anchieta ao geral P.<br />

Diogo Laínes, Roma”. In: Id. - Cartas. São Paulo, Edições Loyola, 1984, p.<br />

234.<br />

ANDRADE, Oswald <strong>de</strong> - “Manifesto Antropófago”. Revista <strong>de</strong><br />

Antropofagia. Reedição da revista literária publicada em São Paulo, 1 a e<br />

2 a <strong>de</strong>ntições, 1928-1929, Introd. <strong>de</strong> Augusto <strong>de</strong> Campos. São Paulo, 1976.<br />

BÜCHERL, Wolfgang (ed.) - Sta<strong>de</strong>n-Jahrbuch 25/26. São Paulo,<br />

Instituto Hans Sta<strong>de</strong>n, 1977-78.<br />

ELIADE, Mircea - O mito do eterno retorno. Trad. Manuela Torres.<br />

Lisboa, Edições 70, 1978.<br />

GOETHE, J. W. - <strong>Goethe</strong>s Briefe. Weimar, Hermann Böhlhaus<br />

Nachfolger, 1907, vol. 39.<br />

GOETHE, J. W. - Sämtliche Werke. Zürich, Artemis Verlag, 1953,<br />

vol. 2.<br />

GOLDSCHMIT-JENTNER, Rudolf - <strong>Goethe</strong>. Eine Bildbiographie.<br />

Wien, Deutsche Buch-Gemeinschaft, 1964.<br />

LEVY-STRAUSS, Clau<strong>de</strong> - O pensamento selvagem. Trad. Maria<br />

Celeste da Costa e Souza e Almir <strong>de</strong> Oliveira Aguiar. São Paulo, Comp.<br />

Editora Nacio<strong>na</strong>l, 1976.<br />

MARTIUS, C. F. Phillip von - “Die politische und sociale Stellung<br />

<strong>de</strong>r farbigen Menschen in <strong>Brasil</strong>ien”. In: Sta<strong>de</strong>n-Jahrbuch 36. São Paulo,<br />

1988, p. 150-156.<br />

PINTO, Orlando da Rocha - Cronologia da construção do <strong>Brasil</strong>.<br />

Lisboa, Livros Horizonte, 1987.<br />

SOUSA, Celeste H.M. Ribeiro <strong>de</strong> - Retratos do <strong>Brasil</strong>.Heteroimagens<br />

literárias alemãs. São Paulo, Arte & Ciência, 1996.<br />

SPIX & MARTIUS - Viagem pelo <strong>Brasil</strong>. Trad. Lúcia Furquim<br />

Lahmeyer. São Paulo, Edusp, 1981, 3 vol.<br />

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