16.04.2013 Views

Auto da Barca do Inferno - Colégio Portugal

Auto da Barca do Inferno - Colégio Portugal

Auto da Barca do Inferno - Colégio Portugal

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

_________________________________________________________________ <strong>Colégio</strong> <strong>Portugal</strong><br />

AUTO - termo que, no séc. XVI, se aplicava a peças de teatro ao gosto tradicional. Os<br />

assuntos podiam ser religiosos, profanos, sérios ou cómicos. Ao mesmo tempo que divertiam,<br />

moralizavam pela sátira de costumes e inculcavam de mo<strong>do</strong> vivo e acessível as ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fé.<br />

O <strong>Auto</strong> <strong>da</strong> <strong>Barca</strong> <strong>do</strong> <strong>Inferno</strong> é um auto de morali<strong>da</strong>de que dramatiza de uma forma cómica<br />

preceitos morais, políticos, religiosos, etc., através de uma crítica aos vícios e costumes <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de. (Riden<strong>do</strong> castigat mores – A rir se corrigem os costumes)<br />

As personagens são alegóricas (representam conceitos abstractos) – anjo e diabo – e tipos<br />

sociais – to<strong>da</strong>s as outras - que se fazem acompanhar de pessoas, animais ou objectos que<br />

facilitam a sua caracterização e identificação.<br />

Existe nesta peça um conflito: a luta entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício, entre a<br />

salvação e a perdição.<br />

O cenário representa a margem de um rio com duas barcas prestes a partir (alusão ao mito<br />

de Caronte), a <strong>do</strong> Céu, cujo arrais é o anjo e a <strong>do</strong> <strong>Inferno</strong> cujo arrais é o diabo. Uma série de<br />

personagens vai chegan<strong>do</strong> ao cais: são as almas <strong>do</strong>s mortos que acabam de deixar o mun<strong>do</strong> e que se<br />

apresentam perante o Juízo Final para serem julga<strong>do</strong>s. Por estas razões classifica-se também a<br />

obra como auto alegórico. To<strong>da</strong>s as personagens vão para o <strong>Inferno</strong>, com excepção <strong>do</strong> Parvo, que é<br />

salvo devi<strong>do</strong> à sua pobreza de espírito, e <strong>do</strong>s quatro Cavaleiros de Cristo que morreram a lutar nas<br />

Cruza<strong>da</strong>s sen<strong>do</strong> logo acolhi<strong>do</strong>s na barca <strong>da</strong> Glória.<br />

No <strong>Auto</strong> <strong>da</strong> <strong>Barca</strong> <strong>do</strong> <strong>Inferno</strong> não há propriamente um enre<strong>do</strong>, mas sim um desfile de cenas<br />

simétricas, um conjunto de mini-acções paralelas. Ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>res começa por dirigir-se à<br />

barca <strong>do</strong> diabo onde existe uma breve apresentação – exposição – dirige-se depois à barca <strong>do</strong> anjo<br />

onde é julga<strong>do</strong> e repeli<strong>do</strong>, volta à barca <strong>do</strong> diabo continuan<strong>do</strong> a ser julga<strong>do</strong> – conflito – e, por fim,<br />

embarca – desenlace. Há excepções a esta movimentação como é o caso <strong>do</strong> Parvo, Judeu,<br />

Enforca<strong>do</strong> e os 4 Cavaleiros.<br />

O <strong>Auto</strong> <strong>da</strong> <strong>Barca</strong> <strong>do</strong> <strong>Inferno</strong> é uma evocação de certos tipos sociais <strong>do</strong> século XVI e uma<br />

sátira feroz não só contra os grandes e poderosos mas também contra os de condição social mais<br />

modesta, mostran<strong>do</strong> uma socie<strong>da</strong>de em crise.<br />

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almei<strong>da</strong>


_________________________________________________________________ <strong>Colégio</strong> <strong>Portugal</strong><br />

O primeiro passageiro é um Fi<strong>da</strong>lgo coberto pelo manto <strong>da</strong><br />

vai<strong>da</strong>de, acompanha<strong>do</strong> de um pajem (o povo que ele oprimiu e<br />

desprezou) que transporta uma cadeira representativa <strong>da</strong> condição<br />

social <strong>do</strong> fi<strong>da</strong>lgo. Surge em cena com to<strong>da</strong> a sua vai<strong>da</strong>de, presunção<br />

e arrogância. Habitua<strong>do</strong> a gozar de to<strong>do</strong>s os privilégios, o fi<strong>da</strong>lgo<br />

não pensa que poderá ir para o <strong>Inferno</strong>.<br />

Gil Vicente não só condena este fi<strong>da</strong>lgo mas to<strong>do</strong>s os seus<br />

antepassa<strong>do</strong>s Man<strong>da</strong>i meter a cadeira/ que assim passou vosso<br />

paii critican<strong>do</strong> a classe em geral.<br />

Apesar <strong>do</strong>s seus argumentos (ter deixa<strong>do</strong> em vi<strong>da</strong> quem reze sempre por mim e por ser<br />

fi<strong>da</strong>lgo de solar), a barca <strong>do</strong> inferno é a única que comporta a sua bagagem de peca<strong>do</strong>s, e termina<br />

por nela embarcar depois de gravemente acusa<strong>do</strong> pelo Anjo: Não se embarca tirania / neste<br />

batel divinal (...) Pera vossa fantesia / mui estreita é esta barca (...) e porque, de generoso /<br />

desprezastes os pequenos (...) e de tentar voltar à vi<strong>da</strong> ... ver minha <strong>da</strong>ma queri<strong>da</strong>... e<br />

...ver minha mulher.<br />

A figura <strong>do</strong> fi<strong>da</strong>lgo presunçoso, vai<strong>do</strong>so, arrogante mas, pesar disso, muitas vezes pobre, era<br />

aquela que as classes trabalha<strong>do</strong>ras consideravam mais antipática dentro <strong>da</strong> constituição social <strong>do</strong><br />

século XV.<br />

A segun<strong>da</strong> personagem é o Onzeneiro (agiota que empresta<br />

dinheiro a juros de 11%); um usurário que enriquecera à custa <strong>do</strong>s<br />

altos juros <strong>do</strong> dinheiro que emprestara aos mais necessita<strong>do</strong>s.<br />

Pertencia a uma classe que tinha algo em comum com os<br />

Judeus: o seu amor ao dinheiro.<br />

Após ter si<strong>do</strong> rejeita<strong>do</strong> pelo Anjo que o acusa: porque esse<br />

bolsão tomara to<strong>do</strong> o navio, ...não já em teu coração, e tentan<strong>do</strong><br />

valer-se <strong>da</strong> sua astúcia, pretende enganar o Diabo e retornar à<br />

vi<strong>da</strong> ... e trarei o meu dinheiro/ que aqueloutro marinheiro, /<br />

porque me vê vir sem na<strong>da</strong>, / dá-me tanta borrega<strong>da</strong> como arrais lá <strong>do</strong> Barreiro, com o<br />

pretexto de ter de pagar a entra<strong>da</strong> ao Anjo.<br />

Com esta personagem, Gil Vicente critica a ganância, a avareza e a exploração pratica<strong>da</strong><br />

pelos onzeneiros.<br />

Joanne, o Parvo, é a personagem seguinte.<br />

Enfrenta o Diabo com uma irreverência simples,<br />

descarregan<strong>do</strong> sobre ele to<strong>da</strong> a espécie de injúrias e<br />

ofensas, numa ver<strong>da</strong>deira enxurra<strong>da</strong> de expressões<br />

absur<strong>da</strong>s que correspondem ao esta<strong>do</strong> mental<br />

desarticula<strong>do</strong> próprio <strong>do</strong>s "pobres de espírito", <strong>do</strong>s<br />

bem-aventura<strong>do</strong>s, a quem, por não possuírem traços de<br />

malícia ou atitudes mal<strong>do</strong>sas, será <strong>da</strong><strong>do</strong> o reino <strong>do</strong>s céus<br />

Tu passarás se quiseres / porque em to<strong>do</strong>s teus<br />

fazeres per malícia não erraste ... .<br />

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almei<strong>da</strong>


_________________________________________________________________ <strong>Colégio</strong> <strong>Portugal</strong><br />

A decisão <strong>do</strong> Anjo de o acolher na sua barca provem <strong>da</strong> lógica <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina cristã: não pode<br />

ser condena<strong>do</strong> pelos seus actos quem nasceu irresponsável e pobre de espírito, logo terá direito ao<br />

céu ... Tua simpreza t’abaste pera gozar <strong>do</strong>s prazeres.<br />

Os parvos têm, no teatro vicentino, uma função cómica ocasiona<strong>da</strong> pelos disparates que<br />

proferem. Assim acontece neste auto, embora em certos passos, o Parvo se junte às personagens<br />

sobrenaturais para criticar os que pretendem embarcar e sirva algumas vezes de comenta<strong>do</strong>r.<br />

O Sapateiro Joanantão apresenta-se em segui<strong>da</strong>, carrega<strong>do</strong> com<br />

formas de sapatos, acusa<strong>do</strong> pelo diabo e pelo anjo de roubar o povo e<br />

ser desonesto, Tu roubaste/ bem trint’anos o povo/ com teu mester<br />

(...) Essa barca que lá está / leva quem rouba de praça (...)<br />

O sapateiro pretende livrar-se <strong>da</strong> condenação <strong>do</strong> Diabo, alegan<strong>do</strong><br />

como defesa as missas a que assistira, as esmolas que ofertara, as<br />

horas <strong>do</strong>s fina<strong>do</strong>s, as confissões.<br />

Com esta cena procurou Gil Vicente demonstrar que o<br />

cumprimento <strong>do</strong>s deveres religiosos só aju<strong>da</strong> quem leva uma vi<strong>da</strong><br />

honesta. É, portanto, mais uma cena moralista de carácter religioso <strong>do</strong><br />

que, propriamente, a condenação de um sapateiro.<br />

Aparece um Frade, o tipo social mais insistentemente<br />

observa<strong>do</strong> e critica<strong>do</strong> por Gil Vicente que lhe censura a<br />

desconformi<strong>da</strong>de entre os actos e os ideais; em lugar de praticar a<br />

austeri<strong>da</strong>de, a pobreza e a renúncia ao mun<strong>do</strong>, o frade busca os<br />

prazeres <strong>da</strong> corte, tem mulher, é espa<strong>da</strong>chim, ambiciona honras e<br />

cargos, proceden<strong>do</strong> como se o hábito fosse o suficiente para o<br />

salvar <strong>do</strong> <strong>Inferno</strong> E este hábito não me vale?<br />

Entra em cena a cantar e a <strong>da</strong>nçar com a namora<strong>da</strong> Florença e<br />

carregan<strong>do</strong> os símbolos que representam os seus peca<strong>do</strong>s: uma<br />

espa<strong>da</strong>, um escu<strong>do</strong> e um capacete. Interpela<strong>do</strong> pelo Diabo, ensaia golpes com a espa<strong>da</strong>, mostran<strong>do</strong>se<br />

exímio esgrimista. O diálogo que ambos travam é cheio de trocadilhos e ironias mostran<strong>do</strong>-se o<br />

frade contraditório nas suas defesas Um padre tão namora<strong>do</strong> / e tanto <strong>da</strong><strong>do</strong> a virtude? (...)<br />

Por ser namora<strong>do</strong> / e folgar com ˜ua mulher / se há um frade de perder, / com tanto salmo<br />

reza<strong>do</strong>?<br />

O Anjo não se digna falar com ele e acaba condena<strong>do</strong> pelo Parvo embarcan<strong>do</strong> na barca <strong>do</strong><br />

<strong>Inferno</strong> com a moça.<br />

A Alcoviteira Brígi<strong>da</strong> Vaz apresenta-se para<br />

julgamento. Representa as mulheres que se dedicavam<br />

não só a desencaminhar jovens para a prostituição mas<br />

também praticavam feitiçaria, roubo, mentira. É o tipo<br />

que surge com mais elementos caracteriza<strong>do</strong>res: não só<br />

as meninas mas também a casa movediça onde traz to<strong>da</strong><br />

a carga representativa <strong>do</strong>s seus peca<strong>do</strong>s. A defesa<br />

posta em prática pela alcoviteira revela mentira,<br />

hipocrisia e descaramento, Eu sô ua mártela tal, /<br />

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almei<strong>da</strong>


_________________________________________________________________ <strong>Colégio</strong> <strong>Portugal</strong><br />

açoutes tenho leva<strong>do</strong>s / e tormentos soporta<strong>do</strong>s / que ninguém me foi igual (...) e fiz cousas<br />

mui divinas.<br />

Apresenta-se ao Diabo e ao Anjo como uma mártir que dedicara a vi<strong>da</strong> a seduzir meninas para<br />

os prazeres <strong>do</strong>s cónegos <strong>da</strong> Sé e <strong>do</strong>s homens em geral, a to<strong>da</strong>s arranjan<strong>do</strong> <strong>do</strong>no, compara a sua<br />

missão divina à <strong>do</strong>s apóstolos, <strong>do</strong>s anjos, de Sta. Úrsula.<br />

A linguagem <strong>da</strong> Alcoviteira funciona também como elemento caracteriza<strong>do</strong>r: é uma linguagem<br />

lisonjeira, sedutora, hipócrita, através <strong>da</strong> qual tenta cativar o Anjo ... anjo de Deos, minha<br />

rosa... que, no entanto, a vota ao desprezo Ora vai lá embarcar / não estês emportunan<strong>do</strong>.<br />

Recebi<strong>da</strong> de novo pelo Diabo, embarca, não sem antes ouvir a sentença se vivestes santa<br />

vi<strong>da</strong>, / vós o sentirês agora.<br />

Chega o Judeu carregan<strong>do</strong> um bode e dirige-se à barca<br />

<strong>do</strong> <strong>Inferno</strong> pretenden<strong>do</strong> nela embarcar. Recusa<strong>do</strong> pelo Diabo,<br />

tenta suborná-lo com mais outro tostão, mas nem o Diabo o<br />

quer Nenhum bode há de vir cá (...) Judeu, lá te passarão<br />

/ porque vão mais despeja<strong>do</strong>s.<br />

O Judeu roga-lhe pragas mas despacha<strong>do</strong> pelo Diabo<br />

para a barca <strong>do</strong> Anjo, é acusa<strong>do</strong> pelo Parvo. Acaba por<br />

embarcar com o bode num bote, in<strong>do</strong> "a reboque" <strong>da</strong> barca <strong>do</strong><br />

<strong>Inferno</strong>. Gil Vicente, como se pode perceber, tem certa<br />

dificul<strong>da</strong>de em condenar o Judeu - ou absolvê-lo - optan<strong>do</strong> por uma solução intermédia: deixá-lo ir<br />

"à toa".<br />

No seu retrato são exagera<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is aspectos: o seu apego ao dinheiro Passai-me por meu<br />

dinheiro e à sua religião simboliza<strong>da</strong> no bode Sem bode, como irei lá?.<br />

O pormenor de nem o Diabo querer o Judeu e de não lhe permitir a entra<strong>da</strong> na barca<br />

marginaliza-o de tal mo<strong>do</strong> que o coloca num plano inferior ao <strong>do</strong>s restantes condena<strong>do</strong>s Vós,<br />

Judeu, irês à toa, / que sois mui ruim pessoa (...).<br />

Deve-se ter em mente que, à época <strong>da</strong> encenação <strong>da</strong> peça, acontecia em <strong>Portugal</strong> uma<br />

ver<strong>da</strong>deira perseguição aos judeus pela Igreja Católica.<br />

Vem em segui<strong>da</strong> um Correge<strong>do</strong>r (juiz) arrogante,<br />

carrega<strong>do</strong> de feitos que simbolizam os processos mal<br />

julga<strong>do</strong>s. O Diabo convi<strong>da</strong>-o a entrar chaman<strong>do</strong>-lhe<br />

ironicamente de "descorrege<strong>do</strong>r", acusan<strong>do</strong>-o de ter si<strong>do</strong><br />

parcial e desonesto nos seus julgamentos ...quia judicastis<br />

malitia..., desfavorecen<strong>do</strong> os mais ignorantes e<br />

enriquecen<strong>do</strong> à sua custa ...A largo mo<strong>do</strong> adquiristis<br />

/sanguinis laboratorum / ignorantes peccatorum...<br />

O Correge<strong>do</strong>r é ain<strong>da</strong> acusa<strong>do</strong> de ser corrupto ...Oh<br />

ama<strong>do</strong>r de perdiz.. e de ter si<strong>do</strong> conivente com a mulher,<br />

que recebia subornos E as peitas <strong>do</strong>s judeus / que vossa<br />

mulher levava?<br />

Os <strong>do</strong>is discutem e argumentam num latim “macarrónico jurídico tentan<strong>do</strong> o Correge<strong>do</strong>r defenderse<br />

Semper ego justitia / e fecit bem per nivel (...)Isso eu não o tomava / eram lá percalços<br />

seus.<br />

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almei<strong>da</strong>


_________________________________________________________________ <strong>Colégio</strong> <strong>Portugal</strong><br />

Um Procura<strong>do</strong>r (advoga<strong>do</strong>) chega carrega<strong>do</strong> de livros, as leis mal aplica<strong>da</strong>s, e junta-se-lhes. O<br />

Diabo imediatamente o convi<strong>da</strong> a entrar, destinan<strong>do</strong>-lhe trabalho: Entrai, bacharel <strong>do</strong>utor, e<br />

ireis <strong>da</strong>n<strong>do</strong> na bomba.<br />

Inconforma<strong>do</strong>s, os <strong>do</strong>is representantes <strong>da</strong> lei tentam embarcar com o Anjo, que os condena<br />

pela justiça divina A justiça divinal / vos man<strong>da</strong> vir carrega<strong>do</strong>s / porque vades embarca<strong>do</strong>s /<br />

neste batel infernal.<br />

Esta cena forma um amplo quadro <strong>da</strong> justiça humana que se opõe à justiça divina.<br />

A magistratura é vista por Gil Vicente como corrompi<strong>da</strong> e porta<strong>do</strong>ra de grandes defeitos. As<br />

principais acusações feitas a ambos são a parciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas sentenças e o facto de receberem<br />

subornos. A prática <strong>da</strong> religião também está posta em causa, uma vez que a confissão antes <strong>da</strong><br />

morte ou não existiu, no caso <strong>do</strong> Procura<strong>do</strong>r, ou não foi ver<strong>da</strong>deira, no caso <strong>do</strong> Correge<strong>do</strong>r ...Eu<br />

mui bem me confessei, / mas tu<strong>do</strong> quanto roubei / encobri ao confessor…<br />

Gil Vicente critica desta forma a injustiça e a corrupção pratica<strong>da</strong> por uma profissão cujos<br />

membros deviam ser justos, responsáveis e honestos.<br />

Pêro de Lisboa, um homem que morrera Enforca<strong>do</strong> condena<strong>do</strong> pela justiça, apresenta-se no<br />

cais com um baraço ao pescoço, convenci<strong>do</strong> que vai para o céu. Admira-se com a condenação <strong>do</strong><br />

Diabo, pois viera iludi<strong>do</strong> por Garcia Moniz, que lhe garantira ser honroso morrer na forca e que,<br />

uma vez que já tinha passa<strong>do</strong> pelo Purgatório que era a forca e o Limoeiro, iria direitinho para o<br />

céu. Portanto, ao deparar-se com aquele cenário, sobre o qual não tinha si<strong>do</strong> informa<strong>do</strong>,<br />

surpreende-se.... Agora não sei que é isso./ Não me falou em ribeira,/ nem barqueiro, nem<br />

barqueira, / senão — logo ò Paraíso...<br />

Nesta cena, é níti<strong>da</strong> a intenção de Gil Vicente criticar mais a <strong>do</strong>utrina e a mentira <strong>do</strong> que o<br />

próprio ladrão.<br />

Finalmente, vêm os Quatro Cavaleiros de Cristo,<br />

mortos pelos mouros nas Cruza<strong>da</strong>s, em defesa <strong>da</strong><br />

Igreja. Cantam hinos em que exaltam a transitorie<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e advertem os peca<strong>do</strong>res, exortan<strong>do</strong>-os à<br />

prática <strong>da</strong>s virtudes morais - único caminho para<br />

alcançar a felici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eterna.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, Gil Vicente opõe os cavaleiros que<br />

morreram a combater pela fé aos que trabalham pela<br />

vi<strong>da</strong> transitória.<br />

Saben<strong>do</strong> que têm o céu garanti<strong>do</strong>, os Cavaleiros passam pelo Diabo que se surpreende por estes<br />

não lhe <strong>da</strong>rem qualquer importância Entrai cá! Que cousa é essa? / Eu nom posso entender isto!<br />

e dirigem-se à barca <strong>da</strong> glória onde o Anjo os recebe de imediato Ó cavaleiros de Deos, / a vós<br />

estou esperan<strong>do</strong>, (...) que quem morre em tal peleja / merece paz eternal.<br />

O teatro de Gil Vicente é, assim, um teatro de tipos, figuras colectivas que sintetizam as<br />

quali<strong>da</strong>des e defeitos de uma classe social ou profissional.<br />

Para além <strong>do</strong>s objectos que transportam, a linguagem funciona também como elemento<br />

distintivo e caracteriza<strong>do</strong>r de certos tipos como é o caso <strong>do</strong> Parvo, Sapateiro, Alcoviteira,<br />

Correge<strong>do</strong>r e Procura<strong>do</strong>r. É, em to<strong>do</strong>s os casos, uma linguagem viva e realista, notan<strong>do</strong>-se a<br />

preocupação de a<strong>da</strong>ptar as palavras que mais se ajustam às personagens e à sua condição.<br />

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almei<strong>da</strong>


_________________________________________________________________ <strong>Colégio</strong> <strong>Portugal</strong><br />

Dramaturgo e poeta ver<strong>da</strong>deiramente popular, é com Gil Vicente que<br />

entramos na história <strong>do</strong> teatro português. No início <strong>da</strong> sua carreira sofreu a<br />

influência de obras de dramaturgos espanhóis (que lhe trouxeram conhecimentos <strong>da</strong><br />

língua castelhana) mas rapi<strong>da</strong>mente se libertou e criou um teatro de raízes<br />

marca<strong>da</strong>mente nacionais <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe forma dramática e estilo pessoal, constituin<strong>do</strong>se<br />

no ver<strong>da</strong>deiro cria<strong>do</strong>r de teatro português.<br />

Ten<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> na época <strong>do</strong>mina<strong>da</strong> pelos Descobrimentos, Gil Vicente observou e<br />

analisou to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de corrompi<strong>da</strong> pelo luxo, pela ociosi<strong>da</strong>de, pela imorali<strong>da</strong>de e<br />

a ninguém poupou nas suas críticas. Soube aproveitar a sua situação na corte para fazer uma crítica<br />

atrevidíssima aos mais diversos vícios socais sem poupar nenhuma classe social – clero, nobreza e povo. Com<br />

to<strong>da</strong> a naturali<strong>da</strong>de, espontanei<strong>da</strong>de e comici<strong>da</strong>de, Gil Vicente satirizou os principais vícios de to<strong>da</strong>s as<br />

classes sociais <strong>do</strong> seu tempo.<br />

As suas personagens raramente são nomea<strong>da</strong>s e as suas identificações são <strong>da</strong><strong>da</strong>s pela classe social a que<br />

pertencem ou pela função que desempenham no grupo. Dessa forma, desfila "pelo palco" uma vasta galeria de<br />

tipos humanos, frequentemente caricaturiza<strong>do</strong>s: o frade cortesão, folgazão, libertino e namora<strong>do</strong>r; o fi<strong>da</strong>lgo<br />

orgulhoso, vai<strong>do</strong>so e autoritário; a alcoviteira imoral, mentirosa e hipócrita; o judeu ganancioso; o sapateiro<br />

ladrão; os magistra<strong>do</strong>s ignorantes e corrompi<strong>do</strong>s ... to<strong>do</strong>s tão bem caracteriza<strong>do</strong>s e defini<strong>do</strong>s que ain<strong>da</strong> hoje<br />

nos parecem actuais.<br />

A sua linguagem incorpora a língua <strong>do</strong> povo no momento de transição entre a fase arcaica e moderna,<br />

<strong>do</strong>cumentan<strong>do</strong> recursos sugestivos, aspectos folclóricos, poéticos e até anedóticos <strong>do</strong>s diversos registos<br />

sociais.<br />

A obra de Gil Vicente situa-se entre a I<strong>da</strong>de Média e as novas ideias <strong>do</strong> Renascimento.<br />

Como características medievais encontramos:<br />

o uso de arcaísmos; os versos de re<strong>do</strong>ndilha (5 e 7 sílabas);<br />

a religiosi<strong>da</strong>de;<br />

as personagens sem carácter e personali<strong>da</strong>de bem vinca<strong>do</strong>s, com linguagem individualiza<strong>da</strong>, própria<br />

<strong>do</strong> seu estatuto social;<br />

consequente criação de tipos sociais;<br />

estrutura alegórica de várias peças (influência <strong>da</strong>s morali<strong>da</strong>des medievais).<br />

Como características renascentistas encontramos:<br />

os temas e a maneira perspicaz como observa a socie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> seu tempo, analisan<strong>do</strong> os seus defeitos,<br />

hábitos e vícios;<br />

o interesse pelo homem como centro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>;<br />

a crítica social, denuncian<strong>do</strong> as fraquezas e pon<strong>do</strong> em evidência o ridículo <strong>do</strong>s actos humanos;<br />

a moralização <strong>do</strong>s costumes através <strong>do</strong> riso (RIDENDO CASTIGAT MORES), visan<strong>do</strong> assim atingir a<br />

consciência <strong>do</strong> homem;<br />

o recurso a alguns aspectos <strong>da</strong> mitologia pagã.<br />

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almei<strong>da</strong>

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!