Alberti e Vitrúvio - Universidade São Francisco
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Revista Psico-USF, v. 8, n. 2, p. 103-114, Jul./Dez. 2003<br />
<strong>Alberti</strong> e <strong>Vitrúvio</strong><br />
Andrea Buchidid Loewen<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002<br />
Resumo<br />
De Architectura Libri Decem de <strong>Vitrúvio</strong> e De Re Aedificatoria de <strong>Alberti</strong> têm sido freqüentemente relacionados, e a<br />
primeira semelhança se encontra justamente na partição de cada um em dez livros. Ambos são escritos em língua<br />
latina por dois arquitetos cujo objetivo era o de definir sua arte e determinar todas as regras que a governam.<br />
Entretanto, apesar de <strong>Alberti</strong> basear-se em <strong>Vitrúvio</strong> para obter informações específicas, estava longe de concordar<br />
com este em todos os pontos e mostrava-se bastante crítico com relação a sua obra, pouco clara e repleta de<br />
imperfeições. <strong>Vitrúvio</strong> escreveu para registrar uma tradição ao invés de abrir uma nova época, enquanto <strong>Alberti</strong><br />
prescreve como os edifícios do futuro deveriam ser construídos.<br />
Palavras-chave: <strong>Alberti</strong>; Arquitetura do Renascimento; Tratados de Arquitetura; <strong>Vitrúvio</strong>.<br />
<strong>Alberti</strong> and <strong>Vitrúvio</strong><br />
Abstract<br />
Vitruvius’ De Architectura Libri Decem and <strong>Alberti</strong>’s De Re Aedificatoria have been often related, and the first<br />
resemblance is found at their partition in ten books. Both are written in latin by two architects whose objectives<br />
were to define their art and all the principles that rules it. Nevertheless, although <strong>Alberti</strong> turns to Vitruvius to obtain<br />
especific information, he was far from agreeing with the roman architect about all points and was in fact very<br />
critical towards his work, not very clear and filled with imperfections. Vitruvius wrote to record a tradition in spite<br />
of opening a new era; while <strong>Alberti</strong> wrote about how the buildings of the future should be constructed.<br />
Keywords: <strong>Alberti</strong>; Renaissance architecture; Architectural treatises; Vitruvius.<br />
Introdução<br />
A arquitetura é uma grande empresa, que nem todos<br />
podem enfrentar. Ocorre ser provido de grande engenho, de<br />
zelo perseverante, de excelente cultura e de uma longa<br />
prática, e sobretudo de muita ponderação e juízo agudo,<br />
para poder consolidar-se na profissão de arquiteto. Já que<br />
em arquitetura a maior glória entre todas está no avaliar<br />
com juízo reto que coisa seja digna. Construir, na verdade,<br />
é uma necessidade; construir convenientemente responde<br />
seja à necessidade seja à utilidade; mas, construir de modo<br />
a obter a aprovação dos homens de costumes esplêndidos,<br />
sem do contrário ser reprovado pelos homens frugais, isto<br />
somente pode provir da habilidade de um artista dotado,<br />
sábio e judicioso. (Leon Battista <strong>Alberti</strong>, De Re<br />
Aedificatoria, 1452)<br />
Para os arquitetos renascentistas a redescoberta<br />
da Antigüidade significou imitação das formas antigas<br />
em busca de regularidade formal, análise de edifícios que<br />
se aproximava às ciências históricas, e até mesmo estudos<br />
literários. A face da antiga Roma, tão admirada, se expressava<br />
por sua virtude ética e seu alto nível de civilização.<br />
Os estudos literários derivavam sobretudo da<br />
tentativa de compreender o De Architectura Libri Decem,<br />
do arquiteto romano da era augusta Marco Vitruvio<br />
Pollio, a única obra sobre a arquitetura do mundo<br />
antigo a chegar ao Renascimento e, portanto, a principal<br />
fonte sobre a Antigüidade Clássica à disposição de seus<br />
arquitetos. Essa obra já era conhecida durante a Idade<br />
Média. O manuscrito romano original foi perdido, mas<br />
se conhecem 55 cópias sucessivas; as mais antigas<br />
remetem ao início do século IX d.C. (Ungers, 1994).<br />
Não obstante as cópias prolíficas, a Idade Média fez<br />
pouco uso de <strong>Vitrúvio</strong>, explorando principalmente seu<br />
capítulo sobre as proporções humanas como também os<br />
capítulos sobre as proporções musicais. O século XV, ao<br />
contrário, demonstrou uma aproximação totalmente diversa;<br />
os patronos humanistas desejavam construir all’antica e<br />
seus conselheiros ansiavam saber o que <strong>Vitrúvio</strong> tinha a<br />
dizer sobre a arte edificatória. Mas o escrito permanecia<br />
selado, sua terminologia ininteligível, suas referências aos<br />
tipos construtivos e monumentos obscura.<br />
De Architectura Libri Decem e De Re Aedificatoria<br />
têm sido freqüentemente relacionados, e a primeira<br />
semelhança se encontra justamente na partição de cada<br />
um em dez livros. Este modo de tratar a arquitetura no<br />
contexto amplo de uma enciclopédia deriva do modelo<br />
típico dos escritos antigos, particularmente da Naturalis<br />
Historia de Plínio, o Velho (Günther, 1994). Além disso,<br />
os dois livros são escritos em língua latina, na primeira<br />
pessoa do singular, por dois arquitetos cujo objetivo<br />
estabelecido era o de definir sua arte e determinar todas<br />
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as regras que a governam, apresentando as explanações<br />
no presente do indicativo e as narrativas no pretérito; e,<br />
ainda, tanto uma como outra não possuíam ilustrações.<br />
<strong>Alberti</strong> toma de <strong>Vitrúvio</strong> a tripartição firmitas, utilitas e<br />
venustas, termos para classificação, como público e<br />
privado, sagrado e profano, e ainda a subdivisão por<br />
edifícios e classes. Como observa Krautheimer, <strong>Alberti</strong><br />
baseia-se em <strong>Vitrúvio</strong> para obter informações principalmente<br />
em quatro áreas, sejam elas fatos e imagens<br />
históricos; detalhes técnicos; as ordens; e, finalmente,<br />
antigos tipos construtivos pouco conhecidos nos<br />
Quatrocentos, como as palaestrae, os fóruns e os teatros<br />
(Krautheimer, 1963, p. 42).<br />
Entretanto, <strong>Alberti</strong> estava longe de concordar<br />
com o autor antigo em todos os pontos, mostrando-se<br />
na verdade bastante crítico em relação à sua obra,<br />
pouco clara e repleta de imperfeições, como evidencia<br />
no capítulo inicial do Livro VI:<br />
Pois eu me lamento que tantas obras de tão brilhantes<br />
autores tenham sido destruídas pela hostilidade do tempo e<br />
do homem, e que quase o único sobrevivente deste<br />
naufrágio seja <strong>Vitrúvio</strong>, um autor de inquestionável<br />
experiência, embora seus escritos tenham sido tão<br />
corrompidos pelo tempo, existindo muitas omissões e<br />
muitos defeitos. O que ele passou em todo caso não foi<br />
refinado, e sua linguagem tal que latinos devem pensar<br />
que ele quisesse parecer um grego, enquanto que gregos<br />
pensariam que ele balbuciava latim. Contudo, este mesmo<br />
texto é evidência de que ele não escreveu nem em latim<br />
nem em grego, tanto que, no que nos diz respeito, ele não<br />
deveria ter escrito de modo algum, ao invés de escrever algo<br />
que não podemos compreender. (<strong>Alberti</strong>, 1988, VI, cap.<br />
I, p. 154)<br />
<strong>Vitrúvio</strong> escreveu para registrar uma tradição ao<br />
invés de abrir uma nova época. Quaisquer que fossem<br />
as brilhantes realizações guardadas pelo futuro, é a<br />
glória do passado que ele exalta. Em sua obra inexiste o<br />
senso das vastas realizações da arquitetura imperial<br />
romana que estava por vir, embora seja considerado por<br />
eras posteriores como seu precursor (Rykwert, 1988,<br />
VI, cap. 1, p. 9). Ele ensaiou e até codificou as teorias e<br />
práticas de construção das gerações precedentes, dos<br />
arquitetos helenistas da Ásia Menor e do continente<br />
grego durante os três ou quatro séculos anteriores a seu<br />
tempo. Os seus livros ainda estavam disponíveis para<br />
ele: estes parecem ter sido principalmente monografias<br />
que arquitetos escreveram para justificar o desenho de<br />
edifícios específicos. Muitos dos termos técnicos<br />
utilizados por <strong>Vitrúvio</strong> são simplesmente transcrições<br />
de palavras gregas; até mesmo seu hábito obsessivo de<br />
estabelecer categorias e noções em trios foi muito<br />
favorecido por pensadores helenistas. A breve<br />
bibliografia que ele provê no proêmio ao Livro VII é o<br />
único guia confiável sobre os escritos teóricos dos<br />
arquitetos gregos (Rykwert, 1988, p. 9)<br />
Mais tarde Silenus publicou um livro sobre as proporções<br />
das estruturas Dóricas; Theodorus, sobre o templo Dórico<br />
de Juno que fica em Samos; Chersifron e Metágenes, sobre<br />
o templo Jônico em Éfeso que é de Diana; Pytheos, sobre<br />
o templo Jônico de Minerva que fica em Priene; Ictino e<br />
Carpion, sobre o templo Dórico de Minerva que fica na<br />
acrópolis de Atenas; Teodoro o Phócio, sobre o Edifício<br />
Circular que fica em Delfos; Philo, sobre as proporções de<br />
templos, e sobre o arsenal que ficava no porto de Pireus;<br />
Hermógenes, sobre o templo Jônico de Diana que fica em<br />
Magnésia, um pseudodíptero, e sobre aquele do Pai Baco<br />
em Teos, um monóptero; Arcesius, sobre as proporções<br />
Coríntias, e sobre o templo Jônico de Esculápio em<br />
Tralles; sobre o Mausoléu, Satyrus e Pytheos, que eram<br />
favorecidos com a maior e mais alta fortuna. [...] Então,<br />
também, muitos homens menos celebrados escreveram<br />
tratados sobre as leis da simetria, tais como Nexaris,<br />
Theocydes, Demophilus, Pollis, Leonidas, Silanion,<br />
Melampus, Sarnacus, e Euphranor; outros novamente<br />
sobre maquinarias, tais como Diades, Archytas,<br />
Archimedes, Ctesibius, Nymphodorus, Philo de Bizâncio,<br />
Diphilus, Democles, Charias, Polyidus, Pyrrus, e<br />
Agesistratus. A partir de seus comentários eu reuni o que<br />
vi útil para o presente assunto, e formei um tratado<br />
completo, e isto, principalmente, porque eu vi que muitos<br />
livros neste campo foram publicados pelos gregos, mas<br />
muito poucos na verdade por nossos conterrâneos. Fuficius,<br />
de fato, foi o primeiro a tomar a cargo a publicação de um<br />
livro sobre este assunto. Terentius Varrão, também, em<br />
sua obra ‘Sobre as Nove Ciências’ tem um livro sobre<br />
arquitetura, e Publius Septimius, dois. (Vitruvius,<br />
1960, V, “Introduction”, p. 198)<br />
<strong>Alberti</strong> estava interessado, sobretudo, na<br />
revivescência da Antigüidade etrusca e romana, e não da<br />
grega, empenhando-se para este fim no renascimento de<br />
um puro estilo latino (Krautheimer, 1963, p. 43).<br />
Tendo em vista tal revivescência, a Renascença<br />
italiana colocou em primeiro plano inicialmente as<br />
fontes literárias do mundo antigo, e depois o interesse<br />
se estendeu a todas as suas possíveis realizações, das<br />
obras artísticas de maior apreço aos objetos de uso<br />
comum e às coisas mais simples como as medidas e os<br />
pesos. Com interesse particular observou as construções,<br />
analisadas em seus estados originários ou em<br />
relação a suas funções e comparadas com as indicações<br />
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contidas nas fontes escritas. O método indutivo, que<br />
passa a ser utilizado nas novas análises, não definiu<br />
apenas um novo modo de observar a Antigüidade, mas<br />
significou, como observa Günther, uma transformação<br />
nas ciências em geral. Rompeu o círculo da dedução, da<br />
derivação lógica do pensamento dentro de um sistema<br />
espiritual fechado em si próprio. Os novos pesquisadores<br />
queriam atingir o conhecimento apoiando-se<br />
sobre experiências derivadas das análises dos objetos, de<br />
experimentos objetivos (Günther, 1994, p. 262).<br />
Para os estudos que se baseavam sobre esse<br />
novo método indutivo, era requisitado um novo tipo de<br />
estudioso, que saía da cátedra para trabalhar em campo.<br />
Nas palavras de Günther, Petrarca e Giovanni Colonna<br />
ainda refletiam sobre a virtude dos antigos enquanto<br />
estavam sentados sobre o teto das Termas de<br />
Diocleciano, gozando de um amplo panorama sobre as<br />
ruínas romanas; enquanto Poggio Bracciollini e <strong>Alberti</strong><br />
penetravam entre arbustos e espinhos para reencontrar<br />
os restos únicos da Antigüidade. Mas, como <strong>Alberti</strong>,<br />
esses estudiosos renascentistas não se contentaram com<br />
a simples observação dessas obras; eles contaram e<br />
mediram aquilo que encontraram.<br />
<strong>Alberti</strong> analisou de modo exaustivo sejam todos<br />
os escritos como todas as ruínas antigas:<br />
Todo edifício dos antigos que tenha atraído louvor, onde<br />
quer que ele estivesse, eu imediatamente o examinei<br />
cuidadosamente, para ver o que poderia aprender a partir<br />
dele. Portanto, eu nunca parei de explorar, considerar, e<br />
medir tudo, e comparar as informações através de<br />
lineamentos, até que eu tivesse abraçado e compreendido<br />
totalmente o que cada um tivesse para contribuir em<br />
termos de engenho e habilidade. (<strong>Alberti</strong>, 1988, VI,<br />
cap. I, p. 155)<br />
Ele queria incluir em seus estudos toda a<br />
Antigüidade. As ruínas serviam-lhe como justificativa<br />
para suas correções de <strong>Vitrúvio</strong>: “Exemplos de templos<br />
antigos e teatros que sobreviveram podem nos ensinar<br />
tanto quanto qualquer professor” (p. 154). Um exemplo<br />
particular diz respeito à questão do templo etrusco, cuja<br />
descrição vitruviana era, certamente, inintelegível para<br />
<strong>Alberti</strong>. Aparentemente ele pensava que <strong>Vitrúvio</strong> tivesse<br />
em mente um templum semelhante em planta à basílica<br />
de Masêncio, apesar de escuro e em uma escala menor.<br />
Desse modo, ele interpolou e emendou a passagem<br />
vitruviana até que ela se adequasse ao monumento<br />
(Krautheimer, 1963, p. 45).<br />
Nas palavras de Krautheimer, quer sejam<br />
limitadas à terminologia ou à reinterpretação, emenda<br />
ou interpolação, tais alterações são sinais que apontam<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002<br />
<strong>Alberti</strong> e <strong>Vitrúvio</strong><br />
às diferenças entre o De Architectura e o De Re<br />
Aedificatoria, bem como às verdadeiras intenções de<br />
Leon Battista (Krautheimer, 1963, p. 45). Além disso,<br />
no lugar do “estilo tosco” do escrito vitruviano, <strong>Alberti</strong><br />
desejava dar ao texto dignidade literária segundo o<br />
modelo ciceroniano e as regras da retórica. Queria,<br />
enfim, reunir em uma precisa teoria as regras díspares e<br />
terminologias soltas tratadas pelo arquiteto romano: “o<br />
que nós escrevemos é (a menos que eu me engane) em<br />
apropriado latim, e em forma compreensível” (<strong>Alberti</strong>,<br />
1988, VI, cap. I, p. 155).<br />
Convém deter-se em um exemplo: <strong>Vitrúvio</strong><br />
determina que três conceitos devem estar em mente<br />
quando da construção dos edifícios públicos, sejam eles<br />
a durabilidade (firmitas), a comodidade (utilitas) e a<br />
beleza (venustas), e oferece uma breve definição de cada<br />
um deles:<br />
Firmitas é assegurada quando as fundações são levadas<br />
até o solo firme e os materiais sabiamente selecionados;<br />
utilitas, quando o arranjo das partes é perfeito e não<br />
apresenta obstáculos ao uso, e quando cada classe de<br />
edifício é designada a sua orientação conveniente e<br />
apropriada; e venustas, quando a aparência da obra é<br />
agradável e elegante, e quando os seus membros estão em<br />
proporção devida de acordo com os corretos princípios da<br />
simetria. (Vitruvius, 1960, I, Cap. III, p. 17)<br />
Mas após esta análise, os três termos são<br />
retomados apenas incidentalmente, em muito poucas<br />
ocasiões, e apenas uma vez juntos. Na verdade eles não<br />
afetam o modo como o texto é organizado, e,<br />
diferentemente da posterior solução albertiana, não são<br />
usados para decidir a ordem na qual o assunto é tratado,<br />
tanto cronologicamente quanto em ordem de importância<br />
(Choay, 1979, p. 26). No De Re Aedificatoria estes três<br />
conceitos são apresentados a partir do prólogo como<br />
articuladores de idéias, em seqüência temporal e em<br />
ordem de importância. Relação usada tanto para dar<br />
estrutura ao livro quanto para analisar os três estágios<br />
do processo arquitetônico, os quais estão ligados<br />
hierarquicamente. Tais estágios, assim definidos por<br />
<strong>Alberti</strong>, formam a base de um processo intelectual que<br />
pretende prover uma definição precisa e efetuar uma<br />
gênese clara. Firmitas, utilitas e venustas são conferidos de<br />
um significado dinâmico, preenchem uma função estrutural<br />
e seu papel é construtivo, enquanto em <strong>Vitrúvio</strong> não<br />
estabelecem os níveis de informação hierarquicamente;<br />
agrupam regras, mas não são utilizados para a construção<br />
do texto ou de seu referendo (p. 27).<br />
Em <strong>Alberti</strong>, os três sistemas hierárquicos e<br />
interdependentes correspondem aos três estágios de<br />
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firmitas, utilitas e venustas; estes organizam o tratado e são<br />
indissociáveis. O primeiro destes sistemas trata da<br />
construção e dos materiais que devem obedecer às leis<br />
da mecânica e da física, como também àquelas da lógica<br />
imposta pela mente humana. No Livro I do De Re<br />
Aedificatoria, <strong>Alberti</strong> define os seis princípios ou<br />
operações que permitem ao arquiteto organizar ou<br />
articular os seus materiais − regio, area, partitio, paries,<br />
tectum, apertio − e no Livro II determina as regras que<br />
governam este processo. Na verdade, todo esse livro é<br />
dedicado à física dos materiais, enquanto o Livro III<br />
trata dos métodos de construção. O segundo sistema<br />
(Livros IV e V), que diz respeito à prática conveniência<br />
(commoditas), está sujeito às leis que governam o modo<br />
como os indivíduos se organizam em sociedade. E o<br />
terceiro sistema é aquele da beleza como fonte de<br />
prazer (Livros VI, VII, VIII e IX).<br />
<strong>Vitrúvio</strong> não pensa a tripartição como<br />
funcional. Ela poderia ser omitida do capítulo terceiro<br />
do Livro I sem afetar a organização e a ordem do De<br />
Architectura. Estas diferenças, no entanto, não significam<br />
que a obra vitruviana não possua nada de conceitos<br />
geradores, mas eles são usados para classificações<br />
estáticas − as diversas áreas dentro da arquitetura e do<br />
processo de construção, os diferentes tipos de edifícios<br />
ou templos (Choay, 1979, p. 27).<br />
O modo diferente pelo qual os mesmos<br />
conceitos funcionam nos dois textos é refletido nas<br />
diferenças no modo como os dois são arranjados, e na<br />
relação seqüencial entre os dez livros em cada caso. O<br />
texto albertiano apresenta uma progressão estrita e<br />
irreversível de acordo com um plano esboçado desde o<br />
prólogo e desenhado para seguir um desenvolvimento<br />
cronológico e teórico. Em <strong>Vitrúvio</strong>, por outro lado, se<br />
encontram várias associações casuais e passagens<br />
desconexas de um tema a outro.<br />
Portanto, enquanto o arranjo lógico do De Re<br />
Aedificatoria é tal que se torna impossível cortar qualquer<br />
coisa, porque cada passagem, e até mesmo cada peça da<br />
narrativa, é essencial ao texto, todo indivisível, uma parte<br />
considerável do De Architectura Libri Decem poderia ser<br />
alterada de posição sem prejudicar a narração vitruviana<br />
(p. 28). Na verdade, no De Re Aedificatoria a notação<br />
técnica mais minuciosa e o problema teórico se compõem<br />
harmoniosamente, enquanto brotam naturalmente da<br />
enumeração de todos os possíveis interrogantes expostos<br />
ao arquiteto, por sua cultura e por seu magistério.<br />
Porém, seria inadequado sobrevalorizar a<br />
contraposição das duas obras tendo em vista o caráter<br />
orgânico da exposição, já que neste sentido tampouco a<br />
obra albertiana carece de desequilíbrios. Segundo<br />
Portoghesi, o tratado desenvolve-se efetivamente de<br />
acordo com um esquema pré-fixado, ilustrado ao final<br />
do proêmio, porém dentro de cada um dos livros a<br />
exposição adquire com freqüência um tom de rapsódia:<br />
os mesmos argumentos se retomam em diversas<br />
ocasiões e não sempre segundo pontos de vista distintos.<br />
Mesmo os títulos dos livros correspondem apenas em<br />
parte aos argumentos tratados; no Livro VI, por exemplo,<br />
além da questão do ornamento, afronta-se também outro<br />
muito distante: o dos meios de elevação; enquanto no<br />
Livro X, cujo título suporia dedicado unica-mente à<br />
restauração dos edifícios, é na realidade em grande<br />
medida um tratado de hidráulica (Portoghesi, 1966, p. 57).<br />
Diferença relevante entre os dois escritos reside<br />
no fato de o autor antigo descrever o modo como eram<br />
construídos os edifícios que se admira, enquanto <strong>Alberti</strong><br />
prescreve como os edifícios do futuro devem ser<br />
construídos. Os edifícios sobre os quais <strong>Vitrúvio</strong> teoriza<br />
eram aqueles que ele e seus leitores podiam ver na<br />
cidade de Roma, bem como nas colônias do Império;<br />
aqueles a que <strong>Alberti</strong> se refere ou eram descritos nas<br />
fontes literárias antigas ou acessíveis somente aos<br />
viajantes mais intrépidos, ou ainda visíveis apenas sob<br />
forma de ruínas. Para o arquiteto-humanista, é a partir<br />
da compreensão das ruínas e dos escritos antigos que os<br />
novos edifícios, tão solenes e impressionantes quanto<br />
aqueles da Antigüidade, deverão ser concebidos.<br />
Entretanto, em seu pensamento tais edifícios jamais são<br />
entendidos como monumentos isolados do contexto<br />
urbano, mas estabelecem uma relação direta com a<br />
cidade, posto que suas formas expressam os significados<br />
históricos de suas instituições, e manifestam, na<br />
diversidade dos gêneros, determinados valores ideais na<br />
qualidade da forma arquitetônica. Assim, também o De<br />
Re Aedificatoria endereça-se à sua concepção de cidade.<br />
Forma urbis: a arquitetura e a cidade<br />
Os princípios que regem a concepção da cidade<br />
a partir da relação entre <strong>Alberti</strong> e <strong>Vitrúvio</strong> são<br />
considerados, freqüentemente, tendo em vista um<br />
modelo de cidade ideal, um desenho integral de cidade,<br />
ao qual viria associado o modelo da cidade antiga. Tal<br />
juízo se deve, sobretudo, às interpretações do texto<br />
vitruviano feitas por alguns dos principais tratadistas do<br />
Renascimento, como Filarete e Francesco di Giorgio,<br />
que identificavam, nas passagens do De Architectura, as<br />
prescrições para a realização efetiva de um modelo de<br />
cidade; o que levava a crer que <strong>Alberti</strong>, enquanto primeiro<br />
tratadista da era moderna, também compartilhasse desta<br />
leitura. Entretanto, uma análise cuidadosa dos dois<br />
textos, De Re Aedificatoria e De Architectura, desmonta tal<br />
juízo, clarificando as questões relevantes ao entendimento<br />
do conceito de cidade nos dois autores.<br />
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A cidade albertiana é composta por diversos<br />
tipos de edifícios destinados às diversas classes da sociedade,<br />
conforme o autor afirma no início do Livro IV:<br />
Talvez esta evidência seja suficiente para demonstrar que<br />
alguns edifícios são apropriados para a sociedade como um<br />
todo, outros para os primeiros cidadãos, e ainda outros<br />
para as pessoas comuns. Novamente, entre os primeiros<br />
cidadãos aqueles presidindo conselhos domésticos requerem<br />
edifícios diferentes daqueles para os envolvidos na execução<br />
de decisões ou aqueles engajados no acúmulo de riquezas.<br />
(<strong>Alberti</strong>, 1988, IV, 1, p. 94)<br />
Nessa afirmação <strong>Alberti</strong> insinua a ordem do De<br />
Re Aedificatoria, colocando a questão da classificação dos<br />
edifícios em públicos e privados, o que é de grande<br />
importância para o desenvolvimento dos livros que<br />
compõem a obra. No Livro IV ele trata das obras de<br />
caráter universal, aquelas que são para o uso de todos os<br />
cidadãos; no Livro V, daquelas destinadas a indivíduos<br />
− juízes, reis, príncipes, tiranos ou governantes da<br />
república; no Livro VII argumenta sobre o ornamento<br />
para os edifícios sagrados; no Livro VIII trata do<br />
ornamento para os edifícios públicos e no Livro IX<br />
para os edifícios privados. A classificação estabelecida<br />
por <strong>Alberti</strong> determina uma seqüência lógica que<br />
estrutura o De Re Aedificatoria tanto na parte dedicada a<br />
utilitas quanto naquela dedicada a venustas.<br />
O Livro IV tem uma importância particular,<br />
porque é nele que pela primeira vez <strong>Alberti</strong> aborda a<br />
questão da cidade, e a coloca como forma da perfeita<br />
convivência humana: “todos precisam da cidade e de<br />
todos os serviços públicos que dela fazem parte”<br />
(<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, 2, p. 272), acrescentando, a partir do<br />
que dizem os filósofos, que as cidades devem sua<br />
origem e existência ao fato de oferecerem a seus<br />
habitantes a possibilidade de desfrutarem de uma vida<br />
segura e pacífica; assim, a maior atenção deve ser<br />
dedicada ao arranjo, situação, e delimitação da cidade.<br />
Nesse livro o autor trata dos elementos que se necessitam<br />
construir em cada cidade: muralhas, ruas, pontes, esgotos,<br />
portos. As apreciações albertianas possuem sempre um<br />
valor prático, nascem de uma téchne que se explicita<br />
quando começa a discorrer sobre a construção da cidade.<br />
O argumento da utilitas possui fundamental importância<br />
para o lugar do Livro IV na economia do tratado: “é<br />
óbvio que os edifícios foram feitos para servir ao homem”<br />
(<strong>Alberti</strong>, 1988, IV, 1, p. 92); portanto, a arquitetura nasce<br />
da necessidade, e como requisito humano essencial, passa<br />
a preencher um propósito que evolui através da commoditas<br />
até a venustas; ela é feita pelo homem, para servir a seus<br />
fins e, ao mesmo tempo, agradar a seus sentidos.<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002<br />
<strong>Alberti</strong> e <strong>Vitrúvio</strong><br />
<strong>Vitrúvio</strong> também aconselha que se construa tendo<br />
em vista as várias classes que compõem a república. No<br />
capítulo II do Livro I, o arquiteto romano afirma que:<br />
um segundo estágio em economia é alcançado quando<br />
temos que conceber os diferentes tipos de moradias adequados<br />
para os proprietários de casas comuns, para os de grande<br />
riqueza, ou para a alta posição do homem de estado. Uma<br />
casa na cidade obviamente clama por uma forma de construção;<br />
aquela na qual correm os produtos dos bens do campo<br />
requer outra; esta não será a mesma no caso dos negociantes<br />
e ainda diferente para os de opulência e luxo; pois os<br />
poderes sob cujas deliberações a república é guiada devem<br />
ser providos de moradias de acordo com suas necessidades<br />
especiais: e, em uma palavra, a forma apropriada de<br />
economia deve ser observada na construção de casas para<br />
toda e cada classe. (Vitruvius, 1960, cap. I, p. 16)<br />
Em seguida, no capítulo que trata das partes da<br />
arquitetura, o autor romano acena para a diversidade de<br />
construções e diferenciações entre os homens ao<br />
afirmar que o ato de construir é dividido em duas<br />
partes, sendo a primeira a construção de cidades<br />
fortificadas e de obras para uso geral em locais públicos,<br />
e a segunda a construção de edifícios para indivíduos<br />
privados. Os edifícios públicos são divididos em três<br />
classes: para defesa, religião, e propósitos utilitários.<br />
Aqueles que se referem à defesa são o arranjo das<br />
muralhas, torres, portões e inventos permanentes para<br />
resistência contra ataques hostis; os relativos a religião<br />
são altares e templos erguidos aos deuses imortais; e os<br />
que dizem respeito a utilidade são a provisão de locais de<br />
encontro para uso público, tais como portos, mercados,<br />
colunatas, termas, e todos os outros arranjos similares em<br />
locais públicos. <strong>Vitrúvio</strong> acrescenta então que “tudo isto<br />
deve ser construído com devida referência a durabilidade<br />
(firmitas), conveniência (utilitas), e beleza (venustas)” (p. 17).<br />
Contudo, a classificação estabelecida por <strong>Vitrúvio</strong><br />
não apresenta maiores implicações. Ela não cria uma<br />
lógica que direcione o desenvolvimento dos livros do<br />
De Architectura; tampouco pressupõe uma seqüência<br />
hierárquica que estruture sua construção, ou a<br />
concepção da cidade no texto vitruviano.<br />
No De Re Aedificatoria, as diferenciações da<br />
natureza humana originam a variedade dos edifícios.<br />
<strong>Alberti</strong>, analisando os escritos dos antigos, verifica a<br />
relação entre as diferentes forma de governo na história,<br />
as divisões da sociedade e a diversidade dos edifícios,<br />
posto que a cada uma das partes do Estado deve ser<br />
designado um tipo de edifício (<strong>Alberti</strong>, 1985, IV, 1, p. 97)<br />
A forma da cidade deve refletir as diferenciações<br />
hierárquicas estabelecidas pelas instituições: para<br />
41
42<br />
Andrea Buchidid Loewen<br />
construí-la é necessário “considerar a variedade humana em<br />
maior detalhe; uma vez que os edifícios surgem em razão do<br />
homem, e para suas necessidades eles variam” (p. 97). A cidade<br />
albertiana é a representação visível dos valores<br />
construtivos de uma comunidade de cidadãos, que, como<br />
sugere Argan, não são apenas valores econômicos,<br />
morais e religiosos próprios da comuna medieval, mas<br />
também, e sobretudo, valores históricos e políticos tal<br />
como concebido pelo pensamento humanista. “O espaço<br />
da cidade”, observa o historiador, “é o espaço da história”<br />
(Argan, 1984, p. 118).<br />
As fontes da Antigüidade elencadas por <strong>Alberti</strong><br />
no Livro IV − Plutarco, Rômulo, Numa, César, Aristóteles,<br />
Hipódamo, Platão − servem de base para uma<br />
análise dos diferentes tipos de governo e das divisões da<br />
sociedade em relação à definição e distribuição das<br />
funções urbanas: os prudentes homens da Antigüidade,<br />
que fundaram repúblicas e determinaram suas leis,<br />
deveriam ser consultados posto que seu cuidado e<br />
diligência nessas questões atraíram grande admiração<br />
(<strong>Alberti</strong>, 1988, IV, 1, p. 93). Porém, fica clara a sua<br />
preferência pela sociedade oligárquica:<br />
escolher-se-ão poucos indivíduos na comunidade inteira,<br />
alguns dos quais distingüem-se por conhecimento,<br />
sabedoria, engenho, outros por experiência e prática das<br />
coisas, outros enfim por riqueza e abundância nos bens de<br />
fortuna. (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, 1, p. 268)<br />
<strong>São</strong> estas as características que separam os<br />
homens enquanto indivíduos, a saber, a razão e o<br />
conhecimento das artes liberais, às quais pode-se<br />
acrescentar ainda “a prosperidade da sorte” (<strong>Alberti</strong>,<br />
1988, IV, 1, p. 93). A estrutura social suposta por <strong>Alberti</strong><br />
prevê uma oligarquia de virtuosos e afortunados juntos,<br />
e ao lado destes uma classe burocrática à qual os primeiros<br />
confiarão os aspectos executivos do governar. 1<br />
Enfim, todos os outros cidadãos deveriam colaborar<br />
com os governantes e obedecê-los, segundo solicitasse a<br />
oportunidade. Como sugere Portoghesi, a cada um dos<br />
possíveis destinos públicos ou privados corresponderá<br />
um gênero de edifício, de modo que se faça legível aos<br />
cidadãos uma estrutura da cidade que seja a estrutura da<br />
própria sociedade, modelada com base nas exigências<br />
civis do mesmo modo que a casa está modelada para<br />
responder às necessidades mais elementares da vida<br />
(Portoghesi, 1966, p. 23).<br />
Contudo, apesar da predileção pela oligarquia<br />
1 “estes, assumindo sua tarefa, devem respeitosamente levá-la a cabo com<br />
destreza e diligência em seu país, e com aplicação e paciência no<br />
exterior: devem oferecer julgamento, comandar exércitos, exercitar sua<br />
própria força e diligência, e poupar aquela de seus homens”. <strong>Alberti</strong>,<br />
L. B. 1988, IV, 1, p. 94.<br />
comprometida com valores humanistas, como a que<br />
Cósimo, o Velho, havia instaurado em Florença, <strong>Alberti</strong><br />
prevê também a possibilidade de um governo individual<br />
e tirânico. Conseqüentemente, a cidade assumiria uma<br />
forma diversa, já que sendo o tirano inimigo do povo,<br />
ao exercer seu poder deveria pensar também em<br />
defender-se desse mesmo povo; a cidadela seria então<br />
construída com a dupla finalidade de defender e<br />
ofender a comunidade, restando, isolada e autônoma,<br />
uma cidade dentro da cidade (p. 24).<br />
A configuração da cidade reflete a estrutura<br />
social juntamente com uma série de considerações<br />
práticas, funcionais e higiênicas. No capítulo II do Livro<br />
IV, <strong>Alberti</strong> trata do tema da situação a se eleger para a<br />
cidade, avaliando vantagens e desvantagens de se<br />
construí-la numa planície, na montanha ou próxima ao<br />
mar, considerando sempre questões estratégicas e militares,<br />
bem como as funcionais relativas à presença de fontes e<br />
rios. Novamente dirigindo-se aos antigos, aconselha como<br />
localização ideal para uma cidade aquela cujo território,<br />
além de naturalmente fortificado, suprisse todos os requisitos<br />
e necessidades dos habitantes. A questão da salubridade<br />
na escolha da situação para as cidades já havia<br />
sido destacada por <strong>Vitrúvio</strong> no De Architectura, quando,<br />
no capítulo IV do Livro I, o autor romano aconselhava<br />
que, em primeiro lugar, deveria estar a escolha de um<br />
local muito saudável, alto, de clima temperado, e livre<br />
da presença de pântanos (Vitruvius, 1960, 1, p. 18).<br />
<strong>Alberti</strong> também aconselha quanto à importância<br />
destas questões, afirmando que o ar que se respira<br />
tem papel vital na manutenção e preservação da vida, e<br />
que “a localidade a ser escolhida deve estar bastante<br />
livre de nuvens enfurecidas e todas as densas espessuras<br />
de vapores” (<strong>Alberti</strong>, 1988, I, 3, p. 10); tendo-se em<br />
conta ainda a qualidade e ângulo do sol ao qual a<br />
localidade está exposta, a situação hídrica, e a disposição<br />
com relação aos ventos. A relação entre arranjo da<br />
cidade e incidência dos ventos foi tratada com bastante<br />
relevância por <strong>Vitrúvio</strong> em sua obra. Após a fortificação<br />
da cidade, o próximo passo seria a divisão dos lotes de<br />
casas dentro das muralhas e o arranjo das ruas com<br />
respeito às condições climáticas.<br />
Por certo, o que ele propunha era uma mudança<br />
na orientação do tradicional arranjo colonial romano<br />
que se baseava nos dois eixos ortogonais, kardo maximus<br />
e decumanus maximus, girando-o de modo que os eixos<br />
não coincidissem com as linhas de incidência dos ventos:<br />
portanto deixe que as direções de suas ruas e ruelas sejam<br />
arranjadas sobre as linhas de divisão entre os quartos dos<br />
dois ventos. Sob este princípio de arranjo a força<br />
desagradável dos ventos será interceptada pelas residências<br />
e linhas de casas.<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002
Assim, direcionando a linha das casas para fora<br />
dos quadrantes a partir dos quais os ventos sopram, “estes<br />
poderiam bater contra os ângulos das quadras e ter sua<br />
força quebrada e dissipada” (Vitruvius, 1960, I, 4, p. 27).<br />
<strong>Alberti</strong> estava ciente das qualidades favoráveis<br />
ou não dos diferentes ventos, baseando-se, como sugere<br />
no capítulo III do Livro I, na autoridade de Plínio e<br />
Hipócrates; contudo, diferentemente de <strong>Vitrúvio</strong>, tais<br />
considerações não eram determinantes do arranjo integral<br />
da cidade, tampouco configuravam formas específicas.<br />
Elas eram apenas recomendações a serem apreciadas e<br />
seguidas quando da eleição da melhor localização para a<br />
cidade, assegurando a commoditas ao garantir que ela não<br />
contenha nada prejudicial e que seja suprida com toda<br />
conveniência (<strong>Alberti</strong>, 1988, I, 3, p. 9). O território para<br />
<strong>Alberti</strong>, de acordo com as palavras de Borsi, não era<br />
uma presença anônima de um espaço isótropo, mas uma<br />
série privilegiada de loci; o primeiro cuidado do arquiteto,<br />
ou do príncipe, que queira fundar novas posses, diz respeito<br />
à escolha de um lugar idôneo (Borsi, 1973, p. 228).<br />
O reconhecimento dos fatores ambientais e das<br />
normas higiênicas fundamentais não é fruto de um<br />
hedonismo estéril, mas possui uma finalidade precisa, a<br />
do assentamento humano. A cidade alimenta-se e põese<br />
em relação com o território; deve, portanto, possuir<br />
terrenos sãos, férteis e abundantes, além de rios ou<br />
lagos que facilitassem a importação e exportação dos<br />
bens. Ainda, deveria ser bela e bem protegida a ponto<br />
de provocar admiração em seus amigos e despertar<br />
temor nos inimigos (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, 2, p. 276-278).<br />
Devido a estas considerações gerais de defensibilidade,<br />
a cidade deve permanecer no centro de seu<br />
território, o que implica a relação entre sua forma e seu<br />
terreno: “é certo que a forma da cidade e a distribuição<br />
de suas partes deve ser variada de acordo com a variedade<br />
dos lugares” (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, 3, p. 70). Sem eleger um<br />
modelo único, mas propondo uma série de exemplos<br />
que reafirmam o seu realismo, <strong>Alberti</strong> cita que a mais<br />
espaçosa de todas as cidades é a circular, e a mais bem<br />
defendida, aquela protegida por uma muralha ondulada;<br />
e então, tendo observado os antigos, acrescenta que<br />
devemos procurar maneiras de explorar a natureza do próprio<br />
lugar, como na verdade nós percebemos que os antigos<br />
faziam, dependendo das vantagens oferecidas pelo local, e<br />
seus próprios requisitos. (<strong>Alberti</strong>, 1988, IV, 3, p. 102)<br />
A geometria da cidade, como analisou Argan<br />
(1984, p. 121), tem raiz na topografia natural e nas<br />
exigências de convivência da comunidade. Parte-se da<br />
universalidade do ambiente [regio] 2 à particularidade<br />
2 Colchetes da pesquisadora.<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002<br />
<strong>Alberti</strong> e <strong>Vitrúvio</strong><br />
formal da cidade [area] através da identificação e da<br />
organização racional das funções elementares do<br />
subdividir [partitio], do fechar [paries], do cobrir [tectum],<br />
do comunicar [apertio]. Contudo, Argan adverte, as fontes<br />
de <strong>Alberti</strong> são sempre os escritores antigos, a natureza é<br />
sempre a descrita e estudada pelos antigos, e o objetivo<br />
maior é fundar a técnica construtiva sobre a história ao<br />
invés de sobre a prática. Enfim, “se aquele que estuda o<br />
uso do terreno é o político, o tratado De Re Aedificatoria é,<br />
em última análise, um tratado de política, sendo a política<br />
nada além que a construção da polis” (Argan, 1984, p. 121).<br />
A intenção de <strong>Alberti</strong> é determinar todos os<br />
princípios que regulem uma nova arquitetura, que olha<br />
para a antiga em busca da razão, a ser recuperada após<br />
um longo período de erros. Sob tal perspectiva, Argan<br />
acredita que o arquiteto-humanista estivesse expressando<br />
uma crítica à tradição da cidade medieval, que<br />
parecia haver crescido sobre si própria, sem uma ordem<br />
preestabelecida.<br />
Em contraponto a Argan, Cesare de Seta evidencia<br />
como, no Livro IV, <strong>Alberti</strong> discorre sobre cidades<br />
antigas e contemporâneas sem nenhuma distinção que<br />
possa soar discriminatória nos confrontos destas últimas.<br />
Numerosas cidades típicas do urbanismo medieval são<br />
citadas do mesmo modo que Roma, Atenas ou<br />
Babilônia, e <strong>Alberti</strong> não parece interessado no fato que<br />
essas pertençam a modelos urbanos de nenhuma forma<br />
homologáveis. Qual outro modelo, qual referência urbana,<br />
indaga De Seta, poderia nutrir o arquiteto-humanista<br />
senão as cidades que eram parte de sua experiência e<br />
daquela de todos os seus contemporâneos? Assim, Siena,<br />
Perugia, Volterra, Alatri, Bolonha, Gênova, Pádua,<br />
Piacenza e Veneza transcorrem as páginas do trattato<br />
sem demonstrações de incômodo ou desapontamento; e<br />
as críticas, quando aparecem, dizem respeito a problemas<br />
técnicos que dificultam o funcionamento, às vezes<br />
precário, dessas realidades urbanas. Para De Seta, isto<br />
demonstra que <strong>Alberti</strong> conhecia muito bem as cidades<br />
italianas, e as considerava em sua continuidade histórica,<br />
do mundo antigo ao medieval, que era o retrato das<br />
cidades contemporâneas a ele (De Seta, 1996, p. 21).<br />
Enfim, é com <strong>Alberti</strong> que se colocam, pela<br />
primeira vez de forma racional e orgânica, as questões<br />
relativas à cidade. O problema da cidade não era<br />
igualmente fundamental para <strong>Vitrúvio</strong>, posto que para<br />
ele a cidade por excelência era Roma, centro do poder<br />
imperial. As outras cidades do Império, apesar da<br />
importância secundária, poderiam e deveriam adornar-se<br />
de monumentos esplêndidos, mas unicamente enquanto<br />
manifestação do valor ideal do Estado romano (Argan,<br />
1984, p. 113). Essa divergência de princípios sobre conceitos<br />
fundamentais entre <strong>Alberti</strong> e <strong>Vitrúvio</strong> manifestase,<br />
antes de mais nada, no título de suas obras:<br />
43
44<br />
Andrea Buchidid Loewen<br />
a res aedificatoria albertiana é algo de muito mais<br />
abrangente do que a architectura vitruviana. Para<br />
<strong>Vitrúvio</strong> a arquitetura enquadra-se no âmbito mais vasto<br />
das técnicas do construir, é propriamente a arte da<br />
construção, o construir com arte, o momento estético de<br />
uma edilícia civil e militar que, havendo já sua tradição<br />
técnica, não cria problema. Para <strong>Alberti</strong>, a arquitetura<br />
enquadra-se no âmbito mais vasto da cidade, é<br />
interpretação e comunicação em formas visíveis de seu<br />
significado. (p. 112)<br />
Por isso <strong>Alberti</strong> não se preocupa tanto com a<br />
“existência” da forma perfeita quanto com o<br />
“parâmetro de avaliação” da cidade, o que se afirma no<br />
capítulo II do Livro IV, quando o autor sugere<br />
que valeria a pena portanto seguir o exemplo de Platão,<br />
que uma vez questionado sobre aonde poderia ser<br />
encontrada aquela magnífica cidade que ele havia<br />
sonhado, respondeu, “isto não nos diz respeito; nós<br />
estamos mais interessados em qual tipo de cidade deveria<br />
ser considerada a melhor. Sobre todas as outras você deve<br />
preferir aquela cidade que mais se aproxime a este ideal”.<br />
(<strong>Alberti</strong>, 1988, IV, 2, p. 96)<br />
Ao contrário dos utopistas, <strong>Alberti</strong> não estabelece<br />
para a cidade uma estrutura geométrica rígida.<br />
Assim, as muralhas podem ser circulares, quadriláteras,<br />
ou assumir qualquer outra forma; as vias podem correr<br />
em linha reta em uma grande cidade ou sinuosamente em<br />
uma cidade pequena; as pontes podem ser construídas<br />
em madeira ou pedra. Do mesmo modo, as suas partes<br />
e a sua forma não respondem a um modelo, mas a um<br />
ideal. A cidade albertiana é feita para adequar dentro das<br />
muralhas e dos edifícios uma estrutura política precisa. O<br />
arquiteto torna-se assim sinônimo de regulador e<br />
coordenador das atividades citadinas. <strong>Alberti</strong> apresenta a<br />
arquitetura como arte das artes, unificadora e rainha de<br />
todas as outras (Borsi, 1973, p. 14). A sua atenção<br />
concentra-se sobre a gênese e sobre a razão da cidade e<br />
da república em um constante confronto com a Fortuna,<br />
e o enaltecimento da virtú e dos êxitos racionais. 3 Dessa<br />
virtú, a cidade, a nobre e justa cidade, era o correlativo<br />
visual, como cada edifício nela iria, retoricamente,<br />
mostrar. Eram sobre estes conceitos que se fundava a<br />
cidade do humanista, de Leon Battista <strong>Alberti</strong>.<br />
3 “seremos portanto sempre desta opinião, na qual creio sois ainda vós,<br />
os quais todos sois prudentes e sábios, que nas coisas civis e no viver<br />
dos homens certamente daremos mais valor à razão que à fortuna, mais<br />
à prudência que a algum acaso”. (<strong>Alberti</strong>, 1960)<br />
Excursus: sobre as referências a <strong>Vitrúvio</strong> implícitas<br />
no texto albertiano<br />
Apesar das diferenças assinaladas entre as duas<br />
obras, encontram-se no texto albertiano algumas<br />
referências e relações implícitas ao De Architectura Libri<br />
Decem. As citações que <strong>Alberti</strong> faz do autor antigo,<br />
dezesseis vezes ao longo de todo o tratado, baseiam-se<br />
principalmente nas questões que tratam dos materiais e<br />
das técnicas de edificação. Contudo, existem, na obra<br />
albertiana, lições que praticamente repetem as orientações<br />
oferecidas por <strong>Vitrúvio</strong>, ainda que <strong>Alberti</strong> permaneça<br />
no mais absoluto silêncio com relação a isso. Trataremos<br />
de identificar tais referências à obra vitruviana que<br />
aparecem ao longo do Livro IV do De Re Aedificatoria,<br />
dedicado às obras de caráter universal e no qual <strong>Alberti</strong><br />
aborda pela primeira vez a questão da cidade.<br />
A única citação nominal a <strong>Vitrúvio</strong> no Livro IV<br />
do De Re Aedificatoria aparece no capítulo IV e se refere<br />
à técnica construtiva das muralhas. Aqui <strong>Alberti</strong>, após<br />
ter citado exemplos dos antigos com relação ao<br />
procedimento e materiais usados na construção das<br />
muralhas para a fortificação das cidades, afirma:<br />
em outros respeitos eu estou muito bem satisfeito com<br />
<strong>Vitrúvio</strong>, que diz que a muralha deve ser construída<br />
assim: Dentro do corpo da muralha nós devemos colocar<br />
vários vigamentos de madeira de oliva queimada, com a<br />
intenção de que os dois lados da muralha estando unidos<br />
por estes reforços de madeira, possa tornar a obra mais<br />
durável. (<strong>Alberti</strong>, 1988, IV, cap. 4, p. 73)<br />
Neste mesmo capítulo, ainda no que diz<br />
respeito a fortificações, <strong>Alberti</strong> cita exemplos de<br />
muralhas na cidade de Roma, exaltando suas qualidades<br />
de defensibilidade e descrevendo a funcionalidade de<br />
suas torres, que se projetam para fora da muralha e têm<br />
forma circular. Em seguida aconselha:<br />
as costas das torres, que olham para a cidade, não devem<br />
possuir parede, mas devem ser deixadas bem abertas e<br />
nuas; que se o inimigo chegar a possuí-las, eles não<br />
possam ficar seguros quando das investidas dos<br />
habitantes; e, seguindo os antigos, acrescenta: não<br />
deve haver salas com coberturas abobadadas nas torres,<br />
mas somente pisos de madeira, que sob qualquer<br />
emergência possam ser facilmente removidos ou queimados;<br />
e estes pisos não devem estar presos com garras, que se o<br />
inimigo tomar a melhor, eles possam ser retirados sem<br />
dificuldade. (<strong>Alberti</strong>, 1988, IV, cap. 4, p. 74)<br />
Tais referências a <strong>Vitrúvio</strong> reportam-se ao<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002
Livro I, dedicado ao arranjo das obras de uso geral para<br />
os locais públicos da cidade, em que lemos:<br />
oposto ao lado interno de cada torre a muralha deve ser<br />
interrompida por um espaço da largura da torre, e possuir<br />
apenas um piso de madeira através, guiando ao interior<br />
da torre mas não firmemente agarrado. Isto é para ser<br />
cortado fora pelos defensores em caso do inimigo chegar a<br />
possuir qualquer porção da muralha. (Vitruvius, 1960,<br />
I, 5, p. 22)<br />
A edição de <strong>Vitrúvio</strong> de 1511, feita por Fra<br />
Giocondo em Veneza, traz uma imagem da construção<br />
de muralhas urbanas que ilustra perfeitamente a<br />
explanação dos dois autores a respeito dessa passagem.<br />
A primeira das referências implícitas encontrase<br />
no capítulo II desse livro, e diz respeito à questão da<br />
escolha do território para a cidade, que, segundo o autor<br />
florentino,<br />
deve ser saudável, amplo, agradável, variado, frutífero,<br />
seguro, e abundante com profusão de frutas, e grande<br />
quantidade de água. Não devem faltar rios, lagos, e uma<br />
passagem aberta para o mar para o trazer conveniente de<br />
tais coisas que estejam em falta, e o transporte de tais que<br />
possam estar sobrando. (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, cap. II, p. 68)<br />
Com anterioridade, no capítulo V do Livro I,<br />
<strong>Vitrúvio</strong> aconselhava que<br />
após garantir sobre estes princípios a salubridade da<br />
futura cidade, e selecionar uma vizinhança que possa<br />
suprir profusão de matérias alimentícias para manter a<br />
comunidade, com boas vias ou ainda rios convenientes e<br />
portos marítimos provendo fáceis meios de transporte para<br />
a cidade, a próxima coisa a fazer é colocar as fundações<br />
para as torres e muralhas. (Vitruvius, 1960, I, cap. 5,<br />
p. 21)<br />
Quando <strong>Alberti</strong>, no capítulo III, trata de<br />
questões relativas às muralhas, afirma que<br />
os arquitetos antigos ao encerrar suas cidades com<br />
muralhas, condenavam todos os ângulos formando<br />
saliências a partir do nú da muralha, pensando que eles<br />
ajudam mais o inimigo em seu assalto que os habitantes<br />
em sua defesa. (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, cap. 3, p. 70)<br />
A correspondência vitruviana é notória: no<br />
capítulo V do Livro I o arquiteto romano sugere que<br />
cidades devem ser arranjadas não como um quadrado<br />
exato nem com ângulos salientes, mas em forma circular,<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002<br />
<strong>Alberti</strong> e <strong>Vitrúvio</strong><br />
para oferecer uma visão do inimigo a partir de muitos<br />
pontos. Defesa é difícil onde existem ângulos salientes,<br />
porque os ângulos protegem o inimigo ao invés dos<br />
habitantes. (Vitruvius, 1960, I, cap. 5, p. 22)<br />
No que diz respeito às muralhas, lê-se no De Re<br />
Aedificatoria:<br />
mas qualquer que seja a forma escolhida para as<br />
muralhas, Vegetius as concebe suficientes se forem assim<br />
largas, de forma que dois soldados armados colocados lá<br />
para defesa, possam facilmente passar sem ficar um no<br />
caminho do outro. (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, cap. 3, p. 72)<br />
Apesar de o autor florentino atribuir esta<br />
referência a Vegetius, na obra de <strong>Vitrúvio</strong> encontra-se<br />
igual recomendação: “a espessura da muralha deve, em<br />
minha opinião, ser tal que homens armados se<br />
encontrando sobre ela possam passar um pelo outro<br />
sem interferência” (Vitruvius, p. 22).<br />
Outro ponto de correspondência entre os<br />
autores diz respeito a um dos fatores determinantes do<br />
arranjo das cidades, a saber, as ruas. Para as cidades<br />
pequenas ou fortificações, <strong>Alberti</strong> afirma que<br />
será melhor, e mais seguro, que as ruas não corram retas<br />
em direção aos portões; mas que elas se curvem algumas<br />
vezes à direita, algumas vezes à esquerda, próxima à<br />
muralha, e especialmente sob as torres; e dentro do coração<br />
da cidade, será mais belo que elas não sejam retas, mas<br />
que se curvem de várias maneiras, para frente e para trás,<br />
como o curso de um rio. (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, 5, p. 75)<br />
<strong>Vitrúvio</strong> argumenta fundamentalmente quanto<br />
à questão da segurança e aconselha:<br />
as ruas devem ser concebidas de modo a se aproximar dos<br />
portões não em linha reta, mas a partir da direita para a<br />
esquerda; pois como resultado disto, o lado da mão direita<br />
dos assaltantes, desprotegido por seus escudos, ficará junto<br />
à muralha. (Vitruvius, 1960, I, 5, p. 22)<br />
Finalmente, uma referência implícita é<br />
encontrada no final do Livro IV do De Re Aedificatoria,<br />
quando <strong>Alberti</strong> trata da questão da construção das<br />
estruturas apropriadas para os portos.<br />
Um bom porto deve possuir locais para se caminhar, e um<br />
pórtico e templo para a recepção de pessoas que acabaram<br />
de aportar; não devem faltar pilares, barras e anéis para<br />
se amarrar os navios; e também deve haver um bom<br />
número de armazéns ou coberturas para a estocagem dos<br />
bens. Nós devemos também erguer na boca torres altas e<br />
45
46<br />
Andrea Buchidid Loewen<br />
fortes, de cujas lanternas podemos espionar qual embarcação<br />
se aproxima, e por fogos dar instruções aos marinheiros, e<br />
que por suas fortificações possa defender as embarcações de<br />
nossos amigos, e esticar correntes através do porto para<br />
manter o inimigo afastado. (<strong>Alberti</strong>, 1960, IV, 8, p. 81)<br />
<strong>Vitrúvio</strong>, no Livro V, não oferece uma descrição<br />
tão abrangente das estruturas a serem oferecidas<br />
pelo porto; contudo coloca que<br />
ao redor deles [portos], é claro, colunatas e estaleiros<br />
devem ser construídos, ou passagens das colunatas para os<br />
distritos de negócios, e torres devem ser posicionadas em<br />
ambos os lados, a partir das quais correntes possam ser<br />
esticadas através por máquinas. (Vitruvius, 1960, V,<br />
12, p. 162)<br />
Estas breves comparações têm o intuito de<br />
mostrar a relevância do De Architectura na conformação<br />
e desenvolvimento do De Re Aedificatoria. Apesar das<br />
sérias críticas de <strong>Alberti</strong> com relação a <strong>Vitrúvio</strong>, a obra<br />
desse autor romano foi fonte fundamental da<br />
Antigüidade que tanto fascinava <strong>Alberti</strong>. E como o ideal<br />
do Renascimento não é apenas mera restauração dos<br />
ideais antigos, mas continuação, “superação”, da<br />
herança recebida, também o De Re Aedificatoria aspira à<br />
superioridade com relação ao De Architectura.<br />
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moderna e contemporanea. Milano: Rizzoli,1996.<br />
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Andrea Buchidid Loewen é mestre em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC Campinas;<br />
professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da <strong>Universidade</strong> <strong>São</strong> <strong>Francisco</strong> – câmpus Itatiba.<br />
Projeções, v. 19/20, p. 37-46, Jan./Dez. 2001/2002