Arcadismo - marcelo::frizon
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ARCADISMO
ORIGENS<br />
Se no século XVII, durante o período do Barroco, são construídas<br />
igrejas e palácios solenes que causam um misto de respeito e<br />
admiração por aquilo que significam - o Poder de Deus e o Poder do<br />
Estado - no século XVIII são construídas casas graciosas e belos<br />
jardins, anunciando um novo sentido de vida. Ao mármore, ao bronze,<br />
ao ouro, preferem-se materiais mais simples. Às cores carregadas das<br />
igrejas e dos castelos, preferem-se o pastel, o verde, o rosa. Ao<br />
pomposo, se prefere o íntimo e o frívolo.<br />
As manifestações artísticas do século XVII (<strong>Arcadismo</strong> ou<br />
Neoclassicismo e Rococó*) refletem a ideologia da classe aristocrática<br />
em decadência e da alta burguesia, insatisfeitas com o absolutismo<br />
real, com a pesada solenidade do Barroco, com as formas sociais de<br />
convivência rígidas, artificiais e complicadas.<br />
Rococó: estilo artístico de fins do século XVIII marcado pela<br />
delicadeza e pela ornamentação excessiva
A relação com o Iluminismo<br />
As mudanças estéticas terão por base uma revolução filosófica: o<br />
Iluminismo. Em seu primeiro momento, os iluministas conciliarão os<br />
interesses da burguesia com certas parcelas da nobreza, através da<br />
celebração do despotismo esclarecido - valorizando reis e príncipes que se<br />
cercavam de sábios para gerir os negócios público. Mas o aspecto<br />
revolucionário do pensamento de Voltaire, Montesquieu, Diderot e outros é<br />
a afirmação de que todas as coisas podem ser compreendidas, resolvidas e<br />
decididas pelo poder da razão.<br />
Os criadores do Iluminismo (ou Ilustração) já não aceitam o "direito<br />
divino dos reis", tampouco a fé cega nos mandatários da Igreja. Qualquer<br />
poder ou privilégio precisa ser submetido a uma análise racional. E agora é<br />
a razão (e não mais a crença religiosa ) que aparece como sinônimo de<br />
verdade. As luzes do esclarecimento ajudam os homens a entender o<br />
mundo e a combater preconceitos. As novas idéias assentam um golpe<br />
definitivo na visão de mundo barroca, baseada mais no sensitivo do que no<br />
racional, mais no religioso do que no civil. Por oposição ao século anterior,<br />
procura-se, no século XVIII, simplificar a arte. E esta simplificação se dará<br />
na pintura, na música, na literatura e na arquitetura pelo domínio da razão,<br />
pela imitação dos clássicos, pela aproximação com a natureza e pela<br />
valorização das atividades galantes dos freqüentadores dos salões da<br />
nobreza européia.
CARACTERÍSTICAS<br />
1) BUSCA DA SIMPLICIDADE<br />
A fórmula básica do <strong>Arcadismo</strong> pode ser representada assim:<br />
Verdade = Razão = Simplicidade<br />
Mas se a simplicidade é a essência do movimento - ao avesso da<br />
confusão e do retorcimento barroco - como pode o artista ter certeza de<br />
que sua obra é integralmente simples? A saída está na imitação (que<br />
significa seguir modelos e não copiar), tanto da natureza quanto dos<br />
velhos clássicos.<br />
2) IMITAÇÃO DA NATUREZA<br />
Ao contrário do Barroco, que é urbano, há no <strong>Arcadismo</strong> um retorno à<br />
ordem natural. Como na literatura clássica, a natureza adquire um<br />
sentido de simplicidade, harmonia e verdade. Cultua-se o "homem<br />
natural", isto é, o homem que "imita" a natureza em sua ordenação, em<br />
sua serenidade, em seu equilíbrio, e condena-se toda ousadia,<br />
extravagância, exacerbação das emoções.<br />
O bucolismo (integração serena entre o indivíduo e a paisagem física)<br />
torna-se um imperativo social, e os neoclássicos franceses retornam às<br />
fontes da antiguidade que definiam a poesia como cópia da natureza.
A literatura pastoril<br />
Esta aproximação com o natural se dá por intermédio de uma<br />
literatura de caráter pastoril: o <strong>Arcadismo</strong> é uma festa campestre,<br />
representando a descuidada existência de pastores e pastoras na paz do<br />
campo, entre ovelhinhas. Porém, essa literatura pastoril não surge da<br />
vivência direta da natureza, ao contrário do que aconteceria com os<br />
artistas românticos, no século seguinte. Pode-se dizer que uma<br />
distância infinita separa os pastores reais dos "pastores" árcades. E que<br />
sua poesia campestre é meramente uma convenção, ou seja, uma<br />
espécie de modismo de época a que todo escritor deve se submeter.<br />
Sendo assim, estes campos, estes pastores e estes rebanhos são<br />
artificiais como aqueles cenários de papelão pintado que a gente vê no<br />
teatrinho infantil. Não devemos, pois, cobrar dos árcades realismo do<br />
cenário e sim atentar para os sentimentos e idéias que eles, porventura,<br />
expressem.<br />
No exemplo abaixo, de Tomás Antônio Gonzaga, percebemos que o<br />
mundo pastoril é apenas um quadro convencional para o poeta refletir<br />
sobre o sentido da natureza:
Enquanto pasta alegre o manso gado,<br />
minha bela Marília, nos sentemos<br />
à sombra deste cedro levantado.<br />
Um pouco meditemos<br />
na regular beleza,<br />
Que em tudo quanto vive nos descobre<br />
A sábia natureza.<br />
Perdendo suas ligações com a realidade, a obra literária se<br />
converterá muitas vezes, num inconseqüente jogo de espíritos<br />
ociosos, os quais encontrarão na estilizada natureza pastoril algo<br />
como um paraíso perdido.
3) IMITAÇÃO DOS CLÁSSICOS<br />
Processa-se um retorno ao universo de referências clássicas, que é<br />
proporcional à reação antibarroca do movimento. O escritor árcade<br />
está preocupado em ser simples, racional, inteligível. E para atingir<br />
esses requisitos exige-se a imitação dos autores consagrados da<br />
Antiguidade, preferencialmente os pastoris. Diz um árcade português:<br />
O poeta que não seguir os antigos, perderá de todo o caminho, e<br />
não poderá jamais alcançar aquela força, energia e majestade com<br />
quem nos retratam o formoso e angélico semblante da natureza.<br />
Logo, só a imitação dos clássicos asseguraria a vitalidade, o<br />
racionalismo e a simplicidade da manifestação literária. Deduz-se daí<br />
que a natureza - principal elemento de sua estética - não é a dos<br />
poetas do período, e sim a natureza das Éclogas de Virgílio e dos<br />
Idílios de Teócrito, os dois autores mais imitados pelos árcades.
Observe-se, também, a contínua utilização da mitologia clássica.<br />
Esta mitologia, que era um acervo cultural concreto de Grécia, Roma e<br />
mesmo do Renascimento, agora se converte apenas num recurso<br />
poético de valor duvidoso. Mais outra convenção, tornada obrigatória<br />
pelo prestígio dos modelos antigos. A todo momento nos deparamos<br />
com deuses e deusas que não têm significado histórico, e tampouco<br />
artístico porque suas imagens já foram desgastadas pelo uso<br />
excessivo. Eventualmente sobra algum encanto na fantasia<br />
mitológica, como nestes versos de Marília de Dirceu:<br />
Pintam, Marília, os poetas<br />
a um menino vendado,<br />
com uma aljava de setas,<br />
arco empunhado na mão;<br />
ligeiras asas nos ombros,<br />
o terno corpo despido,<br />
e de Amor ou de Cupido<br />
são os nomes que lhe dão.
4) AUSÊNCIA DE SUBJETIVIDADE<br />
A constante e obrigatória utilização de imagens clássicas<br />
tradicionais acaba sedimentando uma poesia despersonalizada. O<br />
escritor não anda com o próprio eu. Adota uma forma pastoril, através<br />
de pseudônimos: Cláudio Manuel da Costa é Glauceste<br />
Satúrnio, Tomás Antônio Gonzaga é Dirceu, Silva Alvarenga<br />
é Alcino Palmireno, Basílio da Gama é Termindo Sipílio.<br />
A renúncia à manifestação subjetiva faz parte do "decoro e da<br />
dignidade" do homem virtuoso. O poeta deve expressar sentimentos<br />
comuns, genéricos, médios, reduzindo suas criações à fórmulas<br />
convencionais. O conteúdo passional, a impulsividade e o frenesi<br />
íntimo, que costumamos ver no amor, são dissolvidos em pura<br />
galanteria, isto é, a paixão normalmente transforma-se num jogo de<br />
galanteios.<br />
Quando o poeta declara seu amor à pastora, o faz de uma maneira<br />
elegante e discreta, exatamente porque as regras desse jogo exigem o<br />
respeito à etiqueta afetiva. Assim, o seu "amor" pode ser apenas um<br />
fingimento, um artifício de imagens repetitivas e banalizadas.
Síntese desta época, o romance As ligações perigosas, do<br />
francês Choderlos de Laclos, disseca de forma implacável a<br />
galanteria. Conquistador profissional, o Visconde de Valmont<br />
encara o amor apenas como um processo de sedução:<br />
Possuirei aquela mulher; arrebatá-la-ei do marido que a<br />
profana; ousarei tomá-la ao próprio Deus que ela adora. Que<br />
delícia ser alternadamente o causador e o vencedor de seus<br />
remorsos! Longe de mim a idéia de destruir os preconceitos que<br />
a assaltam. Eles aumentarão minha felicidade e minha glória.<br />
Que ela acredite na virtude, mas para sacrificá-la a meus pés;<br />
que suas faltas a amedrontem sem poder detê-la; e agitada por<br />
mil terrores, não possa esquecê-los e dominá-los senão em<br />
meus braços. Então consentirei que ela me diga: 'Adoro-te'.
O ARCADISMO NO BRASIL:<br />
CONTEXTO HISTÓRICO<br />
A descoberta do ouro na região de Minas Gerais, em fins do século<br />
XVII, significa o início de grandes mudanças na sociedade colonial<br />
brasileira. A corrida em busca do metal precioso desloca para serras, até<br />
então desertas, uma multidão de aventureiros paulistas, baianos e, em<br />
seguida, portugueses. A abundância do ouro gera extraordinária riqueza<br />
e os primeiros acampamentos de mineiros transformam-se rapidamente<br />
em cidades.<br />
Um esquema de abastecimento para as minas é organizado por<br />
tropeiros paulistas. Sorocaba, no interior de São Paulo, torna-se o maior<br />
centro de transporte das tropas de gado vacum e muar para Minas<br />
Gerais. Ali realiza-se uma grande feira, entre maio e agosto, onde se<br />
encontram vendedores e compradores de animais e mantimentos. São<br />
paulistas ainda os que avançam cada vez mais para o Sul. Primeiro,<br />
desenvolvem roças e fazendas de criação bovina na região de Curitiba.<br />
Depois, irrompem nos campos da serra e no pampa rio-grandense para<br />
capturar o gado que vivia em liberdade (milhões e milhões de cabeças).
Este sistema de abastecimento das cidades mineiras - já que<br />
nada se produzia nelas - integra e unifica as várias regiões do<br />
Brasil, criando a noção de que poderíamos constituir um país. Por<br />
outro lado, a leva de habitantes do reino, que aqui chega, impõe a<br />
língua portuguesa como a língua básica, desalojando a "língua<br />
geral", baseada no tupi, e que imperava nos sertões e entre os<br />
paulistas. Desta forma, adquire-se também uma unidade<br />
linguística.<br />
O ouro parece ser suficiente para todos. Enriquece os mineiros,<br />
os comerciantes, os tropeiros e, acima de tudo, o reino português.<br />
Centenas de toneladas do precioso metal são levadas para o luxo, o<br />
desperdício e a ostentação da Corte. Parte considerável deste ouro<br />
vai parar na Inglaterra, financiando a Revolução Industrial, na<br />
medida em que o domínio comercial dos ingleses sobre a economia<br />
portuguesa era absoluto. Contudo, a partir da segunda metade do<br />
século XVIII, a produção aurífera começa a cair e as minas dão<br />
sinais de esgotamento.
O Período de Pombal<br />
Neste momento histórico, D. José assume o reino e nomeia como<br />
primeiro-ministro o Marquês de Pombal, que permanecerá no poder de<br />
1750 a 1777. Típico representante do despotismo esclarecido, Pombal<br />
inicia uma série de reformas para salvar Portugal da decadência em que<br />
mergulhara desde meados do século XVI. O violento terremoto que<br />
destrói Lisboa, em 1755, amplia as necessidades financeiras do tesouro<br />
luso e os impostos são brutalmente aumentados.<br />
O reformismo de Pombal enfrenta resistências, e ele decide expulsar os<br />
jesuítas dos territórios portugueses, no ano de 1758. Também a parcela da<br />
nobreza que se opunha a seus projetos é aprisionada e silenciada. Um<br />
grande esforço industrial sacode a pasmaceira da Corte. Monopólios<br />
comerciais privados e empreendimentos fabris comandam a tentativa de<br />
mudança do modelo econômico. O ouro do Brasil funciona como lastro<br />
destas reformas.<br />
A morte de D. José, em 1777, assinala também a queda de Pombal. A<br />
sucessora do trono, D. Maria, procura tapar os rombos (cada vez maiores)<br />
do Erário Real, aumentando ainda mais a pressão econômica sobre a<br />
Colônia. Além dos impostos extorsivos, ela proíbe toda e qualquer<br />
atividade industrial em nosso país. Criam-se assim as condições para o<br />
surgimento de um sentimento nativista.
A Inconfidência Mineira<br />
O crescente endividamento dos proprietários de minas com a<br />
Coroa aumenta o desconforto e a repulsa pelo fisco insaciável. Na<br />
consciência de muitos ecoa o sucesso da Independência Americana,<br />
de 1776. E também a força subversiva das idéias iluministas -<br />
expressas em livros que circulam clandestinamente por Vila Rica e<br />
outras cidades. Tudo isso termina por estimular membros das elites<br />
e alguns representantes populares ao levante de 1789.<br />
Apenas a traição de Joaquim Silvério impedirá que a<br />
Inconfidência Mineira chegue a bom termo. Porém, o martírio de<br />
Tiradentes e a participação de poetas árcades (ainda que tênue e<br />
por vezes equivocada), no esforço revolucionário, transformam a<br />
sedição no episódio de maior grandeza do passado colonial<br />
brasileiro.
CONTEXTO CULTURAL<br />
A riqueza gerada pelo ouro amplia espetacularmente a vida urbana<br />
em Minas Gerais. Não são apenas aventureiros à cata de pedras<br />
preciosas. As novas cidades estimulam serviços e ofícios: uma multidão<br />
de carpinteiros, pedreiros, arquitetos, comerciantes, ourives, tecelões,<br />
advogados e prostitutas encontram trabalho nestas ruas quase sempre<br />
tortuosas e íngremes.<br />
Logo Vila Rica alcança trinta mil habitantes e Portugal apresta-se a<br />
montar uma poderosa rede burocrática, capaz de controlar toda a vida<br />
social e impedir o contrabando do ouro e a sonegação dos impostos. A<br />
necessidade de organização administrativa e a obsessão portuguesa<br />
pela aparelhagem estatal levam à nomeação de milhares de<br />
funcionários civis e militares.<br />
Este imenso setor público e mais os mineradores e comerciantes<br />
enriquecidos, os tropeiros endinheirados, os profissionais liberais e os<br />
trabalhadores livres rompem o dualismo senhor-escravo que até então<br />
caracterizara a nossa estrutura social. Novas classes aparecem e dão<br />
complexidade ao mundo urbano que se forma.
A Função Social da Literatura<br />
A existência citadina (medíocre até o século anterior) aproxima as<br />
pessoas através da vizinhança. traduz-se em relações sociais, em<br />
concorrência, em novos estímulos. A literatura, a exemplo da música, vai<br />
funcionar, nesta circunstância, como elemento de ligação social, de<br />
conversação e de prestígio.<br />
Nos saraus - muito comuns na época - pessoas ilustradas vão ouvir<br />
recitais de poemas e pequenas peças musicais, emitirão opiniões,<br />
trocarão impressões e acabarão constituindo o núcleo de um público<br />
regular e permanente, interessado em arte, sobretudo, na arte literária.<br />
Surgem Academias e Arcádias, associações de intelectuais -<br />
geralmente poetas - com objetivos e princípios literários comuns. Pela<br />
primeira vez, no país, temos uma noção de escola artística, entendida<br />
como a articulação de um grupo numeroso de letrados em torno de<br />
valores estéticos e ideológicos.<br />
Não se trata mais de fugir da indiferença do meio e preservar uma<br />
mesquinha vida cultural. A sociedade urbana começa a estimular e<br />
aplaudir os seus artistas: músicos, pintores, escultores, arquitetos e<br />
poetas. É claro que estes últimos, por pertencerem ao grupo dominante,<br />
recebem as maiores honrarias e distinções.
Devemos assinalar também a existência de ótimas bibliotecas<br />
particulares na época. Possuir livros (mesmo que os "subversivos") torna-se<br />
indicação de nobreza espiritual e de interesse pelo destino da humanidade.<br />
No interessante estudo O diabo na livraria do cônego, Eduardo Frieiro<br />
registra que os principais inconfidentes mantinham boa quantidade de<br />
volumes em suas casas, embora o dono da maior biblioteca privada fosse o<br />
padre Luís Vieira da Silva.<br />
Influenciado por idéias iluministas, este bom cônego guardava<br />
oitocentos livros em sua residência, entre dicionários, textos sobre oratória,<br />
teoria estética, vida religiosa, etc., e, como não podia deixar de ser, algumas<br />
"obras perniciosas", produzidas por adeptos do Século das Luzes.<br />
Sublinhe-se, por fim, que desde o início da colonização até meados do<br />
século XVIII, criadores e receptores de obras literárias tinham surgido e<br />
desaparecido em ondas dispersas e descontínuas. Explosões de talentos<br />
isolados, como Vieira ou Gregório de Matos, aglutinavam em torno de si<br />
um número expressivo de ouvintes, possivelmente alguns imitadores, mas<br />
não chegavam a estruturar um verdadeiro movimento artístico, com<br />
permanência, ressonância, durabilidade. Eram manifestações soltas,<br />
fragmentárias, condenadas ao esquecimento das gerações posteriores. Só a<br />
partir do <strong>Arcadismo</strong> se consolidaria o que Antonio Candido chama de<br />
"sistema literário".
O Sistema Literário<br />
Entende-se por sistema literário um conjunto de fatores que<br />
garante à arte da escrita certa regularidade, certa permanência e certa<br />
capacidade de ultrapassar o desaparecimento dos artistas, gerando<br />
algo como uma tradição cultural. Os fatores básicos de um sistema<br />
literário são:<br />
a) autores;<br />
b) obras: produzidas dentro de um mesmo código lingüístico e<br />
perspectivas mais ou menos comuns;<br />
c) público leitor permanente.<br />
Este último constitui o componente essencial do referido sistema.<br />
Porque é óbvio que, sem leitores permanentes, nenhuma literatura<br />
pode se desenvolver. Através deles se estabelece uma rede de<br />
transmissão de idéias, gostos, debates, estímulos, rejeições,<br />
experiências e valores estéticos. São eles que criam uma linha de<br />
continuidade entre o passado, o presente e o futuro da vida literária<br />
de um país.
A Importância do <strong>Arcadismo</strong><br />
Durante a vigência do <strong>Arcadismo</strong>, estabeleceu-se este sistema -<br />
embora tímido - e que não mais seria destruído. A partir de então, de<br />
forma contínua, autores produziriam obras que seriam consumidas por<br />
gerações de leitores. Ou seja, quando o crescimento urbano estrutura o<br />
sistema literário, cria também as condições mínimas para o surgimento<br />
de uma literatura autônoma.<br />
Claro que o <strong>Arcadismo</strong> não é o grito de autonomia da literatura<br />
brasileira, pois a dependência econômica e política gera também a<br />
dependência cultural. Os autores árcades seguem completamente os<br />
modelos poéticos em voga nos países imperiais. Neste aspecto, pouco<br />
contribuíram para a efetivação de uma arte diferenciada das européias.<br />
Devemos entender, contudo, que a criação de uma literatura não é<br />
trabalho de apenas uma geração e sim de várias. E a construção de um<br />
incipiente sistema literário durante o <strong>Arcadismo</strong>, representa o primeiro<br />
e decisivo passo no processo de fundação da literatura brasileira.
OS AUTORES DO<br />
ARCADISMO<br />
A) POESIA LÍRICA<br />
1. CLÁUDIO MANUEL DA COSTA (1729 - 1789)<br />
VIDA: Nasceu em Mariana, filho de um rico minerador português.<br />
Estudou com os jesuítas no Rio de Janeiro e formou-se em Direito na<br />
cidade de Coimbra. Voltando para o Brasil, estabeleceu-se em Vila Rica,<br />
exercendo a advocacia. Ocupou altos cargos na máquina burocrática<br />
colonial. Quando foi preso por suposta participação na Inconfidência,<br />
pela qual manifestara vagas simpatias, era um dos homens mais ricos e<br />
poderosos da província. Deprimido e amedrontado, acabou suicidandose<br />
na prisão.<br />
Obras: Obras poéticas (1768), Vila Rica (1839)
Cláudio Manuel da Costa é um curioso caso de poeta de transição.<br />
Ele reconhece e admira os princípios estéticos do <strong>Arcadismo</strong>, aos<br />
quais pretende se filiar, mas não consegue vencer as fortes influências<br />
barrocas e camonianas que marcaram a sua juventude intelectual.<br />
Racionalmente um árcade, emotivamente um barroco, conforme ele<br />
mesmo confessa no prólogo de Obras poéticas:<br />
(...) Bastará para te satisfazer, o lembrar-te que a maior parte<br />
destas Obras foram compostas ou em Coimbra ou pouco depois (...)<br />
tempo em que Portugal apenas principiava a melhorar de gosto nas<br />
belas letras. É infelicidade confessar que vejo e aprovo o melhor,<br />
mas sigo o contrário na execução.<br />
O poeta admite a contradição que existe entre o ideal poético e a<br />
realidade de sua obra. Com efeito, se os poemas estão cheios de<br />
pastores - comprovando o projeto de literatura árcade - o seu gosto<br />
pela antítese e a preferência pelo soneto indicam a herança de uma<br />
tradição que remonta ao Camões lírico e à poesia portuguesa do<br />
século XVII.
Aliás, os seus temas são quase sempre barrocos. O desencanto com a<br />
vida, a brevidade dolorosa do amor, a rapidez com que todos os<br />
sentimentos passam são os motivos principais de sua expressão. Motivos<br />
barrocos. Contudo, para o homem barroco do século XVII, havia a<br />
perspectiva da divindade. Para o poeta de transição, existe apenas o<br />
sofrimento: Ouvi pois o meu fúnebre lamento / Se é que de compaixão sois<br />
animados.<br />
Do sofrimento dos amores perdidos e de sua ânsia em revivê-los, nasce a<br />
desolada angústia de alguém que, procurando o objeto de sua paixão, não o<br />
encontra:<br />
Soneto XIII<br />
Nise? Nise? onde estás? Aonde espera<br />
Achar te uma alma, que por ti suspira,<br />
Se quanto a vista se dilata, e gira,<br />
Tanto mais de encontrar te desespera!<br />
Ah se ao menos teu nome ouvir pudera<br />
Entre esta aura suave, que respira!<br />
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.<br />
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.<br />
Grutas, troncos, penhascos da<br />
[espessura,<br />
Se o meu bem, se a minha alma em vós<br />
[se esconde,<br />
Mostrai, mostrai me a sua formosura.<br />
Nem ao menos o eco me responde!<br />
Ah como é certa a minha desventura!<br />
Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?
A todo instante, o<br />
autor de Obras<br />
poéticas vale-se de<br />
antíteses - típico<br />
procedimento barroco<br />
- para registrar os<br />
seus conflitos<br />
pessoais. No soneto a<br />
seguir, temos um belo<br />
exemplo de contraste<br />
entre a dureza da<br />
pedra e a ternura do<br />
coração:<br />
*Penha: rocha<br />
Soneto XCVIII<br />
Destes penhascos fez a natureza<br />
O berço, em que nasci! oh quem cuidara,<br />
Que entre penhas tão duras se criara<br />
Uma alma terna, um peito sem dureza!<br />
Amor, que vence os tigre por empresa<br />
Tomou logo render-me; ele declara<br />
Contra o meu coração guerra tão rara,<br />
Que não me foi bastante a fortaleza.<br />
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,<br />
A que dava ocasião minha brandura,<br />
Nunca pude fugir ao cego engano:<br />
Vós, que ostentais a condição mais dura,<br />
Temei, penhas, temei; que Amor tirano,<br />
Onde há mais resistência, mais se apura.
A síntese admirável<br />
desta visão pungente das<br />
relações amorosas, é<br />
encontrada no soneto<br />
XXII: sentado sobre uma<br />
rocha, o pastor Fido chora<br />
a sua desventura de amor<br />
e, num belo jogo de<br />
inversões, as lágrimas que<br />
derrama fazem brotar um<br />
rio na pedra, enquanto<br />
ele, cristalizando<br />
(eternizando) a sua dor,<br />
transforma-se em estátua:<br />
*Álamo: árvore de grande porte<br />
*Zéfiro: vento suave<br />
*Penedo: rocha do penhasco<br />
Neste álamo sombrio, aonde a escura<br />
Noite produz a imagem do segredo;<br />
Em que apenas distingue o próprio medo<br />
Do feio assombro a hórrida figura<br />
Aqui, onde não geme, nem murmura<br />
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,<br />
Sentado sobre o tosco de um penedo<br />
Chorava Fido a sua desventura.<br />
Às lágrimas, a penha enternecida<br />
Um rio fecundou, donde manava<br />
D'ânsia mortal a cópia derretida;<br />
A natureza em ambos se mudava;<br />
Abalava-se a penha comovida;<br />
Fido, estátua de dor, se congelava.
A Pedra como Símbolo<br />
O crítico Antonio Candido mostra que esta preferência por imagens<br />
e cenários onde predominam a pedra, a rocha e os penhascos, indica a<br />
maior das contradições de Cláudio Manuel da Costa. Educado em<br />
Portugal, lá encontra a sua pátria intelectual, lá dialoga com a cultura<br />
do Ocidente, lá forja suas concepções artísticas. No entanto, o seu<br />
inconsciente está preso a sua pátria afetiva, a pátria das primeiras<br />
emoções, da infância e da adolescência. Sua memória gira em torno<br />
deste mundo feito das rochas e das pedras de Minas Gerais. Por isso, a<br />
todo momento elas afloram em seus poemas europeizados, como<br />
símbolos das raízes brasileiras, que ele não quer (ou não consegue)<br />
eliminar.<br />
Além do gênero lírico, Cláudio Manuel da Costa tenta a epopéia num<br />
poemeto chamado Vila Rica, onde canta a fundação da cidade e<br />
procura mostrá-la já incorporada aos padrões civilizatórios europeus.<br />
Apesar da influência visível de O Uraguai, de Basílio da Gama, o<br />
resultado é de uma mediocridade irremediável.
A seguir, outros poemas de Claudio Manuel da Costa:<br />
Soneto IV<br />
Sou pastor; não te nego; os meus montados<br />
São esses, que aí vês; vivo contente<br />
Ao trazer entre a relva florescente<br />
A doce companhia dos meus gados;<br />
Ali me ouvem os troncos namorados,<br />
Em que se transformou a antiga gente;<br />
Qualquer deles o seu estrago sente;<br />
Como eu sinto também os meus cuidados.<br />
Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia<br />
Firmes vos contemplastes, e seguros<br />
Nos braços de uma bela companhia;<br />
Consolai-vos comigo, ó troncos duros;<br />
Que eu alegre algum tempo assim me via;<br />
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
Soneto VIII<br />
Este é o rio, a montanha é esta,<br />
Estes os troncos, estes os rochedos;<br />
São estes inda os mesmos arvoredos;<br />
Esta é a mesma rústica floresta.<br />
Tudo cheio de horror se manifesta,<br />
Rio, montanha, troncos, e penedos;<br />
Que de amor nos suavíssimos enredos<br />
Foi cena alegre, e urna é já funesta.<br />
Oh quão lembrado estou de haver subido<br />
Aquele monte, e as vezes, que baixando<br />
Deixei do pranto o vale umedecido!<br />
Tudo me está a memória retratando;<br />
Que da mesma saudade o infame ruído<br />
Vem as mortas espécies despertando.
Soneto XIV<br />
Quem deixa o trato pastoril, amado<br />
Pela ingrata, civil correspondência,<br />
Ou desconhece o rosto da violência,<br />
Ou do retiro a paz não tem provado.<br />
Que bem é ver nos campos transladado<br />
No gênio do pastor, o da inocência!<br />
E que mal é no trato, e na aparência<br />
Ver sempre o cortesão dissimulado!<br />
Ali respira amor sinceridade;<br />
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;<br />
Um só trata a mentira, outro a verdade.<br />
Ali não há fortuna, que soçobre;<br />
Aqui quanto se observa, é variedade:<br />
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
Soneto XXVIII<br />
Faz a imaginação de um bem amado,<br />
Que nele se transforme o peito amante;<br />
Daqui vem, que a minha alma delirante<br />
Se não distingue já do meu cuidado.<br />
Nesta doce loucura arrebatado<br />
Anarda cuido ver, bem que distante;<br />
Mas ao passo, que a busco neste instante<br />
Me vejo no meu mal desenganado.<br />
Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,<br />
E por força da idéia me converto<br />
Na bela causa de meu fogo ativo;<br />
Como nas tristes lágrimas, que verto,<br />
Ao querer contrastar seu gênio esquivo,<br />
Tão longe dela estou, e estou tão perto.
Soneto C<br />
Musas, canoras musas, este canto<br />
Vós me inspirastes, vós meu tenro alento<br />
Erguestes brandamente àquele assento<br />
Que tanto, ó musas, prezo, adoro tanto.<br />
Lágrimas tristes são, mágoas, e pranto,<br />
Tudo o que entoa o músico instrumento;<br />
Mas se o favor me dais, ao mundo atento<br />
Em assunto maior farei espanto.<br />
Se em campos não pisados algum dia<br />
Entra a ninfa, o pastor, a ovelha, o touro,<br />
Efeitos são da vossa melodia;<br />
Que muito, ó musas, pois, que em fausto agouro<br />
Cresçam do pátrio rio à margem fria<br />
A imarcescível hera, o verde louro!
2. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (1744-1810)<br />
Vida: Filho de um magistrado brasileiro, nasceu, no entanto, em<br />
Porto, Portugal. A família retornou ao Brasil quando o menino contava<br />
sete anos. Aqui estudou com os jesuítas, na cidade da Bahia. Com<br />
dezessete anos foi para Coimbra estudar Direito. Por algum tempo<br />
exerceu a profissão de advogado em terras portuguesas, mas em 1782<br />
foi nomeado Ouvidor de Vila Rica, capital de Minas Gerais. Ocupou<br />
altos cargos jurídicos e em 1787 tratou casamento com Maria Joaquina<br />
Dorotéia de Seixas, a futura Marília. Ele tinha mais de quarenta anos e<br />
ela era pouco mais do que uma adolescente. A detenção pelo<br />
envolvimento na Conjuração Mineira impediu o enlace. Ficou preso<br />
três anos numa prisão no Rio de Janeiro e depois foi condenado a dez<br />
anos de degredo em Moçambique. Lá se casou com a filha de um rico<br />
traficante de escravos e voltou a ocupar postos importantes na<br />
burocracia portuguesa. Morreu no continente africano em 1810.<br />
Obras: Marília de Dirceu (Parte I - 1792; Parte II - 1799;<br />
Parte III - 1812), Cartas Chilenas (1845)
Uma das obras líricas mais estimadas e lidas no país, Marília de<br />
Dirceu permite duas abordagens igualmente válidas. A primeira<br />
mostra-a como o texto árcade por excelência. A segunda aponta para<br />
sua dimensão pré-romântica.<br />
O pastoralismo, a galanteria, a clareza, a recusa em intensificar a<br />
subjetividade, o racionalismo neoclássico que transforma a vida num<br />
caminho fácil para as almas sossegadas, eis alguns dos elementos que<br />
configuram o <strong>Arcadismo</strong> nas liras de Tomás Antônio Gonzaga,<br />
especialmente as da primeira parte do livro, produzidas ainda em<br />
liberdade.<br />
As vinte e três liras iniciais de Marília de Dirceu são autobiográficas<br />
dentro dos limites que as regras árcades impõem à confissão pessoal,<br />
isto é, o EU não deve expor nada além do permitido pelas convenções<br />
da época. Assim um pastor (que é o poeta) celebra, em tom<br />
moderadamente apaixonado, as graças da pastora Marília, que<br />
conquistou o seu coração:
Tu, Marília, agora vendo<br />
Do Amor o lindo retrato<br />
Contigo estarás dizendo<br />
Que é este o retrato teu.<br />
Sim, Marília, a cópia é tua,<br />
Que Cupido é Deus suposto:<br />
Se há Cupido, é só teu rosto<br />
Que ele foi quem me venceu.
Percebe-se no poema o enquadramento dos impulsos afetivos<br />
dentro do amor galante. Estamos longe do passionalismo romântico.<br />
A expressão sentimental vale-se de alegorias mitológicas e<br />
concentra-se em fórmulas mais ou menos graciosas. Vamos<br />
encontrar um conjunto de frases feitas sobre os encantos da amada,<br />
sobre as qualidades do pastor Dirceu e sobre a felicidade do futuro<br />
relacionamento entre ambos. Conforme o gosto do período, há um<br />
esforço para cantar as qualidades da vida em família, do casamento,<br />
das módicas alegrias que sustentam um lar.<br />
O Desejo da Vida Comum ("Aurea Mediocritas")<br />
Na verdade, o pastor Dirceu é um pacato funcionário público que<br />
sonha com a tranqüilidade do matrimônio, alheio a qualquer<br />
sobressalto, certo de que a domesticidade gratificará Marília. Por<br />
isso, ele trata de ressaltar a estabilidade de sua situação econômica:
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,<br />
Que viva de guardar alheio gado;<br />
De tosco trato, de expressões grosseiro,<br />
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.<br />
Tenho próprio casal e nele assisto;<br />
Dá-me vinho, legume, frutas, azeite.<br />
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,<br />
E mais as finas lãs, de que me visto.<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!<br />
*Casal: pequena propriedade rústica
Há em Tomás Antônio, o gosto típico do século XVIII pela existência<br />
moderada e amena. Hoje, chamaríamos esta perspectiva de pequenoburguesa.<br />
Contudo, o ideal de equilíbrio, compostura e honradez, em seu<br />
tempo, é progressista. Enquadra-se no princípio da "aurea mediocritas",<br />
da "mediania de ouro", isto é, a aspiração a uma vida comum, uma vida<br />
de classe média. Por causa de tal mediania, Dirceu pode afirmar a sua<br />
amada - na lira XXVII - as virtudes civis em oposição aos desmedidos<br />
heróis guerreiros:<br />
O ser herói, Marília, não consiste<br />
Em queimar os Impérios: move a guerra,<br />
Espalha o sangue humano,<br />
E despovoa a terra<br />
Também o mau tirano.<br />
Consiste o ser herói em viver justo:<br />
E tanto pode ser herói o pobre,<br />
Como o maior Augusto.<br />
Ao imaginar o convívio<br />
entre ambos, ele esquece a<br />
condição pastoril e afirma<br />
orgulhosamente sua<br />
verdadeira profissão, ao<br />
mesmo tempo que garante<br />
à futura esposa o privilégio<br />
de não viver a realidade<br />
cotidiana brasileira do<br />
século XVIII.
Desvios Sensuais<br />
Estando ligado às concepções rígidas do <strong>Arcadismo</strong>, Tomás<br />
Antônio Gonzaga tende à generalização insossa dos sentimentos e ao<br />
amor comedido e discreto. Mas há vários momentos, em Marília de<br />
Dirceu, que indicam um desejo de confidência e onde aparecem<br />
atrevimentos eróticos surpreendentes. São momentos de emoção<br />
genuína: o poeta lembra que o tempo passa, que com os anos os<br />
corpos se entorpecem, e convoca Marília para o "carpe diem"<br />
renascentista:<br />
Ornemos nossas testas com as flores,<br />
E façamos de feno um brando leito;<br />
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,<br />
Gozemos do prazer de sãos Amores.<br />
Sobre as nossas cabeças,<br />
Sem que o possam deter, o tempo corre;<br />
E para nós o tempo, que se passa,<br />
Também, Marília, morre.
O Pré-romântico<br />
A tristeza da prisão domina a segunda e a terceira partes do<br />
poema. Há uma tendência maior à confissão. Por outro lado, as<br />
convenções arcádicas diminuem e o equilíbrio neoclássico é várias<br />
vezes rompido pelo tom de desabafo que percorre o texto.<br />
Nem sempre a amargura confere vigor poético aos versos, que<br />
continuam controlados nas imagens, nos ritmos e na pintura das<br />
emoções. Mas, aqui e ali, surgem flagrantes de grande beleza<br />
lírica, centrados nos sentimentos de injustiça, de medo do futuro<br />
e de medo da morte e, acima de tudo, na lembrança dolorosa de<br />
Marília. Estas passagens induziram alguns críticos a considerá-las<br />
manifestações de pré-romantismo. Veja-se o exemplo:<br />
Quando em meu mal pondero, Então mais vivamente te<br />
diviso: Vejo o teu rosto e escuto A tua voz e riso. Movo ligeiro<br />
para o vulto dos passos; Eu beijo a tíbia luz em vez de face, E<br />
aperto sobre o peito em vão os braços.
A Linguagem Singela<br />
Apesar de seus inúmeros defeitos, Marília de Dirceu possui um<br />
encanto que mantém cativo os seus leitores: a linguagem simples e<br />
aparentemente espontânea. O poeta disfarça o seu esforço na construção<br />
da obra, através de um ritmo gracioso, alternando versos de dez e seis<br />
sílabas (decassílabos e hexassílabos). Usa também uma espécie de rima<br />
quebrada, combinado o segundo e o quarto versos, enquanto os outros<br />
são brancos. Vale-se, por vezes, do refrão e foge de todo e qualquer<br />
ornamento retórico de origem barroca. Mesmo quando as imagens<br />
clássicas tornam as liras afetadas e artificiais, o estilo continua simples,<br />
direto, envolvente.<br />
Cartas chilenas<br />
Sob o pseudônimo de Critilo, Tomás Antônio Gonzaga ironiza nas<br />
Cartas chilenas a prepotência e os desmandos do governador Luís da<br />
Cunha Meneses, apelidado no texto de Fanfarrão Minésio.<br />
Ainda há algumas dúvidas a respeito da autoria desta obra satírica,<br />
mas todos os indícios apontam para o autor de Marília de Dirceu. O que<br />
já se tornou consenso é o caráter pessoal dos ataques, não havendo<br />
nenhuma insinuação nativista ou desejo de sublevação revolucionária<br />
nos mesmos.
A seguir, mais alguns<br />
poemas de Tomás Antonio<br />
Gonzaga:<br />
Marília de Dirceu (Primeira<br />
parte, Lira I)<br />
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,<br />
Que viva de guardar alheio gado;<br />
De tosco trato, de expressões<br />
grosseiro,<br />
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.<br />
Tenho próprio casal, e nele assisto;<br />
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;<br />
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,<br />
E mais as finas lãs, de que me visto.<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!<br />
Eu vi o meu semblante numa fonte,<br />
Dos anos inda não está cortado:<br />
Os pastores, que habitam este monte,<br />
Respeitam o poder do meu cajado:<br />
Com tal destreza toco a sanfoninha,<br />
Que inveja até me tem o próprio<br />
Alceste:<br />
Ao som dela concerto a voz celeste;<br />
Nem canto letra, que não seja minha,<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!<br />
Mas tendo tantos dotes da ventura,<br />
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,<br />
Depois que teu afeto me segura,<br />
Que queres do que tenho ser senhora.<br />
É bom, minha Marília, é bom ser dono<br />
De um rebanho, que cubra monte, e<br />
prado;<br />
Porém, gentil Pastora, o teu agrado<br />
Vale mais q'um rebanho, e mais q'um<br />
trono.<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!<br />
Os teus olhos espalham luz divina,<br />
A quem a luz do Sol em vão se atreve:<br />
Papoula, ou rosa delicada, e fina,<br />
Te cobre as faces, que são cor de neve.<br />
Os teus cabelos são uns fios d'ouro;<br />
Teu lindo corpo bálsamos vapora.<br />
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,<br />
Para glória de Amor igual tesouro.<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!<br />
Leve-me a sementeira muito embora<br />
O rio sobre os campos levantado:<br />
Acabe, acabe a peste matadora,<br />
Sem deixar uma rês, o nédio gado.<br />
Já destes bens, Marília, não preciso:<br />
Nem me cega a paixão, que o mundo<br />
arrasta;<br />
Para viver feliz, Marília, basta<br />
Que os olhos movas, e me dês um riso.<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!<br />
Irás a divertir-te na floresta,<br />
Sustentada, Marília, no meu braço;<br />
Ali descansarei a quente sesta,<br />
Dormindo um leve sono em teu<br />
regaço:<br />
Enquanto a luta jogam os Pastores,<br />
E emparelhados correm nas<br />
campinas,<br />
Toucarei teus cabelos de boninas,<br />
Nos troncos gravarei os teus louvores.<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!<br />
Depois de nos ferir a mão da morte,<br />
Ou seja neste monte, ou noutra serra,<br />
Nossos corpos terão, terão a sorte<br />
De consumir os dois a mesma terra.<br />
Na campa, rodeada de ciprestes,<br />
Lerão estas palavras os Pastores:<br />
"Quem quiser ser feliz nos seus<br />
amores,<br />
Siga os exemplos, que nos deram<br />
estes."<br />
Graças, Marília bela,<br />
Graças à minha Estrela!
Marília de Dirceu (Segunda<br />
parte, Lira XV)<br />
Eu, Marília, não fui nenhum<br />
Vaqueiro,<br />
Fui honrado Pastor da tua aldeia;<br />
Vestia finas lãs, e tinha sempre<br />
A minha choça do preciso cheia.<br />
Tiraram-me o casal, e o manso gado,<br />
Nem tenho, a que me encoste, um só<br />
cajado.<br />
Para ter que te dar, é que eu queria<br />
De mor rebanho ainda ser o dono;<br />
Prezava o teu semblante, os teus<br />
cabelos<br />
Ainda muito mais que um grande<br />
Trono.<br />
Agora que te oferte já não vejo<br />
Além de um puro amor, de um são<br />
desejo.<br />
Se o rio levantado me causava,<br />
Levando a sementeira, prejuízo,<br />
Eu alegre ficava apenas via<br />
Na tua breve boca um ar de riso.<br />
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto<br />
De ver-te aos menos compassivo o<br />
rosto.<br />
Propunha-me dormir no teu regaço<br />
As quentes horas da comprida sesta,<br />
Escrever teus louvores nos olmeiros,<br />
Toucar-te de papoulas na floresta.<br />
Julgou o justo Céu, que não convinha<br />
Que a tanto grau subisse a glória<br />
minha.<br />
Ah! minha Bela, se a Fortuna volta,<br />
Se o bem, que já perdi, alcanço, e<br />
provo;<br />
Por essas brancas mãos, por essas<br />
faces<br />
Te juro renascer um homem novo;<br />
Romper a nuvem, que os meus olhos<br />
cerra,<br />
Amar no Céu a Jove, e a ti na terra.<br />
Fiadas comprarei as ovelhinhas,<br />
Que pagarei dos poucos do meu<br />
ganho;<br />
E dentro em pouco tempo nos<br />
veremos<br />
Senhores outra vez de um bom<br />
rebanho.<br />
Para o contágio lhe não dar, sobeja<br />
Que as afague Marília, ou só que as<br />
veja.<br />
Senão tivermos lãs, e peles finas,<br />
Podem mui bem cobrir as carnes<br />
nossas<br />
As peles dos cordeiros mal curtidas,<br />
E os panos feitos com as lãs mais<br />
grossas.<br />
Mas ao menos será o teu vestido<br />
Por mãos de amor, por minhas mão<br />
cosido.<br />
Nós iremos pescar na quente sesta<br />
Com canas, e com cestos os peixinhos:<br />
Nós iremos caçar nas manhãs frias<br />
Com a vara envisgada os passarinhos.<br />
Para nos divertir faremos quanto<br />
Reputa o varão sábio, honesto e santo.<br />
Nas noites de serão nos sentaremos<br />
C'os filhos, se os tivermos, à fogueira;<br />
Entre as falsas histórias, que contares,<br />
Lhes contarás a minha verdadeira.<br />
Pasmados te ouvirão; eu entretanto<br />
Ainda o rosto banharei de pranto.<br />
Quando passarmos juntos pela rua,<br />
Nos mostrarão c'o dedo os mais<br />
Pastores;<br />
Dizendo uns para os outros: "Olha os<br />
nosso<br />
"Exemplos da desgraça, e são<br />
amores".<br />
Contentes viveremos desta sorte,<br />
Até que chegue a um dos dois a morte.
Marília de Dirceu<br />
(Segunda parte, Lira<br />
XXII)<br />
Por morto, Marília,<br />
Aqui me reputo:<br />
Mil vezes escuto<br />
O som do arrastado,<br />
E duro grilhão.<br />
Mas, ah! que não reme,<br />
Não treme de susto<br />
O meu coração.<br />
A chave lá soa<br />
No porta segura;<br />
Abre-se a escura,<br />
Infame masmorra<br />
Da minha prisão.<br />
Mas, ah! que não treme,<br />
Não treme de susto<br />
O meu coração.<br />
Já o Torres se assenta;<br />
Carrega-me o rosto;<br />
Do crime suposto<br />
Com mil artifícios<br />
Indaga a razão.<br />
Mas, ah! que não treme,<br />
Não treme de susto<br />
O meu coração.<br />
Eu vejo, Marília,<br />
A mil inocentes,<br />
Nas cruzes pendentes<br />
Por falsos delitos,<br />
Que os homens lhes dão.<br />
Mas, ah! que não treme,<br />
Não treme de susto<br />
O meu coração.<br />
Se penso que posso<br />
Perder o gozar-te,<br />
E a glória de dar-te<br />
Abraços honestos,<br />
E beijos na mão.<br />
Marília, já treme,<br />
Já treme de susto<br />
O meu coração.<br />
Repara, Marília,<br />
O quanto é mais forte<br />
Ainda que a morte,<br />
Num peito esforçado,<br />
De amor a paixão.<br />
Marília, já treme,<br />
Já treme de susto<br />
O meu coração!
Marília de Dirceu (Terceira parte,<br />
Lira III)<br />
Tu não verás, Marília, cem cativos<br />
Tirarem o cascalho, e a rica, terra,<br />
Ou dos cercos dos rios caudalosos,<br />
Ou da minada serra.<br />
Não verás separar ao hábil negro<br />
Do pesado esmeril a grossa areia,<br />
E já brilharem os granetes de ouro<br />
No fundo da bateia.<br />
Não verás derrubar os virgens matos;<br />
Queimar as capoeiras ainda novas;<br />
Servir de adubo à terra a fértil cinza;<br />
Lançar os grãos nas covas.<br />
Não verás enrolar negros pacotes<br />
Das secas folhas do cheiroso fumo;<br />
Nem espremer entre as dentadas rodas<br />
Da doce cana o sumo.<br />
Verás em cima da espaçosa mesa<br />
Altos volumes de enredados feitos;<br />
Ver-me-ás folhear os grande livros,<br />
E decidir os pleitos.<br />
Enquanto revolver os meus consultos.<br />
Tu me farás gostosa companhia,<br />
Lendo os fatos da sábia mestra história,<br />
E os cantos da poesia.<br />
Lerás em alta voz a imagem bela,<br />
Eu vendo que lhe dás o justo apreço,<br />
Gostoso tornarei a ler de novo<br />
O cansado processo.<br />
Se encontrares louvada uma beleza,<br />
Marília, não lhe invejes a ventura,<br />
Que tens quem leve à mais remota idade<br />
A tua formosura.
O Uraguai, de Basílio da Gama<br />
Basílio da Gama (1741-1795) nasceu em Minas Gerais. Poeta<br />
árcade, utilizava o pseudônimo Termindo Sipílio. Quando jovem,<br />
estudou no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, e era noviço<br />
quando se decretou a expulsão dos jesuítas do Brasil. Passou então<br />
para o seminário Episcopal, foi para Portugal e logo depois para a<br />
Itália. Voltou ao Brasil e partiu novamente para Portugal onde, a fim<br />
de escapar às acusações de estar ligado à Companhia de Jesus e<br />
conseguir a proteção do Marquês de Pombal, escreveu um epitalâmio<br />
(poema matrimonial elogioso) em homenagem às núpcias da filha<br />
deste. Em 1769, como para provar ao primeiro-ministro português seu<br />
“antijeuitismo”, escreveu o célebre poema O Uraguai (que não por<br />
acaso dedicou a um dos irmãos do marquês, ex-governador do Pará).<br />
Em 1774 foi nomeado oficial da Secretaria do Reino. Morreu em<br />
Lisboa, em 1795.
Além de uma série de poemas líricos, Basílio da Gama, neste poema<br />
épico extremamente imagético e bem elaborado, narra de forma<br />
fantasiosa o massacre dos Sete Povos das Missões, defendendo a figura<br />
do índio mítico dizimado pela maldade dos jesuítas, representados na<br />
figura do fictício Padre Balda. Colocando-se explicitamente ao lado das<br />
tropas portuguesas, apoiando, portanto, a política antijesuítica do<br />
Marquês de Pombal, Basílio da Gama nos apresenta um grande herói<br />
inicial, Gomes Freire de Andrada, que chefia as tropas luso-espanholas.<br />
Do lado indígena, destacam-se o lendário Sepé Tiaraju e seu seguidor<br />
Cacambo, além de Lindóia, viúva deste último e sem dúvida alguma a<br />
grande figura desta narrativa.<br />
O Uraguai – poema épico das Missões<br />
por Marcelo Frizon<br />
O Uraguai é, provavelmente, o mais belo texto literário que trata da<br />
destruição das Missões. Embora distorça alguns fatos, o poema retrata<br />
de maneira excepcional o drama dos índios que foram expulsos de suas<br />
terras em função das resoluções do Tratado de Madri (1750). Sabe-se<br />
que o convívio entre índios e jesuítas era amigável, diferente do que é<br />
retratado no poema. Essa diferença se dá pelo intuito de Basílio da Gama<br />
de querer agradar o Marquês de Pombal.
Ignorando essas pequenas peculiaridades, o poema apresenta a figura<br />
de Sepé Tiaraju como o grande líder indígena, explicitando e reforçando<br />
as lendas que se contam até hoje a seu respeito. Sepé era a esperança<br />
dos índios e dos jesuítas. Bravo, forte e inteligente, acabou sendo<br />
assassinado em combate contra portugueses e espanhóis no dia 7 de<br />
fevereiro de 1756. Três dias depois, os exércitos ibéricos massacram<br />
1500 índios perto do arroio Caiboaté, na região dos Sete Povos. A partir<br />
desse momento, a resistência dos guaranis se desfaz, as Missões são<br />
destruídas e o território, ocupado. Em 1759, os jesuítas são expulsos de<br />
Portugal. Entre 1761 e 1762, com o Tratado de El Pardo, os espanhóis<br />
retomam a região das Missões. Em 1767, os jesuítas são expulsos da<br />
Espanha. Em 1768, a Companhia de Jesus é expulsa da América. Os<br />
padres são presos e os bens da ordem, confiscados. Um ano depois<br />
Basílio da Gama publicava em Portugal O Uraguai. Interessante notar<br />
que os mesmos padres jesuítas que foram enviados ao Brasil para<br />
catequizar os índios, ação iniciada em função da Contra-Reforma da<br />
Igreja Católica, acabam sendo vítimas dos novos interesses da coroa<br />
portuguesa, então mais interessada em escravizar os índios e colonizar<br />
suas terras.
Na década de 1730, a região das Missões teve quase 40000 habitantes.<br />
Em 1740, reduziu-se quase à metade em função de epidemias de varíola.<br />
Após essa violenta queda, aconteceu uma lenta recuperação populacional<br />
só interrompida pela Guerra Guaranítica (índios X tropas ibéricas). Mas<br />
depois da guerra, na verdade, os Sete Povos não ficaram completamente<br />
despovoados. A população diminuiu apenas um terço e chegou a crescer<br />
um pouco até 1768, quando os jesuítas foram expulsos das Missões e de<br />
fato começou a decadência das reduções. Quando os portugueses<br />
incorporaram a região em 1801, ainda havia um considerável contingente<br />
indígena, que foi paulatinamente sendo incorporado à influência<br />
portuguesa. Em 1759, quando as comissões demarcadoras do Tratado de<br />
Madri voltaram à região onde ocorrera a batalha de Caiboaté para tentar<br />
concluir os trabalhos de demarcação das fronteiras, encontraram na área<br />
uma cruz de madeira com uma inscrição em Guarani. Tratava-se de uma<br />
narrativa fúnebre, inscrita na própria cruz, em memória a Sepé e aos<br />
demais combatentes mortos na batalha. Essa breve narrativa foi assinada<br />
por Miguel Mayrá, um dos principais articuladores da resistância<br />
missioneira. Esse índio fazia parte de uma elite indígena letrada, que se<br />
opôs firmemente à efetivação do Tratado de Madri. Sua ação foi decisiva<br />
para os missioneiros, já que conseguiu o apoio de tribos inimigas, como os<br />
charruas e os minuanos, que foram seus informantes.
A seguir, trechos do poema seguidos de comentários de Luís Augusto<br />
Fischer e Sergio Fischer.<br />
O URAGUAI (trechos)<br />
Basílio de da Gama<br />
CANTO PRIMEIRO<br />
Fumam ainda nas desertas praias<br />
Lagos de sangue tépidos e impuros<br />
Em que ondeiam cadáveres despidos,<br />
Pasto de corvos. Dura inda nos vales<br />
O rouco som da irada artilheria.<br />
MUSA, honremos o Herói que o povo rude<br />
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue<br />
Dos decretos reais lavou a afronta.<br />
Ai tanto custas, ambição de império!<br />
E Vós, por quem o Maranhão pendura<br />
Rotas cadeias e grilhões pesados,<br />
Herói e irmão de heróis, saudosa e triste<br />
Se ao longe a vossa América vos lembra,<br />
Protegei os meus versos. Possa entanto<br />
Acostumar ao vôo as novas asas<br />
Em que um dia vos leve. Desta sorte<br />
Medrosa deixa o ninho a vez primeira<br />
Águia, que depois foge à humilde terra<br />
E vai ver de mais perto no ar vazio<br />
O espaço azul, onde não chega o raio. (...)<br />
# Neste primeiro canto, depois de<br />
apresentar a cena do campo de batalha<br />
cheio de corpos, o poeta retorna ao início<br />
do conflito, apresentando as tropas lusoespanholas<br />
e seu líder Gomes Freire de<br />
Andrada, então governador do Rio de<br />
Janeiro. Após coordenar o ataque às<br />
Missões, finalizado em 1756 Gomes Freire<br />
retorna ao Rio de Janeiro, onde comanda<br />
a ação final que vai culminar com a<br />
expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1760.
CANTO SEGUNDO<br />
Fala de Gomes Freire de Andrada<br />
(...)<br />
O rei é vosso pai: quer-vos felices.<br />
Sois livres, como eu sou; e sereis livres,<br />
Não sendo aqui, em outra qualquer parte.<br />
Mas deveis entregar-nos estas terras.<br />
Ao bem público cede o bem privado.<br />
O sossego de Europa assim o pede.<br />
Assim o manda o rei. Vós sois rebeldes,<br />
Se não obedeceis; mas os rebeldes,<br />
Eu sei que não sois vós, são os bons<br />
padres,<br />
Que vos dizem a todos que sois livres,<br />
E se servem de vós como de escravos.<br />
Armados de orações vos põem no campo<br />
Contra o fero trovão da artilheria,<br />
Que os muros arrebata; e se contentam<br />
De ver de longe a guerra: sacrificam,<br />
Avarentos do seu, o vosso sangue.<br />
Eu quero à vossa vista despojá-los<br />
Do tirano domínio destes climas,<br />
De que a vossa inocência os fez senhores.<br />
Dizem-vos que não tendes rei? Cacique,<br />
E o juramento de fidelidade?<br />
Porque está longe, julgas que não pode<br />
Castigar-vos a vós, e castigá-los?<br />
Generoso inimigo, é tudo engano.<br />
Os reis estão na Europa; mas adverte<br />
Que estes braços, que vês, são os seus<br />
braços. (...)
# Em termos resumidos, este segundo canto nos apresenta os<br />
primeiros contatos entre os índios e Gomes Freire de Andrada<br />
(como relata a cena destacada) e a conseqüente batalha, na<br />
qual os índios serão vencidos.<br />
# O fragmento acima nos mostra o momento em que Gomes<br />
Freire de Andrada tenta convencer os índios a deixarem o<br />
território das missões que passou a ser português, pelo<br />
Tratado de Madri (1750), em troca da Colônia de Sacramento,<br />
que passou às mãos espanholas. Em sua fala, Gomes Freire<br />
procura demonstrar respeito pelos índios e diz a eles que estão<br />
sendo explorados pelos jesuítas, que os enganam.<br />
# No final, Gomes Freire diz serem os seus braços, braços dos<br />
reis. Com estas palavras, ele adverte para a possibilidade de<br />
punição para aqueles que não obedecerem a ordem de deixar<br />
a região das Missões.
CANTO TERCEIRO<br />
A aparição de Sepé Tiaraju para<br />
Cacambo<br />
(...)<br />
Era alta noite, e carrancudo e triste<br />
Negava o céu envolto em pobre manto<br />
A luz ao mundo, e murmurar se ouvia<br />
Ao longe o rio, e menear-se o vento.<br />
Respirava descanso a natureza.<br />
Só na outra margem não podia entanto<br />
O inquieto Cacambo achar sossego.<br />
No perturbado interrompido sono<br />
(Talvez fosse ilusão) se lhe apresenta<br />
A triste imagem de Sepé despido,<br />
Pintado o rosto do temor da morte,<br />
Banhado em negro sangue, que corria<br />
Do peito aberto, e nos pisados braços<br />
Inda os sinais da mísera caída.<br />
Sem adorno a cabeça, e aos pés calcada<br />
A rota aljava e as descompostas penas.<br />
Quanto diverso do Sepé valente,<br />
Que no meio dos nossos espalhava,<br />
De pó, de sangue e de suor coberto,<br />
O espanto, a morte! E diz-lhe em tristes<br />
vozes:<br />
Foge, foge, Cacambo. E tu descansas,<br />
Tendo tão perto os inimigos? Torna,<br />
Torna aos teus bosques, e nas pátrias<br />
grutas<br />
Tua fraqueza e desventura encobre.<br />
Ou, se acaso inda vivem no teu peito<br />
Os desejos de glória, ao duro passo<br />
Resiste valeroso; ah tu, que podes!<br />
E tu, que podes, põe a mão nos peitos<br />
À fortuna de Europa: agora é tempo,<br />
Que descuidados da outra parte dormem.<br />
Envolve em fogo e fumo o campo, e<br />
paguem<br />
O teu sangue e o meu sangue. Assim<br />
dizendo<br />
Se perdeu entre as nuvens, sacudindo<br />
Sobre as tendas, no ar, fumante tocha;<br />
E assinala com chamas o caminho. (...)
# O terceiro canto nos mostra o momento em que Cacambo,<br />
assumindo o comando dos guerreiros indígenas, após a morte de<br />
Sepé Tiaraju, provoca um incêndio no acampamento das tropas<br />
portuguesas.<br />
# Ainda nesta parte do livro, Cacambo vem a morrer, por obra do<br />
maquiavélico Padre Balda, deixando viúva sua esposa Lindóia, que<br />
será personagem fundamental no canto seguinte.<br />
# O trecho destacado nos mostra o momento em que o espírito de<br />
Sepé Tiaraju apara para Cacambo e o enche de forças para<br />
continuar a batalha. Dessa forma, fica evidente o reconhecimento<br />
que Basílio da Gama tem para com os índios. Da mesma forma que<br />
os portugueses, através da figura de Gomes Freire de Andrada, são<br />
apresentados como heróis, os índios são igualmente heróicos,<br />
restando aos jesuítas o papel de vilões da narrativa, seguindo a<br />
ideologia pombalina de perseguição à Companhia de Jesus.<br />
# Inicialmente, Sepé sugere que Cacambo fuja para esconder-se<br />
nas matas conhecidas, mas, depois, diz a Cacambo que queime o<br />
acampamento inimigo, que está desguarnecido, se é que ainda lhe<br />
restam forças para tal. E assim dizendo, a imagem de Sepé some,<br />
mostrando o caminho para Cacambo.
CANTO QUARTO<br />
A morte de Lindóia<br />
(...)<br />
Este lugar delicioso e triste,<br />
Cansada de viver, tinha escolhido<br />
Para morrer a mísera Lindóia.<br />
Lá reclinada, como que dormia,<br />
Na branda relva e nas mimosas flores,<br />
Tinha a face na mão, e a mão no tronco<br />
De um fúnebre cipreste, que espalhava<br />
Melancólica sombra. Mais de perto<br />
Descobrem que se enrola no seu corpo<br />
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge<br />
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.<br />
Fogem de a ver assim, sobressaltados,<br />
E param cheios de temor ao longe;<br />
E nem se atrevem a chamá-la, e temem<br />
Que desperte assustada, e irrite o monstro,<br />
E fuja, e apresse no fugir a morte.<br />
Porém o destro Caitutu, que treme<br />
Do perigo da irmã, sem mais demora<br />
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes<br />
Soltar o tiro, e vacilou três vezes<br />
Entre a ira e o temor. Enfim sacode<br />
O arco e faz voar a aguda seta,<br />
Que toca o peito de Lindóia, e fere<br />
A serpente na testa, e a boca e os dentes<br />
Deixou cravados no vizinho tronco.<br />
Açouta o campo co’a ligeira cauda<br />
O irado monstro, e em tortuosos giros<br />
Se enrosca no cipreste, e verte envolto<br />
Em negro sangue o lívido veneno.<br />
Leva nos braços a infeliz Lindóia<br />
O desgraçado irmão, que ao despertá-la<br />
Conhece, com que dor! no frio rosto<br />
Os sinais do veneno, e vê ferido<br />
Pelo dente sutil o brando peito. (...)
# Neste canto, o narrador nos mostra a aproximação das tropas lusoespanholas<br />
das Missões, onde o Pe. Balda segue em seu intento de casar<br />
Lindóia com Baldetta. No final do canto, diante do perigo do ataque que<br />
se apresenta, os índios acabam queimando a própria aldeia e fugindo.<br />
# Após a morte de Cacambo, o Pe. Balda, causador de sua morte, planeja<br />
casar Lindóia, viúva de Cacambo, com Baldetta, seu filho, para dessa<br />
forma assumir o controle sobre os índios. Este plano, porém, esbarra na<br />
força de Lindóia, que prefere morrer a trair a memória de seu amado.<br />
Assim, ela retira-se para o meio da selva e lá deixa que uma cobra<br />
venenosa lhe traga a morte.<br />
# Os índios que a procuram, chefiados por seu irmão Caititu, hesitam em<br />
despertá-la, pois temem que a cobra acabe por atacá-la. O próprio<br />
Caititu vacila quando tenta flechar o animal. No final, ele consegue matar<br />
a cobra, mas, quando se aproxima da irmã, vê que esta já havia sido<br />
picada pela serpente, já trazia no rosto as marcas do veneno e da morte.<br />
# Sem dúvida, esta cena, a da morte de Lindóia, e a parte mais<br />
importante do livro, marcando a postura ética dos índios e a força do<br />
amor que unia estas duas figuras (Lindóia e Cacambo). Estes dois<br />
elementos, a valorização da postura ético-moral dos índios associada à<br />
morte romântica em nome do amor único e indestrutível, são mostras de<br />
um “pré-romantismo”, pois são elementos decisivos no indianismo dos<br />
primeiros românticos.
CANTO QUINTO<br />
Peroração final<br />
(...)<br />
Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos<br />
Embora um dia a escura noite eterna.<br />
Tu vive e goza a luz serena e pura.<br />
Vai aos bosques de Arcádia: e não receies<br />
Chegar desconhecido àquela areia.<br />
Ali de fresco entre as sombrias murtas<br />
Urna triste a Mireo não todo encerra.<br />
Leva de estranho céu, sobre ela espalha<br />
Co’a peregrina mão bárbaras flores.<br />
E busca o sucessor, que te encaminhe<br />
Ao teu lugar, que há muito que te espera.<br />
# Neste canto final, Basílio da Gama reforça sua posição, elogiando<br />
mais uma vez o heroísmo de Gomes Freire de Andrada e culpando<br />
os jesuítas pela desgraça acontecida.<br />
# O fragmento destacado é o trecho final, no qual o autor se<br />
despede do livro, desejando a ele que chegue à Arcádia, ao seu<br />
lugar, que se equipare aos grandes textos antigos.
População dos Sete Povos das<br />
Missões (1690 a 1827) :: fonte: Fabio<br />
Kühn, 2002 – Breve História do RS<br />
Ano Nº de famílias Nº de habitantes<br />
1690 4248 16673<br />
1715 6596 28338<br />
1732 9835 39343<br />
1740 4736 21106<br />
1753 6556 29305<br />
1757 3512 20350<br />
1768 4766 22349<br />
1801 3477 14010<br />
1827 467 1874