Dissertação Virginia Videira Castro 2010 - Biblioteca Digital de ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VIRGINIA VIDEIRA CASCO TEMÁTICA JACOBÉIA NO TEATRO DO BARROCO: LA ROMERA DE SANTIAGO - DE TIRSO DE MOLINA Mestranda: Virginia Videira Casco Área de Concentração: Estudos de Literatura Subárea: Literaturas Hispânicas Orientadora: Profª Drª Lygia Rodrigues Vianna Peres Linha de Pesquisa: Literatura e Outras Artes NITERÓI 2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />
INSTITUTO DE LETRAS<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS<br />
VIRGINIA VIDEIRA CASCO<br />
TEMÁTICA JACOBÉIA NO TEATRO DO BARROCO: LA ROMERA DE<br />
SANTIAGO - DE TIRSO DE MOLINA<br />
Mestranda: <strong>Virginia</strong> <strong>Vi<strong>de</strong>ira</strong> Casco<br />
Área <strong>de</strong> Concentração: Estudos <strong>de</strong> Literatura<br />
Subárea: Literaturas Hispânicas<br />
Orientadora: Profª Drª Lygia Rodrigues Vianna Peres<br />
Linha <strong>de</strong> Pesquisa: Literatura e Outras Artes<br />
NITERÓI<br />
<strong>2010</strong>
VIRGINIA VIDEIRA CASCO<br />
TEMÁTICA JACOBÉIA NO TEATRO DO BARROCO: LA ROMERA DE<br />
SANTIAGO - DE TIRSO DE MOLINA<br />
<strong>Dissertação</strong> apresentada ao Curso <strong>de</strong><br />
Pós-Graduação em Literaturas Hispânicas<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense,<br />
como requisito parcial para obtenção do<br />
Grau <strong>de</strong> Mestre. Área <strong>de</strong> Concentração:<br />
Literatura e Outras Artes.<br />
Orientador: Profa. Dra. LYGIA RODRIGUES VIANNA PERES<br />
NITERÓI<br />
<strong>2010</strong><br />
2
Ficha Catalográfica elaborada pela <strong>Biblioteca</strong> Central do Gragoatá<br />
C336 Casco, <strong>Virginia</strong> <strong>Vi<strong>de</strong>ira</strong>.<br />
Temática jacobéia no teatro do barroco: La Romera <strong>de</strong> Santiago –<br />
<strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina / <strong>Virginia</strong> <strong>Vi<strong>de</strong>ira</strong> Casco. – <strong>2010</strong>.<br />
118 f. ; il.<br />
Orientador: Lygia Rodrigues Vianna Peres.<br />
<strong>Dissertação</strong> (Mestrado) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense,<br />
Instituto <strong>de</strong> Letras, <strong>2010</strong>.<br />
Bibliografia: f. 111-114.<br />
1. De Molina, Tirso, 1571? – 1648. La Romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
2. Teatro espanhol; história e crítica. 3. Barroco. 4. Peregrino e<br />
peregrinação – Santiago <strong>de</strong> Compostela (Espanha). I. Peres, Lygia<br />
Rodrigues Vianna. II. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Instituto <strong>de</strong><br />
Letras. III. Título.<br />
CDD 862
“A Europa se fez pelo Caminho <strong>de</strong> Santiago” 1<br />
Goethe<br />
1 É célebre a frase atribuída ao escritor alemão Johann Wolfgang Goethe (1749-1832). No entanto<br />
tem sido difícil encontrar sua exata fonte. Nos numerosos livros consultados, que tratam da<br />
peregrinação, encontram-se algumas variantes <strong>de</strong>sta frase: Europa foi feita peregrinando a<br />
Compostela; Europa inteira se fez peregrinando a Compostela; A Europa fez-se peregrinando a<br />
Compostela; Europa se fez peregrinando a Santiago; etc.<br />
3
AGRADECIMENTOS<br />
Ao Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Letras da<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense, que contribuiu<br />
para a realização <strong>de</strong>sta dissertação.<br />
A CAPES, pela bolsa <strong>de</strong> estudo oferecida.<br />
A minha orientadora Professora Doutora Lygia<br />
Rodrigues Vianna Peres.<br />
Ao Professor Doutor Miguel Zugasti da<br />
Universida<strong>de</strong> da Navarra, pelos exemplares e<br />
arquivos enviados.<br />
A duas pessoas, em particular, pelo apoio,<br />
<strong>de</strong>dicação, confiança e segurança no meu<br />
trabalho: Professora Doutora Magnólia Brasil<br />
Barbosa do Nascimento e o mestrando Robson<br />
dos Santos Leitão.<br />
Aos <strong>de</strong>mais colegas <strong>de</strong> mestrado e doutorado que<br />
me incentivaram na pesquisa.<br />
Aos meus amigos peregrinos da Associação <strong>de</strong><br />
Amigos do Caminho <strong>de</strong> Santiago-Brasil (AACS),<br />
pelo apoio e empréstimo <strong>de</strong> livros do seu acervo<br />
jacobino e pelas sugestões enriquecedoras.<br />
Ao peregrino Cadmo, que sempre incentiva<br />
minhas pesquisas, e ao peregrino Edson que,<br />
durante uma caminhada dominical até a Mesa do<br />
Imperador, me apresentou o romanceiro El con<strong>de</strong><br />
preso.<br />
4
A minha família e em especial ao meu marido<br />
Tácio e filho Thiago que sempre me apoiaram e<br />
souberam viver com minhas ausências.<br />
A meu querido Franklin que sempre dizia: “Ainda é<br />
possível fazer, pensar e amar”.<br />
5
VIRGINIA VIDEIRA CASCO<br />
TEMÁTICA JACOBÉIA NO TEATRO DO BARROCO: LA ROMERA<br />
DE SANTIAGO – DE TIRSO DE MOLINA<br />
Aprovada em março <strong>de</strong> <strong>2010</strong>.<br />
<strong>Dissertação</strong> apresentada ao Curso <strong>de</strong> Pós<br />
Graduação em Literaturas Hispânicas da<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense, como Requisito<br />
parcial para a obtenção do Grau <strong>de</strong> Mestre. Área<br />
<strong>de</strong> Concentração: Literatura e Outras Artes.<br />
BANCA EXAMINADORA<br />
Profa. Dra. Ana Beatriz Rodrigues Gonçalves<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora<br />
Profa. Dra. Lygia Rodrigues Vianna Peres<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />
Profa. Dra. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />
Niterói <strong>2010</strong><br />
6
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO 13<br />
1. APÓSTOLO SANTIAGO 18<br />
1.1: Mito e culto a Santiago apóstolo 21<br />
1.2: As lendas em torno a Santiago 27<br />
1.2.1: A concha como símbolo peregrino - A lenda da origem da<br />
Vieira jacobéia 27<br />
1.2.2: Outras lendas 31<br />
1.3: A peregrinação compostelana no <strong>de</strong>correr dos séculos 32<br />
1.4: Presença da temática jacobéia na literatura espanhola da Ida<strong>de</strong> Média<br />
e do Renascimento 37<br />
2. BARROCO 51<br />
2.1: O teatro barroco espanhol 57<br />
2.2: O dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina 60<br />
2.3: Ciclos teatrais <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina 64<br />
2.4: Características do teatro tirsiano 71<br />
3. LA ROMERA DE SANTIAGO 77<br />
3.1: Gênero 79<br />
3.2: Temas 81<br />
3.3: Personagens e espaço cênico 86<br />
3.4: Presença feminina no Caminho <strong>de</strong> Santiago 96<br />
3.5: O romanceiro El con<strong>de</strong> preso 99<br />
4. CONSIDERAÇÕES FINA IS 109<br />
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 111<br />
6. ANEXOS 115<br />
7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES<br />
Fig. 1 Escultura <strong>de</strong> Santiago. Igreja Românica <strong>de</strong> Santa Marta <strong>de</strong> Tera.<br />
Zamora. Pág. 30<br />
Fig. 2 Tela <strong>de</strong> José Casado <strong>de</strong> Alisal. Capela das Or<strong>de</strong>ns Militares <strong>de</strong> São<br />
Francisco. Madri. Pág. 85.<br />
9
RESUMO<br />
O Caminho <strong>de</strong> Santiago tem sido uma via <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> cultura,<br />
principalmente na época medieval, da Europa para a península Ibérica e viceversa.<br />
O mito e a lenda <strong>de</strong> Santiago, discípulo <strong>de</strong> Jesus, que relatam fatos<br />
referentes à pregação do Evangelho na Espanha, à sua <strong>de</strong>capitação quando<br />
retorna a Jerusalém e à posterior chegada <strong>de</strong> seu corpo às terras galegas,<br />
incluindo sua sepultura, serviram <strong>de</strong> estímulo tanto para a religiosida<strong>de</strong> popular<br />
quanto para interesses políticos <strong>de</strong> monarcas e altos eclesiásticos do século IX, do<br />
noroeste da Espanha. A difusão da lenda, do santo e sua sepultura, foi<br />
assegurada por diversas vias, entre as quais a literatura, pela qual conduzimos a<br />
presente pesquisa, propondo um estudo da temática jacobéia na obra La romera<br />
<strong>de</strong> Santiago, <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina. Através do tema Caminho <strong>de</strong> Santiago, como<br />
espaço em que se <strong>de</strong>senvolve parte <strong>de</strong>sta obra, dos elementos que conformam<br />
esta peregrinação, do quanto este se tornou importante para a Espanha e para os<br />
<strong>de</strong>mais países europeus, e dos fatores históricos e lendários que compõem a peça<br />
<strong>de</strong> teatro, objeto <strong>de</strong> nossos estudos, evi<strong>de</strong>nciamos o ressurgimento da temática<br />
jacobéia na literatura do período barroco. Embora no Século <strong>de</strong> Ouro as<br />
manifestações literárias referentes ao Caminho <strong>de</strong> Santiago sejam escassas, em<br />
comparação com outros períodos como o da Ida<strong>de</strong> Média, é principalmente no<br />
teatro, por meio do dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina, que se retoma a temática<br />
jacobéia, como expressão <strong>de</strong> conhecimento que o autor possuía das terras<br />
galego-portuguesas.<br />
Palavras-chave: Temática jacobéia, peregrinação, barroco, teatro, Tirso <strong>de</strong> Molina,<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
10
RESUMEN<br />
El Camino <strong>de</strong> Santiago ha sido una vía <strong>de</strong> transmisión <strong>de</strong> cultura, principalmente<br />
en la época medieval, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Europa para la península Ibérica y viceversa. El mito<br />
y la leyenda <strong>de</strong> Santiago, discípulo <strong>de</strong> Jesús, que relata acontecimientos<br />
referentes a la predicación <strong>de</strong>l Evangelio en España, a su <strong>de</strong>capitación cuando<br />
retorna a Jerusalén y la llegada <strong>de</strong>l cuerpo en tierras gallegas, con su posterior<br />
sepultura, sirvieron <strong>de</strong> estímulo tanto para la religiosidad popular como para los<br />
monarcas y altos eclesiásticos <strong>de</strong>l siglo IX, <strong>de</strong>l noroeste <strong>de</strong> España. La difusión <strong>de</strong><br />
la leyenda, <strong>de</strong>l santo y <strong>de</strong> su sepultura, se aseguró por diversas vías, entre las<br />
cuales se encontraba la literatura, por medio <strong>de</strong> la cual conducimos esta<br />
investigación, al proponer un estudio <strong>de</strong> la temática jacobea en la obra La romera<br />
<strong>de</strong> Santiago, <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina. A través <strong>de</strong>l tema Camino <strong>de</strong> Santiago, como<br />
espacio en el cual se <strong>de</strong>sarrolla parte <strong>de</strong> la obra, <strong>de</strong> los elementos que conforman<br />
esta peregrinación, que fue tan importante para España y para el resto <strong>de</strong> los<br />
países europeos, y <strong>de</strong> los factores históricos y legendarios que componen la pieza<br />
<strong>de</strong> teatro, objeto <strong>de</strong> nuestros estudios, evi<strong>de</strong>nciamos signos que <strong>de</strong>muestran el<br />
resurgimiento <strong>de</strong> la temática jacobea en el periodo barroco. Aunque en el Siglo <strong>de</strong><br />
Oro sean escasas las manifestaciones literarias en torno al Camino <strong>de</strong> Santiago,<br />
en comparación con otros periodos como la Edad Media, es principalmente en el<br />
teatro, por medio <strong>de</strong>l dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina, que se retoma la temática<br />
jacobea, como expresión <strong>de</strong>l conocimiento, que el autor poseía, <strong>de</strong> las tierras<br />
gallego-portuguesas.<br />
Palabras-clave: Temática jacobea, peregrinación, barroco, teatro, Tirso <strong>de</strong> Molina,<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
11
SUBSTRACT<br />
The Way of Saint James has been a mo<strong>de</strong> of cultural transmission, especially in<br />
medieval period, from Europe to Iberia and vice versa. The myth and the legend of<br />
Jesus Christ’s disciple Saint James, which report facts about his Gospel preaching<br />
in Spain, his beheading when returned to Jerusalem and the later arrival of his<br />
body to Galician lands, including his grave, helped to stimulate popular religiosity<br />
as political interests of royal monarchs and high clergy during the IX century in<br />
Northwestern Spain. The spread of the legend, about Saint James and his grave,<br />
was supported by different ways, and the Literature among them was chosen by us<br />
to conduct this present research, in which we propose a study on Saint James<br />
thematic at La romera <strong>de</strong> Santiago, a play by Tirso <strong>de</strong> Molina. Through Saint<br />
James’ Way, as the place in wich part of that plot <strong>de</strong>velops, and the elements that<br />
encompass the pilgrimage, about how the Way became important to Spain and the<br />
other European countries, and the historic and legendary facts with the play was<br />
ma<strong>de</strong>, all these object of our studies, we focuse the resurgence of Saint James’<br />
thematic in the Baroque Literature. Although literary manifestations about Saint<br />
James’ Way are rare during the Siglo <strong>de</strong> Oro, if compared with others periods like<br />
Middle Age, it is mainly in the theater, by play writer Tirso <strong>de</strong> Molina, that Saint<br />
James’ thematic is recovered, as an expression of the Galician-Portuguese lands<br />
the author held.<br />
Key words: Saint James’ thematic, pilgrimage, Baroque, theater, Tirso <strong>de</strong> Molina,<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
12
INTRODUÇÃO<br />
A presente dissertação propõe um estudo da temática jacobéia <strong>de</strong>ntro da<br />
literatura espanhola, especificamente na obra do dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina<br />
(1571-1648) intitulada La romera <strong>de</strong> Santiago (1621-1622), a partir da análise da<br />
peça dramática em si, das didascálias, tanto explícitas quanto implícitas, das<br />
“situações” mais representativas que remetem aos símbolos e cenário jacobeu, e<br />
dos temas intrínsecos da obra, como são a <strong>de</strong>sonra, a justiça e o uso do gênero<br />
Romancero, no Século <strong>de</strong> Ouro.<br />
A temática jacobéia se faz presente nesta obra, o que nos levou, em um<br />
primeiro momento, a <strong>de</strong>senvolver nossa pesquisa sob a abordagem do mito e<br />
culto ao apóstolo Santiago, das lendas em torno <strong>de</strong>le, da peregrinação<br />
compostelana no <strong>de</strong>correr dos séculos e da presença da temática jacobéia em<br />
alguns textos literários espanhóis até o século XVII, período em que foi criada La<br />
romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
A partir da <strong>de</strong>scoberta do sepulcro do apóstolo Santiago, nos confins da<br />
península Ibérica, uma rota sagrada <strong>de</strong>nominada El camino <strong>de</strong> Santiago, surge. A<br />
rota jacobéia constituiu um dos itinerários europeus <strong>de</strong> maior tradição. Composta<br />
pelos caminhos que se dirigem a Santiago, a partir <strong>de</strong> diferentes pontos da França<br />
e resto <strong>de</strong> Europa, tem como meta Santiago <strong>de</strong> Compostela. Este itinerário tem<br />
sido uma via geradora e transmissora <strong>de</strong> cultura, sobretudo na época medieval,<br />
que originou a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da língua e literatura espanhola, através dos mosteiros,<br />
abadias, hospitais, catedrais, igrejas românicas e góticas dos povoados e cida<strong>de</strong>s<br />
dos reinados da Reconquista. Des<strong>de</strong> a Europa, e em direção à península Ibérica,<br />
entraram a arte pré-românica, românica e gótica, a épica francesa, os poemas<br />
trovadorescos, a filosofia escolástica, assim como também influências feudais,<br />
monásticas e litúrgicas. Mas também no sentido inverso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a península<br />
Ibérica para Europa, por meio do caminho jacobino, houve uma transmissão <strong>de</strong><br />
tudo o que o mundo árabe havia carregado do Oriente e da antiguida<strong>de</strong> clássica<br />
até a Península, quando esta foi invadida no século VIII.<br />
Depois da <strong>de</strong>scoberta do túmulo do Apóstolo, na Galicia, o Caminho <strong>de</strong><br />
Santiago passa a se constituir, no itinerário religioso, histórico e cultural <strong>de</strong> maior<br />
13
vigência no Oci<strong>de</strong>nte. O percurso até Compostela motivava as pessoas não<br />
somente do ponto <strong>de</strong> vista religioso, embora esse componente seja hoje o<br />
principal estímulo da maioria dos peregrinos que se dirigem até aquela cida<strong>de</strong>,<br />
como também do cultural e turístico. No mundo medieval europeu, Jerusalém (no<br />
extremo oriente), Roma (no centro) e Compostela (no extremo oci<strong>de</strong>nte) se<br />
mostram lugares sagrados por excelência, e até hoje possuem uma sacralida<strong>de</strong><br />
inquestionável, confirmada por parte <strong>de</strong> historiadores, críticos e estudiosos.<br />
Não é nossa intenção estudar a veracida<strong>de</strong> das origens das antigas<br />
narrações em torno da pregação do Evangelho por parte do apóstolo Santiago.<br />
Assim como também não preten<strong>de</strong>mos discutir a autenticida<strong>de</strong> do túmulo na<br />
cida<strong>de</strong> compostelana. Mas não po<strong>de</strong>mos ignorar que o Caminho, como rota <strong>de</strong><br />
peregrinação, foi e é um signo importante na cultura do continente europeu.<br />
Des<strong>de</strong> um primeiro momento, os percursos até os lugares sagrados<br />
começam a conformar-se com a aventura do espírito que significa ponerse en<br />
camino ou peregrinar até os sepulcros, o que os homens fizeram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong><br />
Média, intervindo nas artes, como a música, a arquitetura, a escultura, a literatura<br />
etc., nas quais <strong>de</strong>ixam registrados seus sentimentos e vivências com relação ao<br />
que apreen<strong>de</strong>ram durante o Caminho.<br />
Na literatura espanhola, a presença da temática jacobéia comprova a<br />
importância que teve, e tem até hoje, o mito do apóstolo Santiago, <strong>de</strong>ntro e fora da<br />
península Ibérica. As obras literárias que faziam referência, <strong>de</strong> alguma forma, ao<br />
mito jacobeu transmitiam não somente a liturgia do Apóstolo como também a<br />
realida<strong>de</strong> espanhola da época em que foram criadas, <strong>de</strong>monstrando a fé do povo<br />
que admitia, e admite, a figura <strong>de</strong> Santiago como padroeiro da Espanha.<br />
Esta foi a nossa primeira justificativa para trabalhar com a temática jacobéia<br />
<strong>de</strong>ntro dos estudos literários.<br />
A partir do auge das peregrinações até Compostela, na Ida<strong>de</strong> Média, a<br />
literatura que reflete esta temática apresenta-se através <strong>de</strong> diferentes gêneros,<br />
como lendas, cantigas, canções <strong>de</strong> gesta, poemas, romances etc. Mas na<br />
literatura renascentista, assim como na barroca, existem apenas referências ao<br />
uso <strong>de</strong>sta temática.<br />
14
Na escolha <strong>de</strong> autores, para nossas pesquisas, evi<strong>de</strong>nciamos Tirso <strong>de</strong><br />
Molina por este se afigurar como uns dos poucos dramaturgos a trabalhar com<br />
esta temática, mais exatamente em sua obra intitulada La romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
Para uma abordagem específica dos estudos jacobinos, usamos o primeiro<br />
volume, dos onze que compõem a obra <strong>de</strong> Antonio López Ferreiro, cônego do<br />
Cabildo Compostelano, que <strong>de</strong>dicou uma exaustiva análise à história da Santa<br />
Apostólica Metropolitana Iglesia <strong>de</strong> Santiago. Esta história não trata somente da<br />
construção da catedral senão também, e principalmente, da <strong>de</strong>scoberta do túmulo<br />
do Apóstolo e das primeiras peregrinações a Compostela. Datado <strong>de</strong> 1898, é um<br />
dos principais livros <strong>de</strong> pesquisa em que se baseiam os historiadores e críticos<br />
contemporâneos que trabalham com a temática jacobéia.<br />
Quanto ao estudo específico da peregrinação compostelana ao longo do<br />
tempo, consultaremos os três volumes <strong>de</strong> Luiz Vázquez <strong>de</strong> Parga, José María<br />
Lacarra e Juan Uría Ríus intitulados Las peregrinaciones a Santiago <strong>de</strong><br />
Compostela, pois apresentam um amplo panorama histórico do fenômeno<br />
jacobeu, embora os autores estejam convencidos <strong>de</strong> que os estudos que versam<br />
sobre a peregrinação compostelana só po<strong>de</strong>riam realizar-se, <strong>de</strong> uma forma<br />
satisfatória, mediante a colaboração das diferentes nações que, <strong>de</strong> uma forma ou<br />
<strong>de</strong> outra, formaram parte do processo.<br />
Outras obras <strong>de</strong> historiadores, críticos, escritores e pesquisadores como<br />
Francisco Singul, Américo <strong>Castro</strong>, Juan G. Atienza, Maria do Amparo T. Maleval,<br />
Andréia Cristina L. Frazão da Silva, alguns estrangeiros e outros brasileiros,<br />
<strong>de</strong>ntre outros citados na bibliografia, foram usadas para fundamentar o primeiro<br />
capítulo.<br />
No capítulo seguinte, usamos também os textos <strong>de</strong> Heinrich Wölfflin,<br />
Helmut Hatzfeld e Otto M. Carpeaux para uma abordagem específica dos estudos<br />
barrocos e os volumes da Historia <strong>de</strong> la Literatura Española, <strong>de</strong> J. L. Alborg, para<br />
introduzir os estudos concernentes ao dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina. Mas para a<br />
análise das características do teatro <strong>de</strong>ste dramaturgo utilizamos os livros do<br />
Instituto <strong>de</strong> Estudos Tirsianos – IET -, do grupo GRISO <strong>de</strong> Navarra, assim como<br />
também para a análise da obra em questão.<br />
15
Ao trabalhar com o texto La romera <strong>de</strong> Santiago nos <strong>de</strong>paramos com a<br />
possibilida<strong>de</strong> da autoria <strong>de</strong>sta obra ser atribuída a Luis Vélez <strong>de</strong> Guevara, outro<br />
dramaturgo espanhol da época. Existe hoje em Espanha um trabalho <strong>de</strong> pesquisa,<br />
<strong>de</strong> alguns críticos, <strong>de</strong>ntre eles o Padre Luis Vázquez, também pertencente à<br />
Or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> la Merced, que direcionam seus estudos à autoria controversa da obra<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago. Embora seja um assunto atraente, já que nos inúmeros<br />
livros sobre a História da Literatura Espanhola só é feita referência a Tirso <strong>de</strong><br />
Molina como autor <strong>de</strong>sta obra, preferimos não aprofundar as pesquisas, neste<br />
sentido, por duas razões importantes. Primeiro, porque nosso principal objetivo é<br />
trabalhar a temática jacobéia no contexto da peça dramática e, segundo, porque<br />
adjudicar autoria a uma obra leva a um trabalho exaustivo <strong>de</strong> pesquisa que só<br />
po<strong>de</strong>ria ser realizado na Espanha, junto aos acervos.<br />
Como já mencionamos, nesta comédia que ora se faz objeto <strong>de</strong> estudo,<br />
composta <strong>de</strong> três jornadas, e que forma parte do ciclo galego-português <strong>de</strong> Tirso,<br />
o dramaturgo se vale da temática jacobéia, do conhecimento do mito do Apóstolo<br />
e do Caminho, para criar uma obra que reflete seu ponto <strong>de</strong> vista diante <strong>de</strong> alguns<br />
fatos que ocorriam na época.<br />
Gostaríamos <strong>de</strong> acrescentar que escritores, historiadores e críticos,<br />
anteriores e posteriores a Tirso, utilizaram as mesmas referências históricas e<br />
lendárias que envolvem a temática jacobéia. Portanto, apesar dos quase mil e<br />
duzentos anos que separam a <strong>de</strong>scoberta do sepulcro e o momento atual, o<br />
assunto, que norteou a presente pesquisa, <strong>de</strong>monstra ser vigente, instigante e<br />
sumamente rico para ser trabalhado na literatura e em outras áreas das artes.<br />
Sustentamos nossos estudos com muitos dos artigos escritos pelos críticos<br />
do Instituto <strong>de</strong> Estudos Tirsianos que, embora não versem especificamente sobre<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago, apresentaram-se como fontes <strong>de</strong> pesquisa abalizadas e<br />
ricas em interessantes argumentações sobre a estética das obras do dramaturgo.<br />
Por ter sido nosso principal objetivo contribuir com os estudos literários, a<br />
partir da análise do texto dramático - La romera <strong>de</strong> Santiago -, que só possui uma<br />
única edição crítica, feita por Blanca <strong>de</strong> los Ríos e encontrada em seu livro Obras<br />
16
dramáticas completas <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina, acreditamos ter alcançado resultado<br />
satisfatório, apesar das dificulda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>safios encontrados ao longo do Caminho.<br />
17
1. APÓSTOLO SANTIAGO<br />
Depois da Paixão <strong>de</strong> Nosso Salvador e do gloriosíssimo triunfo da sua<br />
Ressurreição; logo após a sua admirável Ascensão, quando subiu ao<br />
trono <strong>de</strong> seu Pai e do Espírito Paráclito; e em seguida à efusão das<br />
línguas <strong>de</strong> fogo sobre os apóstolos, os discípulos que Ele mesmo havia<br />
escolhido, iluminados com os raios da sabedoria e inspirados pela graça<br />
celestial, divulgaram através da sua prédica o nome <strong>de</strong> Cristo por todas<br />
as partes, povos e nações do mundo. (MALEVAL, 2005, p. 53).<br />
O nome Santiago, que faz menção a um dos doze apóstolos <strong>de</strong> Cristo,<br />
apresenta uma variação muito gran<strong>de</strong> nas diferentes línguas. Composto por dois<br />
vocábulos, Santo e Iago, o primeiro aludindo à sua condição <strong>de</strong> santo e o<br />
segundo, <strong>de</strong> procedência hebraica, Jacob ou Iacob, sofreu modificações ao longo<br />
da história e das diversas culturas.<br />
De Jacob em hebraico surge, no latim, Jacobus e seus <strong>de</strong>rivados Tiago e<br />
Jaime, Jakob em alemão e em outras línguas nórdicas, James, no inglês, e<br />
Jacques, no francês.<br />
Na Espanha existem diferenças substanciais. Jacomé, Jaume ou Jaime<br />
(formas correntes no catalão); na faixa oci<strong>de</strong>ntal da península ibérica tornou-se<br />
Iaco ou Iago. Assim, Santo Iago tornou-se Sant’Iago; <strong>de</strong>pois São Tiago e<br />
finalmente Santiago.<br />
Optaremos por usar sempre o nome Santiago, embora possa ser<br />
encontrado, no <strong>de</strong>correr do trabalho, com outras acepções usadas em citações.<br />
Foi esta a razão pela qual achamos pertinente trabalhar a etimologia do nome.<br />
“Chama-se Tiago, o Maior, assim como o outro é o Menor, por várias<br />
razões. Primeira, <strong>de</strong>vido à vocação, tendo sido o primeiro a ser chamado<br />
por Cristo. Segunda, <strong>de</strong>vido à familiarida<strong>de</strong>, já que Cristo teve mais<br />
intimida<strong>de</strong> com ele do que com o outro, permitindo que tivesse acesso a<br />
segredos como a ressurreição <strong>de</strong> uma menina e a gloriosa<br />
Transfiguração. Terceira, <strong>de</strong>vido ao martírio, no qual foi o primeiro dos<br />
apóstolos a morrer. E também po<strong>de</strong> ser chamado Maior porque antes do<br />
outro recebeu a graça do apostolado e a glória da<br />
eternida<strong>de</strong>”(VARAZZE, 2006, p. 561).<br />
Santiago foi o primeiro dos doze discípulos que <strong>de</strong>u sua vida por Cristo.<br />
Segundo os Evangelhos (Mt. 4, 21-22) era um pescador, oriundo <strong>de</strong> Betsaida Júlia<br />
(Jô. 1, 44), filho <strong>de</strong> Salomé (Mt. 27, 56) e Zebe<strong>de</strong>u (Mt. 10, 2; Mc. 3, 17) e irmão<br />
<strong>de</strong> João, conhecido como o Evangelista. Em diversas passagens dos Evangelhos<br />
18
Tiago figura acompanhado <strong>de</strong> Jesus, como no episodio da cura da sogra <strong>de</strong> Pedro<br />
(Mc. 1, 29-31), na ressurreição da filha <strong>de</strong> Jairo (Mc. 5, 35-43; Lc. 8, 51), na<br />
transfiguração (Mt. 17, 1-8; Mc 9, 2-8; Lc. 9, 28) e no Getsêmani (Mt. 26, 36-46;<br />
Mc. 14, 33).<br />
Por volta dos anos 40 até 44 d.C., Santiago predicou e evangelizou a<br />
Galícia segundo consta no livro Maravilhas <strong>de</strong> São Tiago <strong>de</strong> Maria do Amparo<br />
Tavares Maleval: “Ele, enquanto os <strong>de</strong>mais foram a outras partes do mundo,<br />
levado às costas <strong>de</strong> Espanha por vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, pregando ensinou a divina<br />
palavra às gentes que ali viviam e tinham por pátria essa região” (MALEVAL,<br />
2005, p. 53). Depois retornou a Jerusalém, on<strong>de</strong> o rei He ro<strong>de</strong>s Agripa I mandou<br />
matá-lo, conforme se encontra na Bíblia, nos Atos dos Apóstolos (12: 1-3): “E<br />
neste mesmo tempo enviou o rei Hero<strong>de</strong>s tropas para maltratar a alguns da Igreja.<br />
E matou, à espada, a Tiago, irmão <strong>de</strong> João [...]”.<br />
A <strong>de</strong>capitação aconteceu no dia 25 <strong>de</strong> março. Após isso as autorida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>cidiram que seu corpo <strong>de</strong>via ser jogado nos limites da cida<strong>de</strong> para ser <strong>de</strong>vorado<br />
pelas feras. Seus discípulos, Atanásio e Teodoro, não quiseram este final para<br />
seus restos mortais, <strong>de</strong>cidiram roubar o corpo e trasladá-lo, ao lugar on<strong>de</strong> tinha<br />
pregado o Evangelho. O que ocorre <strong>de</strong> forma milagrosa:<br />
Seus discípulos se apo<strong>de</strong>ram do corpo furtivamente, e o levam pelo mar,<br />
em embarcação que encontram provi<strong>de</strong>ncialmente preparada, até ao<br />
porto galego <strong>de</strong> Iria, que alcançam em sete dias, afastados por Deus <strong>de</strong><br />
todos os perigos [...](MALEVAL, 2005, p. 24).<br />
Assim, transportaram o corpo até o noroeste galego, <strong>de</strong>sembarcando em<br />
Iria Flavia 2 , na Galícia. Os discípulos amarraram a barca num marco <strong>de</strong> pedra<br />
chamado Pedrón que origina o nome da cida<strong>de</strong>, Padrón 3 , trasladaram seu corpo<br />
terra a<strong>de</strong>ntro e o sepultaram. Após suas mortes, os corpos dos discípulos<br />
passaram a compartilhar o sepulcro com o do Apóstolo.<br />
Segundo o canônico Antonio López Ferreiro, em seus estudos sobre a<br />
Santa Apostólica Metropolitana Iglesia <strong>de</strong> Santiago, a tradição <strong>de</strong>screve o traslado<br />
do corpo e sua chegada ao porto <strong>de</strong> Iria da seguinte forma:<br />
2 Nome com que era conhecida, na Ida<strong>de</strong> Média, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Padrón, na Galícia.<br />
3 Município da Espanha na província <strong>de</strong> La Coruña, região <strong>de</strong> Galícia.<br />
19
Los discípulos saltaron en tierra y amarraron la barca á uno <strong>de</strong> los postes<br />
que había á la orilla y que aún hoy se conserva. Luego sacaron <strong>de</strong> la<br />
nave el Santo Cuerpo, que <strong>de</strong> repente apareció ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> refulgente<br />
luz, y lo colocaron sobre una peña que estaba allí próxima y que se<br />
ablandó y ahuecó para recibir el sagrado <strong>de</strong>pósito. Seguramente que los<br />
discípulos no necesitaron más indicio para cerciorarse <strong>de</strong> que aquella<br />
región era la <strong>de</strong>stinada á guardar los sagrados Restos <strong>de</strong> Santiago.”<br />
(FERREIRO, 1898, p. 140).<br />
A partir <strong>de</strong>sse momento e até o século IX, momento em que se <strong>de</strong>scobre o<br />
túmulo, a tradição sobre a pregação <strong>de</strong> Santiago na Espanha contará com a força<br />
da tradição oral e do amparo <strong>de</strong> alguns textos veneráveis.<br />
20
1.1 MITO E CULTO A SANTIAGO APÓSTOLO<br />
O mito é o nada que é tudo<br />
Fernando Pessoa<br />
O poema que reproduzimos a continuação, intitulado Ulisses, forma parte<br />
do livro Mensagem do poeta e escritor português Fernando Pessoa (1888-1935).<br />
O mytho é o nada que é tudo.<br />
O mesmo sol que abre os céus<br />
É um mytho brilhante e mudo -<br />
O corpo morto <strong>de</strong> Deus,<br />
Vivo e <strong>de</strong>snudo.<br />
Este, que aqui aportou,<br />
Foi por não ser existindo.<br />
Sem existir nos bastou.<br />
Por não ter vindo foi vindo<br />
E nos creou.<br />
Assim a lenda se escorre<br />
A entrar na realida<strong>de</strong>.<br />
E a fecundal-a <strong>de</strong>corre.<br />
Em baixo, a vida, meta<strong>de</strong><br />
De nada, morre.<br />
Neste poema Fernando Pessoa expressa a abrangência do fenômeno mito,<br />
<strong>de</strong>rivado da palavra grega mythos que significa fala, narração, concepção. O mito<br />
é narrativa tradicional, popular. É a história sagrada do que se passou em tempos<br />
remotos, a narração daquilo que os <strong>de</strong>uses ou os seres divinos fizeram no começo<br />
dos tempos. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois<br />
os personagens do mito não são seres humanos: são <strong>de</strong>uses ou heróis<br />
civilizadores. Por esta razão seus feitos constituem mistérios: o homem não<br />
po<strong>de</strong>ria conhecê-los se não lhe fossem revelados.<br />
Uma vez revelado, o mito torna-se verda<strong>de</strong> absoluta. Proclama a aparição<br />
<strong>de</strong> uma nova “situação” cósmica ou <strong>de</strong> um acontecimento primordial. Portanto, é<br />
sempre a narração <strong>de</strong> uma “criação”: conta-se como <strong>de</strong>terminada coisa foi<br />
efetuada, como começou a ser.<br />
21
Quando o mito fala das realida<strong>de</strong>s, do que aconteceu realmente, refere-se a<br />
realida<strong>de</strong>s sagradas, pois o sagrado é o real por excelência. Portanto, cada mito<br />
mostra como uma realida<strong>de</strong> veio à existência.<br />
Com a expansão do Cristianismo, na Ida<strong>de</strong> Média, começam a ser<br />
difundidos e consolidados os centros <strong>de</strong> veneração aos santos, embora o culto a<br />
eles tenha se iniciado na Igreja Antiga. Pouco a pouco, com o reconhecimento<br />
oficial <strong>de</strong> Santiago, se <strong>de</strong>senvolve uma série <strong>de</strong> textos hagiográficos, principais<br />
documentos para reconstruir o fenômeno.<br />
O mito <strong>de</strong> Santiago apóstolo contou, no seu começo, com o apoio <strong>de</strong> uma<br />
série <strong>de</strong> textos que iniciam a tradição escrita sobre sua pregação e posterior<br />
sepultamento na Galícia. Estes textos, que citaremos no <strong>de</strong>correr da pesquisa,<br />
recolhiam a tradição oral que existia sobre o tema.<br />
As notícias mais antigas, relativas à pregação jacobéia nos limites do<br />
Oci<strong>de</strong>nte, faziam parte da cultura oral da cristanda<strong>de</strong> hispânica, durante os<br />
primeiros séculos da nossa Era e foram sendo adotadas pelos <strong>de</strong>mais povos<br />
peninsulares, na medida em que <strong>de</strong>clinavam as <strong>de</strong>voções pagãs e a religião cristã<br />
se fortalecia.<br />
A partir da segunda meta<strong>de</strong> do século V, um texto chamado Passio Sancti<br />
Iacobi (SINGUL, 1999, p. 22) espalha-se pela Europa oci<strong>de</strong>ntal. Era a difusão<br />
oficial da igreja latina sobre o martírio <strong>de</strong> Santiago, mas não fazia referência a sua<br />
pregação na região da península Ibérica. O relato <strong>de</strong>screve a paixão e morte do<br />
Apóstolo e utiliza, como base, os textos bíblicos sobre o martírio (Atos, 12: 2).<br />
O Breviarium Apostolorum (SINGUL, 1999, p. 26) é outra obra, composta<br />
em finais do século VI, que contém uma série <strong>de</strong> notícias biográficas sobre os<br />
apóstolos, suas pregações e localizações das sepulturas. Neste texto registra-se a<br />
chegada <strong>de</strong> Santiago na península Ibérica, sua pregação na parte oci<strong>de</strong>ntal da<br />
Espanha e o sepultamento em um lugar chamado Achaia Marmorica, e que López<br />
Ferreiro i<strong>de</strong>ntifica como Arcis Marmoricis (arcos marmóreos):<br />
[...] Arca marmórica, que tomó el sitio en que se hallaba el mausoleo <strong>de</strong><br />
Santiago. Este nombre, al ser transcrito en diversas épocas y en diversos<br />
idiomas, se alteró y <strong>de</strong>sfiguró, como otros muchos, <strong>de</strong> mil maneras, [...]<br />
22
en plural Arcis marmoricis [...] Marmórica arce [...] marmorice arcis [...]<br />
Arce marmorica [...] (FERREIRO, 1898, p. 168-169).<br />
Segundo o historiador compostelano Francisco Singul dois fatores<br />
relacionados com o Breviarium influíram para promover a tradição jacobéia e a<br />
universalização do culto ao Apóstolo, dois séculos antes da <strong>de</strong>scoberta do<br />
sepulcro na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compostela. Primeiro foi a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fontes usadas na<br />
elaboração do Breviarium Apostolorum, e segundo, a rápida difusão que ele teve<br />
no espaço europeu oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Na obra De Ortu et Obitu Patrum (Do nascimento e morte dos Padres,<br />
SINGUL, 1999, p. 28), do teólogo e matemático Santo Isidoro <strong>de</strong> Sevilha (560-<br />
636), consi<strong>de</strong>rado um dos primeiros e gran<strong>de</strong>s compiladores medievais, o autor<br />
compõe um manual que recolhe os principais traços biográficos dos personagens<br />
mais importantes da Sagrada Escritura. No capítulo 71 o autor se refere a<br />
Santiago e a sua pregação como cita Singul: “[...] assegura que São Tiago<br />
Hispaniae et occi<strong>de</strong>ntalium locorum Evangelicum praedicavit – ‘dos lugares<br />
oci<strong>de</strong>ntais, na Hispania pregou o Evangelho’ [...]”. (DÍAZ Y DÍAZ 4 , 1997 apud<br />
SINGUL, 1999, p. 28).<br />
Entre os séculos VII e VIII, dois eclesiásticos, o inglês Beda (672?-735),<br />
também chamado o Venerável, monge anglo-saxão do mosteiro <strong>de</strong> Jarrow que se<br />
tornou famoso pela sua obra História Eclesiástica do Povo Inglês, e um monge<br />
asturiano, Beato <strong>de</strong> Liébana (?-798), do Mosteiro <strong>de</strong> São Martinho <strong>de</strong> Turieno<br />
(atual Mosteiro <strong>de</strong> Santo Toríbio <strong>de</strong> Liébana, em Cantábria), <strong>de</strong>ixaram textos sobre<br />
a pregação <strong>de</strong> Santiago na Península. Beda será o primeiro a fazer referência ao<br />
traslado do corpo do Apóstolo para a península Ibérica e o lugar do sepulcro,<br />
quando em uma <strong>de</strong> suas obras, Homilia XCII, (SINGUL, 1999, p. 31) sobre São<br />
João Evangelista, <strong>de</strong>screve que o corpo <strong>de</strong> Santiago, após seu martírio na<br />
Palestina, fora trasladado para a península Ibérica: “Iste est frater beati Jacobi<br />
cuius in Hispania corpus requiescit – ‘Este (São João Evangelista) é o irmão do<br />
4 Díaz y Díaz, M. C. Die spanische Jakobus -Legen<strong>de</strong> bei Isidor von Sevilla. Historisches Jahrbuch,<br />
n. 77 (1958), p. 467-472. Versão em castelhano: La leyenda hispana <strong>de</strong> Santiago en Isidoro <strong>de</strong><br />
Sevilla. De Santiago y <strong>de</strong> los Caminos <strong>de</strong> Santiago: Xunta <strong>de</strong> Galicia, 1997, p. 85-96.<br />
23
em-aventurado São Tiago, do qual o corpo <strong>de</strong>scansa em Hispania’ ” (MIGNE<br />
apud SINGUL, 1999, p. 31).<br />
E completa a informação quando explica que a sepultura apostólica<br />
encontra-se nos confins hispânicos, cem anos antes <strong>de</strong> que a mesma fosse<br />
<strong>de</strong>scoberta:<br />
Huius beatissimi sacra ossa ab Hispani translata sunt, et in ultimis earum<br />
finibus, vi<strong>de</strong>licet, contra mare britanicum condita – ‘Os sagrados restos<br />
mortais <strong>de</strong>ste bem -aventurado foram trasladados <strong>de</strong> lugar na Hispania e<br />
escondidos nos seus últimos limites frente ao mar britânico’ (MIGNE apud<br />
SINGUL, 1999, p. 31).<br />
Mas ainda faltariam uns cinquenta anos para o <strong>de</strong>scobrimento do sepulcro<br />
<strong>de</strong> Santiago, quando Beato <strong>de</strong> Liébana escreve sobre a pregação do santo em<br />
terras hispânicas, a tradição jacobéia e o sepulcro apostólico em duas ocasiões:<br />
no Comentário ao Apocalipse, que é uma re-interpretação da tradição paleocristã<br />
sobre o livro do Apocalipse <strong>de</strong> São João e no primeiro hino litúrgico <strong>de</strong>dicado a<br />
Santiago, chamado O Dei Verbum, obra composta pelo Beato no ano 785.<br />
É pela intervenção <strong>de</strong> Beato que surge na corte <strong>de</strong> Oviedo e no reino <strong>de</strong><br />
Astúrias o culto ao Apóstolo e com isso se reforça a crença tradicional da<br />
evangelização jacobéia na península Ibérica. Como <strong>de</strong>monstra o historiador Singul<br />
o culto ao Apóstolo se esten<strong>de</strong> além dos Pirineus<br />
A notícia da evangelização da Hispania por São Tiago, que aparece no<br />
Comentário ao Apocalipse do Beato, não ficou só nos estreitos limites do<br />
Reino <strong>de</strong> Astúrias. A abundância <strong>de</strong> cópias <strong>de</strong>sta obra do Beato,<br />
distribuída pela Europa durante os séculos XI-XII, projetou o culto a São<br />
Tiago para além dos Pirineus, difundindo pelo Oci<strong>de</strong>nte, como já o fizera<br />
o Breviarium Apostolorum alguns séculos antes, a notícia da pregação <strong>de</strong><br />
São Tiago na Península Ibérica (SINGUL, 1999, p. 34).<br />
A paulatina elaboração do mito <strong>de</strong> Santiago e como consequência a<br />
estruturação dos interesses políticos e religiosos que o mantinham, também não<br />
teria sido possível sem o apoio dos monges <strong>de</strong> Cluny, or<strong>de</strong>m criada em 910 por<br />
Guilherme I, duque <strong>de</strong> Aquitania. A or<strong>de</strong>m movimentou pessoas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> St-Martin<br />
<strong>de</strong> Tours, Ste-Ma<strong>de</strong>leine <strong>de</strong> Vézelay, Cluny, cida<strong>de</strong>s que hoje fazem parte dos<br />
caminhos que levam a Compostela. Le Puy-em-Vélay, pelos caminhos <strong>de</strong> Orthez,<br />
24
Pamplona, Burgos e Leão até Compostela, que se transformava em cida<strong>de</strong><br />
sagrada.<br />
A Historia Compostelana 5 , crônica do século XII composta em várias<br />
etapas, entre 1107 e 1149, por diversos autores próximos ao prelado, composta<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito manuscritos organizados em três livros contém dados sobre a igreja <strong>de</strong><br />
Santiago <strong>de</strong> Compostela e o sepulcro do Apóstolo, o qual consta que foi<br />
encontrado, afinal, em princípios do século IX, no bosque chamado Libredón,<br />
próximo a Compostela na região <strong>de</strong>nominada, naquela época, Iria Flávia, o lugar<br />
mais oci<strong>de</strong>ntal e periférico do que era então o Reino <strong>de</strong> Astúrias. A data do<br />
acontecimento não está clara: ocorreu entre os anos 820 e 830. A tradição<br />
jacobina do milagroso <strong>de</strong>scobrimento da tumba <strong>de</strong> Santiago está registrada em<br />
vários textos medievais que Singul cita:<br />
Estas fontes escritas são os Martirológios <strong>de</strong> Floro <strong>de</strong> Lyon (cerca <strong>de</strong><br />
860-840) e <strong>de</strong> Adão <strong>de</strong> Lyon (cerca <strong>de</strong> 860) [...] Na difusão do<br />
<strong>de</strong>scobrimento pelo Oci<strong>de</strong>nte intervêm os dois autores citados, ao<br />
recolherem e copiarem o que já dissera o Martirológio <strong>de</strong> Beda [...]<br />
(SINGUL, 1999, p. 35).<br />
O fato do <strong>de</strong>scobrimento do sepulcro, também chamado Revelatio, faz o<br />
relato da visão que tem um ermitão <strong>de</strong> nome Paio (ou Pelágio), <strong>de</strong> umas luzes<br />
misteriosas, uma chuva <strong>de</strong> estrelas, que apareciam sobre o bosque. Aquele<br />
surpreen<strong>de</strong>nte fenômeno aconteceu durante várias noites e foi interpretado pelo<br />
eremita como um milagre do Céu, sobre o qual falou com o bispo Teodomiro, da<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Iria Flavia. Este se internou no bosque e achou, na <strong>de</strong>nsa vegetação,<br />
um sepulcro <strong>de</strong> pedra no qual repousavam três corpos, i<strong>de</strong>ntificados como os do<br />
apóstolo Santiago e os seus discípulos Teodoro e Atanásio. A Afonso II <strong>de</strong><br />
Astúrias interessava explorar politicamente o fato <strong>de</strong> que a tumba <strong>de</strong> Santiago<br />
estivesse localizada <strong>de</strong>ntro dos limites do seu reino, porque reforçava a sua<br />
imagem e o papel do seu reino <strong>de</strong>ntro da Cristanda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal. Manda erguer<br />
uma igreja provisória, mas as obras só começam com seu sucessor, Afonso III, no<br />
5 Obra também conhecida como Registrum Venerabilis Compostellanae Ecclesiae Pontificis Didaci<br />
Secundi. Foi redigida por or<strong>de</strong>m do bispo Diego Gelmírez, com o objetivo <strong>de</strong> registrar toda sua<br />
ativida<strong>de</strong> episcopal.<br />
25
ano 872, consagrada em 899, com a presença <strong>de</strong> <strong>de</strong>zessete bispos, e <strong>de</strong>rrubada<br />
no ano 1112.<br />
Anos antes, em 1075, começa-se a arquitetar a atual catedral românica,<br />
sob impulso do bispo <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong> Compostela no século XI, Diego Páez, e o<br />
rei Afonso IV <strong>de</strong> Castela e Leão. As obras finalizam durante o episcopado <strong>de</strong><br />
Diego Gelmírez 6 , arcebispo <strong>de</strong> Santiago em 1102.<br />
Mas foi com o reinado <strong>de</strong> Afonso II <strong>de</strong> Astúrias que se conseguirá esten<strong>de</strong>r<br />
o patronato <strong>de</strong> Santiago por toda a região que hoje é Espanha, pois até então tal<br />
patronato era só no reino <strong>de</strong> Astúrias.<br />
Todo aquele lugar foi chamado Campus Stellae (<strong>de</strong> cujas palavras po<strong>de</strong>ria<br />
<strong>de</strong>rivar o nome <strong>de</strong> Compostela), por conta dos fulgores ou estrelas que tinha<br />
atraído a atenção das pessoas. Estamos diante do que Mircea Elia<strong>de</strong>, filósofo e<br />
romancista romeno, historiador das religiões, chamou <strong>de</strong> hierofanías celestes 7 . Ele<br />
usou o termo para se referir a uma tomada <strong>de</strong> consciência da existência do<br />
sagrado quando este se manifesta através dos objetos <strong>de</strong> nosso cosmos habitual,<br />
como algo completamente oposto ao mundo profano. A hierofanía celeste seria,<br />
por exemplo, a presença <strong>de</strong> um astro sobre o túmulo do Apóstolo. Também a<br />
existência <strong>de</strong> milagres no lugar sagrado.<br />
Mas Compostela tem também outro significado etimológico: proce<strong>de</strong>ria <strong>de</strong><br />
Compostum (cemitério), por encontraram-se ali os restos do Apóstolo.<br />
As notícias referentes ao <strong>de</strong>scobrimento do túmulo do apóstolo Santiago, a<br />
construção dos templos sobre o lugar do sepultamento e a transformação da<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compostela em pólo religioso da Europa cristã <strong>de</strong>vido às peregrinações,<br />
são alguns dos fatores que <strong>de</strong>monstram as proporções que atinge o mito e culto<br />
ao apóstolo Santiago.<br />
6 Desconhece-se a data <strong>de</strong> seu nascimento, assim como também o lugar. Alguns autores fazem<br />
referência aos anos 1068-1070 e às cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Torres <strong>de</strong>l Oeste ou Santiago <strong>de</strong> Compostela,<br />
on<strong>de</strong> falece no ano 1140.<br />
7 Hierofanías celestes – O termo hierofanía provém do grego hieros- sagrado e faneia – manifestar.<br />
É a manifestação do sagrado. Esta palavra foi acunhada por Mircea Elia<strong>de</strong> em sua obra Tratado <strong>de</strong><br />
História das Religiões.<br />
26
1.2. As lendas em torno a Santiago<br />
Um dos materiais literários <strong>de</strong> maior interesse relacionado com o Caminho<br />
<strong>de</strong> Santiago são as lendas. Não existe ponto vinculado ao itinerário jacobino, com<br />
alguma importância, que não possua seu próprio conteúdo lendário.<br />
As lendas que fazem referência ao Caminho po<strong>de</strong>m-se enquadrar em:<br />
religiosas e hagiográficas, pois possuem como protagonistas o Apóstolo, a Virgem<br />
ou algum outro santo com templo ou basílica no Caminho; topográficas, pois dão<br />
explicação narrativa e anedótica sobre o nome <strong>de</strong> algum enclave do itinerário<br />
jacobino; novelescas, que plasmam um assunto <strong>de</strong> pura invenção; históricas<br />
relacionando muitas vezes as lutas entre mouros e cristãos ou heróicas e <strong>de</strong><br />
cavalaria, que confluem com os assuntos dos cantares épicos.<br />
O filólogo espanhol Juan Atienza expressa:<br />
Com referência às lendas jacobéias, tem-se insistido em que vêm a ser<br />
como a ilustração que acompanha a letra e a música do Caminho. E<br />
assim fica praticamente impossível não encontrar um só lugar que não<br />
tenha a sua lenda e que a <strong>de</strong>fina e a justifique (ATIENZA, 2002, p. 10-<br />
11).<br />
Por essa razão achamos pertinente colocar aqui algumas das lendas<br />
relacionadas com a figura do Apóstolo ou à peregrinação compostelana.<br />
Vieira jacobéia<br />
1.2.1. A concha como símbolo peregrino - A lenda da origem da<br />
Existia, e alguns são usados até hoje, um conjunto <strong>de</strong> equipamentos,<br />
indumentária e distintivos, com que se podia i<strong>de</strong>ntificar um peregrino <strong>de</strong> qualquer<br />
outro tipo <strong>de</strong> caminhante. Ou sejam: o manto (pequena capa que cobre os<br />
ombros, com algumas vieiras costuradas), bolsa <strong>de</strong> viagem <strong>de</strong> couro (muitas<br />
vezes também enfeitada com a concha <strong>de</strong> vieira), chapéu <strong>de</strong> aba larga (protegia<br />
do sol e da chuva), um bastão ou bordão e atada a ele uma cabaça para vinho ou<br />
água.<br />
27
O símbolo jacobino que trabalharemos será a vieira, pois como vimos ela<br />
aparecia costurada na roupa ou enfeitando bolsas <strong>de</strong> viagem, chapéus e muitas<br />
vezes penduradas no próprio bordão. A sua importância também recaia em servir<br />
como utensílio para comer, fazendo a vez <strong>de</strong> colher, ou beber.<br />
Este marisco, muito presente nas costas galegas, rapidamente passou a<br />
formar parte dos objetos e elementos característicos <strong>de</strong> todo peregrino que fazia o<br />
percurso até Santiago <strong>de</strong> Compostela:<br />
La concha se convirtió muy pronto en la insignia <strong>de</strong>l peregrino<br />
compostelano; pero no una concha cualquiera, sino la que los<br />
naturalistas han <strong>de</strong>signado con este motivo pecten jacobeus , muy<br />
abundante en los mares <strong>de</strong> Galicia, en don<strong>de</strong> conserva el nombre <strong>de</strong><br />
vieira, <strong>de</strong>scendiente <strong>de</strong>l latino veneria, atestiguado en Plinio, y <strong>de</strong>l que<br />
proce<strong>de</strong> también la española venera”. (VÁZQUEZ DE PARGA,<br />
LACARRA, URÍA, 1992, p. 41 -42).<br />
Também formava parte das representações do Apóstolo como peregrino,<br />
como se po<strong>de</strong> apreciar por exemplo, na igreja <strong>de</strong> Santa Marta <strong>de</strong> Terá, em<br />
Zamora, on<strong>de</strong> se encontra uma escultura <strong>de</strong> Santiago Peregrino (ver Figura 1 na<br />
página 27) com uma concha em sua bolsa <strong>de</strong> couro ou no pórtico meridional <strong>de</strong><br />
Chartres numa imagem também <strong>de</strong> Santiago Peregrino.<br />
No sermão Veneranda dies, que faz parte do Líber Sancti Jacobi 8 , on<strong>de</strong> se<br />
faz alusão aos peregrinos que retornam da sua romaria, é a primeira vez que a<br />
concha aparece, citada como símbolo jacobeu:<br />
... os peregrinos que vão a Jerusalém levam palmas – símbolo <strong>de</strong> triunfo,<br />
como as que ostentavam as pessoas que receberam Jesus na sua<br />
entrada na cida<strong>de</strong> santa -, e os peregrinos que vão a Compostela levam<br />
vieiras cosidas nas roupas, como símbolo das boas obras, para honrar a<br />
São Tiago [...] (SINGUL, 1999, p. 60).<br />
E no Liber Sancti Jacobi encontramos a seguinte explicação:<br />
Hay unos mariscos en el mar próximo a Santiago, a los que el vulgo llama<br />
vieiras, que tienen dos corazas, una por cada lado, entre las cuales,<br />
como entre dos tejuelas, se oculta el molusco parecido a una ostra.<br />
Tales conchas están labradas como los <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> la mano y las llaman<br />
los provenzales nidulas y los franceses crusillas, y al regresar los<br />
8 Importantíssimo documento histórico, literário, litúrgico e musical do último terço do século XII.<br />
Escrito em latim dividi -se em cinco partes, ou Livros, e um Apêndice, com conteúdos referentes ao<br />
culto a Santiago e à peregrinação compostelana.<br />
28
peregrinos <strong>de</strong>l santuario <strong>de</strong> Santiago las pren<strong>de</strong>n en las capas para la<br />
gloria <strong>de</strong>l Apóstol, y en recuerdo <strong>de</strong> él y señal <strong>de</strong> tan largo viaje, las traen<br />
a su morada con gran regocijo. La especie <strong>de</strong> corazas con que el marisco<br />
se <strong>de</strong>fien<strong>de</strong>, significan los preceptos <strong>de</strong> la caridad, con que quien<br />
<strong>de</strong>bidamente los lleva <strong>de</strong>be <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rse, esto es: amar a Dios sobre todas<br />
las cosas y al prójimo como a sí mismo (LIBER SANCTI JACOBI, 2004,<br />
p.197).<br />
Encontramos também outras referências à concha, o que ajudaria na sua<br />
evolução <strong>de</strong> tornar-se um símbolo jacobeu. Uma é a <strong>de</strong>scrição da barca que<br />
transportava o corpo do Apóstolo, on<strong>de</strong> existe a lenda que, ao momento <strong>de</strong> sua<br />
chegada em terra, estaria coberta <strong>de</strong> conchas. Segundo outra versão, como a<br />
barca não conseguia atracar, dois homens teriam auxiliado entrando na água e<br />
puxando a embarcação, e ao momento <strong>de</strong> saírem se encontrariam inteiramente<br />
cobertos <strong>de</strong> conchas.<br />
Juan G. Atienza em seu livro Lendas do Caminho <strong>de</strong> Santiago – A rota<br />
através <strong>de</strong> ritos e mitos, <strong>de</strong>screve uma interessante lenda sobre a origem da vieira<br />
jacobéia que achamos pertinente, dada à extensão do texto, colocar nos anexos.<br />
Sem <strong>de</strong>saparecer o costume dos peregrinos levarem as conchas naturais<br />
costuradas na roupa, ou penduradas em seus acessórios, no século XII<br />
começaram a ser fabricadas conchas <strong>de</strong> metal, chumbo e estanho que eram<br />
vendidas em pequenos armazéns ou por meio <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dores ambulantes,<br />
chamados concheiros.<br />
29
1.2.2. Outras lendas<br />
Dentre as lendas em torno da figura <strong>de</strong> Santiago encontramos a intitulada A<br />
batalha <strong>de</strong> Clavijo que apresenta a figura <strong>de</strong> um Santiago heróico, também<br />
chamado <strong>de</strong> Matamouros, quando o mostra ao intervir como cavaleiro nas lutas da<br />
religião, no contexto da chamada Reconquista. No povoado <strong>de</strong> Clavijo, em La<br />
Rioja, se produz a epopéia semi-lendária <strong>de</strong> uma batalha entre mouros e cristãos.<br />
Nela aparece o Apóstolo sobre um cavalo branco que luta contra os mouros,<br />
dando o triunfo às forças cristãs e eliminando o tributo das cem donzelas.<br />
Informações e referências históricas <strong>de</strong>sta batalha e do tributo ou pacto citaremos<br />
no último capítulo na análise da obra dramática, já que em alguns versos se faz<br />
alusão a estes acontecimentos. Esta lenda e outra intitulada Uma celestial chuva<br />
<strong>de</strong> estrelas, que faz referência à <strong>de</strong>scoberta do sepulcro do Apóstolo, e que foi<br />
explicada anteriormente, também po<strong>de</strong>m ser lidas nos anexos.<br />
Em diversos livros muitas outras lendas serão encontradas fazendo<br />
referência aos diferentes enclaves do Caminho <strong>de</strong> Santiago, sejam elas históricas,<br />
hagiográficas, topográficas, novelescas, heróicas ou <strong>de</strong> cavalaria e cumpram elas<br />
as diferentes funções <strong>de</strong> propaganda política, <strong>de</strong>voção, religiosida<strong>de</strong> popular,<br />
exaltação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> cavalaria ou <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong> humana, explicação <strong>de</strong><br />
topônimos etc. É certo que estas e outras lendas contribuem para formar o<br />
imaginário coletivo que se foi construindo em torno do Caminho <strong>de</strong> Santiago e que<br />
o configuram como um fato vivo que se projeta para o futuro.<br />
31
1.3. A peregrinação compostelana no <strong>de</strong>correr dos séculos<br />
Des<strong>de</strong> o século IX, data do <strong>de</strong>scobrimento do sepulcro, o apóstolo Santiago<br />
tem sido um dos protagonistas da história da Igreja, tanto na península Ibérica<br />
como no restante da Europa. Em um primeiro momento, o Caminho <strong>de</strong> Santiago<br />
surge como uma peregrinação “suplente”, <strong>de</strong>vido às dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> peregrinar a<br />
Roma, pois no século IX, após a morte <strong>de</strong> Carlo Magno, o Império carolíngio per<strong>de</strong><br />
a força e a cida<strong>de</strong> apresenta uma inquietação social provocada pelo<br />
<strong>de</strong>smembramento do Império.<br />
Dentro da península Ibérica em 722 ocorre a primeira gran<strong>de</strong> vitória do<br />
povo cristão contra os mouros, na Batalha <strong>de</strong> Covadonga. Cerca <strong>de</strong> 740, seguiu-<br />
se uma prolongada guerra civil on<strong>de</strong> as terras do norte da Península ficaram livres<br />
dos invasores. Afonso II das Astúrias (759/760-842), também conhecido como o<br />
Casto, em 825 vence também os muçulmanos no rio Nalón, fixa a capital do reino<br />
em Oviedo e afirma sua presença na Galiza, Leão e Castela, repovoando-as. A<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compostela pouco a pouco apresenta uma realida<strong>de</strong> totalmente<br />
diferente: a <strong>de</strong> um lugar santo nos confins do Oci<strong>de</strong>nte que conseguiu, numa luta<br />
<strong>de</strong>sigual contra o Islã andaluz, conter as forças muçulmanas e impedir seu avanço<br />
no resto da Península.<br />
Os primeiros peregrinos a chegar a Santiago pertenciam à corte asturiana:<br />
“[...] e o próprio rei Afonso II, o Casto, chamados pelo bispo Teodomiro <strong>de</strong> Iria para<br />
que pu<strong>de</strong>ssem constatar o achado da Tumba apostólica” (SINGUL, 1999, p. 54).<br />
Ligada ao fenômeno da peregrinação, pouco a pouco, Compostela começa<br />
a renascer como cida<strong>de</strong>. Cresce o pequeno burgo a partir da chegada <strong>de</strong> pessoas<br />
do país e <strong>de</strong> fora:<br />
Em 872, visitou Santiago <strong>de</strong> Compostela o rei Alfonso III, o Magno; dois<br />
anos mais tar<strong>de</strong>, em 874, seriam o monarca Alfonso III e a rainha Dona<br />
Gimena [...] E voltariam <strong>de</strong> novo os monarcas para a consagração da<br />
segunda basílica jacobéia (Compostela II) em 899. (SINGUL, 1999, p.<br />
54).<br />
Do século X se tem as primeiras notícias <strong>de</strong> peregrinos estrangeiros. É o<br />
monge Gómez do mosteiro <strong>de</strong> Albelda (La Rioja) quem dá testemunho do<br />
32
numeroso grupo que acompanhava o bispo Gotescalco na sua peregrinação a<br />
Santiago:<br />
Yo, Gómez, aunque indigno perteneciente al or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> los presbíteros,<br />
haciendo vida regular en las fronteras <strong>de</strong> Pamplona, en el monasterio<br />
albel<strong>de</strong>nse, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l recinto sagrado que guarda las reliquias <strong>de</strong>l santo<br />
y beatísimo Martín, obispo, bajo el régimen <strong>de</strong>l benéfico abad Dulcidio,<br />
entre los ejércitos <strong>de</strong> siervos <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> casi doscientos monjes,<br />
forzado por el obispo Gotescalco, que por motivo <strong>de</strong> oración, saliendo <strong>de</strong><br />
la región <strong>de</strong> Aquitania, con una gran <strong>de</strong>voción y acompañado <strong>de</strong> una gran<br />
comitiva, se dirigía apresurado a los confines <strong>de</strong> Galicia, para implorar<br />
humil<strong>de</strong>mente la misericordia <strong>de</strong> Dios y el sufragio <strong>de</strong>l apóstol Santiago,<br />
escribí <strong>de</strong> buen ánimo el pequeño libro publicado hace tiempo por San<br />
Il<strong>de</strong>fonso, obispo <strong>de</strong> la se<strong>de</strong> toledana, en el que se contiene la alabanza<br />
<strong>de</strong> la virginidad <strong>de</strong> Santa María siempre virgen y madre <strong>de</strong> Jesucristo<br />
Nuestro Señor [...] Llevó este libro el santísimo obispo Gotescalco <strong>de</strong><br />
España a Aquitania en el tiempo <strong>de</strong> invierno, precisamente en el mes <strong>de</strong><br />
enero, corriendo felizmente la era D CCCC LXXXVIIII. (VÁZQUEZ DE<br />
PARGA, LACARRA, URÍA, 1992, p. 41-42).<br />
Também pouco <strong>de</strong>pois, em 959, aparece em Compostela o aba<strong>de</strong> Cesário<br />
do mosteiro catalão <strong>de</strong> Santa Cecília <strong>de</strong> Monserrat, com a intenção <strong>de</strong> obter ajuda<br />
da autorida<strong>de</strong> apostólica da Igreja <strong>de</strong> Santiago:<br />
Los obispos catalanes <strong>de</strong>pendían entonces <strong>de</strong>l arzobispado <strong>de</strong> Narbona,<br />
y él llegaba con la pretensión <strong>de</strong> que la autoridad apostólica <strong>de</strong> la iglesia<br />
<strong>de</strong> Santiago restaurara a su favor, <strong>de</strong> acuerdo con la antigua disciplina<br />
conciliar, la dignidad metropolitana <strong>de</strong> Tarragona. (VÁZQUEZ DE<br />
PARGA, LACARRA, URÍA, 1992, p. 42-43).<br />
Os peregrinos ingleses e alemães também se fazem presentes, como<br />
observamos a seguir:<br />
El primer registro <strong>de</strong> peregrinación alemana lo tenemos en el año 1072,<br />
cuando Sigfrido I, arzobispo <strong>de</strong> Maguncia, cansado <strong>de</strong>l peso <strong>de</strong> la mitra<br />
renunció a su cargo y peregrinó a Compostela [...] Ansgot <strong>de</strong> Burwell fue<br />
por su parte el primer peregrino inglés constatado que visitó Compostela,<br />
al conservarse dos cartas suyas al obispo Robert <strong>de</strong> Lincoln y al Cabildo<br />
<strong>de</strong> la catedral <strong>de</strong> Santa María, don<strong>de</strong> les manifiesta su intención <strong>de</strong><br />
fundar en Burwell un priorato <strong>de</strong>pendiente <strong>de</strong> la abadía <strong>de</strong> Sauve Najeure<br />
(Bur<strong>de</strong>os), por la caridad y el amor que hacia él habían <strong>de</strong>mostrado<br />
cuando volvía <strong>de</strong> su peregrinación. (COSTOYA, 1999, p. 35-36).<br />
O número <strong>de</strong> <strong>de</strong>votos que peregrinam a Compostela é cada vez maior.<br />
Afonso X, O Sábio, rei castelhano-leonês do século XIII, <strong>de</strong>clarava nas Partidas,<br />
33
que peregrinos são os homens que fazem as suas peregrinações para servir a<br />
Deus e honrar os santos, e para isso <strong>de</strong>ixam as suas vidas (mulheres, casa, terras<br />
e proprieda<strong>de</strong>s) para caminhar rumo a Jerusalém, Roma ou Santiago.<br />
O principal motivo da peregrinação era a <strong>de</strong>voção a Santiago<br />
[...] o motivo mais puro e genuíno era o da <strong>de</strong>voção piedosa que se tinha<br />
a São Tiago; o peregrino empreendia a viagem pietatis causa, como<br />
fizeram monges, bispos e alguns santos, como São Francisco <strong>de</strong> Assis e<br />
Santa Isabel <strong>de</strong> Portugal, a rainha santa [...] (SINGUL, 1999, p. 63).<br />
Mas existiram também outras causas <strong>de</strong> peregrinação, como o fato <strong>de</strong><br />
enviar pessoas em romaria:<br />
Entre as damas mais caridosas e <strong>de</strong>votas <strong>de</strong> São Tiago Maior, daquele<br />
tempo, <strong>de</strong>stacou-se Mahaut <strong>de</strong> Artois, mãe da rainha da França, que<br />
mandou vários peregrinos a Compostela para pedir pela alma dos seus<br />
familiares. (SINGUL, 1999, p. 58).<br />
ou também para satisfazer votos por alguma doença superada:<br />
Durante a Baixa Ida<strong>de</strong> Média, <strong>de</strong>u -se o emprego <strong>de</strong> peregrinos<br />
intermediários, que caminhavam para Compostela e cumpriam o voto <strong>de</strong><br />
um vivo ou <strong>de</strong> um morto, o que foi um motivo bastante corrente – e<br />
beneficente – para fazer o Caminho <strong>de</strong> Santiago. (SINGUL, 1999, p. 58).<br />
Mas a peregrinação também funcionava como preparação espiritual antes<br />
<strong>de</strong> pedir uma graça ao Apóstolo e a Deus, no qual o percurso fazia <strong>de</strong> caminho em<br />
busca <strong>de</strong> perfeição e purificação; ou ainda como pagamento <strong>de</strong> uma penitência.<br />
Mas na baixa Ida<strong>de</strong> Média existiram ainda outros motivos religiosos:<br />
[...] os her<strong>de</strong>iros dos mortos tinham que realizar a peregrinação a São<br />
Tiago ou mandar um intermediário rezar pela alma do <strong>de</strong>funto [...] o<br />
her<strong>de</strong>iro se não fosse a Compostela, tinha a obrigação <strong>de</strong> contratar uma<br />
pessoa que assim o fizesse. De tal jeito <strong>de</strong>senvolveu-se essa prática <strong>de</strong><br />
peregrinação, que se constituíram grupos <strong>de</strong> romeiros profissionais, que<br />
empreendiam o Caminho <strong>de</strong> Santiago por encomenda em troca <strong>de</strong> um<br />
montante <strong>de</strong> dinheiro, em representação <strong>de</strong> uma pessoa viva ou morta<br />
[...] (SINGUL, 1999, p. 63-64).<br />
No entanto, houve quem peregrinou pela simples experiência <strong>de</strong> caminhar<br />
em outras terras, <strong>de</strong> conhecer outros lugares. É o caso do clérigo bolonhês<br />
Domenico Laffi, que realizou o Caminho três vezes: em 1666, 1670 e 1673.<br />
Depois da segunda viagem publicou um trabalho intitulado “Viaggio in Ponente a<br />
34
S. Giacomo di Galitia e Finisterre per Francia e Spagna” que serviu <strong>de</strong> relato <strong>de</strong><br />
peregrinação contendo informações e dicas úteis para o peregrino.<br />
As consequências socioeconômicas da peregrinação foram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
alcance. Pela rota jacobéia chegaram mercadores que reativaram a vida comercial<br />
e artesanal dos novos povoados. Assim, por meio <strong>de</strong>ste percurso, entraram novas<br />
correntes religiosas, artísticas e literárias, ao mesmo tempo em que se difundiram<br />
as tendências culturais da Espanha cristã.<br />
Cluny teve um papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nas promoções das peregrinações a<br />
Compostela e na introdução da liturgia romana na Península Ibérica. Sua<br />
expansão na região recebeu apoio dos reis, que fizeram suntuosas<br />
doações a esse mosteiro e aos cenóbios que lhe eram vinculados.<br />
(SILVA, 2008, p. 41)<br />
A partir do século X, o túmulo do Apóstolo começa a atrair peregrinos das<br />
diversas regiões da Europa, mas é na segunda meta<strong>de</strong> do século XI que se fixam<br />
as rotas <strong>de</strong> peregrinação, on<strong>de</strong> serão construídas pontes, caminhos, calçadas,<br />
albergues e hospitais, tanto por iniciativa real quanto eclesiástica, com o objetivo<br />
<strong>de</strong> oferecer segurança e conforto para o peregrino. Nos séculos posteriores,<br />
muitos conseguiram aventurar-se a realizar a romaria, inclusive aqueles que<br />
possuíam baixa renda: “Por volta do século XII, momento em que o LSJ foi<br />
compilado, cerca <strong>de</strong> 200.000 a 500.000 pessoas, <strong>de</strong> diversas regiões do Oci<strong>de</strong>nte<br />
e <strong>de</strong> variadas origens sociais, dirigiam-se anualmente para Compostela”. (SILVA,<br />
2008, p. 26).<br />
Entre os séculos XIII e XIV, o culto ao Apóstolo vive uma época dourada,<br />
pois a peregrinação é institucionalizada em toda a cristanda<strong>de</strong>. O monge Alberico<br />
<strong>de</strong> Trois-Fontaines, em sua obra intitulada Chronica Alberici trium fontium,<br />
compara a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas que concorrem por motivo da coroação <strong>de</strong><br />
Santa Isabel, pelo Imperador Fe<strong>de</strong>rico II, em 1236, com a peregrinação<br />
compostelana. Outro fato citado pelo monge é sobre o franciscano Guilherme <strong>de</strong><br />
Ruysbroeck: “[...] enviado por San Luis <strong>de</strong> Francia a Tartaria, don<strong>de</strong> visitó al Khan<br />
<strong>de</strong> los mongoles, encontrara allí a un monge nestoriano, que se preparaba para<br />
empren<strong>de</strong>r la peregrinación a Compostela, allá por el año <strong>de</strong> 1253”. (VÁZQUEZ<br />
DE PARGA, LACARRA, URÍA, 1992, p. 75). O número <strong>de</strong> visitantes que chega a<br />
35
Compostela cresce ano após ano. O escritor, político e poeta italiano Dante<br />
Alighieri (1265-1321), menciona em sua obra Vida Nova, assim como antes o teria<br />
feito Afonso X, o Sábio, o termo peregrinação, já que estabelece que romeiros são<br />
aqueles que vão a Roma, palmeiros a Jerusalém e peregrinos a Santiago:<br />
[...] peregrinos se po<strong>de</strong>m enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> dois modos, largo e estreito: largo,<br />
quando por peregrino se enten<strong>de</strong> quem quer que esteja fora <strong>de</strong> sua<br />
pátria; <strong>de</strong> modo estreito não se enten<strong>de</strong> por peregrino senão quem vai à<br />
casa <strong>de</strong> São Tiago 9 ou <strong>de</strong> lá regressa. É, porém, conveniente saber-se<br />
que <strong>de</strong> três maneiras se chamam, propriamente, as pessoas que andam<br />
a serviço do Altíssimo: chamam-se peregrinos quando vão a ultramar 10 ,<br />
aon<strong>de</strong> muitas vezes levam as palmas; chamam-se peregrinos quando<br />
vão à casa <strong>de</strong> Galiza, pois a sepultura <strong>de</strong> São Tiago é mais distante <strong>de</strong><br />
sua própria pátria do que a <strong>de</strong> qualquer outro apóstolo, chamam-se<br />
romeiros quando vão a Roma, para on<strong>de</strong> iam esses aos quais chamo<br />
peregrinos [...] (ALIGHIERI, 2003, p. 145).<br />
Pouco antes <strong>de</strong> finalizar o século XVI, as consequências do movimento<br />
religioso chamado Reforma tiveram repercussão na peregrinação compostelana.<br />
Desaparecem os peregrinos ingleses, que faziam o percurso começando nas<br />
costas <strong>de</strong> La Coruña. Também os grupos <strong>de</strong> alemães, muitos <strong>de</strong>les humil<strong>de</strong>s, que<br />
viviam <strong>de</strong> esmola. Dois fatores muito importantes influenciam nos poucos<br />
peregrinos que ainda chegavam a Compostela segundo escreve o escritor e<br />
jornalista galego Carlos García Costoya:<br />
La Santa Inquisición, que con sus habituales artes sospecha <strong>de</strong> cualquier<br />
peregrino alemán que se dirige a Compostela, atormentándolo y podría<br />
<strong>de</strong>cirse que espantándolo. En segundo lugar la picaresca espanhola, que<br />
hace que muchos vagos y rufianes se aprovechen <strong>de</strong> los peregrinos o se<br />
disfracen <strong>de</strong> ellos, <strong>de</strong>sgastando así ya la extenuada caridad española.<br />
(COSTOYA, 1999, p. 64).<br />
A peregrinação compostelana per<strong>de</strong>rá seu esplendor ao longo do século<br />
XVI, para quase <strong>de</strong>saparecer nos séculos posteriores. Porém, no final do século<br />
XIX, mais precisamente em 1884, com a promulgação da bula Deus omnipotens,<br />
dada por Leão XIII, em que ele mesmo <strong>de</strong>clara solenemente a autenticida<strong>de</strong> das<br />
relíquias do Apóstolo conservadas em Compostela, a cida<strong>de</strong> volta a ecoar<br />
internacionalmente e recobra seu protagonismo no patronato <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>nte.<br />
9 O sepulcro do apóstolo Santiago, em Santiago <strong>de</strong> Compostela, na Galícia (Espanha).<br />
10 Palestina.<br />
36
1.4. Presença da temática jacobéia na literatura espanhola da Ida<strong>de</strong><br />
Média e do Renascimento<br />
O itinerário que comporta o Caminho <strong>de</strong> Santiago tem sido uma via<br />
geradora e transmissora <strong>de</strong> cultura, sobretudo na época medieval, que originou a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da língua e literaturas espanholas, divulgadas através dos mosteiros,<br />
abadias, hospitais, catedrais e igrejas românicas e góticas, pertencentes aos<br />
povoados e cida<strong>de</strong>s dos reinados da Reconquista. Des<strong>de</strong> a Europa, e em direção<br />
à península Ibérica, entraram a arte pré-românica, românica e gótica. A lírica<br />
difundiu-se por meio dos trovadores, e a poesia heróica através dos cantares <strong>de</strong><br />
gesta. Apareceram também motivos marianos na poesia lírica, com Afonso X, O<br />
Sábio (1221-1284), e na narrativa, com Gonzalo <strong>de</strong> Berceo, assim como também<br />
influências feudais, monásticas e litúrgicas.<br />
É no século X que a língua castelhana começa a dar seus primeiros<br />
passos, nos mosteiros (San Millán <strong>de</strong> Yuso e San Millán <strong>de</strong> Suso) <strong>de</strong> San Millán<br />
<strong>de</strong> la Cogolla 11 , localizados na rota jacobéia. Os primeiros signos escritos nesta<br />
língua aparecem nas “Glosas Emilianenses”, que constavam <strong>de</strong> pequenas<br />
anotações manuscritas, realizadas em várias línguas (latim, românico e euskera<br />
medieval), entre linhas ou nas margens <strong>de</strong> algumas passagens do códice latino<br />
chamado Aemilianensis 60. Talvez a intenção daqueles monges que faziam as<br />
anotações fosse a <strong>de</strong> clarificar o significado <strong>de</strong> algumas passagens do códice<br />
latino. A importância filológica <strong>de</strong>stas glosas é o testemunho escrito <strong>de</strong> um dialeto<br />
românico espanhol, a língua que naquela época era falada pelo povo. Seu nome<br />
<strong>de</strong>ve-se a que foram compostas no Mosteiro <strong>de</strong> San Millán <strong>de</strong> la Cogolla (Millán<br />
ou Emiliano <strong>de</strong>riva do latim Aemilianus). Seu valor cultural <strong>de</strong>scobriu-se em 1911,<br />
quando Manuel Gómez Moreno (1870-1970), arqueólogo e historiador espanhol,<br />
que estudava a arquitetura mourisca no Mosteiro <strong>de</strong> Suso, transcreveu todas as<br />
glosas, cerca <strong>de</strong> mil, e as enviou ao filólogo e historiador espanhol Ramón<br />
Menén<strong>de</strong>z Pidal (1869-1968). A partir <strong>de</strong>ste fato, o lugar <strong>de</strong> San Millán <strong>de</strong> la<br />
Cogolla foi apelidado como “cuna <strong>de</strong>l castellano” (berço do castelhano).<br />
11 Município da Espanha na comunida<strong>de</strong> autônoma <strong>de</strong> La Rioja.<br />
37
Na mesma rota jacobéia, também se encontrava o mosteiro beneditino <strong>de</strong><br />
Santo Domingo <strong>de</strong> Silos (Burgos), em cujas “Glosas Silenses” percebem-se<br />
também as primeiras manifestações escritas da língua espanhola. Estas glosas<br />
são comentários em língua românica peninsular, realizados por copistas<br />
medievais nas margens <strong>de</strong> um texto em latim. A data correspon<strong>de</strong> a finais do<br />
século XI, e talvez, semelhante às glosas Emilianenses, a sua finalida<strong>de</strong> seja a <strong>de</strong><br />
clarificar as passagens do texto latino.<br />
A literatura espanhola, como todas as <strong>de</strong> línguas românicas, começará a<br />
florescer a partir do século XI, quando a Reconquista toma um novo rumo <strong>de</strong>pois<br />
da morte <strong>de</strong> Almanzor, e o rei Sancho el Mayor (1000-1035) abre os territórios<br />
hispânicos para a influência francesa. Diversos povos da Europa, e principalmente<br />
os franceses, começam a peregrinar a Santiago <strong>de</strong> Compostela, pela rota do<br />
“Caminho Francês”. Houve um gran<strong>de</strong> fluxo através dos Pirineus que se refletiu na<br />
língua e na literatura com a chegada dos poetas franceses e provençais. Foi assim<br />
como os trovadores espanhóis usaram temas e formas carolíngias que <strong>de</strong>rivaram<br />
na epopéia castelhana, ao mesmo tempo que esta última influirá nos cantares <strong>de</strong><br />
gesta franceses:<br />
Hubo un momento en el siglo XI en que los peregrinos que recorrían los<br />
caminos <strong>de</strong> Compostela, y los cruzados que venían a combatir a los<br />
moros, se acostumbraron a consi<strong>de</strong>rar como patrón suyo a Carlomagno y<br />
a los héroes que le acompañaron en sus expediciones. En los caminos<br />
<strong>de</strong> España y en los que por la Francia meridional llevaban hacia ella, los<br />
peregrinos encontraban mil recuerdos <strong>de</strong>l paso <strong>de</strong> Carlos, acabando por<br />
representársele como el evangelizador <strong>de</strong> España por la espada, el<br />
fundador <strong>de</strong> la iglesia <strong>de</strong> Santiago y el primero que había habilitado el<br />
camino que llevaba a la tumba <strong>de</strong>l apóstol, arrancándolo <strong>de</strong> manos <strong>de</strong> los<br />
sarracenos. (VÁZQUEZ DE PARGA, LACARRA, URÍA, 1992, p. 499).<br />
O Co<strong>de</strong>x Calixtinus 12 , que se conserva no arquivo da Catedral <strong>de</strong><br />
Compostela, é o mais completo exemplar do Líber Sancti Jacobi. A autoria é<br />
atribuída ao papa Calixto II (1119-1124), embora nenhum autor contemporâneo o<br />
aceite. Achamos pertinente colocar a citação que segue, embora um pouco<br />
extensa, sobre as possíveis autorias atribuídas ao livro.<br />
12 Conjunto <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> caráter litúrgico, histórico e hagiográfico, reunidos em Santiago <strong>de</strong><br />
Compostela nos anos finais do arcebispado <strong>de</strong> Diego Gelmírez.<br />
38
[...] Díaz y Díaz (1988, p. 81) opta por <strong>de</strong>nominar o possível autor como<br />
Pseudo -Calixto. Outro autor apresentado na obra é o bispo Turpin,<br />
arcebispo <strong>de</strong> Reims, a quem é atribuída a redação do livro IV. Mas essa<br />
autoria também não é aceita pelos estudiosos mo<strong>de</strong>rnos [...] Várias<br />
hipóteses foram formuladas e muitos textos escritos visando apontar um<br />
nome para a autoria do LSJ [...] Um dos primeiros a refletir sobre a<br />
questão foi Bédier. Para esse pesquisador, o LSJ é fruto do trabalho <strong>de</strong><br />
cluniascenses da Gália, que se preocuparam, sobretudo, em introduzir a<br />
liturgia romana no culto a São Tiago [...] Alguns autores rejeitaram essa<br />
hipótese e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram [...] que o autor era um clérigo, mas não regular,<br />
francês, e ligado ao bispo compostelano Diego Gelmírez. Vários<br />
pesquisadores acolheram essa hipótese, ainda que com variantes, e um<br />
nome foi proposto: Aymeric Picaud [...] Segundo Paula Gerson, Aymeric<br />
era um antropônimo muito comum no período e pelo menos outras duas<br />
pessoas com esse prenome estavam associadas ao bispado <strong>de</strong><br />
Compostela no século XII [...] Para René Louis e Moisan, todo o LSJ é<br />
obra <strong>de</strong> Aymeric. Para Vielliard, ele só foi autor do Livro V, o chamado<br />
Guia do Peregrino [...] Para Vázquez, <strong>de</strong> Parga, Lacarra e Úria Riu,<br />
Aymeric foi o coor<strong>de</strong>nador da compilação: reuniu e or<strong>de</strong>nou o material<br />
que integra o LSJ, mas sem qualquer relação com Cluny [...] Para David,<br />
ele foi um dos editores da obra [...] Alain Guerry [...] fundamenta a sua<br />
hipótese com alguns argumentos. O LSJ não fala bem dos espanhóis, se<br />
menciona uma rota <strong>de</strong> peregrinação espanhola, quando apresenta quatro<br />
francesas, e a maioria dos milagres narrados aconteceram na França;<br />
logo o autor era francês. Gran<strong>de</strong> parte dos textos presentes nos livros I, II<br />
e III trata <strong>de</strong> milagres e liturgia e foram escritos com um espírito<br />
moralizador e imerso em uma gran<strong>de</strong> cultura teológica; assim, o autor era<br />
um clérigo [...] Estudos mais recentes rejeitam a busca <strong>de</strong> um único<br />
autor, insistindo, portanto, no caráter coletivo da obra (SILVA, 2008, p.<br />
35-37).<br />
Quem quer que fosse o autor era conhecedor dos caminhos jacobeus e das<br />
lendas <strong>de</strong> canções <strong>de</strong> gesta. Assim, <strong>de</strong>senvolveu uma história chamada Historia<br />
Karoli Magni et Rotholandi, o quarto livro do Códice, que compreen<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />
fólios 163 ao 191. Narra a história <strong>de</strong> Carlos Magno e Rolando, na Espanha, <strong>de</strong><br />
uma forma épico-fantástica. Nela expõe a Carlos Magno como iniciador não<br />
somente da peregrinação a Compostela, senão também da cruzada contra os<br />
muçulmanos do Oci<strong>de</strong>nte. A trama <strong>de</strong>sta história po<strong>de</strong> ser consultada no livro Las<br />
peregrinaciones a Santiago <strong>de</strong> Vázquez <strong>de</strong> Parga et alii.<br />
Dentre as diferentes manifestações textuais medievais, relacionadas com o<br />
Caminho, encontramos a lírica, através das cantigas galego-portuguesas; os<br />
registros heróicos apresentados na épica francesa, o poema <strong>de</strong> Fernán González<br />
e certos velhos romances; os registros hagiográficos, presentes principalmente na<br />
literatura mariana espanhola, em que Berceo e Afonso X, são máximos expoentes,<br />
39
sem excluir os aspectos jurídicos que <strong>de</strong>monstram como era entendida a<br />
peregrinação na Ida<strong>de</strong> Média.<br />
Algumas cantigas medievais galego-portuguesas, composições líricas<br />
breves, que possuem como assunto o Caminho <strong>de</strong> Santiago ou a romaria, po<strong>de</strong>m<br />
ser encontradas no Cancionero <strong>de</strong> la <strong>Biblioteca</strong> Vaticana, uma coletânea <strong>de</strong><br />
lirismo trovadoresco galego-português que contém cantigas <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> amigo e<br />
<strong>de</strong> escárnio e mal-dizer:<br />
cantigas <strong>de</strong> amigo, numeradas en tal códice como 265, 429 y 458, la<br />
primera, <strong>de</strong> Aires Corpancho; la segunda, <strong>de</strong> Payo Gomes Charinho; y la<br />
tercera, <strong>de</strong> Ayras Nunes); aunque tampoco falta la pastolera <strong>de</strong> orígen<br />
francés (la 689, <strong>de</strong> Pero Amigo) ni la más específicamente <strong>de</strong><br />
peregrinación (la 455, también <strong>de</strong>l citado Ayras Nunes) (PUERTO, 2004,<br />
p. 30-31).<br />
Nelas, sempre predomina o ponto <strong>de</strong> vista da jovem apaixonada, tendo a<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santiago como cenário. Isto <strong>de</strong>monstra que a peregrinação a<br />
Compostela refletia-se na lírica galega, no seu momento <strong>de</strong> máximo esplendor:<br />
Por fazer romaria pug’en meu coraçon<br />
a Santiag’un dia ir fazer oraçon,<br />
e por veer meu amigo logu’i.<br />
E se fezer [bon] tempo, e mia madre non for,<br />
querrei andar mui leda por parecer melhor<br />
e por veer meu amigo logu’i.<br />
Quer’eu ora mui cedo provarase po<strong>de</strong>rei<br />
ir queimar mias can<strong>de</strong>as con gran coita que ei<br />
e por veer meu amigo logu’i.<br />
(Cancioneiro da <strong>Biblioteca</strong> Vaticana, 265. Versão <strong>de</strong> Manuel Blanco apud<br />
PUERTO, 2004, p. 31)<br />
As cantigas <strong>de</strong> amigo são composições cujo tema fundamental é o<br />
sofrimento por amor, motivado pela ausência do amigo. O exemplo <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong><br />
cantiga que colocamos a seguir mostra uma jovem apaixonada que anseia,<br />
mediante invocação a Santiago e a sua mãe, o encontro com seu amigo<br />
marinheiro:<br />
Ay, Santiago, padrón sabido<br />
vos, m’aduga<strong>de</strong>s o meu amigo;<br />
sobre mar ven quem frores d’amor tem,<br />
myrarey, madre, as torres <strong>de</strong> Jeen.<br />
Ay, Santiago, padrón provado,<br />
vos m’aduga<strong>de</strong>s o meu amado,<br />
40
sobre mar vem quem frores d’amor tem,<br />
myrarey, madre, as torres <strong>de</strong> Jeen.<br />
(Cancioneiro da <strong>Biblioteca</strong> Vaticana, 429. Versão <strong>de</strong> Manuel Blanco apud<br />
PUERTO, 2004, p. 32)<br />
Em outra cantiga, uma jovem também apaixonada se dirige à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Santiago em romaria para encontrar-se com o monarca Fernando III, quem<br />
também peregrina, e principalmente com seu amigo, que faz parte do séqüito do<br />
monarca:<br />
A Santiagu’en romaría ven<br />
el rei, madr’, e praz-me <strong>de</strong> coraçon<br />
por duas cousas, se Deus me perdon,<br />
en que tenho que me faz Deus gran bem:<br />
ca veer-ei el rei, que nunca vi,<br />
e meu amigo que ven con el i.<br />
(Cancioneiro da <strong>Biblioteca</strong> Vaticana, 458. Versão <strong>de</strong> Manuel Blanco apud<br />
PUERTO, 2004, p. 33)<br />
O poema que se segue pertence a uma modalida<strong>de</strong> culta das cantigas <strong>de</strong><br />
amor, e, <strong>de</strong>ntre elas, com uma composição bucólica <strong>de</strong> origem provençal e <strong>de</strong><br />
intenção idílica. Trata-se <strong>de</strong> um jovem errante que encontra-se no caminho com<br />
uma pastora a quem pe<strong>de</strong> amor. O encontro se produz em <strong>de</strong>terminado ponto do<br />
percurso até Compostela:<br />
Quando en un dia fuy em Compostella<br />
em romaria, vi unha pastora<br />
que pays foi nada nunc a vi tam bella,<br />
nem uy a outra que falasse milhor;<br />
e <strong>de</strong>mandi-lhe logo o seu amor,<br />
e fiz por ela esta pastorella...<br />
(Cancioneiro da <strong>Biblioteca</strong> Vaticana, 689. Versão <strong>de</strong> Manuel Blanco apud<br />
PUERTO, 2004, p. 33-34)<br />
Muitos trovadores também foram andarilhos no Caminho <strong>de</strong> Santiago.<br />
Contavam a vida em forma <strong>de</strong> lenda épica, poética ou mítica, por meio <strong>de</strong><br />
cantares <strong>de</strong> gesta e romances, nos castelos e palácios <strong>de</strong> reis, cavaleiros e<br />
senhores feudais. É <strong>de</strong>ssa forma que surge a poesia <strong>de</strong> amor cortês, on<strong>de</strong> o<br />
amante é caracterizado por comportar-se com a amada <strong>de</strong> forma semelhante a <strong>de</strong><br />
um vassalo com seu senhor, refletindo a estrutura da relação feudal no terreno<br />
amoroso. De caráter neoplatônico por sua i<strong>de</strong>alização da mulher como donna<br />
angelicatta, mulher angelical, intocável, esta construção poética, originada na<br />
41
França meridional, entra também na península Ibérica através do Caminho <strong>de</strong><br />
Santiago.<br />
Na “Canção <strong>de</strong> Rolando”, poema épico composto no século XI, em francês<br />
arcaico, não se encontram alusões ao Caminho <strong>de</strong> Santiago. No entanto, as<br />
referências à rota jacobéia aparecem numa série <strong>de</strong> cantares épicos que surgem a<br />
partir da obra Historia Karoli Magni et Rotholandi, chamada também Pseudo-<br />
Turpín, por ser atribuída ao bispo Turpin <strong>de</strong> Reims. Nesta obra, Carlos Magno é<br />
apresentado como <strong>de</strong>scobridor do túmulo do apóstolo Santiago, evangelizador da<br />
Espanha (na sua luta contra os sarracenos) e iniciador da peregrinação a<br />
Compostela. Este livro foi o mais difundido do Códice Calixtinus, com cópias<br />
divulgadas durante a Ida<strong>de</strong> Média, por toda a Europa, e que serviram <strong>de</strong><br />
inspiração a vários cantares <strong>de</strong> gesta feitos na França e na Itália, como por<br />
exemplo:<br />
• La Chanson d’Angolant (Canção <strong>de</strong> Agolando). Obra <strong>de</strong> autor<br />
<strong>de</strong>sconhecido, da qual só se conhece um pequeno fragmento<br />
guardado na <strong>Biblioteca</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cambridge e que narra a<br />
batalha <strong>de</strong> Carlos Magno contra o rei pagão Agolant;<br />
• L’Entrée en Espagne (A entrada na Espanha). Extensa obra anônima<br />
<strong>de</strong> quase <strong>de</strong>zesseis mil versos, escrita em dialeto franco-italiano e<br />
composta na primeira meta<strong>de</strong> do século XIV, provavelmente na<br />
região italiana <strong>de</strong> Pádua. Nela, faz-se referência aos sucessos dos<br />
cinco primeiros anos em que Carlos Magno esteve na Espanha;<br />
• La Prise <strong>de</strong> Pampelune (tomada <strong>de</strong> Pamplona). Obra escrita também<br />
em franco-italiano, por volta <strong>de</strong> 1350, por Nicolás <strong>de</strong> Verona. Nesta,<br />
Carlos Magno, junto aos seus soldados, se propõe a conquistar o<br />
Caminho <strong>de</strong> Santiago e as batalhas são realizadas em diferentes<br />
cida<strong>de</strong>s do caminho: Pamplona, Estella, Monjardín, Logroño ou<br />
Burgos, Carrión, Sahagún, Mansilla <strong>de</strong> las Mulas e Leão. O poema<br />
finaliza com a posse da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Astorga, <strong>de</strong>fendida pelo rei pagão<br />
Estourgant;<br />
42
• Gui <strong>de</strong> Bourgogne é outro poema épico que tem a Espanha como<br />
cenário. No final da obra, um anjo aparece diante <strong>de</strong> Carlos Magno,<br />
que <strong>de</strong>pois, vestido <strong>de</strong> peregrino junto com outros cavaleiros, chega<br />
a Santiago, fazendo orações e realizando oferendas.<br />
O primeiro texto literário conservado em verso e relacionado com o<br />
Caminho <strong>de</strong> Santiago é conhecido como Ultreya ou Ultreia. Escrito em latim, mas<br />
contendo termos germânicos (Herru Sanctiagu, / Got Sanctiagu), aparece incluído<br />
no Códice Calixtinus e trata-se <strong>de</strong> um hino entoado para, entre outras coisas, o<br />
peregrino adquirir forças ao longo do Caminho até a chegada em Santiago.<br />
Durante os séculos XII e XIII, po<strong>de</strong>-se distinguir <strong>de</strong>ntro da poesia medieval<br />
duas escolas ou Mesteres, uma própria dos joglares (Mester <strong>de</strong> Juglaría) e outra<br />
dos clérigos (Mester <strong>de</strong> Clerecía). Se o Mester <strong>de</strong> Juglaría, com os poemas<br />
heróicos, baseados em acontecimentos reais ou fictícios, e com os populares<br />
romances, <strong>de</strong>senvolveu um papel crucial na transmissão oral e na escrita da<br />
literatura, o Mester <strong>de</strong> Clerecía, com poemas narrativos cantados, <strong>de</strong> caráter<br />
religioso ou <strong>de</strong> tema clássico, o fez por meio da escrita em latim e <strong>de</strong> uma forma<br />
especial, assim como os jograis e os trovadores que utilizavam as línguas<br />
românicas que surgiam e com as quais os peregrinos <strong>de</strong> toda as classes sociais<br />
se comunicavam.<br />
Encontramos o Poema <strong>de</strong> Fernán González, anônimo e pertencente ao<br />
Méster <strong>de</strong> Clerecía, criado no século XIII, e <strong>de</strong>dicado ao con<strong>de</strong> herói <strong>de</strong> Castela<br />
que dá nome ao poema. De conteúdo semelhante a um cantar <strong>de</strong> gesta, encontra-<br />
se vinculado, <strong>de</strong> alguma forma, com o caminho jacobino:<br />
Dejar os quiero <strong>de</strong> esto, asaz os he contado,<br />
no quiero más <strong>de</strong>cir por si fuera errado,<br />
pero no olvi<strong>de</strong>mos al apóstol honrado,<br />
hijo <strong>de</strong>l Cebe<strong>de</strong>o, Santiago llamado.<br />
Quiso Dios fuertemente a España honrar;<br />
cuando al apóstol santo quiso allí enviar;<br />
frente a Inglaterra y Francia quísola mejorar:<br />
sabed, no yace apóstol en todo aquel lugar. (Estrofes 153-154 apud<br />
PUERTO, 2004, p. 37)<br />
43
Segundo o filólogo e historiador espanhol Ramón Menén<strong>de</strong>z Pidal, o<br />
Poema <strong>de</strong> Fernán González foi escrito em 1250, ou seja, posterior ao “Libro <strong>de</strong><br />
Alexandre”, obra em verso que data da primeira meta<strong>de</strong> do século XIII e narra a<br />
vida <strong>de</strong> Alexandre Magno, e aos poemas <strong>de</strong> Gonzalo <strong>de</strong> Berceo. O poema foi<br />
escrito por um monge do mosteiro <strong>de</strong> San Pedro <strong>de</strong> Arlanza 13 , e relata as<br />
campanhas contra o mouro em <strong>de</strong>fesa do condado <strong>de</strong> Castela, as guerras contra<br />
os reinados <strong>de</strong> Navarra e Leão e sua proteção ao mosteiro <strong>de</strong> San Pedro <strong>de</strong><br />
Arlanza.<br />
A “Batalla <strong>de</strong> Hacinas”, inserida no Poema <strong>de</strong> Fernán González, teve lugar<br />
no século X entre o con<strong>de</strong> Fernán González e os mouros e resultou na vitória do<br />
primeiro. Nos versos se reflete o fato <strong>de</strong> que seus guerreiros invocam a Santiago<br />
apóstolo quando lutam contra os povos pagãos:<br />
Comenzaron el pleito don<strong>de</strong> lo habían <strong>de</strong>jado,<br />
invocando a Santiago, el apóstol honrado;<br />
las aces fueron vueltas, el torneo empezado:<br />
bien era a castellanos, aquel oficio, usado. (Estrofe 517 apud PUERTO,<br />
2004, p. 37-38)<br />
E na batalha contra Almanzor (Ab<strong>de</strong>rramán), graças à aparição e<br />
intervenção <strong>de</strong> Santiago, os guerreiros cristãos conseguem a vitória<br />
Querrellándose a Dios el con<strong>de</strong> don Fernando,<br />
los hinojos hincados, al Criador rogando,<br />
oyó una gran voz que le estaba llamando:<br />
-“Fernando <strong>de</strong> Castilla, hoy aumenta tu bando!<br />
Alzó arriba los ojos por ver quién le llamaba,<br />
y vió que el santo apóstol encima <strong>de</strong> él estaba,<br />
con él <strong>de</strong> caballeros gran compaña llevaba,<br />
todas las armas cruzadas, según le semejaba. (Estrofes 560-561 apud<br />
PUERTO, 2004, p. 38)<br />
Nas últimas estrofes surge o con<strong>de</strong> Lombardo e é ele quem promove a fuga<br />
<strong>de</strong> Fernán González, do cativeiro, em <strong>Castro</strong>viejo (La Rioja). Depois <strong>de</strong> ser<br />
libertado, Fernán González atravessa cida<strong>de</strong>s do Caminho na rota francesa<br />
(Estella, Valpierre, Cirueña, Belorado, Montes <strong>de</strong> Oca e Burgos).<br />
13 Hortigüela, Burgos. Este mosteiro foi fundado no ano 912 por Gonzalo Fernán<strong>de</strong>z, pai <strong>de</strong> Fernán<br />
González.<br />
44
O rei Sancho <strong>de</strong> Leão avisa a Fernán González da forma como<br />
Ab<strong>de</strong>rramán, rei <strong>de</strong> Córdoba, havia entrado em terras leonesas e lhe pe<strong>de</strong> ajuda,<br />
frente ao qual o con<strong>de</strong> castelhano respon<strong>de</strong> rapidamente:<br />
Levantóse <strong>de</strong> allí, Sahagún fue a cercar,<br />
comenzó toda Campos a correr y a robar;<br />
hubieron estas nuevas al con<strong>de</strong> <strong>de</strong> llegar,<br />
con todas sus compañas <strong>de</strong>cidió cabalgar.<br />
Caballeros leoneses, compañas <strong>de</strong> prestar,<br />
Salieron con el con<strong>de</strong> queriéndole guardar;<br />
no lo quiso el buen con<strong>de</strong> y mandóles tornar:<br />
tuvieron los leoneses <strong>de</strong> esto fuerte pesar.<br />
El con<strong>de</strong> don Fernando con toda su mesnada<br />
vino hasta Sahagún y la encontró cercada;<br />
dio a los moros ataque, una lid enconada:<br />
fue luego en ese día la villa <strong>de</strong>scercada.<br />
Habían tierra <strong>de</strong> Campos corrido y robado,<br />
llevaban <strong>de</strong> cristianos gran pueblo cautivado,<br />
<strong>de</strong> vacas y <strong>de</strong> yeguas y <strong>de</strong>l otro ganado<br />
tanto llevaban ellos que no sería contado. (Estrofes 730-733 apud<br />
PUERTO, 2004, p. 38-39)<br />
Esta obra literária <strong>de</strong> origem castelhana, que ora se enquadra na clerecía<br />
ora na juglaría, por contar os feitos gloriosos, mostra a perspectiva heróica, tanto<br />
do ponto <strong>de</strong> vista do Caminho francês como da presença do apóstolo Santiago.<br />
Como ocorre na Ida<strong>de</strong> Média, o heróico mescla-se com o religioso, como meio <strong>de</strong><br />
plasmar o sentir da época.<br />
Um dos máximos expoentes do Mester <strong>de</strong> Clerecía é o “Libro <strong>de</strong><br />
Alexandre”, sobre Alexandre Magno, <strong>de</strong> autor <strong>de</strong>sconhecido. E um dos primeiros<br />
poetas conhecidos é o espanhol Gonzalo <strong>de</strong> Berceo, com a sua principal obra<br />
“Milagros <strong>de</strong> Nuestra Señora” (compilação que relata vinte e cinco milagres da<br />
Virgem Maria), no mosteiro <strong>de</strong> San Millán <strong>de</strong> la Cogolla, lugar muito visitado por<br />
peregrinos do Caminho <strong>de</strong> Santiago.<br />
San Millán <strong>de</strong> la Cogolla, por sua riqueza e localização estratégica, foi um<br />
“[...] punto <strong>de</strong> encuentro <strong>de</strong> gentes, textos y costumbres <strong>de</strong> las distintas<br />
regiones” (DÍAZ Y DÍAZ, 1991, p. 155). Ali se estabeleceram monges<br />
provenientes das mais diversas regiões da Península Ibérica e <strong>de</strong> além -<br />
Pirineus. (SILVA, 2008, p. 53).<br />
45
Estas pessoas <strong>de</strong>ixaram como legado, no mosteiro, alguns manuscritos e<br />
técnicas <strong>de</strong> confecção dos mesmos. Também mantiveram contato com o seu lar<br />
<strong>de</strong> origem o que favoreceu o intercâmbio <strong>de</strong> idéias.<br />
As obras <strong>de</strong> Berceo apresentam gran<strong>de</strong>s semelhanças com os poemas da<br />
primeira fase do Mester <strong>de</strong> Clerecía: Libro <strong>de</strong> Alexandre, Libro <strong>de</strong> Apolonio ou o<br />
Poema <strong>de</strong> Fernán González<br />
A unida<strong>de</strong> formal <strong>de</strong>monstra, segundo Isabel Úria, que as obras foram<br />
fruto da aplicação <strong>de</strong> uma técnica que não foi <strong>de</strong>senvolvida nem por um<br />
único poeta, nem por diversos poetas isolados (1979, p. 187) [...] Por<br />
outro lado, a técnica usada nessas obras não foi transmitida unicamente<br />
através dos textos, já que estes não elucidam, por si mesmos, todos os<br />
princípios e regras utilizados em sua composição [...]. (SILVA, 2008, p.<br />
58).<br />
Berceo em sua obra ”Vida <strong>de</strong> San Millán”, faz referência, em várias<br />
passagens, à proteção dos castelhanos e leoneses por parte do apóstolo Santiago<br />
e San Millán:<br />
El reÿ don Remiro <strong>de</strong> la buena ventura,<br />
asmó un buen consejo <strong>de</strong> pro e <strong>de</strong> cordura,<br />
pagar a Santïago por alguna mesura,<br />
tornarlo <strong>de</strong> sue part en esta lit tan dura.<br />
Fabló con sos varones e con los or<strong>de</strong>nados,<br />
Con bispos e aba<strong>de</strong>s que y eran juntados;<br />
“Oídme –dijo - todos, legos e coronados,<br />
hanos dado mal salto nuestros graves pecados.<br />
Pero en una cosa era yo acordado,<br />
si a vos semejase consejo aguisado,<br />
prometer al apóstolo un voto mesurado,<br />
al que yaz en Galicia, <strong>de</strong> España primado.<br />
Com o realismo da hagiografia histórica, Berceo transmite para o povo<br />
aspectos da religião católica.<br />
Não se sabe exatamente quais foram as viagens feitas por Berceo, pois não<br />
existem evidências documentais que relacionem isso diretamente com sua vida,<br />
embora como clérigo secular se possa dizer que realizava viagens para obter uma<br />
formação intelectual. Mas como clérigo em San Millán <strong>de</strong> la Cogolla: “[...]<br />
encontrava-se próximo <strong>de</strong> dois importantes eixos <strong>de</strong> comunicação e circulação da<br />
46
Península Ibérica: a leste-oeste, o Caminho Francês para Santiago, e a norte-sul,<br />
o vale do Ebro”. (SILVA, 2008, p. 63).<br />
Assim, Berceo provavelmente manteve constantes contatos com viajantes,<br />
já que o mosteiro estava próximo do Caminho Francês <strong>de</strong> peregrinação a<br />
Santiago, o que fez com que conhecesse realida<strong>de</strong>s culturais diferentes, direta ou<br />
indiretamente, e <strong>de</strong>corrente disso que enriquecesse sua apreensão e<br />
representação do mundo.<br />
As cantigas <strong>de</strong> amigo florescem também no Caminho <strong>de</strong> Santiago com<br />
Afonso X, quem, no século XIII, usou essas formas poéticas para compor e<br />
difundir, como Berceo, sua vocação mariana no seu cancioneiro sacro chamado<br />
“Cantigas a la Virgen María”, <strong>de</strong> influência lírico galego-portuguesa.<br />
Em suas cantigas, o autor introduz dois dos mais célebres milagres do<br />
Apóstolo: o do romeiro que se suicida por ter escutado um conselho do <strong>de</strong>mônio e<br />
o milagre do enforcado, a favor <strong>de</strong> um romeiro alemão que, com seu filho,<br />
hospeda-se na casa <strong>de</strong> uma pessoa, que escon<strong>de</strong> um copo <strong>de</strong> prata nos<br />
pertences do jovem, e <strong>de</strong>pois o incrimina por roubo.<br />
A peregrinação compostelana aparece também em diversas outras<br />
cantigas, nas quais refletem-se uma série <strong>de</strong> milagres da igreja <strong>de</strong> Villasirga 14 , na<br />
qual, em se tratando <strong>de</strong> um santuário do caminho, é normal que seus<br />
protagonistas sejam todos peregrinos que vão ou voltam <strong>de</strong> Santiago.<br />
A importância que no século XIII adquire a peregrinação compostelana vê-<br />
se refletida também em outro documento <strong>de</strong> Afonso X, <strong>de</strong>sta vez em forma <strong>de</strong><br />
texto jurídico, escrito em prosa científica, doutrinal e histórica. Esta obra chamada<br />
“Código <strong>de</strong> las Siete Partidas”, ou conhecida também como Partidas, tem como<br />
objetivo conseguir certa uniformida<strong>de</strong> jurídica no reino <strong>de</strong> Castela e Leão. Seu<br />
nome original era “Libro <strong>de</strong> las Leyes” e, por volta do século XIV, recebeu a atual<br />
<strong>de</strong>nominação que faz referência à forma como se encontrava dividida. Na lei <strong>de</strong><br />
número 1 <strong>de</strong>nomina romeiro àquele que visita, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma, os santos<br />
lugares em que repousam os restos <strong>de</strong> São Pedro e São Paulo, e peregrino quem<br />
14 Até o século XVII, a localida<strong>de</strong> atual <strong>de</strong> Villalcázar <strong>de</strong> Sirga foi conhecida como Villasirga.<br />
Atualmente a igreja conhece-se com o nome <strong>de</strong> Iglesia <strong>de</strong> Santa María la Blanca –Villalcázar <strong>de</strong><br />
Sirga.<br />
47
visita o sepulcro e os lugares on<strong>de</strong> nasceu, viveu e morreu Jesus ou também<br />
quem peregrina a Santiago <strong>de</strong> Compostela:<br />
Romero tanto quiere <strong>de</strong>zir, como ome que se aparta <strong>de</strong> su tierra, e va a<br />
Roma para visitar los Santos Logares, en que yazen los Cuerpos <strong>de</strong> Sant<br />
Pedro e Sant Pablo, e <strong>de</strong> los ot ros Santos, que tomaron martyrio, por<br />
nuestro Señor Jesu Christo. E Pelegrino tanto quiere <strong>de</strong>zir, como ome<br />
estraño, que va a visitar el Sepulcro Santo <strong>de</strong> Hierusalem, e los otros<br />
Santos Logares, en que nuestro Señor Jesu Christo nascio, bivio, e tomo<br />
muerte e passion por los pecadores; o que andan e pelegrinaje a<br />
Santiago [...].<br />
A lei <strong>de</strong> número 2 faz referência à forma em que <strong>de</strong>ve ser realizada tanto a<br />
romaria como a peregrinação:<br />
Romeria, e pelegrinaje <strong>de</strong>uen fazer los Romeros con gran <strong>de</strong>uocion,<br />
diziendo e faziendo bien, e guardandose <strong>de</strong> fazer mal, non andando<br />
faciendo merca<strong>de</strong>rias, nin arloterias por el camino, e <strong>de</strong>uense llegar<br />
temprano a la posada quanto pudieren; otrosi yr acompañados, quando<br />
pudieren, porque sean guardados <strong>de</strong> daño, e fazer mejor su romeria [...].<br />
As Partidas contêm ainda mais alusões aos peregrinos, por exemplo,<br />
quando se referem à forma como <strong>de</strong>vem ser tratados romeiros e peregrinos pelos<br />
habitantes dos povoados visitados e, em caso <strong>de</strong> morte durante a peregrinação, o<br />
lugar on<strong>de</strong> <strong>de</strong>va ser enterrado.<br />
O espírito peregrinal da Ida<strong>de</strong> Média estará refletido na prosa castelhana,<br />
no século XIV com don Juan Manuel (1282-1348), político e escritor espanhol, em<br />
cuja obra El Con<strong>de</strong> Lucanor um dos personagens apresenta aparência <strong>de</strong><br />
peregrino; Juan Ruiz, poeta castelhano também conhecido como Arcipreste <strong>de</strong><br />
Hita, autor <strong>de</strong> uma das obras literárias mais importantes da Ida<strong>de</strong> Média: Libro <strong>de</strong>l<br />
buen amor; Sem Tob <strong>de</strong> Carrión (1290-1369), poeta hebreu espanhol; e dom<br />
Pedro López <strong>de</strong> Ayala (1332-1407), poeta, prosador e historiador espanhol. Todos<br />
eles máximos expoentes do Mester <strong>de</strong> Clerecía). E no século XV, com Afonso<br />
Martínez <strong>de</strong> Toledo (1398-1470?), mais conhecido como o Arcipreste <strong>de</strong> Talavera,<br />
escritor e sacerdote espanhol que <strong>de</strong>ntre outros trabalhos escreveu duas<br />
hagiografias: Vida <strong>de</strong> San Isidoro e Vida <strong>de</strong> San Il<strong>de</strong>fonso; Juan <strong>de</strong> Mena (1411-<br />
1456), poeta espanhol pertencente à Escuela alegórico-dantesca do pré-<br />
renascimento, conhecido por sua obra Laberinto <strong>de</strong> Fortuna, poema alegórico<br />
48
consi<strong>de</strong>rado um dos mais importantes da literatura medieval castelhana; e toda a<br />
novela <strong>de</strong> cavalaria em obras como Amadis <strong>de</strong> Gaula ou a Cárcel <strong>de</strong> Amor <strong>de</strong><br />
Diego <strong>de</strong> San Pedro (¿1437-1498?), poeta e narrador do pré-renascimento. Da<br />
mesma forma, a poesia da Ida<strong>de</strong> Média chega a sua plenitu<strong>de</strong> com o poeta e<br />
militar castelhano Marquês <strong>de</strong> Santillana (1398-1458), um dos primeiros<br />
historiadores da literatura espanhola, Juan <strong>de</strong> Mena, que citamos anteriormente, e<br />
Jorge Manrique (1440?-1479), outro poeta do pré-renascimento espanhol, autor<br />
<strong>de</strong> Coplas a la muerte <strong>de</strong> su padre, outro clássico da literatura espanhola.<br />
Nos romances, as alusões à peregrinação po<strong>de</strong>m ser lembranças das<br />
fontes das quais proce<strong>de</strong>m. Temos o caso da história <strong>de</strong> Flores e Blancaflor que<br />
começa com a narração <strong>de</strong> um milagre do Apóstolo. Os pais <strong>de</strong> Blancaflor, indo<br />
para Santiago, encontram um velho peregrino, a quem os mouros mantiveram em<br />
cativeiro e abandonaram, atado a um rochedo, até que Santiago o liberta. Os<br />
romances tratam da romaria dos pais <strong>de</strong> Blancaflor que cumprem um voto feito a<br />
Santiago. Durante o percurso, os mouros matam seu pai (o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Flores ou rei<br />
<strong>de</strong> Flores) que vinha <strong>de</strong> Santiago, ou <strong>de</strong> São Salvador <strong>de</strong> Oviedo, e levam sua<br />
mãe cativa, segundo po<strong>de</strong> ser apreciado nas diferentes versões do romance,<br />
como a do Romanceiro <strong>de</strong> Almeida Garrett:<br />
Deram com o con<strong>de</strong> Flores<br />
Que vinha <strong>de</strong> romaría<br />
Vinha lá <strong>de</strong> Santiago,<br />
Santiago da Galicia;<br />
Mataram o con<strong>de</strong> Flores<br />
A con<strong>de</strong>sa vai cativa.<br />
O tema da violação <strong>de</strong> uma romeira, sugerido pelo poema acima, no<br />
Caminho <strong>de</strong> Santiago, também encontra-se em diferentes versões peninsulares<br />
que trataremos no terceiro capítulo <strong>de</strong>ste trabalho, por ser este um dos temas da<br />
obra <strong>de</strong> teatro La romera <strong>de</strong> Santiago, objeto principal <strong>de</strong>ste estudo.<br />
O teatro medieval em língua românica, que nasce nos mosteiros, nas<br />
catedrais e igrejas, com dramas litúrgicos, surge na Suíça e na França, no século<br />
IX, quando se <strong>de</strong>scobre o sepulcro do apóstolo Santiago e tem início a<br />
peregrinação até a região da Galícia. Eram textos dialogados que se misturavam<br />
com um texto <strong>de</strong> caráter litúrgico e que eram representados por clérigos em<br />
49
cerimônias <strong>de</strong> Natal, Epifanía, Páscoa, Ressurreição e Todos os Santos.<br />
Precisamente este tipo <strong>de</strong> texto, chamado em espanhol <strong>de</strong> tropo, texto breve com<br />
música que durante a Ida<strong>de</strong> Média era usado junto com o ofício litúrgico, encontra-<br />
se no mosteiro <strong>de</strong> Santo Domingo <strong>de</strong> Silos, e relaciona-se com o tropo pascoal<br />
Visitatio Sepulcri, obra musical do século XI atribuída a San Francisco <strong>de</strong> Borja,<br />
que a clerecía francesa introduz no Caminho <strong>de</strong> Santiago.<br />
Também se colocarão em cena as poéticas e macabras Danzas <strong>de</strong> la<br />
muerte, espetáculo proce<strong>de</strong>nte da França, e outra obra importante da Ida<strong>de</strong><br />
Média, o Auto <strong>de</strong> los Reyes Magos, do século XII, consi<strong>de</strong>rado a primeira obra<br />
teatral castelhana. Este teatro sacro alimentaria o teatro <strong>de</strong> autores posteriores,<br />
como o do poeta e dramaturgo medieval espanhol Gómez Manrique (1412-1490),<br />
com a sua representação do Nacimiento <strong>de</strong> Nuestro Señor; e o do poeta, músico e<br />
cantor espanhol Juan <strong>de</strong> Encina (1469-1529), no século XV, que por sua parte<br />
continua com seu cancioneiro, mas inicia um teatro mais profano e secularizado<br />
com églogas pastoris dramatizadas.<br />
No entanto, será em fins do século XV quando o escritor castelhano<br />
Fernando <strong>de</strong> Rojas (1465-1541), com sua obra La Celestina, torne in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e<br />
secularize o teatro, mas sem esquecer os conteúdos e princípios morais da<br />
teologia cristã.<br />
Pouco antes <strong>de</strong> finalizar o século XVI, as peregrinações a Compostela<br />
sofrem um consi<strong>de</strong>rável retrocesso <strong>de</strong>vido à Reforma, que fez <strong>de</strong>saparecer, quase<br />
na sua totalida<strong>de</strong>, os peregrinos ingleses e alemães.<br />
Na medida em que a Contra-Reforma re-introduz na história espanhola<br />
elementos da Ida<strong>de</strong> Média, tanto na religião quanto na política, no pensamento e<br />
nas diversas manifestações artísticas, o interesse pelo Caminho reaparece.<br />
Frei Gabriel Téllez (1579-1648), discípulo do poeta e dramaturgo espanhol<br />
Félix Lope <strong>de</strong> Vega Carpio (1562-16335), conhecido com o pseudônimo <strong>de</strong> Tirso<br />
<strong>de</strong> Molina é quem usa a temática jacobéia em peças <strong>de</strong> teatro, como expressão<br />
<strong>de</strong> conhecimento direto do mito ao Apóstolo e das terras galego-portuguesas.<br />
50
2. BARROCO<br />
Toda forma exige fechamento e fim, e o barroco se <strong>de</strong>fine pelo<br />
movimento e instabilida<strong>de</strong>; parece-nos, pois, que ele se encontra ante um<br />
dilema: ou negar -se como barroco, para completar-se numa obra, ou<br />
resistir à obra para persistir fiel a si mesmo (Jean Rousset) 15<br />
A palavra barroco, inventada por críticos posteriores ao século XVII,<br />
<strong>de</strong>nomina um período histórico na cultura oci<strong>de</strong>ntal que refletiu-se em obras nas<br />
áreas <strong>de</strong> literatura, escultura, pintura, arquitetura e música. Em base nas nossas<br />
pesquisas po<strong>de</strong>mos afirmar que o estilo artístico <strong>de</strong>nominado Barroco surgiu por<br />
volta <strong>de</strong> meados do século XVI, na Itália, e espalhou-se para a maioria do<br />
continente europeu. Foi na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma que se <strong>de</strong>u a <strong>de</strong>cantação suprema da<br />
Renascença, pois esse era o lugar on<strong>de</strong> a forma era mais rigorosa, portanto ali foi<br />
possível apreciar a dissolução da forma <strong>de</strong> um modo mais consciente.<br />
Segundo Heinrich Wölfflin (1864-1945) crítico <strong>de</strong> arte suíço, consi<strong>de</strong>rado<br />
um dos melhores historiadores da arte <strong>de</strong> toda Europa, o Barroco foi introduzido<br />
pelos gran<strong>de</strong>s mestres da Renascença. Do ponto <strong>de</strong> vista cronológico estaria<br />
<strong>de</strong>limitado pela Renascença e o Neoclassicismo, que começa a surgir em meados<br />
do século XVIII.<br />
Durante muito tempo o termo barroco teve um sentido pejorativo, pois<br />
significava o excesso <strong>de</strong> ênfase e a abundância na ornamentação, mas foi re-<br />
valorizado no final do século XIX por Jacob Burckhardt (1818-1897) historiador<br />
suíço <strong>de</strong> arte e cultura, e <strong>de</strong>pois por Bene<strong>de</strong>tto Croce (1866-1952) escritor,<br />
filósofo, historiador e político alemão e Eugenio d’Ors (1882-1954) escritor,<br />
ensaísta, jornalista, filósofo e crítico da arte espanhola. O termo foi finalmente<br />
reabilitado em 1888 por Wölfflin, discípulo <strong>de</strong> Burckhardt, que no mesmo ano<br />
publica na Suíça o manual Renascença e Barroco, resultado <strong>de</strong> profundas<br />
pesquisas, recolhimento <strong>de</strong> material e exame exaustivo <strong>de</strong> formas artísticas.<br />
Wölfflin verá o estilo Barroco:<br />
15 1910-2002 – Crítico literário e teórico suíço.<br />
[...] não como um estilo <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, mas como uma forma <strong>de</strong><br />
representação nova e vital, que havia evoluído a partir do Renascimento.<br />
51
É com entusiasmo e confiança que o autor vai i<strong>de</strong>ntificar essa corrente<br />
estética como inevitável <strong>de</strong>corrência da anterior. (WÖLFFLIN, 2005, p.14)<br />
O assunto fundamental na pesquisa <strong>de</strong> Wölfflin será sempre o Barroco,<br />
embora a Renascença seja seu ponto <strong>de</strong> partida, já que <strong>de</strong> certa forma ele dá uma<br />
continuida<strong>de</strong> ao trabalho <strong>de</strong> seu mestre, mesmo com claras oposições, pois<br />
embora Burckhardt mantivesse uma ligação relativa entre a História da Cultura e a<br />
História da Arte, esta última era trabalhada mais como complemento e ilustração<br />
daquele período. Wölfflin, <strong>de</strong> sua parte, tenta mostrar a História da Arte como uma<br />
história das formas artísticas e não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da História das Culturas. Através<br />
do contato com as teorias <strong>de</strong> Konrad Fiedler (1841-1895), crítico <strong>de</strong> arte alemão, e<br />
Johann Lucas von Hil<strong>de</strong>brandt (1668-1745), arquiteto austríaco nascido na Itália,<br />
Wölfflin focaliza sua atenção sobre os elementos plásticos que formam parte da<br />
obra, ao mesmo tempo que avalia o conjunto como estilo artístico, preconizando<br />
com seu ponto <strong>de</strong> vista que a arte dita suas próprias sentenças.<br />
Mas antes da publicação do manual Renascença e Barroco, Wölfflin<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, em 1886, a tese Prólogo a uma Psicologia da Arquitetura. É aqui on<strong>de</strong><br />
ele expressa a idéia <strong>de</strong> que as formas artísticas não são criadas<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente, senão que surgem do sentimento popular e fazem parte <strong>de</strong><br />
um principio em que elas e os indivíduos possuem um <strong>de</strong>stino aparentemente<br />
previsível.<br />
No seu trabalho seguinte, Renascença e Barroco, ele fará um estudo das<br />
formas arquitetônicas, civil e religiosas, como são os palácios, jardins, igrejas etc.,<br />
on<strong>de</strong> se percebe a evolução dos tipos durante os períodos.<br />
Em 1899, termina o livro A Arte Clássica e em 1915 publica Conceitos<br />
fundamentais da História da Arte tornando-se, assim, um dos mais importantes<br />
historiadores da visualida<strong>de</strong>. Nessa obra ele propõe a análise das formas<br />
artísticas a partir <strong>de</strong> si mesmas. Estabelece dois pólos <strong>de</strong>nominados<br />
Renascimento ou Clássico e Barroco, os quais suce<strong>de</strong>m-se na mesma or<strong>de</strong>m,<br />
evolutiva. I<strong>de</strong>ntifica o primeiro como uma arte imitativa e <strong>de</strong> formas construídas e<br />
fechadas, própria dos países mediterrâneos, e o segundo estilo, como uma arte<br />
<strong>de</strong>corativa e <strong>de</strong> formas livres, características dos paises do Norte da Europa.<br />
52
Wölfflin i<strong>de</strong>ntifica o estilo Barroco como oponente ao Renascimento e como<br />
uma classe diferente <strong>de</strong>ntro da arte. Ele o <strong>de</strong>fine em cinco traços característicos<br />
limitando sua análise estrutural ao po<strong>de</strong>r discriminatório dos olhos e a como se<br />
observam e se reproduzem os objetos:<br />
• Busca do movimento real e busca do imaginário. “Enquanto o<br />
clássico é linear e plástico, o barroco é pictórico” (SILVA, 2005, p. 16). O<br />
estilo linear é visualizado em linhas e o pictórico, em massas. Segundo<br />
Wölfflin, “o pictórico funda-se na impressão do movimento [...]”<br />
(WÖLFFLIN, 2005, p. 40). O Barroco evoluiu para as linhas livres, as<br />
luzes e as sombras, o que oferece movimento e <strong>de</strong> certa forma dissolve<br />
a figura. Quer dizer que o objeto não é percebido por meio da linha ou<br />
do <strong>de</strong>senho, senão pela massa e cor, os quais sugerem as formas.<br />
• Tentativa <strong>de</strong> sugerir o infinito. A arte clássica revelava-se na<br />
superfície, mas no Barroco a imagem organizava-se através da<br />
superposição <strong>de</strong> planos, o que dá o efeito <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>.<br />
• Importância da luz e seus efeitos. Os contrastes <strong>de</strong> luz e sombras<br />
são característicos do Barroco, já que ao existir a superposição <strong>de</strong><br />
planos per<strong>de</strong>-se a clareza absoluta presente no período clássico.<br />
• Gosto pela teatralida<strong>de</strong>, por tudo que é relativo à cenografia e pelo<br />
fastuoso. Os elementos, isoladamente, per<strong>de</strong>m a expressivida<strong>de</strong>, mas<br />
unidos oferecem uma visão única, a primeira que se percebe.<br />
• Tendência a misturar as diferentes disciplinas artísticas. Embora uma<br />
obra <strong>de</strong> arte se apresente como uma forma fechada, a obra barroca<br />
possui a particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não obe<strong>de</strong>cer leis rígidas, senão que se<br />
mostra aberta e flexível.<br />
O estilo Barroco é para Wölfflin “[...] a expressão <strong>de</strong> uma época, <strong>de</strong> um<br />
sentimento nacional e <strong>de</strong> um temperamento pessoal” (WÖLFFLIN, 2005, p 16-17).<br />
É assim que surge o postulado <strong>de</strong> que nem tudo é possível em todas as épocas.<br />
Os dois momentos históricos, o Clássico e o Barroco, mostram-se como<br />
núcleos básicos para compreen<strong>de</strong>r as artes que se suce<strong>de</strong>m e recomeçam, o que<br />
53
dará lugar a um conceito <strong>de</strong> periodicida<strong>de</strong> que marca o ritmo da história:<br />
interrupção e reinício. Quando fatores externos atuam, provocam um rompimento<br />
das leis internas da evolução das formas e dão início a um novo ciclo. Assim a<br />
cada reinício novas conquistas se somam.<br />
Wölfflin, na sua obra Princípios da História da Arte, estabelece o Barroco<br />
como “fenômeno estilístico em todas as artes do <strong>de</strong>senho” (HATZFELD, 2002, p.<br />
16), na maioria dos países europeus no século XVII. O que Wölfflin fez em relação<br />
aos aspectos formais do Barroco, Werner Weisbach (1873-1953), historiador <strong>de</strong><br />
arte suiço, fez em relação ao seu conteúdo, iconografia e significado, expressado<br />
em seu livro sobre o Barroco e a Contra-Reforma (HATZFELD, 2002, p. 16).<br />
Aparecem também outros autores que discordam da origem do estilo, como<br />
Sacheverell Sitwell (1897-1988), escritor inglês, crítico <strong>de</strong> arte e arquitetura,<br />
principalmente do estilo Barroco, que em 1924 levanta a questão <strong>de</strong> o Barroco ser<br />
espanhol em sua origem. O escritor e filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-<br />
1955), <strong>de</strong> certa forma, também apóia a teoria <strong>de</strong> Sitwell, pois segundo ele:<br />
[...] o Barroco não só se encontrava já pré -formado na Espanha, mas<br />
também havia chegado a seu ponto culminante quando a península se<br />
<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u das últimas influências renascentistas [...] a contribuição<br />
espanhola para o Barroco consiste nessa pintura ‘a distância’, em que o<br />
orgulhoso <strong>de</strong>sdém inato no caráter espanhol preten<strong>de</strong> ver somente o<br />
essencial do objeto para o qual dirige sua vista, enquanto o aci<strong>de</strong>ntal se<br />
percebe sem contornos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosamente, ‘com o rabo dos olhos’<br />
(HATZFELD, 2002, p. 18).<br />
O historiador <strong>de</strong> arte alemã e francesa, Otto Grautoff (1876-1937), afirma<br />
que não é necessário recorrer à Contra-Reforma para explicar a origem do<br />
Barroco espanhol. Para ele, o estilo mostra ao se expressar inquietu<strong>de</strong> em relação<br />
a Deus e protesta contra o paganismo, além das formas retorcidas e <strong>de</strong> tentar<br />
transformar o real em algo irracional.<br />
Outros tantos críticos tentaram interpretar e <strong>de</strong>finir o estilo Barroco. Em<br />
1936, Herbt Cysarz encontra uma fórmula que compreen<strong>de</strong> todo o Barroco<br />
espanhol, “[...] a visão <strong>de</strong> um mundo partido através <strong>de</strong> um prisma <strong>de</strong> cambiantes<br />
aspectos metafóricos, que acham sua unida<strong>de</strong> em Deus” (HATZFELD, 2002, p.<br />
22). O hispanista francês Marcel Bataillon (1895-1977) em 1937, em seu livro<br />
54
chamado Erasmo y España, apresenta uma teoria do Barroco mais ampla, a qual<br />
novamente procura suas raízes no Concílio <strong>de</strong> Trento.<br />
No que se refere à literatura, a sobrieda<strong>de</strong>, a mesura e o equilíbrio<br />
renascentista transformam-se, no estilo Barroco, em exuberâncias estilísticas <strong>de</strong><br />
escritores das vertentes cultistas 16 e conceptistas 17 .<br />
Cultismo ou Gongorismo, com gran<strong>de</strong> influência do escritor Luis <strong>de</strong><br />
Góngora, chama-se à valorização da forma e da imagem, à simples <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong><br />
objetos por meio <strong>de</strong> uma linguagem rebuscada, culta e extravagante, em forma <strong>de</strong><br />
jogo <strong>de</strong> palavras, uso <strong>de</strong> metáforas, hipérbole, analogias e comparações.<br />
Manifesta -se uma sensação <strong>de</strong> angústia que carece <strong>de</strong> fé.<br />
Por sua parte, o Conceptismo ou Quevedismo, palavra <strong>de</strong>rivada do<br />
espanhol Quevedo, por ter sido este um dos principais cultores do Conceptismo,<br />
está marcado pela valorização do conteúdo ou conceito e também por um jogo <strong>de</strong><br />
idéias através do raciocínio lógico que utiliza uma retórica aprimorada. Os<br />
conceptistas pesquisam a essência íntima dos objetos, buscando saber o que são,<br />
e <strong>de</strong>sta forma a inteligência, lógica e raciocínio ocupam o lugar dos sentidos. Usa-<br />
se a parábola com finalida<strong>de</strong> mística e religiosa.<br />
Em resumo, po<strong>de</strong>mos afirmar que o estilo Barroco foi uma revolução <strong>de</strong><br />
formas e idéias e não uma continuida<strong>de</strong> do período que o antece<strong>de</strong>. O<br />
Classicismo não foi suficiente para satisfazer as ânsias <strong>de</strong> novas soluções. Cria-se<br />
um novo teatro. Na literatura, Lope <strong>de</strong> Vega dogmatiza os cânones. A poesia<br />
<strong>de</strong>scobre o po<strong>de</strong>r lírico da metáfora e Góngora inicia o rico e complexo cultismo. A<br />
prosa mostra novos procedimentos expressivos. A sátira alcança sua maior<br />
hipérbole. E é nessa revolução das expressões, com imagens brilhantes, idéias<br />
engenhosas e audácias estilísticas que se rompe com os limites naturais, valendo-<br />
se <strong>de</strong> todos os meios capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar o terror ou a compaixão, a admiração<br />
ou a surpresa, com temas maravilhosos, monstruosos, grotescos ou pitorescos e<br />
nas palavras <strong>de</strong> Alborg “El Barroco [...] es literatura. Una literatura, sin embargo,<br />
<strong>de</strong> excepcional calidad, que, con su buena porción <strong>de</strong> impurezas y excesos,<br />
16 Referente ao Cultismo.<br />
17 Referente ao Conceptismo.<br />
55
produce obras <strong>de</strong> incomparable belleza en todos los géneros literarios [...]”<br />
(ALBORG, 1970, p. 21).<br />
56
2.1. O teatro barroco espanhol<br />
Como sabemos, o estilo Barroco está intimamente ligado, mas não<br />
somente, a questões religiosas advindas do processo <strong>de</strong> Contra-Reforma<br />
estabelecido pela Igreja Católica no Concílio <strong>de</strong> Trento que pretendia,<br />
principalmente, a reafirmação da fé no catolicismo em toda a Europa e suas<br />
colônias. Po<strong>de</strong>mos dizer, como o fez Werner Weisbach (CARPEAUX, 1990), que<br />
o Barroco é a expressão artística da Contra-Reforma e que po<strong>de</strong> ser apreciado em<br />
suas várias vertentes: a poesia, a pintura, a escultura (principalmente na<br />
personificação <strong>de</strong> santos e mártires religiosos), a música e o teatro (tanto as<br />
tragédias quanto as comédias).<br />
E as comédias teatrais <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina estão, inegavelmente, inseridas<br />
no estilo Barroco do período em que foram criadas. Mais especificamente no estilo<br />
Barroco Espanhol, assim como também o são as do seu contemporâneo Lope <strong>de</strong><br />
Vega, criador <strong>de</strong> El arte nuevo <strong>de</strong> hacer comedias, livro publicado em 1609 na<br />
Espanha, que organizava e prescrevia uma série <strong>de</strong> regras para a arte teatral<br />
barroca 18 , embora naquela época esta arte teatral não fosse <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong>sta<br />
forma.<br />
O que mais caracteriza o teatro espanhol <strong>de</strong> estilo barroco está muito<br />
próximo daquilo que ocorria na literatura da mesma época, ou seja, a valorização<br />
da personagem como agente da ação e sua transformação, ao longo da trama,<br />
como resultado <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> “iluminação” interior que, quase<br />
invariavelmente, reflete uma conversão ao catolicismo ou um aspecto moralizante,<br />
aceito pela i<strong>de</strong>ologia católica. Po<strong>de</strong>mos perceber isso <strong>de</strong> forma clara na análise,<br />
sobre a estética da personagem literária na poética barroca, feita por Jesús G.<br />
Maestro, quando este, resumidamente, aponta cinco aspectos que <strong>de</strong>lineiam os<br />
tipos encontrados nos textos barrocos. Vejamos quatro <strong>de</strong>les, que são pertinentes<br />
com nossos estudos:<br />
18 Conferir Juan Manuel Rozas, que faz extensa análise sobre aquele livro em Significado y<br />
doctrina <strong>de</strong>l Arte Nuevo <strong>de</strong> Lope <strong>de</strong> Vega.<br />
57
1. La limitación <strong>de</strong> la expresión <strong>de</strong>l personaje en el uso <strong>de</strong>l lenguaje: el<br />
<strong>de</strong>coro frente a la polifonía.<br />
2. La evaluación y subordinación <strong>de</strong>l sujeto en la fábula, como principio<br />
estructural y teleológico <strong>de</strong> los hec hos.<br />
3. La construcción <strong>de</strong>l personaje como resultado <strong>de</strong> la voluntad <strong>de</strong> un<br />
or<strong>de</strong>n moral trascen<strong>de</strong>nte e inmutable.<br />
4. La reducción <strong>de</strong>l personaje literario a un arquétipo lógico <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />
conducta. (MAESTRO, 2004, p. 526-527)<br />
Maestro argumenta que escritores e dramaturgos do setecentos se baseiam<br />
no <strong>de</strong>coro, nos conceitos clássicos <strong>de</strong> fábula, na configuração arquetípica das<br />
personagens e no uso tradicional das formas <strong>de</strong> linguagem dramática (monólogo,<br />
diálogos e apartes), não para apresentá-los formalmente, mas para transformá-los<br />
com pretensões renovadoras, como acontece com Lope (por exemplo, em “Lo<br />
fingido verda<strong>de</strong>ro”, comédia escrita entre 1604 e 1618 e <strong>de</strong>dicada a Tirso <strong>de</strong><br />
Molina) e Cervantes (“El rufian dichoso”, único drama especificamente religioso do<br />
autor da obra “El Quijote”, publicado em 1615).<br />
Mas o teatro barroco também reflete questões políticas (quase sempre há<br />
reis e nobres, reconhecidos historicamente, em posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque) quando<br />
passa a representar, além das forças cósmicas, aqueles que falam pelo Estado e<br />
pela Igreja.<br />
Aliados a estas questões intrínsecas da obra teatral, temos ainda dois<br />
aspectos inovadores que se inserem na planificação cênica (indicados nas<br />
didascálias explícitas e implícitas, ao longo dos textos) que são a perspectiva e a<br />
mudança <strong>de</strong> cena, criadas pelos dramaturgos barrocos.<br />
A perspectiva e a mudança <strong>de</strong> cena parecem inovações exteriores; na<br />
verda<strong>de</strong>, são transformações tão profundas que o sentido metafísico da<br />
arte teatral manifesta-se aí.<br />
A perspectiva é uma qualida<strong>de</strong> do espaço; ela é própria a certos espaços<br />
enquanto outros espaços carecem <strong>de</strong>la. No teatro mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
barroco, o espaço da cena possui a perspectiva, enquanto o espaço dos<br />
espectadores, a sala, não. Por isso, os dois espaços estão radicalmente<br />
separados: o espaço na arquitetura do Renascimento é "aditivo", o<br />
espaço na arquitetura do Barroco é "separativo". Na Ida<strong>de</strong> Média, o<br />
espaço dos espectadores e o espaço dos atores coinci<strong>de</strong>m, todo mundo<br />
participa do espetáculo dos Mistérios; no Renascimento, os dois espaços<br />
se adicionam e se completam, avizinham -se; no Barroco, os dois espaços<br />
estão radicalmente separados. É uma transformação radical. A cena se<br />
transforma, pela primeira vez, em um "mundo da ilusão", in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
do mundo real; um mundo ilusório, um mundo dos sonhos. É por isso que<br />
o assunto "sonho" é tão caro ao teatro barroco que encontra aí sua mais<br />
íntima substância [...]. (CARPEAUX, 1990).<br />
58
Segundo o mesmo estudioso, o teatro barroco é marcado pela sua<br />
movimentação, nada é estático. A perspectiva e as mudanças cênicas facilitam<br />
essa velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação, on<strong>de</strong> a realida<strong>de</strong>, o sonho e a ilusão se justapõem,<br />
formando a “alma do teatro barroco”. Há uma espécie <strong>de</strong> frenesi em cena que,<br />
com raríssimas exceções, termina em apoteose: dos sentidos, da concretização<br />
dos <strong>de</strong>sejos, da transformação do homem pelo divino. Neste sentido, até mesmo a<br />
morte po<strong>de</strong> ser vista como a apoteose da vida do personagem-mártir, quando é<br />
ele o centro da trama ou está em evidência na narrativa. Mas não se po<strong>de</strong><br />
esquecer que o teatro barroco é também o teatro da vonta<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>stino final <strong>de</strong><br />
cada personagem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu livre-arbítrio e será, por esta via, sua escolha<br />
ou não por unir-se aos caminhos <strong>de</strong>sejados por Deus e pela Igreja, ou Estado.<br />
59
2.2. O dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina<br />
Dentre os discípulos <strong>de</strong> Lope <strong>de</strong> Vega <strong>de</strong>staca-se Frei Gabriel Tellez, da<br />
Or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> la Merced 19 , também conhecido no mundo literário com o pseudônimo<br />
<strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina, um dos máximos dramaturgos do Século <strong>de</strong> Ouro.<br />
De origem humil<strong>de</strong>, ingressou jovem no convento da Merced, em Madri,<br />
para professar sua fé, um ano <strong>de</strong>pois, no convento <strong>de</strong> Guadalajara. Segundo<br />
<strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> seus superiores percorreu vários conventos mercedarios na Espanha<br />
(Guadalajara, Toledo, Soria, Segovia, Sevilha, Trujillo, Cuenca etc.) ocupando<br />
inclusive o cargo <strong>de</strong> comendador em alguns <strong>de</strong>les. Em 1620 seu talento alcança o<br />
ponto máximo com peças <strong>de</strong> teatro como El burlador <strong>de</strong> Sevilla (1619) ou Los<br />
cigarrales <strong>de</strong> Toledo.<br />
Tirso é também um dos poucos escritores barrocos que teve a oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> conhecer a realida<strong>de</strong> do Novo Mundo, quando na segunda década do século<br />
XVII, encontrando-se na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tajo, é escolhido para uma missão pastoral na<br />
ilha caribenha <strong>de</strong> Santo Domingo (1616-1618). Assim o dramaturgo transmitirá,<br />
em obras como Trilogía <strong>de</strong> los Pizarro , sua visão do novo continente, ou em<br />
Historia General <strong>de</strong> la Or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> la Merced, livro este último que <strong>de</strong>screve, na<br />
condição <strong>de</strong> cronista. Nesta última obra, que finaliza em 1639, Tirso escreve<br />
também sobre a morte <strong>de</strong> Felipe III:<br />
Vaccó (...) la monarquía <strong>de</strong> España, con la intempestiva muerte y mal<br />
lograda juventud <strong>de</strong> Philippo, el manso, el apacible, el sancto y el<br />
piadosso. Murió con él la paz <strong>de</strong> su corona, la abundancia <strong>de</strong> sus<br />
súbditos y el siglo dorado muchas veces, y <strong>de</strong> el modo que a la ruina <strong>de</strong><br />
una gran<strong>de</strong> fábrica cae con ella todo lo sumptuoso, lo rico y lo estudiado,<br />
ansí con este rey nuestras felicida<strong>de</strong>s, y sólo nos quedaron los recuerdos<br />
<strong>de</strong> tanto bien perdido. Vivos permanecerán por heda<strong>de</strong>s muchas los<br />
llantos, los sentimientos y congojas, que ocasionó esta tragedia<br />
irremediable a su inmensa monarquía y en especial a su ya huérfana<br />
corte (PENEDO, 1973, p. 445).<br />
Em 1625 a Junta <strong>de</strong> Reformação dos Costumes, criada por Felipe IV em<br />
1621 e que <strong>de</strong>ntre outras coisas ocupava-se das comédias e dos livros que,<br />
19 Or<strong>de</strong>m religiosa católica fundada por São Pedro Nolasco, jovem mercador <strong>de</strong> Barcelona, para a<br />
re<strong>de</strong>nção dos cristãos cativos nas mãos dos muçulmanos.<br />
60
segundo ela, podiam ser prejudiciais para a juventu<strong>de</strong>, ataca o dramaturgo por se<br />
<strong>de</strong>dicar a escrever “comedias profanas y <strong>de</strong> malos incentivos”, o que o obriga a<br />
sair <strong>de</strong> Madri e trasladar-se para fora da corte, indo para Sevilha:<br />
Tratóse <strong>de</strong>l escándalo por causa <strong>de</strong> un fraile mercedario, que se llama el<br />
Maestro Téllez, por otro nombre Tirso, con comedias que hace profanas y<br />
<strong>de</strong> malos incentivos y ejemplos. Y por ser caso notorio se acordó que se<br />
consulte a su majestad <strong>de</strong> que el confesor diga al Nuncio le eche <strong>de</strong> aquí<br />
a uno <strong>de</strong> los monasterios más remotos <strong>de</strong> su religión y le imponga<br />
excomunión mayor latae sententiae para que no haga comedias ni otro<br />
ningún género <strong>de</strong> versos profanos (GONZÁLEZ PALENCIA, 1946 apud<br />
ARELLANO, 2008 p. 43-84). 20<br />
Ángel González Palencia 21 em sua obra Quevedo, Tirso y las comedias<br />
ante la Junta <strong>de</strong> Reformación expõe a atitu<strong>de</strong> da Junta frente às comédias e<br />
também a proclamação do dia 6 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1625, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>:<br />
Y porque se ha reconocido el daño <strong>de</strong> imprimir libros <strong>de</strong> comedias,<br />
nouelas ni otros <strong>de</strong>ste género, por el que blandamente hacen las<br />
costumbres <strong>de</strong> la jubentud, se consulte a su Majestad or<strong>de</strong>ne al Consejo<br />
que en ninguna manera se dé licencia para imprimirlos 22 .<br />
Depois do inci<strong>de</strong>nte Tirso <strong>de</strong>ixará, por uns anos, <strong>de</strong> escrever para o teatro.<br />
Viajará para Andalucía, até que em 1626 será nomeado comendador do convento<br />
<strong>de</strong> Trujillo, on<strong>de</strong> morará até 1629, e confeccionará a obra sobre a trilogia dos<br />
Pizarro.<br />
Anos <strong>de</strong>pois (1627-1636) aparecem cinco volumes ou partes, que recolhiam<br />
o grosso <strong>de</strong> sua produção teatral, assim como também sua miscelânea <strong>de</strong> caráter<br />
religioso Deleytar aprovechando (1635), <strong>de</strong> estrutura semelhante à sua<br />
miscelânea profana chamada Cigarrales <strong>de</strong> Toledo (1624).<br />
É em 1634 que se retoma a concessão das licenças, pois até então não era<br />
autorizada a impressão <strong>de</strong> novelas e comédias. Em 1635 aparecem: parte IV e V<br />
20<br />
ARELLANO, Ignácio. Historia <strong>de</strong>l teatro español <strong>de</strong>l siglo XVII. 4ª ed. Madrid: Cátedra, 2008.<br />
766 p. p. 331.<br />
21<br />
1889-1949 – Crítico literário espanhol.<br />
22<br />
http://teatrosiglo<strong>de</strong>oro.bne.es/DocumentosPdf/31920/031920.pdf Acesso 09/11/2009<br />
61
das comédias <strong>de</strong> Tirso, parte XXI e XXII <strong>de</strong> Lope <strong>de</strong> Vega, parte I <strong>de</strong> Juan Pérez<br />
<strong>de</strong> Montalbán e parte I <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>rón.<br />
Afetado em parte pelo episódio da Junta <strong>de</strong> Reformação e pelas pressões<br />
recebidas <strong>de</strong>ntro da Or<strong>de</strong>m, o dramaturgo abandona lentamente a produção <strong>de</strong><br />
comédias e textos profanos. Passa seus últimos anos como comendador no<br />
convento <strong>de</strong> Soria. No início <strong>de</strong> 1648 adoece no convento soriano 23 <strong>de</strong> Almazán e<br />
falece no dia 20 <strong>de</strong> fevereiro do mesmo ano.<br />
Suas comédias completas imprimiram-se em cinco partes: a Primeira parte<br />
em 1627 (Sevilha), a Segunda, em 1635 (Madri), a Terceira em 1634 (Tortosa), a<br />
Quarta em 1635 (Madri) e a Quinta em 1636 (Madri).<br />
Sua obra dramática começa a ser conhecida a partir do século XVII através<br />
<strong>de</strong> manuscritos ou naquilo que chamamos <strong>de</strong> sueltas, integradas em volumes<br />
coletivos com nomes <strong>de</strong> diferentes autores. Segundo a crítica Blanca Oteiza:<br />
[...] Ya en el siglo XX tenemos una colección completa, la <strong>de</strong> Ríos [...] y<br />
sueltas, que presentan un panorama variopinto: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ediciones<br />
escolares (Clásicos Ebro), divulgativas (colección Austral <strong>de</strong> Espasa<br />
Calpe, Turner-<strong>Biblioteca</strong> <strong>Castro</strong>)... las semicríticas (Clásicos Castellanos)<br />
y críticas (Reichenberger, PPU, Cátedra, Alhambra, Castalia, Taurus,<br />
Crítica, IET), <strong>de</strong> diversa valoración e interés. (ARELLANO, 1999, p. 100).<br />
Somente dois manuscritos, dos que se conservam, estão autografados.<br />
Eles são as comédias primeira e terceira da trilogia La Santa Juana, assinadas e<br />
datadas em 1613 e 1614.<br />
Algumas comédias apresentam seus textos recompostos a partir <strong>de</strong><br />
manuscritos vários nos quais não aparece atribuição alguma a Tirso ou, no caso<br />
<strong>de</strong> tê-la, é pouco confiável [...] Habladme en entrando hay un manuscrito en la<br />
<strong>Biblioteca</strong> Nacional <strong>de</strong> Madrid (Ms. 1.450) que la atribuye a Manuel Vallejo [...]”.<br />
(ARELLANO, 1999, p. 100). Segundo Oteiza faz-se necessário um estudo <strong>de</strong><br />
todos os manuscritos <strong>de</strong> Tirso para po<strong>de</strong>r fixar não somente uma relação <strong>de</strong>les<br />
com os textos principais senão, na medida do possível, para autorizar ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
atribuir possíveis autorias. No capítulo ¿Conocemos los textos verda<strong>de</strong>ros <strong>de</strong><br />
23 Relativo a Soria.<br />
62
Tirso?, do manual Varia lección <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina, Oteiza realiza um<br />
levantamento exaustivo da origem <strong>de</strong> algumas obras dramáticas do dramaturgo e<br />
das diferentes edições com que contamos hoje em dia para realizar estudos<br />
críticos e minuciosos da obra tirsiana.<br />
Da mesma forma, o Padre Luis Vázquez, pertencente à Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> la<br />
Merced, no capítulo Editar la prosa <strong>de</strong> Tirso, também incluído no manual<br />
anteriormente citado, trabalha as facetas lírica, novelesca e histórica da obra do<br />
dramaturgo. Vázquez afirma: [...] Ignoramos si se publicaron las doce novelas, que<br />
Tirso anuncia en ‘Al bien intencionado’ <strong>de</strong> Cigarrales <strong>de</strong> Toledo [...] (ARELLANO,<br />
1999, p. 164). Segundo ele falta também a maior parte da Vida <strong>de</strong> la santa madre<br />
doña María <strong>de</strong> Çervellón. O manuscrito foi <strong>de</strong>scoberto no Archivo <strong>de</strong> la Delegación<br />
<strong>de</strong> Hacienda <strong>de</strong> Barcelona e publicado por Menén<strong>de</strong>z Pelayo na Revista <strong>de</strong><br />
Archivos, <strong>Biblioteca</strong>s y Museos em 1908 e 1909. Sabe-se que existia também,<br />
manuscrita, uma obra do dramaturgo chamada Genealogía <strong>de</strong> los Con<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Sástago.<br />
Tudo o que Luis Vázquez trabalha no capítulo citado <strong>de</strong>ixa claro que<br />
existem obras <strong>de</strong> Tirso “perdidas” e/ou não realizadas pelo dramaturgo, o que<br />
dificulta suas edições. Mas o crítico da obra tirsiana expõe seu ponto <strong>de</strong> vista<br />
daquela prosa que, sim, po<strong>de</strong>ria e <strong>de</strong>veria ser editada, assim como os prólogos<br />
com suas obras respectivas, editados em conjunto para po<strong>de</strong>r trabalhar a unida<strong>de</strong><br />
do estilo e do gênero, embora menor, mas importante também na época em que<br />
foram compostos.<br />
63
2.3. Ciclos teatrais <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina<br />
A obra <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina compreen<strong>de</strong> comédias do tipo bíblicas,<br />
hagiográficas, filosóficas e teológicas. É nas duas últimas que encontramos suas<br />
gran<strong>de</strong>s criações dramáticas, profanas na sua forma externa, mas <strong>de</strong> profunda<br />
intenção religioso-moral.<br />
O ciclo bíblico <strong>de</strong> Tirso consta <strong>de</strong> obras como La mujer que manda en casa<br />
que conta a trágica história <strong>de</strong> Acab e Jezabel, esta última que o dramaturgo<br />
transforma em instigadora das malícias do primeiro; La mejor espiga<strong>de</strong>ra, on<strong>de</strong> o<br />
dramaturgo cria a antítese <strong>de</strong> Jezabel, a doce e amorosa Rut, na qual<br />
encontramos um das personagens mais incomum do teatro barroco, como é a da<br />
sogra, neste caso Noemi. Em Tanto es lo <strong>de</strong> más como lo <strong>de</strong> menos, Tirso vale-se<br />
das parábolas bíblicas do filho pródigo e do rico avarento. La vida y muerte <strong>de</strong><br />
Hero<strong>de</strong>s tem por argumento principal o drama conjugal <strong>de</strong> Hero<strong>de</strong>s, seus violentos<br />
ciúmes e a trágica morte <strong>de</strong> sua esposa, a sensual e bela Mariadnes e La<br />
venganza <strong>de</strong> Tamar, seu último drama bíblico, inspirado no Antigo Testamento,<br />
que relata a violação da filha do rei Davi por seu meio irmão Absalón, outro filho<br />
<strong>de</strong> Davi. Segundo Berislav Primorac, no seu estudo sobre os elementos cômicos<br />
da obra sinaliza:<br />
En La venganza <strong>de</strong> Tamar, igual que en La mujer que manda en casa,<br />
hay poco lugar para la comicidad. Sólo algunas escenas que contribuyen<br />
a relajar la tensión <strong>de</strong> esta tragedia sombría <strong>de</strong>l amor incestuoso <strong>de</strong><br />
Amón por su hermana y la venganza sangrienta <strong>de</strong> Absalón. Eliazer,<br />
criado <strong>de</strong> Amon, es la principal fuente <strong>de</strong> humor [...] 24<br />
Tirso compôs também um importante grupo <strong>de</strong> comédias hagiográficas<br />
como são La Santa Juana, trilogia; La ninfa <strong>de</strong>l cielo, em cuja obra a protagonista<br />
Ninfa, con<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>flor, a bandoleira <strong>de</strong> Tirso (o bandolerismo feminino é<br />
próprio do teatro profano e usual na escola <strong>de</strong> Lope <strong>de</strong> Vega) é vítima <strong>de</strong> um<br />
24 Berislav Primorac – Los elementos cómicos en La venganza <strong>de</strong> Tamar -<br />
http://<strong>de</strong>scargas.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/tirso/04700518780425295209079/020362<br />
.pdf?incr=1. Acesso 13/01/<strong>2010</strong>.<br />
64
sedutor. Com intenção moralizadora, a obra a <strong>de</strong>screve em <strong>de</strong>sespero, tentando<br />
jogar-se na água e sendo <strong>de</strong>tida pela personagem Anjo da Guarda, que a<br />
encaminha para a vida <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>. Segundo Tirso, que argumenta no fim da obra,<br />
o enredo da peça foi extraído dos Exemplos morais <strong>de</strong> Ludovico Blosio 25 , mas o<br />
historiador Alborg discorda:<br />
[...] afirmación inexacta en cuanto a lo anecdótico, puesto que allí no se<br />
refiere semejante historia. De Blosio <strong>de</strong>bió <strong>de</strong> tomar Tirso solamente<br />
i<strong>de</strong>as hagiográficas <strong>de</strong> carácter general; pero la Ninfa <strong>de</strong>bió <strong>de</strong> ser<br />
creación <strong>de</strong> su fantasía [...] (ALBORG, 1970, p. 426)<br />
Finalmente La dama <strong>de</strong>l Olivar consiste, no que refere-se ao contexto<br />
religioso, na aparição da Virgem e o milagre que realiza um pastor do povoado<br />
que dá origem à fundação do mosteiro mercedario do Olivar. A incerteza da data<br />
<strong>de</strong> criação da peça impe<strong>de</strong> dizer se é imitação ou prece<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Fuenteovejuna,<br />
<strong>de</strong> Lope, pois embora a obra tirsiana não possua o grandioso valor <strong>de</strong>sta última,<br />
nela abundam as semelhanças.<br />
No que tem a ver com o teatro religioso, embora Tirso seja o único<br />
dramaturgo do Século <strong>de</strong> Ouro que <strong>de</strong>dicou sua vida à profissão religiosa, não se<br />
encontra em sua obra o teatro <strong>de</strong>vocional ou, sobretudo o auto sacramental, tão<br />
representativo da cena sacra <strong>de</strong> seu tempo. Segundo expressa Vossler:<br />
Me parec e po<strong>de</strong>r advertir en sus autos sacramentales cierta mo<strong>de</strong>stia y<br />
timi<strong>de</strong>z, humanamente muy simpática, pero poco favorable a la eficacia<br />
dramática y sugestión teatral. No es que falten a Tirso el saber ni la<br />
preparación –ya que había estudiado filosofía y teología en Alcalá-, es<br />
que no tiene afición, no tiene amor a las i<strong>de</strong>as abstractas, no siente su<br />
majestad y po<strong>de</strong>r lógico, no las toma en serio. No es intelectualista, ni<br />
profesor <strong>de</strong> filosofía, sino poeta. De ahí que en sus Autos se le <strong>de</strong>slizan<br />
fácilmente chistes, juegos <strong>de</strong> palabras y toda suerte <strong>de</strong> bromas”.<br />
(VOSSLER, 1965, p.40 apud ALBORG, 1970, p.419).<br />
Po<strong>de</strong>m ser-lhe atribuídos quatro autos: El colme<strong>de</strong>ro divino, talvez a obra<br />
mais antiga conhecida, incluída por ele mesmo, tardiamente, em Deleitar<br />
aprovechando. El colme<strong>de</strong>ro divino é uma peça com metáforas sobre apicultura<br />
com relação ao divino, Deus é o colmeeiro, a Igreja a colméia, a alma é a abelha,<br />
25 Monge da Or<strong>de</strong>m Beneditina<br />
65
o corpo o zangão e o diabo é o urso que rouba e come o mel; No le arriendo la<br />
ganancia, uma farsa sacramental cuja fábula tem pouca relação com o tema<br />
eucarístico, mostra o contraste entre a vida <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia e da corte e, embora seu<br />
nome seja <strong>de</strong> auto ou colóquio sacramental, revela uma intenção satírica por parte<br />
do autor contra a política e os costumes cortesãos; Los hermanos parecidos, obra<br />
que apóia-se no conceito teológico da dupla natureza <strong>de</strong> Cristo, homem-Deus; e<br />
finalmente El laberinto <strong>de</strong> Creta on<strong>de</strong> o autor baseia-se no mito clássico do<br />
Minotauro.<br />
Gran<strong>de</strong>s criações dramáticas <strong>de</strong> Tirso foram El Burlador <strong>de</strong> Sevilla y<br />
Convidado <strong>de</strong> Piedra e El con<strong>de</strong>nado por <strong>de</strong>sconfiado das quais só explicaremos<br />
que, na primeira, Tirso cria o mito literário <strong>de</strong> Don Juan e, na segunda, trabalha<br />
com a posição do homem frente a Deus na salvação eterna. Tanto Don Juan<br />
quanto Paulo, o protagonista <strong>de</strong> El con<strong>de</strong>nado por <strong>de</strong>sconfiado, provocam Deus, e<br />
os dois finalmente perecem. Ao longo da obra El Burlador <strong>de</strong> Sevilla Don Juan é<br />
ameaçado com o castigo por suas ações. A personagem Tisbea, na cena XVI da<br />
primeira jornada diz “Advierte, / mi bien, que hay Dios y que hay muerte...”, mas<br />
Don Juan respon<strong>de</strong> com cinismo, como outras tantas vezes “¡Qué largo me lo<br />
fiais!” <strong>de</strong>monstrando seu <strong>de</strong>safio diante da justiça divina. Quando ele vai ao<br />
encontro do convite do Comendador, umas vozes cantam misteriosamente (cena<br />
XX da terceira jornada):<br />
e <strong>de</strong>pois:<br />
Adviertan los que <strong>de</strong> Dios<br />
juzgan los castigos gran<strong>de</strong>s<br />
que no hay plazo que no llegue<br />
ni <strong>de</strong>uda que no se pague (vv. 2730-2733)<br />
Mientras en el mundo viva,<br />
no es justo que diga nadie:<br />
¡Qué largo me lo fiáis,<br />
siendo tan breve el cobrarse! (vv. 2740-2743)<br />
66
Segundo expressa Menén<strong>de</strong>z y Pelayo, no prólogo ao livro Edad <strong>de</strong> Oro <strong>de</strong>l<br />
Teatro, <strong>de</strong> dona Blanca <strong>de</strong> los Ríos, que o crítico Alborg cita:<br />
La i<strong>de</strong>alización monstruosa <strong>de</strong>l seductor eterno e irresistible, ídolo <strong>de</strong> un<br />
panteísmo erótico que <strong>de</strong>vora sin cesar humanos corazones, y el <strong>de</strong>lirio<br />
sentimental <strong>de</strong> la re<strong>de</strong>nción por el amor, son igualmente ajenos al alma<br />
profundamente cristiana <strong>de</strong>l fraile <strong>de</strong> la Merced, que si crea un ser <strong>de</strong><br />
maldad y rebeldía, es para mostrar en acción la justicia divina (ALBORG,<br />
1970, p. 415).<br />
A personagem <strong>de</strong> Don Juan só consegue atingir sua total dimensão no<br />
meio <strong>de</strong> um ambiente místico-religioso. Tinha <strong>de</strong> ser crente para que sua<br />
confiança <strong>de</strong>safiante tivesse a dimensão do maior dos pecados. Em caso<br />
contrário, se ele não acreditasse em Deus, sua rebeldia diante dos po<strong>de</strong>res<br />
sobrenaturais per<strong>de</strong>ria toda sua gran<strong>de</strong>za.<br />
Finalmente, quando Don Juan morre o comendador diz: “Ésta es justicia <strong>de</strong><br />
Dios: ‘quien tal hace, que tal pague’”. (vv. 2758-2759).<br />
Don Juan <strong>de</strong>safia a Providência confiante <strong>de</strong> que terá o tempo necessário<br />
para se arrepen<strong>de</strong>r; Paulo, em El con<strong>de</strong>nado por <strong>de</strong>sconfiado, a ofen<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sconfiando da misericórdia divina e exigindo provas <strong>de</strong> sua salvação.<br />
Tirso <strong>de</strong> Molina também cultivou o drama histórico em peças como La<br />
pru<strong>de</strong>ncia en la mujer, on<strong>de</strong> coloca a figura heróica <strong>de</strong> doña María <strong>de</strong> Molina,<br />
mulher que <strong>de</strong>sempenhou um importante papel durante os reinados <strong>de</strong> seu<br />
esposo Sancho IV, <strong>de</strong> seu filho Fernando IV e seu neto Alfonso XI. Para<br />
fundamentar esta obra apoiou-se na Crónica <strong>de</strong> Fernando IV, na Origen <strong>de</strong> las<br />
dignida<strong>de</strong>s seglares <strong>de</strong> Castilla y León, <strong>de</strong> Pedro <strong>de</strong> Salazar y Mendoza 26 , e na<br />
Nobleza <strong>de</strong> Andalucía <strong>de</strong> Gonzalo Argote <strong>de</strong> Molina 27 .<br />
De gran<strong>de</strong> importância também é a obra Trilogía <strong>de</strong> los Pizarro on<strong>de</strong> Tirso<br />
mostra aspectos da conquista americana. Composta por Todo es dar una cosa,<br />
Amazonas en las Indias e La lealtad contra la envidia, o dramaturgo tenta<br />
reivindicar o nome da família Pizarro e sua participação na conquista do Peru.<br />
Segundo expressa o crítico Miguel Zugasti:<br />
26 1579 – 1629 – Clérigo e secular historiador espanhol.<br />
27 1548 – 1596 – Escritor, antiquário, historiador e genealogista espanhol.<br />
67
Toda la trilogia, inspirada en la historia, se escribió en clave<br />
fundamentalmente seria, pero mientras que en Amazonas predomina el<br />
sentimiento trágico, en las otras partes (Todo es dar en una cosa y La<br />
lealtad contra la envidia) impera la visión <strong>de</strong>l triunfo <strong>de</strong> los respectivos<br />
héroes sobre los obstáculos que se les presentan. (ZUGASTI in<br />
ARELLANO, 1994, p. 336)<br />
Nas comédias <strong>de</strong> assunto histórico, <strong>de</strong> temática aragonesa, portuguesa,<br />
americana ou castelhana, percebe-se que Tirso, <strong>de</strong> certa forma, plasma nas obras<br />
a influência que certos lugares, nos quais radicou-se, <strong>de</strong>ixaram na sua vida. Exalta<br />
o valor coletivo e as virtu<strong>de</strong>s nacionais e preocupa-se por personagens concretos,<br />
quase <strong>de</strong> categoria heróica.<br />
Algumas comédias <strong>de</strong> Tirso encontram-se agrupadas nas chamadas<br />
comédias <strong>de</strong> caráter. El vergonzoso en palacio é, segundo os críticos, a mais<br />
famosa. Foi incluída pelo autor em Los cigarrales <strong>de</strong> Toledo, mas composta e<br />
estreada alguns anos antes, e retocada no momento <strong>de</strong> sua inclusão. Marta la<br />
piadosa também compartilha <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong>, por ser uma comédia que<br />
dramatiza a hipocrisia. Anterior a El hipócrita <strong>de</strong> Molière e La mojigata <strong>de</strong> Moratín,<br />
apresenta uma original comicida<strong>de</strong> na censura da falsa religiosida<strong>de</strong>, satirizando<br />
tipos e situações. Outras tantas comédias que po<strong>de</strong>m, em maior ou menor grau,<br />
ser qualificadas <strong>de</strong> “comedias <strong>de</strong> caracter” são Cómo han <strong>de</strong> ser los amigos,<br />
Cautela contra cautela, El privar contra su gusto, mas não é nosso foco nos <strong>de</strong>ter<br />
em cada uma <strong>de</strong>las.<br />
As comédias <strong>de</strong> intriga ou enredo <strong>de</strong>stacam-se por sua configuração<br />
estrutural, com uma técnica magistral para emaranhar e <strong>de</strong>semaranhar situações<br />
e enredos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma ação dinâmica, que consegue sustentar o interesse pela<br />
ação e ao mesmo tempo logra uma eficaz e rápida criação <strong>de</strong> ambientes e tipos.<br />
Don Gil <strong>de</strong> las calzas ver<strong>de</strong>s, comédia urbana com cenários e personagens<br />
cotidianos, perfeitamente construída, <strong>de</strong>staca-se por sua astúcia e engenho, pelo<br />
brilhante enfoque cômico <strong>de</strong> personagens, situações e linguagens. Abundam os<br />
lances inverossímeis carregados <strong>de</strong> graça e habilida<strong>de</strong>. El amor médico,<br />
protagonizada por outra mulher, dona Jerónima, peça na qual o autor faz uma<br />
<strong>de</strong>clarada <strong>de</strong>fesa do feminismo e da liberda<strong>de</strong> da mulher, quase inconcebível no<br />
68
seu tempo, na voz da protagonista: “¿Siempre han <strong>de</strong> estar las mujeres / sin pasar<br />
la raya estrecha / <strong>de</strong> la aguja y la almohadilla?” (vv. 100-102).<br />
Em Por el sótano y el torno, drama que se <strong>de</strong>senvolve na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Madri<br />
do século XVII, Tirso recria lugares famosos <strong>de</strong> sua cida<strong>de</strong>. Em Los balcones <strong>de</strong><br />
Madrid e En Madrid y en una casa o dramaturgo vale-se <strong>de</strong> engenhosos artifícios<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> teatral para fazer possível a surpresa <strong>de</strong> que um<br />
personagem apareça, no mesmo momento, em dois lugares. Averígüelo Vargas,<br />
Des<strong>de</strong> Toledo a Madrid, La huerta <strong>de</strong> Juan Fernán<strong>de</strong>z e La celosa <strong>de</strong> sí misma<br />
são também obras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse. La villana <strong>de</strong> Vallecas, que pese ao nome,<br />
é uma dama valenciana, dona Violante, que, seduzida e abandonada por seu galã,<br />
dirige-se a Madri em sua procura. La gallega, Mari-Hernán<strong>de</strong>z ou Mari-Hernán<strong>de</strong>z,<br />
la gallega, peça que começa com o chamado ciclo galego-português que<br />
trataremos a seguir, com uma ação que <strong>de</strong>senvolve-se no século XV, possui<br />
elementos folclóricos galegos além da rica <strong>de</strong>scrição da paisagem observada pelo<br />
autor. Em La villana <strong>de</strong> la Sagra o dramaturgo transforma seu campo toledano 28 ,<br />
tantas vezes presente nas suas comédias, mostrando um cenário rico em cores e<br />
movimentos, ao mesmo tempo que insere a vida camponesa com suas festas,<br />
canções e costumes.<br />
Blanca <strong>de</strong> los Ríos, na edição das obras dramáticas completas <strong>de</strong> Tirso,<br />
agrupou uma série <strong>de</strong> comédias sob o rótulo <strong>de</strong> Ciclo galego-português, no qual<br />
reúnem-se quatorze obras que refletiam as impressões das primeiras viagens,<br />
pelo Noroeste da península Ibérica, realizadas pelo dramaturgo. A primeira viagem<br />
que Tirso realizou por estas terras foi entre os anos <strong>de</strong> 1607 e 1612, e a segunda<br />
entre 1619 e 1620. Para a tirsista, é com a peça Mari-Hernán<strong>de</strong>z, la gallega, obra<br />
criada entre 1610 e 1611, que se inaugura o ciclo antes mencionado e parece<br />
coincidir com a expulsão dos mouriscos da Espanha, que foi <strong>de</strong>cretada o dia 9 <strong>de</strong><br />
abril <strong>de</strong> 1609 por Felipe III. O conjunto dramático continua com El vergonzoso en<br />
palácio e La villana <strong>de</strong> la Sagra. Doña Beatriz <strong>de</strong> Silva (1619-1621) é uma<br />
comédia cuja ação divi<strong>de</strong>-se entre Lisboa e Toledo. El amor médico (1621), por<br />
sua parte, apresenta as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Coimbra e Sevilha. Averígüelo Vargas (1619-<br />
28 Relativo à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Toledo<br />
69
1621) <strong>de</strong>riva da viagem da corte espanhola para Portugal e das viagens do<br />
dramaturgo pela Galícia e Portugal entre os anos <strong>de</strong> 1619 e 1620. Segundo<br />
Blanca <strong>de</strong> los Ríos é com esta obra que inicia-se o Teatro <strong>de</strong> Oposição <strong>de</strong> Tirso<br />
(RIOS: 1989, XII) e que confirma a indignação que o dramaturgo sentia diante da<br />
prisão <strong>de</strong> Osuna em 1621, fato que dá origem a este tipo <strong>de</strong> teatro. La romera <strong>de</strong><br />
Santiago, representada por Vallejo no Real Palácio em 1622, reflete<br />
geograficamente as primeiras viagens <strong>de</strong> Tirso pela Galicia, e cronologicamente, o<br />
início do reinado <strong>de</strong> Felipe IV.<br />
Não nos esten<strong>de</strong>remos aqui em <strong>de</strong>talhes referentes à peça La romera <strong>de</strong><br />
Santiago, já que <strong>de</strong>dicaremos o capítulo a seguir a analise exaustiva da mesma,<br />
entretanto, gostaríamos <strong>de</strong> acrescentar que, segundo o crítico Arellano:<br />
[...] La monarquía <strong>de</strong> las comedias tirsianas posee un po<strong>de</strong>r absoluto que<br />
<strong>de</strong>be someterse, sin embargo, a la razón y a la justicia, aunque no<br />
siempre lo haga en la práctica. Los textos sobre las dimensiones <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r y sus limitaciones éticas –conculcadas o respetadas - se pue<strong>de</strong>n<br />
acumular sin dificultad en numerosas obras (Quien habló pagó, I, 1489,<br />
1491-92, 1509; La mejor espiga<strong>de</strong>ra, I, 1004, 1008; La romera <strong>de</strong><br />
Santiago, II, 1260, 1265...) [...] (ARELLANO, 2008, p. 360),<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago, que possui como assunto principal a honra entre<br />
nobres, nascida <strong>de</strong> enredos amorosos, terá no seu <strong>de</strong>correr situações que<br />
<strong>de</strong>monstram, uma e outra vez, como po<strong>de</strong> ser apreciado na segunda jornada,<br />
[...] Mas todo lo facilita<br />
la Justicia y la pru<strong>de</strong>ncia,<br />
porque el rey que a Dios imita,<br />
con humana provi<strong>de</strong>ncia,<br />
lo que importa solicita. (vv. 849-853)<br />
a ação da justiça sobre os maus comportamentos, posta em prática por<br />
Ordoño II, um dos principais personagens da comédia.<br />
70
2.4. Caracterísiticas do teatro tirsiano<br />
O sistema teatral <strong>de</strong> Tirso é o mesmo que o <strong>de</strong> Lope <strong>de</strong> Vega, portanto<br />
transforma-se em <strong>de</strong>fensor da fórmula da Comedia nueva 29 . Em sua poética<br />
<strong>de</strong>monstra arte, engenho e invenção. Sinaliza a liberda<strong>de</strong> do poeta mo<strong>de</strong>rno<br />
diante da normativa clássica, como também o fazia Lope <strong>de</strong> Vega:<br />
Si me argüís que a los primeros inventores <strong>de</strong>bemos los que profesamos<br />
sus faculta<strong>de</strong>s guardar sus preceptos [...] os respondo que aunque a los<br />
tales se les <strong>de</strong>be la veneración <strong>de</strong> haber salido con la dificultad que<br />
tienen todas las cosas en sus principios, con todo eso, es cierto que<br />
añadiendo perfecciones a su invención [...] es fuerza que quedándose la<br />
sustancia en pie se mu<strong>de</strong>n los acci<strong>de</strong>ntes, mejorándolos con la<br />
experiencia (FLORIT apud ARELLANO, 2008, p.332).<br />
Verdad es que yo he escrito algunas veces / siguiendo el arte que<br />
conocen pocos, / mas luego que salir por otra parte / veo los montruos,<br />
<strong>de</strong> apariencia llenos, / adon<strong>de</strong> acu<strong>de</strong> el vulgo y las mujeres / que este<br />
triste ejercicio canonizan, / a aquel hábito bárbaro me vuelvo; / y cuando<br />
he <strong>de</strong> escribir una comedia, / encierro los preceptos con seis llaves; /<br />
saco a Terencio y Plauto <strong>de</strong> mi estudio, / para que no me <strong>de</strong>n voces (que<br />
suele / dar gritos la verdad en libros mudos), / y escribo por el arte que<br />
inventaron / los que el vulgar aplauso pretendieron, / porque, como las<br />
paga el vulgo, es justo / hablarle en necio para darle gusto (ROZAS,<br />
1976, p. 182).<br />
Tirso <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> também a liberda<strong>de</strong> dos fatores tempo e espaço <strong>de</strong>ntro da<br />
obra, assim como a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> colocar duques e con<strong>de</strong>s numa comédia <strong>de</strong><br />
gênero doméstico. Afirma que todas as antigas invenções po<strong>de</strong>m ser melhoradas,<br />
e é essa a diferença entre a natureza e a arte. A primeira não po<strong>de</strong> variar, a outra<br />
sim:<br />
Esta diferencia hay en la naturaleza al arte: que lo que aquélla <strong>de</strong>s<strong>de</strong> su<br />
creación constituyó, no se pue<strong>de</strong> variar, y así siempre el peral producirá<br />
peras y las encinas su grosero fruto [el arte sí admite variación, y por lo<br />
tanto:] ¿Qué mucho que la comedia [...] varíe las leyes <strong>de</strong> sus<br />
antepasados, e injiera industriosamente lo trágico con lo cómico, sacando<br />
una mezcla apacible <strong>de</strong>stos dos encontrados poemas, y que,<br />
participando <strong>de</strong> entrambos, introduzga ya personas graves como la una,<br />
y ya jocosas y ridículas, como la otra? (FLORIT apud ARELLANO, 2008,<br />
p. 332-333).<br />
Lo trágico y lo cómico mezclado, / y Terencio con Séneca, aunque sea /<br />
como otro Minotauro <strong>de</strong> Pas ife, / harán grave una parte, otra ridícula, /<br />
29 O manual El arte nuevo <strong>de</strong> hacer comedias, escrito por Lope <strong>de</strong> Vega em 1609, é um poema<br />
didático que contém as novas diretrizes que reformulam a comédia diante da tradição clássica.<br />
71
que aquesta variedad <strong>de</strong>leita mucho: / buen ejemplo nos da naturaleza, /<br />
que por tal variedad tiene belleza (ROZAS, 1976, p. 187).<br />
Tirso soube harmonizar à perfeição sua condição <strong>de</strong> frei mercedario e <strong>de</strong><br />
escritor <strong>de</strong> comédias. Dentro da história da comédia espanhola, ele se constitui<br />
um dos principais nomes junto com Lope <strong>de</strong> Vega e Cal<strong>de</strong>rón <strong>de</strong> la Barca, e<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a nova comédia frente aos ataques dos moralistas e autores clássicos.<br />
Na sua opinião, esta configurava-se como espetáculo total e globalizador, capaz<br />
<strong>de</strong> atrair todos os espectadores dos corrales, lugar on<strong>de</strong> eram apresentadas. As<br />
tarefas do comediógrafo <strong>de</strong>viam ser entreter, divertir e provocar a admiração<br />
<strong>de</strong>sse público heterogêneo, exigente e barulhento. E é precisamente aqui on<strong>de</strong><br />
radica o valor fundamental do teatro tirsiano, pois o dramaturgo conseguiu<br />
elaborar mundos cômicos, ações coerentes e complexas e um universo <strong>de</strong> burlas<br />
e enredos admiráveis. Destaca-se o humor refinado, as situações atrevidas, o<br />
gracejo dos personagens rústicos e dos criados urbanos, a atmosfera do jogo e da<br />
diversão que reina em boa parte <strong>de</strong> sua produção teatral, com riqueza dos meios<br />
lingüísticos e engenhosas criações. Assim o <strong>de</strong>monstra o elogio às obras do<br />
dramaturgo que fez Juan Pérez <strong>de</strong> Montalbán, nas preliminares da Parte IV das<br />
comédias <strong>de</strong> Tirso:<br />
lo sentencioso <strong>de</strong> los conceptos admira, lo satírico <strong>de</strong> las faltas corrige, lo<br />
chistoso <strong>de</strong> los donaires entretiene, lo enmarañado <strong>de</strong> la disposición<br />
<strong>de</strong>leita, lo gustoso <strong>de</strong> las ca<strong>de</strong>ncias enamora, y lo político <strong>de</strong> los consejos<br />
persua<strong>de</strong> y avisa, siendo su variedad discreta como un ramillete <strong>de</strong> flores<br />
diferentes que, a<strong>de</strong>más <strong>de</strong> la belleza y la fragancia, aficiona con la<br />
diversidad y la compostura.<br />
Acredita-se que também era um gran<strong>de</strong> conhecedor da alma feminina,<br />
como expõe o historiador Alborg:<br />
Aspecto capital en la dramática <strong>de</strong> Tirso es el papel prepon<strong>de</strong>rante que<br />
en ella juega la mujer, y la penetración psicológica <strong>de</strong>l escritor se ejerce<br />
muy especialmente en escrutar las sutilezas <strong>de</strong>l espíritu femenino [...] las<br />
mujeres <strong>de</strong> Tirso, al menos en sus momentos más felices, y son muy<br />
numerosos, no solo se individualizan y concretan, sino que ascien<strong>de</strong>n al<br />
rango <strong>de</strong> auténticas creaciones (ALBORG, 1973, p. 412).<br />
São várias as situações em que Tirso usa a presença feminina como<br />
elemento principal nas suas obras. Doña Maria <strong>de</strong> Molina, protagonista <strong>de</strong> La<br />
72
pru<strong>de</strong>ncia en la mujer, cuja encarnação não é somente a <strong>de</strong> uma rainha com<br />
autorida<strong>de</strong> e talento político senão que <strong>de</strong>monstra também função <strong>de</strong> mãe. E<br />
segundo Blanca <strong>de</strong> los Ríos existem muitas outras:<br />
De 1611 a 1615 creó la hechizadora doña Magdalena <strong>de</strong> Aveiro <strong>de</strong> El<br />
vergonzoso, la mimosa gallega Mari-Hernán<strong>de</strong>z, la culminante figura <strong>de</strong><br />
la voluptuosa y sanguinaria Jezabel, y poco <strong>de</strong>spués la idílica y dulce<br />
Ruth y la ejemplar Noemi; la vengadora Laurencia <strong>de</strong> La dama <strong>de</strong>l Olivar;<br />
Ninfa, la con<strong>de</strong>sa bandolera y arrepentida con nimbo <strong>de</strong> santidad;<br />
Octavia, la buena madre, en Ventura te dé Dios, hijo; la traviesa doña<br />
Juana, transmutada en el <strong>de</strong>licioso Don Gil <strong>de</strong> las calzas ver<strong>de</strong>s; y la<br />
extática Santa Juana; la renacentista duquesa <strong>de</strong> Amalfi, uno <strong>de</strong> los más<br />
prodigiosos caracteres femeninos <strong>de</strong> Téllez; y <strong>de</strong>spués Marta la piadosa,<br />
la hipócrita por amor; y la doña Violante, convertida en Villana <strong>de</strong><br />
Vallecas; y La celosa <strong>de</strong> sí misma, madre <strong>de</strong> todas las damas duen<strong>de</strong>s; y<br />
la prefeminista doña Jerónima <strong>de</strong> El amor médico; y la augusta doña<br />
María <strong>de</strong> Molina; y las sublimes enamoradas <strong>de</strong> El amor y el Amistad y La<br />
firmeza en la hermosura (RÍOS, 1910 apud ALBORG, 1973, p. 413).<br />
Muitos dos personagens <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong>monstram que são verda<strong>de</strong>iros mestres<br />
da máscara e do disfraz. Na obra La villana <strong>de</strong> la Sagra, caso característico em<br />
que o autor emprega este recurso, o uso do disfraz vai unido ao engano. Os dois<br />
constituem a base sobre a qual a comédia está assentada. O uso <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
falsas, e em consequência do emprego <strong>de</strong> disfarces permite apreciar o alcance<br />
dos objetivos, por parte dos personagens. Mas o que verda<strong>de</strong>iramente marca o<br />
teatro tirsiano é o aperfeiçoamento da construção dos mundos cômicos, e a<br />
elaboração <strong>de</strong> ações coerentes e complexas, com refinada comicida<strong>de</strong> em que a<br />
exploração da burla alcança múltiplas dimensões.<br />
Embora Tirso também tenha escrito obras <strong>de</strong> teatro sérias como: El<br />
Burlador <strong>de</strong> Sevilla y Convidado <strong>de</strong> Piedra, peça na qual o dramaturgo leva à cena<br />
o mítico Don Juan Tenório e, segundo expressa a tirsista Blanca <strong>de</strong> los Rios, “es<br />
título impuesto por el éxito, por el asombro <strong>de</strong> ver a una estatua animarse e<br />
intervenir en un drama como ejecutora <strong>de</strong> la justicia <strong>de</strong> Dios”; El con<strong>de</strong>nado por<br />
<strong>de</strong>sconfiado; La prudência en la mujer, e outras obras inspiradas nas Sagradas<br />
Escrituras ou na História da Espanha.<br />
As palavras da tirsista Blanca <strong>de</strong> los Ríos <strong>de</strong>finem o núcleo realista da arte<br />
dramática <strong>de</strong> Tirso quando expressa:<br />
73
Llevado –dice- <strong>de</strong> su ardiente amor a la verdad, <strong>de</strong> su po<strong>de</strong>roso<br />
sentimiento <strong>de</strong> lo vivo y <strong>de</strong> lo humano, apartó <strong>de</strong> aquel enorme arte<br />
embrionario todo lo falso y convencional, lo fabuloso, lo andantesco, lo<br />
pastorial palaciano, lo puramente épico o novelesco o lo crudamente<br />
celestinesco y rufianesco, que informaba gran parte <strong>de</strong>l teatro <strong>de</strong> Lope,<br />
sin admitir tampoco ni los elementos mitológicos ni las alegorías<br />
sacramentales, que constituyen lo más característico <strong>de</strong>l teatro<br />
cal<strong>de</strong>roniano... Así el mundo <strong>de</strong> sus invenciones no fue tan vario, pero sí<br />
moralmente más amplio y más real que el <strong>de</strong> su maestro y mucho más<br />
humano que el <strong>de</strong> su continuador. Suprimió los paladines imaginarios, los<br />
pastorcicos <strong>de</strong> Arcadia palaciega, las criaturas selváticas o mitológicas;<br />
inventó men os personajes, pero creó verda<strong>de</strong>ras personas, supremacía<br />
que ejerció sin rivales; único fue también en el modo <strong>de</strong> fundir en su<br />
teatro el mundo real con el suprasensible, y en el integrar las dos mita<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> la dramática: los caracteres y el ambiente...”. (RÍOS, 1910 apud<br />
ALBORG, 1970, p. 412).<br />
Um dos pontos <strong>de</strong> interesse nas comédias <strong>de</strong> Tirso é o da relação <strong>de</strong> certas<br />
peças dramáticas com sucessos e personagens históricos, os quais <strong>de</strong> alguma<br />
forma o autor critica ou <strong>de</strong>nuncia. Outro é a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> monarca,<br />
também uma constante na literatura, e no teatro do Século <strong>de</strong> Ouro, justiceiro, que<br />
na obra do dramaturgo encontramos como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>finido <strong>de</strong> “po<strong>de</strong>roso” (rei,<br />
duque, con<strong>de</strong> etc.) que correspon<strong>de</strong> com os tópicos do período aurisecular 30 , ou<br />
seja, aquele que possui o po<strong>de</strong>r não é livre <strong>de</strong> usufrui-lo arbitrariamente, pois o<br />
po<strong>de</strong>r legítimo emana <strong>de</strong> Deus, portanto, o monarca está obrigado a colocar sua<br />
ativida<strong>de</strong> ao serviço da fé. A Rainha Católica na peça Todo es dar una cosa diz:<br />
Contra el hereje fun<strong>de</strong><br />
la divina Inquisición,<br />
la Hermandad contra el ladrón,<br />
los judíos <strong>de</strong>sterré.<br />
Vuelva la fe a su <strong>de</strong>coro<br />
[...]<br />
Yo he <strong>de</strong> asistir en persona<br />
hasta ver esta Granada<br />
que <strong>de</strong> cruces coronada<br />
es timbre <strong>de</strong> mi corona. (vv. 3387-3406)<br />
Em La dama <strong>de</strong>l Olivar po<strong>de</strong>-se apreciar que para a felicida<strong>de</strong> pública e até<br />
para a renovação da natureza é preciso a presença <strong>de</strong> um bom monarca, o que<br />
expressa Maroto ao cavaleiro don Gastón:<br />
Secábase el prado ameno,<br />
30 Relativo ao período Século <strong>de</strong> Ouro.<br />
74
don<strong>de</strong> el hato flores pace,<br />
<strong>de</strong> luto y tristeza lleno,<br />
porque todo este mal hace<br />
la ausencia <strong>de</strong> un señor bueno.<br />
Também em La mejor espiga<strong>de</strong>ra, quando se <strong>de</strong>screve um rei justo que<br />
representa a alma que vivifica os súditos e sustenta o reinado, como o sinaliza<br />
Aser:<br />
Es alma el rey, que <strong>de</strong>l modo<br />
que viva al cuerpo apercibe,<br />
y estando toda en el todo<br />
toda en cualquier parte vive,<br />
así el rey tiene que estar<br />
dando a todo el reino ser,<br />
y en cualquier parte o lugar,<br />
todo lo ha <strong>de</strong> socorrer<br />
y sus miembros sustentar<br />
Ou em La romera <strong>de</strong> Santiago, quando, na cena VII da segunda jornada, o<br />
rei Ordoño, diante da chegada da peregrina dona Sol, expressa:<br />
Escuchar sus quejas quiero,<br />
pues hoy estoy obligado,<br />
como Rey, por justa ley,<br />
a no escon<strong>de</strong>r las orejas<br />
a la justicia y las quejas,<br />
o he <strong>de</strong> <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> ser Rey.<br />
Embora Tirso seja inconcebível, da mesma forma que todos os<br />
dramaturgos da época, sem ter em consi<strong>de</strong>ração a genialida<strong>de</strong> inovadora <strong>de</strong><br />
Lope, com inúmeras características que <strong>de</strong>notam originalida<strong>de</strong>, possuía uma<br />
sólida formação intelectual em ciências humanas e teológicas. Embora tenha<br />
passado gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> sua vida em ativida<strong>de</strong> religiosa, tinha uma atenção<br />
vigilante e satírica do mundo político e humano <strong>de</strong> seu tempo, o que o <strong>de</strong>fine<br />
como homem <strong>de</strong> ativa relação social, conhecedor do momento histórico. Seu<br />
teatro arraigado à realida<strong>de</strong> contemporânea no que se refere aos aspectos<br />
psicológicos dos personagens e na vida que retrata.<br />
Menén<strong>de</strong>z y Pelayo, sobre os traços do teatro tirsiano expressa:<br />
[...] contrastaban con los hábitos dominantes en el teatro <strong>de</strong> su tiempo [...]<br />
Su alejamiento relativo <strong>de</strong> aquel i<strong>de</strong>al caballeresco, en gran parte falso y<br />
75
convencional; su po<strong>de</strong>roso sentido <strong>de</strong> la realidad, su alegría franca y<br />
sincera, su buena salud intelectual, aquella intuición suya tan cómica y al<br />
mismo tiempo tan poética <strong>de</strong>l mundo, la graciosa frescura <strong>de</strong> su musa<br />
villanesca, su picante ingenuidad, su inagotable malicia tan candorosa y<br />
optimista en el fondo [...] (ALBORG, 1970, p. 410).<br />
Todas as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um excelente dramaturgo <strong>de</strong> refinada maestria e<br />
domínio <strong>de</strong> linguagem que encanta até hoje e <strong>de</strong>monstra a atemporalida<strong>de</strong> do seu<br />
teatro.<br />
76
3. LA ROMERA DE SANTIAGO<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> los primeros viajes <strong>de</strong><br />
Téllez por Galicia directamente, geográficamente, por el<br />
conocimiento <strong>de</strong> la tierra galaica, escenario <strong>de</strong> la obra, y, sin<br />
duda, <strong>de</strong> los caminos que llevan a Santiago. (RÍOS, Obras<br />
dramáticas completas, 1989).<br />
Este capítulo da nossa pesquisa propõe um estudo e analise da comédia<br />
intitulada La romera <strong>de</strong> Santiago, do dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina, peça esta que<br />
não foi incluída em nenhuma <strong>de</strong> suas coleções e que foi apresentada no palácio<br />
Real <strong>de</strong> Vallejo no período <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1621 até fevereiro <strong>de</strong> 1622 junto com<br />
outras comédias.<br />
Segundo a escritora e crítica Blanca <strong>de</strong> los Ríos no seu estudo das obras<br />
dramáticas completas do dramaturgo:<br />
Concibió Tirso este poema dramático, evi<strong>de</strong>ntemente, en Galicia durante<br />
sus primeras estancias en aquella región, que se refleja entera en él,<br />
mostrando que está realizado ante el natural [...] (RÍOS, 1989, p. 33).<br />
O enredo da obra trata do rei Ordoño II <strong>de</strong> Leão que oferece a mão <strong>de</strong> sua<br />
irmã, a infanta Linda, ao con<strong>de</strong> Lisuardo, em troca <strong>de</strong> favores realizados. Mas<br />
antes <strong>de</strong> celebrar as bodas o envia para Inglaterra a fim <strong>de</strong> estabelecer o<br />
casamento <strong>de</strong>le, Ordoño, com Margarita, filha <strong>de</strong> Enrico <strong>de</strong> Inglaterra.<br />
O con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castela, Garcí-Fernán<strong>de</strong>z, apaixonado pela infanta <strong>de</strong> Leão<br />
chega, após a partida do con<strong>de</strong> Lisuardo, para pedir sua mão. Enquanto isso, a<br />
caminho <strong>de</strong> La Coruña o con<strong>de</strong> Lisuardo encontra dona Sol, prima do con<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Castela, que retorna <strong>de</strong> Santiago em romaria, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter feito voto na cida<strong>de</strong><br />
sagrada. Lisuardo se apaixona por ela e a <strong>de</strong>sonra.<br />
De outra parte, Garcí Fernán<strong>de</strong>z que não é bem acolhido pela infanta Linda,<br />
encontra-se presente em Leão quando a triste dona Sol pe<strong>de</strong> justiça ao rei contra<br />
o autor <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sonra. Ordoño, conhecido como el justiciero, fazendo jus ao<br />
77
epíteto, manda pren<strong>de</strong>r o con<strong>de</strong> Lisuardo e o con<strong>de</strong>na a morte. Mas a infanta<br />
Linda, secretamente, o liberta.<br />
Entretanto, o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castela, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Leão, <strong>de</strong>safia Ordoño, pois<br />
imagina que foi ele quem facilitou a fuga do con<strong>de</strong> Lisuardo. Ordoño assiste ao<br />
encontro, mas no momento <strong>de</strong> mostrar as armas, o fugitivo Lisuardo se apresenta,<br />
disposto a fazer frente ao castelhano. A infanta Linda impe<strong>de</strong> a luta, oferecendo<br />
sua mão a Garcí-Fernán<strong>de</strong>z, e Lisuardo então casasse com dona Sol.<br />
78
3.1. Gênero<br />
Basicamente as obras dramáticas po<strong>de</strong>m ser divididas em sérias ou<br />
cômicas. As obras dramáticas sérias estão compostas por tragédias (on<strong>de</strong> existe o<br />
risco trágico, catástrofes, catarse etc); comédia séria (com possíveis variações <strong>de</strong><br />
comédias heróicas, hagiográficas etc) on<strong>de</strong> entrariam também as tragicomédias<br />
(os elementos cômicos organizam-se isolados, em seqüência, e a cargo da<br />
personagem chamada gracioso); e finalmente o auto ou loa sacramental que<br />
contém como característica principal o assunto eucarístico.<br />
Por sua parte, as obras dramáticas cômicas po<strong>de</strong>m ser divididas em<br />
comédias <strong>de</strong> capa e espada (os principais protagonistas são cavaleiros) que<br />
apresentam uma situação <strong>de</strong> ação amorosa, próxima no tempo e no espaço, em<br />
relação ao espectador; comédia <strong>de</strong> figurón com a trama <strong>de</strong> capa e espada na qual<br />
se introduz um protagonista cômico, figura central <strong>de</strong> comicida<strong>de</strong> grotesca;<br />
comédias palatinas, sobre as quais nos <strong>de</strong>teremos a seguir; as comédias<br />
burlescas (conjunto reduzido <strong>de</strong> comédias), também <strong>de</strong>nominadas <strong>de</strong> disparate,<br />
<strong>de</strong> chanzas, <strong>de</strong> chistes, que se situam no pólo oposto à tragédia, com temática<br />
variada (às vezes, referem-se a assuntos mitológicos ou lendas greco-latinas) e<br />
incoerência cômica (mortos que revivem, alegrias pelas <strong>de</strong>sonras, vinganças<br />
grotescas etc), e finalmente o entremés, peça breve e também <strong>de</strong> caráter cômico,<br />
que no Século <strong>de</strong> Ouro acompanhava as comédias e os autos sacramentais na<br />
conformação do espetáculo geral.<br />
Estabelecer uma <strong>de</strong>finição do gênero em uma peça <strong>de</strong> teatro é uma tarefa<br />
bastante complexa, já que muitas <strong>de</strong>las possuem características que se ajustam a<br />
mais <strong>de</strong> um <strong>de</strong> gênero. Os traços principais do gênero palatino são a utilização <strong>de</strong><br />
espaços do palácio ou arredores (se forem espaços fechados costumam ser:<br />
casa, palácio, igreja ou cárcere, e se forem espaços abertos: rua, jardim, campo,<br />
praia ou bosque), ações que se <strong>de</strong>senvolvem num tempo muito anterior ao dos<br />
espectadores auriseculares ou <strong>de</strong> forma atemporal, e o fato <strong>de</strong> que seus<br />
protagonistas pertençam à alta nobreza. Cenários palatinos mais comuns po<strong>de</strong>m<br />
ser Itália, França, Flan<strong>de</strong>s, Portugal, e inclusive reinados limítrofes como Navarra,<br />
Catalunha, Leão etc nos quais o dramaturgo incorpora traços históricos.<br />
79
Mas a comédia palatina é conhecida também com outras <strong>de</strong>nominações: <strong>de</strong><br />
fábrica, palaciegas, palacianas, <strong>de</strong> fantasía.<br />
Os críticos costumam também falar <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> comédia palatina:<br />
aquelas nas quais predomina uma ambientação lúdica, principalmente com um<br />
tom cômico e nas quais o enredo amoroso ocupa o primeiro plano, seriam as<br />
chamadas comedias palatinas cómicas ou comedias palatinas.<br />
Outra classificação é dada àquelas que giram não só ao redor do tema<br />
amoroso senão que tratam <strong>de</strong> outros assuntos como a amiza<strong>de</strong>, a honra ou a<br />
política. Nestas comédias a serieda<strong>de</strong> prevalece sobre a comicida<strong>de</strong>. São<br />
conhecidas como comedias palatinas serias, comedias palaciegas ou cortesanas,<br />
ou comedias palatinas <strong>de</strong> tesis.<br />
Na ausência do risco trágico que provoca a angústia do leitor-espectador,<br />
ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres e finais tristes, a distinção entre comedia palatina cómica e<br />
comedia palatina seria po<strong>de</strong> resultar difícil <strong>de</strong> ser estabelecida, pois <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da<br />
<strong>de</strong>finição daquilo que é cômico diante do neutro ou falto <strong>de</strong> comicida<strong>de</strong>, e os<br />
elementos cômicos <strong>de</strong> uma peça muitas vezes são subjetivos.<br />
Existe uma terceira classificação, com um dramatismo muito intenso, que<br />
apesar <strong>de</strong> ter um final feliz, a sensação <strong>de</strong> ter vivido uma tragédia não<br />
<strong>de</strong>saparece. Elas são chamadas <strong>de</strong> tragedias palatinas.<br />
Portanto, po<strong>de</strong>mos observar que a comedia palatina é uma espécie<br />
genérica muito ampla que integra também outras subespécies menores, como é o<br />
caso das comedias <strong>de</strong> secretario (El perro <strong>de</strong>l Hortelano <strong>de</strong> Lope <strong>de</strong> Vega) e que<br />
apresenta também um jogo <strong>de</strong> alteração <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> mediante o uso <strong>de</strong><br />
máscaras, disfraz e/ou fingimentos.<br />
Em nosso trabalho acadêmico sobre La romera <strong>de</strong> Santiago, as pesquisas<br />
nos levaram a <strong>de</strong>finir esta obra como palatina, embora não se ajuste a todas as<br />
características <strong>de</strong>ste gênero. Para justificar nossa classificação, analisaremos se a<br />
obra cumpre com os critérios que parecem essenciais ao gênero: o tempo em que<br />
se <strong>de</strong>senvolve a peça muito anterior ao tempo dos espectadores auriseculares, a<br />
alta nobreza dos personagens, o tema principal amoroso, a falta <strong>de</strong> historicida<strong>de</strong><br />
ou a presença <strong>de</strong> elementos fantasiosos e, por último, a comicida<strong>de</strong>.<br />
80
3.2. Temas<br />
Como dissemos a comedia palatina po<strong>de</strong> instalar-se numa época remota e<br />
no caso <strong>de</strong> La romera <strong>de</strong> Santiago o antigo reinado <strong>de</strong> Leão é seu marco histórico.<br />
São vários os personagens históricos que figuram: Ordoño, rei <strong>de</strong> Leão;<br />
Garci-Fernán<strong>de</strong>z, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castela; sua prima Blanca, infanta <strong>de</strong> Castela, <strong>de</strong><br />
linhagem <strong>de</strong> Lara. Além <strong>de</strong>les, outros aparecem mencionados no <strong>de</strong>senrolar da<br />
história: Mauregato (filho bastardo <strong>de</strong> Alfonso I <strong>de</strong> Astúrias); rei Enrico <strong>de</strong><br />
Inglaterra e sua filha Margarita; Ab<strong>de</strong>rramán I, citado <strong>de</strong> forma indireta, no v. 61<br />
“Cuando el moro cordobés / las cien doncellas pidió que / Mauregato le dió, [...]”. A<br />
partir <strong>de</strong> todos estes nomes, torna-se possível estabelecer o marco histórico em<br />
que Tirso situa, com temática jacobéia, La romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
Como uma <strong>de</strong> suas principais personagens temos o rei Ordoño, que se nos<br />
apresenta como outro problema, pois temos que discernir <strong>de</strong> qual rei Ordoño trata<br />
a peça, quais são os traços fieis à realida<strong>de</strong> e quais não.<br />
De outra parte, Garci Fernán<strong>de</strong>z, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castela era filho <strong>de</strong> Fernán<br />
González que também foi con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ano 930 até 970. Seu filho<br />
seria seu sucessor até o ano 995. Fica evi<strong>de</strong>nte aqui que o reinado <strong>de</strong> Ordoño II<br />
não foi simultâneo com o <strong>de</strong> Fernán González, nem com o <strong>de</strong> seu filho, portanto,<br />
Garci-Fernán<strong>de</strong>z, como con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castela, nunca coincidiu sua existência com a<br />
<strong>de</strong> Ordoño, como rei <strong>de</strong> Leão. Embora existam estes anacronismos, po<strong>de</strong>mos<br />
perceber que são vários os fatores que relatam uma realida<strong>de</strong> pertencente ao<br />
século X:<br />
ORDOÑO Cuando el moro <strong>de</strong> Navarra,<br />
en ofensa <strong>de</strong> León<br />
quiso hacer ostentación<br />
<strong>de</strong> su persona bizarra,<br />
saliendo yo con la mía<br />
<strong>de</strong>l Marte alarbe navarro,<br />
al paso, vos tan bizarro<br />
anduvistes aquel día<br />
que nos dimos la batalla,<br />
que cuerpo a cuerpo le distes<br />
muerte y en fuga pusistes<br />
toda la alarbe canalla; [...] (vv.27-38)<br />
[...] Cuando sobre el feudo<br />
Garci-Fernán<strong>de</strong>z, el Con<strong>de</strong><br />
81
<strong>de</strong> Castilla, hasta don<strong>de</strong><br />
el Esla los pies bañó [...] (vv. 51 -54)<br />
[...] Cuando el moro cordobés<br />
las cien doncellas pidió que<br />
Mauregato le dió,<br />
rey infame, vil leonés,<br />
y le obligó la respuesta<br />
a que pusiese en campaña<br />
<strong>de</strong> la morisma <strong>de</strong> España<br />
cuanta gente al arco apresta,<br />
adarga embraza y empuña,<br />
lanza jineta aprestando<br />
otro berberisco bando<br />
por la gallega Coruña<br />
haciendo empeñar es suelo<br />
y que el Africa se asombre,<br />
¿no levantastes el nombre<br />
<strong>de</strong> Ordoño segundo al cielo? [...] (vv. 63-78)<br />
Muitas vezes po<strong>de</strong> ser apreciado na obra tirsiana o amor pela terra galega.<br />
O campo galego representado pelos personagens tirsianos:<br />
LISUARDO El campo<br />
nos brindó.<br />
RELOX ¿Qué te parecen<br />
los <strong>de</strong> Galicia?<br />
LISUARDO Retratos<br />
<strong>de</strong> los jardines Hibleos.<br />
LAURO Los Elíseos los llamaron<br />
muchos antiguos.<br />
LISUARDO Tuvieron<br />
razón, que pienso que el mayo<br />
<strong>de</strong> estos campos, <strong>de</strong> estas cumbres,<br />
es eterno ciudadano, [...] (vv. 820-831)<br />
E continuam os elogios na linha pictórica que leva à consi<strong>de</strong>ração do<br />
quadro barroco que se encontra com frequência na obra <strong>de</strong> Tirso.<br />
Além disso, as alusões a um ou outro reinado <strong>de</strong>monstram espaços<br />
geográficos perfeitamente i<strong>de</strong>ntificáveis: Castela e Leão.<br />
No que tem a ver com os dados históricos em setembro do ano 917 os<br />
mouros estabeleceram um acampamento junto à localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> San Esteban <strong>de</strong><br />
Gormaz, antigamente chamada <strong>de</strong> <strong>Castro</strong>moros. O rei Ordoño e seus homens<br />
chegaram ao lugar e estabeleceram uma batalha que é um dos pontos principais<br />
da história medieval espanhola. Diante da conquista dos espanhóis, os navarros<br />
acudiram o então rei leonês e pediram ajuda para se libertar do jugo muçulmano.<br />
82
No final da primavera <strong>de</strong> 918, o monarca leonês e Sancho Garcés, rei <strong>de</strong><br />
Pamplona, mobilizaram suas tropas e marcharam juntos tomando algumas<br />
cida<strong>de</strong>s, fatos que <strong>de</strong>ixaram o emir, Ab<strong>de</strong>rramán, sumamente irritado, e fizeram<br />
com que este atacasse o exército espanhol em agosto daquele ano.<br />
No que diz respeito à figura <strong>de</strong> Ordoño, novamente estamos frente a um<br />
anacronismo ou alteração histórica, fato frequente no teatro do Século <strong>de</strong> Ouro.<br />
Des<strong>de</strong> o ano 910 e até 1230, data em que o reinado <strong>de</strong> Leão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e se fun<strong>de</strong> com o <strong>de</strong> Castela, são três os Ordoño que reinam:<br />
Ordoño II (910-924), Ordoño III (951-956) e Ordoño IV (958-960).<br />
Ordoño II é encontrado nos livros <strong>de</strong> história como um rei justo e<br />
misericordioso, famoso por sua honestida<strong>de</strong> e justiça nos assuntos concernentes<br />
ao governo do reino <strong>de</strong> Leão.<br />
Também como dado histórico, encontramos nesta obra referências ao<br />
acordo chamado <strong>de</strong> “Pacto <strong>de</strong> las cien doncellas”:<br />
ORDOÑO [...] Cuando el moro cordobés<br />
las cien doncellas pidió que<br />
Mauregato le dió,<br />
rey infame, vil leonés,<br />
y le obligó mi respuesta<br />
a que pusiese en campaña<br />
<strong>de</strong> la morisma <strong>de</strong> España<br />
cuanta gente al arco apresta [...] (vv. 63-70)<br />
O pacto ou “Tributo <strong>de</strong> las cien doncellas” foi um reconhecimento da<br />
supremacia do Emirado <strong>de</strong> Córdoba sobre o reinado <strong>de</strong> Astúrias, entre fins do<br />
século VIII e meados do século IX.<br />
No ano 783, Mauregato (filho bastardo <strong>de</strong> Alfonso I <strong>de</strong> Astúrias e uma<br />
escrava moura) toma posse do trono asturiano, com a ajuda <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>rramán I,<br />
com o qual se compromete a pagar o tributo <strong>de</strong> cem donzelas por sua<br />
colaboração, mas no ano <strong>de</strong> 788 é morto por vingança por ter outorgado o tributo<br />
aos mouros, não <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong>scendência. O rei Bermudo I, seu sucessor, queria<br />
acabar com o tributo, substituindo-o por um pagamento em dinheiro. Alfonso II, el<br />
Casto, sucessor <strong>de</strong> Bermudo, rejeita também o tributo em dinheiro e estabelece<br />
83
uma batalha contra os mouros para evitar o pagamento, vencendo na batalha <strong>de</strong><br />
Lodos e matando o capitão mouro Mugait.<br />
Posteriormente Ab<strong>de</strong>rramán II, em tempos do rei Ramiro I <strong>de</strong> Astúrias,<br />
atreve-se a pedir novamente o tributo das cem donzelas. E Ramiro I, diante <strong>de</strong><br />
uma situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>, consente. Com o tributo vigente dá-se o fato/lenda <strong>de</strong><br />
que, os Simancas, povoadores da província <strong>de</strong> Valladolid, entregam as sete<br />
donzelas que correspon<strong>de</strong>m a eles, com as mãos cortadas. Como consequência<br />
<strong>de</strong>ste fato, os cristãos lutam contra os mouros, dando-se a mítica batalha <strong>de</strong><br />
Clavijo, na qual segundo a lenda o próprio apóstolo Santiago participa (ver figura<br />
2, na página 83). O exército mouro é vencido e novamente acaba o tributo. Como<br />
agra<strong>de</strong>cimento, Ramiro I instauraria o voto a Santiago.<br />
Segundo o autor Juan G. Atienza 31 :<br />
Parece absolutamente certo que ocorreu uma batalha naquelas terras,<br />
ainda que muito tempo <strong>de</strong>pois – a chamada batalha <strong>de</strong> Albelda. Porém, o<br />
mito da extinção do Tributo das Cem Donzelas, que convenceu a<br />
cristanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o Islã não era tão invencível como se havia suposto<br />
(sempre que se aceita o patronato sobrenatural do Apóstolo), foi uma<br />
mentira habilmente tecida pela Igreja para esta <strong>de</strong>sfrutar, como<br />
efetivamente <strong>de</strong>sfrutou, <strong>de</strong> um patronato universal <strong>de</strong> Santiago sobre os<br />
pequenos reinos cristãos peninsulares, que se comprometeram a<br />
entregar à se<strong>de</strong> <strong>de</strong> Compostela tributos vitalícios que a enriqueceram, até<br />
o início do século XIX [...] (ATIENZA, 2002, p.91)<br />
Este voto, concedido por Ramiro I, em Calahorra, concedia à sua igreja <strong>de</strong><br />
Santiago as primeiras colheitas e vindimas. Além disso, repartia-se com Santiago<br />
parte da riqueza obtida dos mouros. O voto se renovou e institucionalizou como<br />
oferenda nacional em 1643, durante o reinado <strong>de</strong> Felipe IV. E a iconografia <strong>de</strong><br />
Santiago Matamoros, com espada na mão e montado num cavalo branco, sobre<br />
um mouro, persiste na pintura e escultura espanhola, presente, sobretudo, nas<br />
igrejas da rota jacobéia. Assim Santiago foi transformado em santo patrono <strong>de</strong><br />
Espanha.<br />
Para finalizar a pesquisa sobre as características da comedia palatina no<br />
drama analisado, gostaríamos <strong>de</strong> expor que efetivamente existe comicida<strong>de</strong>,<br />
31 Lendas do Caminho <strong>de</strong> Santiago. p. 91.<br />
84
embora o tema trágico da <strong>de</strong>sonra seja o principal, por parte da personagem<br />
Relox, o gracioso.<br />
85
3.3. Personagens e espaço cênico<br />
Como foi exposto, as principais personagens da obra em análise são o Rei<br />
Ordoño, que segundo nossas pesquisas fará referência a Ordoño II <strong>de</strong> Leão. A<br />
sua irmã, a infanta Linda oferecida ao con<strong>de</strong> Lisuardo em pagamento dos serviços<br />
prestados. Blanca, dama <strong>de</strong> companhia da infanta Linda e Relox, lacaio do con<strong>de</strong><br />
Lisuardo, que protagoniza o gracioso. Dona Sol, uma nobre <strong>de</strong> Castela que<br />
retorna em romaria com vestes <strong>de</strong> peregrina, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter visitado o túmulo do<br />
apóstolo Santiago, acompanhada <strong>de</strong> sua dama Urraca. O con<strong>de</strong> Garcí-Fernán<strong>de</strong>z<br />
<strong>de</strong> Castela que preten<strong>de</strong> se casar com a infanta Linda e seu lacaio Ximeno.<br />
Outros personagens na forma <strong>de</strong> criados e músicos farão parte da trama.<br />
Achamos importante ressaltar o uso <strong>de</strong> personagens nobres, como foi feito<br />
com Ordoño e Garcí-Fernán<strong>de</strong>z, para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>monstrar que a peça dramática<br />
analisada pertence ao gênero palatino.<br />
Po<strong>de</strong>mos também traçar rapidamente um estudo onomástico <strong>de</strong> alguns<br />
nomes usados pelo dramaturgo. O nome Urraca usado pela dama <strong>de</strong> dona Sol foi<br />
também nome <strong>de</strong> rainhas, como a esposa <strong>de</strong> Sancho Garcés II, rei <strong>de</strong> Pamplona e<br />
também <strong>de</strong> outras rainhas asturleonesas dos séculos X ao XII.<br />
Blanca, nome dado à dama que acompanha a infanta Linda, é um nome<br />
comum das infantas <strong>de</strong> Leão, Castela ou Navarra <strong>de</strong>ntro do teatro.<br />
Relox, nome dado ao lacaio do con<strong>de</strong> Lisuardo, na figura do gracioso, faz<br />
referência ao elemento que me<strong>de</strong> o tempo como o próprio personagem <strong>de</strong>clara<br />
diante da infanta Linda:<br />
RELOX A mi abuela<br />
le <strong>de</strong>bo, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> Dios,<br />
porque fui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la teta<br />
al relox tan semejante,<br />
que no hay cosa que convenga<br />
tanto conmigo en tener<br />
puntualidad en la eterna<br />
vigilia <strong>de</strong> no dormir,<br />
porque tengo la cabeza<br />
con notable sequedad,<br />
y no se halla quien duerma<br />
menos que el relox, pues nunca<br />
como frenético <strong>de</strong>ja<br />
<strong>de</strong> dar en su tema voces,<br />
como yo doy en mi tema,<br />
86
en estar midiendo siempre<br />
el tiempo en aguar las fiestas,<br />
diciendo? “Las doce son,<br />
las dos darán las primeras,<br />
mañana es viernes, señores” [...] vv 497-516<br />
São várias as passagens cômicas que se apresentam na fala <strong>de</strong>ste<br />
personagem. O próprio Lisuardo no verso 376 da primeira jornada, faz alar<strong>de</strong> ao<br />
humor que caracteriza a Relox: “Siempre estás <strong>de</strong> uma manera. / Oh lo que<br />
envidio tu humor!<br />
Quando ele <strong>de</strong>clara-se a Urraca na cena XIV da primeira jornada, para<br />
assim como o con<strong>de</strong> tirar proveito do encontro<br />
RELOX Y vos, dulce motilona,<br />
<strong>de</strong> este hermoso castellano<br />
serafín, no os vais; mirad<br />
que hay también quien os ha dado<br />
más corazón que a Belerma (vv 1079-1083)<br />
quando <strong>de</strong>pois, numa conversa com Lisuardo, antes da emboscada às<br />
mulheres, nos versos 1146-1147 ele alu<strong>de</strong> a Urraca da seguinte forma “Y por Dios<br />
/ que ella no es mal papagayo!”<br />
Ou também quando Relox mostra a realida<strong>de</strong> ao con<strong>de</strong> Lisuardo, <strong>de</strong> que é<br />
um homem comprometido, nos versos 1168-1170, “¿Apenas estás casado, /<br />
cuando al primer trascartón / quieres dar matrimoñazo?”<br />
Nos últimos versos da segunda jornada, quando Relox apresenta-se na<br />
corte <strong>de</strong> Leão, <strong>de</strong>pois que o rei Ordoño, a infanta Linda e Blanca tomam<br />
conhecimento da <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> dona Sol, e é encarcerado ele mais uma vez,<br />
embora se encontre numa situação crítica, se expressa através <strong>de</strong> versos com<br />
comicida<strong>de</strong>: “Oh, mal haya la Romera, / que siendo ella la gozada / pa<strong>de</strong>ce Relox<br />
la fuerza!.<br />
No entanto, em nossa análise da peça dramática, não preten<strong>de</strong>mos<br />
trabalhar a figura do gracioso já que como o título do trabalho o indica<br />
direcionamos nossa pesquisa para a temática jacobéia <strong>de</strong>ntro da obra teatral.<br />
Dona Sol, a nobre <strong>de</strong>sonrada no caminho, possui um nome <strong>de</strong> origem latina<br />
que se relaciona com o brilho e a beleza do astro Sol. Isso <strong>de</strong>monstrará sua<br />
importância na peça dramática como veremos nas páginas seguintes. Aparece<br />
87
pela primeira vez na cena XIV da primeira jornada, com vestes <strong>de</strong> peregrina,<br />
acompanhada <strong>de</strong> sua dama Urraca, como o apresenta a didascália explícita:<br />
“Salen DOÑA SOL y URRACA <strong>de</strong> Peregrinas. Dichos”. E nos versos seguintes<br />
expressa seu voto ao Apóstolo<br />
DOÑA SOL [...] hice voto<br />
<strong>de</strong> visitar el sagrado<br />
sepulcro <strong>de</strong> nuestro Apóstol;<br />
<strong>de</strong> esta suerte caminando<br />
a pie y pidiendo limosna,<br />
aunque traigo mis criados<br />
<strong>de</strong>trás con una litera<br />
para los forzados pasos<br />
<strong>de</strong>l camino, vuelvo agora,<br />
<strong>de</strong>spués <strong>de</strong> haber visitado<br />
su sepulcro y su Padrón,<br />
a Castilla, publicando<br />
mi <strong>de</strong>voción en las conchas,<br />
veneras y santiagos<br />
<strong>de</strong> azabache y <strong>de</strong> marfil,<br />
que, como es costumbre, traigo<br />
en sombrero y esclavina; [...] (vv. 1016-1032)<br />
Como po<strong>de</strong>mos apreciar, algumas cenas e versos fazem referência à<br />
vestimenta dos personagens, o que contribuirá para caracterizar o ambiente no<br />
qual se movimentam, o da peregrinação. O mesmo acontece com os espaços da<br />
comédia que se divi<strong>de</strong> em dois gran<strong>de</strong>s lugares <strong>de</strong> uma forma geral: a corte <strong>de</strong><br />
Leão e os espaços externos no percurso do Caminho <strong>de</strong> Santiago, como po<strong>de</strong>mos<br />
observar na referência aos rios Esla, Sil, Miño, Guadalquivir, Tajo e os portos <strong>de</strong><br />
La Coruña e Plemúa.<br />
A primeira alusão feita ao percurso jacobeu, com as suas características é<br />
feita pelo con<strong>de</strong> Lisuardo e seus lacaios<br />
LISUARDO En efecto:<br />
¿el camino <strong>de</strong> Santiago<br />
es éste? (vv. 887-889)<br />
RAMIRO Y en toda Europa<br />
no hay camino más cosario,<br />
aunque entre el <strong>de</strong> Roma y entre<br />
el <strong>de</strong>l Sepulcro sagrado<br />
<strong>de</strong> Jerusalén. (vv 890-894)<br />
LAURO No tiene<br />
el mundo provincia en cuanto<br />
88
el bautismo se predica<br />
que a este antiguo santuario<br />
<strong>de</strong> nuestro Patrón no envíe<br />
peregrinos, ni apartado [...] (vv. 895-900)<br />
[...] y al Patrón <strong>de</strong> España. (v. 910)<br />
FRUELA Es tanto,<br />
que al camino que en el Cielo<br />
por causa <strong>de</strong> estar cuajado<br />
<strong>de</strong> estrellas llamó el gentil<br />
camino <strong>de</strong> la leche, han dado<br />
en llamarle vulgarmente<br />
el camino <strong>de</strong> Santiago. (vv. 911-917)<br />
RELOX [...] al cielo y mirando encima<br />
el camino <strong>de</strong> Santiago,<br />
dió voces a su mujer,<br />
y dijo: “¿No habéis mirado<br />
dón<strong>de</strong> la cama habéis hecho?<br />
¿Queréis que se caiga acaso<br />
un bordón <strong>de</strong> un peregrino<br />
<strong>de</strong> los que van caminando, [...] (vv. 926-933)<br />
Depois dos diálogos <strong>de</strong>scritivos do Caminho <strong>de</strong> Santiago e a lenda do<br />
Apóstolo, o con<strong>de</strong> Lisuardo e seus lacaios, Relox e Lauro, <strong>de</strong>param-se com dona<br />
Sol e Urraca vestidas <strong>de</strong> peregrinas, voltando do sepulcro do Apóstolo. Diante do<br />
encontro, Lisuardo se mostra extasiado pela beleza da nobre Sol: “¡Notable<br />
belleza!”. Dona Sol não se i<strong>de</strong>ntifica como nobre e pe<strong>de</strong> esmola, mas a resposta<br />
do con<strong>de</strong> Lisuardo continua a <strong>de</strong>monstrar seu idílio:<br />
LISUARDO Del mismo cielo parece<br />
que las dos habéis bajado.<br />
Merced me haced <strong>de</strong> correr<br />
a los rostros soberanos<br />
<strong>de</strong> los volantes dichosos<br />
las cortinas (vv. 972-977)<br />
Dona Sol se mostra reticente a continuar sua peregrinação, sem ostentar<br />
beleza, riqueza ou po<strong>de</strong>r.<br />
DOÑA SOL No llegamos<br />
haciendo esta ostentación;<br />
si sois servido <strong>de</strong> darnos<br />
limosna, hacednos merced,<br />
y si no, el Apóstol santo<br />
en esta jornada os guíe. (vv. 978-983)<br />
89
Dona Sol insiste em mostrar a Lisuardo que os caminhos <strong>de</strong> ambos são<br />
diferentes, mas diante da petição do con<strong>de</strong> acaba mostrando sua verda<strong>de</strong>ira<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ao se <strong>de</strong>scobrir, fato este que o <strong>de</strong>ixa mais maravilhado ainda<br />
LISUARDO ¡Raro<br />
y más que admirable extremo<br />
<strong>de</strong> hermosura! No me acabo<br />
<strong>de</strong> persuadir que es verdad<br />
tan peregrino milagro<br />
<strong>de</strong> honestidad y belleza. (996-1001)<br />
e que o leva a expressar num jogo <strong>de</strong> palavras e sentimentos seu estado<br />
atual, <strong>de</strong> homem apaixonado<br />
LISUARDO ¿Cómo pi<strong>de</strong><br />
limosna quien está dando<br />
pródiga, al mundo hermosura;<br />
rica, al sol rayos dorados;<br />
po<strong>de</strong>rosa, al cielo envidia;<br />
divina, al tiempo milagros?<br />
Quien ha menester pediros,<br />
romera, ¿cómo ha <strong>de</strong> daros,<br />
ni qué ha menester pedir<br />
quien almas viene robando? (vv. 1004-1013)<br />
O con<strong>de</strong> Lisuardo tentará por todos os meios conquistar dona Sol, inclusive<br />
lhe oferecendo jóias, mas ela permanece firme<br />
DOÑA SOL [...] y los diamantes <strong>de</strong>jadlos<br />
para quien tan bien los luce,<br />
que allá en Castilla no estamos<br />
las mujeres como yo<br />
tan faltas <strong>de</strong>llos, que traigo<br />
algunos con que po<strong>de</strong>r<br />
serviros y regalaros,<br />
que pue<strong>de</strong>n <strong>de</strong>safiarse<br />
con más <strong>de</strong> una estrella a rayos.<br />
Y el Cielo os guar<strong>de</strong> con esto,<br />
que me parece que estamos<br />
los dos mal <strong>de</strong> esta manera:<br />
vos, el tiempo dilatando<br />
<strong>de</strong> caminar; yo, con vos<br />
pasando ya <strong>de</strong>l recato<br />
los límites que me <strong>de</strong>bo,<br />
y que por quien soy me guardo,<br />
y es razón no <strong>de</strong>tenerme,<br />
ni entreteneros hablando,<br />
caminaréis más aprisa<br />
y beberéis más <strong>de</strong>spacio (vv. 1051-1071)<br />
90
Os versos seguintes servem para <strong>de</strong>monstrar que o con<strong>de</strong> Lisuardo, diante<br />
da paixão <strong>de</strong>scontrolada que sente, está prestes a cometer uma loucura<br />
LISUARDO Detente, que, vive Dios,<br />
que es rigor <strong>de</strong>masiado<br />
partirte <strong>de</strong> esta manera. (vv. 1072-1074)<br />
DOÑA SOL Pues ¿qué quieres? (vv. 1075)<br />
LISUARDO ¿Qué más claro<br />
te pue<strong>de</strong>n hablar mis ojos<br />
<strong>de</strong> lo que te están hablando? (vv. 1076-1078)<br />
Mas dona Sol coloca um ponto final na conversa com os seguintes versos<br />
que finalizam a cena XIV da primeira jornada<br />
DOÑA SOL Tanto<br />
os hacéis <strong>de</strong>sentendido<br />
<strong>de</strong> lo que soy, que me canso<br />
<strong>de</strong> estar cansada con vos,<br />
<strong>de</strong> advertiros y escucharos;<br />
hacedme merced <strong>de</strong> hacer<br />
como quien sois, y <strong>de</strong>jadnos<br />
proseguir nuestro camino,<br />
sin que nos impida el paso<br />
poco <strong>de</strong>coro a la sangre<br />
que tengo, al antiguo y claro<br />
blasón <strong>de</strong> algún apellido<br />
que honra a España y que heredaron<br />
estos nobles pensamientos (vv. 1109 -1122)<br />
[...]<br />
De mi mano,<br />
esperad Con<strong>de</strong>, más castas<br />
hazañas, y reportaos;<br />
no pasen las groser ías<br />
a po<strong>de</strong>r llamarse agravios,<br />
que, ¡vive Dios!, que mujer<br />
como soy, sepa <strong>de</strong>jaros<br />
con <strong>de</strong>sengaños <strong>de</strong> libre,<br />
con presunciones <strong>de</strong> ingrato,<br />
con escarmiento <strong>de</strong> necio<br />
y castigos <strong>de</strong> villano<br />
Vamos, Urraca (vv. 1134-1145)<br />
Dona Sol e Urraca continuam com a sua romaria, mas o con<strong>de</strong> Lisuardo<br />
pe<strong>de</strong> para que só Relox fique com ele e mais quatro ou cinco criados, pois quer<br />
ficar a sós “Loco por tus ojos voy, / romera <strong>de</strong> Santiago”.<br />
Na segunda jornada, dona Sol mostra a Urraca que <strong>de</strong> certa forma foi<br />
ofendida pelo con<strong>de</strong>, e sua dama aproveita o diálogo para perguntar: “¿cómo te<br />
91
parecen mal / todos los hombres?”. Dona Sol respon<strong>de</strong>: “Urraca, / nací con esa<br />
aspereza.”, ao que Urraca acrescenta: “Siempre fue <strong>de</strong> la belleza / la ingratitud<br />
sombra.”<br />
O diálogo continua com a neceda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nominação que dá Urraca ao<br />
comportamento e palavras <strong>de</strong> dona Sol, diante <strong>de</strong> sua postura <strong>de</strong> não aceitar<br />
nenhum homem.<br />
URRACA Pues que te parece bien<br />
algún hombre es necesario,<br />
siendo mujer y naciendo<br />
<strong>de</strong> los hombres. (vv. 39-42)<br />
DOÑA SOL Necia estás;<br />
no hace diferencia más<br />
un hombre presente viendo<br />
que <strong>de</strong> un árbol, una fuente,<br />
un edificio, un retrato. (vv. 43-47)<br />
URRACA pues no hay hombre que te aumente<br />
un poco más el <strong>de</strong>seo<br />
que lo que está inanimado.<br />
Sin duda que se te ha hel ado<br />
el apetito; no creo<br />
que para mujer naciste. (vv. 48 -53)<br />
As palavras <strong>de</strong> Urraca ferem dona Sol que se pergunta sobre a ousadia <strong>de</strong><br />
tanto atrevimento e, no meio dos diálogos, finalizando a primeira cena da segunda<br />
jornada, acontece o pôr do sol.<br />
Até este momento, os acontecimentos ocorridos, mostram uma obra<br />
dramática sem gran<strong>de</strong>s questionamentos. Mas é a partir da segunda cena que se<br />
produz o momento crítico da peça, a <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> dona Sol. A didascália explícita<br />
mostra o con<strong>de</strong> Lisuardo e seus criados, com os rostos cobertos e espadas nas<br />
mãos, como se fossem bandidos numa emboscada, fato este que faz com que<br />
dona Sol não o reconheça<br />
DOÑA SOL Camaradas:<br />
contra dos mujeres solas<br />
menos que una espada basta.<br />
Retiradlas, que si vuestra<br />
<strong>de</strong>terminación la causa<br />
necesidad <strong>de</strong> dineros,<br />
y dos mujeres honradas,<br />
que en este traje caminan, [...] (vv. 117-124)<br />
92
Quando dona Sol <strong>de</strong>scobre que o bandido é o con<strong>de</strong> Lisuardo (<strong>de</strong>pois que<br />
ele <strong>de</strong>scobre o rosto) este confessa estar perdido <strong>de</strong> amor e por isso <strong>de</strong>ve ser<br />
correspondido. Dona Sol, por sua parte, tenta mostrar até que ponto Lisuardo a<br />
<strong>de</strong>sonra e revela ser filha <strong>de</strong> don Manrique <strong>de</strong> Lara, linhagem sagrada <strong>de</strong><br />
Espanha. Mas os argumentos pouco interessam quando Lisuardo expressa sua<br />
loucura e a atitu<strong>de</strong> que tomará: “Amor o apetito, / yo he <strong>de</strong> gozarte”. Dona Sol<br />
respon<strong>de</strong>: “Ya manchas / con las palabras mi honor”, e Lisuardo afirma: “No han<br />
<strong>de</strong> ser solas palabras”.<br />
Os signos espaciais mais numerosos encontram-se emitidos pelos<br />
personagens em seus discursos. São mais abundantes naquelas passagens que<br />
fazem referência a um espaço aberto (on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>scrições se incrementam), como<br />
nos versos que se seguem, quando o con<strong>de</strong> Lisuardo, na sua tentativa <strong>de</strong> possuir<br />
dona Sol, faz referência aos elementos da natureza, mostrando assim como fez<br />
Urraca, alguns versos antes, a “insensibilida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> dona Sol<br />
LISUARDO Mi bien, mi gloria, mi dueño;<br />
mujer sois, amor me abrasa;<br />
vuestro soy, no me matéis<br />
con tanto <strong>de</strong>sdén, con tanta<br />
ingratitud y aspereza,<br />
que no ninguna inhumana<br />
fiera que no quiera bien<br />
su semejante; las plantas,<br />
las peñas, fuentes y ríos<br />
con ser insensibles, aman.<br />
Aquel ruiseñor escucha,<br />
y verás que cuando canta<br />
amorosas quejas son;<br />
mira allí cómo se abrazan<br />
con los sauces y los olmos<br />
las hiedras enamoradas;<br />
hasta aquel peñasco está<br />
enamorando las aguas<br />
<strong>de</strong> aquel cristal fugitivo. (vv. 199- 217)<br />
mas ela respon<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrando inteligência e coerência, além <strong>de</strong> se<br />
preparar para lutar por sua honra<br />
DOÑA SOL Mira entre esas semejanzas<br />
<strong>de</strong> amor, si nadie por fuerza<br />
lo que le niegan alcanza.<br />
Amor es correspondência<br />
entre dos iguales almas,<br />
93
que la costumbre la engendra<br />
y alimenta la esperanza. (vv. 218-224)<br />
[...]<br />
Da tiempo al tiempo, enamora,<br />
con estimación regala,<br />
sirve, ruega, <strong>de</strong>sconfía,<br />
escribe, recela, aguarda<br />
y no atropelles por fuerza<br />
prendas <strong>de</strong> tanta importancia,<br />
pues no vienen a ser gustos<br />
los <strong>de</strong>l cuerpo sin el alma. (vv. 241-2248)<br />
[...]<br />
Nunca recibe esta casa<br />
huéspe<strong>de</strong>s <strong>de</strong> esa manera,<br />
porque tiene salvaguarda<br />
<strong>de</strong>l honor y <strong>de</strong>l valor.<br />
Tu ciego amor <strong>de</strong>sengaña<br />
que no ha <strong>de</strong> pasar apenas<br />
los umbrales, Con<strong>de</strong>, aparta,<br />
que el bordón <strong>de</strong> una romera<br />
con obligaciones tantas,<br />
basta y sobra contra todas<br />
las viles armas villanas<br />
<strong>de</strong> un <strong>de</strong>scortés caballero [...] (vv. 254-265)<br />
O momento trágico acontece com a <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> dona Sol. A didascália<br />
explícita que se segue a <strong>de</strong>screve esfaqueada e os versos <strong>de</strong> Lauro, um dos<br />
lacaios, revelam: “Sobre la hierba ha caído, / volviendo en coral la grama”.<br />
Mas dona Sol não morre, e na cena VII se faz presente no reinado <strong>de</strong><br />
Ordoño, em Leão, para vingar sua <strong>de</strong>sonra. Ortuño, o lacaio do rei, é quem<br />
apresenta à nobre<br />
ORTUÑO Una peregrina,<br />
y peregrina mujer<br />
que contra todo el po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> nosotros <strong>de</strong>termina<br />
entrarse furiosa a hablar. (vv. 597-601)<br />
[...]<br />
ORDOÑO Escuchar sus quejas quiero,<br />
pues hoy estoy obligado,<br />
como Rey, por justa ley,<br />
a no escon<strong>de</strong>r las orejas<br />
a la justicia y las quejas,<br />
o he <strong>de</strong> <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> ser Rey. (vv. 607-612)<br />
Além <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver os fatos ocorridos para Ordoño e a infanta Linda dona<br />
Sol pedirá justiça<br />
DOÑA SOL [...] y con <strong>de</strong>snudas espadas<br />
94
al camino nos salió, (vv. 724-725)<br />
[...]<br />
una punta <strong>de</strong> su espada<br />
en la frente me alcanzó,<br />
cuando más mezclada andaba<br />
la batalla <strong>de</strong> mi honor.<br />
Sentí en los ojos la sangre,<br />
y en el flaco corazón,<br />
como al fin <strong>de</strong> mujer hizo,<br />
más que la herida, el temor.<br />
Ciega <strong>de</strong> la sangre, en tierra<br />
el honor conmigo dió<br />
que siempre fué mal agüero<br />
sangriento eclipse en el sol.<br />
A este tiempo, entre los brazos<br />
a recibirme llegó,<br />
con piadosa tiranía,<br />
con tirana presunción,<br />
don<strong>de</strong>, haciendo a los <strong>de</strong>más<br />
que se aparten, comenzó<br />
a regalarme lascivo,<br />
a enlazarme adulador.<br />
Si con la boca me limpia<br />
la sangre, con el dolor<br />
fingiendo, lágrimas vierte,<br />
que <strong>de</strong> cocodrilo son.<br />
Yo, sin aliento, sin alma,<br />
ni oigo, ni siento, ni estoy<br />
para resistirle, y loco,<br />
ciego y tirano intentó<br />
mi <strong>de</strong>sventura, mi infamia,<br />
mi <strong>de</strong>shonra.( vv. 744-773)<br />
[...]<br />
¡Justicia, Ordoño, justicia,<br />
por quien eres, por quien soy, (vv. 793-794)<br />
[...]<br />
e <strong>de</strong>ixará transparecer o ódio por causa <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sonra. Novamente se<br />
<strong>de</strong>screvem elementos da natureza (pedra, terra, mar, ar, fogo, raios etc) aos quais<br />
pedirá ajuda com o acréscimo <strong>de</strong> animais venenosos, como cobras e basiliscos.<br />
Finalmente dona Sol <strong>de</strong>monstra vergonha diante <strong>de</strong> seu estado, <strong>de</strong> se apresentar<br />
como mulher <strong>de</strong>sonrada.<br />
Embora neste drama, como em outros <strong>de</strong> Tirso, encontremos os abusos <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r, a visão do dramaturgo, que po<strong>de</strong>ríamos chamar talvez <strong>de</strong> otimista, permite<br />
com freqüência <strong>de</strong>senlaces que <strong>de</strong>monstram arrependimento final, o perdão e<br />
certa reconciliação com as próprias culpas dos personagens, o que nos oferece<br />
um final feliz. Esta última consi<strong>de</strong>ração será trabalhada no último item <strong>de</strong>ste<br />
capítulo.<br />
95
3.4. Presença feminina no Caminho <strong>de</strong> Santiago<br />
Como vimos, Ortuño anuncia dona Sol com os seguintes versos: “Una<br />
peregrina, / y peregrina mujer”. Até aqui não sabíamos se era comum o papel da<br />
mulher como peregrina no Caminho <strong>de</strong> Santiago, o que nos levou a aprofundar<br />
nossas pesquisar sobre esse fato.<br />
O Co<strong>de</strong>x Calixtinus, o guia <strong>de</strong> meados do século XII exorta a que, caso se<br />
escolha o Caminho <strong>de</strong> Toulouse, visite-se o sepulcro da mártir Santa Florência; na<br />
escolha por Le Puy, <strong>de</strong>ve -se venerar o corpo <strong>de</strong> outra mártir, Santa Fé; ao<br />
avançar pelo caminho <strong>de</strong> San Leonardo <strong>de</strong> Limoges até Vezélay, po<strong>de</strong>rá ser<br />
visitado o lugar on<strong>de</strong> repousa Santa Maria Magdalena.<br />
As mulheres elevadas a essa categoria <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do catolicismo<br />
consi<strong>de</strong>ravam uma das causas da perfeição cristã a concepção e prática da vida<br />
como Caminho até Deus, que no mundo se resolve, entre outras metas, nos<br />
Caminhos <strong>de</strong> Santiago.<br />
No Ano Santo <strong>de</strong> 1993, a Drª Marta González Vázquez num catálogo<br />
<strong>de</strong>nominado Vida y peregrinación menciona várias santas que percorreram o<br />
Caminho. Entre elas encontramos Paulina, alemã, que em 1112 realiza o caminho<br />
com a sua família (uma das características da peregrinação feminina nos tempos<br />
passados); e que é citada na representação <strong>de</strong> El misterio <strong>de</strong> Obanos: “Pasa San<br />
Teobaldo. Pasa Santa Paulina, / y también, sonriente, una gloriosa tar<strong>de</strong> / sin<br />
ocaso posible, Francisco el inefable...”. Também encontramos Ingrid <strong>de</strong><br />
Skänninge, fundadora do primeiro convento <strong>de</strong> dominicanas na Suécia, em<br />
1280/81. González Vázquez menciona também Isabel <strong>de</strong> Portugal (1272-1336),<br />
também rainha, em 1326 e 1335; que realiza ambas as viagens já viúva: a<br />
primeira caminhada, com um gran<strong>de</strong> séqüito, tem fins políticos; a segunda é<br />
realizada quase sem companhia; um romance lembra a viagem:<br />
Vai romera a Sant -Iago<br />
doña Isabel <strong>de</strong> Aragón,<br />
raiña <strong>de</strong> Portugal;<br />
en vez <strong>de</strong> vestes reaes,<br />
traía un hábito <strong>de</strong> freira,<br />
os ollos cheos e humil<strong>de</strong><br />
pedindo esmola na estrada.<br />
96
No artigo são mencionadas também rainhas. Por razões geográficas, as<br />
mulheres que primeiramente se acercaram a Compostela foram as das dinastias<br />
asturgallegas e castellanoleonesas: Jimena, esposa <strong>de</strong> Alfonso III (ano 899),<br />
Elvira, com seu marido Ordoño II (911), Urraca, consorte <strong>de</strong> Fruela (924), Gotona<br />
(925), Urraca, com Ramiro II (934), Fronil<strong>de</strong>, sem seu esposo Ordoño III (1045),<br />
Sancha, com Fernando I, o realiza três vezes <strong>de</strong> 1063 até 1065.<br />
Posteriormente, serão incluídas na peregrinação jacobéia outras<br />
personalida<strong>de</strong>s estrangeiras como Cristina <strong>de</strong> Noruega (1254) e Ingrid <strong>de</strong> Suécia<br />
(1270), e outras personalida<strong>de</strong>s espanholas como Isabel, a Católica. No século<br />
XIX, Isabel II, e no século XX Sofía <strong>de</strong> Grécia.<br />
Uma das peculiarida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stas mulheres será que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r intervirão<br />
<strong>de</strong>cisivamente na criação e manutenção <strong>de</strong> infraestrutura para os peregrinos.<br />
Isabel <strong>de</strong> Portugal <strong>de</strong>stina dinheiro para os centros assistenciais. A criação da<br />
ponte no povoado <strong>de</strong> Puente la Reina é atribuída à esposa <strong>de</strong> Sancho el Mayor.<br />
Isabel, a Católica, manda erguer os hospitais <strong>de</strong> Ponferrada e Santiago.<br />
A documentação histórica e literária conserva também com interesse os<br />
nomes <strong>de</strong> mulheres pertencentes à nobreza que contribuíram nos hospitais <strong>de</strong><br />
peregrinos. O mosteiro <strong>de</strong> San Juan <strong>de</strong> Acre, fundado em 1185, por dona Maria<br />
Teresa Ramírez, proveniente <strong>de</strong> uma importante família do século XII da cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Navarrete. O monumento passou a ser custodiado pela Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> San Juan e<br />
se transformou em hospital para os peregrinos que iam até Compostela. A<br />
con<strong>de</strong>ssa Estefanía, viúva do con<strong>de</strong> Ponce <strong>de</strong> Minerva, foi fundadora do hospital<br />
<strong>de</strong> Sandoval, perto da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mansilla <strong>de</strong> las Mulas. Da mesma forma, outras<br />
nobres tiveram papéis importantes nas construções ao longo do Caminho.<br />
Chama também a atenção o conjunto <strong>de</strong> romeiras peninsulares e europeias<br />
que em 1434 assistiram ao torneio <strong>de</strong> cavaleiros, organizado por Suero <strong>de</strong><br />
Quiñones no río Órbigo, lugar que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então se <strong>de</strong>nomina Paso Honroso.<br />
Mas estas mulheres que mencionamos, e outras, embora fossem nobres e<br />
muitas vezes peregrinassem com seu séquito, não se encontravam fora do perigo.<br />
A literatura apresenta múltiplos testemunhos acerca do papel da mulher nos<br />
Caminhos como po<strong>de</strong>mos apreciar em Gonzalo Berceo na obra intitulada El<br />
97
Romero <strong>de</strong> Santiago, on<strong>de</strong> o diabo toma aparência <strong>de</strong> mulher para tentar o<br />
peregrino. Ela mesmo, a figura feminina, sem a ajuda do diabo, força o<br />
caminhante na lenda El milagro <strong>de</strong> Santo Domingo <strong>de</strong> la Calzada, don<strong>de</strong> canto la<br />
gallina <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> asada. Não seria recomendável sair sozinha <strong>de</strong> casa, pois<br />
existem vários perigos que não po<strong>de</strong>rá superar sem ajuda; em Galiza existe até<br />
hoje a lenda <strong>de</strong> El con<strong>de</strong> y la peregrina, pela qual se sabe que o con<strong>de</strong> <strong>de</strong>sonrou<br />
uma romeira. Vícios da socieda<strong>de</strong> feudal sobrevivem nos Romanceros do<br />
Caminho Francês, Português, <strong>de</strong>l Ebro, ao relembrar a anedota <strong>de</strong> um primo <strong>de</strong><br />
Bernardo <strong>de</strong>l Carpio, a quem este libra <strong>de</strong> morrer enforcado, castigo colocado por<br />
ter forçado uma peregrina, que na versão do con<strong>de</strong> Lombardo é nobre<br />
Al con<strong>de</strong> le llevan preso,<br />
al con<strong>de</strong> Miguel al prado;<br />
no le llevan por ladrón<br />
ni por cosas que ha robado;<br />
por forzar una niña<br />
n’el Camino <strong>de</strong> Santiago<br />
mas este é um tema que trataremos <strong>de</strong>talhadamente a seguir, pois<br />
relaciona-se com a obra em análise.<br />
98
3.5. O romanceiro El con<strong>de</strong> preso<br />
Antes <strong>de</strong> entrar no tema do Romancero gostaríamos <strong>de</strong> comentar o<br />
solilóquio chave do con<strong>de</strong> Lisuardo quando se encontra preso, com correntes, nas<br />
torres do palácio (cena XII da terceira jornada):<br />
LISUARDO Desdichas, ¿qué me queréis?<br />
Qué pretendéis <strong>de</strong> mí, agravios?<br />
No me persigáis, memorias;<br />
<strong>de</strong>jadme morir, cuidados.<br />
¿Qué infierno es este que miro<br />
adon<strong>de</strong> ya, por extraño<br />
y forastero <strong>de</strong>l mundo,<br />
los rayos <strong>de</strong>l sol no alcanzo,<br />
si no son los <strong>de</strong> las iras<br />
<strong>de</strong> otro Sol menos avaro,<br />
en correr los paralelos<br />
<strong>de</strong> las fortunas que paso?<br />
Mas, en parte, ¡oh Sol hermoso!,<br />
muero contento, pensando<br />
que gozando a Sol, di a sol<br />
cielos y envidia <strong>de</strong> sus rayos.<br />
Y si tu <strong>de</strong>sdén supiera<br />
cuánto más me ha enamorado<br />
la posesión, podría ser<br />
que te obligara el milagro (vv. 558-577)<br />
Neste solilóquio, que apresenta um jogo <strong>de</strong> palavras on<strong>de</strong> se misturam Sol<br />
personagem e sol astro rei, Lisuardo faz referência a sua atual situação,<br />
totalmente oposta àquela que foi apresentada no começo da peça, on<strong>de</strong> era<br />
recompensado por suas vitórias, com o pacto <strong>de</strong> um futuro casamento e com isso<br />
elevado à posição <strong>de</strong> nobre, quase igualado com o rei Ordoño. Depois da violação<br />
da nobre dona Sol, e con<strong>de</strong>nado a morte, ele se mostra em <strong>de</strong>vaneios diante da<br />
realida<strong>de</strong>. Uma realida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a vida, sua vida, perece (“los rayos <strong>de</strong>l sol no<br />
alcanzo”) diante da justiça feita por Ordoño, rei que faz jus a seu apelido <strong>de</strong><br />
justiceiro, diante da <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> Sol. Finalmente, mais uma vez, Lisuardo se<br />
confessa apaixonado por dona Sol, com mais intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-la<br />
possuído, e o próprio sentimento <strong>de</strong> amor é o que o leva a ter fé em um milagre<br />
que mu<strong>de</strong> o curso dos acontecimentos.<br />
Depois <strong>de</strong>sta primeira parte do solilóquio temos uma didascália que anuncia<br />
os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um instrumento, e Lisuardo volta a falar:<br />
99
LISUARDO Si no me engaño, imagino<br />
que un instrumento han tocado;<br />
músicos <strong>de</strong>ben <strong>de</strong> ser<br />
<strong>de</strong>l terreno <strong>de</strong> Palacio,<br />
que, al silencio <strong>de</strong> la noche,<br />
fía sus ansias cantando<br />
algún amante. A tocar<br />
vuelven, ¡qué ocioso cuidado! (vv. 578-585)<br />
O con<strong>de</strong> se pergunta sobre a razão daqueles acor<strong>de</strong>s, imaginando algum<br />
amante, talvez preparado para uma serenata, mas a continuação o texto<br />
apresenta outra didascália que anuncia vozes entoando a seguinte canção:<br />
VOCES “Preso tienen al buen Con<strong>de</strong>,<br />
al Con<strong>de</strong> Don Lisuardo<br />
porque forzó una romera<br />
camino <strong>de</strong> Santïago,<br />
la romera es <strong>de</strong> linaje;<br />
ante el rey se ha querellado,<br />
mándale pren<strong>de</strong>r el rey<br />
sin escuchar su <strong>de</strong>scargo” (vv. 586-593)<br />
Esta é uma parte do romanceiro original que dá título à peça dramática,<br />
mas antes <strong>de</strong> entrar na explicação <strong>de</strong>ste gênero literário gostaríamos <strong>de</strong> comentar<br />
os seguintes versos:<br />
LISUARDO ¿Tan publicamente cantan<br />
Mi <strong>de</strong>sdicha? ¡Extraño caso!<br />
Quiero escuchar, que imagino<br />
Que prosiguen con el canto (vv. 594 -597)<br />
Não sabemos se o con<strong>de</strong> Lisuardo conhecia o romanceiro original (e aqui<br />
estamos diante <strong>de</strong> outro anacronismo), o que seria quase inviável, pois como já foi<br />
dito o marco histórico da peça é o século X e, como veremos a continuação este<br />
romancero data <strong>de</strong> época posterior, mas este é mais um artifício do qual o<br />
dramaturgo se vale para construir um enredo que além <strong>de</strong> instruir o público do<br />
século XVII, entretinha e cativava esses mesmos espectadores que certamente<br />
conheciam o gênero Romancero e o enredo El con<strong>de</strong> preso.<br />
O que po<strong>de</strong>mos observar é a vonta<strong>de</strong> do con<strong>de</strong> Lisuardo em querer<br />
continuar a escutar a canção para saber qual será seu fim que, segundo a música<br />
original, será o <strong>de</strong> morrer enforcado.<br />
100
VOCES “La prisión que le da el Rey<br />
(Cantan)<br />
son las torres <strong>de</strong> palacio,<br />
que compiten con el Cielo<br />
y confinan con sus cuartos.<br />
Las guardas que el Con<strong>de</strong> tiene<br />
todos eran hijosdalgos;<br />
treinta le guardan <strong>de</strong> día<br />
y <strong>de</strong> noche treinta y cuatro.<br />
Ya levantan para el Con<strong>de</strong><br />
en la plaza su cadahalso,<br />
y para los <strong>de</strong>lincuentes<br />
hay dos horcas a los lados” (vv. 598-609)<br />
Para compreen<strong>de</strong>r melhor a utilização do gênero Romancero por parte do<br />
dramaturgo Tirso, estilo este que também foi empregado por outros dramaturgos<br />
da época, achamos pertinente expor alguns conceitos <strong>de</strong>sta modalida<strong>de</strong> literária.<br />
O romance é um poema épico-lírico, geralmente não muito extenso, <strong>de</strong><br />
caráter narrativo, composto por versos <strong>de</strong> oito sílabas, com rima assonante nos<br />
pares e livres nos impares. Originariamente era transmitido <strong>de</strong> forma oral, cantado<br />
ou recitado, com acompanhamento <strong>de</strong> música.<br />
O filólogo historiador e medievalista espanhol Ramón Menén<strong>de</strong>z Pidal<br />
(1869-1968) em seu livro Flor nueva <strong>de</strong> romances viejos, apresenta os traços<br />
característicos do romanceiro espanhol e <strong>de</strong>monstra as diferenças que ele possui<br />
em relação às narrações épico-líricas <strong>de</strong> outros países europeus, para finalmente<br />
justificar a frase “España es el país <strong>de</strong>l Romancero, se ha dicho; pero ¿es esto<br />
verdad?” (PIDAL, 2006, p.11).<br />
Os romances mais antigos <strong>de</strong> que se tem notícia datam do século XV.<br />
Também <strong>de</strong>ssa época são as baladas inglesas ou as canções narrativas<br />
francesas. Mas a primeira diferença surge ao <strong>de</strong>scobrirmos que o Romancero<br />
possui um parentesco com a poesia heróica que contava as façanhas históricas<br />
ou lendárias, baseando-se em temas muito mais distantes no tempo, tentando<br />
manter o antigo gênero literário da epopéia espanhola. E, segundo Menén<strong>de</strong>z<br />
Pidal, a Espanha se mostra mais tradicionalista ainda quando a epopéia chega<br />
quase a se esgotar.<br />
[...] Des<strong>de</strong> la segunda mitad <strong>de</strong>l siglo XVI, lo mismo en Francia que en<br />
España, las invenciones y refundiciones <strong>de</strong> los poemas épicos <strong>de</strong>caían<br />
notablemente; los juglares o cantores <strong>de</strong> profesión van olvidándolos. Pero<br />
101
mientras en Francia el olvido fue completo, en España el pueblo recordó<br />
persistentemente muchos <strong>de</strong> los fragmentos más famosos y los cantó<br />
aislados (PIDAL, 2006, p. 13).<br />
No Romancero espanhol encontramos, além das referências a heróis<br />
nacionais como Bernardo <strong>de</strong>l Carpio, o con<strong>de</strong> Fernán González ou o Cid, também<br />
referências a heróis franceses como Carlomagno. E segundo Méne<strong>de</strong>z Pidal o<br />
caráter mais profundamente distintivo do Romancero é essa ligação com as<br />
canções <strong>de</strong> gestas heróicas.<br />
No entanto, o Romancero também se valeu <strong>de</strong> assuntos nacionais mais<br />
atuais, que tentavam manter o povo informado dos últimos acontecimentos, o que<br />
<strong>de</strong>monstra que este gênero possuía um forte fundo histórico. Nascem assim os<br />
romances que divulgavam os encontros e sucessos ocorridos na guerra contra o<br />
reino mouro <strong>de</strong> Granada.<br />
[...] Enrique IV, en 1462, mandó hacer un romance sobre cierta campaña<br />
en tierras <strong>de</strong> Granada y mandó a los cantores <strong>de</strong> la capilla real que lo<br />
asonasen; y <strong>de</strong> igual modo en la capilla <strong>de</strong> los Reyes Católicos se<br />
componían y cantaban otros romances sobre las últimas reconquistas<br />
granadinas (PIDAL, 2006, p. 17).<br />
Na sua forma métrica, o Romancero apresenta versos <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis sílabas<br />
com assonância numa rima só, a mesma versificação das gestas medievais, o que<br />
revela mais uma vez a sua origem e a diferença com as canções narrativas dos<br />
outros países europeus.<br />
O estilo do romance, segundo Menén<strong>de</strong>z Pidal, <strong>de</strong>monstra também outra<br />
característica hispânica, a simplicida<strong>de</strong>. Para ele, o Romancero é extremamente<br />
simples, não se valendo <strong>de</strong> muitos recursos nem <strong>de</strong> elementos maravilhosos ou<br />
extraordinários “[...] Con esa sencillez <strong>de</strong> recursos, los romances alcanzan gran<br />
viveza intuitiva <strong>de</strong> la escena, emoción llana y fuerte, elevación moral, aire <strong>de</strong> gran<br />
nobleza” (PIDAL, 2006, p. 27).<br />
O Romancero do século XVI apresenta assuntos inacabados masembora<br />
nessa forma incompleta, esses fragmentos <strong>de</strong>monstram ser mais maravilhosos<br />
que o texto em seu conjunto.<br />
El fragmentarismo <strong>de</strong>l Romancero es, pues, un procedimiento estético: la<br />
fantasía conduce una situación dramática hasta un punto culminante, y<br />
102
allí, en la cima, aletea hacia una lejanía ignota, sin <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r por la<br />
pendiente <strong>de</strong>l <strong>de</strong>senlace. La bella mora Moraima, abriendo <strong>de</strong> par en par<br />
su corazón, como un abismo que el romance se complace en <strong>de</strong>jar<br />
abrupto y hondo ante nuestra mirada, nos dice <strong>de</strong> la eterna tragedia<br />
femenina mucho más que cualquier invención <strong>de</strong>tallada que se suponga<br />
a continuación [...](PIDAL, 2006, p. 28).<br />
A forma <strong>de</strong> recitar isoladamente alguns versos <strong>de</strong> um poema extenso <strong>de</strong>u<br />
origem a muitos dos romances mais antigos que se conservam. Eles são na sua<br />
essência fragmentários, e <strong>de</strong>monstram o gosto pelos relatos inacabados e as<br />
situações in<strong>de</strong>finidas.<br />
Como dissemos num primeiro momento os romances mais antigos <strong>de</strong> que<br />
se tem notícia datam do século XV. Começam a ser escutados nos palácios <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
1445, na corte <strong>de</strong> Afonso V <strong>de</strong> Aragão, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1462, na corte <strong>de</strong> Henrique IV <strong>de</strong><br />
Castela e <strong>de</strong>pois na dos Reis Católicos. As crônicas e as histórias os incorporam,<br />
como poesia heróica, muitas vezes em seus relatos.<br />
O gosto pelos romances cresce e começa assim o costume <strong>de</strong> colecioná-<br />
los em pequenos volumes <strong>de</strong> bolso, como foi o caso do Cancionero <strong>de</strong> Romances<br />
que abre a série, em 1548. Depois vêm Silva <strong>de</strong> Romances, Flor <strong>de</strong> Romances e<br />
Romancero general, em 1600, com seus <strong>de</strong>rivados.<br />
O teatro também se apo<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>ste estilo. Alguns poetas inserem em cena<br />
romances ou fragmentos dos mesmos nos diálogos dramáticos, muitas vezes até<br />
servindo <strong>de</strong> inspiração para o drama que se compunha.<br />
É por volta <strong>de</strong> 1640 que o Romancero começa a cair em <strong>de</strong>suso e se torna<br />
totalmente esquecido na segunda meta<strong>de</strong> do século XVII.<br />
Retornando ao tema do teatro, o dramaturgo Tirso <strong>de</strong> Molina, na obra<br />
analisada La romera <strong>de</strong> Santiago, usa um antigo romance intitulado El con<strong>de</strong><br />
preso. Embora se presuma que seja antigo ele não figura em coleções anteriores<br />
nem em cancioneiros dos séculos XVI e XVII.<br />
A versão mais antiga <strong>de</strong>ste romance heróico novelesco leva o nome <strong>de</strong><br />
Romance <strong>de</strong>l Con<strong>de</strong> Lombardo, publicada numa folha solta no século XVI. O<br />
filólogo espanhol Diego Catalán (1928-2008), neto <strong>de</strong> Menén<strong>de</strong>z Pidal, em La<br />
romera <strong>de</strong> Santiago y Grifo Lombardo. Valor arqueológico <strong>de</strong> la tradición mo<strong>de</strong>rna,<br />
que se encontra no livro Por campos <strong>de</strong>l romancero, realizou um minucioso<br />
103
trabalho sobre este romance, suas refundições mo<strong>de</strong>rnas e as contaminações<br />
sofridas pelo mesmo com outros temas, pois ao longo do tempo o tema central do<br />
Con<strong>de</strong> Lombardo sofre transformações, inclusive pela influência <strong>de</strong> outros<br />
romances ou pela fusão <strong>de</strong> dois romances como é o caso <strong>de</strong> Con<strong>de</strong> Grifos<br />
Lombardo com No me entierren en sagrado, variação que se conhece muito na<br />
região <strong>de</strong> Canárias, que <strong>de</strong>monstra um final <strong>de</strong> reprovação diante da ação <strong>de</strong>litiva<br />
do con<strong>de</strong> ao invés <strong>de</strong> lhe perdoar a vida por motivos <strong>de</strong> nobreza ou linhagem.<br />
O Romance <strong>de</strong>l Con<strong>de</strong> Lombardo era conhecido nas Astúrias <strong>de</strong> Santillana<br />
no ano <strong>de</strong> 1680 segundo o testemunho <strong>de</strong> Frei Francisco <strong>de</strong> Sota em Chronica <strong>de</strong><br />
los Príncipes <strong>de</strong> Asturias y Cantabria, mas se acredita que ele seja um fragmento<br />
<strong>de</strong> outro romance mais completo.<br />
En aquellas peñas pardas, en las sierras <strong>de</strong> Moncayo<br />
fue do el rey mandó pren<strong>de</strong>r al con<strong>de</strong> Grifos Lombardo,<br />
porque forzó una doncella camino <strong>de</strong> Santiago,<br />
la cual era hija <strong>de</strong> un duque, sobrina <strong>de</strong>l Padre Santo.<br />
Quejábase ella <strong>de</strong>l fuerzo; quéjase el con<strong>de</strong> <strong>de</strong>l grado.<br />
Allá van a tener pleito <strong>de</strong>lante <strong>de</strong> Carlo Magno<br />
y mientras que el pleito dura al con<strong>de</strong> han encarcelado<br />
con grillones a los pies, sus esposas en las manos,<br />
una gran ca<strong>de</strong>na al cuello con eslabones doblados.<br />
La ca<strong>de</strong>na era muy larga, ro<strong>de</strong>a todo el palacio;<br />
allá se abre y se cierra en la sala <strong>de</strong>l rey Carlos.<br />
Siete con<strong>de</strong>s le guardaban, todos han juramentado<br />
que si el con<strong>de</strong> se revuelve todo serán a matallo.<br />
Ellos estando en aquesto, cartas habían llegado<br />
para que casen la infanta con el con<strong>de</strong> encarcelado.<br />
Esta é uma versão espanhola documentada em 1562, no Cancionero Flor<br />
<strong>de</strong> enamorados (Romance <strong>de</strong>l con<strong>de</strong> Lombardo) 32 , mas existe outra versão, da<br />
qual acredita-se que foi extraído o texto com o título <strong>de</strong> Justiça <strong>de</strong> Deus, no<br />
Romanceiro <strong>de</strong> Almeida Garrett.<br />
Como sinalizamos na cena XII, da terceira jornada, se faz alusão, pela<br />
primeira vez, a este romanceiro, logo <strong>de</strong>pois do solilóquio do con<strong>de</strong> Lisuardo,<br />
preso na torre do palácio. Como em todos os romances, as variações e extensões<br />
são diversas. A primeira mudança que o dramaturgo apresenta é o nome Grifos<br />
Lombardo por Don Lisuardo, protagonista da peça. Depois virão outras<br />
32 Existem várias versões <strong>de</strong>ste romancero que po<strong>de</strong>m ser consultadas no en<strong>de</strong>reço eletrônico que<br />
encontra-se na bibliografia.<br />
104
adaptações como a i<strong>de</strong>ntificação da protagonista feminina (doncella, romera) e<br />
sua posição social (hija <strong>de</strong>l rey, <strong>de</strong>l duque, <strong>de</strong> un duque, sobrina ou nieta <strong>de</strong>l ou <strong>de</strong><br />
un padre santo) etc.<br />
Possivelmente seja este um dos mais conhecidos romanceros com temática<br />
jacobéia. O protagonista é chamado ora “Grifos Lombardo” ora “Con<strong>de</strong> Lombardo”<br />
ora “Miguel <strong>de</strong>l Prado”, mas o que tem <strong>de</strong> comum em todas as versões é a<br />
<strong>de</strong>tenção do protagonista e seguidamente sua con<strong>de</strong>nação, por ter <strong>de</strong>sonrado<br />
uma mulher no Camino <strong>de</strong> Santiago.<br />
Nos versos que se seguem, Lisuardo <strong>de</strong>scobre que Relox, seu lacaio,<br />
também está preso nas torres do castelo, con<strong>de</strong>nado a morrer enforcado. Nestes<br />
diálogos Lisuardo expressa seu infortúnio<br />
LISUARDO Cuanto por mi está pasando<br />
parece sueño: ¿si estoy<br />
<strong>de</strong>spierto, si duermo acaso?<br />
Durmiendo <strong>de</strong>bo <strong>de</strong> estar,<br />
aunque yo sé que me engaño,<br />
porque solamente sueña<br />
la <strong>de</strong>sdicha un <strong>de</strong>sdichado (vv. 695-700)<br />
A tristeza e <strong>de</strong>sdita <strong>de</strong> Lisuardo é, em resumo, um meio dramático que<br />
nasce do <strong>de</strong>senvolvimento da ação e ajuda a conduzi-la. Ao mesmo tempo,<br />
reforça o clima <strong>de</strong> enredo mediante o uso <strong>de</strong> palavras e situações anfibológicas.<br />
É nos versos seguintes, on<strong>de</strong> Lisuardo <strong>de</strong>scobre, por intermédio <strong>de</strong> Relox,<br />
que o con<strong>de</strong> Garcí-Fernán<strong>de</strong>z preten<strong>de</strong> se casar com a infanta Linda, e que essas<br />
pretensões existem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Lisuardo fora enviado para a Inglaterra.<br />
Depois disso, nos <strong>de</strong>paramos com uma didascália implícita, na voz <strong>de</strong><br />
Relox, “Pienso que ahora han abierto / una puerta, y siento pasos”, e em relação a<br />
ela a resposta <strong>de</strong> Lisuardo que mostra uma transformação na sua pessoa, “Los <strong>de</strong><br />
mi muerte serán, / pues que la estoy esperando. / ¿Qué es eso?”, primeiro<br />
enfrentando a morte que se aproxima e <strong>de</strong>pois surpreendido <strong>de</strong> encontrar a<br />
infanta Linda.<br />
LINDA Con<strong>de</strong>, yo soy;<br />
no os turbéis, que vengo a daros<br />
la vida por esta puerta<br />
que he abierto agora en el cuarto<br />
105
<strong>de</strong>l Rey mi hermano, con esta<br />
llave maestra. He intentado<br />
que me <strong>de</strong>báis por postrero<br />
bien el <strong>de</strong> la vida. (vv. 776-783)<br />
LISUARDO Tanto<br />
os <strong>de</strong>bo, que no imagino<br />
con muchas po<strong>de</strong>r pagaros. (vv. 784-786)<br />
Linda <strong>de</strong>clara que embora as autorida<strong>de</strong>s do condado <strong>de</strong> Leão se<br />
conformassem em con<strong>de</strong>nar Lisuardo impondo-lhe o castigo <strong>de</strong> contrair núpcias<br />
com dona Sol, o rei Ordoño, por razão <strong>de</strong> Estado (o que <strong>de</strong>ixa também seu nome<br />
imortalizado, como expressa a personagem Pelayo diante da resolução do rei, nos<br />
versos 842-845 “Con esto queda también / satisfecho el agraviado / honor <strong>de</strong> Sol,<br />
la opinión / <strong>de</strong> Ordoño inmortalizado”), <strong>de</strong>terminou que fosse con<strong>de</strong>nado à morte,<br />
também para satisfazer a <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> Sol.<br />
LINDA Dejando a una parte agora<br />
las ceremonias, mi hermano,<br />
con todo el Real Consejo,<br />
a muerte os ha con<strong>de</strong>nado,<br />
que, puesto que los jueces<br />
y todos cuantos letrados<br />
tiene León, se conforman<br />
en que pudierais casaros<br />
con Sol, porque las palabras<br />
que nos dimos y las manos<br />
fueron <strong>de</strong> tiempo futuro<br />
y sirvieron <strong>de</strong> un contrato<br />
no más, por sólo el <strong>de</strong>coro<br />
que se <strong>de</strong>be al soberano<br />
nombre <strong>de</strong> hermana <strong>de</strong> un Rey,<br />
manda por razón <strong>de</strong> Estado<br />
que muráis, satisfaciendo<br />
también con esto al agravio<br />
<strong>de</strong> Doña Sol; [...] (vv. 787-805)<br />
Linda também diz sentir pieda<strong>de</strong> só <strong>de</strong> pensar que um dia suas vidas<br />
estivessem unidas em casamento o que a leva a libertá-lo.<br />
LINDA Con<strong>de</strong>, esto basta; partios,<br />
que la piedad me ha obligado<br />
<strong>de</strong> haber llegado a tener<br />
nombre <strong>de</strong> vuestra. (vv. 819-822)<br />
Mas a libertação do con<strong>de</strong> provoca uma revolução no condado <strong>de</strong> Leão.<br />
Garcí-Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong>sconfia que a infanta Linda ou o rei Ordoño ajudaram na fuga<br />
106
e, com o exército <strong>de</strong> Castela, <strong>de</strong>safia o rei. Na didascália explícita que introduz a<br />
cena XIX da terceira jornada, o dramaturgo coloca frente a frente a nobreza<br />
leonesa e castelhana com seus servidores (o que representa os exércitos):<br />
Ximeno, Garcí-Fernán<strong>de</strong>z, Ordoño, Ortuño, Doña Sol, infanta Linda, Blanca e<br />
Urraca.<br />
Nesse momento, Lisuardo e Relox se fazem presentes. O con<strong>de</strong> Lisuardo<br />
argumenta retornar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> saber que o con<strong>de</strong> Garcí-Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong>safiou o rei<br />
<strong>de</strong> Leão, não somente enfrentando a morte, senão também para <strong>de</strong>monstrar a<br />
valentia que o fez merecer o reconhecimento <strong>de</strong> Ordoño. Ao mesmo tempo,<br />
Lisuardo exige a banda da infanta Linda, que ela entregou a Relox antes <strong>de</strong> partir<br />
com Lisuardo para Inglaterra, como símbolo <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> diante do casamento<br />
acordado e, que naquele instante, Garcí-Fernán<strong>de</strong>z se apropriou.<br />
Como po<strong>de</strong>mos ver, o <strong>de</strong>senrolar dos acontecimentos nos levam a pensar<br />
que cada vez menos o dramaturgo encontrará uma saída para o enredo, mas é<br />
nesse momento que a infanta Linda se faz presente (com uma banda na mão),<br />
<strong>de</strong>monstrando mais uma vez a forte presença feminina no teatro tirsiano,<br />
expressando nos seguintes versos aceitar contrair matrimônio com o con<strong>de</strong> Garcí-<br />
Fernán<strong>de</strong>z.<br />
LINDA Deteneos, y pues es<br />
aquesta banda que traigo<br />
por los ojos la que dice,<br />
quiero volverla a su mano<br />
<strong>de</strong>l Con<strong>de</strong>, con esta mía<br />
<strong>de</strong> esposa, porque en el campo<br />
¡<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rla mejor pueda<br />
<strong>de</strong>l Con<strong>de</strong> Lisuardo;<br />
que pues está <strong>de</strong>clarada<br />
la nulidad y han estado<br />
prendas mías en po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong>l <strong>de</strong> Castilla esperando<br />
esta elección, lo que he hecho<br />
será al gusto <strong>de</strong> mi hermano,<br />
que si repara en que di<br />
la mano a Don Lisuardo,<br />
para besar cada día<br />
la doy a cualquier vasallo.<br />
Acuda a su obligación,<br />
como es razón, entre tanto<br />
que <strong>de</strong>l Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castilla<br />
soy mujer (vv. 988-1009)<br />
107
Uma vez findo o pacto do casamento da infanta Linda com o con<strong>de</strong><br />
Lisuardo, esta po<strong>de</strong> ser a esposa <strong>de</strong> Garci-Fernán<strong>de</strong>z, e dona Sol será a <strong>de</strong><br />
Lisuardo, dando assim vali<strong>de</strong>z ao matrimônio consumado e preferência diante do<br />
matrimônio <strong>de</strong> acordo, como foi o primeiro. Se foi em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sonra por<br />
não contar com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dona Sol, uma vez que seja reconhecido<br />
oficialmente, institucionalizado, limpará sua honra.<br />
Nos encontramos diante dos últimos versos do drama, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois das<br />
palavras da infanta Linda, o con<strong>de</strong> Garcí-Fernán<strong>de</strong>z a aceita como esposa, Dona<br />
Sol e Lisuardo também se <strong>de</strong>claram e o rei Ordoño expressa “Heroicamente, /<br />
Linda, el pleito has sentenciado”, admitindo que é a infanta quem coloca o ponto<br />
final na situação, antes <strong>de</strong> virar tragédia, para se tornar no final feliz típico da<br />
comédia barroca que se aprecia no <strong>de</strong>senlace (os últimos versos) da obra nas<br />
palavras do con<strong>de</strong> Lisuardo<br />
LISUARDO Con esto<br />
da fin dichoso senado,<br />
para fines más dichosos,<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago. (vv. 1034-1037)<br />
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
No século IX, a partir da <strong>de</strong>scoberta do sepulcro do apóstolo Santiago, nos<br />
confins da península Ibérica, uma rota sagrada <strong>de</strong>nominada El camino <strong>de</strong><br />
Santiago, surge. No mundo medieval europeu Jerusalém (no extremo oriente),<br />
Roma (no centro) e Compostela (no extremo oci<strong>de</strong>nte) se mostram lugares<br />
sagrados por excelência, e até hoje possuem uma sacralida<strong>de</strong> inquestionável por<br />
parte <strong>de</strong> historiadores, críticos e estudiosos.<br />
Os percursos até os lugares sagrados começam a conformar-se com a<br />
aventura do espírito que significa ponerse en camino ou peregrinar até os<br />
sepulcros, o que os homens fizeram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média, com a intervenção das<br />
artes, como a música, a arquitetura, a escultura, a literatura etc.<br />
Na literatura espanhola, a presença da temática jacobéia comprova a<br />
importância que teve, e tem até hoje, o mito do apóstolo Santiago, <strong>de</strong>ntro e fora da<br />
península Ibérica. As obras literárias que faziam referência, <strong>de</strong> alguma forma, ao<br />
mito jacobeu transmitiam não somente a liturgia do Apóstolo como também a<br />
realida<strong>de</strong> espanhola da época em que foram criadas, associando-se à fé do povo<br />
espanhol que admitia, e admite, a figura <strong>de</strong> Santiago como padroeiro da Espanha.<br />
Essa foi a nossa primeira justificativa para trabalhar com a temática<br />
jacobéia <strong>de</strong>ntro dos estudos literários. Mas na escolha da época e <strong>de</strong> autores,<br />
para nossas pesquisas, evi<strong>de</strong>nciamos Tirso <strong>de</strong> Molina que se afigurou como uns<br />
dos poucos dramaturgos a trabalhar com esta temática, mais exatamente em sua<br />
obra intitulada La romera <strong>de</strong> Santiago.<br />
O texto dramático que, então, selecionamos como principal objeto <strong>de</strong><br />
nossos estudos reflete o conhecimento que o dramaturgo possuía sobre a<br />
temática do mito jacobino e sobre o Caminho. Além disso, outros escritores,<br />
historiadores e críticos, anteriores e posteriores a Tirso, utilizaram as mesmas<br />
referências históricas e lendárias. Portanto, apesar dos quase mil e duzentos anos<br />
que separam a <strong>de</strong>scoberta do sepulcro e o momento atual, a temática, que<br />
norteou o presente trabalho, <strong>de</strong>monstra ser um assunto vigente, instigante e<br />
sumamente rico para ser trabalhado na literatura e em outras áreas das artes.<br />
109
Ao trabalhar com o texto <strong>de</strong> La romera <strong>de</strong> Santiago nos <strong>de</strong>paramos com<br />
uma <strong>de</strong>scoberta. Segundo Ángeles Cardona da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Navarra, quando<br />
um crítico se prepara para trabalhar uma obra do século XVI ou XVII e solicita o<br />
original numa biblioteca espanhola, a responsável retorna com um volume<br />
contendo várias sueltas costuradas, umas com outras, e enca<strong>de</strong>rnadas, mas o<br />
mais interessante é quando se percebe que se trata <strong>de</strong> uma recompilação <strong>de</strong><br />
obras <strong>de</strong> vários dramaturgos.<br />
O volume número 39742, da biblioteca do Instituto <strong>de</strong>l Teatro (c/<br />
Almogávers, 177), possui <strong>de</strong>ntre outros manuscritos o da obra La romera <strong>de</strong><br />
Santiago. Este aparece com o nome do dramaturgo Vélez <strong>de</strong> Guevara, mas o<br />
nome encontra-se rabiscado e sobre ele figura o <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina.<br />
Entretanto, La romera <strong>de</strong> Santiago também encontra-se no volume 11, da<br />
mesma biblioteca, intitulado Comedias <strong>de</strong>l siglo XVII. Este volume contém também<br />
La villana <strong>de</strong> Ballecas (com B). Ambas as obras, tanto o texto <strong>de</strong> La romera<br />
quanto o <strong>de</strong> La villana, figuram com autoria explicitamente <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina.<br />
Esta <strong>de</strong>scoberta nos levou a perceber sobre a autoria controversa da obra,<br />
mas preferimos não aprofundar as pesquisas por duas razões importantes.<br />
Primeiro porque o nosso principal objetivo é trabalhar a temática jacobéia <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>ssa peça dramática e segundo porque adjudicar autoria a uma obra leva a um<br />
trabalho exaustivo <strong>de</strong> pesquisa que só po<strong>de</strong>ria ser realizado diretamente na<br />
Espanha, junto aos acervos.<br />
Sustentamos nosso trabalho com muitos dos artigos escritos pelos críticos<br />
do Instituto <strong>de</strong> Estudios Tirsianos que, embora não versem especificamente sobre<br />
La romera <strong>de</strong> Santiago, apresentaram-se como fontes <strong>de</strong> pesquisa abalizadas e<br />
ricas em interessantes argumentações sobre a estética das obras do dramaturgo.<br />
Por ter sido nosso principal objetivo contribuir com os estudos literários, a<br />
partir da análise do texto dramático - La romera <strong>de</strong> Santiago -, que só possui uma<br />
única edição crítica, feita por Blanca <strong>de</strong> los Ríos e encontrada em seu livro Obras<br />
dramáticas completas <strong>de</strong> Tirso <strong>de</strong> Molina, acreditamos ter alcançado resultado<br />
satisfatório, apesar das dificulda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>safios encontrados ao longo do caminho.<br />
110
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114
ANEXOS<br />
115
A ORIGEM DA VIEIRA JACOBÉIA<br />
ACONTECEU, SEGUNDO DIZEM, em Padrón, precisamente nas<br />
imediações do lugar conhecido como aquele em que chegou à Galícia a<br />
barca sem timão que transportava o corpo do Apóstolo acompanhada <strong>de</strong><br />
seus discípulos.<br />
Havia casamento no povoado, casamento pagão, supõe-se. E segundo<br />
era o costume, a comitiva nupcial percorria a pé o trecho que ficava entre<br />
o templo que ocupa hoje a igreja <strong>de</strong> Santiago e a casa da noiva, um<br />
caminho que naquelas ocasiões percorria-se pela praia, na orla do mar.<br />
Os recém-casados queriam fazer o percurso por aquele lugar, apesar <strong>de</strong><br />
os marinheiros haverem advertido que a praia não estava própria para<br />
caminhar, porque se aproximava uma tormenta que começava a<br />
manifestar-se pela altura e a fúria <strong>de</strong> ondas cada vez mais ameaçadoras.<br />
Os noivos e a comitiva caminhavam felizes e nem sequer pareciam darse<br />
conta da priora do estado do mar. Montados em seus cavalos<br />
nupciais, segundo o costume, riam e cantavam a caminho <strong>de</strong> casa, on<strong>de</strong><br />
os esperava o banquete do casamento. Foi então que distinguiram em<br />
meio às ondas uma barca à <strong>de</strong>riva. As pessoas da comitiva o ignoraram,<br />
naturalmente, porém se tratava da barca que transportava o corpo santo<br />
do Apóstolo chegado da Terra Santa. O jovem noivo, vendo <strong>de</strong> longe o<br />
perigo que corriam os que iam nela, não pensou duas vezes. Sem se<br />
preocupar com o estado do mar, entrou com seu cavalo disposto a ajudar<br />
os ocupantes da embarcação, porém uma onda maior que as <strong>de</strong>mais o<br />
alcançou e, com cavalo e tudo, foi levado mar a<strong>de</strong>ntro. Todos os esforços<br />
dos convidados para alcançá-lo resultaram vãos, e o noivo sentiu que<br />
não ia sair vivo daquele perigo; por isso, em seu <strong>de</strong>sespero, se entregou<br />
aos céus para que o tirasse do apuro.<br />
Tão logo formulou aquele pedido, o mar se acalmou, o barco se<br />
aproximou sozinho da praia, e o rapaz sentiu como se uma enorme força<br />
o conduzisse dali até a terra. Esporou o cavalo, já meio afogado, e o<br />
animal conseguiu nadar até a praia e salvar seu cavaleiro da morte, com<br />
gran<strong>de</strong> alegria <strong>de</strong> todos. Porém ninguém pensou que aquele salvamento<br />
havia sucedido pela sorte, porque ali estava a barca com a relíquia <strong>de</strong><br />
Santiago para prová-lo. O Apóstolo havia cuidado para que ambos<br />
chegassem à praia, porém apareceram cobertos <strong>de</strong> vieiras da cabeça<br />
aos pés, <strong>de</strong> maneira que todos souberam que aquele salvamento se<br />
havia realizado <strong>de</strong>vido a um milagre propiciado pelo corpo santo que<br />
jazia no fundo da embarcação.<br />
Des<strong>de</strong> então, a Vieira foi o sinal que distinguiu os que iam visitar a tumba<br />
<strong>de</strong> Santiago. Os peregrinos tinham como hábito adquiri-las tão logo<br />
cruzassem a fronteira e ao empreen<strong>de</strong>r o Caminho, porque já se<br />
cuidavam os comerciantes <strong>de</strong> fazé-las chegar ao mais distante lugar da<br />
Rota, para que todo caminhante pu<strong>de</strong>sse tê-las em seus primeiros<br />
passos até Compostela. (ATIENZA, 2002, p. 209-210).<br />
A Vieira que começou sendo um sinal <strong>de</strong> reconhecimento dos<br />
construtores que a utilizavam em suas marcas <strong>de</strong> construção e nas<br />
estruturas dos templos que levantavam como testemunho <strong>de</strong> um<br />
conhecimento chegado do mar, chegou a converter-se em um dos<br />
símbolos fundamentais dos peregrinos, ainda que a levassem em seu<br />
chapéu ou sobre seu peito como simples sinal <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino<br />
compostelano. Sua forma, que para uns era a imagem do sol poente até<br />
o qual se dirigiam, para outros era o esquema da Pata do Ganso que<br />
116
A BATALHA DE CLAVIJO<br />
33 Reis ociosos<br />
marcava a Rota com seus pontos essenciais <strong>de</strong> sacralida<strong>de</strong>, se fez<br />
popular até o ponto <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r seu significado ou, diríamos melhor, <strong>de</strong><br />
conservá-lo unicamente para aqueles que eram realmente conscientes<br />
do motivo que encaminhava sua andadura peregrina.(ATIENZA, 2002, p.<br />
210-212).<br />
OS CRONISTAS TÊM TIDO, em todos os tempos, uma irrefreável<br />
tendência a reconstruir a história conforme suas próprias convicções ou<br />
<strong>de</strong> acordo com a mensagem subliminar que pretendiam transmitir. Muitas<br />
vezes, nem sequer se preocuparam em manter um mínimo <strong>de</strong> rigor na<br />
narração dos fatos e obe<strong>de</strong>ceram cegamente às orientações que os<br />
transmitiam <strong>de</strong>terminadas conveniências. Assim nasceu a tradição<br />
lendária do Tributo das Cem Donzelas e assim foi criada uma falsida<strong>de</strong><br />
histórica largamente admitida, como foi a batalha <strong>de</strong> Clavijo.<br />
As mentiras, bonitas numa perspectiva literária, e muito úteis na hora <strong>de</strong><br />
saciar a se<strong>de</strong> compostelana, começaram aproveitando-se da fama<br />
negativa que tiveram três reis da primeira coroa asturiana, aos que não<br />
se pu<strong>de</strong>ram atribuir façanhas guerreiras porque foram amantes da paz e<br />
evitaram enfrentar os muçulmanos que haviam conquistado boa parte da<br />
Península. Foram estes monarcas Aurélio, Silo e Mauregato. Eram<br />
chamados os Reis Holgazanes 33 , e ao último <strong>de</strong>les foi atribuído um pacto<br />
com os muçulmanos, segundo o qual, em troca <strong>de</strong> respeitar suas terras,<br />
e não empreen<strong>de</strong>r campanhas <strong>de</strong> saques pelos seus campos, se<br />
comprometiam e comprometeriam seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes a entregar<br />
anualmente cem moças adolescentes <strong>de</strong> seu reino, que passariam a<br />
incrementar os haréns do Islã andaluz. Foi chamado esse suposto pacto<br />
vergonhoso <strong>de</strong> Tributo das Cem Donzelas e, segundo a tradição, acabou<br />
com a primeira gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota sofrida pelos mouros <strong>de</strong>pois da batalha <strong>de</strong><br />
Covadonga.<br />
A glória <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>senlace foi atribuída ao Rei Ramiro I e ao Senhor<br />
Santiago, que colaborou eficaz e diretamente naquela jornada. O<br />
encontro teve lugar, segundo se conta, nas la<strong>de</strong>iras do monte sobre o<br />
qual se levantou o castelo <strong>de</strong> Clavijo e se estabeleceu em condições<br />
adversas às tropas cristãs, que, sem dúvida, se lançaram ao combate<br />
convencidas previamente <strong>de</strong> sua vitória, graças a Santiago – matador <strong>de</strong><br />
mouros a partir <strong>de</strong>ssa data – haver aparecido ao Rei prometendo-lhe<br />
que estaria presente no combate e disposto a ajudar seus<br />
companheiros. Efetivamente, no meio da batalha, e quando parecia que<br />
todas as circunstâncias se voltavam contra os cristãos, surgiu <strong>de</strong><br />
imediato um cavaleiro <strong>de</strong>sconhecido sobre um cavalo branco,<br />
<strong>de</strong>spejando resplendores e brandindo uma espada <strong>de</strong> prata, que, num<br />
abrir e fechar <strong>de</strong> olhos e em meio ao entusiasmo <strong>de</strong> seus seguidores,<br />
começou a atacar os mouros e causar, sozinho, mais baixas que todos<br />
os <strong>de</strong>mais combatentes, até o ponto <strong>de</strong> obrigar os muçulmanos a<br />
empreen<strong>de</strong>r uma fuga <strong>de</strong>sesperada que <strong>de</strong>ixaria o campo livre para as<br />
tropas do rei asturiano”.(ATIENZA, 2002, p. 90-91).<br />
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UMA CELESTIAL CHUVA DE ESTRELAS<br />
A GALÍCIA HAVIA SIDO LIBERTADA <strong>de</strong> muçulmanos, e a vida cristã se<br />
havia recuperado em princípios do século IX. Eram os tempos <strong>de</strong> Afonso<br />
II, o Casto, sucessor <strong>de</strong> uma estirpe “abominável” <strong>de</strong> soberanos<br />
asturianos composta pelos chamados “reis preguiçosos”, Aurélio, Silo e<br />
Mauregato, <strong>de</strong>nominados tardiamente assim somente por seu pecado <strong>de</strong><br />
haver preferido viver em paz com o vizinho Islã, ao qual dizem que se<br />
havia rendido, comprometendo-se com o vergonhoso (e lendário) Tributo<br />
das Cem Donzelas, a que a não menos lendária Batalha <strong>de</strong> Clavijo se<br />
encarregaria <strong>de</strong> pôr fim.<br />
A terra galega, logo abandonada pelos muçulmanos, era regida<br />
espiritualmente naquele momento pelo bispo Teodomiro, da diocese <strong>de</strong><br />
Iria Flavia, enquanto outros santos homens reconstruíam a vida cristã em<br />
outros pontos do território finisterrano. Pelos lugares, então quase<br />
solitários e apenas habitados por uma pequena colônia cristã que havia<br />
se reunido em volta da Igreja <strong>de</strong> São Feliz <strong>de</strong> Solovio, no Burgo dos<br />
Tamáricos, fazia vida <strong>de</strong> penitente um santo ermitão chamado Pelayo ou<br />
Palágio. Um dia do ano 813 se apresentou esse santo homem perante o<br />
bispo Teodomiro para relatar-lhe ente místicos assombros que, durante<br />
várias noites, tinha visto sair autênticas cachoeiras <strong>de</strong> estrelas que<br />
partiam do monte que hoje é conhecido como o Pico Sacro (Pico<br />
Sagrado) e caíam na terra em um lugar muito preciso e <strong>de</strong>terminado,<br />
próximo ao bosque <strong>de</strong> Libredón.<br />
O bispo e toda a diocese quiseram conhecer aquele prodígio e o lugar<br />
on<strong>de</strong> se produzia. Pelágio os acompanhou até o ponto exato on<strong>de</strong> caíam<br />
as estrelas e, uma vez ali, convencidos todos da mensagem celestial que<br />
transmitiam, <strong>de</strong>struíram o bosque, escavaram a terra e não <strong>de</strong>moraram a<br />
encontrar algumas ruínas que ainda conservavam um altar e, <strong>de</strong>baixo<br />
<strong>de</strong>le, uma tumba maior, que se chamou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então <strong>de</strong> Arca Marmórea,<br />
e outras duas menores que a ro<strong>de</strong>avam. A tumba mais importante dizia<br />
algo como: “Aqui jaz Jabobo, filho <strong>de</strong> Zebe<strong>de</strong>u e Salomé e irmão <strong>de</strong><br />
João”. Ninguém duvidou a respeito da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do corpo santo ali<br />
enterrado; todos estiveram <strong>de</strong> acordo em aceitar que se tratava do<br />
Santiago Apóstolo, e que as outras tumbas guardavam os corpos <strong>de</strong> seus<br />
discípulos Teodoro e Atanásio. E, reconhecido o feito milagroso, chegou<br />
apressadamente o rei Afonso II e, <strong>de</strong> acordo com o bispo, mandou<br />
construir uma capela para proteger aqueles restos sagrados, que<br />
começaram imediatamente a realizar grandiosos milagres. Puseram o<br />
feito em conhecimento do papa León III e ficou instituído o culto daquele<br />
que muitos conheciam como irmão espiritual do Salvador, quase como<br />
seu gêmeo.<br />
A notícia se espalhou como pólvora por todo o mundo cristão e logo<br />
começaram a chegar os primeiros peregrinos, ansiosos para visitar, no<br />
limite oci<strong>de</strong>ntal da terra conhecida, um lugar que, em poucos séculos,<br />
chegaria a superar em <strong>de</strong>voção a todos os outros dois lugares<br />
tradicionais da peregrinação cristã: Roma e Jerusalém. (ATIENZA, 2002,<br />
p. 201).<br />
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