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<strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
<strong>Guerreiro</strong>
2 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
<strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>Guerreiro</strong><br />
História do DJ Raffa<br />
DJ Raffa<br />
Patrocínio Apoio
Copyright © 2007 DJ Raffa<br />
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS<br />
curadoria<br />
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA<br />
consultoria<br />
ECIO SALLES<br />
projeto gráfi co<br />
CUBÍCULO<br />
TRAJETÓRIA DE UM GUERREIRO<br />
produção editorial<br />
ROBSON CÂMARA<br />
copi<strong>de</strong>sque<br />
DIANA HOLLANDA e ROBSON CÂMARA<br />
revisão<br />
TETÊ OLIVEIRA<br />
revisão tipográfi ca<br />
ROBSON CÂMARA<br />
D653t<br />
Dj Raffa<br />
Tragetória <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro: história do Dj Raffa /<br />
Dj Raffa. - Rio <strong>de</strong> Janeiro: Aeroplano Ed., 2007.<br />
.-(Tramas Urbanas; 5)<br />
ISBN 978-85-7820-001-5<br />
1.Dj Raffa. 2.Músicos <strong>de</strong> rap - Brasil - Biografi a.<br />
3.Hip-hop (Cultura popular). 4.Rap (Música). I. Título. II. Série.<br />
07-4076. CDD: 784.5<br />
CDU: 78.067.26<br />
29.10.07 30.10.07 004077<br />
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS<br />
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA<br />
Av. Ataulfo <strong>de</strong> Paiva, 658 / sala 401<br />
Leblon – Rio <strong>de</strong> Janeiro – RJ<br />
CEP: 22440 030<br />
TEL: 21 2529 6974<br />
Telefax: 21 2239 7399<br />
aeroplano@aeroplanoeditora.com.br<br />
www.aeroplanoeditora.com.br
Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, periferia<br />
social – se reforçam cada vez mais movimentos<br />
culturais <strong>de</strong> todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam<br />
os <strong>de</strong> alguns segmentos específi cos: grupos musicais,<br />
grupos cênicos, grupos <strong>de</strong>dicados às artes visuais. Mas<br />
<strong>de</strong> idêntica importância, embora com menos visibilida<strong>de</strong>,<br />
é a produção intelectual que cuida, além <strong>de</strong> questões<br />
artísticas, <strong>de</strong> temas históricos, sociais ou políticos.<br />
A coleção Tramas Urbanas faz, em seus <strong>de</strong>z vol<strong>um</strong>es,<br />
<strong>um</strong> consistente e instigante apanhado <strong>de</strong>ssa produção<br />
amplifi cada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, esten<strong>de</strong><br />
pontes, para <strong>um</strong> diálogo com artistas e intelectuais que<br />
não são originários <strong>de</strong> favelas ou regiões periféricas dos<br />
gran<strong>de</strong>s centros urbanos. Seus organizadores se propõem<br />
a divulgar o trabalho <strong>de</strong> intelectuais <strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s<br />
e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a<br />
partir <strong>de</strong> <strong>um</strong> ponto <strong>de</strong> vista local, alguns consensos questionáveis<br />
das elites intelectuais”.<br />
A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora<br />
das artes e da cultura em nosso país, apóia essa<br />
coleção <strong>de</strong> livros. Enten<strong>de</strong>mos que é <strong>de</strong> nossa responsabilida<strong>de</strong><br />
social contribuir para a inclusão cultural e o fortalecimento<br />
da cidadania que esse <strong>de</strong>bate po<strong>de</strong> propiciar.<br />
Des<strong>de</strong> a nossa criação, há pouco mais <strong>de</strong> meio século,<br />
c<strong>um</strong>primos rigorosamente nossa missão primordial, que<br />
é a <strong>de</strong> contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento do Brasil. E lutar<br />
para diminuir as distâncias sociais é <strong>um</strong> esforço imprescindível<br />
a qualquer país que se pretenda <strong>de</strong>senvolvido.
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
À minha mãe, por me suportar todos os dias. Ao meu pai, pela<br />
força espiritual. Aos meus irmãos, Alessandro e família, Gisele<br />
e família, Sônia e família, Letícia e família. À minha sogra Dona<br />
Santa e família. Às minhas duas fi lhas Rafaella e Ana Carolina.<br />
Ao Zezé (da Cufa Ceará), Celso Athaí<strong>de</strong> (Cufa Rio), DJ Scooby<br />
(Manuscritos), Refém, JC, MV Bill, Mister Zoy, Banda Tecora, DJ<br />
Buiú e família, Leakers, Bola e BA (Código Fatal) e famílias, Chuck<br />
(Itaquera), Dario (Porte Ilegal) e família, Dexter e Patrícia, Dinadi<br />
e Chuck, Roger, Mar<strong>de</strong>n, Van<strong>de</strong>r e Newton (Atelier Estudio), DJ<br />
H<strong>um</strong>, Parte<strong>um</strong>, Jonny (Real Hip Hop), Mandrake (Rap Nacional),<br />
Toni C (Hip Hop a Lapis), Walter (Conduta), Marola (Voz sem Medo)<br />
e família, DJ Dourado (Código Penal) e família, DJ Leandronik e<br />
família, Cezar, Fre<strong>de</strong>, Fernado, Boy Gorge (Som Catado), Hellen,<br />
Giza e Jane (Atitu<strong>de</strong> Feminina), DJ Ninomix (Planet), Jaqueline e<br />
Gustavo (GRV), DJ Régis (Proverbio X), Wty e Gory (Moleque Doido),<br />
Lula, Vidal, Boguinha e Batata (Ameaça Urbana), Tribo do Gueto,<br />
Alemão e família, Freire, Rossi, Cabeça, Tampinha, Emerson,<br />
Gladyston, Borracha, DJs Elívio, Toninho Pop, Celsão, Alexandre<br />
Me<strong>de</strong>iros, Roberto e Ocimar, X, DF Zulu Breakers, Satão e família,<br />
Sérgio (Grupo Atitu<strong>de</strong>), Jamaika e Rivas, Rei e família, Lizia e família,<br />
Moacir e família, todos do Projeto Crescer <strong>de</strong> Boa Vista, Ecio<br />
Salles, pessoal do “Em Com<strong>um</strong>” do Canal Futura, todos do AfroReggae,<br />
José Junior, todas as equipes <strong>de</strong> som do Brasil que sempre<br />
acreditaram no hip-hop, todos os grupos <strong>de</strong> rap que eu produzi<br />
ao longo <strong>de</strong> minha trajetória, todos aqueles que estão envolvidos<br />
com os quatro elementos do hip-hop <strong>de</strong> forma consciente.<br />
Àquela que é a minha inspiração diária: Aninha, meu amor eterno.
S<strong>um</strong>ário<br />
12 Prefácio — Toni C<br />
14 Introdução<br />
18 Cap.01 O Começo <strong>de</strong> tudo<br />
22 Cap.02 Meus primeiros passos como b-boy<br />
32 Cap.03 O break<br />
46 Cap.04 Os DJs e as equipes <strong>de</strong> som<br />
52 Cap.05 DJ Leandronik<br />
58 Cap.06 A transformação do rap<br />
64 Cap.07 Freire e Rossi Black<br />
70 Cap.08 A primeira música<br />
78 Cap.09 Os Irmãos Brothers<br />
84 Cap.10 A música “Parem”<br />
90 Cap.11 O primeiro emprego<br />
98 Cap.12 Na casa <strong>de</strong> Brahms<br />
104 Cap.13 O dia mais triste <strong>de</strong> minha vida!<br />
112 Cap.14 O <strong>de</strong>scaso<br />
118 Cap.15 The Recording Workshop, em Ohio<br />
126 Cap.16 Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong><br />
134 Cap.17 A Kaskatas<br />
140 Cap.18 DJ Raffa e os Magrellos<br />
148 Cap.19 O primeiro concurso <strong>de</strong> rap do DF<br />
156 Cap.20 Fábrica <strong>de</strong> Som<br />
162 Cap.21 DJ Marlboro<br />
172 Cap.22 Sony Music<br />
180 Cap.23 O contrato<br />
188 Cap.24 Rosana<br />
196 Cap.25 Televisão
204 Cap.26 O fi m <strong>de</strong> <strong>um</strong> sonho<br />
214 Cap.27 Baseado nas ruas<br />
226 Cap.28 A terra prometida do rap<br />
238 Cap.29 Geração rap<br />
246 Cap.30 DF movimento<br />
258 Cap.31 Mano Rogério<br />
264 Cap.32 Câmbio Negro<br />
272 Cap.33 Bagulho na sequência<br />
280 Cap.34 Bem-vindo ao Estudio Atelier<br />
286 Cap.35 Comando DMC<br />
292 Cap.36 1993, <strong>um</strong> ano produtivo<br />
302 Cap.37 A volta pro DF<br />
310 Cap.38 Planet Records<br />
314 Cap.39 Consciência H<strong>um</strong>ana, Tá na hora, e Gog,<br />
Brasília periferia<br />
326 Cap.40 TNT Records<br />
332 Cap.41 O gangsta rap tem <strong>um</strong> Álibi<br />
340 Cap.42 Discovery<br />
346 Cap.43 Diário <strong>de</strong> <strong>um</strong> feto<br />
352 Cap.44 A minha parte eu faço<br />
358 Cap.45 Funk Melody dance remixes<br />
366 Cap.46 Código Penal<br />
372 Cap.47 Guind’art 121<br />
378 Cap.48 Na mira da socieda<strong>de</strong><br />
388 Cap.49 DJ Jamaika – Utopia<br />
394 Cap.50 Refl exão<br />
400 Cap.51 De Menos Crime<br />
408 Cap.52 Socieda<strong>de</strong> Anônima<br />
414 Cap.53 Entre a adolescência e o crime<br />
426 Cap.54 Planeta Estúdio<br />
438 Cap.55 CPI da favela<br />
446 Cap.56 Associação Cultural Claudio Santoro<br />
454 Cap.57 Ameaça Urbana<br />
462 Cap.58 Pro Vinil<br />
466 Cap.59 Um homem só<br />
472 Cap.60 Viela 17<br />
478 Cap.61 DJ Raffa 20 anos<br />
486 Cap.62 Angel Duarte<br />
492 Cap.63 A luz no fi m do túnel<br />
498 Imagens: índice e créditos<br />
502 Sobre o Autor
Homenagem<br />
Estamos passando por <strong>um</strong> período <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> no DF e entorno.<br />
Vários produtores estão <strong>de</strong>spontando na cena do hip-hop candango. Eles são:<br />
Gibi, Duck Jay (Vadiosloco), DJ Alan (Def MCs), Ney (Código Penal), Wty e Gory<br />
(Moleque Doido), DJ Régis (Provérbio X), Diogo, Ariel Feitosa, Guga, Brother,<br />
DJ Junior Killa (Viela 17) e DJ Bruno, entre outros.<br />
Essa é minha pequena homenagem àqueles que estão contribuindo para o<br />
fortalecimento do hip-hop do Cerrado. E para os veteranos DJ Leandronik.<br />
DJ Chocolate, DJ Elívio Blower e DJ Jamaika, meu salve e meu agra<strong>de</strong>cimento<br />
por manterem a chama acesa.<br />
DJ Raffa
Prefácio<br />
Este livro é como <strong>um</strong> grave que sai dos imensos alto-falantes<br />
mexendo com as pessoas por <strong>de</strong>ntro. Aquele b<strong>um</strong>mmm!!! Estremece<br />
os preconceitos e os estereótipos.<br />
Se você pensa que rapper voa, tem visão <strong>de</strong> raio-X e que vive na<br />
gozolândia, então, não leia este livro.<br />
Pois, <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro não é historinha: é <strong>um</strong>a vida<br />
<strong>de</strong>dicada ao hip-hop. Quem esteve ao seu redor, n<strong>um</strong> teve boi. 1<br />
Ficou tudo registrado na mente, na vida e agora no livro. Sem<br />
choro nem vela, sem massagem e sem tietagem. Tá tudo aqui,<br />
os acertos e os <strong>de</strong>sacertos.<br />
Então, pense n<strong>um</strong> rapper que é fi lho <strong>de</strong> <strong>um</strong> maestro com <strong>um</strong>a<br />
bailarina, estudou nos Estados Unidos, branco, <strong>de</strong> classe média,<br />
sobrinho <strong>de</strong> <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> físico nuclear e morador do Plano Piloto<br />
(Brasília).<br />
Claudio Raffaello Santoro: b-boy, músico, disc-jóquei, produtor,<br />
educador, professor. O gran<strong>de</strong> DJ Raffa é certamente <strong>um</strong> dos<br />
mais infl uentes nomes do hip-hop no Brasil.<br />
1 Não conseguiu escapar.<br />
12
Prefácio<br />
13<br />
Construtor <strong>de</strong> muitos hits, para gran<strong>de</strong>s grupos do rap nacional,<br />
iniciou a carreira e fez história com DJ Raffa e Os Magrellos e<br />
<strong>de</strong>pois com o grupo Baseado nas Ruas.<br />
Nesta autobiografi a, se revela o fi lho <strong>de</strong> Claudio e Gisele, estudante<br />
com baixo rendimento escolar porque sua lição <strong>de</strong> casa<br />
era treinar passos <strong>de</strong> break. Um cidadão consciente da luta que<br />
levou seu pai ao exílio. Um artista que não se conforma com<br />
o <strong>de</strong>scaso na conservação da obra e da memória do maestro<br />
Claudio Santoro, <strong>de</strong> quem herdou a genialida<strong>de</strong> musical.<br />
“Quem disse que não se po<strong>de</strong> usar <strong>um</strong> clássico do rock no rap?”<br />
É, para Raffa, a música não tem fronteiras. Gravou os Mamonas<br />
Assassinas, antes <strong>de</strong>les serem os Mamonas Assassinas, e<br />
samba junto com o técnico <strong>de</strong> Zeca Pagodinho. Fez remixes <strong>de</strong><br />
dance, abriu show do Gerson King Kombo no Bourbon Street.<br />
Construiu o funk melody e trouxe para o mundo do hip-hop cantores<br />
como Rosana e Rodolfo, do grupo Os Raimundos.<br />
Ah!, e claro, fez rap, muito rap nacional.<br />
Um apaixonado pela música, que se indigna com o preconceito<br />
que sofre o movimento cultural que se confun<strong>de</strong> com sua<br />
história.<br />
Um escritor autêntico que ainda acredita na vida.<br />
... <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> cara!<br />
Toni C. (produtor do fi lme É tudo nosso, autor do livro Hip-hop a lápis e<br />
membro da Nação Hip-hop Brasil).
<strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
Introdução<br />
Meu nome é Claudio Raffaello Serze<strong>de</strong>llo Corrêa Santoro, mais<br />
conhecido como DJ Raffa. Estou no hip-hop <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início dos<br />
anos 80 e posso afi rmar que o movimento no Brasil atingiu a<br />
sua maturida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Ele se espalhou pelo país inteiro e<br />
foi absorvido pelas culturas locais, transformando-se <strong>de</strong> modo<br />
diferente em cada estado, cida<strong>de</strong> e bairro. Isso mostra como as<br />
nossas raízes são fortes e como o hip-hop foi tão bem acolhido<br />
pelas comunida<strong>de</strong>s.<br />
Neste livro, pretendo contar a minha experiência <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse<br />
movimento cultural em todo o Brasil, a partir do ambiente do<br />
Cerrado, mais especifi camente do Distrito Fe<strong>de</strong>ral.<br />
Posso dizer que a verda<strong>de</strong>, a honestida<strong>de</strong>, a sincerida<strong>de</strong> e a<br />
h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> fazem parte do meu ser, e me transformaram nesse<br />
homem que sou hoje. E com amor naquilo que eu faço e alegria<br />
<strong>de</strong> ter Deus todos os dias ao meu lado, eu vou caminhando e<br />
construindo a minha trajetória.
16 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
18<br />
CAPÍTULO 01:
Meus pais se conheceram em Brasília. Ele, Claudio Santoro,<br />
compositor e maestro, foi <strong>um</strong> dos primeiros brasileiros a se<br />
transferir para a capital. Convidado pelo sociólogo Darcy Ribeiro,<br />
tornou-se <strong>um</strong> dos fundadores do Departamento <strong>de</strong> Música da<br />
UnB (MUS), criado em 1963. Ela, Gisele Loise Serze<strong>de</strong>llo Corrêa<br />
era bailarina do Theatro Municipal do Rio <strong>de</strong> Janeiro e estava em<br />
Brasília com a companhia do teatro, para dançar na inauguração<br />
da cida<strong>de</strong>. A união <strong>de</strong>les celebrou <strong>um</strong> amor que durou mais <strong>de</strong><br />
25 anos. Desse casamento nasceram a minha irmã Gisele, meu<br />
irmão Alessandro e eu. Gisele foi primeira bailarina nos teatros<br />
<strong>de</strong> Manheim e Mag<strong>de</strong>burg, na Alemanha. Atualmente é Maître<br />
<strong>de</strong> Ballet convidada do Ballett do Theatro Municipal do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro além <strong>de</strong> dar aulas e fazer diversos trabalhos coreográfi -<br />
cos como free lancer. Alessandro é pianista, cravista e professor.<br />
E eu, <strong>um</strong> afi cionado pela música negra, pela cultura periférica.<br />
O que temos em com<strong>um</strong>? A arte, acima <strong>de</strong> tudo, e o respeito <strong>um</strong><br />
pela profi ssão do outro, sem preconceitos. Nós temos mais três<br />
irmãos por parte <strong>de</strong> meu pai. Carlos já é falecido e, infelizmente,<br />
eu só conheci por telefone e fotos. Sônia é artista plástica e se<br />
<strong>de</strong>dica a trabalhos que, entre outras coisas, usa partituras <strong>de</strong><br />
nosso pai. Letícia se especializou em teatro <strong>de</strong> bonecos e atualmente<br />
é professora <strong>de</strong> artes cênicas. Somos gran<strong>de</strong>s amigos<br />
e, graças a Deus, nos enten<strong>de</strong>mos e respeitamos. Afi nal, somos<br />
irmãos <strong>de</strong> sangue mesmo.<br />
20
O começo <strong>de</strong> tudo<br />
21<br />
Eu nasci no Rio <strong>de</strong> Janeiro e, com menos <strong>de</strong> <strong>um</strong> ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />
minha família foi para a Alemanha. Até os oito anos, no período<br />
do exílio do meu pai, eu vivi lá. Em 1978, quando começou a<br />
abertura política no governo Geisel, ele foi convidado a voltar ao<br />
país, retomar o seu posto <strong>de</strong> professor na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília<br />
e fundar a Orquestra do Teatro Nacional. A minha adaptação<br />
no Brasil não foi fácil. Eu já sofria preconceito na Alemanha<br />
porque a minha pele, apesar <strong>de</strong> branca, era mais escura que a<br />
dos meninos alemães. Fui morar na Quadra 107 Norte, que fi ca<br />
na Asa Norte - <strong>um</strong>a das primeiras quadras construídas na capital<br />
- e on<strong>de</strong>, na época, só professores universitários moravam.<br />
Po<strong>de</strong>ria se esperar que seus fi lhos tivessem mais educação e<br />
sensibilida<strong>de</strong>, mas não era bem assim. Praticamente todo dia<br />
eles me xingavam <strong>de</strong> nazista, <strong>de</strong> “alemão” e sempre havia <strong>um</strong><br />
motivo para eles me surrarem. Tudo pelo simples fato <strong>de</strong> eu<br />
ter morado na Alemanha. Um dia acor<strong>de</strong>i e vi <strong>um</strong>a suástica 1<br />
pichada embaixo da minha janela. Era assim o meu dia-a-dia.<br />
Levei alguns anos para me adaptar. Fiz gran<strong>de</strong>s amiza<strong>de</strong>s sim,<br />
mas meu <strong>de</strong>stino já estava traçado: o lugar on<strong>de</strong> eu mais me<br />
sentiria bem seria mesmo a periferia.<br />
Minha primeira experiência com literatura foi nos tempos <strong>de</strong><br />
colégio. Na oitava série, escrevi <strong>um</strong> livro <strong>de</strong> fi cção científi ca em<br />
que os personagens eram os meus amigos <strong>de</strong> escola e bairro.<br />
Sempre gostei <strong>de</strong> fi cção científi ca e talvez isso tenha sido <strong>um</strong><br />
dos motivos <strong>de</strong> eu ter me apaixonado pelo break. Muito antes <strong>de</strong><br />
eu me aprofundar na cultura hip-hop, aquela dança futurista me<br />
fascinava. Eu nem imaginava que esta dança, junto com músicas<br />
que tinham “vozes <strong>de</strong> robô”, mudaria para sempre a minha vida.<br />
1 A suástica ou cruz gamada é a cruz símbolo do Nazismo.
22<br />
CAPÍTULO 22:
De 1983 a 1986, eu me <strong>de</strong>diquei ao break. Era <strong>um</strong> b-boy convicto<br />
e achava que jamais pararia <strong>de</strong> dançar.<br />
Infelizmente, reprovei no primeiro ano do Segundo Grau, 1 porque<br />
só queria saber <strong>de</strong> dançar. Eu tinha uns 14 anos e isso era o que<br />
me motivava. Eu mal sabia que, sendo iniciante, dançar break<br />
sem proteção tornava-se <strong>um</strong>a ativida<strong>de</strong> perigosa. Na época, a<br />
gente fazia os movimentos nas ruas em cima <strong>de</strong> papelão, sem<br />
proteção nenh<strong>um</strong>a. Um b-boy consegue dançar no chão, principalmente<br />
fazendo os power moves, 2 no máximo até os trinta<br />
e poucos anos, porque a molecada toma <strong>de</strong> conta mesmo. Não<br />
estou dizendo que não tem b-boy acima dos trinta arrebentando,<br />
mas é que, principalmente hoje em dia, o esforço físico é<br />
muito gran<strong>de</strong> e a ida<strong>de</strong> acaba sendo <strong>um</strong> fator importante. Agora,<br />
dançar no chão vale muito mais do que em cima, 3 como popping<br />
e locking. 4 Naquele tempo, era o contrário. Sempre dancei mais<br />
popping do que break no chão. No máximo, eu fazia os movimentos<br />
conhecidos como tartaruga, footwork, e rodava nas costas.<br />
Acho que a minha maior frustração foi nunca ter conseguido<br />
fazer o moinho <strong>de</strong> vento e os power moves.<br />
1 Atual Ensino Médio.<br />
2 Movimentos no chão que explodiam na época.<br />
3 Expressão usada na época pelos b-boys <strong>de</strong> Brasília. Signifi ca o mesmo que “em pé”.<br />
4 Popping e locking são estilos <strong>de</strong> street dance dançados em pé.<br />
24
Meus primeiros passos como b-boy<br />
25<br />
Éramos guerreiros, porque ninguém compreendia a nossa arte.<br />
Éramos expulsos <strong>de</strong> todos os lugares on<strong>de</strong> dançávamos. Na<br />
rua, a polícia enchia o saco. Na frente das lojas, os donos não<br />
<strong>de</strong>ixavam. Nos shoppings, os seguranças botavam a gente pra<br />
correr! Nos bailes era só abrir <strong>um</strong>a roda que a galera reclamava.<br />
Fazer os DJs tocarem break era muito difícil mesmo. A falta <strong>de</strong><br />
informação imperava naquele período <strong>de</strong> ditatura militar.<br />
O break no Distrito Fe<strong>de</strong>ral não nasceu em Ceilândia, como muitos<br />
acreditam. Não estou dizendo que ele não se <strong>de</strong>senvolveu<br />
lá <strong>de</strong>pois. Ele começou no Plano Piloto (Brasília), Guará I e II,<br />
Sobradinho e Taguatinga. 5 A Ceilândia criou a segunda geração<br />
<strong>de</strong> b-boys. Hoje o break se espalha pelo DF: São Sebastião,<br />
Santa Maria, Recanto das Emas, Paranoá, Samambaia, Riacho<br />
Fundo, Gama, todas as cida<strong>de</strong>s-satélites que absorveram a cultura<br />
hip-hop e, principalmente, todo o entorno sul. Temos crews<br />
que são referência no Brasil inteiro, como a Black Spin, que<br />
já foi campeã nacional, e a Quebra <strong>de</strong> Movimento, da cida<strong>de</strong>satélite<br />
<strong>de</strong> Santa Maria, que tem entre seus membros o Daniel<br />
QDM, gran<strong>de</strong> vencedor da batalha individual da etapa latinoamericana<br />
do “Red Bull BC One 2007”.<br />
Na Ceilândia nasceram dois dos maiores grupos <strong>de</strong> break<br />
do país: o Reforços e o DF Zulu Breakers. O Zulu Breakers foi<br />
campeão brasileiro no “Master Crews” <strong>de</strong> 2005 e 2006 realizado<br />
em São Paulo e primeiro colocado em 2007 na eliminatória<br />
brasileira do “Battle Of The Year”, <strong>um</strong>a competição mundial que<br />
acontece <strong>um</strong>a vez por ano na Alemanha na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hanover<br />
O Reforços foi criado em 1985 pelo Rivas, 6 irmão do DJ Jamaika.<br />
As reuniões do grupo aconteciam na casa do DJ Chocolate.<br />
5 O Distrito Fe<strong>de</strong>ral é formado pela cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília e por regiões administrativas<br />
(ou cida<strong>de</strong>s-satélites) como Guará, Sobradinho, Taguatinga e Ceilândia. O Plano<br />
Piloto é a própria cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília.<br />
6 Na época conhecido como Kaballa, adotou o atual nome em 2002, após se converter<br />
à religião evangélica.
26 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Todos andavam juntos e eram muito unidos. O X 7 já dançava e<br />
freqüentava os encontros.<br />
O break existe na Ceilândia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1983. Só que antes a maioria<br />
dos b-boys dançava sozinho, não formava crews. O que predominava<br />
muito nas periferias do DF eram as turmas <strong>de</strong> dança. No<br />
Guará tinha a Spyra Brasa; na Ceilândia as principais turmas<br />
eram Piraculas, Guardiões do Espaço, Ma<strong>de</strong> in Barraco e MC<br />
Lí<strong>de</strong>r Jaws, entre outras. A primeira formação da crew Reforços<br />
veio com os b-boys Rivas, Flash, Turbo e BK, mas não durou<br />
muito tempo. No Brasil, até o fi nal da década <strong>de</strong> 80, o break não<br />
tinha espaço e só não <strong>de</strong>sapareceu por insistência <strong>de</strong> alguns<br />
amantes do breaking, que não <strong>de</strong>ixaram a chama apagar.<br />
A DF Zulu Breakers surgiu em 1989, mas a primeira formação<br />
ofi cial mesmo aconteceu em 1991, com os b-boys Sowtto, Luiz,<br />
Índio, Kid Ventania, Borracha, Leoroy e Pipoka. Mas, por causa <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sentendimentos, o Rivas saiu do grupo e remontou a Reforços<br />
em 1992. No entanto, essa crew durou apenas até o ano da sua<br />
conversão religiosa.<br />
Atualmente, a DF Zulu Breakers reúne todos os elementos do<br />
hip-hop e <strong>de</strong>senvolve <strong>um</strong> trabalho social muito importante na<br />
comunida<strong>de</strong> da Ceilândia. No grupo, o rapper é o X. No graffi tti<br />
estão Snupi, Satão, Fokker e Tempo. Os DJs são TDZ e Léo. E os<br />
novos b-boys são Leandro, Leozinho, Fuzzy Boy, Papel, Migas,<br />
Kokas, Chips e Muchibinha, que em 2006, foi o b-boy revelação<br />
do “Red Bull BC One”, em São Paulo.<br />
O X e o Jamaika formaram anos <strong>de</strong>pois a maior banda <strong>de</strong> rap<br />
do país e, se não tivessem se separado, eu acredito que teriam<br />
seguido carreira internacional. Para mim, a Câmbio Negro foi<br />
<strong>um</strong>a das maiores expressões culturais do segmento hip-hop<br />
<strong>de</strong> todos os tempos. Muito antes <strong>de</strong> bandas como O Rappa, o<br />
Câmbio Negro já fazia a perfeita mistura do eletrônico com o<br />
acústico, tocando com banda. Músicas como “Sub-raça” foram<br />
7 Lê-se /eks/, como em inglês. X é pioneiro na arte das rimas no Brasil e foi <strong>um</strong> dos<br />
fundadores do Câmbio Negro.
Meus primeiros passos como b-boy<br />
27<br />
<strong>um</strong> marco na revolução da auto-estima dos negros das periferias<br />
<strong>de</strong> todo o Brasil.<br />
Na primeira geração do break no DF havia alguns grupos e<br />
b-boys que se <strong>de</strong>stacavam:<br />
– Electro Boogaloo, do Guará I e II, com o Dentinho e os irmãos<br />
Armando, Guga e Gordo. Infelizmente não tenho mais contato<br />
com eles. Nos anos 90, ainda encontrei o Dentinho alg<strong>um</strong>as<br />
vezes pelas ruas do Guará II.<br />
– A minha crew The Breaks, com Carlinhos, mais conhecido<br />
como Tampinha, Paulo, João e eu (todos da Quadra 107 Norte),<br />
mais o Clóvis (da 316 Sul, também no Plano Piloto). O Clóvis se<br />
mudou para a Suíça e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, perdi seu contato; Paulo,<br />
irmão do Tampinha, virou bombeiro e o João abriu sua própria<br />
escola <strong>de</strong> inglês.<br />
- O União Smurphies (Emerson, Pele, Leandro, Saulo e Cuca, que<br />
eram <strong>de</strong> Taguatinga e da Asa Norte do Plano Piloto). Ainda mantenho<br />
contato com o Emerson e tenho notícias do Pele e Saulo,<br />
através do Leandro.<br />
- A Break Company Jeans Oeste 8 (Glaydston, Borracha, Tibirinha,<br />
Ginho, Alan, Marcos e o DJ Chocolate), <strong>um</strong> misturado <strong>de</strong> Sobradinho,<br />
Cida<strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntal e do Plano Piloto, especifi camente da<br />
Asa Norte. Como o DJ Chocolate não dançava mas fazia parte do<br />
grupo, também po<strong>de</strong>mos dizer que a Ceilândia estava representada<br />
na Break Company. Tenho contato até os dias atuais com o<br />
Glaydston, o Borracha e o Chocolate.<br />
- Do Guará II e Núcleo Ban<strong>de</strong>irante corriam os Magrellos que<br />
faziam misturas <strong>de</strong> funk, disco e break. Já os Bira, também do<br />
Guará II, eram três irmãos que dançavam nos estilos funk e soul.<br />
Ainda do Núcleo Ban<strong>de</strong>irante, tinha dois grupos: o União Black<br />
Rio, com seu lí<strong>de</strong>r F<strong>um</strong>aça, e o Funk Brothers, li<strong>de</strong>rado por Mr.<br />
Queen, ambos no estilo funk e soul.<br />
8 O grupo era patrocinado por <strong>um</strong>a loja chamada Jeans Oeste, daí o nome.
28 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
Meus primeiros passos como b-boy<br />
29
30 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
- De Taguatinga, o Mestre Bimba e o Mister Charles marcavam presença<br />
nos concursos <strong>de</strong> dança, e também o Black Jamaika, que,<br />
como os Magrellos, virou <strong>um</strong> grupo musical. No entanto, era <strong>um</strong><br />
pouco diferente, porque misturava rap, funk, freestyle e outros ritmos.<br />
O Black Jamaika lançou <strong>um</strong> disco in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte no estilo soul<br />
music e, anos <strong>de</strong>pois, mudou o nome para Scambal a Quatro. Eles<br />
lançaram <strong>um</strong> CD que eu produzi. Do grupo, saiu <strong>um</strong> dos maiores<br />
cantores que conheci nos anos 90 e ainda está na ativa, o Brother.<br />
Ele fez participações importantes em muitos sucessos <strong>de</strong> grupos<br />
<strong>de</strong> rap, como o Baseado nas Ruas e o Álibi.<br />
Os grupos e dançarinos que citei são os que ganharam concursos<br />
<strong>de</strong> break promovidos na época e duraram alguns anos.<br />
Havia também grupos pequenos que eram formados só para os<br />
concursos e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sapareciam. Alguns b-boys, como o Ginho<br />
(do Break Company Jeans Oeste), se apresentavam sozinhos e<br />
se <strong>de</strong>stacavam nos concursos <strong>de</strong> imitação <strong>de</strong> Michael Jackson,<br />
tão comuns no início dos anos 80. Ginho foi o primeiro dançarino<br />
a fazer o giro <strong>de</strong> cabeça perfeito, passo <strong>de</strong> break importado<br />
da capoeira. Tinha ainda o Turbo (Paulo Campelo), que chegou<br />
a dançar com o União Smurphies e hoje é locutor da rádio 105<br />
FM, <strong>de</strong> Brasília.<br />
As nossas inspirações não vinham apenas dos Estados Unidos,<br />
mas também do Brasil, especifi camente <strong>de</strong> São Paulo. Curiosamente,<br />
o grupo do Nelson Triunfo (Funk & Cia.) nasceu no DF,<br />
na cida<strong>de</strong>-satélite <strong>de</strong> Sobradinho, Quadra 9, e se mudou para<br />
São Paulo <strong>de</strong>pois. O Funk & Cia. é realmente <strong>um</strong>a lenda no país.<br />
Já o Gol<strong>de</strong>n Boys dançava coreografi as maravilhosas no estilo<br />
funk e o maior grupo <strong>de</strong> break da época, na minha opinião, era<br />
o Electro Boogies. Outros dois grupos famosos na mídia, que<br />
conseguiram até gravar disco, eram o Black Junior e o Villa Box.<br />
Todos eram fonte <strong>de</strong> inspiração. Mas o interessante é que a<br />
cultura hip-hop no Distrito Fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu começo, andou<br />
lado a lado com a <strong>de</strong> São Paulo.
Meus primeiros passos como b-boy<br />
31<br />
Alguns grupos lançaram personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> expressão do<br />
hip-hop brasileiro. Do grupo Magrellos vieram Freire, Rossi Black,<br />
Tubarão, Marcão e Gog, consi<strong>de</strong>rado o poeta do rap nacional.<br />
Do União Smurphies, o Leandro, que <strong>de</strong>pois começou a ser chamado<br />
<strong>de</strong> DJ Leandronik, talvez não seja tão conhecido no resto<br />
do Brasil, mas é <strong>um</strong> ícone da cultura hip-hop no DF. Ele foi <strong>um</strong><br />
dos precursores na área <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> rap e <strong>um</strong> dos maiores<br />
DJs <strong>de</strong> performance e scratch que vi atuar. Do Break Company<br />
Jeans Oeste se <strong>de</strong>stacaram o Glaydston - que eu acho importante<br />
citar, porque o break o transformou no cidadão que ele é<br />
hoje, pai <strong>de</strong> família e <strong>de</strong>legado da Polícia Civil – e o Borracha,<br />
que ganhou esse apelido por causa <strong>de</strong> seu estilo <strong>de</strong> quebrar na<br />
roda <strong>de</strong> break. Borracha é <strong>um</strong> guerreiro e se manteve atualizado<br />
mesmo com o passar dos anos. Ele continuou fi rme no hip-hop e<br />
foi <strong>um</strong> dos integrantes do grupo <strong>de</strong> Rap Liberda<strong>de</strong> Condicional,<br />
que ainda permanece no cenário do DF. Atuante até hoje como<br />
DJ <strong>de</strong> performance, <strong>de</strong> baile, produtor musical e apresentador<br />
<strong>de</strong> programa <strong>de</strong> TV e vi<strong>de</strong>oclipes, o DJ Chocolate, da Ceilândia, já<br />
naquela época fazia pequenas montagens para o grupo se apresentar.<br />
Isso mostra como o DF estava à frente dos outros estados<br />
na cultura <strong>de</strong> rua, principalmente no break, no início do hip-hop<br />
nos anos 80. É por isso que o break do Cerrado sempre será referência<br />
em todo o Brasil. Aqui se fez e se faz escola.
32<br />
CAPÍTULO 03:
Dois DJs foram fundamentais para o início do break no DF: Alexandre<br />
Me<strong>de</strong>iros e Elívio Blower. Eles tinham <strong>um</strong> programa na antiga<br />
Rádio Atlântida FM 93,7. O Via 93 fi cou no ar <strong>de</strong> 1983 a 1985.<br />
Posso falar que esses dois DJs são responsáveis pelo que eu<br />
sou hoje. Foi ouvindo o programa <strong>de</strong>les, as mixagens, as montagens,<br />
os remixes que faziam, e vendo eles discotecarem <strong>de</strong><br />
perto, que formei a minha visão <strong>de</strong> hip-hop.<br />
O programa era transmitido aos sábados, às <strong>de</strong>z da noite, e aos<br />
domingos, às quatro da tar<strong>de</strong>. Todos que o ouviam, só iam para<br />
as danceterias e bailes <strong>de</strong>pois que ele terminava. Por on<strong>de</strong> se<br />
andava no DF, nas lanchonetes, nos carros e até nas festas particulares,<br />
todos estavam sintonizados no Via 93.<br />
Alexandre e Elívio eram referência e promoviam tendências.<br />
Foram eles que introduziram o break, o electro (então chamado<br />
<strong>de</strong> funk eletrônico ou balanço) e o hip-hop no DF. Realmente, foi<br />
<strong>um</strong>a época <strong>de</strong> ouro do rádio no Cerrado. Depois, nos tornamos<br />
gran<strong>de</strong>s amigos.<br />
Eles tocavam aos sábados no Clube do Exército e o Elívio também<br />
se apresentava, junto com o Marcelo Goe<strong>de</strong>rt, aos domingos<br />
no Clube da Asca<strong>de</strong>, que fi cava na L2 Sul. O baile da Asca<strong>de</strong> foi<br />
palco dos primeiros <strong>de</strong>safi os <strong>de</strong> break: os rachas ou batalhas.<br />
Os a<strong>de</strong>ptos do electro <strong>de</strong> todas as cida<strong>de</strong>s-satélites se encontravam<br />
lá. Nos bailes das periferias ainda se tocava mais soul e funk.<br />
34
O break<br />
35<br />
Alexandre e Elívio começaram a promover eventos e concursos<br />
<strong>de</strong> break. Um dos primeiros aconteceu no Clube dos Previ<strong>de</strong>nciários,<br />
que fi cava na Asa Sul. O concurso teve três eliminatórias.<br />
Na primeira, minha crew fi cou entre as três classifi cadas para<br />
a próxima fase. João, do meu grupo, estudava na Escola Americana<br />
<strong>de</strong> Brasília e conheceu o Biod<strong>um</strong>, que estava <strong>de</strong> passagem<br />
pela cida<strong>de</strong> e já tinha dançado em Nova York.<br />
— Raffa, conheci <strong>um</strong> b-boy nigeriano que dança muito! O<br />
nome <strong>de</strong>le é Biod<strong>um</strong>! Pedi pra ele fazer <strong>um</strong>a coreografi a pra<br />
gente apresentar na segunda etapa do concurso <strong>de</strong> break do<br />
Previ<strong>de</strong>nciários.<br />
— Acho <strong>um</strong>a ótima idéia. Mas ele topou ensinar à gente<br />
mesmo?<br />
— Ele topou sim, Raffa! Vamos marcar os dias então?<br />
— Vamos! Vê com ele o melhor dia para os ensaios.<br />
— Ok, Raffa, <strong>de</strong>ixa comigo!<br />
O Biod<strong>um</strong> era muito bom e tinha <strong>um</strong>a sensibilida<strong>de</strong> diferente. A<br />
coreografi a que ele criou incluía movimentos com <strong>um</strong> jornal nas<br />
mãos. Parecia coisa da Brodway, só que no estilo popping. Ficamos<br />
impressionados com as idéias <strong>de</strong>le. A música que utilizou<br />
era <strong>um</strong> clássico do break: “Get Tough”, do CD III. Esse single, em<br />
vinil, o João tinha trazido <strong>de</strong> <strong>um</strong>a viagem a Londres e Lisboa.<br />
Infelizmente, mesmo com a coreografi a do Biod<strong>um</strong>, fomos<br />
<strong>de</strong>sclassifi cados na segunda eliminatória. Os Magrellos foram<br />
os campeões. Eles só não participaram do então mais famoso<br />
concurso <strong>de</strong> break do DF, o do Foods 1 porque ele aconteceu no<br />
mesmo dia da fi nal do concurso do Clube dos Previ<strong>de</strong>nciários.<br />
No Foods, o meu grupo apresentou a coreografi a do Biod<strong>um</strong>,<br />
mas com alg<strong>um</strong>as modifi cações. Ficamos em terceiro lugar.<br />
1 Uma lanchonete que não existe mais. Foi ponto <strong>de</strong> encontro dos jovens brasilienses<br />
aos domingos, nos anos 80.
36 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Em primeiro e em segundo, vieram o União Smurphies, do meu<br />
amigo Leandro, e o Break Company Jeans Oeste, respectivamente.<br />
Foi <strong>um</strong>a festa, porque não esperávamos conquistar <strong>um</strong>a<br />
das três primeiras posições entre 15 grupos <strong>de</strong> todo DF.<br />
O União Smurphies dançou a música “Rockit”, <strong>de</strong> Herbie Hancock.<br />
Acho que essa escolha fez a diferença, porque pelo menos<br />
10 dos 15 grupos dançaram em cima <strong>de</strong> “Renega<strong>de</strong>s of Funk”, <strong>de</strong><br />
Afrika Bambaataa & The Soul Sonic Force. Mas, na minha opinião,<br />
o União Smurphies tinha os maiores dançarinos <strong>de</strong> popping<br />
e break do DF. Eles realmente se <strong>de</strong>dicavam e treinavam muitas<br />
horas por dia. As coreografi as eram muito bem elaboradas.<br />
Lembro, como se fosse hoje, do Leandro com a taça na mão na<br />
maior empolgação, gritando:<br />
— Raffa, essa vitória é nossa cara!<br />
A h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> que o Leandro tinha era a nobreza <strong>de</strong>le. Depois<br />
<strong>de</strong>sse concurso, o União Smurphies teve a honra <strong>de</strong> ser convidado<br />
para ser o grupo <strong>de</strong> break ofi cial do programa Via 93.<br />
Existiam vários concursos <strong>de</strong> break em Brasília e nas cida<strong>de</strong>ssatélites.<br />
No Clube Primavera, em Taguatinga, o Break Company<br />
Jeans Oeste sagrou-se campeão. Infelizmente, muitos não aceitaram<br />
a vitória do grupo e começaram a gritar:<br />
— É marmelada, é marmelada!<br />
Para completar, a mochila do Borracha, on<strong>de</strong> estava o troféu, foi<br />
roubada. No concurso da Sorveteria Praline, na Quadra 205 Sul,<br />
o Break Company também venceu.<br />
O meu grupo, The Breaks, se apresentou no maior festival<br />
agropecuário na Granja do Torto. Também participamos do concurso<br />
do Clube Motonáutica, on<strong>de</strong> vi pela primeira vez o Nelson<br />
Triunfo e o Funk & Cia. se apresentando. Eles eram convidados<br />
da organização.
O break<br />
37<br />
Alguns grupos conseguiram participar <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> TV<br />
locais. Um combinado <strong>de</strong> b-boys <strong>de</strong> diferentes grupos da Asa<br />
Norte se apresentou no Brasília Urgente, da TV Nacional. Eles<br />
foram campeões e <strong>de</strong>pois alguns, como o Ginho, dançaram<br />
no programa do SBT Novos Talentos, do Silvio Santos, em São<br />
Paulo.<br />
Quando havia festas ao ar livre em quadras nas cida<strong>de</strong>s-satélites,<br />
lá estavam todos. Existia muita rivalida<strong>de</strong>, mas não éramos<br />
inimigos e, graças a Deus, todos se respeitavam.<br />
Os encontros e <strong>de</strong>safi os <strong>de</strong> break começaram a ser mais freqüentes<br />
nos domingos à noite, no Clube da Asca<strong>de</strong>. O União<br />
Smurphies ganhava quase sempre. O Emerson tinha a nossa<br />
ida<strong>de</strong>, mas como ele era pequeno, se <strong>de</strong>stacava. As pessoas<br />
pensavam que ele era mais jovem. O Glaydston vivia procurando<br />
alguém que pu<strong>de</strong>sse concorrer com o Emerson e conheceu<br />
<strong>um</strong> b-boy que também era da Asa Norte, o Japão. 2 O Glaydston<br />
resolveu então, provocar:<br />
— Leandro, aguar<strong>de</strong>! Agora temos <strong>um</strong> b-boy dançando pra gente<br />
que vai arrasar com o Emerson e vocês. O nome <strong>de</strong>le é Japão.<br />
E o Leandro respon<strong>de</strong>u:<br />
— Beleza, Glaydston, vamos nos encontrar na Asca<strong>de</strong> e tirar a<br />
limpo.<br />
Durante duas semanas, toda vez que o Glaydston encontrava<br />
com eles, tocava no assunto. Ele falou tanto que o Leandro<br />
começou a fi car nervoso. No dia do racha, o Leandro foi antes<br />
com o Pele e comentou:<br />
— Estou apreensivo com esse <strong>de</strong>safi o <strong>de</strong> hoje à noite.<br />
— Que nada, cara, vamos dançar sem preocupação - respon<strong>de</strong>u<br />
Pele.<br />
2 Não confundir com o Japão do Viela 17.
38 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
O Emerson tinha ido em outro horário e, por coincidência, se<br />
encontrou com o Japão no mesmo ônibus. Ninguém sabia, mas<br />
eles já se conheciam.<br />
— E aí, Emerson, tá indo pra on<strong>de</strong> cara?<br />
— Estou indo pra Asca<strong>de</strong> dançar!<br />
— É mesmo? Eu também!<br />
Quando o Glaydston viu os dois chegando juntos na Asca<strong>de</strong>,<br />
fi cou nervoso e perguntou:<br />
— Vocês já se conheciam?<br />
— Sim! Há muito tempo - respon<strong>de</strong>u Emerson, rindo.<br />
— Não acredito que vocês se conheciam! – disse, nervoso, Glaydston.<br />
Por que você nunca me falou nada, Japão?<br />
— Você nunca perguntou, cara!<br />
— Mas você vai dançar com a gente, não vai? – perguntou Glaydston.<br />
— Não vou, não! Vou dançar com o União Smurphies!<br />
O Glaydston fi cou nervoso, com aquele jeito afobado e engraçado<br />
<strong>de</strong>le. E, claro, não teve jeito: o Japão acabou dançando com o<br />
União Smurphies.<br />
Outros b-boys também dançaram com o União Smurphies por <strong>um</strong><br />
tempo: o Balu, o Lepa e o Mr. Beat. Mesmo com <strong>um</strong>a <strong>de</strong>fi ciência<br />
física n<strong>um</strong>a mão, o Mr. Beat conseguia fazer movimentos incríveis<br />
no chão. Leandro, Emerson e eu íamos muito para a casa<br />
<strong>de</strong>le, na Asa Sul do Plano Piloto, treinar, porque ele tinha muitos<br />
discos novos <strong>de</strong> break. Uma das músicas chamava muito<br />
a nossa atenção. Era “Funky Breakdown”, do grupo Awesome<br />
Foursome. Ele tirava <strong>um</strong>a onda com esse disco e não gravava<br />
para ninguém. E foi a arrogância <strong>de</strong>le, do Lepa e do Balu, que se<br />
achavam superiores a todos os outros b-boys, o motivo <strong>de</strong> todos<br />
brigarem com eles e <strong>de</strong>les se afastarem. Leandro dizia que os<br />
três dançavam muito bem e eram ótimos b-boys, mas não eram
O break<br />
39<br />
h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>s o sufi ciente para continuar a dançar nos encontros e<br />
batalhas no Clube da Asca<strong>de</strong>.<br />
Leandro conheceu também outro nigeriano, que estava <strong>de</strong><br />
passagem por Brasília e se chamava Adam, no dia em que a<br />
Furacão 2000 esteve na cida<strong>de</strong> pela primeira vez. O Adam tinha<br />
participado <strong>de</strong> clipes norte-americanos <strong>de</strong> break e o Elívio o<br />
apresentou a todos.<br />
Esse baile da Furacão 2000 aconteceu no Iate Clube e o apresentador<br />
da noite foi o Toninho Pop. Soube que ele subiu ao<br />
palco com uns óculos futuristas, que tinham <strong>um</strong>a il<strong>um</strong>inação<br />
própria. Efeitos especiais da época. Vim a conhecer mesmo o<br />
Toninho Pop anos <strong>de</strong>pois.<br />
Quando o Leandro me apresentou o Adam, o nigeriano mostrou<br />
<strong>um</strong> vinil com a trilha sonora <strong>de</strong> <strong>um</strong> fi lme sobre break no Bronx. O<br />
Wild Style 3 não veio para os cinemas do Brasil e já tinha uns dois<br />
anos. Isso foi muito antes dos mais famosos fi lmes <strong>de</strong> break da<br />
época, o Break Dance 4 e o Beat Street 5 , serem lançados. O Break<br />
Dance mostra o break da Califórnia, Los Angeles, e os protagonistas<br />
são o Boogaloo Shrimp e Shabba Doo (os personagens<br />
Turbo e Ozone, respectivamente). Nesse fi lme o rapper Ice T, <strong>um</strong><br />
dos precursores do estilo gangsta rap, faz sua primeira aparição.<br />
Já o Beat Street tem <strong>um</strong>a das mais sensacionais batalhas<br />
<strong>de</strong> break fi lmadas: entre o New York City Breakers e o Rock<br />
Steady Crew. O protagonista é Robert Taylor, <strong>um</strong> menino <strong>de</strong> 17<br />
anos do South Bronx. Eu mesmo vi esse fi lme <strong>um</strong>as 20 vezes<br />
no cinema. A partir <strong>de</strong>le, pu<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r melhor a cultura<br />
hip-hop e toda a sua essência.<br />
O Adam começou a dançar junto com o União Smurphies nos<br />
<strong>de</strong>safi os na Asca<strong>de</strong>. Ele era realmente <strong>um</strong> b-boy excepcional.<br />
3 Filme <strong>de</strong> 1983 dirgido por Charlie Ahearn.<br />
4 Filme <strong>de</strong> 1984, dirigido por Joel Silberg. Veio para o Brasil com o nome <strong>de</strong> Break<br />
Dance, mas o título orginal é Breakin’.<br />
5 Beat Street- A Loucura do ritmo. Filme <strong>de</strong> 1984, dirigido por Stan Lathan.
40 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Principalmente quando se tratava <strong>de</strong> popping. Um dia, resolvemos<br />
juntar as forças: União Smurphies, The Breaks, Break Company<br />
Jeans Oeste e o Adam também. Nós não sabíamos que, por<br />
fora, corria o grupo Electro Boogaloo, se aperfeiçoando.<br />
Foi n<strong>um</strong> <strong>de</strong>sses encontros em que saíamos todos juntos para<br />
a danceteria da Asca<strong>de</strong>, que fomos <strong>de</strong>safi ados por eles para<br />
<strong>um</strong>a batalha <strong>de</strong> break. Nós per<strong>de</strong>mos feio. O melhor b-boy<br />
<strong>de</strong>les era o Dentinho e ele já fazia o “moinho <strong>de</strong> vento” (passo<br />
que ninguém mais fazia). Quando a coisa começou a esquentar<br />
mesmo, o Adam pediu para que fôssemos embora rapidamente,<br />
evitando sermos ainda mais h<strong>um</strong>ilhados. Resultado: saímos<br />
<strong>de</strong> lá arrasados e sem acreditar no que tinha acontecido. Três<br />
grupos juntos, mais o Adam, consi<strong>de</strong>rado o melhor dançarino <strong>de</strong><br />
popping, não <strong>de</strong>ram conta do recado. Lembro como eu chorei na<br />
parada <strong>de</strong> ônibus naquela noite. Então, eu disse:<br />
— Emerson, eu não acredito que a gente foi h<strong>um</strong>ilhado <strong>de</strong>sse<br />
jeito!<br />
— Raffa, não tem jeito. Agora já foi... Per<strong>de</strong>mos e pronto.<br />
Emerson estava muito mais conformado do que eu.<br />
— A gente fez o que pô<strong>de</strong>, disse Tampinha. Eu treinei muito pra<br />
fazer o “moinho <strong>de</strong> vento”, mas não consegui passar da meta<strong>de</strong>!<br />
O Dentinho fez ele inteiro! Como eu ia competir com ele?<br />
— Temos que treinar! – disse Adam.<br />
E Leandro acrescentou:<br />
— Galera, a solução não é fi car pra baixo! A solução é a gente<br />
superar as nossas limitações!<br />
Leandro sempre foi <strong>um</strong> cara otimista. Mas não teve jeito. A <strong>de</strong>cepção<br />
tomou conta <strong>de</strong> todos. Entramos no ônibus e fomos para casa.<br />
Era <strong>um</strong>a noite estrelada, porém triste.<br />
Não saí <strong>de</strong> casa por mais <strong>de</strong> <strong>um</strong> mês. Nem motivação para dançar<br />
eu tinha. Aos poucos, a tristeza <strong>de</strong>u lugar a <strong>um</strong>a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>
O break<br />
41
42 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
mudar esse quadro. Fizemos <strong>um</strong>a reunião lá em casa. Pele foi<br />
logo falando:<br />
— Raffa, você é o único que tem vi<strong>de</strong>ocassete em casa. Vamos<br />
<strong>de</strong>sistir não! Vamos pegar todos os ví<strong>de</strong>os que você tem e analisar<br />
os passos, pegar os movimentos e treinar pra valer todos os<br />
dias! A gente vai ter a nossa revanche. O que vocês acham?<br />
É claro que todos concordaram e vibraram.<br />
— Tenho ví<strong>de</strong>os também – disse Adam. – Vamos juntar esse<br />
material.<br />
Tinha <strong>um</strong> passo <strong>de</strong> break, n<strong>um</strong>a propaganda da Coca-Cola, que<br />
a gente queria enten<strong>de</strong>r como se fazia. Mas a propaganda, além<br />
<strong>de</strong> rápida, raramente passava na TV. O Pele gostava muito <strong>de</strong>sse<br />
movimento e me pediu:<br />
— Raffa, fi ca na TV o dia inteiro, <strong>de</strong> prontidão, com a fi ta no<br />
ponto e quando passar a propaganda você grava! Po<strong>de</strong> fazer<br />
isso por mim?<br />
— É claro que posso, cara! Provavelmente, vou fi car o dia inteiro<br />
pra conseguir isso!<br />
Essa minha maratona durou <strong>um</strong> fi nal <strong>de</strong> semana todo, mas eu<br />
consegui. Era tudo muito improvisado e inocente naquela época.<br />
Na hora <strong>de</strong> o Pele pegar os movimentos, eu passava em câmera<br />
lenta. Ele rapidamente apren<strong>de</strong>u e apelidamos o movimento <strong>de</strong><br />
“o passo da coca-cola”. Claro que muitos passos e movimentos<br />
já tinham nomes ofi ciais. Só que a gente não sabia; não havia<br />
informações.<br />
Um dos clipes que mais víamos era da música “Street Dance”,<br />
do grupo Break Machine <strong>de</strong> Nova York. Ele tinha passado no<br />
Fantástico, da TV Globo, e eu gravei. Pegamos todos os ví<strong>de</strong>os<br />
<strong>de</strong> break que tínhamos e treinamos uns três meses sem parar,<br />
n<strong>um</strong>a média <strong>de</strong> seis horas por dia. Lá em casa, afastávamos os<br />
móveis da sala e ensaiávamos.
O break<br />
43<br />
Eu fazia o movimento da tartaruga e sempre era zoado quando<br />
fazia esse passo:<br />
— Raffa, dorme não, cara – brincava o Emerson.<br />
— Abaixa a bunda, Raffa – emendava o Adam.<br />
Para reforçar o nosso time, o Saulo nos apresentou o Toninho Moinho<br />
<strong>de</strong> Vento, <strong>de</strong> Taguatinga. Pelo apelido, sabíamos que ele era<br />
<strong>um</strong> dos poucos b-boys que já dominavam a técnica do passo que<br />
era tão complicado para a gente. Enfi m, tínhamos alguém para<br />
combater <strong>de</strong> igual pra igual com o Dentinho, do Electro Boogaloo.<br />
Marcamos a revanche várias vezes, mas eles sempre remarcavam<br />
para outro dia. Isso durou, mais ou menos, uns cinco<br />
meses. Em junho <strong>de</strong> 1985, fi nalmente a gran<strong>de</strong> batalha! Foi no<br />
estacionamento ao lado do Conjunto Nacional, 6 on<strong>de</strong> hoje fi ca o<br />
Setor Comercial Norte.<br />
A aliança entre os grupos The Breaks, União Smurphies, Break<br />
Company Jeans Oeste e alguns b-boys estava formada. Eram<br />
uns 15 dançarinos do Plano Piloto, Sobradinho, Taguatinga,<br />
Cida<strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntal e outras comunida<strong>de</strong>s do DF. A nossa tática<br />
era forçá-los a dançar no chão primeiro, porque sabíamos que<br />
no break em cima, nos estilos wave, popping e locking, éramos<br />
melhores e isso faria a diferença. O Electro Boogaloo reuniu<br />
vários b-boys também. Se tivéssemos fi lmado essa batalha,<br />
ninguém acreditaria. Ela começou mais ou menos às duas da<br />
tar<strong>de</strong> e durou cerca <strong>de</strong> quatro horas. Quase aconteceram brigas,<br />
porque a adrenalina estava correndo solta.<br />
O Balu, o Lepa e o Mr. Beat, que não se conformavam por não<br />
estarem participando da batalha, apareceram lá junto com <strong>um</strong><br />
professor <strong>de</strong> jazz e dançarino <strong>de</strong> break da Asa Sul, chamado<br />
Chocolate, só para t<strong>um</strong>ultuar. Porém, não conseguiram nada e<br />
acabaram expulsos rapidamente do local.<br />
6 Shopping localizado no Centro <strong>de</strong> Brasília.
44 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
A tática estava dando certo. Mesmo quando eles dançavam<br />
popping, a gente forçava para que ele fi zessem os movimentos<br />
no chão, os power moves. A diferença é que tínhamos muitas<br />
coreografi as para executar ainda, alg<strong>um</strong>as solo, outras em<br />
duplas e até em trio. Eu tinha <strong>um</strong>a coreografi a com o Tibirinha<br />
que incluía <strong>um</strong> giro vertical duplo no ar. Quando eles terminaram<br />
a seqüência <strong>de</strong>les, nós <strong>de</strong>spejamos as nossas coreografi as.<br />
Os melhores solos eram do Adam, Emerson e Leandro, que arrebentaram.<br />
Foi a glória. Começamos a vibrar mais e mais a cada<br />
passo, a cada coreografi a. Quando o fi nal foi se aproximando,<br />
eles se sentaram no chão para assistir à gente dançar. Ganhamos<br />
a revanche! Essa batalha vai fi car para sempre em minha<br />
memória e na <strong>de</strong> todos que participaram.<br />
A fi ta que eu tinha feito para esse racha estava justamente na<br />
or<strong>de</strong>m da tática que usamos. As músicas para dançar no chão<br />
vinham antes das que tinham mais características para o popping<br />
e o locking.<br />
Alg<strong>um</strong>as músicas <strong>de</strong> break realmente marcaram não só as nossas<br />
vidas, mas as <strong>de</strong> toda <strong>um</strong>a geração <strong>de</strong> b-boys. As 20 músicas<br />
e artistas que eu consi<strong>de</strong>ro mais importantes <strong>de</strong>ssa época são:<br />
1. Afrika Bambaataa & The Soul Sonic Force<br />
“Planet Rock” – 1982<br />
2. Cybotron<br />
“Clear” – 1983<br />
3. Break Machine<br />
“Street Dance” (por causa do ví<strong>de</strong>oclipe) – 1984<br />
4. Grandmixer DST<br />
“Crazy Cuts” – 1983<br />
5. Hashim<br />
“Al-Naafi ysh (The Soul)” – 1984<br />
6. Herbie Hancock<br />
“Rockit (scratches do Grandmixer DST)” – 1983<br />
7. Newcleus<br />
Jam on it Revenge (The Wikki-Wikki song) – 1984<br />
8. Paul Hardcastle<br />
“19” (música que versa sobre a ida<strong>de</strong> média dos soldados<br />
americanos que foram para a guerra do Vietnã) – 1984
O break<br />
45<br />
9. Twilight 22<br />
“Electric Kingdom” (a primeira música <strong>de</strong> protesto cantada<br />
em rap, mas no estilo electro) – 1983<br />
10. Grandmaster Flash & The Furious Five<br />
“The Message” – 1983<br />
11. Art of Noise<br />
“Battle of the Beat Box” – 1983<br />
12. Malcolm McLaren<br />
“Buffalo Gals” – 1982<br />
13. Two Sisters<br />
“B-Boys Beware” – 1984<br />
14. Midnight Star<br />
“Freak-A-Zoid” – 1984<br />
15. Shannon<br />
“Let the music play” – 1983<br />
16. Kraftwerk<br />
“Tour the France” (versão do fi lme Break Dance) – 1982<br />
17. Man Parrish<br />
Hip Hop Be Bop (Don’t Stop) – 1983<br />
18. Arthur Baker<br />
“Breakers Revenge” (do fi lme Beat Street) – 1984<br />
19. Mantronix<br />
“Needle to the groove” – 1985<br />
20. Cuttin’ Herbie<br />
“Two Three Break” – 1983.<br />
Claro que existiam muito mais músicas, principalmente as do<br />
Afrika Bambaataa & The Soul Sonic Force. Eles lançaram vários<br />
singles <strong>de</strong> sucesso, como “Looking for the Perfect Beat”, “Renega<strong>de</strong>s<br />
of Funk” e “Frantic Situation”, todos produzidos pelo Arthur<br />
Baker. No entanto, consi<strong>de</strong>ro a lista acima a das principais músicas<br />
<strong>de</strong> break e electro da primeira geração do break mundial.
46<br />
CAPÍTULO 04:
Após a revanche, fui convidado para morar nos Estados Unidos,<br />
perto <strong>de</strong> Chicago, com meu tio, irmão do meu pai, Alberto<br />
Santoro, <strong>um</strong> dos maiores físicos do Brasil. Quis ir não só para<br />
estudar língua inglesa e dança, mas para ver <strong>de</strong> perto a cultura<br />
hip-hop e conhecer melhor a música negra americana que tanto<br />
me fascinava. Fiquei lá uns oito meses.<br />
Foi nos EUA que eu comecei a pesquisar e conhecer melhor os<br />
estilos musicais que antece<strong>de</strong>ram o electro – o jazz, o soul, o<br />
funk e a disco. Descobri as raízes da música negra e, assim,<br />
passei a enten<strong>de</strong>r melhor o break. Nessa época, surgiram muitos<br />
grupos <strong>de</strong> rap americanos. E quem já tinha <strong>um</strong> nome no hiphop<br />
americano ganhava força, como o Kurtis Blow, o Hodinni, o<br />
Kool Moe Dee e o Rodney O & Joe Cooley.<br />
O rap estava se misturando com o break, moldando a cultura<br />
hip-hop, que começava a tomar r<strong>um</strong>os e estilos próprios. O<br />
que se fazia em Nova York era <strong>um</strong> estilo chamado <strong>de</strong>f (batidas<br />
mais pesadas e com ritmo mais lento) e, em Miami, o miami<br />
bass (vertente do electro, com <strong>um</strong>a batida mais rápida). O <strong>de</strong>f<br />
inspirou a galera <strong>de</strong> São Paulo. Por sua vez, do miami bass nasceu<br />
o funk do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Um dos principais divulgadores<br />
<strong>de</strong>sse ritmo foi o carioca DJ Marlboro, que se tornou meu amigo.<br />
O funk carioca absorveu até mesmo o uso <strong>de</strong> conotações <strong>de</strong><br />
duplo sentido muito usadas por <strong>um</strong> dos maiores grupos <strong>de</strong><br />
miami, o 2 Live Crew. Já em Brasília, o som era mais eclético.<br />
48
Os DJs e as equipes <strong>de</strong> som<br />
49<br />
Nos bailes e programas mais especializados tocava-se tanto o<br />
<strong>de</strong>f como o miami bass.<br />
A equipe Furacão 2000, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, ia muito a Brasília<br />
para tocar, ao contrário das equipes <strong>de</strong> São Paulo. Depois que<br />
eu gravei o primeiro disco com os Magrellos, pela equipe <strong>de</strong> som<br />
paulista Kaskatas, ela ganhou projeção no DF e foi até lá <strong>um</strong>as<br />
três vezes. Mas o que mantinha o miami em alta em Brasília<br />
eram as constantes idas da Furacão 2000 à cida<strong>de</strong> e, claro, a<br />
persistência <strong>de</strong> alguns DJs que tocavam muito esse estilo, como<br />
meu gran<strong>de</strong> amigo DJ Celsão. Ele mudou do Rio para Brasília e<br />
permanece ativo até hoje, tocando em festas do Centro-Oeste.<br />
Celsão se projetou com <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> rádio que virou história<br />
para o movimento hip-hop da capital do país. O Mix Mania, que,<br />
se não me engano, estreou em 1985 na rádio 105 FM.<br />
Em todas as rádios em que trabalhou, Celsão levava o nome do<br />
programa. O Mix Mania foi palco para os primeiros passos do<br />
rap nacional em rádio. Celsão realmente apoiava os nossos primeiros<br />
trabalhos e, por isso, ele foi <strong>um</strong>a das peças mais importantes<br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento do hip-hop no DF.<br />
Porém, o som que se <strong>de</strong>senvolveu em Brasília, e criou i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
própria, não foi inspirado em Nova York, tampouco em Miami,<br />
mas em Los Angeles. Foi o som eletrônico mais pesado como o do<br />
NWA e Ice T, precursores do estilo conhecido como gangsta rap,<br />
vindo dos bairros da periferia <strong>de</strong> Los Angeles, que contaminou os<br />
bailes e grupos <strong>de</strong> rap do DF. Esse estilo predominou e serviu <strong>de</strong><br />
inspiração à primeira geração do rap nacional nos anos 90.<br />
Já existiam equipes <strong>de</strong> som nas periferias do DF <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos<br />
70, mas com a explosão do funk eletrônico e do rap elas ganharam<br />
mais <strong>de</strong>staque. Nessa época, ainda se tocava muito soul e<br />
funk. Se não tivesse sessão <strong>de</strong> soul no fi nal dos bailes, a malandragem<br />
reclamava.<br />
As equipes que se <strong>de</strong>stacavam eram a Power, com o DJ Gerson<br />
da Ceilândia; a Sarro Disco Clube, com o DJ Juninho Paco Super
50 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Mix, <strong>de</strong> Taguatinga; a Dizi Som, do Cruzeiro Guará e Núcleo Ban<strong>de</strong>irante,<br />
com os DJs Zinho e Nino; a Sabóia, da Expansão do<br />
Setor O na Ceilândia; a Drácula e Studio Tiger, no Guará; a Equasom<br />
e a Studio Mix, no Paranoá com o DJ Wolfgang; a Terra Disco<br />
Show, com os DJs Jota (dono da equipe) e Bruno, que <strong>de</strong>pois<br />
saiu e montou <strong>um</strong> estúdio com o Rei (Cirurgia Moral), no Conic<br />
(Setor <strong>de</strong> Diversões Sul); e claro, a Smurphies Disco Clube, da<br />
Ceilândia, que virou também rádio comunitária, seu dono, o DJ<br />
Marquinhos, mantém-se na ativa.<br />
Marquinhos é <strong>um</strong> dos responsáveis pelo <strong>de</strong>senvolvimento do<br />
movimento hip-hop <strong>de</strong> Brasília, e <strong>um</strong> <strong>de</strong> seus principais nomes. A<br />
Smurphies produzia eventos e bailes também no Gama, na danceteria<br />
da Dani; em Taguatinga, no Clube Primavera, e no Pan<strong>de</strong>a,<br />
no Setor Militar Urbano.<br />
Em Sobradinho, existia o famoso Baile do Galpão 17, com a<br />
equipe Soluze e os DJs A<strong>de</strong>lson e Raul, no Clube So<strong>de</strong>zio. Lá predominavam<br />
o miami bass e o freestyle, estilo do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
A Igreja São Paulo Apóstolo (conhecida como Igrejinha), situada<br />
na Quadra E 7 do Guará I, foi <strong>um</strong> dos últimos lugares <strong>de</strong> encontro<br />
da primeira geração do break do DF, em 1985. A equipe era a<br />
Dizi Som, com os DJs Zinho e Nino. Participavam do baile muitos<br />
grupos <strong>de</strong> break e amantes do funk eletrônico. Um jovem<br />
dançarino, que <strong>de</strong>pois se tornou <strong>um</strong> dos maiores DJs <strong>de</strong> performance<br />
e militantes do movimento hip-hop nacional, também<br />
freqüentava a Igrejinha. Era o TDZ.<br />
TDZ se especializou em produzir discos <strong>de</strong> batalhas nacionais<br />
para DJs <strong>de</strong> todo o Brasil, na série Arsenal Sônico. Foi por <strong>um</strong>a<br />
iniciativa <strong>de</strong>le e do DJ Marcelinho (Câmbio Negro), <strong>de</strong> São Paulo,<br />
que a cultura dos DJs e do vinil permanece viva até hoje. A<br />
insistência <strong>de</strong>les fez com que o Dario (dono da loja Porte Ilegal,<br />
da Galeria 24 <strong>de</strong> Maio, na capital paulista) corresse o risco <strong>de</strong><br />
apoiar a única fábrica <strong>de</strong> vinil do Brasil, a Poly Som, que fi ca em<br />
Belford Roxo, na Baixada Fl<strong>um</strong>inense, quando a própria fábrica
Os DJs e as equipes <strong>de</strong> som<br />
51<br />
queria encerrar sua produção. TDZ e DJ Marcelinho são responsáveis<br />
por manter a chama do vinil acesa.<br />
DJ Marquinhos, da Smurphies, lançou em sua rádio comunitária,<br />
muitos artistas da nova geração do rap nacional. E n<strong>um</strong>a época<br />
em que não existia programa <strong>de</strong> rap nas emissoras legalizadas<br />
no DF. Ele também foi responsável por trazer gran<strong>de</strong>s rappers<br />
para fazerem shows no Cerrado. Somos amigos e posso afi rmar<br />
que ele me ajudou muito na minha carreira <strong>de</strong> artista e produtor<br />
musical, sempre tocando em seus bailes, eventos e na rádio trabalhos<br />
que eu produzi. Até hoje, a Smurphies é <strong>um</strong>a das maiores<br />
equipes <strong>de</strong> som do estilo hip-hop no DF e no seu entorno.<br />
A cultura dos DJs <strong>de</strong>ntro do movimento hip-hop mudou a cara<br />
da música no mundo inteiro. E no DF, alguns profi ssionais ainda<br />
fazem a diferença.
52<br />
CAPÍTULO 05:
Conheci o Leandro, mais conhecido como DJ Leandronik, do<br />
grupo União Smurphies, em 4 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1983, dia do meu<br />
aniversário. Meus pais tinham viajado e eu aproveitei para fazer<br />
<strong>um</strong>a festa <strong>de</strong> break para mais <strong>de</strong> 100 pessoas no apartamento<br />
<strong>de</strong>les. Foi <strong>um</strong>a loucura!<br />
Leandro já era fascinado pelo mundo do hip-hop, especifi camente<br />
o dos DJs e das batidas eletrônicas. Ele entrou na festa e foi direto<br />
em direção a mim. Sentou-se ao meu lado, perto do equipamento<br />
que eu estava utilizando na festa. Ficou lá do começo ao fi m sem<br />
dizer nada, apenas observando. Mas por quê?<br />
Nos anos 70, quando eu ainda vivia na Alemanha, meu pai – a<br />
quem consi<strong>de</strong>ro <strong>um</strong> dos maiores regentes e compositores não<br />
só do Brasil, mas do mundo – se tornou <strong>um</strong> dos pioneiros da<br />
música eletroacústica, que antece<strong>de</strong>u a música eletrônica.<br />
Ele me dizia que ouvia sons em sua mente, mas não conseguia<br />
reproduzi-los na partitura nem na orquestra. Por isso, comecou<br />
a adquirir sintetizadores, gravadores <strong>de</strong> rolo e equipamentos <strong>de</strong><br />
mixagem, como mesa <strong>de</strong> som, para <strong>de</strong>senvolver peças eletroacústicas<br />
em casa. Cresci ouvindo os sons estranhos que ele<br />
produzia e vendo-o trabalhar nesses equipamentos.<br />
Eu aprendi duas coisas com o meu pai que consi<strong>de</strong>ro muito<br />
importantes. A primeira é fazer música pela música e não para<br />
ven<strong>de</strong>r música. O que quer dizer isso? Fazer música sem a pre-<br />
54
DJ Leandronik<br />
55<br />
ocupação <strong>de</strong> ganhar dinheiro. Que o dinheiro seja conseqüência<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> trabalho honesto e verda<strong>de</strong>iro. A segunda é que as convicções<br />
i<strong>de</strong>ológicas an<strong>de</strong>m lado a lado com sua forma <strong>de</strong> fazer<br />
arte, <strong>de</strong> fazer música e <strong>de</strong> se comportar diante <strong>de</strong> todos. E, principalmente,<br />
que todos somos iguais, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da cor, raça,<br />
religião, condição fi nanceira e opção sexual.<br />
Essa é a minha fi losofi a <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong>ve ser por isso que me i<strong>de</strong>ntifi<br />
quei tanto com o hip-hop e a periferia. O verda<strong>de</strong>iro hip-hop<br />
é assim, e não como muitos o fazem hoje, infelizmente. Nem<br />
quando meu pai passou fome, ele se ven<strong>de</strong>u. Ele jamais traiu as<br />
suas convicções i<strong>de</strong>ológicas.<br />
Em 1978, ao voltarmos a morar no Brasil, meu pai ainda montou<br />
o estúdio com seu equipamento no Departamento <strong>de</strong> Música da<br />
UnB, on<strong>de</strong> lecionava, mas logo <strong>de</strong>ixou aquilo <strong>de</strong> lado e voltou<br />
a <strong>de</strong>dicar-se mais à composição erudita. Escrevia sinfonias,<br />
elegias, óperas e também trabalhava na Orquestra do Teatro<br />
Nacional, que ajudou a fundar e hoje leva o seu nome.<br />
Foi assim que, <strong>de</strong>vagarzinho, eu fui buscando esses equipamentos<br />
que sobraram (ele ven<strong>de</strong>ra alguns <strong>de</strong>vido a problemas<br />
fi nanceiros), levando-os para casa. Comecei a mexer e apren<strong>de</strong>r<br />
a usá-los. Sempre fui autodidata em tudo que fi z. O que não<br />
quer dizer que eu não tenha estudado muito também.<br />
Uma parte <strong>de</strong>sse equipamento estava montada no dia da minha<br />
festa <strong>de</strong> aniversário. E foi por causa <strong>de</strong>le que o Leandro sentou<br />
ao meu lado. Ele fi cou me observando mexer n<strong>um</strong>a mesa<br />
<strong>de</strong> som Teac <strong>de</strong> oito canais e em <strong>um</strong> gravador <strong>de</strong> rolo Revox.<br />
Tudo era novida<strong>de</strong> para ele. Depois <strong>de</strong>sse dia, fi camos amigos e<br />
passamos a freqüentar a casa <strong>um</strong> do outro. Leandro tinha feito<br />
<strong>um</strong>a fi ta com mixagens <strong>de</strong> músicas <strong>de</strong> break, passando por <strong>um</strong><br />
tape <strong>de</strong>ck para conseguir efeitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>lay. Essa fi ta era a mais<br />
cobiçada em todas as festas. Quando ela chegou nas minhas<br />
mãos, eu ouvi todo o talento <strong>de</strong>le em fazer montagens e mixagens,<br />
mesmo com pouco equipamento.
56 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Como não tínhamos alg<strong>um</strong>as músicas, a gente gravava do rádio.<br />
E as músicas exclusivas e lançamentos sempre eram transmitidas<br />
com vinheta em cima. Foi da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retirar as<br />
vinhetas, que tive que apren<strong>de</strong>r a editar as músicas, <strong>de</strong> fi ta para<br />
fi ta cassete. Tudo isso só com <strong>um</strong> objetivo: não ser vaiado! É que<br />
quando alguém levava <strong>um</strong>a fi ta para tocar n<strong>um</strong>a festa e ela tinha<br />
vinheta <strong>de</strong> rádio, todo mundo vaiava.<br />
Passamos a fazer montagens para os grupos dançarem e mostrávamos<br />
uns para os outros. Foi <strong>um</strong>a fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong><br />
equipamentos. Dos toca-discos, <strong>de</strong> como fazer scratch e das<br />
primeiras mixagens <strong>de</strong> <strong>um</strong>a música para outra.<br />
Três fi lmes nos ensinaram muito sobre a cultura hip-hop. O primeiro<br />
é Flashdance, 1 no qual o Crazy Legs, do grupo <strong>de</strong> break<br />
<strong>de</strong> Nova York Rock Steady Crew, aparece dançando na rua. O<br />
segundo é Break Dance e o terceiro – e mais comovente e real<br />
– o Beat Street, que tinha o Afrika Bambaataa & The Soul Sonic<br />
Force cantando e contava com a participação do DJ jamaicano<br />
Kool Herc, que introduziu nos bailes da periferia <strong>de</strong> Nova York a<br />
tradição dos sound systems e do canto falado. Esse fi lme mostra<br />
o início do hip-hop nas ruas do Bronx, os primeiros grafi tes<br />
nos trens e nos muros, que marcavam os territórios das gangues<br />
com tags 2 e, <strong>de</strong>pois, seguindo o amadurecimento da cultura hiphop,<br />
com mensagens positivas e também políticas.<br />
Foi assim que apren<strong>de</strong>mos mais sobre a cultura das ruas. Foi<br />
assim que <strong>de</strong>scobri que o hip-hop seria a minha vida.<br />
1 Flashdance - Em ritmo <strong>de</strong> embalo. Famoso fi lme <strong>de</strong> 1983, dirigido por Adrian Lyne.<br />
2 A assinatura dos grafi teiros.
58<br />
CAPÍTULO 06:
Quando eu estava morando com o meu tio nos Estados Unidos,<br />
mais especifi camente no centro <strong>de</strong> pesquisas físicas Fermelab,<br />
que fi cava a quase <strong>um</strong>a hora e meia <strong>de</strong> automóvel <strong>de</strong> Chicago,<br />
cost<strong>um</strong>ava escutar a rádio WGCY. Ela só tocava música <strong>de</strong> que<br />
eu gostava: charme, rap e balanço. Eu gravava tudo em fi ta cassete<br />
e mandava para o Leandro no Brasil. E fazia o mesmo com<br />
os discos que eu comprava, com as músicas que sempre quis<br />
ter. Por carta, Leandro me contou que quando as fi tas chegavam<br />
era <strong>um</strong>a festa. Todos se reuniam na casa <strong>de</strong>le e escutavam juntos<br />
os últimos lançamentos.<br />
No fi nal <strong>de</strong> cada lado das fi tas, eu narrava <strong>um</strong> capítulo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
história que eu tinha escutado nos programas <strong>de</strong> funk do DJ<br />
Marlboro, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. O nome do personagem era Kid<br />
Bongalhota. Leandro me contou que no início todos vibravam<br />
por causa das músicas, mas, alg<strong>um</strong> tempo <strong>de</strong>pois...<br />
— Chegou <strong>um</strong>a nova fi ta do Raffa. Massa! – diziam.<br />
A vibração já não era pelas músicas e sim para ouvir <strong>um</strong> novo<br />
capítulo das histórias engraçadas do Kid Bongalhota. Na verda<strong>de</strong>,<br />
a brinca<strong>de</strong>ira era <strong>um</strong>a adaptação das histórias que eu<br />
tinha ouvido no Rio. Elas tinham como cenário o faroeste, mas<br />
se misturavam com Brasília. As situações eram cômicas e<br />
sempre alguém da nossa turma contracenava com o Kid Bonga-<br />
60
A transformação do rap<br />
61<br />
lhota. Infelizmente, essas fi tas se per<strong>de</strong>ram com o tempo. Por<br />
isso, não tenho mais como <strong>de</strong>screver essas histórias.<br />
Voltei dos Estados Unidos com muitos discos. Fiquei com medo<br />
<strong>de</strong> a Alfân<strong>de</strong>ga barrar os meus vinis e resolvi <strong>de</strong>ixar todas as<br />
capas na casa do meu tio. Escondi os discos <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> roupas<br />
n<strong>um</strong>a mala e, graças a Deus, não tive problemas quando cheguei<br />
no Brasil.<br />
Em 1986, percebi que a música estava mudando. O break já não<br />
tinha espaço nas rádios e nos bailes. O que tocava muito era<br />
charme (r&b), balanço (dance music). O rap internacional passava<br />
por <strong>um</strong>a transformação que eu ainda não entendia. Todo<br />
mundo que curtia rap, mesmo que não fosse no ritmo rápido do<br />
miami bass, estava acost<strong>um</strong>ado com <strong>um</strong>a batida pesada e eletrônica.<br />
O negócio é que vinha <strong>de</strong> fora <strong>um</strong>a tendência com forte<br />
infl uência européia, on<strong>de</strong> o sampler 1 predominava nas músicas.<br />
A onda era samplear bases e batidas acústicas <strong>de</strong> discos antigos.<br />
Para quem ouvia tudo eletrônico, foi <strong>um</strong> choque.<br />
Grupos como Eric B & Rakim e Public Enemy abusavam do sampler<br />
e das colagens. James Brown era o artista mais sampleado<br />
naqueles tempos.<br />
Eu comprei <strong>um</strong> vinil do Eric B & Rakim e odiei. Coloquei-o na<br />
estante e me esqueci <strong>de</strong>le. Depois <strong>de</strong> meses, ele se tornou o<br />
disco que eu mais tocava. Foi nele que ouvi pela primeira vez<br />
<strong>um</strong> scratch transformer. 2 No mesmo dia em que mostrei para o<br />
Leandro, ele enten<strong>de</strong>u como se riscava e me ligou empolgado,<br />
explicando como fazer. Leandro era assim. Sempre estava <strong>um</strong><br />
passo à frente <strong>de</strong> todos. Finalmente eu entendi que o sampler<br />
era <strong>um</strong>a das coisas mais criativas a surgir na música: ele tornou o<br />
rap mais conhecido e respeitado. A música pop nunca mais seria<br />
1 Aparelho que armazena e reproduz sons.<br />
2 Técnica usada por DJs, consiste em fazer movimentos lentos <strong>de</strong> vai-e-vem no disco<br />
com <strong>um</strong>a mão e movimentos rápidos no fa<strong>de</strong>r do mixer com a outra, resultando em <strong>um</strong><br />
efeito <strong>de</strong> cortes rápidos no som.
62 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
A transformação do rap<br />
63<br />
a mesma <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le. Interessante que, no início, o sampler servia<br />
apenas para recriar instr<strong>um</strong>entos acústicos. Depois foi muito<br />
utilizado no break, no charme e no funk, para conseguir efeitos <strong>de</strong><br />
pequenos pedaços <strong>de</strong> voz tocados em notas musicais diferentes.<br />
A gran<strong>de</strong> mudança surgiu mesmo quando pegaram <strong>um</strong>a batida<br />
ou <strong>um</strong> trecho <strong>de</strong> <strong>um</strong>a música antiga e fi zeram <strong>um</strong> anel ou loop<br />
(nome técnico), que consiste em repetir <strong>um</strong> trecho da música e<br />
usá-lo combinado a outros elementos. Isso foi o maior avanço da<br />
música no mundo inteiro. Para nós, era difícil <strong>de</strong> produzir, porque<br />
não tínhamos acesso a <strong>um</strong> sampler <strong>de</strong> jeito nenh<strong>um</strong>.<br />
As limitações eram frustrantes, no entanto, eu ia em frente e continuava<br />
a fazer experiências e música. Às vezes, meu pai entrava<br />
no quarto e dava sugestões. Para mim, era a glória!<br />
É <strong>um</strong>a pena eu não ter tido maturida<strong>de</strong> para explorá-lo musicalmente.<br />
Só compreendi isso anos após sua morte. Infelizmente,<br />
quando somos jovens, nos consi<strong>de</strong>ramos os donos do mundo e<br />
da razão, não pensamos nas implicações que nossas escolhas<br />
terão no futuro. Na minha vida, o pior foi não ter aproveitado a<br />
presença do meu pai na hora certa.
64<br />
CAPÍTULO 07:
Era <strong>um</strong>a tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> domingo como qualquer outra. Estavam à mesa<br />
minha mãe, meu pai, alguns amigos e eu. O ano era 1986. Não lembro<br />
o mês. Mas a minha vida mudaria para sempre <strong>de</strong>pois daquele dia.<br />
A campainha tocou <strong>de</strong> repente. Fui abrir a porta e lá estavam, à<br />
minha frente, duas pessoas que seriam importantes na minha<br />
trajetória <strong>de</strong> DJ e produtor musical.<br />
— Oi, você é o DJ Raffa? – perguntou <strong>um</strong> <strong>de</strong>les.<br />
— Sim, sou eu mesmo! – respondi assustado, afi nal, não sabia<br />
quem eram.<br />
— Meu nome é Freire e esse é meu amigo Rossi. A gente pegou o<br />
seu en<strong>de</strong>reço com o Fred, amigo do DJ Eugênio. A gente tem <strong>um</strong><br />
grupo <strong>de</strong> dança que se chama Magrellos.<br />
— Po<strong>de</strong>m entrar – eu disse. No caminho até o meu quarto<br />
perguntei:<br />
— Mas o que vocês vieram fazer aqui?<br />
— É que ouvimos muito falar que você tem <strong>um</strong>a coleção enorme<br />
<strong>de</strong> discos <strong>de</strong> break e a gente tá procurando música nova para<br />
dançar – disse Rossi.<br />
66
Freire e Rossi Black<br />
67<br />
— Realmente, hoje em dia, quase ninguém toca mais break.<br />
Nem nos bailes, nem nas rádios – comentei.<br />
O grupo <strong>de</strong> dança Magrellos existia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época do soul e<br />
funk dos bailes nas periferias. Dois dos maiores rappers da história<br />
do rap nacional foram seus integrantes, Gog e Marcão, do<br />
Baseado nas Ruas. Tubarão Freire e Rossi Black integraram a<br />
primeira formação do grupo <strong>de</strong> rap DJ Raffa e os Magrellos.<br />
Naquele dia eu mostrei tantas músicas novas que o Freire e o Rossi<br />
chegaram a se emocionar. Imediatamente, Freire perguntou:<br />
— Você não po<strong>de</strong> gravar esses lançamentos pra gente?<br />
No início relutei, porque não os conhecia. Marquei para que voltassem<br />
no outro domingo.<br />
— Posso trazer <strong>um</strong>a fi ta virgem então? – Freire insistiu.<br />
— Beleza, traz aí! – respondi.<br />
Esses domingos viraram <strong>um</strong>a tradição. Quase sempre eles traziam<br />
<strong>um</strong> amigo junto, para trocar idéias. N<strong>um</strong> encontro, conheci<br />
o Marcão e o Helbert, cujo apelido era Tubarão. Em outro, o Gog<br />
e o Gariba. Eu sempre gravava alg<strong>um</strong>as músicas, assim eles<br />
tinham motivos para voltar. Com isso, construímos <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong><br />
amiza<strong>de</strong>. Comecei a freqüentar as casas <strong>de</strong>les, conhecer as<br />
famílias, e, por intermédio <strong>de</strong>les, ir a bailes nas cida<strong>de</strong>s-satélites<br />
do Guará e, principalmente, no Núcleo Ban<strong>de</strong>irante.<br />
No Salão Comunitário do Núcleo Ban<strong>de</strong>irante tinha <strong>um</strong> dos<br />
melhores bailes do DF. A gente apelidava o salão <strong>de</strong> “Bambam”.<br />
A equipe que tocava era a Dizi Som. Freire me apresentou o<br />
Fábio, dono da equipe, e dois dos maiores DJs que eu conheci<br />
na minha vida, Zinho e Nino.<br />
Zinho era simplesmente <strong>um</strong>a referência nos bailes, porque vinha<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos do soul, passara pelo funk, pela disco e, claro,<br />
pelo funk eletrônico. Mas o mais impressionante era que ele conseguia<br />
mixar músicas que reuniam ritmos tão diversos quanto
68 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
disco, funk e soul - que variam muito no pitch 1 –, no tempo perfeito.<br />
Infelizmente, o Zinho não continuou na cena.<br />
Por sua vez, o DJ Nino conseguiu se atualizar e ainda toca hoje<br />
em dia. Ele é <strong>um</strong>a das pessoas mais importantes para o fortalecimento<br />
do hip-hop no Cerrado. Não só porque participou<br />
ativamente comigo e com Ariel Feitosa em várias produções<br />
musicais que fi caram na história do rap nacional, mas também<br />
porque foi <strong>um</strong> dos primeiros DJs a acreditar no rap nacional.<br />
Nino se i<strong>de</strong>ntifi cava com a cultura hip-hop. Na época, nos bailes<br />
aos domingos, ele me dava <strong>de</strong> quinze minutos a meia hora para<br />
que eu mostrasse alg<strong>um</strong>as das minhas rarida<strong>de</strong>s. Era a glória<br />
tocar para o salão cheio e ver toda a galera dançando. Foi assim<br />
que comecei a tocar na noite, nos bailes e a ganhar nome e respeito<br />
entre os DJs e os donos <strong>de</strong> equipes <strong>de</strong> som.<br />
Nino tocava em fi ta-rolo rarida<strong>de</strong>s que conseguia com amigos<br />
DJs do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Músicas que ele não tinha em vinil, mas<br />
precisava tocar nos bailes. Uma <strong>de</strong>las era “Smurf Rock”, do cantor<br />
Gigolo Tony. Depois, eu consegui esse vinil single e o Nino<br />
fi cou maluco. Ele gostava muito <strong>de</strong>ssa música.<br />
Leandro e eu fazíamos nossas primeiras produções mo<strong>de</strong>stas,<br />
sem recurso nenh<strong>um</strong>, e mostrávamos nos bailes da Dizi. O Nino<br />
pegava as nossas fi tas e tocava mesmo. O baile no Bambam<br />
serviu como <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> laboratório. A gente via a reação<br />
do público ao ouvir nossas músicas. Nino foi fundamental, porque<br />
dava <strong>um</strong>a força mesmo. Ele tocava as nossas loucuras no<br />
baile, po<strong>de</strong>ndo até prejudicar o trabalho <strong>de</strong>le na equipe <strong>de</strong> som.<br />
A minha escola <strong>de</strong> mixagem veio dos bailes, porque era lá que eu<br />
sentia o que precisava fazer para a música fi car com qualida<strong>de</strong>.<br />
Para que todos pu<strong>de</strong>ssem ouvir a pancada e também a voz.<br />
1 Expressão usada por DJs para <strong>de</strong>signar as mudanças <strong>de</strong> tempo em <strong>um</strong>a música,<br />
tanto <strong>de</strong> mais lento para mais rápido quanto o contrário. Mais tecnicamente, o<br />
termo está ligado à freqüência <strong>de</strong> <strong>um</strong> som, que, <strong>de</strong> forma simplifi cada, <strong>de</strong>termina a<br />
diferenciação na percepção <strong>de</strong> graves e agudos.
A<br />
70<br />
CAPÍTULO 08:
Freire, dos Magrellos, conhecia muitos DJs <strong>de</strong> equipes <strong>de</strong> som<br />
e que tinham programas <strong>de</strong> rádio, e grupos como o União Black<br />
Rio, cujo lí<strong>de</strong>r era o F<strong>um</strong>aça, e The Funk Brothers, li<strong>de</strong>rado pelo<br />
Queen, que dançavam nos bailes da Dizi Som, no Núcleo Ban<strong>de</strong>irante.<br />
Ele fazia questão <strong>de</strong> me apresentar a todos que consi<strong>de</strong>rasse<br />
importantes para eu fi car conhecido na cena.<br />
Uma das últimas apresentações <strong>de</strong> break <strong>de</strong> que participei<br />
junto com os Magrellos foi <strong>um</strong> concurso <strong>de</strong> dança promovido<br />
pela Dizi Som. Ensaiamos muito, mas o break já não tinha força<br />
e os grupos <strong>de</strong> dança faziam coreografi as <strong>de</strong> funk e passinhos.<br />
O The Funk Brothers ganhou, evoluindo em cima da música <strong>de</strong><br />
maior sucesso nos bailes da Dizi Som na época, a “Smurf Rock”,<br />
do cantor Gigolo Tony. Durante a apresentação, a energia elétrica<br />
do salão caiu e eles dançaram só com o som dos passos no<br />
palco e das palmas do público. No fi nal, a galera aplaudiu muito.<br />
Foi merecido mesmo.<br />
Para mim, esse concurso foi importante. Não só porque foi minha<br />
última apresentação dançando break em <strong>um</strong> palco, mas também<br />
porque produzi especialmente a música para a gente dançar.<br />
Essa base foi a primeira música que eu realmente fi z. Não foi<br />
remix nem montagem com músicas internacionais. Eu já tinha<br />
<strong>um</strong>a bateria eletrônica pequena da Korg DDM-110, <strong>um</strong> teclado<br />
sampler pequeno da Casio SK1 (que sampleava 1.4 segundos em<br />
8 bits na freqüência <strong>de</strong> 9.38 kHz, através <strong>de</strong> <strong>um</strong> microfone embu-<br />
72
A primeira música<br />
73<br />
tido), <strong>um</strong> pedal <strong>de</strong> <strong>de</strong>lay da Boss e, claro, dois toca-discos da Gradiente.<br />
Era com isso que eu montava as minhas bases e registrava<br />
em <strong>um</strong> gravador <strong>de</strong> rolo. Às vezes, fazia várias gravações: primeiro<br />
n<strong>um</strong>a cassete, <strong>de</strong>pois passava <strong>de</strong> fi ta e tocava mais alg<strong>um</strong>as coisas<br />
por cima para o gravador <strong>de</strong> rolo. E assim sucessivamente. Era<br />
bem caseiro e rústico mesmo. Eu fi cava experimentando coisas<br />
novas em casa. Inventando sons.<br />
Conheci nesse período dois b-boys. O João Cláudio, que virou<br />
DJ profi ssional, tocou em casas noturnas e <strong>de</strong>pois foi trabalhar<br />
como sonoplasta e operador na Radiobrás. E o Walter, <strong>um</strong> afi -<br />
cionado por música eletrônica e por eletrônica mesmo.<br />
No primeiro encontro, João Cláudio me disse:<br />
— Raffa, queria trocar informações com você. Queria aperfeiçoar<br />
uns passos <strong>de</strong> break no chão e apren<strong>de</strong>r a mixar em tocadiscos<br />
também.<br />
— Tudo bem – respondi. – Po<strong>de</strong>mos marcar aqui em casa alguns<br />
dias por semana.<br />
— Eu tenho alg<strong>um</strong>as músicas exclusivas. Também po<strong>de</strong>mos<br />
trocar músicas – disse ele.<br />
— A gente treina break aqui <strong>de</strong>baixo do bloco e, <strong>de</strong>pois, mixagem<br />
lá em casa.<br />
— Tudo bem. Combinado, Raffa!<br />
Pouco tempo <strong>de</strong>pois, nós formamos a equipe <strong>de</strong> som Enigma.<br />
Fazíamos festas <strong>de</strong> 15 anos, <strong>de</strong>sfi les em escolas etc. O dinheiro<br />
só dava para comer <strong>um</strong> sanduíche, mas nos divertíamos muito.<br />
Por incrível que pareça, foi assim que alg<strong>um</strong>as montagens e remixes<br />
meus começaram a fazer sucesso em programas <strong>de</strong> rádio.<br />
Uma montagem em especial chamou a atenção. Era “Holiday”, da<br />
Madonna, misturada com a capela da versão <strong>de</strong> rap da mesma<br />
música, produzida pela dupla européia MC Miker G e DJ Sven.
74 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Essas montagens foram parar na mão do DJ Eugênio, na antiga<br />
Manchete FM <strong>de</strong> Brasília. Trocamos os remixes por uns discos<br />
promocionais que precisávamos para tocar nas festas, principalmente<br />
versões exclusivas <strong>de</strong> rock nacional. Era esse ritmo<br />
que <strong>de</strong>spontava do Cerrado e, como todos sabem, <strong>de</strong> lá saíram<br />
as principais bandas <strong>de</strong> rock brasileiras. Aliás, inspirados no<br />
nome “Rock Nacional” tivemos a idéia <strong>de</strong> chamar o rap brasileiro<br />
<strong>de</strong> “Rap Nacional”.<br />
Fiquei amigo do Eugênio, que também fez o meu nome como DJ e<br />
produtor, divulgando meus trabalhos, em especial minhas montagens,<br />
nos programas <strong>de</strong>le e nas rádios que coor<strong>de</strong>nava. Lembro<br />
<strong>de</strong> ter feito <strong>um</strong>a remix <strong>de</strong> “Tempo perdido”, do Legião Urbana, em<br />
que pus <strong>um</strong> <strong>de</strong>lay na voz do Renato Russo. Alg<strong>um</strong> tempo <strong>de</strong>pois,<br />
o João Cláudio teve a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrevistá-lo e mostrou a<br />
versão remix. Para a minha surpresa, o Renato Russo gostou da<br />
versão e comentou que achava interessante o <strong>de</strong>lay na voz <strong>de</strong>le.<br />
Naqueles anos, até as maiores equipes <strong>de</strong> som das periferias<br />
tinham que ter <strong>um</strong>a sessão <strong>de</strong> rock nacional nos bailes.<br />
Foi o Freire, dos Magrellos, quem fez a ponte para que o DJ Elívio<br />
Blower conhecesse o meu trabalho como DJ. Até então, ele<br />
só me vira dançando break.<br />
Na época, o Elívio tinha o programa Dance com a gente, na Rádio<br />
Globo FM, que passava aos domingos e tocava <strong>um</strong>a mistura <strong>de</strong><br />
charme (bem ao estilo do Só Mix, produzido na Rádio Globo do Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro e que rolava todos os dias à <strong>um</strong>a da tar<strong>de</strong>), rap, funk eletrônico<br />
e balanço. O programa tinha <strong>um</strong>a audiência muito gran<strong>de</strong>.<br />
O Dance com a gente e o Mix Mania, do DJ Celsão – que ia ao ar<br />
na 105 FM aos sábados, à <strong>um</strong>a da tar<strong>de</strong> – eram os únicos que<br />
tocavam rap no Cerrado. No Mix Mania só tocava rap, miami bass<br />
e charme, claro!<br />
Elívio resolveu homenagear os DJs <strong>de</strong> equipes <strong>de</strong> som, <strong>de</strong> danceterias<br />
e da periferia, convidando <strong>um</strong> DJ diferente, a cada domingo,<br />
para mixar <strong>um</strong> bloco no programa <strong>de</strong>le. Ele já fazia bailes na peri-
76 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
feria e isso impulsionou mais a carreira <strong>de</strong>le. Uns DJs mixavam<br />
ao vivo; outros traziam em fi ta o bloco pronto. Elívio me convidou<br />
para participar e eu resolvi fazer em casa mesmo. E o chamei para<br />
fazer o bloco comigo.<br />
Quando ele chegou, fi cou impressionado com os equipamentos<br />
que eu já tinha e, além do bloco, começou a fazer montagens para<br />
o Dance com a gente. Foi o início da minha carreira como DJ reconhecido<br />
em rádio pelo público, porque em quase todo programa o<br />
Elívio falava o meu nome e tocava <strong>um</strong>a montagem que fazíamos.<br />
Foi através do Elivio que conheci o DJ Roberto, dono <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
vasta coleção <strong>de</strong> vinis. Muito electro, break, hip-hop e rap, principalmente<br />
discos do Run DMC. Fizemos amiza<strong>de</strong> e logo <strong>de</strong>pois, o<br />
programa Dance com a gente passou a ser feito com ajuda minha<br />
e do Roberto.<br />
Em <strong>um</strong> fi nal <strong>de</strong> semana, Elívio teve que viajar e <strong>de</strong>ixou o programa<br />
sob responsabilida<strong>de</strong> minha e do Roberto. Gravamos tudo na casa<br />
do Roberto e fi cou <strong>de</strong>cidido que ele iria à rádio no domingo. Um<br />
outro locutor estava escalado para substituir o Elívio, mas como<br />
o programa estava todo gravado na fi ta não teríamos problema.<br />
Engano nosso! Para que o tape <strong>de</strong>ck armasse, era preciso mudar<br />
<strong>um</strong>a chave antes <strong>de</strong> colocar a fi ta. A gente não sabia e o Elívio<br />
esqueceu <strong>de</strong> nos avisar. Eu estava em casa, tranqüilo, quando o<br />
telefone tocou. Era o Roberto, <strong>de</strong>sesperado.<br />
— Raffa, me ajuda! O tape está com problemas! Não quer armar!<br />
— O que está acontecendo, Roberto?<br />
— Liga a rádio e sintoniza no programa – respon<strong>de</strong>u.<br />
Fui correndo ligar o rádio. A música estava tocando <strong>de</strong> <strong>um</strong>a forma<br />
esquisita. Às vezes, <strong>de</strong>vagar; às vezes, mais rápida. Era como se a<br />
fi ta estivesse estragada.<br />
— O que é isso, Roberto?
A primeira música<br />
77<br />
— Raffa, tô com o <strong>de</strong>do no play do <strong>de</strong>ck, sem tirar porque o tape<br />
não quer armar.<br />
Eu comecei a rir sem parar. Roberto fi cou com o <strong>de</strong>do no play o<br />
programa inteiro: <strong>um</strong>a hora. Esse episódio foi muito engraçado.<br />
O único problema é que, no outro dia, o Elívio soube do fato através<br />
do chefe <strong>de</strong>le e fi cou chateado, porque resolveram tirar o programa<br />
do ar. Ele brigou com o cara e acabou sendo <strong>de</strong>mitido. Mas<br />
ele não se abalou, pois já queria sair <strong>de</strong> lá há alg<strong>um</strong> tempo.<br />
Depois da <strong>de</strong>missão, o Elívio começou a me levar para bailes na<br />
periferia, on<strong>de</strong> ele tocava. Conheci pessoalmente o DJ Celsão<br />
em <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses bailes e vários outros DJs que promoviam festas<br />
em salões comunitários, ginásios, escolas públicas e clubes. Às<br />
vezes, o Freire ia junto com a gente. Tinha noites em que o Elívio<br />
trabalhava em até três bailes.<br />
Ele me apresentou ao Toninho Pop, que é <strong>um</strong>a pessoa especial.<br />
Começou carregando caixas <strong>de</strong> som, <strong>de</strong>pois virou DJ e locutor<br />
na antiga rádio Jornal <strong>de</strong> Brasília. Também fez carreira como<br />
coor<strong>de</strong>nador e diretor <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as emissoras on<strong>de</strong> trabalhou.<br />
Anos <strong>de</strong>pois, concorreu para <strong>de</strong>putado distrital duas vezes. Infelizmente,<br />
não conseguiu ser eleito, apesar <strong>de</strong> toda a sua popularida<strong>de</strong>.<br />
No seu horário, era lí<strong>de</strong>r absoluto no Ibope. Atualmente<br />
dirige duas rádios no DF, a JK 102.7 FM e a Mix 88.3 FM. Toninho é<br />
o tipo <strong>de</strong> pessoa <strong>de</strong> quem todos gostam. Fácil <strong>de</strong> se lidar e sempre<br />
muito alegre, gentil e atencioso. Foi fundamental na minha<br />
carreira também, tocando sempre produções minhas e colocando<br />
músicas do meu grupo na programação ofi cial da rádio. Assim, se<br />
completou <strong>um</strong> ciclo e começou outro na minha vida.
78<br />
CAPÍTULO 09:<br />
Os Irmãos
O que era o grupo Irmãos Brothers? Cinco DJs, amigos <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />
fazendo música e cantando rap. Elívio, Toninho, Roberto,<br />
Celsão e eu.<br />
A idéia surgiu do Toninho Pop. E a maioria das letras era <strong>de</strong>le<br />
também. Na verda<strong>de</strong> o tipo <strong>de</strong> música que a gente fazia era<br />
<strong>de</strong>scontraída, não tinha compromisso nenh<strong>um</strong> além <strong>de</strong> divertir,<br />
entreter o público e os ouvintes dos programas <strong>de</strong> rádio <strong>de</strong><br />
cada <strong>um</strong>. As produções sempre eram inspiradas em <strong>um</strong> grupo<br />
ou <strong>um</strong>a música. Alg<strong>um</strong>as gravações eram feitas no apê dos<br />
meus pais e outras no do Toninho. Era muito engraçado. Toninho<br />
fi cava no banheiro esperando ouvir a música para gravar. Às<br />
vezes, ele gravava <strong>de</strong>ntro do armário. N<strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssas gravações<br />
no banheiro...<br />
— Toninho, quando eu gritar “gravando”, você canta – gritava o<br />
Elívio, do quarto para o banheiro, que fi cava longe.<br />
A música começava e o Toninho nada <strong>de</strong> cantar. Aí, ele perguntava:<br />
— Tá na hora <strong>de</strong> gravar?<br />
— Já passou quase a música inteira e nada, Toninho! Assim não<br />
dá! A gente vai sair daqui só amanhã – falava o Elívio, que se<br />
irritava muito fácil.<br />
— Muita calma nessa hora, meu querido! – dizia Toninho, sempre<br />
tranqüilo.<br />
80
Os Irmãos Brothers<br />
81<br />
Era <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> diversão gravar com eles. E tudo <strong>de</strong> forma caseira.<br />
Toninho e Celsão eram os principais vocalistas, Elívio programava<br />
as baterias e eu fazia alguns arranjos com sampler, junto com o<br />
Roberto. Tudo era novida<strong>de</strong> para mim.<br />
A primeira música <strong>de</strong> sucesso dos Irmãos Brothers foi “Fofi nha”,<br />
inspirada na batida <strong>de</strong> “O que”, dos Titãs. Por incrível que pareça,<br />
a música estourou! Tocava principalmente no programa do Toninho<br />
Pop. Daí, passou a tocar nas equipes <strong>de</strong> som das periferias<br />
e começamos então a fazer pequenas apresentações. Tudo era<br />
pré-gravado em <strong>um</strong> gravador <strong>de</strong> rolo, e Roberto e eu fazíamos<br />
alguns samplers ao vivo. Todos os vocais também eram ao vivo.<br />
A apresentação <strong>de</strong> estréia dos Irmãos Brothers aconteceu no<br />
primeiro Encontro <strong>de</strong> Hip-hop que o Elívio organizou na danceteria<br />
Le Club, que não existe mais e fi cava no Gilbertinho, em<br />
Brasília. O DJ Nino levou a mesa e os microfones para o Encontro.<br />
Lá rolou também a primeira apresentação dos Magrellos,<br />
Freire e Rossi, cantando; além da do Jamaika e seu irmão Rivas.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, eles formariam o BSB Boys, junto com outro cantor<br />
chamado Kalako. O BSB Boys era da Ceilândia e fez história no<br />
rap do Cerrado. Teve ainda o MC Batata, amigo do Leandro, que<br />
cantou a música “Parem”, <strong>de</strong> que falarei mais <strong>de</strong>pois. Por último,<br />
para encerrar a noite, os Irmãos Brothers.<br />
Nos meses seguintes, fi zemos alguns shows pelo DF. Os maiores<br />
foram no Clube Primavera, <strong>de</strong> Taguatinga, e no Salão Comunitário<br />
do Núcleo Ban<strong>de</strong>irante, com a Dizi Som.<br />
Começamos a gravar no estúdio Audio Fi<strong>de</strong>lity, do Marcelo Goe<strong>de</strong>rt,<br />
então locutor da rádio Transamérica, que havia trabalhado<br />
como DJ junto com o Elívio, na danceteria do Clube da Asca<strong>de</strong>.<br />
Ele montou <strong>um</strong> dos primeiros estúdios para comerciais e jingles<br />
<strong>de</strong> Brasília, no Edifício Brasília Rádio Center, no Setor <strong>de</strong> Rádio<br />
e TV Norte, perto do Centro da cida<strong>de</strong>.<br />
Nossas novas músicas eram “Japona”, inspirada no sucesso do<br />
Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros “Kátia Flávia”, e “Eu não<br />
vou obe<strong>de</strong>cer”, escrita pelo Celsão. Essa música tinha <strong>um</strong> toque
82 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
meio Run DMC, 1 que era o estilo mais tocado na época: batidas<br />
com guitarras pesadas. “Fofi nha” ganhou roupagem nova com<br />
baixo, guitarra e teclados, sob o comando <strong>de</strong> músicos profi ssionais,<br />
pois havia <strong>um</strong>a proposta <strong>de</strong> entrada em <strong>um</strong> disco compacto,<br />
da antiga gravadora Continental. Acabou não dando certo.<br />
A música dos Irmãos Brothers que realmente viria a fazer<br />
sucesso não era <strong>um</strong>a letra do Toninho nem do Celsão, e sim do<br />
Jamaika. Ela se chamava “Rap do piolho”. Elívio criou a batida,<br />
eu fi z a programação eletrônica junto com ele, Toninho gravou a<br />
voz, Jamaika fez <strong>um</strong>a participação especial como a voz do piolho<br />
e Roberto colocou <strong>um</strong> beatbox no fi nal. Tudo foi gravado no<br />
estúdio da rádio Jornal <strong>de</strong> Brasília. O refrão virou <strong>um</strong> fenômeno<br />
tão gran<strong>de</strong> que bastava você gritar no microfone “E o que é que<br />
tá na cabeça?”, em cima <strong>de</strong> qualquer base ou música, em qualquer<br />
lugar do DF, que a galera respondia na hora: “É o rap do piolho!”.<br />
Foi realmente incrível! Teve até <strong>um</strong> grupo que, anos <strong>de</strong>pois,<br />
lançou “O retorno do piolho”, tentando repetir o sucesso.<br />
A gente ainda fez mais <strong>um</strong>a música <strong>de</strong>pois do “Rap do piolho”,<br />
que se chamava “Beth”. Lamentavelmente, tenho que admitir que<br />
ela era muito ruim, tanto na letra como na base.<br />
Devido ao <strong>de</strong>sgaste e aos compromissos <strong>de</strong> cada <strong>um</strong>, os Irmãos<br />
Brothers chegaram ao fi m. Para mim, foi <strong>um</strong>a experiência muito boa,<br />
porque conheci vários lugares e pessoas e fi z gran<strong>de</strong>s amiza<strong>de</strong>s.<br />
Quero <strong>de</strong>ixar bem claro que no início do rap nacional, os letristas e<br />
MCs não tinham ainda a visão política, social e <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia do hiphop<br />
<strong>de</strong> hoje. Todos éramos muito jovens e a falta <strong>de</strong> informação,<br />
gran<strong>de</strong>. A preocupação era <strong>de</strong> fazer as pessoas dançarem e não<br />
pensarem nos problemas do dia-a-dia. Com o passar dos anos,<br />
o rap nacional evoluiu em todos os seus aspectos. Amadureceu<br />
muito a visão sobre a favela e a periferia, a auto-estima e a discus-<br />
1 Grupo <strong>de</strong> rap americano conhecido por mesclar ao rap guitarras elétricas típicas<br />
do rock.
Os Irmãos Brothers<br />
83<br />
são <strong>de</strong> temas como racismo, polícia corrupta e violência doméstica<br />
– esta última, após a ascensão das mulheres no movimento.<br />
Para se chegar à concepção que o verda<strong>de</strong>iro hip-hop tem nos<br />
dias atuais, passamos por caminhos difíceis. Caminhos <strong>de</strong><br />
acertos e <strong>de</strong> erros. Aqueles que começam a se i<strong>de</strong>ntifi car com<br />
o movimento hip-hop, sabendo que ele já existe pelo menos há<br />
três décadas, não po<strong>de</strong>m julgar os erros cometidos pelos seus<br />
precursores. Devem respeitar a coragem e as conquistas <strong>de</strong>les.<br />
Afi nal, foi a primeira geração que abriu as portas, quando ainda<br />
não existia referência do movimento.<br />
Acredito que, nos últimos 17 anos, o rap nacional foi responsável<br />
pelo a<strong>um</strong>ento da auto-estima dos jovens da periferia, que antes<br />
saíam <strong>de</strong> casa com a cabeça baixa por terem vergonha do lugar<br />
on<strong>de</strong> moravam e andavam. Isso mudou. Agora todos têm orgulho,<br />
andam <strong>de</strong> cabeça erguida, e muitos contribuem com a melhoria<br />
<strong>de</strong> sua comunida<strong>de</strong>. Esse é o papel fundamental do hip-hop<br />
consciente: lutar para que as pessoas <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s carentes,<br />
sem distinção <strong>de</strong> sexo, raça ou religião, tenham <strong>um</strong>a vida melhor.
A música<br />
84<br />
CAPÍTULO 10:
Ao mesmo tempo em que eu estava no grupo Irmãos Brothers,<br />
<strong>de</strong>senvolvia dois trabalhos paralelos. O primeiro foi com o Freire<br />
e o Rossi. Fizemos a música “Contínuo”, porque eles trabalhavam<br />
como offi ce-boys. Essa era a primeira música <strong>de</strong>les, e era<br />
engraçadíssima. Nunca tocou em lugar alg<strong>um</strong>, mas serviu como<br />
<strong>um</strong>a primeira experiência.<br />
Surpresa mesmo aconteceu quando Leandro e eu fi zemos <strong>um</strong>a<br />
música do MC Batata. “Parem” foi a primeira música <strong>de</strong> protesto,<br />
com conteúdo, do rap nacional. O ano era 1987 e a letra<br />
pedia para a paz e o amor prevalecerem sobre a guerra. Era <strong>um</strong>a<br />
música politizada e infl uenciou outros grupos do DF a escreverem<br />
letras políticas nos anos seguintes. O que era bastante<br />
lógico, pois Brasília é <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> que respira política.<br />
Essa música me <strong>de</strong>u muito orgulho, porque foi o primeiro trabalhou<br />
meu e do Leandro que tocou no programa Mix Mania, do<br />
Celsão, junto com os sucessos internacionais que ele tocava. E<br />
era <strong>um</strong> trabalho totalmente caseiro. Com idéias só nossas e sem<br />
“padrinhos” para ajudar. Celsão começou a tocar porque gostava<br />
mesmo. O DJ Nino também tocava nos bailes da Dizi Som.<br />
“Parem” foi <strong>um</strong> trabalho conjunto. Leandro era fã das produções<br />
do DJ e produtor americano Mantronix. Inspirado nesse cara, o<br />
Leandro adquiriu <strong>um</strong> estilo <strong>de</strong> dobrar os chimbais das batidas<br />
inédito no Brasil. Além disso, ele editava muito bem as bases.<br />
86
A música Parem<br />
87<br />
A bateria eletrônica Boss do Leandro não suportava o compasso<br />
1/32, necessário ao estilo que ele queria imprimir em suas produções.<br />
Então, ele teve a idéia <strong>de</strong> dobrar as batidas no BPM<br />
(batidas por minuto), para conseguir esse tipo <strong>de</strong> programação.<br />
Ou seja: <strong>um</strong> beat que era 4/4 e tinha 86 BPM, ele programava<br />
com 172 BPM em 8/4. Assim, ele tinha espaço sufi ciente nos<br />
compassos para as dobradas <strong>de</strong> chimbais <strong>de</strong> que necessitava.<br />
Fazer bases com os chimbais dobrados em 1/32 também foi <strong>um</strong>a<br />
das marcas registradas nas minhas produções por alguns anos.<br />
Interessante é que dividimos tudo nessa música. Os arranjos,<br />
samples e scratchs. Tudo foi feito em casa, em fi tas-cassete e<br />
gravadores <strong>de</strong> rolo.<br />
Naquele ano eu comecei a ir muito a bailes com o Elívio. Eu tinha<br />
<strong>um</strong> gran<strong>de</strong> interesse em conhecer mais lugares <strong>de</strong> periferias.<br />
Ao mesmo tempo, a minha amiza<strong>de</strong> com o Freire crescia. Eu freqüentava<br />
muito quatro cida<strong>de</strong>s-satélites: Guará, Paranoá – que<br />
ainda era <strong>um</strong>a favela -, Ceilândia e Núcleo Ban<strong>de</strong>irante, on<strong>de</strong> o<br />
Freire morava. Eu percebi que as minhas verda<strong>de</strong>iras amiza<strong>de</strong>s<br />
estavam na periferia e não em Brasília, no Plano Piloto. Fora, é<br />
claro, alg<strong>um</strong>as exceções como amigos <strong>de</strong> infância dos tempos<br />
do break, e os DJs que eu tinha conhecido. Defi nitivamente,<br />
porém, o Plano Piloto não era mais o meu mundo. A simplicida<strong>de</strong><br />
do convívio na periferia era o que me atraía.<br />
Cada baile a que eu ia com o Elívio representava <strong>um</strong>a experiência<br />
nova. Alguns lugares que freqüentávamos eram realmente muito<br />
perigosos. Porém, sempre éramos respeitados e foi assim que eu<br />
comecei a ter <strong>um</strong> nome e respeito no meio dos bailes da periferia.<br />
Comecei a freqüentar lugares como o Quarentão, 1 na Ceilândia,<br />
por conta própria; sem ir como amigo <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> DJ que fosse<br />
convidado a tocar ou como DJ, em cima do palco. Ia no meio<br />
do público, da galera mesmo. Às vezes, o Freire e o Rossi iam<br />
comigo e assim eu comecei a conhecer mais pessoas do meio.<br />
1 Anos <strong>de</strong>pois, o Quarentão daria lugar a <strong>um</strong> “restaurante <strong>de</strong> <strong>um</strong> real”.
88 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Havia noites em que aconteciam brigas e tiros <strong>de</strong>ntro dos salões.<br />
A gente saía correndo e se escondia atrás das caixas <strong>de</strong> som.<br />
Se a segurança é falha até hoje, você po<strong>de</strong> imaginar naquela<br />
época. Alg<strong>um</strong>as vezes, os próprios seguranças <strong>de</strong>ixavam entrar<br />
armas; havia mulheres, que não eram totalmente revistadas,<br />
que levavam também. Em toda a minha vida no hip-hop, freqüentando<br />
os mais diversos lugares do Brasil e bailes em que<br />
os tiros tomavam <strong>de</strong> conta as festas, eu sempre saí ileso. Deus<br />
sempre esteve comigo nessas horas, como está comigo em<br />
todos os meus dias. Tenho orgulho <strong>de</strong> dizer que hoje em dia eu<br />
vou a qualquer lugar sem medo e, pelo conceito que adquiri, sou<br />
respeitado aon<strong>de</strong> quer que eu vá. O discurso consciente do rap<br />
nacional ajudou muito a diminuir a violência nos bailes. Mas<br />
competir com as drogas ainda é o maior <strong>de</strong>safi o para quem quer<br />
<strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong> em paz.<br />
Por anos, a periferia era vista pela socieda<strong>de</strong> como <strong>um</strong> lugar<br />
sujo, perigoso e violento, em que as pessoas não tinham educação,<br />
nem existia lazer e cultura. Isso é <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> mentira! A<br />
sujeira da periferia é fruto da péssima urbanização. E a culpa é<br />
<strong>de</strong> alguns governantes, que simplesmente obrigam as pessoas<br />
em ocupações irregulares a se <strong>de</strong>slocarem para lugares sem<br />
<strong>um</strong>a infra-estrutura mínima para moradia. Essas famílias fi cam<br />
alojadas <strong>de</strong> qualquer jeito. Os politicos só se interessam por<br />
esses lugares na hora das eleições.<br />
— Se eu for eleito, vou asfaltar essa cida<strong>de</strong> – prometem.<br />
Aí quatro anos <strong>de</strong>pois eles voltam.<br />
— Se eu ganhar as eleições, vou colocar esgoto e saneamento<br />
básico – repetem o discurso.<br />
Assim se passam oito, 12 anos até que as pessoas consigam<br />
morar com <strong>um</strong> pouco mais <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong>. Não se po<strong>de</strong> dizer que<br />
a situação precária das periferias brasileiras seja resultado da<br />
ignorância do povo, porque a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se ter <strong>um</strong> lugar<br />
para viver é, na maioria das vezes, muito maior do que o orgulho
A música Parem<br />
89<br />
e a própria dignida<strong>de</strong>. Todas as famílias que eu conheci eram<br />
muito educadas e as comunida<strong>de</strong>s sempre organizavam lazer e<br />
cultura para todos, apesar da falta <strong>de</strong> dinheiro. Os salões comunitários,<br />
on<strong>de</strong> aconteciam as festas <strong>de</strong> hip-hop, eram espaços<br />
<strong>de</strong> lazer e cultura para os jovens. O preconceito da própria<br />
comunida<strong>de</strong>, a falta <strong>de</strong> estrutura dos lugares e <strong>de</strong> organização<br />
das equipes <strong>de</strong> som e dos promotores <strong>de</strong> eventos, o <strong>de</strong>spreparo<br />
dos seguranças e o abuso <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns policiais<br />
resultaram em momentos <strong>de</strong> violência, que provocaram o fi m<br />
<strong>de</strong>ssas festas. Infelizmente, muitos pagam pelos erros <strong>de</strong> poucos.<br />
Os bailes nas periferias diminuíram muito e, em alguns<br />
lugares, <strong>de</strong>sapareceram por causa <strong>de</strong>sses erros. Graças a Deus,<br />
os promotores <strong>de</strong> eventos e as equipes <strong>de</strong> som que sobreviveram<br />
a esse período se profi ssionalizaram e hoje, conseguem<br />
fazer eventos com ótima qualida<strong>de</strong> e segurança.
90<br />
CAPÍTULO 11:
Quando eu tinha mais <strong>de</strong> 18 anos, comecei a sentir a obrigação<br />
<strong>de</strong> conseguir <strong>um</strong> trabalho fi xo, para conquistar a minha in<strong>de</strong>pendência.<br />
Pedi para o meu pai me emancipar antes <strong>de</strong> eu completar<br />
21 anos. Claro que tudo isso nasceu <strong>de</strong>pois que tivemos<br />
<strong>um</strong>a discussão muito séria sobre responsabilida<strong>de</strong>. Naquele<br />
dia saí <strong>de</strong> casa e fui direto à rádio Jornal <strong>de</strong> Brasília pedir <strong>um</strong><br />
emprego <strong>de</strong> sonoplasta ao DJ Juninho, que era o operador principal<br />
da rádio. Em seguida liguei para o Elívio. Dias <strong>de</strong>pois, ele<br />
me conseguiu <strong>um</strong> emprego <strong>de</strong> técnico <strong>de</strong> estúdio no Estúdio<br />
Sete, que fi cava no Edifício Planalto, Setor <strong>de</strong> Rádio e TV Sul, no<br />
Plano Piloto. Por coincidência, a 105 FM fi cava no último andar<br />
<strong>de</strong>sse prédio e eu me encontrava direto com o Celsão.<br />
O estúdio se <strong>de</strong>dicava a gravações <strong>de</strong> comerciais para rádio e<br />
TV, jingles e doc<strong>um</strong>entários. Para mim, que já tocava como DJ,<br />
mas não tinha muita noção <strong>de</strong> gravação e mixagem, apenas a<br />
experiência caseira, esse emprego era <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>.<br />
Era <strong>um</strong> sonho realizado. O dono do estúdio, Antônio Lúcio,<br />
foi muito importante nessa fase da minha vida. Ele era locutor<br />
profi ssional e já tinha sido apresentador do telejornal local da<br />
Re<strong>de</strong> Globo. Antônio Lúcio acabou virando <strong>um</strong> verda<strong>de</strong>iro amigo<br />
e incentivador do meu trabalho. Ele foi fundamental na minha<br />
evolução como produtor e técnico, porque permitia que eu trabalhasse<br />
à vonta<strong>de</strong> no estúdio na hora do almoço e nos fi nais <strong>de</strong><br />
semana. E era assim, nas horas vagas, que eu me familiarizava<br />
92
O primeiro emprego<br />
93<br />
cada vez mais com os equipamentos e com as edições em fi tarolo,<br />
ferramenta importante e fundamental naquele tempo para<br />
se fazer remixes.<br />
Muitas vezes, o Renato Vasconcelos, músico importantíssimo<br />
<strong>de</strong> Brasília, era contratado pelo estúdio para fazer trilhas e jingles.<br />
Na hora do almoço, eu usava os teclados <strong>de</strong>le, que tinha<br />
timbres a que eu não tinha acesso, para incrementar minhas<br />
primeiras produções para os Magrellos. Foi assim que eu fi z o<br />
meu primeiro jingle <strong>de</strong> rap. Antônio Lúcio me falara que o Colégio<br />
Objetivo queria <strong>um</strong> jingle no estilo rap, e me <strong>de</strong>ra carta branca.<br />
Eu então acionei o Freire, que escreveu a letra e acionou o Rossi,<br />
o Tubarão e o Marcão para rimarem – esse trabalho reuniu a formação<br />
inicial dos Magrellos como grupo <strong>de</strong> rap. Em <strong>um</strong> fi nal <strong>de</strong><br />
semana gravamos tudo. Foi a primeira vez que o Marcão rimou.<br />
Logo percebi o talento <strong>de</strong>le, mas ainda não imaginava que ele se<br />
tornaria <strong>um</strong> dos maiores rimadores do Brasil e que iria inspirar<br />
várias gerações. O jingle foi aprovado pelo Antônio Lúcio e também<br />
pelo Objetivo, que o divulgou em alg<strong>um</strong>as rádios.<br />
Comecei então a fazer experiências nos fi nais <strong>de</strong> semana.<br />
Às vezes, à noite; outras, na hora do almoço. Eu convencera Antônio<br />
Lúcio a comprar <strong>um</strong> módulo <strong>de</strong> efeitos SPX 90 da Yamaha, a<br />
novida<strong>de</strong> do momento. Indicação do Marconi, <strong>um</strong> dos donos da<br />
maior aparelhagem <strong>de</strong> som para gran<strong>de</strong>s shows até hoje. Descobri<br />
que o SPX 90 tinha <strong>um</strong> pequeno tempo <strong>de</strong> sampler, mas<br />
era <strong>de</strong> ótima qualida<strong>de</strong>. Eu o sincronizava via MIDI 1 com os meus<br />
equipamentos e, assim, conseguia melhorar muito a qualida<strong>de</strong><br />
das minhas bases. Foi nesse estúdio, em 1988, que nasceu a<br />
primeira música ofi cial dos Magrellos, “Ah não, bicho!”.<br />
O Freire usava muito essa expressão quando algo dava errado<br />
na vida <strong>de</strong>le. Por isso, eu sugeri a ele que escrevesse <strong>um</strong>a<br />
letra falando sobre <strong>um</strong> cara que tinha azar em tudo que fazia.<br />
A música teve diversas versões até chegar à do futuro disco.<br />
1 Interface digital para instr<strong>um</strong>entos musicais.
94 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Quando a primeira versão fi cou pronta, levei para o Celsão e<br />
para o Nino tocarem no Mix Mania e nos bailes da Dizi no Bambam.<br />
O resultado <strong>de</strong>ssa música foi algo inesperado, apesar da<br />
rima inocente:<br />
Ah não, bicho! Não consigo enten<strong>de</strong>r!<br />
Por que logo comigo isso foi acontecer?<br />
Um dia Celsão <strong>de</strong>sceu da rádio e me encontrou no estúdio. Ele<br />
estava com <strong>um</strong>a caixa <strong>de</strong> sapatos nas mãos e disse:<br />
— Raffa, essa caixa é pra você!<br />
— Você tá me dando <strong>um</strong>a caixa <strong>de</strong> sapato <strong>de</strong> presente, Celsão!<br />
Por quê? – falei rindo.<br />
— Abre a caixa, Raffa!<br />
Ao abrir a caixa encontrei, pelo menos 100 cartas.<br />
— O que signifi ca isso, Celsão?<br />
— Cara, isso são cartas <strong>de</strong> ouvintes da 105 FM, mas especifi camente<br />
do meu programa, pedindo pra tocar a música <strong>de</strong> vocês!<br />
Ao mesmo tempo que fi quei empolgado, me assustei com tudo<br />
aquilo. Eu realmente não esperava tamanho sucesso. Celsão,<br />
antes <strong>de</strong> ir embora, ainda falou:<br />
— Agora é com você, Raffa!<br />
Não sei explicar a minha reação nos minutos seguintes. Imediatamente,<br />
liguei para o Freire:<br />
— Freire, beleza?<br />
— Beleza, Gordo! O que que tá pegando?<br />
— Tem como você reunir o Rossi e o Tubarão, hoje à noite, lá em<br />
casa?<br />
— Tem sim, Gordo! Espera a gente lá. Mas o que é?<br />
— Não posso falar só pra você. De noite eu explico, ok?
96 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Tudo bem! A gente se vê então. Até mais!<br />
— Até mais tar<strong>de</strong>, cara!<br />
Quando mostrei as cartas, eles fi caram <strong>de</strong> cara. 2 Foi nessa reunião<br />
que <strong>de</strong>cidimos levar o rap a sério. Pela primeira vez pensamos<br />
em fazer mais músicas, para gravar, quem sabe, <strong>um</strong> disco<br />
inteiro. Ali começou <strong>um</strong> trabalho que levaria mais <strong>de</strong> <strong>um</strong> ano para<br />
ser concretizado, <strong>de</strong>vido a problemas que se suce<strong>de</strong>ram nessa<br />
jornada. No mesmo dia contamos a novida<strong>de</strong> para o Marcão, que<br />
trabalhava como garçom n<strong>um</strong>a pizzaria no Núcleo Ban<strong>de</strong>irante<br />
que era o nosso ponto <strong>de</strong> encontro para comemorações. Era<br />
para lá que íamos sempre que terminávamos <strong>um</strong>a música nova.<br />
O dono da pizzaria era <strong>um</strong> cara muito legal e, às vezes, patrocinava<br />
a nossa pizza.<br />
Nossa música seguinte a tocar nas rádios e no programa do<br />
Celsão foi “Aie”. Ela foi feita em cima <strong>de</strong> <strong>um</strong> scratch meu e tinha<br />
a batida inspirada em “Principal’s Offi ce”, do rapper norte-americano<br />
Young MC. Todas as nossas músicas tiveram várias versões<br />
até fi carem totalmente prontas. Eu nunca fi cava satisfeito<br />
com o resultado fi nal e modifi cava muitas coisas.<br />
No mesmo ano, o Leandro formou <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap também.<br />
O National Rap era composto pelo Marcelo e Xan<strong>de</strong>, do Cruzeiro,<br />
além do Leandro como DJ. Isso foi muito bom porque os únicos<br />
que produziam rap no DF nessa época éramos eu e ele. Dessa<br />
forma, surgiu <strong>um</strong>a concorrência saudável, principalmente porque<br />
perguntávamos sempre a opinião <strong>um</strong> do outro.<br />
Ainda em 1988 recebi do divulgador Jessé, da antiga gravadora<br />
CBS, 3 <strong>um</strong>a coletânea da equipe <strong>de</strong> som Chic Show – <strong>um</strong>a das<br />
maiores <strong>de</strong> São Paulo –, que reunia diversos artistas <strong>de</strong> rap<br />
nacional. Entre eles estavam talentos promissores, que fariam<br />
bastante sucesso na cena hip-hop pouco tempo <strong>de</strong>pois. Estavam<br />
na coletânea grupos como N <strong>de</strong> Naldinho, Sampa Crew e Os<br />
Metralhas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio o Lino Criss.<br />
2 Chocados, impressionados.<br />
3 Hoje a multinacional Sony.
O primeiro emprego<br />
97<br />
Quando ouvi o disco me <strong>de</strong>u ainda mais vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir<br />
músicas novas. Eu sabia que não estava longe <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong> trabalho<br />
na mesma qualida<strong>de</strong>.<br />
Logo <strong>de</strong>pois, saiu outra coletânea. Desta vez da gravadora Eldorado,<br />
com os grupos Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>, MC Jack, Código 13 e O<br />
Credo. A diferença <strong>de</strong>sse trabalho estava no fato <strong>de</strong> a gravadora<br />
ser nacional e <strong>de</strong> os grupos não estarem vinculados a nenh<strong>um</strong>a<br />
equipe <strong>de</strong> som <strong>de</strong> São Paulo. Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong> fi zeram carreira<br />
e permanecem ativos, embora separados. MC Jack, alguns anos<br />
<strong>de</strong>pois, virou <strong>um</strong> dos melhores DJs do Brasil, ganhando o campeonato<br />
nacional do DMC e fi cando em segundo lugar no mundial.<br />
Do Código 13 vieram o produtor musical Mad Zoo, que continua<br />
no mercado, mas na música eletrônica, e o Douglas, que virou,<br />
na época, empresário do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>, mas se afastou do<br />
hip-hop <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns anos.
Na casa <strong>de</strong><br />
98<br />
CAPÍTULO 12:
O ano era 1989. Um dos anos mais difíceis da minha vida.<br />
Eu saí <strong>de</strong> <strong>um</strong> relacionamento sério <strong>de</strong> dois anos para ingressar<br />
em <strong>um</strong> cheio <strong>de</strong> incertezas. Na verda<strong>de</strong>, eu pensava mais em<br />
minha carreira e não tinha pretensões <strong>de</strong> ter outro relacionamento.<br />
Isso teria conseqüências no meu futuro, porque era<br />
jovem e imaturo.<br />
Viajei com os meus pais para o exterior, porque eles queriam ver<br />
minha irmã Gisele, que morava na Alemanha. Meu pai tinha recebido<br />
<strong>um</strong> convite para se hospedar, por duas semanas, na Casa <strong>de</strong><br />
Brahms, 1 na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ba<strong>de</strong>n Ba<strong>de</strong>n. Brahms sempre foi o compositor<br />
preferido <strong>de</strong> meu pai. O ambiente era muito favorável para<br />
ele, não só porque era inspirador para a composição <strong>de</strong> músicas,<br />
mas porque o lugar oferecia muito material <strong>de</strong> pesquisa. Era o<br />
fi nal do inverno alemão e ainda fazia bastante frio. A casa era<br />
pequena, mas confortável, e fi cava ao pé <strong>de</strong> <strong>um</strong>a montanha.<br />
Antes <strong>de</strong> chegarmos ao nosso <strong>de</strong>stino, passamos em <strong>um</strong>a loja<br />
especializada em instr<strong>um</strong>entos musicais, on<strong>de</strong> meu pai havia<br />
feito encomendas para a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional<br />
<strong>de</strong> Brasília. Para mim, <strong>um</strong> paraíso. Fui direto para a seção<br />
1 Johannes Brahms, famoso compositor alemão <strong>de</strong> música clássica nascido em<br />
1833. A Casa <strong>de</strong> Brahms é a casa em que ele viveu, que foi transformada em museu<br />
e, eventualmente abriga músicos e intelectuais <strong>de</strong> diversos países na área reservada<br />
para hóspe<strong>de</strong>s.<br />
100
Na casa <strong>de</strong> Brahms<br />
101<br />
<strong>de</strong> teclados. Vi <strong>um</strong> Roland D20, lançamento daquele ano, e <strong>um</strong><br />
seqüenciador da Alesis, o MMT8 (gravador MIDI). Eram as ferramentas<br />
<strong>de</strong> que eu precisava para completar os meus equipamentos.<br />
Insisti tanto que meu pai acabou ce<strong>de</strong>ndo e patrocinando<br />
a compra. Pedi para fazer <strong>um</strong> curso intensivo sobre MIDI,<br />
para enten<strong>de</strong>r melhor esse protocolo e conseguir trabalhar com<br />
o teclado e o seqüenciador. Um dos ven<strong>de</strong>dores era produtor<br />
musical e me <strong>de</strong>u essas aulas <strong>de</strong> especialização.<br />
Na Casa <strong>de</strong> Brahms, meu pai fez <strong>um</strong>a composição no teclado e<br />
eu gravei em disquete. Também me ensinou alg<strong>um</strong>as técnicas<br />
para criar os meus próprios timbres, através dos recursos <strong>de</strong><br />
criação que o teclado oferecia. Ele compôs a sua “Décima Quarta<br />
Sinfonia” e, recordo até hoje <strong>de</strong>sse fato curioso, só a terminou<br />
naquele dia porque o papel para partitura tinha acabado. Foram<br />
duas semanas <strong>de</strong> glória e aprendizado. E também <strong>um</strong>a espécie<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida...<br />
Ao voltar ao Brasil, a Alfân<strong>de</strong>ga do Aeroporto Internacional do Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro barrou a entrada do teclado, e me cobrou mil dólares<br />
<strong>de</strong> imposto. Fiquei <strong>de</strong>sesperado e liguei para o meu chefe, Antônio<br />
Lúcio, perguntando se ele po<strong>de</strong>ria me ajudar, já que o teclado<br />
seria muito útil no estúdio. Imediatamente ele arranjou o dinheiro<br />
e eu paguei o imposto. Assim, pu<strong>de</strong> levar o equipamento para<br />
Brasília. Antônio Lúcio era realmente <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> sujeito. Quando<br />
voltei a trabalhar, ele me disse que <strong>de</strong>scontaria todo mês <strong>um</strong>a<br />
porcentagem do meu salário para abater a dívida. Eu não precisaria<br />
pagar tudo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vez. Isso me ajudou muito.<br />
O Estúdio Sete já estava em outro en<strong>de</strong>reço, na Quadra 109<br />
Norte. Agora com estúdios <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o e áudio muito maiores.<br />
Elívio e Roberto eram os DJs resi<strong>de</strong>ntes da discoteca Zoom: a<br />
casa noturna brasiliense <strong>de</strong> maior prestígio na época. Elívio<br />
convidou os Magrellos para tocarem na matinê. Como era <strong>um</strong><br />
espaço para bandas, a gente queria tocar com bateria acústica<br />
ao vivo. Meu amigo Carlinhos Tampinha, que fora b-boy da minha
102 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
Na casa <strong>de</strong> Brahms<br />
103<br />
crew, tocava bateria e nos acompanhou na empreitada. Eu<br />
consegui uns pe<strong>de</strong>stais e microfones do Estúdio Sete, porque<br />
na Zoom não tinha estrutura para bandas. As que lá tocavam<br />
tinham que levar material próprio ou a Zoom tinha que contratar<br />
<strong>um</strong>a sonorização especial. Como era rap, já sabe...se vira aí!<br />
Foi <strong>um</strong> dos primeiros shows do nosso grupo. A galera que freqüentava<br />
a matinê não estava acost<strong>um</strong>ada com <strong>um</strong> som tão<br />
diferente. Se rap nacional já era discriminado, imagine com<br />
bateria acústica! Mas mesmo assim, estavam lá alg<strong>um</strong>as pessoas<br />
e grupos da periferia. Inclusive, revi o Jamaika, que já tinha<br />
formado o BSB Boys.<br />
Tive <strong>um</strong>a pequena discussão com o meu pai na manhã seguinte.<br />
Era eu que, na maioria das vezes, o levava para a UnB e para os<br />
ensaios da orquestra. Ele tinha fi cado chateado, porque o carro<br />
estava cheio <strong>de</strong> equipamentos do show e não pu<strong>de</strong> levá-lo para<br />
<strong>um</strong> ensaio importante do concerto comemorativo dos 200 anos<br />
da Revolução Francesa. Tive preguiça <strong>de</strong> levar os equipamentos<br />
para o estúdio <strong>de</strong>pois do show na noite anterior e perdi a minha<br />
última oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> levá-lo para <strong>um</strong> ensaio.
104<br />
CAPÍTULO 13:
O dia mais triste <strong>de</strong>
27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1989 foi o dia mais triste <strong>de</strong> toda a minha vida.<br />
Eu estava no estúdio trabalhando. Alguém da Orquestra do Teatro<br />
Nacional <strong>de</strong> Brasília me ligou, dizendo que o meu pai tinha passado<br />
mal e fora levado a <strong>um</strong> hospital.<br />
Fui imediatamente para lá, acompanhado do Nelson Carrega,<br />
gran<strong>de</strong> músico que estava fazendo vários trabalhos para o estúdio<br />
comigo.<br />
— Nelson, o que será que tá acontecendo? – perguntei já<br />
chorando.<br />
— Calma, Raffa, vai <strong>de</strong>vagar com esse carro! Senão, a gente<br />
nem chega ao hospital. Vai ver que não é nada.<br />
No Hospital Universitário da L2 Norte, on<strong>de</strong> falaram que ele estava,<br />
ninguém sabia <strong>de</strong> nada. Então, seguimos direto para minha casa.<br />
Quando cheguei, soube da notícia através da minha mãe.<br />
— Mãe, o que aconteceu? Me fala, por favor.<br />
— O seu pai, meu fi lho... Ele faleceu – respon<strong>de</strong>u aos prantos.<br />
– Eu não acredito! – gritei e entrei em <strong>de</strong>sespero. – Vou matar<br />
aquele fi lho da puta que causou a morte do meu pai!<br />
A minha mãe me segurou forte e me abraçou. Ali fi camos por<br />
alguns minutos, juntos em sofrimento.<br />
A primeira pessoa a chegar foi o Elívio. Éramos como irmãos e ele<br />
acompanhava passo a passo os problemas pelos quais a minha<br />
106
O dia mais triste <strong>de</strong> minha vida!<br />
107<br />
família passava. Ele tinha anunciado ao vivo na rádio, a morte do<br />
meu pai, simplesmente <strong>de</strong>ixou outro locutor no lugar <strong>de</strong>le e foi<br />
para minha casa. Chegou chorando muito.<br />
Comecei a lembrar o quanto estava difícil a vida profi ssional<br />
do meu pai. Quase todo dia ele chegava em casa na hora do<br />
almoço, tomava <strong>um</strong> uísque e chorava igual criança. Tudo por<br />
causa da perseguição política e profi ssional do então diretor<br />
da Fundação Cultural do DF. Um músico medíocre e invejoso.<br />
Ainda vivíamos em Brasília resquícios dos tempos da ditadura<br />
militar. O presi<strong>de</strong>nte do Brasil era o José Sarney. Ele nomeava o<br />
governador <strong>de</strong> Brasília, não havia eleição para o governo local.<br />
Lembro que o cargo <strong>de</strong> diretor da Fundação também era indicação<br />
do presi<strong>de</strong>nte, não do governador.<br />
A raiva tomou o lugar da tristeza. Acompanhei <strong>de</strong> perto toda a perseguição<br />
que meu pai sofria nas mãos daquele invejoso. Meu único<br />
consolo era saber que a morte <strong>de</strong>le foi exatamente do jeito que<br />
queria. À frente da orquestra, regendo. Deus foi bom com ele. Soubemos<br />
<strong>de</strong>pois que a causa do óbito foi <strong>um</strong> infarto do miocárdio.<br />
O velório aconteceu no Panteão da Liberda<strong>de</strong> e durou três dias,<br />
porque o Alessandro encontrou difi culda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vir da antiga<br />
União Soviética. Meu irmão estava estudando piano em Moscou<br />
e a companhia aérea russa Aerofl ot não tinha permissão<br />
para <strong>de</strong>sembarcar passageiros no Brasil. Mais resquícios da<br />
ditadura militar. O avião era autorizado apenas a abastecer<br />
em Recife, para seguir para Buenos Aires, na Argentina. De lá,<br />
o Alessandro embarcou em outro avião para o Rio <strong>de</strong> Janeiro e<br />
<strong>de</strong>pois para Brasília. Que volta! Desse jeito, meu irmão levou<br />
quase três dias para chegar a tempo <strong>de</strong> acompanhar o enterro.<br />
Gisele veio direto da Alemanha, on<strong>de</strong> morava e trabalhava. E as<br />
minhas irmãs Sônia e Letícia vieram do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>um</strong> dia<br />
antes do enterro no Campo da Esperança. A minha mãe não saiu<br />
do lado do caixão nesses dias <strong>de</strong> sofrimento.<br />
Todos os meus amigos, principalmente do hip-hop, foram ao<br />
velório e ao enterro. Meu <strong>de</strong>sepero a<strong>um</strong>entou quando fecharam<br />
o caixão. Tive que tomar dois comprimidos para me acalmar.
110 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
As duas semanas seguintes foram muito difíceis. Primeiro, porque<br />
a missa <strong>de</strong> sétimo dia aconteceu no Rio <strong>de</strong> Janeiro e revi<br />
muitos parentes. E segundo, porque a ausência do meu pai me<br />
fazia sofrer muito. Depois <strong>de</strong>sse tempo, Antônio Lúcio precisou<br />
<strong>de</strong> mim no estúdio e ligou perguntando se eu queria voltar a trabalhar.<br />
Eu não queria, mas ele me convenceu.<br />
— Raffa, a melhor forma <strong>de</strong> você continuar a sua vida é lembrar<br />
dos momentos bons que você teve com o seu pai.<br />
— Eu sei, Antônio Lúcio, mas não tá sendo fácil. A dor é gran<strong>de</strong>.<br />
– A vida continua, Raffa. A melhor coisa pra você é continuar a<br />
trabalhar.<br />
Antônio Lúcio tinha razão. Dessa forma, eu me distraía e não pensava<br />
na morte do meu pai. Graças a Deus, não <strong>de</strong>ixei a <strong>de</strong>pressão<br />
tomar conta <strong>de</strong> mim. Meu gran<strong>de</strong> arrependimento é não ter aproveitado<br />
os conhecimentos do meu pai enquanto esteve vivo. Ele<br />
mesmo dizia <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, mas com <strong>um</strong> fundo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>:<br />
— Você só vai sentir a minha falta, fi lho, quando eu morrer!<br />
— Pai, você ainda vai viver muito – respondia sempre.<br />
Na juventu<strong>de</strong>, não enxergamos direito as coisas. Só pensamos<br />
em nós mesmos. Sempre <strong>de</strong>ixamos para <strong>de</strong>pois o que po<strong>de</strong>mos<br />
fazer agora. Eu convivia com <strong>um</strong> gênio e nem me dava conta<br />
disso. Como fui imaturo e burro! Como me fazem falta hoje todos<br />
os conhecimentos que eu po<strong>de</strong>ria ter adquirido e acabaram indo<br />
junto com ele. Mas sinto ainda mais falta é da presença <strong>de</strong>le,<br />
como <strong>um</strong> pai, igual aos <strong>de</strong> todo mundo. Para me dar conselhos e<br />
me ajudar a ser <strong>um</strong> homem <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />
A minha mãe já era <strong>um</strong>a guerreira, mas <strong>de</strong>pois da morte do meu<br />
pai é que começou a ter luz própria. Não que ela já não fosse<br />
competente em sua área, a dança, mas porque ela tinha <strong>de</strong>ixado<br />
a sua vida <strong>de</strong> lado para ser a esposa <strong>de</strong> Claudio Santoro.<br />
E isso era <strong>um</strong> fardo pesado, que toda a família carregou. Sempre<br />
seremos a esposa e os fi lhos <strong>de</strong> Claudio Santoro.
O dia mais triste <strong>de</strong> minha vida!<br />
111<br />
No início <strong>de</strong> minha carreira, isso irritava a mim e a meus companheiros<br />
<strong>de</strong> grupo, porque os jornalistas sempre enfocavam no<br />
“DJ Raffa, fi lho do maestro Claudio Santoro”. Eram manchetes do<br />
tipo “A ovelha negra da família Santoro”. Eu não tinha culpa por<br />
essas reportagens e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong> tempo resolvi relaxar, afi nal,<br />
a memória <strong>de</strong>sse país não existe. Basta o passar <strong>de</strong> alguns anos<br />
para que todo mundo esqueça <strong>de</strong> tudo. Se eu não tocasse no<br />
assunto, ninguém lembrava. Se pediam o meu nome completo,<br />
alguns associavam o sobrenome. Com o tempo, aprendi a usar<br />
meu sobrenome quando era necessário; quando não era, simplesmente<br />
não comentava. Todos do hip-hop que me conhecem,<br />
que são meus amigos, sabem da minha trajetória e têm <strong>um</strong> pouco<br />
<strong>de</strong> cultura geral, sabem <strong>de</strong> quem sou fi lho. Mas isso não me levou<br />
a ter vantagem em nada na vida profi ssional. Sempre lutei muito<br />
para alcançar meus objetivos e conquistar o conceito e o nome<br />
que tenho hoje. Às vezes, meu sobrenome até atrapalhava e<br />
fechava portas, principalmente quando os medíocres e invejosos<br />
estavam no comando.<br />
Voltando à minha mãe, pela primeira vez ela começou a pensar<br />
nela e a fazer as coisas <strong>de</strong> que gostava, mas antes não podia<br />
realizar. Foi então que criou o Seminário Internacional <strong>de</strong> Dança<br />
<strong>de</strong> Brasília, que acontece <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1991, todos os anos, no mês <strong>de</strong><br />
julho. No início, era <strong>um</strong> projeto familiar, porque Alessandro, Gisele<br />
e eu também estávamos envolvidos. Alguns anos <strong>de</strong>pois, Alessandro<br />
e eu tomamos r<strong>um</strong>os diferentes. Só a minha irmã, que é da<br />
mesma profi ssão, continuou ajudando e atuando no Seminário.<br />
O hip-hop sempre esteve presente no Seminário por infl uência<br />
minha. Professores vinham <strong>de</strong> fora dar aulas <strong>de</strong> street dance<br />
e 90% dos alunos recebiam bolsas <strong>de</strong> estudo, porque eram da<br />
periferia <strong>de</strong> Brasília e <strong>de</strong> projetos sociais em diferentes estados.<br />
Sem contar que eu sempre pedia a minha mãe diversas bolsas<br />
para b-boys e b-girls que eu conhecia.
112<br />
CAPÍTULO 14:
Se as coisas já eram difíceis para a minha família com meu pai<br />
vivo, imagine sem ele. Além <strong>de</strong> fundador do Departamento <strong>de</strong><br />
Música da UnB, ele foi militante do Partido Comunista Brasileiro;<br />
doava <strong>um</strong>a porcentagem <strong>de</strong> seu salário para o partido. Aí,<br />
veio o golpe militar e vários dos seus colegas foram torturados,<br />
fugiram e/ou <strong>de</strong>sapareceram. Um dia, os militares invadiram o<br />
ônibus em que ele estava e meu pai teve que comer <strong>um</strong> papel<br />
com conteúdo “subversivo” para não ser preso pela ditadura.<br />
O apartamento dos meus pais foi invadido e levaram tudo, porque<br />
ele se recusou a ir aos meios <strong>de</strong> comunicação falar que era<br />
a favor do golpe militar. Ficou no exílio por mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos.<br />
Quando voltou ao país, no fi nal do governo Geisel, foi novamente<br />
incorporado ao Departamento <strong>de</strong> Música da UnB. Apesar<br />
da abertura política, teve que assinar <strong>um</strong>a <strong>de</strong>claração para o<br />
Serviço Nacional <strong>de</strong> Informações (SNI), dizendo que não estava<br />
mais envolvido com a esquerda brasileira. Ele concordou em<br />
assinar porque voltar para o Brasil era mais forte do que qualquer<br />
outra coisa. Mal sabiam os militares que <strong>um</strong>a simples assinatura<br />
jamais mudaria suas convicções políticas e i<strong>de</strong>ológicas.<br />
Meu pai não viu a queda do Muro <strong>de</strong> Berlim nem o fi m da União<br />
Soviética. Se tivesse presenciado esses acontecimentos, eles<br />
não mudariam o seu modo <strong>de</strong> pensar. A i<strong>de</strong>ologia, as idéias em<br />
que acreditava, nunca estiveram à venda. Muito menos para o<br />
seu próprio benefício profi ssional.<br />
114
O <strong>de</strong>scaso<br />
115
116 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Quando ele foi convidado a retirar os móveis e artigos pessoais<br />
da família apreendidos pelos militares e viu como se encontravam,<br />
<strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> pegá-los <strong>de</strong> volta. Estavam em <strong>um</strong> estado<br />
lamentável. Nunca se falou em in<strong>de</strong>nização. Meu pai foi anistiado,<br />
teria direito a receber por todos os anos que não pô<strong>de</strong> trabalhar<br />
na UnB por causa do exílio. Só que isso nunca aconteceu.<br />
Des<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong>le, a minha mãe tem direito a <strong>um</strong>a pensão da<br />
UnB, que também não recebe.<br />
O apartamento em que vive minha mãe, e on<strong>de</strong> está todo o<br />
acervo e a obra do meu pai, incalculável para a memória da<br />
música e da arte <strong>de</strong>sse país, é alugado. E isso porque a universida<strong>de</strong><br />
ven<strong>de</strong>u todos os apartamentos, menos o <strong>de</strong>la, graças a<br />
<strong>um</strong> abaixo-assinado <strong>de</strong> protesto dos músicos da Orquestra do<br />
Teatro Nacional, que hoje se chama Teatro Nacional Claudio<br />
Santoro. Se a UnB tivesse vendido o imóvel, provavelmente<br />
minha mãe estaria na rua hoje em dia, porque não teria dinheiro<br />
para comprá-lo. Isso mostra como, no Brasil, reina a ingratidão<br />
e a falta <strong>de</strong> conhecimento, memória e respeito com aqueles que<br />
<strong>de</strong>ram a sua vida à cultura <strong>de</strong>sse país.<br />
A UnB não se manifesta, o governo muito menos, e a obra do meu<br />
pai está se <strong>de</strong>teriorando porque não se encontra em condições<br />
<strong>de</strong>centes para preservação. Hoje em dia, meu irmão e minha<br />
mãe cuidam <strong>de</strong> tudo. Fizemos projetos para gran<strong>de</strong>s empresas<br />
que anunciam patrocinar obras culturais importantes e preservar<br />
a memória nacional, mas, curiosamente, nenh<strong>um</strong>a <strong>de</strong>las se<br />
interessou até hoje pela recuperação da obra do meu pai. São<br />
empresas hipócritas, que só apóiam iniciativas populares e que<br />
lhes garantem espaço na mídia. Elas não estão preocupadas<br />
com a preservação do acervo <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos maiores compositores<br />
do Brasil e do mundo do século passado. Claudio Santoro<br />
é conhecido como o maior compositor erudito brasileiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
Villa-Lobos. Infelizmente, o Brasil parece não valorizar a história<br />
<strong>de</strong> sua própria cultura.
O <strong>de</strong>scaso<br />
117<br />
É por isso que eu estou no hip-hop. Porque acredito ser a única<br />
manifestação cultural da atualida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> fazer diferença<br />
para aqueles que são submetidos a muitos tipos <strong>de</strong> violência.<br />
Miséria, negligência e abandono paternos, <strong>de</strong>semprego, agressão<br />
doméstica, falta <strong>de</strong> atendimento básico <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, educação<br />
<strong>de</strong>fi ciente, drogas, tráfi co e moradia insalubre em locais marcados<br />
pela criminalida<strong>de</strong> ou controlados pelo crime organizado. O<br />
hip-hop não se res<strong>um</strong>e aos quatro elementos. Trata-se também<br />
<strong>de</strong> cidadania, respeito e conscientização dos problemas que<br />
atingem todos nós. E com isso, educar o povo e fazer com que a<br />
cultura <strong>de</strong>sse país seja respeitada.<br />
A minha vida inteira foi movida pelo respeito. Ao próximo, à opinião<br />
dos outros, a diferentes manifestações culturais, a tudo. E<br />
na música não é diferente. Você não precisa gostar <strong>de</strong> <strong>um</strong> segmento<br />
cultural, só <strong>de</strong>ve apren<strong>de</strong>r a respeitá-lo. O respeito <strong>de</strong>ve<br />
estar acima <strong>de</strong> tudo. Só assim conseguiremos ter <strong>um</strong>a vida mais<br />
justa e abençoada por Deus.
118<br />
CAPÍTULO 15:<br />
The Recording
Em 1989, Alexandre Me<strong>de</strong>iros voltara a Brasília, após ter trabalhado<br />
como DJ e locutor na Rádio Cida<strong>de</strong>, em Amadora, Gran<strong>de</strong><br />
Lisboa, Portugal. A gente se encontrou e ele me disse:<br />
— Raffa, estou com planos <strong>de</strong> ir para os Estados Unidos estudar<br />
engenharia <strong>de</strong> som. O que achas?<br />
— Sempre tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong> curso e me aperfeiçoar.<br />
— Vamos juntos então?<br />
Fiquei fascinado com a idéia. Mas como eu iria? Uma das preocupações<br />
que martelavam os meus pensamentos era a gravi<strong>de</strong>z<br />
da minha namorada, que tinha apenas 16 anos. E o nascimento<br />
da a minha fi lha Rafaella aconteceria provavelamente quando<br />
eu estivesse fora do Brasil. A outra preocupação era mais simples:<br />
falta <strong>de</strong> dinheiro para estudar no exterior.<br />
A minha avó Luzia tinha <strong>um</strong>as reservas econômicas e <strong>de</strong>cidiu me<br />
proporcionar a viagem. O curso <strong>de</strong> engenharia <strong>de</strong> som, The Recording<br />
Workshop, em Ohio, tinha <strong>um</strong>a duração média <strong>de</strong> dois meses.<br />
Resolvi <strong>de</strong>ixar tudo para trás e investir na minha formação.<br />
Eu e Alexandre viajamos juntos. Tivemos <strong>um</strong> <strong>de</strong>sencontro no<br />
aeroporto <strong>de</strong> Nova York, porém nos reencontramos no campus<br />
do curso. Nós dividíamos o alojamento com o John, <strong>um</strong> inglês<br />
que era muito legal, e <strong>um</strong> fi lipino chato e engomadinho, cujo<br />
nome caiu no limbo do esquecimento. Foi <strong>um</strong>a experiência<br />
120
The Recording Workshop, em Ohio<br />
121<br />
única conviver com estudantes <strong>de</strong> outros países. O fi lipino era<br />
ingênuo a ponto <strong>de</strong> não acreditar que alguém pu<strong>de</strong>sse gravar<br />
<strong>um</strong>a música e outra pessoa aparecesse em seu lugar na capa <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> disco ou em <strong>um</strong> vi<strong>de</strong>oclipe. Eu queria ver a cara <strong>de</strong>le no ano<br />
seguinte, quando estourou a bomba do Mili Vanilli.<br />
Antes da viagem eu estava frustrado com alg<strong>um</strong>as produções<br />
minhas <strong>de</strong>vido à falta que <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento me fazia: o sampler.<br />
Eu sabia que se adquirisse esse equipamento, daria <strong>um</strong> gran<strong>de</strong><br />
passo na carreira <strong>de</strong> produtor musical e DJ.<br />
Fiz alg<strong>um</strong>as pesquisas <strong>de</strong> mercado. Descobri que se economizasse<br />
o dinheiro do almoço durante a minha estada nos Estados<br />
Unidos, eu conseguiria comprar <strong>um</strong> sampler <strong>de</strong> segunda mão. E foi<br />
isso que fi z.<br />
Não foram dias fáceis <strong>de</strong> estudo. Eu não era tão bom na parte<br />
teórica, pois não tinha <strong>um</strong> bom conhecimento <strong>de</strong> inglês. Imagine<br />
então quando se tratava <strong>de</strong> termos técnicos. Alexandre<br />
sempre me ajudava com o idioma. Nos exercícios práticos, por<br />
causa da minha experiência, eu era ótimo e tirava notas altas.<br />
Nas provas práticas eu sempre me <strong>de</strong>stacava. Foi em Ohio que,<br />
pela primeira vez, fi z gravações <strong>de</strong> efeitos sonoros para ví<strong>de</strong>os,<br />
e tive contato com os primeiros gravadores digitais DAT (Digital<br />
Audio Tape) e seqüenciadores que usavam computadores para<br />
fazer música, como o Macintosh Classic, o Atari e o Amiga.<br />
Nem tudo eram fl ores. Tive vários sonhos e pesa<strong>de</strong>los com meu<br />
pai. Intensos a ponto <strong>de</strong> o Alexandre me acordar. Uma noite, eu<br />
comecei a esmurrar o espelho do alojamento. Tive que ir para o<br />
hospital e enfaixar as mãos. Mas não foi nada sério a ponto <strong>de</strong><br />
comprometer o curso.<br />
Alexandre era muito mais que <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> amigo nessas horas.<br />
Era como <strong>um</strong> irmão mais velho, que eu não tinha há muito tempo.<br />
Como eu já disse, o Alessandro, meu verda<strong>de</strong>iro irmão, morava<br />
no outro lado do mundo, em Moscou.
122 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Eu e Alexandre fi zemos amiza<strong>de</strong> com <strong>um</strong> produtor do Bronx que<br />
estava no curso e era o único que, além <strong>de</strong> nós, gostava <strong>de</strong> hiphop.<br />
E, principalmente, do Public Enemy.<br />
N<strong>um</strong> fi nal <strong>de</strong> semana à noite, acen<strong>de</strong>mos <strong>um</strong>a fogueira e bebemos<br />
todas para comemorar o nascimento da minha fi lha Rafaella.<br />
Cantando músicas do Public Enemy, é claro!<br />
Alexandre me ensinou muito sobre a cultura hip-hop, no que se<br />
referia à produção musical e ao estilo que predominava: o sample<br />
<strong>de</strong> músicas antigas e baterias mais acústicas do que eletrônicas,<br />
que eu estava acust<strong>um</strong>ado a ouvir e produzir. E, claro, as<br />
rimas dos grupos <strong>de</strong> fora. Ele sempre foi <strong>um</strong> crítico feroz do meu<br />
trabalho e <strong>de</strong> quem eu produzia. Essa sincerida<strong>de</strong> e cobrança<br />
me ajudaram muito a evoluir como produtor. Alexandre não<br />
tinha meias palavras. Falava na cara mesmo.<br />
— Isso tá muito ruim, Raffa!<br />
— Esse cara não rima nada, velho!<br />
— Tá tudo <strong>um</strong>a merda, cara!<br />
— Volta pra casa e começa do zero, Raffa!<br />
Às vezes, isso me irritava, mas eu respeitava profundamente<br />
o que ele me dizia. As críticas eram sempre construtivas. E a<br />
nossa amiza<strong>de</strong> nunca foi abalada; pelo contrário, se fortaleceu.<br />
Os dias se passavam e eu não almoçava. As aulas se tornaram<br />
mais intensas e a gente gravava e mixava bandas diferentes.<br />
Des<strong>de</strong> rock e funk a reggae. As aulas <strong>de</strong> mixagem, <strong>de</strong> trilha e<br />
efeitos para fi lme eram as que mais me interessavam. O curso<br />
tinha três fases eliminatórias. Ou seja, só os melhores alunos<br />
fi cavam até o fi nal. Eu e Alexandre avançamos para a segunda<br />
fase, que era baseada na eletrônica e no conserto <strong>de</strong> equipamentos<br />
<strong>de</strong> estúdio. Percebi que a maioria dos alunos era <strong>de</strong><br />
músicos e não tinha a pretensão <strong>de</strong> se tornar engenheiro <strong>de</strong><br />
áudio, mas sim, <strong>de</strong> ter o conhecimento sufi ciente para discutir<br />
<strong>de</strong> igual para igual com técnicos e produtores na hora <strong>de</strong> gravar
The Recording Workshop, em Ohio<br />
123<br />
em estúdio. Essa consciência dos músicos dos Estados Unidos<br />
e <strong>de</strong> outros países <strong>de</strong>veria ser <strong>um</strong> exemplo para os brasileiros.<br />
Esse quadro começou a evoluir no Brasil nos anos 90, e agora se<br />
intensifi ca cada vez mais com a inclusão digital.<br />
Nas provas, minhas notas foram boas e em todas as matérias<br />
fi caram acima da média da classe. No entanto, não foram sufi -<br />
cientes para eu chegar à última fase. As vagas eram limitadas.<br />
Alexandre conseguiu, principalmente porque falava inglês<br />
melhor do que eu.<br />
Para mim, o curso terminou ali. Não fi quei preocupado, porque<br />
a terceira fase durava só mais <strong>um</strong>a semana e tinha apenas <strong>um</strong>a<br />
diferença básica: os professores se tornavam produtores em<br />
sala <strong>de</strong> aula e exigiam dos alunos <strong>um</strong>a postura profi ssional.<br />
Aproveitei para ir mais cedo para Nova York e comprar meu tão<br />
<strong>de</strong>sejado sampler. O mo<strong>de</strong>lo que eu buscava era <strong>um</strong> módulo<br />
rack simples S-330 da Roland, que sampleava nas freqüências<br />
<strong>de</strong> 30k e 15k em 12 bits. Para a época, <strong>um</strong>a ótima qualida<strong>de</strong>.<br />
Quando cheguei em Nova York me hospe<strong>de</strong>i n<strong>um</strong>a pensão. Fiquei<br />
com medo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o dinheiro lá, mas, ao mesmo tempo, não<br />
era seguro andar com ele pelas ruas. Então o escondi <strong>de</strong>ntro da<br />
poltrona que tinha no quarto. Eu recortei a almofada e <strong>de</strong>pois<br />
costurei, para que ninguém <strong>de</strong>sconfi asse <strong>de</strong> nada. Saí para<br />
pesquisar os preços nas lojas. Quando fi nalmente encontrei o<br />
sampler que eu queria, me organizei para comprá-lo no mesmo<br />
dia e hora em que eu fosse para o aeroporto.<br />
Na volta ao Brasil, que frustração! Percebi que eu tinha sido<br />
enganado pelo ven<strong>de</strong>dor em Nova York. Para funcionar, o sampler<br />
precisava <strong>de</strong> <strong>um</strong> sistema operacional que vinha em <strong>um</strong><br />
disquete. Só que o ven<strong>de</strong>dor não tinha me dado esse disquete.<br />
Resultado: eu tinha <strong>um</strong> sampler, mas não podia samplear, já que<br />
não tinha o “Utility Disk”, ou seja, o sistema operacional. Passei<br />
uns dois meses procurando em Brasília alguém que pu<strong>de</strong>sse ter<br />
o mesmo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sampler. Graças a Deus, <strong>de</strong>scobri o músico<br />
tecladista Rênio Quintas, que, por coincidência, fora aluno <strong>de</strong>
124 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
meu pai na UnB. Foi <strong>um</strong>a festa para mim. Rênio fez duas cópias<br />
do disquete. Fui correndo para casa ensaiar os meus primeiros<br />
passos no mundo do sampler. Fiquei fascinado com as possibilida<strong>de</strong>s<br />
que fi nalmente tinha para produzir as minhas músicas.<br />
Logo que cheguei ao país, recebi <strong>um</strong> convite para trabalhar nos<br />
estúdios da Som Livre, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Para <strong>de</strong>sgosto da minha<br />
mãe, rejeitei essa oferta <strong>de</strong> emprego. O que eu queria mesmo era<br />
produzir o meu disco com os Magrellos. Talvez hoje em dia, eu<br />
não fi zesse <strong>um</strong>a besteira <strong>de</strong>ssas. Acho que teria agido <strong>de</strong> forma<br />
mais consciente. Mas também, meu <strong>de</strong>stino seria diferente. Afi -<br />
nal, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> <strong>um</strong> ano eu entrei nos estúdios da<br />
Som Livre como produtor, não como técnico.<br />
De volta ao Brasil, voltei a freqüentar os bailes. Freire e eu – às<br />
vezes, o Rossi Black também – íamos com o Elívio para vários<br />
bailes na periferia, nos quais ele era convidado para tocar. Dois<br />
episódios nessas andanças foram especialmente engraçados.<br />
O primeiro aconteceu n<strong>um</strong>a noite em que o Elívio tinha três<br />
bailes para tocar em lugares bem longe <strong>um</strong> dos outros. Freire e<br />
eu o acompanhamos. Elívio tinha <strong>um</strong> Baja ou Fusca Baja 1 com<br />
os pneus traseiros maiores e o motor exposto. Nosso primeiro<br />
<strong>de</strong>stino era <strong>um</strong>a escola classe 2 na Guariroba, Ceilândia. Depois<br />
<strong>de</strong> o Elívio ter tocado, saímos da festa. Por malda<strong>de</strong>, alguém<br />
havia arrebentado a correia do Baja com <strong>um</strong>a faca. E o baile<br />
seguinte era em Sobradinho, no outro lado da cida<strong>de</strong>. Andamos<br />
bem <strong>de</strong>vagar, para o motor não esquentar, em direção a Taguatinga.<br />
Precisávamos encontrar <strong>um</strong> posto <strong>de</strong> gasolina aberto<br />
para comprar <strong>um</strong>a correia nova. Finalmente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> quase<br />
duas horas, encontramos <strong>um</strong>.<br />
Correia trocada, corremos para para o baile no Galpão 17. Parecia<br />
tudo mais fácil, afi nal a última festa era em Sobradinho<br />
1 Baja é o nome <strong>de</strong> <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> modifi cação feita sobre o chassi do Fusca. Basicamente,<br />
mantem-se a carroceria original, mas troca-se os pára-lamas e outras partes<br />
por versões mais leves e menores, em fi bra <strong>de</strong> vidro.<br />
2 Bacana, <strong>de</strong> alto nível.
The Recording Workshop, em Ohio<br />
125<br />
também. Quando chegamos perto do Baja, vimos que <strong>um</strong> dos<br />
pneus traseiros estava murcho. Para a nossa sorte, para não<br />
dizer o contrário, o estepe era menor e ainda por cima estava<br />
vazio. Elívio pegou <strong>um</strong>a carona para ir ao outro baile. Eu e<br />
Freire fi camos para trocar o pneu. Às três horas da manhã, lá<br />
estávamos os dois andando pelas ruas <strong>de</strong> Sobradinho, atrás<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a borracharia. Como não encontramos nenh<strong>um</strong>a aberta,<br />
resolvemos encher o estepe e colocá-lo assim mesmo. O Baja<br />
fi cou ridiculamente torto. E, para completar, começou a chover!<br />
Na volta para Brasília, <strong>de</strong>rrapamos e giramos várias vezes na<br />
pista. Quase batemos em <strong>um</strong> poste. Ou seja, tudo o que podia<br />
acontecer naquela noite aconteceu. Quando cheguei em casa,<br />
não consegui dormir, <strong>de</strong> tanto que eu ria.<br />
O segundo episódio ocorreu quando fomos para <strong>um</strong> baile com<br />
a Equasom, no Paranoá, que ainda era <strong>um</strong>a favela. Como disse<br />
anteriormente, Elívio abria espaço para que mostrássemos<br />
nosso trabalho por uns minutos, <strong>de</strong>ntro da hora que ele tocava.<br />
Eu sempre levava <strong>um</strong>a bateria eletrônica para fazer ao vivo.<br />
Quando chegamos ao baile, em <strong>um</strong> salão comunitário, toda a<br />
energia estava ligada <strong>de</strong> forma clan<strong>de</strong>stina em <strong>um</strong> poste do<br />
lado <strong>de</strong> fora do salão. Quando o Elívio anunciou os Magrellos – o<br />
grupo já tinha <strong>um</strong> certo nome – e eu apertei o play da bateria<br />
eletrônica, toda a energia do salão caiu na hora. Acabaram o<br />
som e a luz. Totalmente no escuro, eu só ouvia vaias.<br />
Logo a energia voltou. O Elívio pegou o microfone, amenizou as<br />
coisas e novamente nos anunciou. Na hora em que eu apertei o<br />
play não <strong>de</strong>u outra... A energia caiu <strong>de</strong> novo e resolvemos <strong>de</strong>sistir<br />
<strong>de</strong> vez da nossa pequena apresentação. No fi nal, a situação acabou<br />
sendo cômica, porque, sem merecer, levamos muitas vaias.<br />
Naquele dia, conheci <strong>um</strong> b-boy que se chamava Carlinhos e dançava<br />
muito. Ficamos amigos e, através <strong>de</strong>le, comecei a freqüentar o Paranoá<br />
e a conhecer pessoas com quem mantenho contato até hoje.
126<br />
CAPÍTULO 16:
Em 1991, minha vida como DJ iria mudar muito.<br />
Feire me apresentou ao Chocolate, que era DJ resi<strong>de</strong>nte da danceteria<br />
da Fonte do Bom Paladar, no Cruzeiro Velho. 1 Naquele<br />
palco, se apresentaram os maiores grupos <strong>de</strong> rap da época.<br />
A danceteria tinha esse nome porque fi cava <strong>de</strong>baixo da lanchonete<br />
<strong>de</strong> mesmo nome, que tinha o maior e melhor sanduíche<br />
da região. O dono das duas era o Jacinto. Ele foi, mesmo<br />
que indiretamente, <strong>um</strong> incentivador do hip-hop no DF, porque<br />
liberava a danceteria aos sábados à tar<strong>de</strong> para a gente ensaiar<br />
no palco, usando o som da casa. O DJ Chocolate também fazia<br />
as suas montagens e remixes lá aos sábados. Ele me convidou<br />
para tocar várias vezes na Fonte, principalmente porque eu<br />
tinha muitos discos importados e ele se interessava em copiar<br />
alg<strong>um</strong>as músicas. Com isso, minhas idas se tornaram mais<br />
freqüentes e o público começou a gostar do meu trabalho. Foi<br />
assim que o Jacinto acabou me convidando para ser DJ resi<strong>de</strong>nte,<br />
junto com o DJ Chocolate.<br />
Eu encomendava discos importados <strong>de</strong> <strong>um</strong>a loja que fi cava na<br />
Avenida Paulista, a DJ Shopping, em São Paulo. Eu resolvia tudo<br />
por telefone. Na primeira vez em que fui pessoalmente a São<br />
Paulo, para conhecer <strong>um</strong> pouco da cena musical, estive na loja e<br />
1 Bairro brasiliense.<br />
128
Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong><br />
129<br />
conheci o Fábio Macari. Na época ele era ven<strong>de</strong>dor, mas tempos<br />
<strong>de</strong>pois virou produtor musical e fez alguns trabalhos comigo.<br />
Fábio Macari tinha <strong>um</strong>a coleção <strong>de</strong> discos antigos e originais<br />
impressionante, além <strong>de</strong> <strong>um</strong> puta conhecimento sobre a música<br />
negra. Ele era <strong>um</strong>a biblioteca musical ambulante. Quando ouvia<br />
<strong>um</strong> som gringo que usasse sample <strong>de</strong> música antiga, ele i<strong>de</strong>ntifi<br />
cava na hora o original. E quando tinha chance, levava o disco<br />
para você ouvir e conferir.<br />
Depois <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> tempo, o DJ Chocolate organizou sua própria<br />
festa <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida. O baile rolou, mas a <strong>de</strong>spedida não, porque<br />
ele continuou a discotecar na Fonte. A festa era <strong>de</strong> hip-hop e<br />
os grupos Magrellos e National Rap, dos meus amigos Leandro,<br />
Marcelo e Xan<strong>de</strong>, se apresentaram. Foi a primeira vez que o<br />
Leandro se apresentou como DJ Leandronik.<br />
Eu estava <strong>um</strong> pouco apreensivo, afi nal, seria o nosso segundo<br />
show. Nessa festa estavam alguns amantes do hip-hop e pessoas<br />
que nunca haviam visto <strong>um</strong> show <strong>de</strong> rap na vida. Encontrei<br />
o Jamaika que, junto com o Rivas e o Kalako, fez para mim <strong>um</strong>a<br />
capela <strong>de</strong> <strong>um</strong>a das músicas <strong>de</strong>le. Ela falava sobre pichação na<br />
Ceilândia. Os três formavam o BSB Boys e tinham muito talento.<br />
Nunca entendi bem porque o grupo não foi para frente.<br />
Eu e Leandro éramos dois loucos, porque já naquela época,<br />
fazíamos o show todo ao vivo. A gente levava as baterias eletrônicas,<br />
os teclados e os toca-discos. Na verda<strong>de</strong>, o público<br />
não enten<strong>de</strong>u muito bem o nosso trabalho. Porém, isso não nos<br />
<strong>de</strong>smotivou a continuar e nos aperfeiçoar.<br />
A música “Corpo Fechado”, do grupo paulista Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>,<br />
começou a tocar em várias rádios FMs em Brasília. Todos que<br />
tinham ligação com o hip-hop estavam impressionados com o<br />
estouro <strong>de</strong>ssa música no DF.<br />
Tive então a idéia <strong>de</strong> trazer o grupo para <strong>um</strong> show no Cerrado.<br />
Comecei a falar com diversas pessoas do meio, mas ninguém<br />
se interessou em organizar <strong>um</strong> evento on<strong>de</strong> a atração principal
130 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
fosse <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap nacional <strong>de</strong> São Paulo. Fiquei impressionado<br />
com a falta <strong>de</strong> visão das pessoas. Percebi que só tinha <strong>um</strong><br />
jeito <strong>de</strong> eles se apresentarem em Brasília. Se eu mesmo organizasse<br />
o evento. Fui falar com o Jacinto. Queria <strong>um</strong>a data na<br />
Fonte do Bom Paladar e fi caria com apenas 30% da bilheteria.<br />
Ele topou! A casa eu já tinha. Pedi ao Nino que conversasse com<br />
o Fábio, dono da Dizi Som, para ele me alugar o equipamento<br />
com a condição <strong>de</strong> que eu pu<strong>de</strong>sse pagá-lo <strong>de</strong>pois do show.<br />
— Raffa, eu vou te ajudar com toda a sonorização do evento.<br />
Você não vai precisar pagar nada. Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o Fábio por minha<br />
conta. Não se preocupe com nada! Tá fechado, cara!<br />
— Não sei nem como te agra<strong>de</strong>cer, Nino.<br />
— Não precisa, só agiliza a “cerva” pra nós! – disse Nino rindo.<br />
— Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar, cara! – respondi, rindo também.<br />
Eu já tinha a casa, o som, a il<strong>um</strong>inação e os técnicos. O Marconi,<br />
que eu conhecera no Estúdio Sete e era dono <strong>de</strong> <strong>um</strong> equipamento<br />
<strong>de</strong> última geração, me emprestou <strong>um</strong> microfone sem fi o.<br />
Tudo estava dando certo. Só faltava a divulgação.<br />
Fui no Celsão e no Elívio. Além <strong>de</strong> tocarem no show, eles o divulgariam<br />
nos programas <strong>de</strong> rádio que tinham e nos bailes que<br />
faziam. E foi assim, no boca-a-boca, que o evento começou a<br />
nascer.<br />
Liguei para o DMC, <strong>de</strong> São Paulo, e, para minha surpresa e sorte,<br />
o Thaí<strong>de</strong> estava morando lá por uns tempos. Conversei com o<br />
Douglas, do Código 13, que era o empresário do grupo e acabou<br />
me convencendo a trazer também a Back Spin Crew, gangue <strong>de</strong><br />
break do Thaí<strong>de</strong>. Marcamos o show.<br />
O Thaí<strong>de</strong> e o DJ H<strong>um</strong> chegaram dias antes do show, acompanhados<br />
por alguns b-boys da Back Spin. Os outros vieram mais<br />
perto da data. Fiz gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> com dois dos b-boys, o Smurf<br />
e o Marcelinho. Todos fi caram no apartamento da minha mãe, e
Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong><br />
131<br />
você po<strong>de</strong> imaginar a zona que foi. Mostrei alg<strong>um</strong>as produções<br />
para o Douglas, que gostou muito.<br />
— Raffa, eu quero levar a fi ta <strong>de</strong>mo <strong>de</strong> vocês pra São Paulo pra<br />
mostrar pra alg<strong>um</strong>as gravadoras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e especializadas<br />
nesse gênero musical – disse ele.<br />
— Você po<strong>de</strong> fazer isso, Douglas?<br />
— É claro, Raffa! Sem problemas!<br />
Enquanto eu mostrava alg<strong>um</strong>as técnicas <strong>de</strong> produção para o DJ<br />
H<strong>um</strong>, ele me ensinava o meu primeiro back to back nos tocadiscos.<br />
Trocamos muitas idéias naqueles dias que antece<strong>de</strong>ram<br />
o show. No dia do evento, Leandro me ligou.<br />
— Raffa, será que o National Rap po<strong>de</strong>ria fazer a abertura do<br />
show?<br />
— Pôxa, Leandro, você me ligou em cima da hora! Além do mais<br />
os Magrellos já vão fazer a abertura.<br />
Como <strong>um</strong> bom amigo, Leandro enten<strong>de</strong>u perfeitamente. Depois,<br />
me arrependi profundamente da forma como o tratei. Afi nal,<br />
o evento era meu e eu po<strong>de</strong>ria fazer o que quisesse. Quando<br />
o Thaí<strong>de</strong> e o DJ H<strong>um</strong> voltaram para São Paulo, liguei para ele.<br />
Graças a Deus, a nossa amiza<strong>de</strong> não foi abalada.<br />
— Leandro, me <strong>de</strong>sculpe, cara! Eu acho que fui muito egoísta!<br />
O evento era meu e eu po<strong>de</strong>ria muito bem ter encaixado vocês!<br />
Foi mal, mesmo!<br />
— Que nada, Raffa! Esquenta não, cara. Essas coisas são assim<br />
mesmo. Foi muito legal o intercâmbio que fi zemos com eles,<br />
dançando na rua.<br />
Quando cheguei ao evento, me <strong>de</strong>u aquele frio na barriga. Para<br />
mim, seria o show mais importante dos Magrellos, porque o<br />
público provavelmente seria só <strong>de</strong> amantes do rap nacional. E<br />
também, abrir <strong>um</strong>a apresentação do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong> era <strong>um</strong>a<br />
gran<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>.
132 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
A fi la do lado <strong>de</strong> fora da danceteria era gigantesca. Depois que<br />
eu entrei, fi quei ainda mais perplexo. Já estava lotada. No meio<br />
da pista <strong>de</strong> dança, vi a maior roda <strong>de</strong> break <strong>de</strong> toda a minha vida.<br />
Foi emocionante! Tinha b-boy <strong>de</strong> Goiânia, Cuiabá, Luizânia, Formosa<br />
e <strong>de</strong> vários lugares do Centro-Oeste, além das cida<strong>de</strong>ssatélites<br />
do DF. Todos com <strong>um</strong> mesmo objetivo: assistir ao show<br />
do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>. Jacinto estava rindo à toa, porque batemos<br />
o recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> bilheteria da casa.<br />
O show <strong>de</strong> abertura dos Magrellos até que teve <strong>um</strong>a resposta<br />
boa do público, principalmente no momento em que fi z o back<br />
to back nos toca-discos. Foi <strong>um</strong>a surpresa, porque nenh<strong>um</strong> DJ<br />
do DF fazia esse tipo <strong>de</strong> performance naquela época.<br />
No começo do show do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>, o público foi à loucura.<br />
Eu me emocionei em três momentos. Primeiro, quando <strong>um</strong> fã<br />
<strong>de</strong>u <strong>um</strong> correntão <strong>de</strong>le para o Thaí<strong>de</strong> e ele o colocou no pescoço.<br />
Depois, na hora em que a Back Spin Crew entrou no palco dançando.<br />
E, por último, com as performances e scratches do DJ<br />
H<strong>um</strong>. Eu nunca tinha visto tão <strong>de</strong> perto <strong>um</strong> show <strong>de</strong> rap <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
grupo <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> Brasília. As lágrimas <strong>de</strong>sceram pelo meu rosto.<br />
Eu fi quei muito emocionado!<br />
Na <strong>de</strong>spedida no dia seguinte, antes <strong>de</strong> eles irem para a Rodoferroviária<br />
<strong>de</strong> Brasília, <strong>de</strong>i <strong>de</strong> presente para o Thaí<strong>de</strong> <strong>um</strong> boneco<br />
do C3PO, 2 que ele tinha gostado muito quando viu no meu<br />
quarto. O DJ H<strong>um</strong> ganhou <strong>um</strong> gravador <strong>de</strong> rolo da Philips, que<br />
pertencera ao meu pai.<br />
— Raffa, tem certeza que você quer dar esse gravador pra<br />
mim?<br />
— H<strong>um</strong>berto, é isso que o meu coração está pedindo pra eu<br />
fazer, cara! – respondi.<br />
2 Personagem do fi lme Guerra nas Estrelas.
133<br />
De alg<strong>um</strong>a forma eu sabia que o aparelho iria ajudá-lo muito<br />
a se <strong>de</strong>senvolver como produtor musical. Sei que ele tem esse<br />
gravador até hoje.<br />
Os comentários sobre o sucesso do show do Thaí<strong>de</strong> & DJ<br />
H<strong>um</strong> fi zeram os empresários <strong>de</strong> eventos e donos <strong>de</strong> equipes<br />
<strong>de</strong> som <strong>de</strong> Brasília mudarem <strong>de</strong> idéia. Os dois voltariam por<br />
diversas vezes ao DF. Foi assim que começou a cultura <strong>de</strong> trazer<br />
grupos <strong>de</strong> rap paulistas para fazerem shows no Cerrado.<br />
Douglas estava levando <strong>um</strong>a fi ta <strong>de</strong>mo dos Magrellos e disse<br />
que me ligaria assim que tivesse alg<strong>um</strong>a resposta positiva.<br />
Fiquei com muita esperanca, mas ansioso também, pensando<br />
que <strong>um</strong> dia alguém se interessaria pelas nossas músicas,<br />
pelo nosso trabalho.<br />
Os 30% da bilheteria <strong>de</strong>ram para pagar o cachê do grupo, as<br />
passagens, o aluguel do som e ainda sobrou dinheiro.
134<br />
CAPÍTULO 17:
Um dia, o Douglas ligou e disse que o dono <strong>de</strong> <strong>um</strong>a gravadora<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> São Paulo estava muito interessado na fi ta<br />
<strong>de</strong>mo dos Magrellos. Fiquei chocado e, imediatamente, telefonei<br />
para o Freire.<br />
— Freire, o Douglas me ligou! Tem <strong>um</strong>a gravadora lá em Sampa<br />
interessada no nosso trabalho! Você acredita nisso?<br />
— Claro que eu acredito, Gordo! O que você vai fazer?<br />
— Vou pra São Paulo pra conversar com o pessoal da gravadora<br />
pessoalmente.<br />
— Beleza, Gordo! Estamos aguardando!<br />
Viajei para conhecer a gravadora e, talvez, fechar <strong>um</strong> contrato.<br />
O Douglas estava me esperando na Rodoviária do Tietê e fomos<br />
direto para Santo André. 1 Ele me levou para conhecer o Carlinhos<br />
e o Wagner, donos da equipe <strong>de</strong> som e gravadora Kaskatas. A<br />
Kaskatas era <strong>um</strong>a das maiores equipes <strong>de</strong> som <strong>de</strong> São Paulo, ao<br />
lado da Chic Show, Black Magic, Dinamitte, Zimbabwe e Circuit<br />
Power. Seus donos tinham várias casas noturnas e <strong>um</strong>a <strong>de</strong>las<br />
era o famoso Clube House, que fi cava na rua Oratório em Santo<br />
André. Carlinhos estava muito interessado no nosso trabalho.<br />
— Quanto tempo você leva pra terminar o disco inteiro? – ele<br />
perguntou.<br />
1 Município na Região Metropolitana <strong>de</strong> São Paulo.<br />
136
A Kaskatas<br />
137<br />
— No máximo <strong>um</strong> mês, porque ele já tá bastante adiantado –<br />
disse e garanti o pagamento do estúdio em Brasília e das fotos<br />
para a capa do vinil.<br />
Eu nem estava acreditando que o sonho <strong>de</strong> gravar <strong>um</strong> disco po<strong>de</strong>ria<br />
fi nalmente se realizar. Telefonei para o Freire, empolgado.<br />
— Freire, vamos gravar <strong>um</strong> disco, cara! – gritei. A empolgação<br />
<strong>de</strong>le não foi menor.<br />
— Você tá falando sério, Gordo? Não acredito! Vamos gravar o<br />
nosso disco! – repetiu. — Obrigado, Deus! – gritou ao telefone.<br />
Conversei com o Carlinhos sobre a produção do disco, ele me<br />
<strong>de</strong>u alg<strong>um</strong>as sugestões e apresentou músicas que estavam<br />
estouradas em São Paulo. Foi aí que ele me mostrou o disco do<br />
Pepeu, produzido pelo DJ Cuca (<strong>um</strong> dos pioneiros na produção<br />
musical no estilo hip-hop). Perguntei se aquele trabalho era<br />
mais antigo do que o do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>. Carlinhos exibiu então<br />
<strong>um</strong>a coletânea da Kaskatas, <strong>de</strong> 1986, com vários grupos <strong>de</strong> rap<br />
– a da CBS e a da Eldorado só saíram dois anos <strong>de</strong>pois. Também<br />
mostrou <strong>um</strong>a coletânea da época, que tinha músicas do Geração<br />
Rap, grupo que teria bastante sucesso anos <strong>de</strong>pois. O disco solo<br />
do Pepeu, que incluía o seu gran<strong>de</strong> sucesso, “Nome <strong>de</strong> meninas”,<br />
e o LP Pergunte a quem conhece, do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>, saíram<br />
naquele ano mesmo. Com o nosso LP, A Ousadia do Rap <strong>de</strong> Brasília,<br />
também saindo em 1989, estaríamos entre os três únicos<br />
grupos <strong>de</strong> rap do Brasil inteiro a gravar <strong>um</strong> disco completo. Éramos<br />
os representantes do Cerrado e, ao mesmo tempo, sentíamos<br />
que o hip-hop do DF estava caminhando <strong>de</strong> igual para igual<br />
com São Paulo. Isso foi muito importante nos anos seguintes<br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento do hip-hop no DF e seu entorno.<br />
Mas o que Carlinhos queria me mostrar mesmo era a batida<br />
que estava tocando sem parar nos salões <strong>de</strong> bailes da capital<br />
paulista: a lagartixa. O nome estranho vinha da versão brasileira<br />
que o N<strong>de</strong>e Naldinho fez para a música “DJ Inovator”, do Chubb<br />
Rock. Essa versão, saída na coletânea da CBS, tinha o refrão
138 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
“A lagartixa na pare<strong>de</strong>”, que estourou nos bailes <strong>de</strong> Sampa.<br />
A música fez tanto sucesso que a galera da época se inspirou<br />
nela para criar <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> dançar, que também fi cou conhecida<br />
como lagartixa. O êxito <strong>de</strong>ssa onda foi imenso e inúmeras<br />
músicas gringas seguiram esse fi lão. Os donos <strong>de</strong> selos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
do Brasil começaram a obrigar os grupos <strong>de</strong> rap a<br />
fazerem músicas no estilo. Com o Carlinhos, não foi diferente.<br />
Tentei convencê-lo <strong>de</strong> que não era o estilo dos Magrellos. Ele<br />
sugeriu, então, <strong>um</strong>a alternativa e nos mostrou <strong>um</strong>a música do<br />
Biz Markie, com <strong>um</strong>a batida interessante que a gente acabou<br />
usando para fazer a música “Problemas Paralelos”.<br />
Tive a chance <strong>de</strong> freqüentar alg<strong>um</strong>as casas noturnas que tocavam<br />
rap em São Paulo e ouvir <strong>um</strong> estilo musical que eu nunca<br />
tinha escutado nos bailes em Brasília. Era o samba rock, iniciado<br />
por Jorge Ben Jor.<br />
Quando fui ao Clube House, em Santo André, principal casa<br />
noturna da Kaskatas, fi quei impressionado com a beleza do<br />
lugar, a qualida<strong>de</strong> do som e dos DJs e com o pulso fi rme do Carlinhos<br />
no comando. Fiz amiza<strong>de</strong> com o DJ Silvinho, que tinha<br />
<strong>um</strong> estilo <strong>de</strong> discotecar que eu jamais tinha visto. As viradas <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong>a música a outra eram muito diferentes das viradas longas<br />
dos DJs do Cerrado que eu escutava. Eu absorvi essa técnica e<br />
comecei a utilizar nos bailes <strong>de</strong> hip-hop em que eu tocava. As<br />
viradas eram rápidas, com corte e, às vezes, scratch, soltando a<br />
música logo após o último refrão.<br />
Mas <strong>um</strong>a coisa me chamou a atenção. Quando eram <strong>um</strong>as três e<br />
meia da manhã e a casa ainda estava cheia, Carlinhos acendia a<br />
luz e terminava o baile. Não resisti e perguntei:<br />
— Carlinhos, tem muita gente no salão ainda. Por que você acabou<br />
com o baile?<br />
— Raffa, o público tem que ter a sensação, na hora <strong>de</strong> ir embora,<br />
<strong>de</strong> que a casa estava lotada.
A Kaskatas<br />
139<br />
Eram os comentários e o boca-a-boca que faziam a diferença<br />
<strong>de</strong> tudo. Aquilo era muito inteligente e lógico para mim. Ouvi<br />
tantas músicas novas que voltei para Brasília com muitas idéias<br />
interessantes para a produção do primeiro disco <strong>de</strong> rap do DF. E<br />
da minha carreira.
140<br />
CAPÍTULO 18:
Finalmente, iniciamos as gravações do disco. Foi no Zen Estúdios,<br />
que fi cava no Edifício Brasília Rádio Center. O dono era o<br />
Andy Costa, <strong>um</strong> argentino radicado em Brasília. Ele era o técnico<br />
<strong>de</strong>sse trabalho. O Zen seria <strong>um</strong> dos responsáveis pelo crescimento<br />
do hip-hop do DF nos <strong>de</strong>z anos seguintes. E se tornaria o<br />
maior estúdio <strong>de</strong> Brasília e <strong>um</strong> dos maiores do país, em termos<br />
<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> acústica, <strong>de</strong> equipamentos e <strong>de</strong> técnicos.<br />
Interessante é que o Andy comprou <strong>um</strong> gravador <strong>de</strong> rolo <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
sujeito que, por sua vez, o tinha comprado do meu pai. Lá estava<br />
eu gravando com <strong>um</strong> equipamento que pertencera ao meu pai. De<br />
alg<strong>um</strong>a forma, eu sabia que a força espiritual <strong>de</strong>le estava comigo.<br />
Os dias foram passando. Decidi pedir três coisas para o DJ Celsão:<br />
que ele participasse do disco, cantando o refrão na música “Ah<br />
não, bicho!”, que rimasse com a música <strong>de</strong> sua autoria “Andando<br />
por aí”, e que <strong>de</strong>ixasse a gente gravar “Rua”, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong>le. Celsão<br />
aceitou na hora e isso foi mais <strong>um</strong> estímulo para a gente.<br />
Uma das gran<strong>de</strong>s participações no disco foi o Oswaldão, conhecido<br />
como Pato, que pertencia à primeira geração <strong>de</strong> dançarinos<br />
<strong>de</strong> break nas ruas e <strong>de</strong>pois virou locutor <strong>de</strong> rádio e teve programas<br />
especializados <strong>de</strong> rap nacional. Pato fez beatbox n<strong>um</strong>a<br />
faixa, com rima e letra do Tubarão. Era tipo <strong>um</strong>a vinheta e homenageava<br />
os grupos <strong>de</strong> rap nacional que existiam na época. Essa<br />
rima também falava da estação <strong>de</strong> metrô São Bento, <strong>de</strong> São<br />
142
DJ Raffa e os Magrellos<br />
143<br />
Paulo, palco <strong>de</strong> encontros <strong>de</strong> b-boys, MCs e grupos <strong>de</strong> rap nas<br />
décadas <strong>de</strong> 80 e 90. A São Bento era o principal lugar <strong>de</strong> reunião<br />
dos jovens e precursores do movimento hip-hop <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Infelizmente, anos <strong>de</strong>pois, esses encontros foram proibidos.<br />
No estúdio, eu aproveitava para exercer todas as técnicas que<br />
estu<strong>de</strong>i e aprendi no curso nos Estados Unidos. Técnicas que<br />
estavam frescas na minha memória. Porém, isso não bastou<br />
para fazer <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> trabalho, pois eu ainda não tinha experiência<br />
sufi ciente para trabalhar em <strong>um</strong> disco inteiro. A falha não<br />
foi na produção, mas sim na mixagem, que em alg<strong>um</strong>as faixas<br />
fi cou excelente e em outras nem tanto. O disco também tinha<br />
mais <strong>de</strong> 17 minutos em cada lado. Isso quer dizer que a qualida<strong>de</strong><br />
não seria tão boa na prensagem fi nal, pois o tempo i<strong>de</strong>al<br />
era <strong>de</strong> até 15 minutos. Percebi – e entendi – tudo isso, só <strong>de</strong>pois<br />
que o LP saiu.<br />
Uma das músicas do disco era “Tributo ao governo”, que tinha<br />
<strong>um</strong>a crítica política muito forte. As colagens e scratches que<br />
eu fazia nessa música vinham <strong>de</strong> <strong>um</strong> compacto chamado Força<br />
Brasil, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a campanha que o Estúdio Sete, on<strong>de</strong> eu trabalhava,<br />
tinha feito. O disco era eclético. Tinha miami bass, <strong>de</strong>f e<br />
letras sérias, com contexto político, engraçadas e <strong>de</strong>scontraídas.<br />
Queríamos esten<strong>de</strong>r nosso som para públicos diferentes.<br />
Só anos <strong>de</strong>pois, eu enten<strong>de</strong>ria que não dá para vestir várias<br />
camisas. Você tem que seguir <strong>um</strong> estilo e se encontrar nele.<br />
Éramos muito imaturos e não tínhamos ninguém para ajudar ou<br />
dar esse toque. Estávamos por conta própria.<br />
Tiramos muitas fotos no Congresso Nacional. Douglas tinha<br />
feito <strong>um</strong>a logo para a gente que mostrava o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> <strong>um</strong> alvo<br />
em cima do Congresso. E o título do LP, A ousadia do rap <strong>de</strong> Brasília,<br />
o Carlinhos escolheu sem nos consultar.<br />
Quando o disco fi cou pronto, viajei para São Paulo. Eu queria<br />
acompanhar pessoalmente o corte no acetato do nosso trabalho.<br />
Depois que o DJ H<strong>um</strong> me contou que no primeiro trabalho <strong>de</strong>les<br />
– e isso é verda<strong>de</strong>! – o técnico tinha tirado todos os scratches
144 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
na mixagem fi nal achando que era <strong>de</strong>feito, eu não confi ava em<br />
mais ninguém. Mesmo sabendo que eu já tinha mixado e isso<br />
não po<strong>de</strong>ria acontecer com o nosso disco, <strong>de</strong>cidi estar por perto.<br />
Na verda<strong>de</strong>, eu também estava muito interessado em ver o processo<br />
todo.<br />
Quando o Carlinhos ouviu o disco pronto, fi cou muito empolgado<br />
com a música “O sonho da minha rainha”, que o Tubarão tinha<br />
escrito para <strong>um</strong>a namorada. Ela e “Solidão” eram as duas músicas,<br />
digamos, românticas do disco. “O sonho da minha rainha”<br />
foi feita em cima da batida <strong>de</strong> “Life is too short”, do rapper americano<br />
Too $hort, que estava estourada em São Paulo e em Brasília.<br />
O arranjo <strong>de</strong> teclados que fi z nessa faixa impressionou muito o<br />
Carlinhos. Depois <strong>de</strong> ouvi-la, ele me apelidou carinhosamente<br />
<strong>de</strong> “mago dos teclados”.<br />
Mostrei ao Carlinhos todas as fotos que tiramos e como eu não<br />
acompanhei o processo <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> capa e contracapa,<br />
infelizmente, ele escolheu as únicas que a gente não queria.<br />
Ficamos muito irritados quando vimos a capa pronta. Queríamos<br />
ser conhecidos por nossas músicas políticas e não pelas cômicas.<br />
Como já estava pronto, não tínhamos mais como mudar.<br />
Quando chegaram os primeiros discos em Brasília foi <strong>um</strong>a festa.<br />
Um dos primeiros lugares a que os levamos foi a Dizi Som, para o<br />
DJ Nino. Ele colocou nas caixas e gostou muito, mas fez críticas<br />
à qualida<strong>de</strong> sonora <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as faixas. Eu já sabia que isso iria<br />
acontecer. Ele prometeu fazer <strong>um</strong> lançamento ofi cial no Salão<br />
Comunitário do Núcleo Ban<strong>de</strong>irante. Levei o disco para todas<br />
as equipes <strong>de</strong> som e rádios do DF. O Marquinhos, da Smurphies,<br />
elogiou o trabalho. Elívio conseguiu para mim <strong>um</strong> encontro com a<br />
Gabriela, proprietária da 2001, a então maior re<strong>de</strong> <strong>de</strong> lojas <strong>de</strong> discos<br />
da região. Ela comprou várias peças para colocar nas lojas.<br />
Conheci o Genivaldo, dono <strong>de</strong> <strong>um</strong>a loja <strong>de</strong> discos no Conic 1 chamada<br />
Discovery, que só vendia títulos <strong>de</strong> gravadoras in<strong>de</strong>pen-<br />
1 Espaço alternativo no centro <strong>de</strong> Brasília, no estilo da Galeria 24 <strong>de</strong> Maio, em São<br />
Paulo.
DJ Raffa e os Magrellos<br />
145<br />
<strong>de</strong>ntes e pequenas. Nos anos 90, Genivaldo se tornaria o dono<br />
da Discovery, principal gravadora <strong>de</strong> rap nacional do DF e <strong>um</strong>a<br />
das mais fortes nesse segmento no Brasil.<br />
Um dia eu estava sintonizado na 105 FM, rádio que estava em<br />
primeiro lugar nas pesquisas, quando ouvi o locutor anunciar:<br />
— Vamos tocar agora a primeira colocada, a música mais<br />
pedida <strong>de</strong> toda a semana, “Ah não, bicho!”, do grupo DJ Raffa e<br />
os Magrellos!<br />
Eu não queria acreditar. A música estava estourada em todo o<br />
DF! Ela fi cou muito tempo entre as mais pedidas da rádio.<br />
Pouco tempo <strong>de</strong>pois, o famoso jornalista Maurício Kubrusly<br />
escreveu <strong>um</strong> artigo na revista Contigo sobre o disco. E, por incrível<br />
que pareça, elogiou alg<strong>um</strong>as letras.<br />
Cost<strong>um</strong>o dizer que fomos <strong>um</strong> dos poucos grupos <strong>de</strong> rap, na<br />
época, que colocaram na rua seus pensamentos e aquilo que<br />
achavam que era certo, sem ter <strong>um</strong>a preocupação mercadológica<br />
e sem pensar muito no resultado ou até aon<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam<br />
ir. Muitos grupos entraram no mercado <strong>de</strong>pois com o pé direito,<br />
sem cometer os erros que cometemos, porque tinham como<br />
referência exatamente aquilo que tínhamos feito na nossa<br />
inocência. Se não fossem os nossos erros, talvez as portas<br />
não estivessem abertas para as próximas gerações. E talvez<br />
outros não tivessem a chance <strong>de</strong> acertar. Na verda<strong>de</strong>, não me<br />
arrependo <strong>de</strong> nada do que fi z. A gran<strong>de</strong> diferença é que nós não<br />
tivemos medo <strong>de</strong> expor o nosso trabalho como muitos tiveram.<br />
Graças a Deus, não nos faltou motivação para nunca <strong>de</strong>sistir,<br />
apesar <strong>de</strong> o preconceito ser muito maior naquele tempo do que<br />
é hoje. Nossa geração só quer ser respeitada e valorizada por<br />
tudo o que fez para o fortalecimento do hip-hop brasileiro.
146
147
148<br />
CAPÍTULO 19:
Organizei na danceteria da Fonte, nos quatro dias do carnaval<br />
<strong>de</strong> 1990, o primeiro concurso <strong>de</strong> rap do DF. Convi<strong>de</strong>i os Irmãos<br />
Brothers (Elívio, Roberto, Toninho Pop e Celsão) e o Luciano),<br />
locutor da rádio 105 FM, para serem os jurados. O Elívio também<br />
foi o apresentador das noites. Eu, o DJ Chocolate e o Leandro<br />
comandávamos os equipamentos em cima do palco, porque<br />
alguns cantores e grupos pediam para fazer a batida na hora. A<br />
fi nal aconteceria só no quarto dia. Para atrair o público durante<br />
todo o evento, eu anunciei que a melhor torcida receberia <strong>um</strong><br />
prêmio, junto com os fi nalistas. Assim, consegui manter a casa<br />
cheia. No último dia, ela estava lotada.<br />
Grupos já famosos também se inscreveram. Um <strong>de</strong>les foi o BSB<br />
Boys, que, infelizmente, no dia da apresentação fi cou muito<br />
nervoso. Alguns grupos produziram as suas bases comigo. Foi<br />
assim que conheci o Rei, que viria a montar <strong>um</strong> dos maiores<br />
grupos <strong>de</strong> rap do Brasil, o Cirurgia Moral. E o Gilmar, do Paranoá,<br />
<strong>um</strong> b-boy excelente que se aventurou pela primeira vez a cantar<br />
rap. Gilmar foi <strong>de</strong> dois grupos: o Inimigo Público e o Paradox.<br />
Nesse concurso, o Gog cantou em cima do palco pela primeira<br />
vez. Ele havia montado o grupo SOS Rap. Mas o nome artístico,<br />
que nada mais é que as iniciais <strong>de</strong> seu nome Genivaldo Oliveira<br />
Gonçalves, só foi adotado anos <strong>de</strong>pois, por sugestão do MC<br />
Vappo (sexto colocado no concurso). O concurso marcou também<br />
a primeira aparição do rapper X e do MC Vappo, que tinha<br />
150
O primeiro concurso <strong>de</strong> rap do DF<br />
151<br />
se mudado <strong>de</strong> Manaus para Brasília e tempos <strong>de</strong>pois faria <strong>um</strong><br />
trabalho alternativo comigo e com o Leandro também.<br />
X conquistou o primeiro lugar com a música “Se olhe no espelho”.<br />
Gilmar fi cou em segundo e o SOS Rap em terceiro. A melhor torcida<br />
foi a do X. Além <strong>de</strong> dinheiro e discos, <strong>um</strong> dos prêmios para o<br />
vencedor do concurso era produzir a música comigo. O produtor<br />
<strong>de</strong>le era o DJ Chocolate e os dois foram lá em casa fazer a base.<br />
Foi assim que conheci melhor o X, que ainda formaria com o DJ<br />
Jamaika a banda Câmbio Negro, e iniciamos <strong>um</strong>a amiza<strong>de</strong> que<br />
permanece até hoje.<br />
Após o concurso, minha rotina nunca mais seria a mesma, porque<br />
eu tinha que trabalhar no estúdio, fazer show com os Magrellos,<br />
tocar na Fonte e, aos domingos, com o Elívio no Clube <strong>de</strong> Vizinhança,<br />
no Guará I. O que me ocupou por quase 10 meses foram os<br />
shows que aconteceram durante aquele ano. Os Magrellos cantaram<br />
em lugares muito perigosos, sem estrutura e sem cachê. Mas,<br />
para divulgar o nosso som, valia qualquer coisa. Uma vez, fi zemos<br />
<strong>um</strong>a apresentação com a equipe Terra Disco Show, em Valparaíso,<br />
no entorno <strong>de</strong> Brasília, e o palco era <strong>um</strong> amontoado <strong>de</strong> carteiras<br />
escolares, colocadas n<strong>um</strong>a pizzaria.<br />
Também fi zemos três gran<strong>de</strong>s apresentações. No Clube Primavera,<br />
em Taguatinga, tocaram Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>, SOS Rap com o<br />
DJ Leandronik, MC Jack e a gente. Foi <strong>um</strong> dos nossos melhores<br />
shows. No Núcleo Ban<strong>de</strong>irante, no Bambam, tivemos a estrutura<br />
da Dizi Som e os DJs Nino e Zinho <strong>de</strong>ram aquela força na sonorização<br />
e na luz, montando <strong>um</strong> palco muito bem estruturado. Lá<br />
tocaram o X com o DJ Chocolate, o Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>, o MC Jack<br />
e a gente. Já no Quarentão, da Ceilândia, rolou <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> show<br />
com a Equipe Power, on<strong>de</strong> tocamos juntos com o X.<br />
Com o DJ Marquinhos, da Smurphies Disco Clube, fi zemos shows<br />
em vários lugares. Um <strong>de</strong>les, na danceteria da Dane, no Gama,<br />
foi especialmente engraçado, porque no meio da festa começou<br />
<strong>um</strong>a briga no salão. Paramos <strong>de</strong> cantar e fi camos sem reação,<br />
olhando aquela cena. De repente, o Marcão grita:
152 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Gordo, bota a música “Vaquinha”! E rápido, cara, porque essa<br />
briga vai parar não!<br />
— Tá bom, Marcão. Já tô indo, velho! – respondi, já colocando a<br />
música no prato.<br />
Ela tinha o estilo miami bass e <strong>um</strong>a letra muito engraçada. O<br />
Marquinhos tinha me falado que essa faixa estava estourada<br />
nos bailes <strong>de</strong>le. Quando a música começou a rolar, a briga imediatamente<br />
parou e todos foram para perto do palco curtir o<br />
resto do show. Graças a Deus, daí para frente <strong>de</strong>u tudo certo.<br />
Fora do DF nos apresentamos n<strong>um</strong> ginásio em Juiz <strong>de</strong> Fora,<br />
em Minas Gerais, para <strong>um</strong> público <strong>de</strong> mais ou menos 10 mil<br />
pessoas. Naquela cida<strong>de</strong>, conheci o PMC, que eu encontraria<br />
<strong>de</strong>pois quando estivesse morando em São Paulo. Produzi dois<br />
trabalhos <strong>de</strong>le.<br />
Nesse ano, eu consegui fi nalmente o meu par <strong>de</strong> toca-discos<br />
Technik. Eu comprei, por acaso, a versão preta que tinha acabado<br />
<strong>de</strong> chegar no DMC, <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Carlinhos chamou os Magrellos para <strong>um</strong>a pequena turnê e<br />
lançamento do LP em Sampa, que aconteceria no Clube Liga<br />
Itálica. Era muita responsabilida<strong>de</strong>. No lançamento, o Thaí<strong>de</strong> &<br />
DJ H<strong>um</strong> e o MC Jack abriram o show. Tempos <strong>de</strong>pois, alg<strong>um</strong>as<br />
pessoas do público que estavam na festa se tornariam gran<strong>de</strong>s<br />
rimadores e formariam vários grupos, como o Comando DMC e<br />
o Racionais MCs.<br />
Fizemos mais <strong>um</strong> show importante: no Clube House, em Santo<br />
André. Também nessa noite, o Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong> foram os responsáveis<br />
pela abertura da festa. Eu sempre admirei os shows<br />
<strong>de</strong>les e a h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> que eles <strong>de</strong>monstram. Sem dúvida, <strong>um</strong>a<br />
escola e <strong>um</strong>a referência para mim.<br />
No segundo semestre <strong>de</strong> 1990, Carlinhos pediu que eu fi zesse<br />
uns remixes. Ele queria lançar <strong>um</strong> single do DJ Raffa e os<br />
Magrellos para os DJs e para o mercado. Esse trabalho, que
O primeiro concurso <strong>de</strong> rap do DF<br />
153
154 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
veio com a capa amarela, foi muito especial. Em primeiro lugar,<br />
porque sua qualida<strong>de</strong> sonora fi cou igual à <strong>de</strong> <strong>um</strong> single importado.<br />
Isso na opinião <strong>de</strong> vários DJs <strong>de</strong> São Paulo. Em segundo,<br />
porque as versões remix <strong>de</strong> “Rua” e “Problemas Paralelos”<br />
fi caram muito boas. Depois, porque o remix <strong>de</strong> “Rua” foi <strong>um</strong><br />
dos primeiros nacionais a ter scratch com colagem e, ainda por<br />
cima, era do nosso próprio disco. Por fi m, nesse single eu fi z <strong>um</strong><br />
trabalho instr<strong>um</strong>ental com várias colagens, chamado “DJ Scratch”.<br />
Essa música foi o meu maior sucesso. Ainda hoje, quando<br />
as pessoas me encontram n<strong>um</strong> evento, ou na rua, lembram imediatamente<br />
<strong>de</strong>la. Também se tornou <strong>um</strong>a das minhas músicas<br />
<strong>de</strong> maior execução em bailes <strong>de</strong> todo o Brasil e até no exterior,<br />
como nos intervalos dos jogos da NBA americana. Engraçado é<br />
que o grupo era contra a inclusão <strong>de</strong> “DJ Scratch” no single.<br />
— Gordo, essa música não tem nada a ver com o Magrellos! -<br />
dizia Freire.<br />
— Mas, Freire, é só para completar o disco mix com três faixas<br />
<strong>de</strong> cada lado!<br />
— Tá bom, Gordo! Você <strong>de</strong>ve saber o que faz.<br />
O sucesso do single foi tão gran<strong>de</strong> em São Paulo que rapidamente<br />
ven<strong>de</strong>u tudo. Como forma <strong>de</strong> pagamento, ganhamos <strong>um</strong><br />
par <strong>de</strong> toca-discos e mixer novos do Carlinhos.<br />
As pessoas perguntavam como eu conseguia <strong>de</strong>ixar as músicas<br />
com cara das produções internacionais. Um dos meus segredos<br />
era o sampler, aparelho que estava começando a ser difundido<br />
no Brasil. Eu realmente sabia operar esse equipamento, mas<br />
não era só isso. A diferença estava na minha forma <strong>de</strong> produzir<br />
as bases. Enquanto alguns produtores se limitavam a fazer<br />
música com os equipamentos que possuíam - o que se traduzia<br />
em limitação <strong>de</strong> timbres -, eu usava o recurso <strong>de</strong> extrair instr<strong>um</strong>entos<br />
<strong>de</strong> músicas internacionais. O que isso quer dizer?<br />
Por exemplo, como eu não tinha os timbres <strong>de</strong> bateria que os<br />
produtores internacionais tinham, eu pegava <strong>um</strong> disco <strong>de</strong> vinil
O primeiro concurso <strong>de</strong> rap do DF<br />
155<br />
importado com a batida solta e a sampleava toda separada.<br />
A caixa, o chimbal, <strong>de</strong>pois o b<strong>um</strong>bo e assim sucessivamente. Aí,<br />
eu utilizava esses timbres para programar outra batida, totalmente<br />
diferente da original. Isso dava <strong>um</strong>a cara internacional<br />
ao meu trabalho. Separar e fi ltrar os timbres tornava o meu trabalho<br />
original. Eu explorava o sampler indo até os seus limites.<br />
Quando não sobrava mais tempo na memória, eu sampleava do<br />
disco em 45 rotações para ganhar tempo. Depois, era só tocá-lo<br />
<strong>um</strong>a oitava abaixo. O gran<strong>de</strong> problema era quando queríamos<br />
aplicar o recurso time stretch. 1 Hoje em dia, você faz isso<br />
muito rápido em qualquer programa <strong>de</strong> música no computador.<br />
Naquela época, eu tinha que fazer <strong>um</strong> monte <strong>de</strong> cálculo. O sampler<br />
<strong>de</strong>morava tanto tempo para calcular a programação, que<br />
dava tempo <strong>de</strong> sair para lanchar. Depois <strong>de</strong> meia hora a gente<br />
via se o resultado estava bom. Às vezes, fi cava ruim e a gente<br />
tinha que repetir tudo <strong>de</strong> novo. Era <strong>um</strong> exercício <strong>de</strong> paciência.<br />
1 Mudar o tempo <strong>de</strong> <strong>um</strong> sampler sem mudar o tom <strong>de</strong>le.
156<br />
CAPÍTULO 20:
Em 1990, eu e Leandro fomos convidados pela GP Records <strong>de</strong><br />
São Paulo para produzir <strong>um</strong> disco dirigido a <strong>um</strong> outro público,<br />
afastado do hip-hop. Era o projeto “House Brasil”. Nossa vonta<strong>de</strong><br />
era <strong>de</strong> fazer música <strong>de</strong> pista com elementos nacionais. Para<br />
isso, formamos o grupo <strong>de</strong> produtores FDS (Fábrica <strong>de</strong> Som). A<br />
música <strong>de</strong> trabalho se chamava “Que porra é essa?” e tinha <strong>um</strong>a<br />
versão comportada, “Que zorra é essa?”. O sample utilizado foi<br />
da música “Da da da”, <strong>de</strong> 1982, do grupo alemão Trio. Os vocais<br />
foram gravados por mim mesmo. Fizemos o trabalho no estúdio<br />
Audio Fi<strong>de</strong>lity, do Marcelo Goe<strong>de</strong>rt. Tudo foi gravado em apenas<br />
quatro canais.<br />
Como o Audio Fi<strong>de</strong>lity era pequeno, o preço era melhor que o do<br />
Zen, on<strong>de</strong> eu tinha gravado o disco dos Magrellos. Como o risco<br />
era meu e do Leandro, a gente não podia se dar o luxo <strong>de</strong> gastar<br />
muito sem saber ao certo como seria a recepção <strong>de</strong> <strong>um</strong> vinil <strong>de</strong><br />
house nacional. A gravadora garantiu o reembolso pelas horas<br />
em estúdio, mas, nessa época, não podíamos botar muita fé<br />
nessas promessas. As gravadoras prometiam e não c<strong>um</strong>priam.<br />
Não <strong>de</strong>u outra! Nossa sorte foi que o Marcelo era amigo nosso e<br />
pu<strong>de</strong>mos pagar com <strong>um</strong> trabalho, a produção <strong>de</strong> <strong>um</strong> jingle.<br />
O disco teve boa repercussão e, por ser <strong>um</strong>a gravadora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
nova e pequena, fi camos surpresos com a venda <strong>de</strong><br />
todas as cinco mil cópias prensadas. Fizemos alguns lançamentos<br />
no interior <strong>de</strong> São Paulo – por exemplo, em Cubatão – e<br />
158
Fábrica <strong>de</strong> Som<br />
159<br />
<strong>de</strong>mos entrevistas. Foi <strong>um</strong>a experiência interessante, e nos <strong>de</strong>u<br />
a chance <strong>de</strong> divulgar o nosso trabalho em outros mercados.<br />
Nesse ano, a Kaskatas ainda me chamou para produzir alguns<br />
trabalhos, como o Ritmo Quente Vol<strong>um</strong>e 2. Entre os <strong>de</strong>staques<br />
<strong>de</strong>ssa coletânea estavam o Sampa Crew, o MC Jack e a Sweet<br />
Lee. O Sampa Crew estava investindo no mercado do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, fazendo <strong>um</strong>a música no estilo miami bass, ou seja, <strong>um</strong><br />
funk eletrônico, e já tinha <strong>um</strong> disco solo pela Kaskatas. MC Jack<br />
estava com <strong>um</strong> trabalho paralelo, o Doctor Hype Bass, porque<br />
ainda tinha contrato com a gravadora Eldorado. A música <strong>de</strong>le<br />
foi <strong>um</strong>a das primeiras a ter muitas colagens no meio da rima.<br />
Já a Sweet Lee foi a primeira mulher que eu vi rimando. Um ano<br />
<strong>de</strong>pois eu faria <strong>um</strong> single e <strong>um</strong> LP <strong>de</strong>la, mas, infelizmente, só<br />
o single chegaria ao mercado, lançado pela Kaskatas. Também<br />
produzi <strong>um</strong> disco com músicas e montagens instr<strong>um</strong>entais chamado<br />
Kool Music Express. Em São Paulo, eu <strong>de</strong>i entrevistas em<br />
rádios e jornais sobre esses trabalhos. A mais interessante foi<br />
para a Folha <strong>de</strong> São Paulo em que falei sobre o hip-hop paulista,<br />
que já me apontava como <strong>um</strong> dos principais produtores <strong>de</strong> rap<br />
da cida<strong>de</strong>. Mesmo sem eu morar lá.<br />
Depois <strong>de</strong>ssa temporada <strong>de</strong> trabalhos, voltei para Brasília e<br />
fui trabalhar na recém-lançada Rádio Cultura, do governo do<br />
Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Trabalhei como operador e sonoplasta, produzindo<br />
vinhetas e gravando programas, no período <strong>de</strong> agosto<br />
a outubro <strong>de</strong> 1990. Como eu tinha iniciativa e tomava <strong>de</strong>cisões<br />
sem consultar ninguém para fazer várias coisas <strong>de</strong>ntro da rádio<br />
comecei a ter confl itos com o coor<strong>de</strong>nador. Ele começou a me<br />
escalar para abri-la aos domingos, às seis horas da manhã.<br />
Eu saía direto da danceteria da Fonte para lá. Passei a mudar<br />
a programação em alguns dias e, por incrível que pareça, ele<br />
sempre estava acordado, ouvindo a rádio, e ligava para mim<br />
reclamando. Não durei muito tempo lá.<br />
Ainda em 1990, o MC Jack veio junto com o Paulo Boy para Brasília,<br />
me pedindo para mixar <strong>um</strong> disco que eles haviam produzido
160 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
para a Equipe <strong>de</strong> Som Gallotte <strong>de</strong> São Paulo, pela Fat Records.<br />
O disco é <strong>um</strong>a coletânea com músicas do Big Flea (“Rei do microfone”<br />
e “Outra Vítima”), Sérgio Rick (“Vida” e “Chuva <strong>de</strong> verão”),<br />
Os Bacanas (“Melô da Cidinha”), e MC Théo e MC Clau (“Vida”).<br />
O Big Flea rimava com o Fish, do grupo Geração Rap, mas por<br />
causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sentendimentos, resolveu partir para carreira solo.<br />
A música “Outra Vítima” era muito boa e chegou a tocar em São<br />
Paulo e Brasília, mas mesmo assim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa música não<br />
se ouviu mais falar nele.<br />
No fi nal <strong>de</strong> 1991, eu e Leandro resolvemos dar continuida<strong>de</strong><br />
ao projeto FDS. O Carlinhos comprou esse projeto e lançou o<br />
trabalho com o nome FDS in effect. Convidamos para participar<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> disco o MC Vappo, que estava <strong>de</strong> volta a Brasília, e<br />
a Fabiana, <strong>um</strong>a cantora que eu conhecera na Rádio Cultura e<br />
tinha <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> blues. Eles cantaram a música “Venha<br />
dançar”, com arranjo e letra meus, que estourou nos bailes do<br />
DF e tocou também em São Paulo, interior <strong>de</strong> São Paulo e Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro. O disco tocou muito na Região Norte, por intermédio do<br />
MC Vappo. Quando ele voltou para Manaus, fez bastantes shows<br />
por lá e em outras cida<strong>de</strong>s. O maior DJ da época, Raidi Rabello,<br />
que também era produtor musical, locutor <strong>de</strong> rádio e dono <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> estúdio e <strong>um</strong> selo, fez <strong>um</strong> trabalho, fl ertando com a dance<br />
music, usando <strong>um</strong>a das músicas que o MC Vappo cantava.<br />
As portas da Kaskatas sempre estavam abertas para mim e<br />
para o Leandro. No ano seguinte, ele fez alg<strong>um</strong>as produções<br />
para a gravadora, inclusive <strong>um</strong>a coletânea que tinha trabalhos<br />
do DJ Cuca. O disco, chamado Rap Attack, mesclava músicas<br />
instr<strong>um</strong>entais, remixes e rap nacional. Tinha Geração Rap, MC<br />
Mattar e a primeira música com rima do Gog, “Vida”.<br />
Os trabalhos que nós <strong>de</strong>senvolvíamos para a Kaskatas nos<br />
<strong>de</strong>ram <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> experiência na área <strong>de</strong> produção musical.<br />
Para nós, era <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> divulgar o nosso trabalho, já que<br />
sabíamos que ninguém pagava quase nada pelas nossas produções.<br />
No FDS, eu e Leandro fomos para São Paulo <strong>de</strong> carro para
Fábrica <strong>de</strong> Som<br />
161<br />
ven<strong>de</strong>r o tape. O que ganhamos só <strong>de</strong>u para pagar a viagem. Mas<br />
o prazer <strong>de</strong> ver o trabalho na rua e <strong>de</strong> ajudar os artistas da periferia<br />
falava mais alto <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nossos corações.<br />
Em 1992, saíram dois trabalhos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do Cerrado. O primeiro<br />
era do grupo Circuito Fechado, da Ceilândia, especifi camente<br />
do P Sul. O segundo, <strong>um</strong>a produção do Leandro para <strong>um</strong> grupo da<br />
cida<strong>de</strong>-satélite Paranoá chamado Inimigo Público, formado pelo<br />
Gilmar (segundo colocado do concurso <strong>de</strong> rap da danceteria da<br />
Fonte), Carlão e DJ Chocolate. Eu faria a produção, mas era radicalmente<br />
contra o nome do grupo porque o Public Enemy estava<br />
estourado. 1 Tivemos várias conversas sobre o assunto, porém, não<br />
consegui convencê-los e acabei <strong>de</strong>sistindo do trabalho. Graças a<br />
Deus, a minha <strong>de</strong>cisão não abalou a nossa amiza<strong>de</strong>.<br />
Depois, o Leandro fez o DJ Leandronik DJ do gueto, seu primeiro<br />
trabalho solo pela Discovery. Esse disco incluiu a música <strong>de</strong><br />
estréia do grupo <strong>de</strong> rap Código Penal, <strong>de</strong> Planaltina.<br />
1 Public enemy signifi ca inimigo público em inglês.
162<br />
CAPÍTULO 21:
O ano <strong>de</strong> 1991 não foi fácil. Era o Governo Collor, com a ministra<br />
Zélia Cardoso <strong>de</strong> Mello. Todos lembram que estrago foi o Plano<br />
Collor. Da noite para o dia, quem tinha <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> dinheiro na<br />
conta, não tinha mais nada. Meu tio César, irmão da minha mãe,<br />
era dono <strong>de</strong> <strong>um</strong> restaurante e <strong>um</strong>a casa noturna. Ele per<strong>de</strong>u<br />
tudo, porque não conseguiu honrar compromissos com fornecedores<br />
e funcionários. Tempos lamentáveis.<br />
Para o Magrellos, o início do ano também não foi fácil. Freire<br />
resolveu, também <strong>de</strong> repente, parar <strong>de</strong> cantar rap e se <strong>de</strong>dicar a<br />
<strong>um</strong> concurso público para a Companhia <strong>de</strong> Saneamento Ambiental<br />
do distrito Fe<strong>de</strong>ral (Caesb). E, é claro, à sua futura esposa.<br />
A pressão sobre ele estava muito forte. São poucos os que conseguem<br />
viver da música, do rap então, nem se fala…<br />
Essa notícia foi <strong>um</strong> banho <strong>de</strong> água fria na gente, afi nal, o Freire<br />
era o principal vocalista e letrista. Todos fi caram tão <strong>de</strong>sanimados,<br />
que o grupo quase acabou. Quase, porque o Marcão resolveu<br />
tomar a linha <strong>de</strong> frente do trabalho, me surpreen<strong>de</strong>ndo.<br />
— Gordo, a gente não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sanimar agora.<br />
— Mas quem vai escrever as letras e fazer as rimas? O Tubarão<br />
escreve e canta bem menos do que o Freire!<br />
— Gordo, quero saber se você consegue fazer <strong>um</strong>as bases no<br />
estilo das bases gringas que estão tocando no momento.<br />
164
DJ Marlboro<br />
165<br />
— Por quê? Você vai fazer <strong>um</strong>as rimas no estilo dos gringos<br />
também, Marcão?<br />
— Me aguar<strong>de</strong> – disse ele, sorrindo.<br />
Essa conversa me <strong>de</strong>ixou empolgado. Passaram-se três semanas<br />
e, por incrível que pareça, o Marcão chegou com <strong>um</strong>as sete<br />
letras prontas. Quando eu vi as rimas que ele tinha feito e os<br />
temas das músicas, realmente não acreditei no que estava<br />
ouvindo. Tubarão também veio com mais <strong>um</strong>as três músicas<br />
prontas. Já tínhamos praticamente o repertório <strong>de</strong> <strong>um</strong> disco<br />
inteiro.<br />
— Marcão, por que você não me falou antes que já estava<br />
rimando assim?<br />
— Gordo, eu estou treinando faz <strong>um</strong> bom tempo e venho me inspirando<br />
nessas levadas novas que têm rolado. Principalmente a<br />
do Chuck D, do Public Enemy.<br />
Uma música chamou a minha atenção. Era “Doidão”. A rima<br />
tinha o estilo que predominava na cena do rap naquele ano: o<br />
ragga, vindo da Jamaica, com batidas <strong>de</strong> rap misturadas com<br />
arranjos <strong>de</strong> reggae. O Marcão tinha aprendido a rimar <strong>de</strong>sse<br />
jeito meio cantando reggae. Fazer a base foi muito divertido,<br />
porque para fazer <strong>um</strong>a levada reggae, peguei <strong>um</strong>a guitarra do<br />
grupo <strong>de</strong> rock pesado AC/DC e toquei em 45 rotações. Ficou<br />
muito louco! A nossa criativida<strong>de</strong> não tinha limites. A forma <strong>de</strong><br />
cantar do Magrellos serviu <strong>de</strong> inspiração para muitos grupos<br />
que, futuramente, consagrariam o estilo, adicionando <strong>um</strong> toque<br />
mais pop, como o Skank e o Rappa.<br />
As semanas seguintes foram <strong>de</strong> muito trabalho. Eu saíra do Estúdio<br />
Sete na época que fui para os Estados Unidos para me formar.<br />
Mas a minha amiza<strong>de</strong> com o Antônio Lúcio permanecia a mesma.<br />
Ele liberou o estúdio para eu fazer a <strong>de</strong>mo do nosso disco. Trabalhamos<br />
nos fi nais <strong>de</strong> semana quando o Sete não funcionava.
166 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
A primeira pessoa a quem eu mostrei as músicas prontas foi o<br />
Leandro.<br />
— Raffa, eu não tô acreditando no que eu tô ouvindo! O Marcão<br />
pegou o jeito <strong>de</strong> rimar dos gringos. O trabalho tá perfeito! Se não<br />
fosse cantado em português, eu diria que esse trabalho tinha<br />
vindo <strong>de</strong> fora.<br />
— Que bom que você gostou, Leandro! - respondi com <strong>um</strong> sorriso<br />
largo.<br />
A opinião <strong>de</strong>le era muito importante para mim. Depois <strong>de</strong> ouvirmos<br />
a <strong>de</strong>mo pronta, com todos do grupo, Tubarão me perguntou:<br />
— E agora, Gordo, o que a gente faz?<br />
— Agora eu vou pra São Paulo e pro Rio levar essa <strong>de</strong>mo pras<br />
gravadoras.<br />
— Eu vou com você, Gordo – disse.<br />
— Como você vai conseguir ser dispensado do trampo? – perguntei,<br />
já que ele trabalhava na Telebrasília. 1<br />
— Eu não vou - respon<strong>de</strong>u, rindo. - Mas po<strong>de</strong> contar comigo. A gente<br />
vai junto!<br />
O nosso contrato com a Kaskatas era só <strong>de</strong> <strong>um</strong> disco e <strong>um</strong> remix.<br />
Alg<strong>um</strong>a coisa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim dizia que esse trabalho era do nível<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a gravadora gran<strong>de</strong>, multinacional. Será que elas saberiam<br />
trabalhar rap? Talvez se eu tivesse me questionado mais<br />
sobre isso, não teria tomado certas <strong>de</strong>cisões. Porém, quando a<br />
gente é jovem, pensa que sabe tudo e é o dono do mundo. As<br />
semanas que se seguiram foram <strong>de</strong> peregrinação por várias<br />
gravadoras.<br />
Peguei o Tubarão no trabalho e ele se <strong>de</strong>spediu <strong>de</strong> todos como<br />
se fosse voltar no outro dia. Entramos em meu fusca vermelho,<br />
caindo aos pedaços, que eu havia comprado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r<br />
1 Antiga companhia telefônica <strong>de</strong> Brasília.
DJ Marlboro<br />
167<br />
<strong>um</strong>a linha telefônica da minha mãe. 2 O fusca <strong>de</strong>u trabalho na<br />
viagem: o marcador <strong>de</strong> gasolina não funcionava e, por isso, fi camos<br />
sem combustível duas vezes a caminho <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Chegando a Sampa, levamos a fi ta com a nossa <strong>de</strong>mo para várias<br />
gravadoras multinacionais. Em alg<strong>um</strong>as nem éramos recebidos<br />
pelos diretores artísticos. As fi tas fi cavam com <strong>um</strong>a secretária<br />
ou recepcionista. N<strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssas visitas, <strong>de</strong>ixamos a <strong>de</strong>mo com<br />
<strong>um</strong>a secretária que foi bastante grossa com a gente. Depois que<br />
saímos, eu lembrei que não tinha <strong>de</strong>ixado nosso contato e voltei<br />
correndo. Quando cheguei vi a mulher jogando a <strong>de</strong>mo no lixo.<br />
Aquela visão me <strong>de</strong>ixou muito nervoso.<br />
— Você tá pensando que é quem para fazer isso? – gritei.<br />
— Não é nada disso! Me <strong>de</strong>sculpe, a fi ta caiu sem querer...<br />
— Você é <strong>um</strong>a mentirosa! Você jogou a fi ta no lixo!<br />
As pessoas saíram <strong>de</strong> suas salas para ver o que estava acontecendo.<br />
Tubarão me pegou pelo braço e disse:<br />
— Gordo, vamos embora. Não vale a pena não, cara. Deus é maior!<br />
Saí do local indignado. E, claro, com a minha fi ta <strong>de</strong> volta. Tubarão<br />
tinha razão. Deus é maior e o meu coração disse para eu<br />
ligar para a minha irmã Sônia, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
— Maninha, tudo bem?<br />
— Tudo!<br />
— Eu estou com meu amigo em São Paulo e queremos aproveitar<br />
para dar <strong>um</strong>a passada aí no Rio. Tem alg<strong>um</strong> problema a<br />
gente fi car aí?<br />
— Não tem problema nenh<strong>um</strong>, Raffa! Quantos dias vocês vão<br />
fi car? – disse.<br />
2 Nessa época, as linhas telefônicas eram tão caras que alg<strong>um</strong>as pessoas aceitavam<br />
trocar seu carro usado por <strong>um</strong>a <strong>de</strong>las.
168 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Só o fi nal <strong>de</strong> semana, Sônia.<br />
— Tudo bem. Estou esperando vocês então.<br />
Aproveitamos a sexta-feira para levar mais fi tas <strong>de</strong>mo para gravadoras<br />
na cida<strong>de</strong>. Fui falar com o DJ Marlboro, que era diretor<br />
do <strong>de</strong>partamento internacional da PolyGram. A gente se conhecia<br />
porque o Marlboro já tinha tocado em Brasília e, além disso,<br />
“DJ Scratch” sempre tocava nos bailes do Rio.<br />
Ele ouviu o trabalho e disse:<br />
— Raffa, tá muito bom. Só que eu acho que essa música<br />
“Pobreza” tinha que ser mais eletrônica.<br />
Na hora, eu nem <strong>de</strong>i ouvidos ao comentário, porque sabia que o<br />
nosso som não era a praia do Marlboro, que tinha <strong>um</strong> estilo mais<br />
electro funk. Isso não quer dizer que eu não respeitava a opinião<br />
e o trabalho <strong>de</strong>le. Tanto que <strong>de</strong>pois mu<strong>de</strong>i a bateria da música,<br />
acatando sua sugestão.<br />
— Raffa, você tem que procurar <strong>um</strong> cara chamado Cláudio<br />
Campos, da Sony Music – disse Marlboro.<br />
— Mas como eu vou achar esse cara?<br />
— Deixa eu ligar para ele – respon<strong>de</strong>u e logo fez a ponte.<br />
— Alô! Cláudio? Tudo bem? É o Marlboro.<br />
— Tudo bem, Marlboro.<br />
— Eu tô com <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap <strong>de</strong> Brasília aqui e eu gostaria<br />
muito que você o recebesse aí na Sony. Tudo bem?<br />
— Tem que ser hoje ainda, até as seis horas da tar<strong>de</strong>, porque<br />
vou viajar no fi nal <strong>de</strong> semana – respon<strong>de</strong>u.<br />
— Eles já estão indo, Cláudio. Valeu!<br />
— Estou aguardando.<br />
Marlboro <strong>de</strong>sligou o telefone e nos passou as coor<strong>de</strong>nadas.
DJ Marlboro<br />
— Vai correndo, Raffa!<br />
— Obrigado, Marlboro. Por tudo, cara!<br />
— Vai lá, Raffa, e <strong>de</strong>pois me liga dizendo se <strong>de</strong>u certo.<br />
— Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar, cara, te ligo sim! Vamos, Tubarão.<br />
169<br />
Saímos da PolyGram correndo, porque ela fi cava na Barra<br />
da Tijuca e a Sony Music no Aterro do Flamengo, bairros bem<br />
distantes, e não faltava muito para as seis horas. Pegamos <strong>um</strong><br />
trânsito louco, mas chegamos antes das seis. A Sony, que comprara<br />
a antiga gravadora CBS, fi cava no décimo-quinto andar <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> prédio enorme. E ocupava o andar inteiro.<br />
Esperamos <strong>um</strong> tempinho na recepção. Logo o Cláudio Campos nos<br />
recebeu. Mostramos o nosso book com fotos e reportagens, e falamos<br />
do nosso trabalho novo. Porém, ele estava com muita pressa.<br />
— Olha, gente, muito legal. Só que eu tenho que sair, porque<br />
vou viajar. Fiquem tranqüilos que eu vou ouvir a fi ta com calma.<br />
Tudo bem?<br />
Olhei para o Tubarão e respondi:<br />
— Tudo bem. Aí estão todos os nossos contatos, inclusive aqui<br />
no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Ele pegou a fi ta <strong>de</strong>mo e colocou n<strong>um</strong>a estante atrás <strong>de</strong>le, que<br />
tinha, pelo menos, outras cem fi tas. Aquela cena foi ainda mais<br />
triste para mim do que a da secretária jogando a <strong>de</strong>mo no lixo.<br />
Eu duvi<strong>de</strong>i que ele fosse escutá-la <strong>de</strong>pois. Tubarão <strong>de</strong>sanimou<br />
tanto que nem quis fi car o fi nal <strong>de</strong> semana no Rio para pegar<br />
<strong>um</strong>a praia, como ele dizia.<br />
— Pô, Gordo, me leva pra rodoviária, que eu quero ir pra casa.<br />
— Beleza, Tubarão! Mas eu vou fi car, cara. Na segunda eu vou.<br />
Também cansei, cara! Uma semana inteira pra terminar assim.<br />
— Vamos então.
170 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Levei-o até a rodoviária e ele pegou o primeiro ônibus <strong>de</strong> volta a<br />
Brasília. Ainda me disse antes <strong>de</strong> embarcar:<br />
— A esperança é a última que morre, Gordinho!<br />
— Vai com Deus, Tubarão.<br />
Voltei direto para a casa da Sônia. E fi quei o fi nal <strong>de</strong> semana<br />
todo lá.
171
172<br />
CAPÍTULO 22:
Na segunda-feira <strong>de</strong> manhã, após <strong>um</strong> fi nal <strong>de</strong> semana entediante,<br />
o telefone na casa da minha irmã tocou. Ela aten<strong>de</strong>u.<br />
— Alô?<br />
— Por favor, eu gostaria <strong>de</strong> falar com o DJ Raffa. Ele se encontra?<br />
— Sim, só <strong>um</strong> momento, por favor.<br />
— Raffa! Raffa! Telefone! – gritou a Sônia.<br />
Estava saindo do banho e atendi sem imaginar quem queria<br />
falar comigo.<br />
— Alô, aqui é o Raffa. Quem fala?<br />
— Oi, Raffa, tudo bem? Aqui é o Cláudio Campos, da Sony Music.<br />
— Sim, Cláu... Cláudio, tudo bem? – mal consegui dizer.<br />
— Raffa, eu ouvi a fi ta no fi nal <strong>de</strong> semana e adorei a <strong>de</strong>mo do<br />
seu grupo. Queria muito que você viesse na gravadora hoje pra<br />
gente conversar. Po<strong>de</strong> ser ou você tem outro compromisso?<br />
Por <strong>um</strong> instante, fi quei sem fôlego. Foi como se o tempo parasse.<br />
Não acreditava no que eu estava ouvindo. Mas consegui voltar<br />
a mim e respondi:<br />
— Claro que eu posso, é só você me falar a que horas.<br />
174
Sony Music<br />
— Raffa, vamos marcar às três, <strong>de</strong>pois do almoço, ok?<br />
175<br />
— Claro, estarei aí – disse. Quando eu <strong>de</strong>sliguei o telefone, saí<br />
gritando. — Sônia! Sônia! Eles querem conversar comigo!<br />
— Quem quer conversar, Raffa?<br />
— O pessoal da Sony Music. Agora eu acho que vai dar certo!.<br />
— Vá com calma e seja você mesmo lá na hora – ela me disse.<br />
Liguei para o Marcão para contar a novida<strong>de</strong>.<br />
— Marcão, fi nalmente <strong>um</strong>a boa notícia... – e, empolgado, contei-lhe<br />
sobre o telefonema.<br />
— Gordo, nada foi resolvido ainda. Vá com calma.<br />
— Beleza, Marcão! Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar comigo.<br />
Cheguei à gravadora e fui recebido pelo Cláudio Campos, que<br />
me levou para a sala do Sérgio Lopes, então diretor do <strong>de</strong>partamento<br />
nacional da gravadora. Ele me c<strong>um</strong>primentou, pegou a<br />
fi ta, colocou no <strong>de</strong>ck e começou tocar a música “Doidão”.<br />
— Raffa, o trabalho <strong>de</strong> vocês é muito bom. Estou impressionado<br />
com as rimas e com a suas produções – disse Sérgio.<br />
— Obrigado.<br />
— Quem te indicou ao Cláudio Campos?<br />
— Foi o DJ Marlboro.<br />
— Cláudio, anota aí que a gente tem que fazer <strong>um</strong> agrado pro<br />
Marlboro por essa indicação.<br />
— Ok, Sérgio - respon<strong>de</strong>u Cláudio.<br />
— O que você precisa pra fi nalizar duas músicas com aspecto<br />
profi ssional? - perguntou Sérgio para mim.<br />
— Somos quatro integrantes. São quatro passagens Brasília-<br />
Rio-Brasília. Tem que ser n<strong>um</strong> fi nal <strong>de</strong> semana, porque a galera<br />
trabalha. Preciso <strong>de</strong> <strong>um</strong> estúdio profi ssional que tenha, pelo
176 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
menos, 24 canais pra eu gravar a base, colocar os vocais e mixar<br />
as músicas. Isso dá <strong>um</strong>a média <strong>de</strong> três dias <strong>de</strong> estúdio com, no<br />
mínimo, oito horas por dia – disse. – Também preciso ir a Brasília<br />
pegar o meu equipamento.<br />
Sérgio percebeu que eu não era leigo no assunto e sabia o que<br />
estava falando.<br />
— Ok, Raffa, tá feito! Po<strong>de</strong> ser nesse fi nal <strong>de</strong> semana?<br />
— Posso ligar pra eles e confi rmar logo? – quis saber.<br />
— Claro! Po<strong>de</strong> ligar daqui mesmo.<br />
Falei com todos e rapidamente tudo foi resolvido. Enquanto dava<br />
os telefonemas, tive <strong>um</strong>a dúvida.<br />
— Sérgio, por que você só precisa <strong>de</strong> duas músicas prontas?<br />
Por que não faz logo o disco inteiro?<br />
— Eu tenho autonomia <strong>de</strong> contratar bandas e grupos aqui na<br />
Sony como eu quiser. Mas se eu fi zer duas músicas com acabamento<br />
profi ssional, mostrar pro presi<strong>de</strong>nte da Sony e receber a<br />
aprovação <strong>de</strong>le, fi co com mais liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar – explicou.<br />
Fiquei pensando comigo mesmo que, na verda<strong>de</strong>, ainda não<br />
estávamos contratados. Tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> nós mesmos, da<br />
nossa perfomance.<br />
— Mas por que vocês querem investir em rap nacional? – insisti.<br />
— Recebemos na semana passada <strong>um</strong> fax da Sony Internacional<br />
pedindo para a Sony brasileira investir em rap. Vocês vieram<br />
na hora certa – disse Cláudio.<br />
Então percebi que não bastava ser bom ou fazer <strong>um</strong> ótimo trabalho.<br />
Que ter sorte e estar no momento certo, na hora certa<br />
e no lugar certo fazia a diferença também. Lógico que se não<br />
tivéssemos talento, não seríamos chamados para essa primeira<br />
conversa.<br />
Ao sair da Sony, liguei para o Marlboro para agra<strong>de</strong>cer por tudo.
Sony Music<br />
— Fala, Marlboro! Beleza?<br />
— Quem fala?<br />
— É o Raffa, cara!<br />
177<br />
— Fala, Raffa! Então, <strong>de</strong>u certo lá na Sony? – perguntou <strong>de</strong><br />
imediato.<br />
— A princípio sim, Marlboro. Vamos gravar duas músicas para<br />
serem aprovadas pelo presi<strong>de</strong>nte.<br />
— Se preocupe não, Raffa. É assim mesmo, cara. Boa sorte!<br />
— Mais <strong>um</strong>a vez, obrigado por tudo.<br />
— Não esquenta!<br />
A Sony pagou passagem para todos, só não <strong>de</strong>u a hospedagem<br />
e fi camos no apartamento da minha avó Luzia, em Copacabana.<br />
Quem morava lá também era o meu tio Jaime, irmão da minha<br />
mãe. Tubarão e Rossi só fi caram <strong>um</strong> dia para colocar o vocal.<br />
Eu e Marcão permanecemos mais tempo para incluir os vocais<br />
<strong>de</strong>les e terminar as duas músicas.<br />
Quando chegamos ao estúdio da Som Livre, 1 fi camos impressionados<br />
com o tamanho. Uma das salas tinha tantos teclados, tantos<br />
equipamentos uns em cima dos outros, que fi quei com vergonha<br />
dos meus mo<strong>de</strong>stos teclado, bateria eletrônica, sampler<br />
e sequencer. Quando comecei a montar meu set up no estúdio,<br />
percebi que alguns técnicos e produtores curiosos, que estavam<br />
em outros estúdios mas passavam por lá, riam do meu equipamento.<br />
Fiquei pensando que eles teriam <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> surpresa na<br />
hora que eu apertasse o play do sequencer. Dito e feito!<br />
— Cara, como é que você tira esse som só com esse equipamento?<br />
– perguntou <strong>um</strong> dos técnicos imediatamente.<br />
1 A Sony usava os estúdios da Som Livre para gravar seus discos.
178 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Quando a gente tem pouco, precisa tirar o máximo do que<br />
tem! Sempre fui acost<strong>um</strong>ado a fazer muito com pouco. Taí a<br />
diferença! – respondi.<br />
Senti que, <strong>de</strong> <strong>um</strong> segundo para outro, o respeito ao meu trabalho<br />
começava a surgir nos olhares dos curiosos. Em 1991, a<br />
manipulação do sampler ainda era <strong>um</strong>a novida<strong>de</strong> mesmo para<br />
os profi ssionais que conheciam o equipamento.<br />
À noite, na hora <strong>de</strong> gravar os vocais do Marcão na música “Doidão”,<br />
o estúdio estava lotado <strong>de</strong> gente. Músicos, curiosos, técnicos,<br />
Cláudio Con<strong>de</strong> (presi<strong>de</strong>nte da Som Livre), representantes<br />
da Sony Music, Ronaldo Monteiro (que fora <strong>de</strong>signado para ser<br />
nosso co-produtor) e Cláudio Campos. Estava tão cheio que o<br />
Marcão fi cou nervoso e não parava <strong>de</strong> errar. “Doidão” não é <strong>um</strong>a<br />
música fácil, pois tem muitas rimas e variação <strong>de</strong> notas. Ele não<br />
podia nem <strong>de</strong>safi nar. Entrei na cabine <strong>de</strong> voz e pedi para o técnico<br />
<strong>de</strong>sligar o microfone.<br />
— Marcão, o que é que tá acontecendo?<br />
— Gordo, eu tô nervoso, cara! Tá foda! – exclamou.<br />
— Mas não tem motivo, cara – tentei acalmá-lo.<br />
— Como não, Raffa? Olha o tanto <strong>de</strong> gente importante que tá<br />
aqui no estúdio!<br />
— Marcão, seja você mesmo. Você rima muito, cara. Arrebenta,<br />
porra! Eu confi o em você. Faça <strong>de</strong> conta que não tem ninguém aqui.<br />
— Não é fácil, cara! Mas eu vou tentar <strong>de</strong> novo, Gordo.<br />
— Vai tentar, não. Você vai arrebentar agora, cara! Manda ver! –<br />
exclamei e saí da cabine... – Gravando! – falei para o técnico.<br />
Graças a Deus, minhas palavras não foram em vão. Marcão não<br />
errou mais e arrebentou, cantando muito. O sucesso da gravação<br />
se espalhou rápido <strong>de</strong>ntro da Sony e o Sérgio Lopes elogiou<br />
a nossa postura em estúdio.
Sony Music<br />
179<br />
No dia seguinte, fui mixar as músicas no estúdio da Som Livre<br />
e tudo ocorreu muito bem. Os técnicos fi zeram tudo o que eu<br />
pedi. Alguns samplers estavam em mono por causa da pouca<br />
memória do meu sampler, por isso, tive que usar minhas técnicas<br />
para transformá-los em estéreo.<br />
Fiquei pensando que eu recusara trabalhar na Som Livre <strong>um</strong><br />
ano atrás e estava ali, no mesmo estúdio, como produtor musical.<br />
A sensação era boa. Porém, o resultado fi nal do trabalho<br />
precisaria ser muito bom para que tudo <strong>de</strong>sse certo. Por tudo<br />
isso, nunca vou esquecer aquele março <strong>de</strong> 1991.
180<br />
CAPÍTULO 23:
Os dois dias seguintes foram os mais longos da minha vida. A ansieda<strong>de</strong><br />
e o nervosismo tomaram conta <strong>de</strong> mim e do Marcão. Finalmente<br />
veio a notícia <strong>de</strong> que o presi<strong>de</strong>nte da Sony gostara muito do<br />
trabalho e que iríamos ser contratados. Foi <strong>um</strong>a euforia só.<br />
Naquele mesmo ano, saiu o primeiro disco do Cida<strong>de</strong> Negra.<br />
A cena do reggae da Baixada Fl<strong>um</strong>inense estava muito forte no<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro. A gente se cruzava muito na gravadora. Também<br />
foi lançado o primeiro trabalho do cantor Ivo Meirelles, que<br />
<strong>de</strong>pois criou o Funk’n Lata. O Ivo sempre convidava a gente para<br />
jogar futebol <strong>de</strong> salão na Mangueira 1 nas noites <strong>de</strong> quinta, o que<br />
virou <strong>um</strong>a tradição enquanto moramos no Rio.<br />
Ainda em 1991, surgiu tendência nova nas pistas: músicas dançantes<br />
que não tinham a batida do house e usavam linhas <strong>de</strong><br />
rima e elementos do hip-hop. O dance começara a fl ertar com<br />
o rap. Alguns grupos e cantores que representavam esse estilo<br />
eram o Snap, C&C Music Factory, B. G. The Prince of Rap e Ice MC.<br />
O <strong>de</strong>partamento internacional da Sony Music recebia singles em<br />
vinil promocionais que eram distribuídos entre os DJs e rádios. O<br />
DJ Rodrigo Vieira, fi lho da atriz Suzana Vieira, tomava conta do<br />
<strong>de</strong>partamento. Fizemos amiza<strong>de</strong> e ele me passou muitas coisas<br />
interessantes sobre esse estilo. Sabendo que eu e Marcão éramos<br />
fãs do Public Enemy, Rodrigo nos <strong>de</strong>u vários singles exclu-<br />
1 Morro da Zona Norte carioca, se<strong>de</strong> da tradicional escola <strong>de</strong> samba homônima.<br />
182
O contrato<br />
183<br />
sivos, com versões que só havia em discos promocionais. Aquilo<br />
serviu como <strong>um</strong>a luva para nos inspirarmos mais ainda.<br />
Fui à Sony e pedi ao Sérgio para comprar <strong>um</strong>a bateria eletrônica<br />
que tinha uns timbres que eu precisava para terminar o disco.<br />
Como cada <strong>um</strong> dos integrantes do grupo receberia mil doláres<br />
<strong>de</strong> adiantamento, e isso era muito dinheiro na época, ele <strong>de</strong>scontaria<br />
da minha cota o valor do equipamento. Infelizmente no<br />
dia em que saiu o dinheiro, fui ao banco retirar a meta<strong>de</strong> e fui<br />
assaltado à caminho da Sony. Quando eu cheguei na gravadora,<br />
estava indignado. No entanto, Sérgio me acalmou:<br />
— Raffa, fi ca tranqüilo! Tá aqui a bateria.<br />
— Po<strong>de</strong> levar ela e não precisa acertar nada não, cara!<br />
— Obrigado, Sérgio. Valeu mesmo!<br />
Como eu estava com todo equipamento, eu e Marcão começamos<br />
a produzir as idéias novas no apartamento da minha avó<br />
mesmo. Uma das produções fi cou no estilo <strong>de</strong> “Here we go” do<br />
C&C Music Factory, e se chamava “Mexa-se. Venha dançar”. Nós<br />
queríamos <strong>um</strong> vocal feminino para o refrão. Comentei o assunto<br />
com o Sérgio.<br />
— O que vocês acham da Rosana participar do álb<strong>um</strong> <strong>de</strong> vocês?<br />
– perguntou.<br />
Olhei para o Marcão sem enten<strong>de</strong>r direito.<br />
— Mas, Sérgio, a Rosana participaria <strong>de</strong> <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> rap e<br />
ainda por cima <strong>de</strong> <strong>um</strong> grupo novo? – indaguei.<br />
— Você já viu o novo trabalho <strong>de</strong>la? Ela tem <strong>um</strong>a voz que lembra<br />
muito as cantoras negras americanas. Só que nunca a direcionou<br />
para esse público – disse Sérgio. – A idéia é boa para ela<br />
também, porque através da música <strong>de</strong> vocês ela vai atingir <strong>um</strong><br />
público que não ouve Rosana.<br />
— E que público é esse, Sérgio? – insisti.
184 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— O público que ouve outro tipo <strong>de</strong> música, que não seja o<br />
brega. O público da MTV, por exemplo.<br />
— Você vai fazer a intermediação então?<br />
— Claro, é só você me passar a música em versão instr<strong>um</strong>ental<br />
pra ela ouvir – pediu.<br />
Concordamos, sem saber que essa participação não seria<br />
entendida por muitos DJs e formadores <strong>de</strong> opinião.<br />
Tínhamos a idéia <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong> trabalho eclético, pois essa era<br />
a marca do grupo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. Recebemos alg<strong>um</strong>as críticas<br />
favoráveis, o que na época era motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> comemoração, já<br />
que pouquíssimas resenhas <strong>de</strong> discos <strong>de</strong> rap eram publicadas.<br />
Só que o público estava começando a se dividir e segmentar.<br />
Quem ouvia rock, não ouvia rap nem dance. Quem ouvia dance,<br />
não ouvia rap. Quem ouvia música brega, não ouvia rap nem dance<br />
nem rock. Quem ouvia rock, rap ou dance, com certeza não ouvia<br />
brega. E assim sucessivamente. Na verda<strong>de</strong>, acho isso <strong>um</strong>a completa<br />
idiotice, pois sempre achei importante conhecer todo tipo<br />
<strong>de</strong> música, sem qualquer discriminação. E se eu não gostar, tenho,<br />
no mínimo, a obrigação <strong>de</strong> respeitar e saber distinguir o que é verda<strong>de</strong>iro<br />
e bem feito do que é mal feito e sem originalida<strong>de</strong>.<br />
No entanto, nem todos no hip-hop pensavam assim. Rap radical<br />
não podia ouvir rap lagartixa. E vice-versa. Res<strong>um</strong>indo: o discurso<br />
já era contraditório naquela época. Acho que cada <strong>um</strong> tem o<br />
direito <strong>de</strong> optar pelo estilo que quiser. Eu evoluí para <strong>um</strong>a música<br />
mais consciente, mas não tenho nada contra aqueles que fazem<br />
rap-festa e rap misturado com r&b, como o Sampa Crew.<br />
Depois <strong>de</strong>sse trabalho pela Sony, constatei que, infelizmente,<br />
<strong>um</strong> grupo <strong>de</strong>ve fazer música direcionada a <strong>um</strong> segmento específi<br />
co do público. Muita gente não enten<strong>de</strong>u por que o nosso disco<br />
tinha rap político, radical, dançante para pista e ragga. O grupo<br />
era assim; nosso som era verda<strong>de</strong>iro. Tubarão e Rossi gostavam
O contrato<br />
185<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> som dançante, eu e Marcão sempre preferimos <strong>um</strong> som<br />
radical e político. No fi m, sofremos por escolher a diversida<strong>de</strong>.<br />
Voltamos para Brasília com data certa para voltarmos para o<br />
Rio, com o grupo todo: primeiro <strong>de</strong> abril, e não era mentira. Na<br />
volta, assinamos o contrato e fi camos hospedados n<strong>um</strong> hotel<br />
na Barra da Tijuca durante as duas semanas <strong>de</strong> trabalho em<br />
estúdio que tivemos para fazer o disco inteiro.<br />
A primeira semana foi para gravação das bases e vozes na Som<br />
Livre. Na segunda, trabalhamos no maior estúdio do Brasil na<br />
época, o Impressão Digital on<strong>de</strong> dispusemos <strong>de</strong> 12 horas por dia<br />
só para a mixagem do disco. Um sonho realizado. Antigamente<br />
as coisas funcionavam assim, com a gravadora bancando tudo.<br />
Hoje em dia não existe mais <strong>de</strong>mo. Você vai com o seu trabalho<br />
já pronto e, se a gravadora gostar, lança e te contrata.<br />
Em Brasília, Marcão pediu dispensa do trabalho. Ele era taifeiro<br />
do Exército. Rossi trabalhava ainda como offi ce-boy e não teve<br />
problema para viajar. Tubarão pediu <strong>de</strong>missão <strong>de</strong> seu emprego.<br />
Todos acreditavam que po<strong>de</strong>riam viver só da música. Às vezes,<br />
sonhamos <strong>de</strong>mais e esquecemos que, na vida, o sonho é bom,<br />
mas a realida<strong>de</strong> nua e crua é o que conta.<br />
Um jornalista do Correio Braziliense à época, Fernando Molina,<br />
me pressionava para contar a novida<strong>de</strong>. A Sony estava com medo<br />
<strong>de</strong> que os jornais pensassem que os Magrellos seriam mais <strong>um</strong><br />
produto fabricado por <strong>um</strong>a gravadora multinacional. Com certeza,<br />
iríamos mostrar que não éramos. E todos que acompanhavam<br />
o nosso trabalho no DF sabiam que o grupo era original.<br />
Finalmente chegamos ao Rio. Nosso co-produtor, o Ronaldo<br />
Monteiro, nos acompanhava em tudo. O primeiro dia, à noite no<br />
hotel, foi engraçado. O Rossi <strong>de</strong>ntro da piscina pedindo para a<br />
garçonete levar <strong>um</strong>a latinha <strong>de</strong> cerveja para ele.<br />
— É tudo que você pediu a Deus, né, Rossi? – brinquei.
186 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Gordo, eu nunca me senti assim antes – respon<strong>de</strong>u ainda<br />
na água.<br />
— Então aproveita, porque não sabemos aon<strong>de</strong> isso vai dar.<br />
— Você acha que esse disco vai estourar, Raffa?<br />
— Não sei. Só sei que a gente quer fazer aquilo que gosta e acha<br />
que é certo, sem se preocupar com tendências mercadológicas.<br />
— Falou difícil, hein, Gordo? – gritou Tubarão, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da piscina.<br />
— Que nada, Tubarão. Você acha que quando a gente estiver na<br />
mídia, eles não vão cobrar tudo da gente? Por que isso, por que<br />
aquilo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> tirou isso... Se a gente não falar bonito e não<br />
estiver bem informado, vamos soar falsos e mentirosos.<br />
— É verda<strong>de</strong>, Gordo – concordou Tubarão.<br />
— Galera, a mídia te levanta e te <strong>de</strong>strói quando bem enten<strong>de</strong> –<br />
disse Marcão.<br />
— Com certeza – concordamos todos.<br />
Quando o disco já estava na fase <strong>de</strong> mixagem no Impressão<br />
Digital, fomos para a Sony assinar o contrato. Ele estabelecia<br />
a gravação <strong>de</strong> <strong>um</strong> disco e, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do <strong>de</strong>sempenho, seria<br />
renovado para mais dois.<br />
O contrato era dividido igualmente pelos quatro integrantes. Foi<br />
assim que achamos melhor, apesar <strong>de</strong> o disco ter mais letras<br />
do Marcão. Duas <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>terminações eram muito boas para<br />
o grupo. A primeira era que o disco sairia em formato vinil, fi ta<br />
cassete e CD. O formato CD ainda estava engatinhando no Brasil<br />
e poucas lojas já exibiam alguns exemplares em suas prateleiras.<br />
Como a Sony tinha a pretensão <strong>de</strong> lançar o disco no mercado<br />
exterior, optaram por gravar em CD. No entanto, o público do rap<br />
só absorviria a idéia do CD, pelo menos cinco anos mais tar<strong>de</strong>,<br />
porque os CD players eram muito caros. A segunda era que faríamos<br />
<strong>um</strong> vi<strong>de</strong>oclipe, em formato 16mm, com a Conspiração Filmes,<br />
para a MTV, que ainda era <strong>um</strong>a TV nova no Brasil. O “Yo MTV Raps!”
O contrato<br />
187<br />
mostrado pela emissora era o mesmo que a MTV americana exibia<br />
e passava <strong>um</strong>a vez por semana, <strong>de</strong> madrugada. Depois o KL<br />
Jay, do Racionais, e o Thaí<strong>de</strong> tornaram-se apresentadores.<br />
Quando chegamos à Sony, vimos que <strong>um</strong>a pequena festa regada<br />
a champanhe estava rolando. De repente, a secretária do Sérgio<br />
Lopes apareceu com <strong>um</strong> papel que não era o contrato e que só<br />
eu <strong>de</strong>veria assinar. O doc<strong>um</strong>ento <strong>de</strong>terminava que eu não receberia<br />
cachê pela produção do disco.<br />
— Raffa, se eu fosse você, eu não assinava isso <strong>de</strong> jeito nenh<strong>um</strong><br />
– aconselhou Ronaldo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter lido o doc<strong>um</strong>ento.<br />
— Você acha mesmo? – perguntei.<br />
— Claro, Raffa, pelo amor <strong>de</strong> Deus!<br />
— Que nada, Ronaldo, me dá a caneta aí. Vou assinar, porque<br />
acredito no meu trabalho – disse, peguei a caneta das mãos <strong>de</strong>le<br />
e assinei rindo e tomando champanhe.<br />
Anos <strong>de</strong>pois, eu me arrependi amargamente <strong>de</strong>sse ato estúpido<br />
e arrogante. Po<strong>de</strong>ria ter negociado muitas coisas pela produção<br />
do disco. Um carro, talvez <strong>um</strong> apartamento, sei lá! Eu tinha<br />
apenas 21 anos e era h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>, mas estava passando pela fase<br />
da arrogância típica da juventu<strong>de</strong>. Ronaldo nunca se conformou<br />
com a minha <strong>de</strong>cisão. Mas Deus sabe o que faz.<br />
O nosso disco foi o primeiro registro em CD <strong>de</strong> <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap<br />
nacional no Brasil. Também fomos o primeiro grupo brasileiro <strong>de</strong><br />
rap a gravar n<strong>um</strong>a multinacional. Se isso seria vantajoso para a<br />
nossa carreira, só <strong>de</strong>scobriríamos tempos <strong>de</strong>pois.
188<br />
CAPÍTULO 24:
Finalmente chegou o dia <strong>de</strong> gravar a música da qual a Rosana<br />
participaria. Ela prefi riu gravar no estúdio das Nuvens, do famoso<br />
produtor Liminha. Lá havia <strong>um</strong> dos melhores samplers da época,<br />
o Emulator. Fiquei impressionado quando vi o equipamento.<br />
Quando ela chegou, eu me apresentei e ela foi logo falando:<br />
— Adorei o seu trabalho <strong>de</strong> produção. Gostaria que você produzisse<br />
três músicas do meu próximo disco.<br />
— Claro, Rosana, será <strong>um</strong>a honra para mim.<br />
— Sabe, Raffa, eu gosto muito dos trabalhos da Janet Jackson.<br />
Só que eu sempre direcionei o meu trabalho para <strong>um</strong>a outra linha.<br />
— Entendo – respondi.<br />
— Às vezes, até contra a minha vonta<strong>de</strong> – disse, bem baixinho.<br />
— Eu acho que você tem <strong>um</strong>a voz linda e no estilo blues, que<br />
hoje as músicas <strong>de</strong> pista estão pedindo – comentei.<br />
— Eu também acho. Só que não tive oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cantar<br />
nesse estilo. Mas o que você acha disso? – perguntou, enquanto<br />
ia em direção à cabine <strong>de</strong> voz. E começou a fazer vários vocalizes<br />
no refrão que tinha bolado.<br />
Fiquei emocionado com a voz <strong>de</strong>la. Eu estava produzindo <strong>um</strong>a<br />
das maiores cantoras do Brasil. Aquilo era realmente <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong><br />
satisfação e emoção para mim.<br />
190
Rosana<br />
191<br />
— Rosana, é isso aí! Já tenho tudo que eu preciso. Agora é comigo<br />
– disse, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter gravado tudo que iria aproveitar na música.<br />
— Você não precisa <strong>de</strong> mais nada?<br />
— Não, muito obrigado pela participação, Rosana. Realmente é<br />
<strong>um</strong>a honra para todo o grupo, mas principalmente para mim.<br />
— Quando estiver pronto gostaria <strong>de</strong> ter <strong>um</strong>a cópia para ouvir<br />
– pediu a cantora.<br />
— Com certeza, Rosana – falei. Em seguida, me dirigi ao técnico.<br />
— Então, tem como a gente usar o Emulator agora e samplear<br />
as vozes <strong>de</strong>la?<br />
— Claro que sim! – respon<strong>de</strong>u o técnico, sem saber muito bem<br />
o que eu iria fazer. Como eu já comentei, usar o sampler como eu<br />
fazia ainda era novida<strong>de</strong> para muitos profi ssionais.<br />
O programa Emulator sampleava com qualida<strong>de</strong> digital. Depois <strong>de</strong><br />
tudo sampleado, retoquei todas as vozes da Rosana na seqüência<br />
que eu queria.<br />
Na outra semana, fui para <strong>um</strong> estúdio na Barra da Tijuca para<br />
acompanhar a masterização do disco para sair em CD. Era tudo<br />
muito diferente do que é hoje em dia. Não se usava o computador<br />
para masterizar. Gostei muito <strong>de</strong>ssa experiência. O resultado fi nal<br />
impressionou a todos no estúdio e ao pessoal da Sony também.<br />
Depois que o trabalho fi cou pronto, infelizmente a gravadora<br />
escolheu “Mexa-se” como a música <strong>de</strong> trabalho. Não tínhamos<br />
voz ativa em certas <strong>de</strong>cisões, como fotos, capa do disco etc.<br />
Era <strong>um</strong>a frustração que tínhamos que agüentar.<br />
Queríamos que a música <strong>de</strong> trabalho do disco fosse “Falsa política”<br />
que, para a gente, representava melhor o perfi l do disco<br />
inteiro. As letras políticas dominavam o repertório.
192 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Já que a música tinha sido escolhida, pedi à Sony que fi zesse<br />
<strong>um</strong> single promocional em vinil para os DJs e as rádios, com<br />
várias versões remix <strong>de</strong> “Falsa política”. Mais <strong>um</strong>a vez, a visão<br />
conservadora da gravadora na época, jogou por água abaixo<br />
<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>. Eles fi zeram o single, mas com a<br />
música na mesma versão dos dois lados, só as rotações eram<br />
diferentes. Um lado <strong>de</strong> 33 e outro <strong>de</strong> 45. Fiquei furioso! A <strong>de</strong>sculpa<br />
era que se o disco tivesse versões diferentes, as rádios do<br />
interior não saberiam qual <strong>de</strong>veriam tocar. Quando eu ouvi isso,<br />
fi quei abismado com a falta <strong>de</strong> visão <strong>de</strong> <strong>um</strong>a gravadora multinacional<br />
como a Sony. Hoje sei, que era <strong>de</strong> se esperar. Para mim,<br />
<strong>um</strong> dos maiores erros do mercado fonográfi co brasileiro foi ter<br />
eliminado o single, no fi m da década <strong>de</strong> 80.<br />
Eles promoveram <strong>um</strong> lançamento do single promocional para<br />
os DJs do Rio. Porém, como ele só tinha <strong>um</strong>a versão, o interesse<br />
não foi gran<strong>de</strong>. Além do mais, a maioria dos DJs <strong>de</strong> pista não<br />
tocava dance nacional. Era muito difícil.<br />
A Sony fez <strong>um</strong> acordo com a Transamérica para que ela fosse a<br />
primeira rádio a tocar a música com exclusivida<strong>de</strong> durante <strong>um</strong><br />
mês e meio, antes mesmo <strong>de</strong> o disco chegar às lojas. O problema<br />
era que eles queriam fi ngir que a Sony tinha <strong>de</strong>scoberto o grupo<br />
ouvindo a Transamérica. Graças a Deus, eu tinha dado <strong>um</strong>a entrevista<br />
para o Fernando Molina do Correio Braziliense, antes <strong>de</strong> viajar<br />
para o Rio para gravar o disco, contando toda essa história. Os<br />
meus companheiros <strong>de</strong> grupo fi caram chateados. Mas foi melhor,<br />
porque assim essa idéia absurda não se concretizou.<br />
A Sony nos apresentou <strong>um</strong> profi ssional para tomar conta <strong>de</strong> nosso<br />
trabalho. Na época, ele era empresário do Lobão e do Inimigos do<br />
Rei. Ele investiu no grupo, pagando seis meses <strong>de</strong> aluguel adiantado<br />
n<strong>um</strong> apartamento já mobiliado, na Rua Voluntários da Pátria,<br />
em Botafogo. Assim po<strong>de</strong>ríamos morar no Rio e nos <strong>de</strong>dicar mais<br />
ao disco. No lançamento, a Sony marcou <strong>um</strong>a coletiva <strong>de</strong> imprensa<br />
na gravadora e, graças a Deus, me avisou <strong>um</strong>a semana antes.
Rosana<br />
193<br />
— Rapaziada, na segunda-feira da semana que vem, teremos<br />
coletiva <strong>de</strong> imprensa – avisei o grupo.<br />
— E daí? Sem problemas, Gordão – respon<strong>de</strong>u Rossi.<br />
— Sem problemas... – repeti preocupado. — Vocês acham que<br />
vai ser fácil essa coletiva?! – perguntei n<strong>um</strong> tom <strong>de</strong> voz mais alto.<br />
— Calma, Gordo! – disse Marcão.<br />
— Marcão, eu sugiro que essa semana todos leiam os jornais<br />
todos os dias e se informem sobre tudo que está acontecendo<br />
no Brasil e no mundo. Porque as perguntas vão ser sobre tudo,<br />
menos sobre o disco.<br />
— Você acha isso mesmo? – indagou Tubarão.<br />
— Tubarão, velho, eles vão querer saber se nosso trabalho é verda<strong>de</strong>iro.<br />
Se a gente não é mais <strong>um</strong>a armação da Sony. Se tudo que<br />
vocês falam nas letras tem fundamento. Se vocês são da periferia<br />
mesmo. É isso, cara! Para os jornalistas, vai ser <strong>um</strong> prato cheio<br />
<strong>de</strong>scobrir se vocês realmente estão por <strong>de</strong>ntro do que escrevem<br />
e sabem discutir sobre o assunto ou não. Enten<strong>de</strong>ram?<br />
— Então fi ca tranqüilo, Gordo – disse Marcão. – Eu sei exatamente<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem a minha inspiração. Do meu sofrimento, Raffa!<br />
— Tudo bem, Marcão. Você e o Tubarão são safos, mas o Rossi<br />
tem que ler jornal e se informar mais, ser menos alienado.<br />
— Tá me sacaneando, Gordo? – reagiu Rossi.<br />
— Não, estou te prevenindo, cara!<br />
A preocupação tinha sentido. No dia da coletiva foi exatamente<br />
isso que aconteceu. Mas, graças a Deus, <strong>de</strong>u tudo certo. Todos<br />
estavam bem preparados. Essa foi a primeira coletiva <strong>de</strong> imprensa<br />
<strong>de</strong> nossas vidas.<br />
Quando as críticas sobre o nosso disco Magrellos saíram em<br />
quase todos os jornais do país e, sem exceção, eram ótimas, o<br />
presi<strong>de</strong>nte Cláudio Con<strong>de</strong> nos chamou para <strong>um</strong>a reunião na Sony.
194 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Ele nos explicou que as críticas favoreciam não só o grupo, mas a<br />
Sony também. Na reunião, recebemos muitos elogios.<br />
Alguns jornais escreveram que eu tinha <strong>um</strong> perfeito domínio<br />
da tecnologia digital como produtor musical. O Frejat, do Barão<br />
Vermelho, falou n<strong>um</strong>a entrevista que o nosso disco era <strong>um</strong> dos<br />
melhores trabalhos no ano. Tudo isso serviu como incentivo para<br />
todos nós.<br />
O nosso empresário marcou <strong>um</strong> show <strong>de</strong> lançamento n<strong>um</strong>a<br />
danceteria no Rio e pedimos para ele trazer <strong>de</strong> Brasília o meu<br />
amigo Tampinha, que era baterista e já tinha tocado para a<br />
gente. Juntamos dinheiro e compramos a SPD 11 da Roland,<br />
<strong>um</strong>a bateria eletrônica para tocar ao vivo. Nos nossos shows,<br />
o Tampinha usava fone <strong>de</strong> ouvido, porque o meu sequencer disparava,<br />
via MIDI, <strong>um</strong> gravador multipista da Yamaha <strong>de</strong> quatro<br />
canais, on<strong>de</strong> fi cavam as bases e eu fazia os scratches ao vivo e<br />
alguns samplers no teclado. Fazer isso ao vivo era <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong><br />
novida<strong>de</strong>. A gente também cantava duas músicas do Snap no<br />
meio dos shows. As letras a gente tinha conseguido com a própria<br />
Sony. Tubarão cantava em inglês e muito bem. Para ele e o<br />
Rossi, cantar e dançar ao mesmo tempo não era fácil. O Marcão<br />
não dançava, mas fazia as rimas mais difíceis. No dia do ensaio,<br />
alguns DJs da casa fi caram bem impressionados com o nosso<br />
<strong>de</strong>sempenho. A festa <strong>de</strong> lançamento foi <strong>um</strong> sucesso.
195
196<br />
CAPÍTULO 25:
Após a correria do lançamento, fomos falar com o Cláudio Campos,<br />
na Sony.<br />
— Cláudio, quando a gente vai fazer os programas <strong>de</strong> televisão?<br />
– perguntou Tubarão.<br />
— Vocês não vão fazer – respon<strong>de</strong>u ele.<br />
— Por que não? – perguntei.<br />
— Vocês acham que a Rosana vai se dispor a fazer programa <strong>de</strong><br />
TV com vocês?<br />
— Foram vocês que escolheram essa música <strong>de</strong> trabalho, Cláudio<br />
– contestou Tubarão.<br />
— Eu sei rapaziada, mas não posso fazer nada.<br />
Saímos da sala <strong>de</strong>cepcionados e cruzamos com o nosso coprodutor<br />
no corredor.<br />
— Que tristeza é essa, galera? – indagou Ronaldo.<br />
— Não vamos fazer programa <strong>de</strong> TV, porque eles acham que a<br />
Rosana não vai querer fazer – explicou Rossi.<br />
— Vamos conversar na sala <strong>de</strong> reunião – disse Ronaldo. – Gente,<br />
é simples. Por que vocês não perguntam à própria Rosana se ela<br />
quer ou não fazer TV com vocês?<br />
— Será que ela vai querer? – perguntei.<br />
198
Televisão<br />
199<br />
— Eu não tenho o telefone <strong>de</strong>la, mas tenho o en<strong>de</strong>reço – disse<br />
Ronaldo.<br />
Pegamos o en<strong>de</strong>reço e seguimos direto para lá. Rosana morava<br />
em Jacarepaguá. Quando chegamos, fomos muito bem recebidos<br />
por ela. Aí explicamos a situação toda.<br />
— Que absurdo! Quem disse que eu não estaria disposta a ir à<br />
TV com vocês? – reagiu ela e imediatamente ligou para o presi<strong>de</strong>nte<br />
da Sony. É claro que a Rosana tinha muito mais moral<br />
<strong>de</strong>ntro da gravadora do que a gente. – Quero programa <strong>de</strong> televisão<br />
com os Magrellos na semana que vem – disse Rosana. –<br />
Pronto, resolvido! – exclamou, após <strong>de</strong>sligar o telefone.<br />
Ficamos muito agra<strong>de</strong>cidos.<br />
— Como a gente vai se apresentar sem coreografi a? – lembrou<br />
Rossi.<br />
— É mesmo, como vamos fazer? – perguntou Rosana.<br />
— Eu faço a coreografi a junto com o Tubarão – disse Rossi.<br />
— A gente po<strong>de</strong> marcar os ensaios aqui em casa – propôs<br />
Rosana.<br />
— Tudo bem! – concordamos todos.<br />
Tubarão ainda perguntou:<br />
— Como eu vou dançar e cantar ao mesmo tempo?<br />
Rosana foi então até seu quarto e voltou com <strong>um</strong> microfone sem fi o,<br />
daqueles que se coloca na cabeça e não precisa segurar na mão.<br />
— Po<strong>de</strong> fi car com esse, por enquanto. Não estou usando e tenho<br />
outro – ofereceu.<br />
— Cara, que <strong>de</strong>mais! Obrigado! – agra<strong>de</strong>ceu Tubarão.<br />
A Rosana é <strong>um</strong>a artista h<strong>um</strong>il<strong>de</strong> e <strong>de</strong> bom coração, que ajudou<br />
muito a gente <strong>de</strong>ntro da gravadora, sempre explicando os nossos
200 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
direitos e convidando o grupo para abrir os shows <strong>de</strong>la. E, claro,<br />
emprestando esse microfone para o Tubarão.<br />
Ensaiamos muito naquela semana. O Rossi sempre fi cava tímido<br />
nos ensaios por causa da Rosana. Era muito engraçado. Eu fi cava<br />
no teclado e Marcão teve que apren<strong>de</strong>r a levada <strong>de</strong> bateria que o<br />
Tampinha fazia, pois tinha que fi ngir que estava tocando alg<strong>um</strong>a<br />
coisa. Todo mundo sabe que as apresentações nesses programas<br />
<strong>de</strong> TV são em playback.<br />
O primeiro programa que gravamos foi o da Hebe Camargo, no<br />
SBT. Por causa da Rosana, a gente tinha regalias. O camarim era<br />
bom e tínhamos bebidas e petiscos à disposição. Toda gravadora<br />
tinha <strong>um</strong> representante nos bastidores para assessorar os<br />
grupos e a produção dos programas. O nosso estava apreensivo,<br />
pois não conhecia o trabalho do Magrellos. Quando fi zemos a<br />
apresentação, o público reagiu muito bem e aplaudiu bastante.<br />
Só então ele se tranqüilizou. Infelizmente, apesar <strong>de</strong> a nossa<br />
assessoria ter dado informações sobre o grupo para a produção<br />
do programa, vivemos <strong>um</strong>a situação que nos expôs ao ridículo.<br />
Nesse dia, o apresentador Raul Gil estava no Programa da Hebe.<br />
Ele tentou ser engraçado soltando <strong>um</strong>a piadinha: perguntou por<br />
que eu era do Magrellos se era gordinho. Até aí tudo bem, sem<br />
problemas. Só que, ao <strong>de</strong>scobrir que éramos <strong>de</strong> Brasília, ele<br />
soltou <strong>um</strong>a frase ainda pior para mim, dizendo que eu provavelmente<br />
era fi lho <strong>de</strong> <strong>de</strong>putado.<br />
Aquilo me irritou profundamente. Ainda mais porque a Hebe perguntou<br />
se era verda<strong>de</strong> e eu não tinha microfone para respon<strong>de</strong>r.<br />
Na tela, só se viu rapidamente a minha imagem gesticulando e<br />
dizendo que não com os braços. Meu Deus, aquilo realmente me<br />
<strong>de</strong>ixou com muita raiva!<br />
Depois <strong>de</strong>sse dia, fi zemos vários programas no Rio e em São<br />
Paulo. Quase toda semana a gente tinha <strong>um</strong>a briga com o<br />
<strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> TV da Sony, que sempre anunciava errado a<br />
nossa apresentação nos programas. Era sempre Rosana e os<br />
Magrellos. Nunca os Magrellos, com participação especial <strong>de</strong>
Televisão<br />
201<br />
Rosana. Para a gente, daquele jeito parecia Xuxa e os paquitos!<br />
Nada contra, só que não era a verda<strong>de</strong> do nosso trabalho.<br />
Aliás, fomos muito bem recebidos no programa da Xuxa. Ela<br />
nos entrevistou e pu<strong>de</strong> falar melhor da essência do trabalho do<br />
grupo, principalmente em relação à questão dos menores abandonados<br />
na rua, tema <strong>de</strong> <strong>um</strong>a das letras do disco.<br />
Uma das nossas melhores e mais engraçadas participações foi<br />
no Show <strong>de</strong> Prêmios, apresentado pelo Sílvio Santos, no SBT.<br />
O Sílvio foi muito gentil e educado com a gente nos bastidores,<br />
nos perguntou várias coisas antes, para não fazer feio no ar. Profi<br />
ssionalismo é outra coisa. Para sairmos dos estúdios foi <strong>um</strong>a<br />
loucura. Muitos fãs pediram autográfos, quiseram tirar fotos etc.<br />
Acho que foi a primeira vez que me senti como <strong>um</strong> artista <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />
Porém, isso não levantava meu ego e nem tirava a h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong><br />
do meu coração. Eu sabia <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a forma que tudo seria<br />
passageiro. E que o verda<strong>de</strong>iro sucesso está em nossos atos.<br />
O fato engraçado rolou com o apresentador Moacir Franco, que<br />
estava no mesmo camarim que o grupo. Como não <strong>de</strong>mos muita<br />
atenção a ele, Moacir se irritou <strong>de</strong> repente.<br />
— Vocês sabem quem eu sou? Eu sou Moacir Franco! – gritou.<br />
Olhamos para ele assustados. Então resolvemos dar <strong>um</strong>a volta<br />
e ir atrás da Rosana, que estava em outro camarim. Quando<br />
a encontramos, junto com Miele, 1 fi camos ainda mais felizes.<br />
Pegamos autógrafos e trocamos várias idéias. Miele foi muito<br />
atencioso. Esse encontro foi <strong>um</strong>a honra para a gente, afi nal a<br />
primeira gravação <strong>de</strong> <strong>um</strong> rap no Brasil, “Melô do Tagarela”, foi<br />
feita com a voz <strong>de</strong>le em cima da base <strong>de</strong> “Rapper’s Delight” do<br />
Sugarhill Gang.<br />
Em <strong>um</strong> programa na TV Cultura, o Metrópolis, os artistas se<br />
apresentavam ao vivo. Quando chegamos lá, na última hora, a<br />
Rosana disse que não iria cantar.<br />
1 Luis Carlos Miele, locutor, produtor, diretor <strong>de</strong> shows e intérprete paulistano.
202 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Raffa, não vou cantar ao vivo, porque estou mal da garganta<br />
– disse.<br />
— Como é que vai ser, Rosana? – perguntei afl ito.<br />
— Você vai ter que tocar a minha voz no teclado igual você tocou<br />
no disco.<br />
— Mas, e se eu errar?<br />
— Eu sei que você não vai errar – disse ela com toda convicção.<br />
Como seria ao vivo, eu estava com o equipamento todo. Coloquei<br />
os disquetes com a voz <strong>de</strong>la que já estavam distribuídos no<br />
teclado e rezei para conseguir fazer tudo certo, para não errar<br />
nenh<strong>um</strong>a entrada. Também não seria fácil para o Marcão, que<br />
teria que tocar a bateria ao vivo. Tocar na frente das câmeras era<br />
muito mais difícil do que n<strong>um</strong> show. Deus estava com a gente,<br />
porque na hora da apresentação tudo <strong>de</strong>u certo.<br />
Outro dia marcante foi o da gravação do programa Milk Shake, da<br />
Angélica, na extinta TV Manchete, no Rio. Chegamos lá <strong>de</strong> manhã,<br />
mas só gravamos à noite. Ficamos praticamente o dia inteiro na<br />
emissora. E, ainda por cima, o Rossi errou a coreografi a, abandonou<br />
a gravação no meio e foi para o camarim. Graças a Deus,<br />
Rosana não se chateou e teve <strong>um</strong>a paciência incrível. Tivemos<br />
que repetir a gravação mais tar<strong>de</strong> sem o público. Mesmo com<br />
a Angélica cansada e irritada – com toda razão –, conseguimos<br />
gravar bem melhor na segunda vez. Inclusive porque os câmeras<br />
já sabiam o nosso posicionamento e a coreografi a. Graças a<br />
Deus, conseguimos fazer tudo direito.<br />
Finalmente chegou o dia da gravação do nosso vi<strong>de</strong>oclipe. Antes<br />
tínhamos estado na escola <strong>de</strong> samba Mangueira para escolher<br />
duas mo<strong>de</strong>los para participar do clipe. Posso garantir que fazer<br />
essa escolha <strong>de</strong>u bastante prazer a todos nós...<br />
As gravações foram feitas n<strong>um</strong> único dia na praia <strong>de</strong> Copacabana.<br />
Começaram às seis da manhã e só terminaram às 11 da<br />
noite. Foi gostoso, apesar <strong>de</strong> muito cansativo. Eles isolaram
Televisão<br />
203<br />
<strong>um</strong>a parte da praia e vários curiosos passaram por lá para ver<br />
as fi lmagens e a Rosana, é claro. Quando vi o resultado fi nal das<br />
gravações, na Sony, me surpreendi e não contive as lágrimas.<br />
O vi<strong>de</strong>oclipe foi lançado na MTV, no programa Lado B, apresentado<br />
na época pelo VJ Thun<strong>de</strong>rbird.<br />
— O que a Rosana, <strong>de</strong> “Como <strong>um</strong>a <strong>de</strong>usa”, e os Magrellos têm em<br />
com<strong>um</strong>? – perguntou Thun<strong>de</strong>rbid aos espectadores. – Assista<br />
ao clipe que você vai <strong>de</strong>scobrir.<br />
O DJ Memê, que já era famoso e tinha <strong>um</strong>a carreira consolidada,<br />
pediu para fazer <strong>um</strong> remix <strong>de</strong> “Mexa-se”, junto com a Transamérica.<br />
Fiquei com <strong>um</strong> pé atrás com a proposta e perguntei<br />
se eu po<strong>de</strong>ria participar nem se fosse só para olhar. Eu estava<br />
mesmo morrendo <strong>de</strong> medo <strong>de</strong> eles fazerem alg<strong>um</strong>a coisa que eu<br />
não gostasse. Essa inseguranca era arrogância mesmo. Depois<br />
<strong>de</strong> eu colocar tantos empecilhos para o remix, eles acabaram<br />
<strong>de</strong>sitindo <strong>de</strong> fazê-lo. Isso é <strong>um</strong>a das coisas das quais mais me<br />
arrependo. A versão <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>ria ter feito a música estourar <strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>. Acho que eu não estava preparado para ter <strong>um</strong>a música<br />
dos Magrellos em versão house. Na verda<strong>de</strong>, não era a cara do<br />
grupo. Mas também foi preconceito meu. Como essa proposta<br />
aconteceu quando “Mexa-se” já estava <strong>de</strong>sgastada, eu só pensava<br />
na música seguinte <strong>de</strong> trabalho, que seria “Doidão”.
204<br />
CAPÍTULO 26:
O fi m <strong>de</strong> <strong>um</strong>
Os meses se passavam e fazíamos alguns shows em bailes funk<br />
no Rio <strong>de</strong> Janeiro, principalmente na Baixada Fl<strong>um</strong>inense. Lembro<br />
que o nosso empresário saía sempre com <strong>um</strong> bolo cheio <strong>de</strong><br />
dinheiro e só tirava <strong>um</strong> terço, ou até menos, para a gente. Ele<br />
não sabia ven<strong>de</strong>r rap e quando alguém se interessava, provavelmente,<br />
cobrava <strong>um</strong> cachê fora dos padrões. Tínhamos problema<br />
com a música <strong>de</strong> trabalho também. Eu já previra isso. É que<br />
quem ouvia rap, hip-hop ou dance não se i<strong>de</strong>ntifi cava com <strong>um</strong>a<br />
música da qual a Rosana, rotulada <strong>de</strong> cantora <strong>de</strong> música brega,<br />
participava. E, com certeza, quem era fã do estilo da Rosana, não<br />
ouvia a nossa música. Era preconceito <strong>de</strong> tudo quanto é lado.<br />
Um dia o Cláudio Campos me chamou na Sony, porque queria me<br />
mostrar <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> rap que recebera <strong>de</strong> Brasília. Para minha<br />
surpresa, era do Leandro. Ele se juntara ao Gog e ao MC Vappo<br />
e eles fi zeram <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> rap maravilhoso. O grupo se chamava<br />
Os Caras e misturava muitos elementos da MPB nacional<br />
em suas músicas e produções.<br />
— Cláudio, essa <strong>de</strong>mo está maravilhosa, cara! – exclamei.<br />
— Eu sei, Raffa! Vou ver se consigo trazer esse trabalho para a<br />
gravadora.<br />
— Seria ótimo ter o Leandro aqui com a gente.<br />
206
O fi m <strong>de</strong> <strong>um</strong> sonho<br />
207<br />
— Vou tentar, Raffa. Não sei se a Sony quer mais <strong>um</strong>a banda <strong>de</strong><br />
rap esse ano. Você sabe que temos orçamentos anuais fechados<br />
aqui na gravadora.<br />
— Eu sei, Cláudio, mas mostra pro Sérgio e veja o que dá pra fazer.<br />
Eu realmente <strong>de</strong>i <strong>um</strong>a força para que a <strong>de</strong>mo fosse ouvida.<br />
Todos gostaram muito, no entanto, a burocracia e, mais <strong>um</strong>a<br />
vez, a falta <strong>de</strong> visão <strong>de</strong> alguns impediram que esse trabalho<br />
fosse para frente. Lamentável!<br />
Meu medo era que isso pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sanimá-los. Antes <strong>de</strong> voltar<br />
para Manaus, MC Vappo morou <strong>um</strong> tempo com o Gog, no Gama,<br />
no DF. Porém, confl itos <strong>de</strong> idéias fi zeram com que o grupo acabasse.<br />
Graças a Deus, o Leandro não se abalou. Ele ainda produziu<br />
alguns trabalhos importantes e só <strong>de</strong>pois se afastou do hiphop<br />
por alguns anos, por causa <strong>de</strong> empregos e do casamento.<br />
Soubemos que o Public Enemy viria para duas apresentações no<br />
Brasil. Os shows seriam no estádio do Ibirapuera, em São Paulo.<br />
O Sérgio Lopes perguntou se queríamos abrir <strong>um</strong> dos shows.<br />
— Claro que sim! – respondi.<br />
— Marcão, você vai conhecer o seu ídolo Chuck D – disse.<br />
— Nem tô acreditando, Gordo! – respon<strong>de</strong>u Marcão.<br />
— Pois acredite! Vamos abrir o show na sexta e ainda vamos ter<br />
a chance <strong>de</strong> conhecê-los pessoalmente – falei rindo à toa. Os<br />
Racionais abririam a apresentação no sábado.<br />
Sérgio ainda pediu para termos calma e não fi carmos tão empolgados,<br />
porque a produção do Public Enemy ainda não tinha respondido<br />
se po<strong>de</strong>ríamos abrir o show ou não. Dias <strong>de</strong>pois recebemos<br />
a resposta positiva e logo tratamos <strong>de</strong> ensaiar bastante.<br />
Em várias reportagens, eles disseram que queriam conhecer as<br />
favelas no Brasil. Na coletiva <strong>de</strong> imprensa, logo perguntaram por<br />
que não tinha jornalistas negros presentes. O Public Enemy era<br />
polêmico mesmo. O rap internacional passava por <strong>um</strong>a das suas
208 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
melhores fases, com letras que falavam <strong>de</strong> problemas sociopolíticos,<br />
<strong>de</strong> racismo e <strong>de</strong> auto-estima. Uma ótima infl uência para<br />
o rap nacional.<br />
No dia do show, nós os conhecemos no camarim. Dei <strong>um</strong> CD<br />
nosso pessoalmente para Chuck D, Flavor Flav e Terminator X.<br />
Chuck D presenteou o Marcão com <strong>um</strong>a corrente com o símbolo<br />
do grupo. Como eu falava <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> inglês, conversamos com<br />
eles sobre vários assuntos. Ele falou que o hip-hop no Brasil<br />
tinha tudo para ser <strong>um</strong> dos maiores <strong>de</strong> todo o mundo. Foi <strong>um</strong> dos<br />
momentos mais marcantes da minha vida.<br />
No show, fi camos muito nervosos, porque era a primeira vez que<br />
cantávamos para <strong>um</strong> público tão gran<strong>de</strong>. Havia mais ou menos 20<br />
mil pessoas no Ibirapuera. O público era <strong>de</strong> rap radical e cantamos<br />
as nossas músicas mais radicais. Mesmo assim <strong>um</strong>a parte<br />
da platéia não enten<strong>de</strong>u muito bem a nossa mensagem e discriminou<br />
o nosso som. O Racionais MCs que tinham lançado seu<br />
primeiro disco, foi convidado pelo Public Enemy, no meio do show<br />
da sexta-feira, para cantar “Pânico na Zona Sul”. Essa música<br />
revolucionou e infl uenciou toda <strong>um</strong>a geração do rap nacional.<br />
O show do Public Enemy foi <strong>de</strong>mais. Eles tinham <strong>um</strong> cenário que<br />
eu nunca havia visto em shows <strong>de</strong> rap. O jeito com que eles se<br />
movimentavam no palco, os passos e gestos serviram <strong>de</strong> inspiração<br />
para nossos shows seguintes.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, já no hotel, conhecemos <strong>um</strong> grupo chamado Face<br />
Negra. Eles tinham <strong>um</strong>a música na coletânea Zimbabwe Consciência<br />
Black – Vol<strong>um</strong>e 2. Trocamos idéias sobre o show e sobre<br />
música.<br />
— Jeff, vamos comer <strong>um</strong>a pizza? Tem alg<strong>um</strong>a pizzaria aqui<br />
perto? – perguntei para <strong>um</strong> dos integrantes do grupo.<br />
— Tão perto tem não, mano! Mas também não é <strong>um</strong>a caminhada<br />
longa.<br />
— Marcão, vamos comer <strong>um</strong>a pizza? – convi<strong>de</strong>i.
O fi m <strong>de</strong> <strong>um</strong> sonho<br />
– Vamos lá, Gordo.<br />
209<br />
O hotel fi cava perto do centro <strong>de</strong> Sampa. O Rossi e o Tubarão<br />
fi caram no hotel e nós partimos a pé. Quando estávamos no meio<br />
do caminho, levei <strong>um</strong> susto que eu nunca mais vou esquecer na<br />
minha vida.<br />
— Mãos pra cima, rápido! Mãos pra cima, bando <strong>de</strong> vagabundo!<br />
Rápido! Todos <strong>de</strong>itados no chão! Rápido, rápido!<br />
Do nada surgiram <strong>um</strong>as cinco viaturas e <strong>um</strong> monte <strong>de</strong> policiais<br />
com escopetas, apontando na nossa direção, tratando-nos<br />
como se fôssemos bandidos.<br />
— Todo mundo levantando bem <strong>de</strong>vagar e colocando as mãos<br />
na pare<strong>de</strong>. Pernas abertas – gritou <strong>um</strong> policial.<br />
Tomamos aquela “geral” 1 e agra<strong>de</strong>ci a Deus porque o pior não<br />
aconteceu. Só falávamos “sim, senhor” e “não, senhor”. Quando<br />
viram a minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, veio a piadinha tradicional:<br />
— Mas você tá longe <strong>de</strong> casa, hein? Tá fazendo o quê aqui?<br />
— Eu sou músico, senhor. Acabamos <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong> show e estávamos<br />
indo comer <strong>um</strong>a pizza – respondi.<br />
— E você faz o quê? – perguntou o policial ao Jeff.<br />
— Sou cantor <strong>de</strong> rap, senhor.<br />
— Então você é <strong>um</strong> daqueles que gosta <strong>de</strong> xingar a polícia, não é?<br />
— Não, senhor.<br />
— Cala a boca – gritou o policial.<br />
Nessa hora pensei que o Jeff levaria <strong>um</strong>a taca. 2 Porém, naquela<br />
noite Deus estava com a gente. Fomos todos dispensados e os<br />
policiais foram embora. Quando fi nalmente chegamos à pizzaria<br />
<strong>de</strong>scobri que faltava dinheiro na minha carteira. O policial<br />
1 Foram revistados.<br />
2 Levar <strong>um</strong>a taca signifi ca apanhar.
210 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
que me revistou tinha me roubado. Fiquei revoltado. Eu sei que<br />
a polícia não age assim, apenas os maus policiais, mas na hora<br />
realmente <strong>de</strong>u vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong>a música <strong>de</strong>nunciando esse<br />
infeliz episódio.<br />
Voltamos para o Rio e, em seguida, para Brasília, on<strong>de</strong> faríamos<br />
o show <strong>de</strong> lançamento do disco e várias apresentações. Conseguimos<br />
<strong>um</strong>a verba da Sony e investimos n<strong>um</strong> cenário para os<br />
nossos shows, que era <strong>de</strong>smontável. Inclusive compramos <strong>um</strong>a<br />
estrutura <strong>de</strong> ferro on<strong>de</strong> eu colocava os toca-discos. O lançamento<br />
foi na danceteria da Fonte do Bom Paladar, no Cruzeiro.<br />
Todos do movimento hip-hop do DF estavam naquele show e,<br />
como estávamos na mídia, vários jornais cobriram o evento.<br />
A música que estava tocando em Brasília era “Doidão”, que<br />
entrara na trilha sonora da novela Vamp, da Re<strong>de</strong> Globo. Demos<br />
muitas entrevistas a rádios. Fizemos <strong>um</strong> show com o Marquinhos,<br />
da Smurphies, na Facita. Infelizmente houve briga e confusão<br />
e a apresentação teve que ser interrompida no meio.<br />
No período em que estávamos em Brasília, <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap da<br />
Ceilândia, mais especifi camente do P Norte, chamado DF Movimento,<br />
procurou o Marcão e pediu para fazer a abertura dos<br />
nossos shows. O grupo tinha três integrantes: Neguinho, Alemão<br />
e Ovelha. Marcão sugeriu que eles produzissem a música<br />
<strong>de</strong> abertura comigo. Fiz a produção em cima <strong>de</strong> <strong>um</strong> sample da<br />
música “You get me hot” do Jimmy Bo Horne.<br />
O DF Movimento acabou abrindo os shows da danceteria da<br />
Fonte, da Facita e <strong>um</strong> memorável que fi zemos no Paranoá,<br />
que já não era mais favela - ela fora removida para outro local<br />
e estava sendo urbanizada. O show foi fi lmado por <strong>um</strong>a turma<br />
da escola local, que entrevistou todos nós, <strong>de</strong>pois do show. Até<br />
hoje tenho bons amigos lá, on<strong>de</strong> toquei muitas vezes como DJ<br />
convidado em bailes.<br />
Dois grupos <strong>de</strong> rap que vieram do Paranoá fi zeram história no<br />
hip-hop do DF. O Inimigo Público – sobre o qual já falei - e o<br />
Paradox. O break também sempre foi forte na região, com os<br />
dançarinos Gilmar e Carlinhos. Gilmar foi integrante dos dois
O fi m <strong>de</strong> <strong>um</strong> sonho<br />
211<br />
grupos e fi cou em segundo lugar no concurso <strong>de</strong> rap que eu promovi<br />
na danceteria da Fonte.<br />
Os integrantes do DF Movimento fi caram nossos amigos <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> muita convivência. Eu e Marcão freqüentamos bastante o P<br />
Norte, na Ceilândia. O Ovelha tinha sido membro do fã-clube do<br />
Detrito Fe<strong>de</strong>ral, <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rock famoso em todo o país. Alemão<br />
sempre foi <strong>um</strong> apaixonado pelo hip-hop e, principalmente,<br />
pelo rap positivo e consciente. Somos amigos até hoje. Neguinho<br />
era muito talentoso, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter formado o grupo<br />
Socieda<strong>de</strong> Anônima, junto com Alemão, resolveu se afastar do<br />
rap, fi cando apenas como ouvinte e espectador, sem mais se<br />
envolver profi ssionalmente. Nessas idas constantes ao P Norte,<br />
eu fui a <strong>um</strong> evento <strong>de</strong> rap n<strong>um</strong>a escola, para ver novos talentos e<br />
<strong>um</strong>a apresentação do DF Movimento. Foi nesse dia que conheci<br />
o rapper Japão, que viria a cantar com o Gog por indicação<br />
minha e <strong>de</strong>pois montaria seu próprio grupo, o Viela 17. Na hora<br />
percebi o talento que ele tinha no palco.<br />
Nessa época, o Celsão resolveu levar pela primeira vez o Racionais<br />
para Brasília. Quando chegaram <strong>de</strong> viagem, eles foram<br />
direto para o local do show, na danceteria da Fonte. Fui lá<br />
recepcioná-los junto com o Celsão. A Rodoferroviária <strong>de</strong> Brasília<br />
fi cava perto do Cruzeiro, on<strong>de</strong> fi cava a danceteria. O carro<br />
que os conduziria até o hotel não apareceu e eu me ofereci para<br />
levá-los para lá. Eu ainda estava com o meu fusca vermelho.<br />
Ficou apertado, mas <strong>de</strong>u para todos irem.<br />
À noite, quem fez a abertura do show foi o então recém-formado<br />
Câmbio Negro, do X e do Jamaika. Chocolate foi o DJ <strong>de</strong>les naquela<br />
apresentação. O show foi muito bom - e o dos Racionais também.<br />
Enquanto estávamos em Brasília, em 1991, aconteceram muitas<br />
mudanças na Sony. O presi<strong>de</strong>nte Cláudio Con<strong>de</strong> saiu e o vice foi<br />
promovido. Cláudio Campos também <strong>de</strong>ixou a gravadora. Ronaldo<br />
Monteiro foi para a Sony Editora e o Sérgio Lopes mudou do<br />
<strong>de</strong>partamento nacional para o internacional. Gran<strong>de</strong>s grupos e<br />
nomes da música brasileira da época, como Guilherme Arantes e
212 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Nenh<strong>um</strong> <strong>de</strong> Nós, foram dispensados naquele ano. Estávamos tentando<br />
a aprovação para produzir o clipe <strong>de</strong> “Doidão”. No entanto,<br />
o pessoal da gravadora não nos recebia e nem dizia o que seria<br />
<strong>de</strong> nós.<br />
Quase no fi nal do ano <strong>de</strong> 1991, o grupo resolveu voltar para o Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, mas não tínhamos mais o apartamento. Não fui junto com<br />
eles, viajei alguns dias <strong>de</strong>pois. Marcão, Tubarão e Rossi fi caram<br />
n<strong>um</strong> <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> tecidos que pertencia ao pai do nosso empresário.<br />
Eles dividiam <strong>um</strong>a marmita por dia entre os três. Não foi fácil.<br />
O novo diretor do <strong>de</strong>partamento nacional não recebia o grupo <strong>de</strong><br />
jeito nenh<strong>um</strong>. Quando cheguei ao Rio ainda fi zemos alguns programas<br />
<strong>de</strong> TV, que já estavam marcados, com a música “Doidão”.<br />
E quando fi nalmente fomos recebidos na gravadora, o diretor nos<br />
falou que não tinha interesse no grupo, nem no rap, e que não<br />
renovaria o contrato. Naquele momento <strong>um</strong> sonho acabou.<br />
De volta para o Cerrado, o grupo se separou. Tubarão não quis<br />
mais se envolver com música. Resolveu investir na área <strong>de</strong> informática<br />
e, graças a Deus, se <strong>de</strong>u muito bem nessa profi ssão.<br />
Rossi Black nunca mais se recuperou do fi m do grupo. Ele tinha<br />
trabalhado como offi ce-boy e, <strong>de</strong> repente, virou <strong>um</strong> artista <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong>a gravadora multinacional, freqüentando os principais circuitos<br />
<strong>de</strong> televisão, ganhando <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> fama e dinheiro, e<br />
<strong>de</strong>pois teve que voltar a ser <strong>um</strong>a pessoa normal, igual a todo<br />
mundo. Ele teve vários confl itos nos empregos que conseguiu,<br />
por causa <strong>de</strong> discussões com colegas <strong>de</strong> trabalho que o questionavam<br />
com coisas idiotas do tipo “Se você foi dos Magrellos,<br />
por que é motorista hoje?”, “Você está mentindo, cara”. Rossi<br />
não se conformava <strong>de</strong> jeito nenh<strong>um</strong> <strong>de</strong> sair do rap assim. E,<br />
infelizmente, se entregou várias vezes à bebida. Até recentemente<br />
ainda me ligava, chorando, e colocava as músicas para<br />
eu escutar. Conversava comigo durante horas. Sempre <strong>de</strong>i atenção<br />
a ele. Graças a Deus, ele nunca per<strong>de</strong>u a amiza<strong>de</strong> do Freire,<br />
que sempre esteve ao lado <strong>de</strong>le, dando apoio.
O fi m <strong>de</strong> <strong>um</strong> sonho<br />
213<br />
No mundo da música temos que estar preparados para os altos<br />
e baixos. Para os momentos <strong>de</strong> alegria e <strong>de</strong> tristeza. Temos que<br />
estar preparados para enfrentar os invejosos e os mal-intencionados.<br />
E, principalmente, para lidar com o sucesso e a ausência<br />
<strong>de</strong>le. Consegui durante todos esses anos me manter estável,<br />
sem muitas surpresas e sem muitos altos e baixos, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse<br />
mercado tão difícil, que ainda hoje é tão discriminado.<br />
Acho que tenho sobrevivido nesse mercado todos esses anos,<br />
porque sempre procurei respeitar os artistas que produzi, sem<br />
impor a eles nada que não quisessem fazer. Por conseguir colocar<br />
a minha marca registrada, sem tirar a autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les.<br />
Não me <strong>de</strong>ixar infl uenciar por tendências mercadológicas e<br />
tentar ser o mais original possível, além <strong>de</strong> privilegiar a sincerida<strong>de</strong>,<br />
a honestida<strong>de</strong> e a h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong>. Ter <strong>um</strong>a postura correta<br />
em cima e atrás do palco. Ser <strong>um</strong> artista reciclado, ou seja, não<br />
fi car parado no tempo, também faz a diferença. Essas foram as<br />
minhas principais atitu<strong>de</strong>s para me manter estável.
214<br />
CAPÍTULO 27:
Em 1992, minha mãe foi escolhida, entre inúmeros candidatos<br />
internacionais, para ser Maître <strong>de</strong> Ballet da Ópera <strong>de</strong> Leipzig.<br />
Por isso, ela foi morar na Alemanha por dois anos e minha avó<br />
Luzia fi cou tomando conta do apartamento dos meus pais.<br />
Meus planos eram outros. O fi nal dos Magrellos não tinha me<br />
abalado a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir dos meus sonhos e do hip-hop. Era<br />
isso o que eu queria fazer. Sabia que através da minha música<br />
eu continuaria a me comunicar com aqueles que precisavam<br />
ouvi-la. E ela não se calaria jamais.<br />
Marcão estava comigo em tudo. Toda essa experiência com o<br />
grupo nos aproximou ainda mais como amigos. No começo <strong>de</strong><br />
1992, fi zemos juntos mais <strong>um</strong> trabalho para a Kaskatas. Era o<br />
disco solo da rapper Sweet Lee, que participara da coletânea<br />
Ritmo Quente Vol<strong>um</strong>e 2. Sweet Lee foi pioneira no rap nacional<br />
feminino e tinha muito talento. Marcão escreveu <strong>um</strong>a letra para<br />
ela e o Tubarão ainda chegou a participar <strong>de</strong> <strong>um</strong>a música nesse<br />
trabalho. Foi a última vez que vi o Tubarão rimando. O Carlinhos,<br />
dono da gravadora, acabou não lançando o disco inteiro e sim <strong>um</strong><br />
single, que tinha três músicas com várias versões, principalmente<br />
para o mercado dance e funk. O namorado da Sweet Lee era <strong>um</strong><br />
americano chamado T-Bone que também rimou n<strong>um</strong>a das versões.<br />
Eles se casaram <strong>de</strong>pois e mudaram para os Estados Unidos.<br />
Fiz muitas produções nos últimos dois anos para a Kaskatas<br />
e o Carlinhos sempre gostou do meu trabalho. Nunca tivemos<br />
216
Baseado nas Ruas<br />
217<br />
gran<strong>de</strong>s problemas, mas eu sentia que esse ciclo se fechava e<br />
<strong>um</strong> novo se iniciava na minha vida profi ssional.<br />
Eu e Marcão amadurecemos muito o nosso ponto <strong>de</strong> vista em<br />
relação ao rap nacional e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita conversa, resolvemos,<br />
no início <strong>de</strong> 1992, criar <strong>um</strong> novo grupo, o Baseado nas Ruas. Foi<br />
o Marcão quem escolheu o nome, explorando o duplo sentido da<br />
palavra baseado. Na verda<strong>de</strong>, queria dizer “se basear nas ruas”.<br />
Nós sempre quisemos fazer <strong>um</strong> som mais periférico, por isso, as<br />
novas letras enfocavam mais as ruas e as drogas, principalmente<br />
a violência e os problemas que ela causa em todas as comunida<strong>de</strong>s<br />
do Brasil.<br />
O nome era perfeito e, ao mesmo tempo, complicado porque era<br />
polêmico. Tanto que n<strong>um</strong> show que fi zemos no interior paulista,<br />
na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Claro, tivemos problemas: a polícia nos proibiu<br />
<strong>de</strong> fazer showmícios para <strong>um</strong> candidato que nos contratara,<br />
sob a alegação <strong>de</strong> que as nossas letras incentivavam o uso das<br />
drogas. Como eles estavam equivocados! A música em questão<br />
se chamava “O cheiro mata”. Meu Deus, só o título já dizia<br />
tudo. Depois <strong>de</strong>scobrimos que foi intriga da oposição. Eles não<br />
entendiam muito bem as letras do Marcão, que eram recheadas<br />
<strong>de</strong> gírias. O Baseado nas Ruas foi <strong>um</strong> dos primeiros grupos a<br />
usar e abusar <strong>de</strong> gírias nas letras. Depois, toda <strong>um</strong>a geração<br />
<strong>de</strong> rappers fez o mesmo, por infl uência do nosso e <strong>de</strong> outros<br />
grupos <strong>de</strong> Brasília.<br />
Mais <strong>um</strong>a vez pedi ao Antônio Lúcio que ce<strong>de</strong>sse o estúdio<br />
<strong>de</strong>le para eu fazer <strong>um</strong>a <strong>de</strong>mo. Participaram nas gravações o X<br />
e o Jamaika. Eles não rimaram, mas colocaram alg<strong>um</strong>as vozes,<br />
completando frases ou fazendo perguntas. Gog cantou o refrão<br />
<strong>de</strong> “Apocalipse”:<br />
Vou, vou, vou dizer verda<strong>de</strong>s.<br />
Vou, vou, vou contar a todos. Eu digo!<br />
Vou, vou, vou dizer verda<strong>de</strong>s.<br />
Vou, vou, vou contar a todos. Eu digo!
218 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
“Apocalipse” teve <strong>um</strong>a história curiosa, porque a rima <strong>de</strong>la era<br />
muito rápida. Eu tinha <strong>um</strong> disco com a música “Hokus Pokus”<br />
do rapper Tunga Twist, que tinha a rima mais rápida na época e<br />
serviu <strong>de</strong> inspiração para o Marcão, que era <strong>um</strong> dos precursores<br />
nesse estilo. Depois que o nosso vinil saiu e passamos a fazer<br />
shows, as pessoas começaram a falar que a levada do Marcão<br />
era <strong>um</strong> efeito criado em estúdio e que ele não seria capaz <strong>de</strong><br />
rimar naquela velocida<strong>de</strong> ao vivo. Decidimos então colocar a<br />
música no repertório dos shows. Quando chegava a parte mais<br />
rápida, eu cortava a base e o Marcão fazia à capela:<br />
Desses safados que falam mentiras<br />
e omitem a verda<strong>de</strong>,<br />
que pensam que aquilo não faz diferença,<br />
abusando apenas da sua aparência,<br />
veja você que horror,<br />
que in<strong>de</strong>cência!<br />
Esse era o trecho da última estrofe da música, que tinha como<br />
tema os políticos corruptos, é claro! Assim, calamos <strong>de</strong> vez as<br />
línguas nervosas que gostam <strong>de</strong> fazer intrigas.<br />
Ainda no primeiro semestre <strong>de</strong> 1992, quando a <strong>de</strong>mo fi cou<br />
pronta, <strong>de</strong>cidimos ir para São Paulo negociar o tape. Liguei para<br />
o DJ H<strong>um</strong>.<br />
— Fala, H<strong>um</strong>berto! Beleza, véi?<br />
— Quem fala? – perguntou.<br />
— É o Raffa <strong>de</strong> Brasília, cara!<br />
— Fala, s<strong>um</strong>ido!<br />
– H<strong>um</strong>berto, eu e o Marcão estamos com <strong>um</strong> trabalho novo<br />
e queremos te mostrar. Po<strong>de</strong>mos fi car aí na tua casa por uns<br />
dias?<br />
— É claro, Raffa! Po<strong>de</strong> vir. Que dia vocês chegam?
Baseado nas Ruas<br />
219<br />
— Estamos saindo hoje à noite, <strong>de</strong> ônibus, e vamos chegar<br />
amanhã.<br />
— Legal, assim te mostro o novo disco do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>.<br />
— Beleza! Abraço na tua mãe e nas tuas irmãs.<br />
— Estou te esperando.<br />
O DJ H<strong>um</strong> – ou se preferir, H<strong>um</strong>berto – não morava mais em<br />
Guarulhos. A família <strong>de</strong>le se tinha se mudado para a Mooca. 1<br />
Chegamos na casa <strong>de</strong>le na mesma hora que o Donizete Sampaio,<br />
dono da equipe <strong>de</strong> som Dinamite e da gravadora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
TNT Records. Ele estava levando justamente o novo disco<br />
do Thaí<strong>de</strong> & DJ H<strong>um</strong>, H<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> e coragem são nossas armas<br />
pra lutar, recém-saído da fábrica. Curtimos o disco inteiro. Para<br />
mim, <strong>um</strong> dos melhores trabalhos da carreira dos dois. Músicas<br />
como “Noite” e “Nada po<strong>de</strong> me parar” são obras-primas do rap<br />
nacional. Verda<strong>de</strong>iros clássicos. Mas a música “Algo vai mudar”,<br />
feita em cima <strong>de</strong> <strong>um</strong> sample <strong>de</strong> “For the love of money”, do<br />
popular grupo <strong>de</strong> soul americano O’Jays – que eu também tinha<br />
usado na música “Rua”, dos Magrellos – era a melhor do disco<br />
para mim, porque tinha frases como:<br />
Quantos negros representam o povo no Congresso?<br />
E na ban<strong>de</strong>ira, o que seria “Or<strong>de</strong>m e Progresso”?<br />
E, principalmente, por essa estrofe:<br />
Existem negros e brancos<br />
todos mortos em <strong>um</strong>a mesma guerra<br />
e as gotas <strong>de</strong> sangue são iguais,<br />
são vermelhas.<br />
O Thaí<strong>de</strong> tinha <strong>um</strong> ótimo parceiro em suas letras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro<br />
disco. Era o Marcos Telesphoro, que assinava com ele<br />
várias músicas.<br />
1 Bairro na Zona Leste <strong>de</strong> São Paulo.
220 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
221
222 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Depois <strong>de</strong> termos ouvido o disco <strong>de</strong>les, H<strong>um</strong>berto pediu para eu<br />
colocar a nossa <strong>de</strong>mo no <strong>de</strong>ck. A reação <strong>de</strong>le foi imediata.<br />
— Raffa, tá muito bom esse trampo. Parabéns, mano!<br />
— Estamos procurando <strong>um</strong>a gravadora. De preferência, <strong>um</strong>a<br />
que entenda <strong>de</strong> rap. Não essas multinacionais que só pensam<br />
em dinheiro, e não no artista – respondi. Eu ainda estava engasgado<br />
com o que acontecera na Sony.<br />
— Essas gravadoras aí não enten<strong>de</strong>m <strong>de</strong> rap não, mano! – concordou<br />
Donizete.<br />
— Raffa... Esse é o cara! Ele gosta <strong>de</strong> rap. Não tá aí só pelo<br />
dinheiro – disse H<strong>um</strong>berto.<br />
— A gente precisa <strong>de</strong> gente assim no meio. Gente que acredite<br />
no nosso som, sem interferir – reforçou Marcão.<br />
Donizete se retirou e H<strong>um</strong>berto comentou:<br />
— Raffa, eu acho que ele gostou da <strong>de</strong>mo.<br />
— Será, H<strong>um</strong>berto? – perguntei, sem muito entusiasmo.<br />
— Esse mano tá investindo, Raffa. Ele tá mandando fazer jaqueta<br />
com o nome dos grupos; vinil instr<strong>um</strong>ental pra gente usar em<br />
show; vai divulgar nas rádios. E o melhor, ele dá <strong>um</strong> adiantamento<br />
pros grupos.<br />
— Po<strong>de</strong> crer, H<strong>um</strong>berto! Vamos ver no que vai dar – respondi.<br />
Passamos alguns dias distribuindo fi tas K7 e voltamos para<br />
Brasília. Eu estava com os pés no chão muito mais do que antes.<br />
Depois <strong>de</strong> duas semanas, o Donizete me ligou.<br />
— Gostei do som, mano! O que po<strong>de</strong>mos fazer? – perguntou logo.<br />
— Donizete, a gente quer se mudar pra São Paulo.<br />
— Sem problemas. Vocês vêm pra cá, terminam o disco, eu dou<br />
<strong>um</strong> adiantamento pra vocês e faço <strong>um</strong> show <strong>de</strong> lançamento,
Baseado nas Ruas<br />
223<br />
pagando cachê. Assim vocês vão ter dinheiro pra pagar três<br />
meses <strong>de</strong> aluguel adiantados. Então, tá fechado?<br />
— Mas on<strong>de</strong> vamos fi car enquanto gravamos o disco?<br />
— O DJ H<strong>um</strong> disse que vocês po<strong>de</strong>m fi car na casa <strong>de</strong>le. Eu vou<br />
fazer <strong>um</strong>a feira pra ele não ter <strong>de</strong>spesas.<br />
— Tá fechado então, Donizete.<br />
Antes <strong>de</strong> pegarmos o ônibus, naquela semana, eu me encontrei<br />
com o DJ Nino. Eu tinha pedido a ele alguns discos antigos que<br />
serviriam como base para as minhas futuras produções. Nino<br />
me <strong>de</strong>u <strong>um</strong> compacto do grupo Yarbrough and People, que tinha<br />
a música “Don’ t Stop the Music”.<br />
— Gordo, usa essa música só n<strong>um</strong>a ocasião muito especial. Só<br />
com <strong>um</strong> grupo que realmente valha a pena – recomendou.<br />
— Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar, Nino. Não usarei em vão essa base. Brigadão,<br />
cara!<br />
A nossa viagem e a produção do vinil foram pagas pela TNT. Ficamos<br />
duas semanas produzindo o trabalho junto com o DJ H<strong>um</strong>,<br />
que <strong>de</strong>u idéias interessantes e fez pesquisas para as bases do<br />
disco. Alg<strong>um</strong>as situações eram muito engraçadas.<br />
— Olha só essa música, Raffa. Não é <strong>de</strong>mais? – perguntou<br />
H<strong>um</strong>berto.<br />
— H<strong>um</strong>berto, tem <strong>um</strong>a letra do Marcão que combina <strong>de</strong>mais<br />
com essa base. Vamos usá-la!<br />
— Desculpa, Raffa, mas eu tenho primeiro que perguntar pro<br />
Thaí<strong>de</strong> se ele não vai usar essa base – disse. E eu comecei a rir.<br />
Situações assim se repetiram várias vezes durante a produção<br />
e, claro, eu nunca me irritei nem consi<strong>de</strong>rei falta <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração<br />
do H<strong>um</strong>berto. Afi nal, estávamos na casa <strong>de</strong>le e, ainda por<br />
cima, pesquisando bases nos discos <strong>de</strong>le. Mas que era engraçado,<br />
ah, isso era!
224 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
O Donizete fazia todos os trabalhos da gravadora no estúdio<br />
do DJ Cuca. Finalmente eu iria conhecer o tão famoso DJ Cuca,<br />
responsável pelos maiores sucessos <strong>de</strong> rap naqueles tempos:<br />
“Puxa o revólver”, do N<strong>de</strong>e Naldinho, e “Colarinho branco” do<br />
Duck Jam e Nação Hip Hop. Tivemos <strong>de</strong>sentendimentos no<br />
estúdio, no entanto, nada que abalasse as gravações. O Cuca<br />
colocou alg<strong>um</strong>as coisas na cabeça do H<strong>um</strong>berto que eu não<br />
agüentava ouvir. Ele dizia, por exemplo, que só havia dois b<strong>um</strong>bos<br />
que batiam e tinham peso <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Por isso, eles tinham<br />
que ser usados em todas as músicas. Ficávamos restringidos a<br />
escolher entre <strong>um</strong> e outro.<br />
Eu tinha pensado em usar nesse trabalho apenas a força dos<br />
loops sampleados. Só equalizar, sem reforçar nada em cima, <strong>de</strong><br />
forma a alcançar o peso <strong>de</strong>sejado na hora da mixagem. Os dois<br />
não compreendiam essa idéia, inspirada em trabalhos como<br />
100 Miles and Runnin’ e Niggaz4life, do NWA. Por causa <strong>de</strong>sse<br />
conceito que tinha em mente, eu quis mixar o disco todo sozinho.<br />
O H<strong>um</strong>berto não gostou muito da idéia porque ele também<br />
pretendia mixar as músicas. No fi nal, <strong>de</strong>u tudo certo. Os dois<br />
acataram as minhas <strong>de</strong>cisões e mixamos o disco juntos, sem<br />
abalar nossa amiza<strong>de</strong>.<br />
Eu e Marcão voltamos a Brasília para organizar a nossa<br />
mudança. Então o Fish, do Geração Rap, me ligou <strong>de</strong> São Paulo.<br />
A gente se conhecia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro trabalho dos Magrellos<br />
na Kaskatas. O Geração Rap tinha se tornado conhecido com a<br />
música “Cuidado”.<br />
— Tranqüilo, Raffa?<br />
— Graças a Deus, Fish. O que você manda?<br />
— Raffa, estou precisando produzir <strong>um</strong>a <strong>de</strong>mo urgente. Tem<br />
como você me ajudar, mano? Eu não agüento mais esperar a boa<br />
vonta<strong>de</strong> do Carlinhos, da Kaskatas. Acho que ele não acredita<br />
no meu trampo, Raffa.
Baseado nas Ruas<br />
225<br />
— Po<strong>de</strong> até ser Fish, mas não acredito que seja isso. É que, cada<br />
vez mais, as gravadoras, mesmo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, querem ver o<br />
trabalho pronto antes <strong>de</strong> contratar, enten<strong>de</strong>u?<br />
— Eu quero mesmo é ir para a TNT, on<strong>de</strong> o Thaí<strong>de</strong> e vocês estão.<br />
Será que o Donizete abraça esse trampo?<br />
— Sincerida<strong>de</strong>? Eu não sei! Vem pra Brasília, Fish. Vamos fazer<br />
quatro músicas aqui. Quando eu for pra Sampa, eu mostro pro<br />
Donizete, ok?<br />
— Combinado, Raffa! Tô indo amanhã mesmo.<br />
O Fish acabou fi cando <strong>um</strong>a semana no apartamento da minha<br />
mãe para fazer as músicas. Dias <strong>de</strong>pois encontrei com o X e o<br />
Jamaika, que pediram <strong>um</strong>a força na produção do disco do Câmbio<br />
Negro. Fizemos primeiro só <strong>um</strong>a base, em cima da música<br />
“N<strong>um</strong>bers”, do Kraftwerk. 2 No dia da produção, eu falei para os<br />
dois:<br />
— Galera, eu e o Marcão estamos <strong>de</strong> mudança pra São Paulo.<br />
— Po<strong>de</strong> crer, Gordo – respon<strong>de</strong>u X.<br />
— E a produção do nosso disco, Loirinho? 3 – perguntou Jamaika.<br />
— Velho... Vocês têm que dar <strong>um</strong> jeito <strong>de</strong> cair lá em Sampa pra<br />
fazer essa parada comigo. Vocês fi cam on<strong>de</strong> a gente estiver<br />
morando. Preciso só <strong>de</strong> <strong>um</strong> tempo pra resolver as coisas lá e<br />
fazer a mudança.<br />
— Esquenta não, Gordo. Tá fechado! – disse X.<br />
Na semana em que tivemos esse papo, nosso disco chegou da<br />
fábrica. O Donizete telefonou dizendo para <strong>de</strong>scermos para São<br />
Paulo, a terra prometida do rap nacional.<br />
2 Grupo alemão <strong>de</strong> música eletrônica. São consi<strong>de</strong>rados pioneiros no gênero.<br />
3 Outro apelido do Raffa.
226<br />
CAPÍTULO 28:<br />
A terra prometida do
Finalmente, chegamos com todas as nossas tralhas em São<br />
Paulo. Era o segundo semestre <strong>de</strong> 1992.<br />
Quem resolveu acompanhar a gente na viagem foi o Ovelha, do<br />
DF Movimento. A idéia era aproveitá-lo nos shows que tínhamos<br />
bolado. Ele fazia alg<strong>um</strong>as encenações teatrais, sincronizadas<br />
com as letras das músicas; <strong>um</strong>a novida<strong>de</strong> nos shows <strong>de</strong> rap na<br />
época. Depois que estivéssemos instalados, Neguinho e Alemão,<br />
também do DF Movimento, iriam para São Paulo pra fazer<br />
o disco do grupo.<br />
Eu e Marcão alugamos <strong>um</strong> barraco que fi cava na Zona Norte da<br />
cida<strong>de</strong>, na Vila Maracanã. Era perto da casa do Donizete. Assim<br />
era mais fácil para a gente resolver as coisas com ele no dia-a-dia.<br />
A música “Tiro pela culatra” começou a tocar em programas especializados<br />
<strong>de</strong> rap. Ela tinha a participação do Thaí<strong>de</strong> e isso abria as<br />
portas. A letra também chamava a atenção <strong>de</strong> alguns locutores.<br />
Não me matem, eu tenho apenas 12 anos,<br />
foi o que ele disse naquela noite escura e fria,<br />
mas os seus ombros com suas estrelas,<br />
que os seus olhos já não querem vê-las.<br />
Fecha os olhos e não abra nunca mais,<br />
pois assim fará <strong>um</strong> bem e,<br />
aliás, cale a boca<br />
não me fale muito menos se cale,<br />
pois eu não quero ver você sair.<br />
228
A terra prometida do rap<br />
Tiros e tapas covar<strong>de</strong>s fi zeram,<br />
fi zeram jovens presuntos como assuntos,<br />
assuntos <strong>de</strong> jornais simplesmente, nada mais.<br />
229<br />
Toda equipe <strong>de</strong> som <strong>de</strong> São Paulo tinha <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> rádio<br />
que, na maioria das vezes, ia ao ar nos fi nais <strong>de</strong> semana. Essa<br />
rivalida<strong>de</strong> atrapalhava os grupos <strong>de</strong> rap, porque se <strong>um</strong> grupo era<br />
associado a <strong>um</strong>a equipe, ou à gravadora <strong>de</strong>la, já era motivo para<br />
as outras equipes não tocarem suas músicas. O Baseado foi <strong>um</strong><br />
dos poucos grupos que conseguiu furar esse esquema. Aqueles<br />
que conseguiam fazer show com a Chic Show eram consi<strong>de</strong>rados,<br />
no meio do rap, os grupos mais estourados. Tocar <strong>um</strong>a música<br />
nos bailes da Chic Show também era motivo <strong>de</strong> comemoração.<br />
“O cheiro mata” começou a tocar em alguns programas <strong>de</strong><br />
rádio em São Paulo. Ela também tocou bastante no Mix Mania,<br />
do Celsão em Brasília. Mas a música do nosso disco que realmente<br />
estourou foi “Dane-se o sistema”. Marcão tinha escrito<br />
essa letra ainda nos tempos dos Magrellos, inspirado naquele<br />
infeliz episódio a caminho da pizzaria <strong>de</strong>pois do show do Public<br />
Enemy. O título e o refrão originais da música eram “Foda-se<br />
a polícia”. Como o DJ H<strong>um</strong> estava envolvido na produção do<br />
disco e os achou muito pesado, ele sugeriu que mudássemos<br />
para “Dane-se o sistema”. Aceitamos sem discussão. Apesar<br />
do sucesso <strong>de</strong>ssa música, as minhas preferidas são: “Sócios” e<br />
“A grama é cara”. A letra <strong>de</strong> “A grama é cara” é <strong>um</strong>a obra-prima<br />
do Marcão. Ele rima da primeira para a última estrofe e, em<br />
seguida, da última para a primeira, mantendo o sentido da letra.<br />
Além disso, ele fez a primeira tentativa <strong>de</strong> construir <strong>um</strong>a letra<br />
em que todas as palavras começariam com a mesma letra ou<br />
teriam a sonorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la.<br />
Somos certos seus sentimentos sempre solitários,<br />
somados são cegos semeiam sua semente sem sol,<br />
saltos soltos, sapatos sempre separados,<br />
seu seio cínico, sensualida<strong>de</strong>!
230 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Essa estrofe <strong>de</strong>screve <strong>um</strong>a prostituta. Muitas vezes, as rimas do<br />
Marcão não eram bem compreendidas, porque ele usava muitas<br />
gírias e metáforas. Se existem letras <strong>de</strong> rap que ainda hoje são<br />
incompreendidas, imagine naquela época.<br />
No mesmo ano, estreou <strong>um</strong> dos mais importantes programas<br />
<strong>de</strong> rap nacional <strong>de</strong> São Paulo. Era o Projeto Rap Brasil, na Metrô<br />
FM, sob o comando do Armando Martins, dono da equipe Circuit<br />
Power. O programa ia ao ar <strong>de</strong> segunda a sábado, das 20h às 22h.<br />
Muita gente dizia que o seu repertório era fraco. Mas a mesma<br />
galera que fazia as críticas não reclamava quando o Armando<br />
tocava suas músicas ou os convidava para shows e entrevistas.<br />
O Baseado nas Ruas estourou nesse período. “Dane-se o sistema”<br />
tocava praticamente todo dia.<br />
Meu primeiro emprego em São Paulo foi na Metrô FM. A rádio<br />
estava n<strong>um</strong>a fase <strong>de</strong> reformulações e mudou todo o estilo da<br />
programação, tocando muito dance, pop e rap. Eu fui contratado<br />
para a área da sonoplastia. Editava músicas muito longas, gravava<br />
comerciais, fazia vinhetas e até remixes. O DJ Alexandre<br />
Me<strong>de</strong>iros foi contratado como locutor e começamos a fazer <strong>um</strong>as<br />
produções juntos para a Kaskatas. É <strong>um</strong>a pena que ele nunca<br />
tenha realmente se <strong>de</strong>dicado ao trabalho <strong>de</strong> estúdio, remixes e<br />
produção musical. Talento e conhecimento nunca lhe faltaram.<br />
Nessa época, o rap nacional estava quase totalmente concentrado<br />
em Sampa, porque no DF o estilo musical freestyle – <strong>um</strong>a<br />
vertente melody do miami bass, chamada no Brasil <strong>de</strong> funk<br />
melody – estava estourando nos bailes e rádios.<br />
O Celsão não estava mais na 105 FM <strong>de</strong> Brasília. Ele tinha <strong>um</strong><br />
programa na Manchete FM, <strong>de</strong> segunda a sexta, das 17h às 19h.<br />
O nome permaneceu Mix Mania, mas o estilo era mais eclético,<br />
com muito freestyle. Muitos rappers criticaram, mas o Celsão<br />
nunca se abalou por isso e sempre tocou aquilo que achava<br />
legal. Posso dizer que ele nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> tocar o meu disco.<br />
“O cheiro mata” e “Tiro pela culatra” tocavam muito no Mix Mania.
A terra prometida do rap<br />
231<br />
Em São Paulo, o ponto <strong>de</strong> encontro era o Santana Samba, às<br />
quintas à noite. O SP DJs, formado por Grandmaster Ney e Natanael<br />
Valêncio, comandava a noite. Para mim, Natanael foi <strong>um</strong>a<br />
das pessoas mais importantes e infl uentes do hip-hop brasileiro.<br />
Ele era apresentador do Movimento <strong>de</strong> Rua, programa<br />
<strong>de</strong> rap que passava nas noites <strong>de</strong> sábado na Imprensa FM, <strong>de</strong><br />
São Paulo. O programa lançou, em 2001, <strong>um</strong>a coletânea com<br />
nomes consagrados do rap como RZO, Visão <strong>de</strong> Rua, Edi Rock,<br />
Apocalipse 16 entre outros. Conheci o Natanael ainda na época<br />
dos Magrellos, no show do Public Enemy. Ele gostava muito do<br />
nosso trabalho e escreveu <strong>um</strong> artigo na revista DJ Sound sobre<br />
o nosso disco. Infelizmente, ele faleceu em 2005.<br />
Começamos a fazer vários shows com as equipes Kaskatas,<br />
Dinamite, Circuit Power e Black Mad, em São Paulo e cida<strong>de</strong>s do<br />
interior, como Campinas, Rio Claro e Ribeirão Preto. No entanto, a<br />
maioria dos shows rolou com o pessoal da Zimbabwe. Eles se i<strong>de</strong>ntifi<br />
cavam muito com o nosso estilo e as nossas músicas. Todos os<br />
shows promovidos pelo Serafi m, da Zimbabwe, foram muito bons.<br />
O William, sócio <strong>de</strong>le, sempre que me encontrava, perguntava:<br />
— Então, Raffa, o contrato com a TNT acaba quando? Vamos<br />
gravar com a Zimbabwe?<br />
Eu sempre tirava o corpo fora, porque eu não tinha o que reclamar<br />
da TNT, que estava fazendo <strong>um</strong> bom trabalho.<br />
Um dos principais shows que fi zemos foi o lançamento do disco<br />
no Santana Samba, ponto <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> praticamente toda<br />
a galera do movimento hip-hop <strong>de</strong> São Paulo. No dia, eu fi quei<br />
nervoso e não toquei bem. Mas o disco foi muito elogiado.<br />
Nessa mesma época, o Racionais lançou o single “Escolha o seu<br />
caminho”. O rap nacional ainda não se importava com o CD. Tudo<br />
era no vinil.<br />
O Marcão e o Ovelha estavam procurando <strong>um</strong> b-boy que estivesse<br />
disposto a dançar para o Baseado. Para quem aceitasse,<br />
seriam muitos shows, pouca grana e ralação gran<strong>de</strong>. Eles reen-
232 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
contraram, na Estação São Bento, o Nelsão; o Marcelinho, da<br />
Back Spin; o Banks; o Alam Beat, que está com o Sampa Crew<br />
até os dias atuais; o Moisés e o Pex, do Jabaquara Breakers.<br />
— Fala, Nelsão! Beleza, véi?<br />
— Tudo em cima, Marcão.<br />
— Nelsão, a gente tá procurando <strong>um</strong> b-boy que queira dançar<br />
nos nossos shows. Você po<strong>de</strong> indicar <strong>um</strong>?<br />
— Cara, tem <strong>um</strong> menino que dança muito. Ele veio <strong>de</strong> Fortaleza<br />
pra estudar a arte do DJ aqui em São Paulo e acabou entrando<br />
pro Jabaquara Breakers. Qual é o nome <strong>de</strong>le mesmo, Pex?<br />
— É Flip, Nelsão – respon<strong>de</strong>u Pex. – Ele só está há uns dois<br />
meses aqui em Sampa.<br />
— Então, Nelsão, pe<strong>de</strong> pra ele ir se encontrar com a gente –<br />
disse Marcão.<br />
— On<strong>de</strong> vocês estão morando? – perguntou Nelsão.<br />
— Na Zona Norte, <strong>de</strong>pois da Freguesia do Ó, na Vila Maracanã<br />
– disse Marcão.<br />
— Vou pedir pra ele ir lá pra vocês acertarem tudo – disse Nelsão.<br />
— Valeu, galera! A gente se vê - agra<strong>de</strong>ceu Marcão.<br />
O Flip era muito jovem. Tinha apenas 19 anos. Ele nos procurou<br />
na outra semana e fi zemos <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>. Logo <strong>de</strong> cara,<br />
ele se interessou pelos meus discos importados. Queria copiar<br />
tudo. O Flip dançou para o Baseado até o fi m <strong>de</strong> 1992 e <strong>de</strong>pois<br />
retornou para Fortaleza. Ele pretendia voltar a São Paulo em<br />
março do ano seguinte, mas, infelizmente, por vários motivos,<br />
não pô<strong>de</strong>. Ele ajudou muito no fortalecimento do movimento<br />
hip-hop cearense. Mantivemos contato durante todos esses<br />
anos e, hoje em dia, ele faz parte do grupo Costa a Costa.<br />
Depois <strong>de</strong> <strong>um</strong> mês e pouco instalados no barraco em São Paulo, o<br />
X e o Jamaika chegaram para produzirmos a <strong>de</strong>mo <strong>de</strong>les. Fomos<br />
todos pegos <strong>de</strong> surpresa. O Jamaika ligou <strong>de</strong> <strong>um</strong> orelhão para mim.
A terra prometida do rap<br />
— Loirinho, beleza?<br />
— E aí, Jamaika, quando é que vocês vêm?<br />
233<br />
— Já tamos aqui! Po<strong>de</strong> vir nos ajudar a carregar as coisas. Estamos<br />
no ponto fi nal – disse.<br />
Para se ter <strong>um</strong>a idéia <strong>de</strong> como o ponto <strong>de</strong> ônibus era longe, a<br />
gente tinha que andar uns 10 minutos até lá.<br />
O barraco que eu, Marcão e Ovelha dividíamos tinha quatro cômodos<br />
e nenh<strong>um</strong> móvel. A cozinha só tinha <strong>um</strong> fogão; não tínhamos<br />
dinheiro para comprar gela<strong>de</strong>ira. A comida que fazíamos era<br />
calculada para não sobrar e estragar. Eu e Marcão dividíamos,<br />
com <strong>um</strong> lençol, o único quarto. O maior cômodo era a sala, on<strong>de</strong><br />
o Ovelha dormia n<strong>um</strong> colchão <strong>de</strong> esp<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong>. E o banheiro<br />
era minúsculo, com a pare<strong>de</strong> cheia <strong>de</strong> buracos. De manhã, fazia<br />
<strong>um</strong> frio <strong>de</strong> amargar e tomar banho durante o inverno paulista era<br />
difícil, mas necessário. Não tínhamos nem mesa para colocar o<br />
meu equipamento <strong>de</strong> trabalho. Achamos n<strong>um</strong> lixão <strong>um</strong>a porta<br />
que, junto com uns tijolos, virou <strong>um</strong>a mesa. Eu também não possuía<br />
caixa <strong>de</strong> som e pedi duas para o Donizete, que me arr<strong>um</strong>ou<br />
dois falantes <strong>de</strong> graves. Já viu como a gente escutava música<br />
para produzir, né?!<br />
Não era fácil. Tinha dias em que a gente não comia por falta <strong>de</strong><br />
dinheiro. O único jeito <strong>de</strong> enganar a dor no estômago era comprar<br />
<strong>um</strong> pacotinho <strong>de</strong> ki-suco, que a gente apelidou <strong>de</strong> “pó da<br />
morte”, misturar com dois litros <strong>de</strong> água da torneira, porque<br />
fi ltro era artigo <strong>de</strong> luxo, e colocar em <strong>um</strong> copo cheio <strong>de</strong> açúcar.<br />
Assim a gente levava o dia-a-dia.<br />
X e Jamaica se instalaram no nosso barraco e, no primeiro dia,<br />
o Jamaika já foi me passando as idéias das primeiras músicas.<br />
Além <strong>de</strong> empolgados, eles estavam muito ansiosos para fazer<br />
aquele trabalho. A produção levou <strong>um</strong>as duas semanas para<br />
fi car pronta. Alg<strong>um</strong>as idéias foram inovadoras, como as colagens<br />
do Gerson King Combo. 1 Uma das músicas do disco se<br />
chamava “Que irmão é você?”:<br />
1 Cantor brasileiro <strong>de</strong> soul music nos anos 70.
234 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Vou contar agora <strong>um</strong>a história triste,<br />
que infelizmente em nosso meio ainda existe.<br />
Pessoas que por nós são muito consi<strong>de</strong>radas<br />
e só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito tempo mostram a sua cara safada!<br />
Vou falar agora <strong>de</strong> <strong>um</strong> cara que foi meu mano,<br />
pisou na bola, vacilou e agora o bicho tá pegando.<br />
Não vou te ameaçar, só tô lhe avisando,<br />
cada <strong>um</strong> conhece a cobra que tá criando.<br />
Infelizmente, o rap nacional herdou do rap americano o <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> produzir músicas falando mal dos <strong>de</strong>safetos, dos inimigos e<br />
da galera com quem se tem <strong>um</strong>a treta. Durante os anos 90, essa<br />
foi <strong>um</strong>a prática com<strong>um</strong> dos rappers, principalmente no DF, e <strong>um</strong><br />
dos maiores alvos <strong>de</strong>ssas músicas foi o Gog. O X escreveu “Que<br />
irmão é você?” para ele, que já estava rimando, mas ainda se<br />
<strong>de</strong>dicava mais ao break. O Gog tinha criticado movimentos <strong>de</strong><br />
break e alguns b-boys do DF, dando margem às críticas que foram<br />
feitas na música. Mas a letra não era só para o Gog, era para o<br />
Celsão também. X não se conformava por ele tocar mais freestyle<br />
do que rap. Ele estava realmente revoltado com o r<strong>um</strong>o do rap no<br />
DF e achava que o Celsão tinha que divulgar mais o rap nacional.<br />
Na verda<strong>de</strong>, ninguém tinha nada a ver com isso. O Celsão não se<br />
importava com as críticas.<br />
Essa não foi a primeira nem a única música que <strong>de</strong>stratava o<br />
Gog. O Marcão mesmo já tinha escrito a música “Falso amigo”,<br />
incluída no disco do Magrellos lançado pela Sony. O refrão que o<br />
Tubarão rimava era assim:<br />
Falso, falso, falso, amigo falso,<br />
eu não quero você perto <strong>de</strong> mim.<br />
Na verda<strong>de</strong>, essas tretas eram muito pequenas. Alguns anos<br />
antes, por exemplo, o Gog se <strong>de</strong>sligou dos Magrellos para se<br />
<strong>de</strong>dicar aos estudos. Ele não queria mais dançar break no chão<br />
nos bailes. Pura imaturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mente jovem, mas não era<br />
motivo para escreverem <strong>um</strong>a música. O Marcão e o Gog superaram<br />
isso, principalmente porque <strong>de</strong>pois o próprio Gog voltou
A terra prometida do rap<br />
235<br />
com toda a força para o movimento, <strong>de</strong>sistindo inclusive, <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
emprego público estável.<br />
Infelizmente, isso sempre fez parte do hip-hop.<br />
Em São Paulo, X e Jamaica iam para as festas, bailes e shows<br />
junto com a gente. N<strong>um</strong>a das vezes fomos a <strong>um</strong> baile do Santana<br />
Samba e vimos o lançamento do disco Nem A nem B só se for D,<br />
do grupo Vítima Fatal, pela Five Star Records. Não só o disco<br />
era maravilhoso como pela primeira vez vi <strong>um</strong>a capa <strong>de</strong>cente no<br />
rap nacional. A foto era bem trabalhada, tirada com <strong>um</strong>a lente<br />
tipo olho <strong>de</strong> peixe. A apresentação <strong>de</strong>les também foi muito boa.<br />
Acho que essa capa, junto com a <strong>de</strong> Escolha o seu caminho, dos<br />
Racionais, <strong>de</strong>spertou nas gravadoras e grupos <strong>de</strong> rap a vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> investir mais em capas <strong>de</strong> discos.<br />
A música do Vítima Fatal que estourou na voz do rapper Dee Mau<br />
foi “Oh, Deus”. Para mim, essa música foi o primeiro registro <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong>a letra no rap nacional com tendência gospel.<br />
Nem a, nem b, só se for d<br />
A esperança que temos é que seus fi lhos tomem consciência.<br />
Foi dito que foi criado com mais competência,<br />
refl itam mais seriamente quanto aos mandamentos,<br />
para que todos sigamos a favor do vento.<br />
Praticamente toda semana freqüentávamos o baile do Santana<br />
Samba. Teve <strong>um</strong>a noite, <strong>de</strong>pois do baile, que pensei que todos<br />
fôssemos morrer. Foi n<strong>um</strong>a quinta-feira <strong>de</strong> madrugada. Eu,<br />
Marcão e Ovelha íamos a pé para casa. O Ovelha - sempre muito<br />
doido – já tinha tomado <strong>um</strong>as e outras quando resolveu gritar<br />
bem alto “O que é que rola?”, para <strong>um</strong> casal que estava passando<br />
no outro lado da rua. O cara também não estava sóbrio<br />
e <strong>de</strong>cidiu atravessar a rua para tirar satisfações com a gente.<br />
Marcão começou a conversar n<strong>um</strong>a boa com o sujeito, mas,<br />
no fundo, ele não queria saber <strong>de</strong> explicações. Àquela altura, a<br />
mulher que estava com ele já tinha se mandado, provavelmente<br />
com medo. O Ovelha se <strong>de</strong>sesperou e foi correndo para o nosso
236 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
barraco para chamar o X e o Jamaika. Quando a gente já estava<br />
chegando lá e o cara quase enten<strong>de</strong>ndo que tudo não tinha passado<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> mal-entendido, os dois apareceram no portão.<br />
— Marcão, o que é que tá rolando, véi? Tá tudo bem? – perguntou<br />
o X, saindo logo <strong>de</strong> casa.<br />
— Esquenta não, X. Tá tudo sob controle, véi!<br />
Quando o cara viu dois negros gigantes saindo do barraco, no<br />
escuro, se assustou pra valer e saiu correndo.<br />
Entramos todos e rimos do acontecido. Depois, resolvemos ligar<br />
a minúscula TV que o Marcão tinha e ver o Yo MTV Raps!, que<br />
passava às 2h da manhã. Depois <strong>de</strong> mais ou menos meia hora, a<br />
gente ouviu <strong>um</strong> monte <strong>de</strong> paus batendo no barraco, nas portas e<br />
nas janelas, além <strong>de</strong> muitos gritos.<br />
— Vamos saindo pra fora, senão a gente inva<strong>de</strong> e mata todo<br />
mundo, mano – gritaram.<br />
Ninguém enten<strong>de</strong>u direito o que estava acontecendo. Marcão<br />
<strong>de</strong>sligou imediatamente as luzes. Aí ouvimos mais gritos.<br />
— Queremos “os negrão”! Cadê “os negrão”?<br />
— Gordo, sai com o Jamaika pela janela dos fundos. Lá tem<br />
como vocês subirem no teto e se escon<strong>de</strong>rem – disse Marcão,<br />
bem baixinho. Rapidamente, eu e Jamaika saímos.<br />
— X, você fi ca aqui na sala e <strong>de</strong>ixa que eu e o Ovelha vamos<br />
resolver – disse Marcão.<br />
— Só, Marcão – respon<strong>de</strong>u X, que resolveu ajoelhar e rezar, porque<br />
além das batidas com paus, a gente ouvia batidas <strong>de</strong> ferro<br />
nas janelas, que pareciam sons <strong>de</strong> pistolas.<br />
O Marcão saiu e enfrentou a situação. Ele viu 15 caras armados<br />
com paus e pistolas até os <strong>de</strong>ntes. Eu e Jamaika assistimos <strong>de</strong><br />
camarote a toda a negociação do Marcão. O sujeito tinha fi cado<br />
com medo – porque se sentiu ameaçado quando o X e o Jamaika
A terra prometida do rap<br />
237<br />
chegaram ao portão – e foi chamar uns comparsas para se vingar.<br />
O cara não estava bem. Ele se confundiu todo.<br />
— Então, mano, qual é a tua versão? – perguntou o lí<strong>de</strong>r do<br />
grupo.<br />
— Não tem versão. Esse cara aí tá louco. A gente nem tava falando<br />
com ele. – respon<strong>de</strong>u Marcão.<br />
— O rapaz aqui é meu parceiro, mano. Ele disse que vocês<br />
mexeram com a mina <strong>de</strong>le, meu! É verda<strong>de</strong> isso, truta?<br />
— Não tá vendo que ele tá bêbado, véi? Isso é caô! – disse Marcão.<br />
— Peraí... Você não é <strong>de</strong> <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap... Baseee...<br />
— Baseado nas Ruas, você quer dizer – completou Marcão.<br />
— Isso mesmo, mano. Satisfação mano! – respon<strong>de</strong>u o cara.<br />
— Sou o Marcão, do Baseado nas Ruas.<br />
— Aí, galera, vamos abaixar os armamentos que o mano aqui é<br />
sangue bom.<br />
O lí<strong>de</strong>r reconheceu o Marcão, que fi nalmente conseguiu convencê-los<br />
<strong>de</strong> que tudo não passou <strong>de</strong> <strong>um</strong> mal-entendido. No<br />
entanto, o cara não parava <strong>de</strong> perguntar:<br />
— Mas cadê “os negrão”, mano?<br />
— Deixa “os negrão” pra lá, véio! Eles não têm nada a ver com<br />
essa confusão – disse Marcão.<br />
Graças a Deus, a lábia do meu parceiro resolveu a situação e<br />
a gente pô<strong>de</strong> dormir tranqüilo. A discussão durou <strong>um</strong>as duas<br />
horas. De pura tensão! A confusão acabou inspirando a música<br />
“Quase Fui”, do disco que lançamos no ano seguinte.
238<br />
CAPÍTULO 29:
O X e o Jamaika gravaram as músicas <strong>de</strong>les lá no barraco mesmo,<br />
com <strong>um</strong> microfone que arr<strong>um</strong>ei com o Donizete. Como era só <strong>um</strong>a<br />
<strong>de</strong>mo, a qualida<strong>de</strong> não contava naquele momento. O Fábio Macari<br />
que freqüentava muito o barraco, que a gente carinhosamente<br />
apelidou <strong>de</strong> “senzala”, se ofereceu para fazer a ponte do grupo<br />
com as gravadoras, mostrando a fi ta para várias pessoas. Mas o<br />
dinheiro dos dois acabou e eles resolveram voltar para Brasília,<br />
antes mesmo <strong>de</strong> ter qualquer resposta.<br />
Por incrível que pareça, nenh<strong>um</strong>a gravadora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte – nem<br />
o Donizete da TNT – gostou da <strong>de</strong>mo do Câmbio Negro. O motivo?<br />
Simples: as letras estavam recheadas <strong>de</strong> palavrões, impedindo<br />
a veiculação nas rádios. Para se ter <strong>um</strong>a idéia, <strong>um</strong>a das músicas<br />
se chamava “E que se fodam vocês”. A verda<strong>de</strong> é que o pessoal<br />
não teve coragem <strong>de</strong> dizer que o trabalho não agradava e inventou<br />
essa <strong>de</strong>sculpa fajuta dos palavrões. O som do Câmbio Negro<br />
não tinha nada a ver com o que tocava em São Paulo e isso era<br />
maravilhoso, porque dava i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria. Mais <strong>um</strong>a vez as<br />
pessoas envolvidas com o hip-hop mostraram que não estavam<br />
preparadas para <strong>um</strong> formato novo no rap nacional. Um bando<br />
<strong>de</strong> conservadores n<strong>um</strong> movimento cultural on<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
expressão era o sentimento maior. Quem conhecia o X e o Jamaika<br />
sabia que cada palavrão tinha sua razão <strong>de</strong> ser. Isso era a verda<strong>de</strong><br />
do grupo. Era assim que eles se expressavam no dia-a-dia. E não<br />
como muitos grupos, principalmente n<strong>um</strong> período em que fazer<br />
240
Geração Rap<br />
241<br />
pose <strong>de</strong> mau era a imagem que imperava no mercado. No entanto,<br />
atrás dos palcos e no dia-a-dia, ela não era verda<strong>de</strong>ira.<br />
Após a volta do Câmbio Negro para casa, o Donizete contratou o<br />
Geração Rap para eu fazer a produção musical do grupo <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> ter ouvido a <strong>de</strong>mo. O DJ Alpiste ainda estava no Geração Rap.<br />
Logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse disco, ele se converteu à religião evangélica<br />
e lançou <strong>um</strong> trabalho solo, tornando-se <strong>um</strong> dos maiores nomes<br />
do rap gospel nacional.<br />
Foi minha primeira produção musical <strong>de</strong> <strong>um</strong> disco cheio em<br />
terras paulistas. Garanti o pão nosso <strong>de</strong> cada dia, porque, além<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> pequeno cachê, nos dias em que o Fish ia para a senzala<br />
produzir, o Donizete bancava a comida do almoço e da janta.<br />
O disco todo é muito bom. Eu só não gosto da música “Pirulito”,<br />
que estourou. Posso afi rmar que fui <strong>um</strong> dos culpados <strong>de</strong>sse<br />
sucesso, porque a base que eu escolhi se encaixava perfeitamente<br />
com a letra e a rima do Fish. “Pirulito” se enquadrava no<br />
tal rap comédia – era assim que os radicais chamavam qualquer<br />
rap que não tivesse conteúdo sério e temas sobre auto-estima<br />
e racismo. Naquele ano, a Praça Roosevelt tinha se tornado o<br />
novo ponto <strong>de</strong> encontro dos grupos <strong>de</strong> rap <strong>de</strong> São Paulo. Esses<br />
grupos formaram a primeira posse <strong>de</strong> rap do Brasil, a Aliança<br />
Negra, em que podiam discutir a temática então muito forte nas<br />
letras e atitu<strong>de</strong>s. Muitos tiveram que se ren<strong>de</strong>r ao sucesso <strong>de</strong><br />
“Pirulito”, porque a música não parava <strong>de</strong> tocar no Projeto Rap<br />
Brasil e em outras rádios e bailes.<br />
Logo <strong>de</strong>pois recebemos a visita do Gog e do Genivaldo, dono da<br />
Discovery. Lembro até hoje quando o Genivaldo entrou na senzala.<br />
— Raffa... Você não precisa disso. Não precisa morar nessas<br />
condições. Você tem que voltar pra Brasília, cara – disse.<br />
— Genivaldo, eu estou aqui por livre escolha. Ninguém me<br />
impôs nada. Brasília não tem nada a me oferecer. O rap quase<br />
não toca nos bailes mais, você sabe disso. O freestyle tomou<br />
conta. Não sou contra o freestyle, o funk ou o miami bass. Eu
242 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
gosto e respeito, você sabe. Mas acho que o rap nacional está<br />
sendo muito discriminado e não tem espaço nenh<strong>um</strong>. Vou fazer<br />
o que em Brasília, Genivaldo?<br />
— Gordo, você não tá errado por querer divulgar o seu trabalho<br />
aqui em Sampa – disse Gog.<br />
— Mas que Brasília tá mais carente sem você, isso tá, Gordo!<br />
— É Gog, mas pra alguns no DF somos todos traidores do movimento,<br />
porque viemos pra São Paulo. É lamentável! Eu tô nem<br />
aí pras fofocas.<br />
— Raffa, há muitos grupos <strong>de</strong> rap no DF, mas que não têm como<br />
gravar. Fora o Leandro, não tem mais ninguém produzindo lá –<br />
comentou Genivaldo.<br />
— Santo <strong>de</strong> casa não faz milagre, cara – disse Marcão, entrando<br />
na conversa. – Infelizmente só vão nos respeitar no DF <strong>de</strong>pois<br />
que a gente fi zer <strong>um</strong> nome fora <strong>de</strong> lá. É assim com qualquer tipo<br />
<strong>de</strong> arte, não só com o rap.<br />
— Marcão tem razão, Genivaldo – concordou Gog.<br />
— Eu tô longe da minha família e dos meus amigos. Tudo em<br />
nome <strong>de</strong> <strong>um</strong> i<strong>de</strong>al. Tudo por causa do rap. E ainda falam mal <strong>de</strong><br />
mim – <strong>de</strong>sabafou Marcão.<br />
— Mas tem que ter <strong>um</strong> outro jeito, Raffa! – exclamou Genivaldo.<br />
— Você quer que eu faça o quê, Genivaldo? Eu não nasci pra<br />
fazer aquilo <strong>de</strong> que não gosto, mesmo que por isso eu tenha que<br />
passar fome.<br />
Ele fi cou me olhando e <strong>de</strong>pois abaixou a cabeça.<br />
— Raffa, escreve o que eu tô te falando. Vou te tirar daqui e te colocar<br />
on<strong>de</strong> você merece estar. Ouve o que eu tô te falando! E o primeiro<br />
passo é esse disco do Gog e do Zeux. Qual é o nome, Gog?<br />
— Peso pesado – respon<strong>de</strong>u Gog. – Gordo, vamos fazer quatro<br />
músicas. Marcão, quero você levando comigo na “Papo cabeça”<br />
– completou.
Geração Rap<br />
— Po<strong>de</strong> crer, véi! Conta comigo – disse Marcão.<br />
243<br />
Fiquei pensando o dia inteiro sobre o que o Genivaldo tinha me<br />
falado e em como ele faria aquilo. Na verda<strong>de</strong>, ele só tinha vindo<br />
a São Paulo para negociar o estúdio com o Cuca. Eu produziria o<br />
disco, a gravação dos vocais e a mixagem lá. Na mesma semana,<br />
o Neguinho e o Alemão chegaram do Cerrado para se hospedar<br />
na senzala e começar a produção do disco do DF Movimento.<br />
O Gog também convidou os dois para participarem na música<br />
“Papo cabeça” . A melhor música do disco na minha opinião, era<br />
“Jogo Bruto” , on<strong>de</strong> o Gog começava a dar as suas alfi netadas:<br />
Miami no toca-discos... e o Brasil continua nisso!<br />
A frase era <strong>um</strong> exemplo <strong>de</strong> como ele e muitos no DF estavam<br />
<strong>de</strong>sgostosos com os r<strong>um</strong>os que o rap estava tomando no Cerrado<br />
e com o jeito com que os DJs o estavam tratando. Realmente o<br />
rap nacional não tinha espaço nos bailes e nem nos programas<br />
especializados. As <strong>de</strong>sculpas eram sempre as mesmas:<br />
— Os discos não têm qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> importado – diziam uns.<br />
— O rap nacional tem que fazer mais músicas dançantes –<br />
opinavam outros.<br />
Esses comentários sempre foram irritantes.<br />
No dia em que eu fui mixar as músicas no estúdio do Cuca, o<br />
Armando Martins ofereceu <strong>um</strong> churrasco para os principais nomes<br />
do rap nacional daqueles tempos. Era <strong>um</strong> domingo e o Gog resolveu<br />
acompanhar o Marcão, porque queria conhecer o Armando e<br />
se encontrar novamente com alguns grupos que ele já conhecia.<br />
— Gordo, foi muito foda o churrasco. Todo mundo perguntou por<br />
você – disse Marcão, logo que voltaram à noite.<br />
— E você falou o que pra eles, Marcão? – perguntei, meio chateado.<br />
— A verda<strong>de</strong>, Gordo. Que você estava mixando o disco do Gog.<br />
— Não fi quei chateado por ter que trabalhar o dia inteiro n<strong>um</strong><br />
domingo, Marcão. Fiquei chateado porque o Gog não foi comigo<br />
para o estúdio.
244 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Gordo, tenta enten<strong>de</strong>r. Eu precisava conhecer o Armando Martins,<br />
além <strong>de</strong> fazer contatos importantes. Eu estava lá mais por<br />
trabalho do que por diversão – explicou Gog.<br />
— Eu sei, velho! Mas, na minha opinião, o seu disco é mais<br />
importante do que isso.<br />
— E é, Gordo! – exclamou ele.<br />
— Esquenta não, Gog. É que eu tô preso aqui na senzala há <strong>um</strong><br />
tempão. Nem sempre tenho dinheiro pra sair e me divertir ou<br />
mesmo pra comer carne <strong>de</strong> vez em quando – <strong>de</strong>sabafei - É só<br />
trampo! É foda! Você me enten<strong>de</strong>, né?<br />
— Claro, Gordo – disse ele.<br />
Começava ali a carreira <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos maiores rimadores, letristas,<br />
militantes e ativistas do hip-hop brasileiro. Para mim, que praticamente<br />
acompanhei a trajetória do Gog <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo e vi <strong>de</strong><br />
perto a evolução <strong>de</strong>le, é <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> satisfação ter participado<br />
<strong>de</strong> todo esse processo.<br />
Passaram-se alguns meses até o Gog voltar a Brasília com o<br />
vinil pronto para divulgar o seu trabalho.
245
246<br />
CAPÍTULO 30:
Eu e Marcão estávamos concentrados em fazer <strong>um</strong> bom trabalho<br />
no disco do DF Movimento para convencer o Donizete a graválos.<br />
O Alemão já se mostrava <strong>um</strong> ótimo letrista, mas mesmo<br />
assim Marcão o ajudou no <strong>de</strong>senvolvimento métrico das rimas.<br />
No entanto, na hora <strong>de</strong> cantá-las, a falta <strong>de</strong> experiência fazia a<br />
diferença para os vocalistas.<br />
Como o Ovelha tinha ido junto comigo e o Marcão para São<br />
Paulo para participar dos shows do Baseado nas Ruas, ele aos<br />
poucos foi fazendo amiza<strong>de</strong> com o Donizete e começou a trabalhar<br />
com ele na gravadora, principalmente nas cobranças a<br />
clientes <strong>de</strong>vedores. Isso aconteceu bem antes <strong>de</strong> o Alemão e o<br />
Neguinho virem para São Paulo na tentativa <strong>de</strong> gravar o disco.<br />
Como a produção seria minha e do Marcão, que já éramos da<br />
gravadora, o caminho fi caria mais fácil. Mas a amiza<strong>de</strong> do Ovelha<br />
com o Donizete não bastou para que ele, sem ouvir o disco<br />
pronto, contratasse o DF Movimento para a TNT Records.<br />
Certa vez, eu e Neguinho organizamos <strong>um</strong>a disputa <strong>de</strong> golzinho 1<br />
na rua, com o pessoal que freqüentava a senzala, tipo DF contra<br />
SP. Ganhamos 11 vezes direto e tiramos onda da cara dos paulistas.<br />
O Jeff, do Face Negra, não jogava nada. Ele era bom mesmo<br />
em catar a comida...<br />
1 Futebol em que as traves são feitas, geralmente, <strong>de</strong> pares <strong>de</strong> chinelos. Não há<br />
goleiro e as partidas duram cerca <strong>de</strong> 10 minutos.<br />
248
DF Movimento<br />
249<br />
— Gordo, vamos escon<strong>de</strong>r o rango pro Jeff não achar? – propôs<br />
Marcão <strong>um</strong> dia.<br />
— Beleza, on<strong>de</strong>?<br />
— No forno – sugeriu ele.<br />
Depois do jogo, o Jeff foi atrás da comida automaticamente.<br />
Mas procurou e não encontrou.<br />
— Porra, Raffa! Sobrou comida hoje não, meu? – perguntou ele.<br />
— Sobrou não, Jeff. Hoje tá embaçado – menti, mas não agüentei<br />
ver aquela situação e comecei a rir. Claro que ele percebeu e<br />
procurou, procurou e fi nalmente achou.<br />
— Escon<strong>de</strong>ndo o rango, né, Marcão? – reclamou ele.<br />
— Caralho, Jeff! Tu é folgado, véi! – disse Marcão.<br />
Mas, brinca<strong>de</strong>iras à parte, a nossa fi losofi a era simples: tinha<br />
pouca comida, mas sempre dava para mais <strong>um</strong>.<br />
Nessa época Fábio Macari me pediu para ajudá-lo na produção<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a coletânea <strong>de</strong> novos talentos. Foi <strong>de</strong>sse trabalho, que<br />
recebeu o título Movimento Hip-hop, que saíram gran<strong>de</strong>s nomes<br />
do rap nacional como Filosofi a <strong>de</strong> Rua, Fatos Reais e a Rúbia,<br />
do RPW. Minha única condição para fazer essa produção era a<br />
<strong>de</strong> ele ajudar com a comida, porque a gente fi cava trabalhando<br />
o dia inteiro na senzala. Ele conseguiu ven<strong>de</strong>r a idéia do projeto<br />
para o Getúlio da R&B, que fi nanciou todo estúdio e lançou o<br />
trabalho. Getúlio era dono <strong>de</strong> loja <strong>de</strong> discos e novo no ramo das<br />
gravadoras. Um dos poucos donos <strong>de</strong> selo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte sem<br />
vínculo com <strong>um</strong>a equipe <strong>de</strong> som. Ainda havia poucos donos <strong>de</strong><br />
lojas, pequenos empresários especializados em música negra e<br />
donos <strong>de</strong> selos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes que tinham coragem para investir<br />
no rap nacional. A maioria produzia discos <strong>de</strong> coletâneas internacionais.<br />
A ironia é que o mercado <strong>de</strong> rap nacional praticamente<br />
nasceu por causa da pirataria, já que alguns donos <strong>de</strong> equipe<br />
<strong>de</strong> som e lojas do mercado alternativo e un<strong>de</strong>rground faziam
250 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
vinis piratas <strong>de</strong> grupos estourados da música americana. Com o<br />
dinheiro <strong>de</strong>ssas vendas, contratavam grupos <strong>de</strong> rap nacionais e<br />
os lançavam. Esse esquema era meio oculto, só conhecia quem<br />
era do meio. Investir nos grupos o lucro dos discos piratas era a<br />
forma pela qual o pessoal lavava o dinheiro. Tudo o que vendiam<br />
voltava como dinheiro limpo. Além disso, muitos empresários<br />
acreditavam que iriam ganhar muito dinheiro em cima da inocência<br />
<strong>de</strong>sses grupos. E <strong>de</strong> fato foi o que aconteceu.<br />
Na coletânea do Fábio Macari, o grupo Filosofi a <strong>de</strong> Rua veio com<br />
<strong>um</strong>a música polêmica. O tema principal da letra estava claro já no<br />
título: “A cor da pele não infl ui em nada”. A intenção era boa, mas<br />
<strong>um</strong>a falha n<strong>um</strong> trecho da música fez com que eles fossem perseguidos<br />
em todos os lugares a que iam. Chegaram até mesmo a<br />
sofrer agressões físicas. O trecho é esse aí:<br />
Falar do racismo, da sua origem,<br />
do seu sofrimento, tudo bem.<br />
Eu te respeito.<br />
É o direito negro<br />
pra ser sincero, eu enxergo o sofrimento.<br />
<strong>de</strong>ssa raça falida, perdida, sofrida, oprimida,<br />
que luta para ter <strong>um</strong>a vida digna.<br />
Mas existe preto que não se conscientiza!<br />
O problema não era só eles serem brancos. Muitos negros do<br />
movimento hip-hop também não aceitavam o que eles diziam<br />
sobre os negros que não eram conscientes. Foi <strong>um</strong> <strong>de</strong>sgaste<br />
imenso para o grupo.<br />
Pessoalmente, eu nunca acreditei que a discriminação e o preconceito<br />
fossem em função das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais. Nem que<br />
o racismo não existisse no Brasil. Porém, a opressão fez com<br />
que ele fosse disfarçado. O que o rap nacional fez foi justamente<br />
expor, sem meias-palavras, esse preconceito. Não só para a burguesia,<br />
mas também para a comunida<strong>de</strong>. Pela conscientização da<br />
força <strong>de</strong>ssa doença, o hip-hop fez <strong>de</strong>spertar na população a autoestima,<br />
a vonta<strong>de</strong> cada vez maior <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar práticas <strong>de</strong> racismo
DF Movimento<br />
251<br />
e <strong>de</strong> incluir a questão nas gran<strong>de</strong>s discussões do país. Durante<br />
anos, esse foi o principal tema das letras <strong>de</strong> muitos grupos.<br />
Enquanto isso, o Donizete fi nalmente falou que tinha gostado<br />
do disco do DF Movimento e resolveu contratá-los para a TNT. O<br />
time estava fi cando bom, com grupos como Duck Jam e Nação<br />
Hip Hop, Thaí<strong>de</strong> & Dj H<strong>um</strong>, Baseado nas Ruas, Geração Rap,<br />
N<strong>de</strong>e Naldinho e DF Movimento.<br />
Alemão fi cou eufórico com a notícia. Ele merecia, era <strong>um</strong> guerreiro.<br />
Para completar o orçamento e ajudar com a comida e <strong>de</strong>spesas,<br />
ele trabalhava como camelô para <strong>um</strong>a tia <strong>de</strong>le. Vendia<br />
bijuterias na 25 <strong>de</strong> Março, 2 em São Paulo, fi cando fora por vários<br />
dias. Quando soube da notícia, ele resolveu escrever <strong>um</strong>a última<br />
música para o disco, chamada “Cultura viva”. Ele usou como inspiração<br />
“The Formula”, do D.O.C., só que o sample que a gente<br />
usou era do grupo <strong>de</strong> soul Chocolate Milk. A música tinha <strong>um</strong><br />
clima especial. Quando você escutava, sentia que o rap estava<br />
acima <strong>de</strong> tudo. Apesar <strong>de</strong> todas as difi culda<strong>de</strong>s pelas quais<br />
passávamos no dia-a-dia, à noite, antes <strong>de</strong> dormir, fi cava todo<br />
mundo junto lembrando histórias engraçadas do DF, matando<br />
as sauda<strong>de</strong>s, conversando e fazendo música na senzala.<br />
Ainda em 1992, houve <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> evento no Vale do Anhangabaú,<br />
no centro <strong>de</strong> São Paulo, promovido pelo então prefeito<br />
Eduardo Suplicy. Os principais grupos da época se apresentaram<br />
no show. Em certo momento, no camarim, <strong>um</strong>a pessoa se<br />
aproximou <strong>de</strong> mim e do Marcão.<br />
— Marcão, sou o Pivete, eu estou montando <strong>um</strong> grupo novo e<br />
senti fi rmeza no trampo <strong>de</strong> vocês, mano.<br />
— A gente tá tentando ser o mais original possível, né, véi? –<br />
respon<strong>de</strong>u Marcão.<br />
— Mas qual é o nome do seu grupo, Pivete?<br />
2 Rua mais movimentada do comércio popular <strong>de</strong> São Paulo.
252
253
254 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Pavilhão 9. A gente se inspirou no acontecimento do massacre<br />
do Carandiru e tal...<br />
— Entendi. E qual é a linha do grupo? – perguntou Marcão.<br />
— Então, mano, é bandidagem! A gente se inspira muito no som<br />
<strong>de</strong> vocês, meu - disse Pivete.<br />
Acompanhei toda a conversa e, quando ouvi aquilo, pensei no<br />
que o Pivete tinha falado. Será que essa era a imagem que as<br />
pessoas tinham do nosso som? Bandidagem? Essa nunca foi<br />
a proposta do Baseado. Talvez eles não tivessem entendido o<br />
nosso som: confundiram a linguagem das ruas com a bandidagem.<br />
Esse erro <strong>de</strong> interpretação nos acompanhou durante toda<br />
a existência do grupo.<br />
O Pavilhão 9 fez história no rap nacional. Com críticas pesadas<br />
à violência policial, alguns dos integrantes chegaram a se apresentar<br />
mascarados para proteger a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. As duas músicas<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>sse primeiro trabalho foram “Otários fardados” e<br />
“Manos errados”. Logo <strong>de</strong>pois o estilo do grupo mudaria, virando<br />
<strong>um</strong>a banda hardcore, e lançando vários discos.<br />
No dia em que Pivete nos procurou, nos encontramos também<br />
com o MC Jack. Ele anunciou para todo mundo que Ameaça ao<br />
Sistema, disco do seu grupo alternativo Radicais do Peso (RDP),<br />
iria sair pela Kaskatas. Esse era <strong>um</strong> projeto antigo e fi camos<br />
felizes com a notícia <strong>de</strong> que fi nalmente <strong>um</strong>a gravadora estava<br />
acreditando em seu trabalho.<br />
O Baseado fazia <strong>um</strong> monte <strong>de</strong> shows. Teve <strong>um</strong> em particular,<br />
no Capão Redondo, 3 que foi inesquecível. Ao chegarmos no<br />
lugar on<strong>de</strong> o show aconteceria, vimos dois ônibus fechando a<br />
entrada. Nenh<strong>um</strong> carro entrava. O evento era patrocinado por<br />
alg<strong>um</strong> trafi cante forte na região. Era <strong>um</strong> show a céu aberto, mas<br />
n<strong>um</strong>a área cercada por muros, como se fosse <strong>um</strong> forte. Lá <strong>de</strong>n-<br />
3 Distrito na região Sudoeste <strong>de</strong> São Paulo, conhecido pelas elevadas taxas <strong>de</strong><br />
violência.
DF Movimento<br />
255<br />
tro fomos muito bem recebidos. O baile estava lotado <strong>de</strong> bandidos<br />
armados até os <strong>de</strong>ntes. No camarim, eu, Marcão e Ovelha<br />
começamos a beber para esquecer on<strong>de</strong> estávamos e acalmar<br />
os nervos. Quando chegou a hora <strong>de</strong> cantar o Marcão já estava<br />
mais para lá do que para cá.<br />
— Baseado nas Ruas está em casa, mano! Cadê “os ladrão”?<br />
– gritou ele, logo que subiu no palco. Quem estava armado <strong>de</strong>u<br />
vários tiros para o alto.<br />
Eu me escondi atrás da mesa on<strong>de</strong> estavam os toca-discos.<br />
— Baseado nas Ruas agora vai levar o som mais periférico que<br />
vocês já ouviram – prosseguiu Marcão. E a galera começou a gritar.<br />
O nosso som realmente atingia o submundo, mas isso não era<br />
algo intencional. Era o estilo que agradava mesmo.<br />
No fi nal do show, o contratante nos <strong>de</strong>u duas mochilas cheias<br />
<strong>de</strong> armas e drogas. Era o nosso pagamento. Quem disse que a<br />
gente recusou? Saímos <strong>de</strong> lá às seis horas da manhã e atravessamos<br />
São Paulo, da Zona Sul à Zona Norte, com duas mochilas<br />
cheias <strong>de</strong> bagulho. Cada vez que subia <strong>um</strong> PM no ônibus a gente<br />
morria <strong>de</strong> medo. Parecia que nunca chegaríamos à nossa casa.<br />
Eu não parava <strong>de</strong> pensar na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sermos presos.<br />
Quando chegamos à nossa área, fomos direto para a casa do<br />
Donizete, que a gente chamava <strong>de</strong> Dino. Despejamos as duas<br />
mochilas na mesa da cozinha.<br />
— Aí, Dino, ven<strong>de</strong> essas paradas pra nós e arr<strong>um</strong>a o dinheiro.<br />
Tem a moral? – perguntou Marcão.<br />
— Deixa comigo, Marcão – respon<strong>de</strong>u ele.<br />
— Eu te ajudo – disse Ovelha.<br />
Uma semana <strong>de</strong>pois, Donizete já tinha conseguido transformar<br />
aquilo em dinheiro.<br />
Alg<strong>um</strong> tempo <strong>de</strong>pois, Donizete me apresentou <strong>um</strong> amigo <strong>de</strong>le, dono<br />
da gravadora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte MA Records. O nome <strong>de</strong>le era Giba.
256 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Gordo, o seu nome tá crescendo muito aqui em São Paulo e<br />
quero que você produza <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> rap nacional que resolvi<br />
lançar – disse Giba.<br />
— Tudo bem – respondi, animado.<br />
Giba era conhecido pelas coletâneas <strong>de</strong> músicas lentas internacionais<br />
que lançava. Ele foi à senzala e me apresentou a <strong>um</strong><br />
grupo que se chamava Produto da Rua.<br />
— Gordo, esse é o MC Kult, o Panther e o DJ Pitota.<br />
— Então, galera, satisfação! – c<strong>um</strong>primentei.<br />
— É nossa, Raffa! – respon<strong>de</strong>ram.<br />
— Meu... é <strong>um</strong>a honra fazer esse disco com você – disse Kult.<br />
— Giba, a gente vai fazer esse trampo em Brasília. Eles fi cam lá<br />
em casa sem problemas – sugeri.<br />
— Por quê, Gordo? – indagou Giba.<br />
— É que o contrato do barraco vai vencer e a gente vai dar <strong>um</strong><br />
tempo lá em Brasília pra resolver alg<strong>um</strong>as coisas.<br />
— Então vou te dar <strong>um</strong> dinheiro pra você fazer <strong>um</strong>a feira e ajudar<br />
na alimentação da galera, Raffa.<br />
— Ok! Assim já dá <strong>um</strong>a ajuda.<br />
Já era quase fi nal <strong>de</strong> ano e a gente queria passar o Natal e o<br />
Ano Novo em Brasilía. Além disso, a ex-mulher do Marcão, Erisleine,<br />
estava prestes a dar à luz e ele queria estar presente no<br />
nascimento da segunda fi lha. Também estávamos com alguns<br />
pequenos problemas em relação a pagamentos <strong>de</strong> direitos<br />
autorais com a TNT e precisávamos resolvê-los.<br />
Chegando a Brasília, o Genivaldo, da Discovery, me chamou e<br />
disse que iria fazer <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> lançamento <strong>de</strong> sua gravadora na<br />
ARUC, 4 no Cruzeiro. Ele queria que o Baseado e o DF Movimento<br />
4 Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro. Escola <strong>de</strong> samba do bairro<br />
Cruzeiro no DF, 28 vezes campeã do carnaval <strong>de</strong> Brasília.
DF Movimento<br />
257<br />
cantassem nesse show. Foi <strong>um</strong> sucesso! A casa lotou e muitas<br />
pessoas que não conheciam o trabalho do Baseado nas Ruas<br />
tiveram a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver esse nosso primeiro show em<br />
terras brasilienses.<br />
Nessa volta para Brasília, o DF Movimento <strong>de</strong>u várias entrevistas<br />
e fez muitos shows. Para o DF, eles representavam a quadra<br />
P Norte da Ceilândia e também a nova geração do rap do Cerrado.<br />
Depois do show na ARUC, o Alemão e o Neguinho tiveram<br />
vários <strong>de</strong>sentendimentos com o Ovelha, que, infelizmente, não<br />
segurou a onda do sucesso do grupo. Ele começou a ter atitu<strong>de</strong>s<br />
arrogantes e mentirosas que não eram condizentes com a<br />
i<strong>de</strong>ologia do DF Movimento. Por causa disso, Ovelha voltou para<br />
São Paulo sozinho para morar na casa do Donizete e trabalhar<br />
junto com ele.
258<br />
CAPÍTULO 31:
Antes <strong>de</strong> voltarmos para Brasília aconteceu <strong>um</strong> episódio em<br />
São Paulo que nunca vou esquecer.<br />
Um dos gran<strong>de</strong>s admiradores do nosso trabalho, e gran<strong>de</strong> amigo<br />
também, era o Mano Rogério. Na maioria dos shows que o Baseado<br />
fazia, ele aparecia com <strong>um</strong> rádio-gravador gran<strong>de</strong>, tocando<br />
as nossas músicas. O Mano Rogério era <strong>um</strong> ex-presidiário tentando<br />
recuperar o tempo perdido. Apesar <strong>de</strong> nossa pouca convivência,<br />
eu tinha certeza <strong>de</strong> que ele estava recuperado e não se<br />
envolveria mais com o crime. Em conversas, ele me confi <strong>de</strong>nciou<br />
que não agüentava mais policiais no pé <strong>de</strong>le. Dizia que eles não o<br />
<strong>de</strong>ixavam em paz e o perseguiam o tempo todo.<br />
N<strong>um</strong>a sexta-feira, eu estava na senzala quando bateram palma<br />
no portão.<br />
— Ô <strong>de</strong> casa... Tem alguém aí?<br />
— Fala Rogério! Tá fazendo o que aqui, compadre? – disse Marcão<br />
ao abrir a porta.<br />
— Posso fi car o fi nal <strong>de</strong> semana aqui com vocês? – perguntou<br />
Mano Rogério, que carregava <strong>um</strong>a mochila em cada mão. Marcão<br />
olhou para mim como quem também quisesse <strong>um</strong>a resposta.<br />
— Sem problemas, Rogério, aqui sempre cabe mais <strong>um</strong> – eu<br />
respondi.<br />
260
Mano Rogério<br />
261<br />
Além <strong>de</strong> mim e do Marcão, estavam lá em casa o Neguinho, o<br />
Flip e o Ovelha. O Alemão não estava nesse fi nal <strong>de</strong> semana,<br />
porque tinha fi cado na casa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a tia. Vou contar o que foi<br />
dito nesse episódio, sem julgar ninguém e sem saber se todos<br />
os fatos são verda<strong>de</strong>iros ou não. Vou contar apenas o que vi e<br />
presenciei. A conversa foi provocada pelo Marcão.<br />
— O que que tá acontecendo, mano?<br />
— Marcão, nessas mochilas tem <strong>um</strong>a arma pra cada <strong>um</strong> – disse<br />
Mano Rogério.<br />
— O quê?! – gritei, assustado.<br />
— Deixa eu ver isso – disse Marcão, tranqüilo.<br />
Marcão e Ovelha começaram a brincar com as armas na minha<br />
frente, tirando <strong>um</strong>a onda. Elas estavam <strong>de</strong>scarregadas, mas mesmo<br />
assim não gostei da brinca<strong>de</strong>ira. Queria enten<strong>de</strong>r aquela situação.<br />
— O que tá pegando, Rogério? – perguntei.<br />
— Conta aí, velho! – disse Ovelha.<br />
— Mano, eu troquei tiros com dois gambé 1 que <strong>de</strong>ram em cima<br />
da minha fi lha. São tudo justiceiro. 2 Eu matei os dois. Aí coloquei<br />
a minha família n<strong>um</strong> ônibus pro interior e vim me escon<strong>de</strong>r<br />
aqui – explicou Mano Rogério.<br />
O silêncio tomou conta da senzala. Até que...<br />
— Você veio se escon<strong>de</strong>r aqui, velho? – perguntei.<br />
— Aí, mano... Não pensei em outro lugar. Por isso que eu trouxe<br />
os armamentos. Qualquer coisa a gente troca com eles.<br />
— Velho, eu não tô acreditando nisso! – exclamei.<br />
1 Policiais.<br />
2 Grupos <strong>de</strong> extermínio geralmente compostos por policiais, ex-policiais e comerciantes<br />
das comunida<strong>de</strong>s.
262 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Então, Raffa, pega esse três oitão 3 aí pra você – zoou Marcão.<br />
— Porra, Marcão, eu não tô <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, cara! Isso é sério.<br />
— Foi mal, Gordo – <strong>de</strong>sculpou-se Marcão.<br />
— Aí, Raffa, se você quiser eu caio fora, mano – disse Mano<br />
Rogério.<br />
— Cê tá louco, véi? É <strong>um</strong>a satisfação ter você aqui – disse Marcão.<br />
— Ninguém quer que você se man<strong>de</strong>, Rogério. Mas você tem<br />
que enten<strong>de</strong>r a minha preocupação – acrescentei.<br />
— Na segunda eu vou embora, Raffa. É só pra dar <strong>um</strong> tempo da<br />
área on<strong>de</strong> moro.<br />
— Então, Flip, qual que você escolhe? – perguntou Marcão,<br />
rindo e se referindo às armas.<br />
— Sai fora, Marcão! – exclamou Flip.<br />
O Ovelha e o Marcão pareciam <strong>de</strong>spreocupados. Era como se<br />
soubessem que nada nos aconteceria. Eles brincaram com as<br />
armas o dia inteiro. Os dois conseguiram dormir tranqüilos, diferente<br />
<strong>de</strong> mim e do Flip, que fi camos bastante preocupados. Eu<br />
não consegui dormir o fi nal <strong>de</strong> semana inteiro, porque achava<br />
que <strong>de</strong> repente apareceriam vários encapuzados para invadir a<br />
senzala e matar todo mundo. A tensão era gran<strong>de</strong>. Eu não pensava<br />
em outra coisa.<br />
Na segunda-feira, Rogério se <strong>de</strong>spediu <strong>de</strong> todos. Pedimos a ele<br />
para ter juízo e se mandar para o interior. Foi a última vez que o<br />
vimos. Quando o Alemão voltou da casa da tia <strong>de</strong>le, contamos o<br />
episódio. Ele agra<strong>de</strong>ceu a Deus por não ter passado aquele fi nal<br />
<strong>de</strong> semana com a gente.<br />
O pior ainda estava para acontecer. No outro fi nal <strong>de</strong> semana<br />
veio a notícia do assassinato do Mano Rogério. Tomamos conhe-<br />
3 Arma calibre 38.
Mano Rogério<br />
263<br />
cimento da morte <strong>de</strong>le por meio <strong>de</strong> <strong>um</strong> jornal <strong>de</strong> sangue, 4 que<br />
falava em seis tiros na cabeça. Ficamos realmente abalados.<br />
Grupos <strong>de</strong> extermínio eram comuns na periferia e favelas <strong>de</strong> São<br />
Paulo. Os alvos eram, em sua gran<strong>de</strong> maioria, menores <strong>de</strong> rua,<br />
pequenos ladrões que agiam nas comunida<strong>de</strong>s e ex-presidiários.<br />
Quase sempre pessoas inocentes pagavam o pato pela violência.<br />
Guardamos esse fato entre nós durante todos esses anos. Só<br />
agora, escrevendo este livro, resolvi falar sobre o ocorrido. Mano<br />
Rogério fi cou eternizado, ainda, nos versos dos Racionais, na<br />
música “Fim <strong>de</strong> semana no parque”. Que Deus tenha a alma <strong>de</strong><br />
Rogério e que ele esteja <strong>de</strong>scansando em paz.<br />
4 Jornais que só contam casos policiais e dão especial atenção à violência.
264<br />
CAPÍTULO 32:
Em janeiro <strong>de</strong> 1993, o Produto da Rua começou a produzir o seu<br />
disco comigo e com o Fábio Macari, em Brasília. O Fábio aproveitou<br />
sua estadia na capital para fazer <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> reportagem<br />
sobre o movimento hip-hop no DF para a revista DJ Sound, da<br />
qual era colunista. Os três integrantes do Produto da Rua fi caram<br />
hospedados no apartamento da minha mãe e o Fábio fi cou<br />
em vários lugares. MC Kult convidou o Marcão para participar<br />
n<strong>um</strong>a das faixas. “Uma peça” foi feita a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong> sample <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong>a música do cantor Isaac Hayes. Ela contava a história <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
telefonema do Kult para o Panther, no qual ele falava sobre <strong>um</strong>a<br />
<strong>de</strong>silusão amorosa e Panther o consolava. Só que no fi nal tudo<br />
não passava <strong>de</strong> <strong>um</strong>a peça, <strong>um</strong> trote, e o Panther, nervoso, <strong>de</strong>sligava<br />
o telefone na cara do Kult. A idéia da música e o sample que<br />
eu escolhi combinaram perfeitamente. “Uma peça” estourou em<br />
São Paulo e era <strong>um</strong>a das mais pedidas no Projeto Rap Brasil.<br />
Certo dia, o Genivaldo, dono da Discovery, me procurou em casa.<br />
— Raffa, o que você acha das músicas do Câmbio Negro?<br />
– perguntou.<br />
— Genivaldo, você quer a minha sincera opinião?<br />
— Claro – disse ele.<br />
— Eu acho o trabalho do Câmbio Negro do caralho! Um dos<br />
melhores do rap nacional no Brasil. Eles vão estourar.<br />
266
Câmbio Negro<br />
— Você acha que eu <strong>de</strong>vo gravá-los? – indagou.<br />
— Com certeza, Genivaldo. Você tá esperando o quê?<br />
267<br />
— Eu queria saber a sua opinião primeiro. Porque eu sei que<br />
ninguém em São Paulo quis lançar o disco <strong>de</strong>les – explicou.<br />
— E, <strong>de</strong>pois que virem o disco na rua, vão se arrepen<strong>de</strong>r muito,<br />
Genivaldo.<br />
— Mas você acha que as músicas com palavrão vão tocar nas<br />
rádios, Raffa? – insistiu ele.<br />
— E, por acaso, rap nacional toca em alg<strong>um</strong>a rádio, Genivaldo?<br />
Só em programas especializados. E esses programas passam<br />
em horários comprados e tocam o que quiserem. Além do mais,<br />
ninguém reclamou quando “Bichos escrotos”, dos Titãs, tocou<br />
em todas as rádios do Brasil.<br />
— É, você tem razão.<br />
— Genivaldo, você não vai se arrepen<strong>de</strong>r. Vamos fazer <strong>um</strong> puta<br />
disco! – exclamei.<br />
Ele saiu <strong>de</strong>ssa conversa confi ante e contratou o grupo.<br />
Antes <strong>de</strong> retomar ao trabalho <strong>de</strong> produção com o Câmbio Negro,<br />
eu chamei o Gog, o X e o Jamaika para o apartamento da minha<br />
mãe. Queria acabar <strong>de</strong> vez com aquela treta inútil <strong>de</strong>les e promover<br />
a paz. Tivemos <strong>um</strong>a conversa séria e colocamos <strong>um</strong> ponto<br />
fi nal em tudo. Graças a Deus, as diferenças foram superadas.<br />
Afi nal, o objetivo <strong>de</strong> todos era o mesmo: colocar o rap do DF<br />
como <strong>um</strong> dos melhores e mais conhecidos no Brasil.<br />
Fizemos novas músicas e já tínhamos alg<strong>um</strong>as prontas. “Careca<br />
sim, e daí?” Foi criada para ser apenas <strong>um</strong>a intro <strong>de</strong> “Que irmão<br />
é você?”. Essas duas músicas se emendavam no disco. Só que o<br />
estilo da base da primeira fez com que ela estourasse sozinha<br />
nos bailes do DF. Sua letra mostrava <strong>de</strong> forma contun<strong>de</strong>nte, o<br />
pensamento dos jovens da periferia, no caso a Ceilândia, que<br />
gritava para o Brasil ouvir que ela existia.
268 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Sou negrão careca da Ceilândia mermo e daí?<br />
Tu vive falando merda e ainda pisa aqui!<br />
Sai voado, besouro sem asa,<br />
não é qualquer prego que pisa na minha casa.<br />
Nesse disco, duas músicas em especial fi zeram a diferença. A primeira<br />
foi “X sem Ana”, que tinha <strong>um</strong> sample <strong>de</strong> “Volta pra mim”, da<br />
banda brasiliense <strong>de</strong> rock Beta Pictoris. Samplear rock nacional<br />
era <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> no rap brasileiro. E a segunda, é claro,<br />
foi “Sub-raça”:<br />
Agora, irmãos, vou falar a verda<strong>de</strong>,<br />
a cruelda<strong>de</strong> que fazem com a gente,<br />
só por nossa cor ser diferente.<br />
Somos constantemente assediados pelo racismo cruel,<br />
bem pior que fel é o amargo <strong>de</strong> engolir <strong>um</strong> sapo,<br />
só por ser preto, isso é fato.<br />
O valor da própria cor não se apren<strong>de</strong> em faculda<strong>de</strong>s ou colégios<br />
e ser negro nunca foi <strong>um</strong> <strong>de</strong>feito, será sempre <strong>um</strong> privilégio.<br />
Privilégio <strong>de</strong> pertencer a <strong>um</strong>a raça,<br />
que, com o próprio sangue, construiu o Brasil.<br />
Sub-raça, sub-raça é a puta que pariu!<br />
O X tinha visto <strong>um</strong>a reportagem que mostrava <strong>um</strong>a mulher na praia<br />
dizendo que negro e pobre era tudo sub-raça. Essa música atingiu<br />
<strong>um</strong> outro público, além do rap. Nós sampleamos a entrevista<br />
e alguns barulhos da televisão, que foram usadas na vinheta <strong>de</strong><br />
abertura da música. Gravamos e mixamos tudo no Zen Estúdio.<br />
O conteúdo das letras, as rimas e a qualida<strong>de</strong> sonora tornaram<br />
esse disco <strong>um</strong> clássico do rap nacional. O grupo estourou no Brasil<br />
inteiro, principalmente por causa da postura i<strong>de</strong>ológica forte que<br />
X e Jamaika mostravam nas entrevistas, no dia-a-dia e no palco, é<br />
claro! Além disso, ele foi o primeiro <strong>de</strong> <strong>um</strong>a revolução: o surgimento<br />
do mercado in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do hip-hop no DF. A união <strong>de</strong> vários fatores<br />
transformou a Discovery n<strong>um</strong>a das maiores e mais respeitadas<br />
gravadoras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>sse segmento no Brasil.<br />
Todos que estavam diretamente envolvidos com a abertura<br />
<strong>de</strong>sse mercado, não se importavam em ganhar dinheiro, apenas
Câmbio Negro<br />
269<br />
em construir algo que fi zesse a diferença em poucos anos. O<br />
meu cachê era simbólico e, em alguns títulos, eu nem cobrava<br />
pela produção musical dos discos. O Wan<strong>de</strong>rley Pozebom e o<br />
Welber <strong>de</strong> Souza, que fi zeram as fotos <strong>de</strong> diversas capas <strong>de</strong><br />
discos históricas para o rap do DF, como as do Cirurgia Moral<br />
(Cérebro Assassino), e do Câmbio Negro (Sub-Raça), também<br />
não recebiam cachê pelos trabalhos porque acreditavam no<br />
potencial do mercado do hip-hop no Cerrado. Até os dias atuais,<br />
o Welber continua na ativa, sendo o principal fotógrafo <strong>de</strong> inúmeros<br />
eventos e artistas <strong>de</strong>sse segmento no DF.<br />
O Andy, dono do Zen Estúdio, consi<strong>de</strong>rado <strong>um</strong> dos melhores do<br />
Brasil em equipamentos e acústica, cobrava ao Genivaldo pelo<br />
aluguel <strong>um</strong>a mixaria a hora. Isso nos permitia fazer entre 60<br />
e cem horas <strong>de</strong> estúdio por trabalho. Imagine a qualida<strong>de</strong> do<br />
resultado fi nal! Tudo foi <strong>um</strong> esforço conjunto para que os títulos<br />
da Discovery tivessem qualida<strong>de</strong>.<br />
O Câmbio Negro foi o primeiro grupo a tocar em formato <strong>de</strong><br />
banda. Po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rá-lo ainda a primeira banda <strong>de</strong> rap do<br />
Brasil. Quando eles começaram a ser convidados para tocar em<br />
festivais <strong>de</strong> rock e outros gêneros no DF, vimos que <strong>um</strong> trabalho<br />
bem feito e original ultrapassa as fronteiras <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>terminado<br />
estilo musical. Poucos são os grupos que têm condições disso.<br />
Na época, tornou-se mais difícil fazer com que os conservadores<br />
enten<strong>de</strong>ssem que o Câmbio Negro não estava traindo a<br />
cultura e sim divulgando-a em outros meios. Jamaika percebeu<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir esse formato <strong>de</strong> banda, mas, no início,<br />
teve <strong>de</strong> enfrentar até a resistência do X. Foi Jamaika quem<br />
apresentou os músicos que viriam a formar a banda – Ritchie<br />
na bateria, Zeca no baixo e Bell na guitarra –, quando o X viu as<br />
possibilida<strong>de</strong>s novas que ela trazia para os shows, permitindo<br />
que pu<strong>de</strong>ssem se apresentar em eventos <strong>de</strong>stinados a públicos<br />
diferentes – não só do rap – enten<strong>de</strong>u a importância da banda<br />
no contexto do trabalho do grupo.
270 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Após o lançamento do disco, eles foram para São Paulo tocar<br />
n<strong>um</strong> gran<strong>de</strong> festival <strong>de</strong> hip-hop, que aconteceu na se<strong>de</strong> do<br />
Palmeiras. Lá, o X mostrou que tinha mesmo nascido para brilhar.<br />
Ao subirem no palco, pediu ao Nino, que os havia acompanhado<br />
até lá, para dar <strong>um</strong>a força na mesa <strong>de</strong> som. Então,<br />
pegou o microfone e falou:<br />
— Aí, velho, eu não vim lá do Cerrado pra queimar meu fi lme não.<br />
Vou passar o som antes do show! Nino, vamos passar o b<strong>um</strong>bo<br />
agora!<br />
Essa atitu<strong>de</strong> do X fez o público <strong>de</strong>lirar. Todo mundo esperou<br />
pacientemente a passagem <strong>de</strong> som <strong>de</strong> todos os instr<strong>um</strong>entos.<br />
Depois <strong>de</strong> tudo acertado, eles fi zeram <strong>um</strong> show que entrou
Câmbio Negro<br />
271<br />
para a história. O Câmbio Negro representava como ninguém<br />
o rap do DF. Eles tocaram na Esplanada dos Ministérios e em<br />
vários festivais importantes no Brasil inteiro.<br />
O Gog achou a idéia do Câmbio Negro interessante e também<br />
passou a se apresentar com banda em alguns lugares. Mais<br />
<strong>um</strong>a vez, o hip-hop do Cerrado era pioneiro.<br />
Começava a época <strong>de</strong> ouro do rap nacional do DF. Genivaldo<br />
insistiu para que eu fi casse em Brasília, mas eu sabia que ainda<br />
tinha <strong>um</strong>a história para fazer em São Paulo.
272<br />
CAPÍTULO 33: na
Marcão e eu resolvemos voltar para São Paulo. No entanto,<br />
<strong>de</strong>cidimos que não iríamos mais morar nas condições dos tempos<br />
da senzala. Eu consegui alugar <strong>um</strong>a boa casa na Vila Nova<br />
Cachoeirinha, na Zona Norte da cida<strong>de</strong>. Era perfeita: dois quartos,<br />
sala, cozinha, <strong>um</strong> pequeno jardim na frente e <strong>um</strong> quarto<br />
gran<strong>de</strong> nos fundos do quintal. Marcão e a mulher <strong>de</strong>le, Kátia, se<br />
instalaram n<strong>um</strong> dos quartos.<br />
Tivemos <strong>um</strong>a reunião com o Donizete, em sua casa – inclusive,<br />
reencontramos o Ovelha, que estava morando lá –, e resolvemos<br />
todos os nossos problemas. Nossa amiza<strong>de</strong> tinha sido abalada<br />
por causa <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as posturas lamentáveis que ele adotou em<br />
relação a nós, ao Neguinho e ao Alemão, do DF Movimento. Ele<br />
já não fazia mais shows com o Baseado.<br />
Donizete queria que a gente produzisse o novo disco imediatamente.<br />
Depois da reunião, eu e Marcão fi camos pensando em<br />
como seria esse trabalho. O Donizete alugou o estúdio Califórnia,<br />
que fi cava na Zona Sul da cida<strong>de</strong>, para a gravação. O Fábio<br />
Macari <strong>de</strong>ixou <strong>um</strong> monte <strong>de</strong> vinil com a gente, que serviram<br />
como fonte <strong>de</strong> inspiração para o nosso disco, <strong>de</strong>nominado Bagulho<br />
na seqüência. Eu e Marcão trabalhávamos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a maneira<br />
diferente: fazíamos primeiro as bases e <strong>de</strong>pois as letras. Dessa<br />
forma, o Marcão podia escrever <strong>um</strong>a letra que combinasse perfeitamente<br />
com a batida. Às vezes, Marcão escrevia também<br />
274
Bagulho na Seqüência<br />
275<br />
em cima <strong>de</strong> músicas antigas, que <strong>de</strong>pois serviriam como base.<br />
Nesse trabalho em especial, <strong>de</strong>safi amos muito <strong>um</strong> ao outro.<br />
— Marcão, duvido que você escreva <strong>um</strong>a letra relatando aquele<br />
episódio que aconteceu no ano passado, quando a gente foi cercado<br />
na senzala – provoquei.<br />
— Gordo, só vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da sua base – <strong>de</strong>volveu ele.<br />
Marcão foi muito exigente nesse disco. Nós usamos e abusamos<br />
da sonoplastia nas músicas, colocando muitos efeitos sonoros<br />
<strong>de</strong> rua, tiros, sirenes etc., além <strong>de</strong> vinhetas e interlúdios. Esse<br />
formato foi seguido <strong>de</strong>pois por muitos grupos. Alg<strong>um</strong>as músicas<br />
a gente compôs em Brasília, antes <strong>de</strong> voltar para Sampa.<br />
No primeiro disco, em “Dane-se o sistema”, Marcão criou <strong>um</strong><br />
personagem que se chamava Alemão e roubava toca-fi tas <strong>de</strong><br />
carro. Esse personagem voltou no novo disco em “Vacilão”. E,<br />
<strong>de</strong>ssa vez, quem interpretava esse Alemão era o Alemão, do DF<br />
Movimento. Fizemos <strong>um</strong> interlúdio que antecedia a música, no<br />
qual <strong>um</strong>a discussão sobre o preconceito que as pessoas tinham<br />
com quem escutava rap acabava em tiro. Mas a loucura não<br />
parava por aí. Gravamos isso várias vezes n<strong>um</strong>a rua mesmo,<br />
encenando até atingir o clima certo. Eu usava <strong>um</strong> walkman para<br />
gravar, fazendo parecer ainda mais real.<br />
Outra música que fi zemos para o disco foi “Jogo das ruas”, composta<br />
a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong> compacto do Mandril. 1 O interessante era que,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa música, entrava a vinheta que havíamos gravado na<br />
rua e começava a base <strong>de</strong> “Vacilão”. Logo <strong>de</strong>pois, escutava-se o<br />
Marcão falando que não gostava da base, pedindo para eu colocar<br />
a base da música anterior. Então, entrava a base <strong>de</strong> “Jogo das<br />
Ruas” com <strong>um</strong>a outra batida, sampleada <strong>de</strong> fi lmes dos anos 70.<br />
Tudo isso era emendado. O disco todo era <strong>um</strong>a faixa emendada<br />
em outra. Eu o editei todo na fi ta rolo. Nessa época a gente já gravava<br />
digitalmente em DAT, mas eu fi z questão <strong>de</strong> mixar para fi ta<br />
magnética, porque sabia que o som analógico faria a diferença.<br />
1 Grupo norte-americano que misturava soul com ritmos caribenhos dos anos 70.
276 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
O disco revolucionou o mercado do rap nacional. Os formadores<br />
<strong>de</strong> opinião não paravam <strong>de</strong> elogiar o nosso trabalho. Depois <strong>de</strong>sse<br />
vinil, a procura pela minha produção musical não parou mais. Ele<br />
foi o divisor <strong>de</strong> águas, fundamental para a minha carreira. Todos o<br />
comparavam com o que acontecia <strong>de</strong> melhor no rap mundial.<br />
A música “Bagulho na seqüência” estourou nas rádios paulistanas.<br />
Ela era inspirada no jeito <strong>de</strong> cantar do grupo <strong>de</strong> rap americano Das<br />
EFX. Marcão conseguiu captar o estilo da rima <strong>de</strong>les, adicionando<br />
<strong>um</strong>a levada própria que resultou em inovação. Ele realmente tinha<br />
talento para, a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong> outro trabalho, se inspirar e criar <strong>um</strong><br />
modo totalmente original e brasileiro <strong>de</strong> rimar:<br />
Mano, que tal?/ É <strong>um</strong>a jogada <strong>um</strong> tanto fatal,/ você me enten<strong>de</strong> e<br />
compreen<strong>de</strong>,/ suspen<strong>de</strong> a remessa,/ confessa a trapaça,/ você é<br />
comparsa./ Entre na barca,/ se ligue e não ligue,/ enrola, enrola,<br />
<strong>de</strong>senrola,/ puxa, puxa, não puxa./ Não faça a cabeça, moleque<br />
pirado,/ a fi m <strong>de</strong> pirar no baseado, do lado./ Se liga, se liga,<br />
safado,/ cabeça maluca, pirada, ligada com abel,/ carreirinha, no<br />
papel./ Guetos, único jeito <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r os suspeitos./ Você vê,<br />
você lê, jornais,/ tiros liquidam e matam marginais e você... Quer<br />
f<strong>um</strong>ar? Quer injetar? Quer cheirar? Vamos lá!/ Aviãozinho distribui,<br />
você contribui./ Pagamento na mão, enrola o dinheiro,/ cheiro certeiro,<br />
farinha na mesa, doi<strong>de</strong>ira surpresa./ Você... <strong>um</strong>a presa, <strong>um</strong>a<br />
presa dos caras,/ escravo, senzala, senzala das drogas./ Isso não<br />
é moda,/ você se incomoda, se incomoda./ Não entra na roda, na<br />
roda, na roda com cola,/ pula fora, se liga, se liga, pilantra./ Se livra<br />
<strong>de</strong> ir pro saco,/ é safo, é safo, é muita doi<strong>de</strong>ira, véi!<br />
As gírias que o Marcão usava em suas letras não vinham só <strong>de</strong><br />
Brasília e São Paulo mas também do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Demos <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> entrevista no Projeto Rap Brasil, porque<br />
essa música estourou e causou <strong>um</strong>a polêmica em torno <strong>de</strong> dois<br />
refrões, “Mano, que tal? É <strong>um</strong>a seqüência fatal!” e “Doi<strong>de</strong>ira<br />
pura!”. Os refrões eram cantados <strong>um</strong> em cima do outro e as<br />
pessoas não entendiam bem o que se estava cantando. A gente<br />
teve que explicar o que era. O Alexandre Me<strong>de</strong>iros, então locutor
Bagulho na Seqüência<br />
277<br />
da Metro e meu amigo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos do break, participou da<br />
entrevista e relatou alg<strong>um</strong>as situações da minha trajetória.<br />
Os shows não paravam. Fizemos alguns em Campinas com o Frutinha,<br />
que era sócio do Giba nos discos que a MA Records lançava.<br />
Acabei contratado para trabalhar como técnico no Estúdio<br />
Califórnia logo <strong>de</strong>pois das gravações do disco. Ganhava cinco<br />
reais por hora <strong>de</strong> gravação e tinha que trabalhar, pelo menos,<br />
oito horas por dia para valer a pena. No entanto, eu acabava<br />
trabalhando muito mais para ganhar hora extra.<br />
A minha rotina era pesada. Eu acordava às 6h da manhã, saía <strong>de</strong><br />
casa às 6h30min e levava uns 10 minutos até a parada <strong>de</strong> ônibus.<br />
O ônibus gastava uns 30 minutos para chegar à estação Santana,<br />
que era o ponto fi nal do metrô naquela época. Às 7h30min, eu<br />
pegava o metrô para a estação da Sé, on<strong>de</strong> mudava <strong>de</strong> linha e<br />
ia até o Parque Dom Pedro. Lá eu andava mais 10 minutos, porque<br />
ainda não existia a passarela até a parada do ônibus que ia<br />
para Vila Califórnia. Daí, levava mais <strong>um</strong>a hora <strong>de</strong> viagem antes<br />
<strong>de</strong> passar em frente ao estúdio. Eu chegava às 8h50min, que<br />
era o meu horário exato <strong>de</strong> entrada no trabalho. Ou seja, <strong>de</strong>morava<br />
quase duas horas e meia para atravessar São Paulo. E era<br />
a mesma coisa para voltar para casa, on<strong>de</strong> eu chegava mais ou<br />
menos às 11h30min da noite.<br />
Quando eu trabalhava até tar<strong>de</strong>, eu dormia no estúdio mesmo.<br />
Essa rotina aconteceu praticamente o ano <strong>de</strong> 1993 inteiro. Eu<br />
gravava <strong>de</strong> tudo: música sertaneja, evangélica, forró e muito<br />
samba. Gravar samba foi ótimo. Um dos técnicos que trabalhava<br />
comigo se chamava Jadir e era do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Até hoje ele é<br />
o técnico do Zeca Pagodinho. Jadir me ensinou tudo sobre como<br />
gravar, microfonar e mixar samba. Foi <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> escola para<br />
mim. Eu cost<strong>um</strong>o dizer que quem sabe gravar e mixar samba,<br />
sabe fazer qualquer outra coisa em estúdio. É <strong>um</strong> dos estilos<br />
mais difíceis <strong>de</strong> se trabalhar.
278 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
O estúdio já tinha a tecnologia que estava em ascensão: os<br />
gravadores digitais ADAT. Eles gravam em fi tas do tipo VHS em<br />
oito canais digitais. Eram três máquinas que viviam dando problemas<br />
porque, para economizar dinheiro, o estúdio comprava<br />
fi tas vagabundas. Elas causavam problemas nas cabeças dos<br />
gravadores e na sincronização das máquinas. Era difícil convencer<br />
o diretor a comprar só fi tas especializadas, que custavam<br />
bem mais do que as outras.<br />
Grupos famosos <strong>de</strong> samba, como o Katinguelê, passaram por lá.<br />
Foi aí que eu pu<strong>de</strong> constatar que, na verda<strong>de</strong>, duas ou três equipes<br />
<strong>de</strong> trabalho – com músicos profi ssionais contratados pelo produtor<br />
musical – faziam praticamente toda a parte instr<strong>um</strong>ental<br />
<strong>de</strong> vários grupos <strong>de</strong> forró e samba. O grupo só tinha o trabalho <strong>de</strong><br />
colocar a voz. Isso me assustou no início, pois eu não imaginava<br />
que fosse assim. Depois entendi que, em sua maioria, os grupos<br />
não eram formados por músicos profi ssionais e o produtor fazia<br />
isso para ter <strong>um</strong> acabamento <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> no trabalho.<br />
Foi nesse estúdio que eu gravei <strong>um</strong>a banda <strong>de</strong> rock que se chamava<br />
Utopia. Eles eram simplesmente os Mamonas Assassinas.<br />
Utopia era o nome da banda antes <strong>de</strong> virar Mamonas e estourar<br />
em todo o cenário nacional. O Dinho já era engraçado e piadista;<br />
aliás, todos eram. Fizemos <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>. Eles ainda não<br />
sabiam muito bem o que queriam. Rock sério ou cômico. Quando<br />
o trabalho estava quase pronto, eles me pediram conselhos<br />
sobre como proce<strong>de</strong>r com a gravadora com a qual estavam<br />
assinando contrato. Foi <strong>um</strong>a experiência legal. Infelizmente,<br />
<strong>de</strong>pois que esse disco in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte saiu, per<strong>de</strong>mos contato e<br />
<strong>de</strong>pois só os revi pela televisão, quando estrearam no programa<br />
do Jô Soares, que ainda era no SBT. O último show <strong>de</strong>les, antes<br />
do fatal aci<strong>de</strong>nte, foi em Brasília. E eu quase fui no hotel para<br />
reencontrá-los e c<strong>um</strong>primentá-los pelo sucesso. Mas acabou<br />
não acontecendo. A morte dos Mamonas foi <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> perda<br />
para a música no Brasil.
Bagulho na Seqüência<br />
279<br />
Era muito bom quando eu gravava rap no estúdio. Unia o trabalho<br />
ao prazer. O Sérgio, da loja Hot Line, especializada em<br />
ven<strong>de</strong>r discos importados, na Galeria 24 <strong>de</strong> Maio, resolveu<br />
investir em rap nacional. Ele contratou o grupo Rap Sensation,<br />
com produção do Mad Zoo, que tinha sido do Código 13. O Mad<br />
Zoo começava a <strong>de</strong>spontar como produtor musical no hip-hop.<br />
Ele fez alguns trabalhos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> expressão, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
alguns anos, resolveu partir para a música eletrônica. O Rap<br />
Sensation foi <strong>um</strong> dos primeiros grupos, junto com o Doctor MCs,<br />
produzido também pelo Mad Zoo, que iniciaram o movimento<br />
chamado <strong>de</strong> Nova Escola.<br />
Quando os grupos <strong>de</strong> rap iam ao estúdio, a gente trocava idéias<br />
e contatos, e eu aproveitava para mostrar as minhas produções.<br />
Com Mad Zoo era interessante também porque a gente trocava<br />
experiências sobre equipamentos e estilos <strong>de</strong> produção. E, óbvio,<br />
sobre como gravar e mixar rap.<br />
O Giba, da MA Records, <strong>de</strong>cidiu lançar <strong>um</strong>a coletânea com novos<br />
talentos do rap nacional. Ele escolheu o Mad Zoo para produzir<br />
e o Estúdio California para fazer toda a gravação e mixagem do<br />
disco. Foi nesse trabalho que eu conheci o Aplick e o W. Gee,<br />
ambos do Consciência H<strong>um</strong>ana. Eles estavam participando<br />
com duas músicas nessa coletânea. As nossas idéias e pensamentos<br />
tiveram <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ntifi cação imediata e iniciamos <strong>um</strong>a<br />
amiza<strong>de</strong> que dura até os dias atuais. Ali nascia <strong>um</strong> dos maiores<br />
grupos <strong>de</strong> rap do Brasil.
280<br />
CAPÍTULO 34:<br />
Bem-vindo ao
Nos dias úteis, eu trabalhava no estúdio; nos fi nais <strong>de</strong> semana,<br />
fazia as produções. Às vezes, marcava as produções durante a<br />
semana e revezava com o Jadir no estúdio, trabalhando à noite,<br />
indo madrugada a<strong>de</strong>ntro. Isso comecou a se tornar <strong>um</strong>a rotina.<br />
No segundo semestre, percebi que não estava feliz com o resultado<br />
fi nal das mixagens <strong>de</strong> alguns trabalhos que fazia no Califórnia.<br />
Conversei com o Donizete e comentei que o disco novo<br />
dos Racionais, Raio X do Brasil, tinha <strong>um</strong>a qualida<strong>de</strong> sonora<br />
superior à dos vinis que estavam sendo lançados no mercado e,<br />
principalmente, à dos que eu estava fi nalizando no estúdio. Eu<br />
queria saber o porquê. Provavelmente, a causa era a <strong>de</strong>fi ciência<br />
na monitoração e na acústica. Fato é que eu não estava mais<br />
satisfeito em trabalhar lá.<br />
Um dos últimos trabalhos que fi z no Califórnia foi a gravação e<br />
mixagem, junto com o Jadir, das escolas <strong>de</strong> samba <strong>de</strong> Santos.<br />
Foi <strong>um</strong>a semana direto no estúdio; sem ir para casa. Cansativo<br />
<strong>de</strong>mais. Depois <strong>de</strong>sse trabalho eu e o Jadir nos <strong>de</strong>sligamos do<br />
Estúdio Califórnia.<br />
— Raffa, estou voltando pro Rio, on<strong>de</strong> está a minha família.<br />
Além disso, o Zeca está fazendo muito show e eu estou acompanhando<br />
ele. Não dá mais pra fi car em São Paulo – disse ele.<br />
— Vai com Deus, Jadir. Eu também vou parar <strong>de</strong> trabalhar no<br />
Califórnia. Pra mim, já <strong>de</strong>u o que tinha que dar.<br />
282
Bem-vindo ao Estúdio Atelier<br />
283<br />
Pesquisei o estúdio on<strong>de</strong> o Racionais tinha feito o Raio X do<br />
Brasil e <strong>de</strong>scobri que fi cava na Bela Vista, em São Paulo. Resolvi<br />
ir ao Atelier Studio, como se chamava, pela manhã, para conversar<br />
com o dono. O Donizete não tinha interesse em fazer os<br />
discos da TNT lá, porque consi<strong>de</strong>rava o preço exageradamente<br />
alto. Sempre achei que isso seria contornado com <strong>um</strong>a boa<br />
negociação. Ainda mais porque a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> títulos da TNT<br />
provavelmente faria o preço da hora <strong>de</strong> estúdio cair.<br />
Quando cheguei ao Atelier, fui recepcionado pelo Newton, <strong>um</strong><br />
dos donos do estúdio, além <strong>de</strong> ser músico, arranjador e produtor<br />
musical. Começamos então a conversar.<br />
— Estou querendo saber o preço da hora <strong>de</strong> estúdio – disse eu.<br />
— Que estilo musical é? – perguntou.<br />
— Rap nacional, mas, na verda<strong>de</strong>, eu estou aqui por causa do<br />
disco dos Racionais. Ele foi feito aqui no Atelier?<br />
— Foi sim, inclusive quem fez os arranjos e a produção do disco<br />
fui eu.<br />
— Você é produtor musical? – perguntei.<br />
— Sim, mas rap é apenas <strong>um</strong> dos estilos que eu faço aqui –<br />
respon<strong>de</strong>u. Nesse momento, Van<strong>de</strong>r Carneiro, irmão e sócio do<br />
Newton no estúdio, entrou.<br />
— Esse é o meu irmão Van<strong>de</strong>r – apresentou ele.<br />
— Bom dia, tudo bem? – c<strong>um</strong>primentou-me Van<strong>de</strong>r.<br />
— Tudo bem – respondi – Van<strong>de</strong>r, meu nome é Raffa e estou<br />
aqui pra <strong>de</strong>scobrir porque os trabalhos aqui do estúdio têm <strong>um</strong>a<br />
qualida<strong>de</strong> tão superior à dos outros.<br />
— Deixa eu te mostrar o estúdio então – disse Van<strong>de</strong>r.<br />
— O Van<strong>de</strong>r te acompanha, Raffa. Eu tenho que trabalhar. Bemvindo<br />
ao Atelier! – <strong>de</strong>spediu-se Newton.
284 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Obrigado, Newton. O prazer é meu.<br />
— Pra quem que você trabalha? – perguntou Van<strong>de</strong>r.<br />
— Quero trazer os trabalhos da TNT pra cá.<br />
— O Donizete te mandou aqui?<br />
— Você conhece o Donizete?<br />
— Sim, é claro! Estou por <strong>de</strong>ntro do que acontece no rap, por<br />
causa da gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhos que fazemos aqui no<br />
estúdio – disse ele.<br />
— Na verda<strong>de</strong>, o Donizete nem sabe que estou aqui. Quero<br />
convencê-lo a vir fazer os discos no Atelier. Eu gosto muito do<br />
resultado sonoro dos discos feitos aqui e gostaria <strong>de</strong> fechar <strong>um</strong><br />
pacote pra vários trabalhos – expliquei. – Como eu sou técnico,<br />
você não precisaria pagar a outra pessoa, por hora, e assim o<br />
seu preço po<strong>de</strong>ria ser melhor. Que que você acha? – propus.<br />
— No momento, sou eu mesmo o técnico dos trabalhos no estúdio.<br />
Tenho que pensar no assunto – respon<strong>de</strong>u – Queria que o<br />
próprio Donizete viesse aqui pra gente negociar, po<strong>de</strong> ser?<br />
— É claro! Vou convencê-lo a vir.<br />
A partir <strong>de</strong>ssa conversa nasceu <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>. O Van<strong>de</strong>r<br />
se tornou para mim <strong>um</strong>a mistura <strong>de</strong> segundo pai, irmão e mestre,<br />
porque aprendi muitas coisas com ele. O conhecimento que<br />
eu adquiri durante anos <strong>de</strong> convivência valeu muito. A amiza<strong>de</strong><br />
sincera e honesta que temos não tem preço.<br />
No segundo semestre <strong>de</strong> 1993, comecei a trabalhar como técnico<br />
em alguns trabalhos no Atelier e a TNT passou a fazer os<br />
seus discos lá. O Doctors MCs, por exemplo, fez o seu vinil com<br />
a produção do Mad Zoo. O Atelier era <strong>um</strong>a vitrine, porque muitos<br />
DJs, grupos e rimadores freqüentavam o estúdio.<br />
O mais interessante eram as discussões profi ssionais que eu e o<br />
Van<strong>de</strong>r tínhamos sobre diferentes aspectos da produção musical.
Bem-vindo ao Estúdio Atelier<br />
285<br />
Principalmente em relação a equipamentos e técnicas <strong>de</strong> mixagem<br />
e gravação. A nossa amiza<strong>de</strong> se solidifi cou tanto nos últimos anos<br />
que mesmo quando eu já não trabalhava lá, e pedia para fazer<br />
alg<strong>um</strong> trabalho, ele não só cedia o estúdio como também sempre<br />
tinha <strong>um</strong>a salinha pronta para eu me instalar e fazer as produções.<br />
No fundo, o Van<strong>de</strong>r gosta quando vou <strong>de</strong> Brasília para São Paulo<br />
e fi co <strong>um</strong> tempo trabalhando no estúdio, porque várias pessoas<br />
vão até lá para me ver e trocar idéias, o que movimenta bastante o<br />
estúdio. Isso ainda acontece hoje em dia. Cost<strong>um</strong>o falar que o meu<br />
quartel-general em São Paulo sempre foi e sempre será o Atelier.
286<br />
CAPÍTULO 35:
O primeiro trabalho que fi z no Atelier para a TNT foi São Paulo<br />
está se armando, do Comando DMC. O Easy Jay já tinha <strong>um</strong> gran<strong>de</strong><br />
talento para escrever e rimar. Era o segundo disco do grupo, que<br />
foi campeão do concurso <strong>de</strong> rap promovido pela Kaskatas e<br />
<strong>de</strong>pois lançou <strong>um</strong> vinil muito bom com o DJ H<strong>um</strong>. Nesse trabalho<br />
<strong>de</strong> estréia, eles estouraram com a música “Dama da noite”. A responsabilida<strong>de</strong><br />
era gran<strong>de</strong>, porque eu tinha que superar, em todos<br />
os aspectos, o primeiro disco. Não era <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> afi rmação<br />
própria ou <strong>de</strong> mostrar que eu po<strong>de</strong>ria fazer <strong>um</strong> disco melhor do<br />
que o produzido pelo H<strong>um</strong>berto. Pelo contrário, exatamente por<br />
respeitar muito o trabalho anterior, eu queria mostrar a evolução<br />
do grupo, e não a minha evolução como produtor.<br />
Esse disco do Comando DMC se tornou <strong>um</strong> dos melhores trabalhos<br />
produzidos na minha carreira. Não só pela qualida<strong>de</strong><br />
sonora, mas também pela produção e escolha dos samples.<br />
Consi<strong>de</strong>ro-o <strong>um</strong> verda<strong>de</strong>iro clássico do rap nacional. Na verda<strong>de</strong>,<br />
é <strong>um</strong> dos poucos discos cuja maioria das músicas tocaram<br />
nos bailes e programas <strong>de</strong> rádio especializados.<br />
Em São Paulo e no DF, principais mercados na época, estouraram<br />
três músicas. “Na Zona Sul é assim”, “Acor<strong>de</strong>, cara” e<br />
“Pulem”, que foi <strong>um</strong>a das primeiras do rap nacional no estilo<br />
“bate cabeça”. Esse estilo estava ganhando força no Brasil através<br />
<strong>de</strong> alguns grupos norte-americanos, como o Onyx, o House<br />
of Pain e o Cypress Hill. O hip-hop absorvia o jeito <strong>de</strong> dançar<br />
288
Comando DMC<br />
289<br />
dos roqueiros: as pessoas no salão dançavam pulando <strong>um</strong>as<br />
nas outras. O maior representante brasileiro do “bate cabeça”<br />
foi o grupo RPW. Interessante é que a instr<strong>um</strong>ental <strong>de</strong> “Pulem”<br />
nada tinha a ver com esse estilo, mas a letra e a rima faziam as<br />
pessoas pularem e “baterem cabeça” nos shows:<br />
Olha, rapaziada do basquetebol,/ amanhã vou pular na frente do<br />
cara grandão,/ e vou mostrar a ele que eu também sou esperto,/<br />
vou arremessar trocando <strong>de</strong> mão,/ e se ele me acertar vai ser<br />
falta./ Então, mais <strong>um</strong>a vez, eu vou acertar cesta./ É eu não sou<br />
alto, mas sou pulador,/ e nem sempre, cara, eu respeito o pivô./<br />
Se ele vacilar, em cima <strong>de</strong>le eu subo,/ e na cara <strong>de</strong>le eu faço mais<br />
dois pontos./ Eles vão saber quem é Easy Jay!<br />
Essa era a última estrofe <strong>de</strong> “Pulem”. Talvez a primeira referência<br />
<strong>de</strong> que, no futuro, o basquete <strong>de</strong> rua e o hip-hop seriam<br />
gran<strong>de</strong>s aliados. Eu lembro como se fosse hoje, quando ouvi o<br />
Easy Jay rimando essa letra pela primeira vez.<br />
— Então, Gordo! O que você tá pensando pra essa música?<br />
– perguntou.<br />
Fiquei pensando e lembrei <strong>de</strong> <strong>um</strong> compacto que meu amigo DJ<br />
Nino me <strong>de</strong>u anos antes. Ele me pediu para usá-lo somente se<br />
valesse a pena. E essa hora tinha chegado. Quando coloquei a<br />
música no toca-discos e pedi para o Easy Jay rimar novamente<br />
em cima, o efeito foi imediato. Nascia ali <strong>um</strong> hit.<br />
— Easy, encontramos, velho! É isso aí, cara. Encaixa perfeitamente<br />
– vibrei.<br />
— Nossa, Gordo, tá <strong>de</strong>mais, véi! Vai ser embaçado, 1 hein? – disse.<br />
Gírias do DF infl uenciavam bastante alguns grupos <strong>de</strong> Sampa,<br />
e o Comando DMC era <strong>um</strong> <strong>de</strong>les. Essa infl uência foi positiva. O<br />
Easy Jay recheou as suas letras com gírias paulistas e do Cerrado.<br />
Aliadas a <strong>um</strong> excelente trabalho musical, essas letras que<br />
remetiam a todas as periferias do Brasil talvez tenham sido<br />
1 Neste caso signifi ca muito legal, mas também po<strong>de</strong> <strong>de</strong>notar algo ruim, perigoso.
290 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
o motivo principal <strong>de</strong> o Comando DMC estourar. Para mim, a<br />
gran<strong>de</strong> sacada foi eles terem feito música não regionalizada,<br />
tanto no conteúdo quanto na forma.<br />
No disco, todas as faixas são emendadas e recheadas <strong>de</strong> efeitos<br />
sonoros, somados a alg<strong>um</strong>as sacadas. Quem escutar direito<br />
vai observar, por exemplo, que o solo <strong>de</strong> teclado com timbre <strong>de</strong><br />
moog no fi nal <strong>de</strong> “Na Zona Sul é assim”, é o tema da melodia<br />
da faixa seguinte, “Acor<strong>de</strong>, cara”, que, por sua vez, emenda com<br />
“Pulem”, através <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vinheta. Com poucos recursos fi nanceiros,<br />
a criativida<strong>de</strong> fazia a diferença nas produções em que eu<br />
me envolvia. Ao sair, esse disco foi consi<strong>de</strong>rado <strong>um</strong>a revolução<br />
estética e virou referência para próximos trabalhos. A qualida<strong>de</strong><br />
do vinil era impressionante. Eu tomei o cuidado para que não<br />
fossem mais <strong>de</strong> três músicas <strong>de</strong> cada lado, conseguindo assim<br />
o tempo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> corte. O título do disco era <strong>um</strong> aviso para<br />
gangues racistas e preconceituosas, que espancavam homossexuais,<br />
negros e nor<strong>de</strong>stinos em São Paulo. Havia grupos que<br />
estavam se armando para combater essas atrocida<strong>de</strong>s, que<br />
aconteciam com freqüência, principalmente no ABC Paulista.
291
292<br />
CAPÍTULO 36:
No <strong>de</strong>correr do ano <strong>de</strong> 1993, produzi muitos grupos e coletâneas.<br />
Não só no Atelier, mas no Estúdio Califórnia também.<br />
Viajei para Brasília para resolver alguns assuntos. Precisava<br />
dar <strong>um</strong>a atualizada nos meus equipamentos e queria adquirir<br />
<strong>um</strong> DJ 70 Roland, teclado sampler que estava revolucionando<br />
o mercado. Fora a sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sampler ser bem melhor,<br />
esse teclado já sampleava na freqüência <strong>de</strong> 44.1 Khz. Ele tinha<br />
<strong>um</strong> pequeno toca-discos embutido, on<strong>de</strong> teoricamente você<br />
po<strong>de</strong>ria pegar qualquer sample e fazer scratch com ele. Só que,<br />
na verda<strong>de</strong>, essa tecnologia não funcionava direito e nunca consegui<br />
fazer <strong>um</strong> scratch <strong>de</strong>cente no aparelho. O Gog me ajudou<br />
a comprar o DJ 70 Roland, <strong>de</strong>ixando <strong>um</strong> cheque pré-datado na<br />
loja. Eu tinha <strong>um</strong>a grana para receber <strong>de</strong> produções que havia<br />
feito, incluindo alg<strong>um</strong>as no fi nal <strong>de</strong> 1992. Em especial, da coletânea<br />
Movimento Hip-hop, que produzi junto com o Fábio Macari<br />
para o Getúlio, da R&B; e do disco solo do grupo Derek System<br />
Rap, para a mesma gravadora.<br />
Ainda em Brasília, o Genivaldo, da Discovery, me pediu para<br />
produzir <strong>um</strong> grupo do interior paulista indicado pelo Jamaika:<br />
o Desacato Verbal.<br />
Voltei para São Paulo junto com a minha fi lha e a mãe <strong>de</strong>la, Zilmar.<br />
Era mais <strong>um</strong>a tentativa <strong>de</strong> reconciliação para construir <strong>um</strong><br />
ambiente familiar para a Rafaella. O Marcão teve que se mudar<br />
294
1993, <strong>um</strong> ano produtivo<br />
295<br />
para o quarto dos fundos. Nem ele nem a Kátia fi caram chateados<br />
por isso, já que acabaram ganhando mais privacida<strong>de</strong>.<br />
Os integrantes do Desacato Verbal se instalaram na minha casa<br />
por <strong>um</strong>as duas semanas, período em que fi zemos <strong>um</strong> trabalho<br />
mais do que experimental. A concepção era fazer as instr<strong>um</strong>entais<br />
com os samplers na cara 1 e baterias acústicas sampleadas, sem<br />
reforçar com a bateria eletrônica por cima. Os samples escolhidos<br />
eram, em sua maioria, com guitarras pesadas, <strong>de</strong>vido à temática<br />
das letras do grupo. O estilo <strong>de</strong> produção se assemelhava ao do<br />
Public Enemy. O objetivo era fazer <strong>um</strong> disco não comercial e bem<br />
barulhento, sem nos preocuparmos com as tendências do mercado,<br />
nem fazer <strong>um</strong>a batida comercial que tocasse em bailes. O<br />
grupo queria atingir quem começava a escutar rap e não era do<br />
movimento hip-hop.<br />
O rapper Mano Tutão se <strong>de</strong>stacava no Desacato Verbal pela<br />
agressivida<strong>de</strong> na sua foram <strong>de</strong> rimar. Ele tinha problemas com<br />
drogas e lançou dois CDs <strong>de</strong> rap após sua conversão para a<br />
religião evangélica. Mas, muitas vezes, eu ouvia falar <strong>de</strong> suas<br />
recaídas com as drogas. Sempre acreditei que ele po<strong>de</strong>ria se<br />
recuperar totalmente do vício. Porém, infelizmente, em 2006,<br />
ele foi assassinado <strong>de</strong>vido a divídas com o tráfi co.<br />
O ano estava sendo bastante produtivo. Mesmo assim, eu passava<br />
por difi culda<strong>de</strong>s fi nanceiras e não conseguia honrar os meus<br />
compromissos, principalmente o aluguel da casa. A preocupação<br />
em cobrir o cheque do Gog não me <strong>de</strong>ixava dormir. Pedi para ele ir<br />
até o apartamento da minha mãe para separar alguns dos meus<br />
discos importados e colocá-los à venda na Discovery por bons<br />
preços. A idéia era arrecadar <strong>um</strong>a grana para pagá-lo. Alguns vinis<br />
eu queria preservar, porque eram muito raros, mas não teve jeito.<br />
Infelizmente (ou não), não consegui ven<strong>de</strong>r muitos discos.<br />
Para piorar, o Getúlio simplesmente não honrou com a sua palavra<br />
e não me pagou pelos trabalhos. Com isso, não pu<strong>de</strong> resgatar o<br />
1 Não sobrepôr ao trecho sampleado, muitos instr<strong>um</strong>entos e arranjos. A intenção<br />
é <strong>de</strong>ixá-lo cru, sem distorção e bastante audível.
296 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
cheque do Gog. Se eu tivesse mais tempo, po<strong>de</strong>ria ter conseguido.<br />
Eu estava iniciando dois trabalhos: o novo disco do Duck Jam<br />
e Nação Hip Hop e <strong>um</strong>a coletânea do Fiu, União Break. Também<br />
tinha alg<strong>um</strong> dinheiro para receber do Atelier Studio. Mesmo sem<br />
intenção <strong>de</strong> me prejudicar, Gog veio para São Paulo a fi m <strong>de</strong> resolver<br />
o problema, porque estava precisando muito da grana. Como<br />
ele não confi ava em mim e muito menos naqueles que estavam<br />
me <strong>de</strong>vendo, a única maneira que encontrou para garantir que eu<br />
tomaria <strong>um</strong>a atitu<strong>de</strong> foi levar o teclado DJ 70 para Brasília. Mas<br />
essa idéia teve péssimos resultados porque, sem o teclado, como<br />
eu iria produzir? E só terminando <strong>de</strong> produzir é que eu receberia o<br />
dinheiro. Tentei explicar isso a ele <strong>de</strong> várias formas. Não adiantou.<br />
Pedi <strong>um</strong> adiantamento ao Donizete e ao Van<strong>de</strong>r. Juntei mais <strong>um</strong>a<br />
grana <strong>de</strong> <strong>um</strong> trabalho instr<strong>um</strong>ental <strong>de</strong> bases e batidas, que fi z em<br />
parceria com o DJ Dobow T, do Derek System Rap, para a Five Special<br />
– aliás, o primeiro registro <strong>de</strong> <strong>um</strong> disco nesse formato feito<br />
por DJs produtores – e me man<strong>de</strong>i para o DF. Chegando lá paguei<br />
imediatamente o que <strong>de</strong>via, resgatei o cheque na loja e troquei<br />
pelo teclado, graças a Deus.<br />
Eu estava tão <strong>de</strong>cepcionado com a história da dívida que nem<br />
quis conversar muito sobre o assunto com ninguém. Só queria<br />
voltar para Sampa e continuar a minha vida e meus trabalhos.<br />
Eu ainda não conseguia compreen<strong>de</strong>r a atitu<strong>de</strong> do Gog. Depois<br />
amadureci a idéia e entendi o lado <strong>de</strong>le. Passei por cima <strong>de</strong> tudo<br />
e resolvi não pensar mais sobre o ocorrido.<br />
No mesmo ano, o Gog chamou o Jamaika e o DJ TDZ para produzirem<br />
o seu novo disco com o DJ Leandronik. Como eram amigos,<br />
pelos quais eu tinha admiração e respeito, não achei ruim.<br />
Quando o disco já estava quase pronto, o Jamaika me pediu para<br />
ouvir as instr<strong>um</strong>entais e fazer <strong>um</strong>a análise. Era a primeira vez<br />
que ele se aventurava a produzir <strong>um</strong> disco sem eu estar junto<br />
e estava preocupado com o resultado fi nal. Quando ouvi, achei<br />
as bases muito loucas e <strong>de</strong> <strong>um</strong>a criativida<strong>de</strong> incrível. A minha<br />
única crítica era em relação aos samplers <strong>um</strong> em cima do outro,<br />
que, na minha opinião, estavam fora <strong>de</strong> sincronia.
1993, <strong>um</strong> ano produtivo<br />
297<br />
— Loirinho, isso é <strong>de</strong> propósito. É assim mesmo – disse ele.<br />
— Tem certeza, Jamaika? Eu acho que tá feio esses samplers<br />
batendo errado – opinei.<br />
Alguns não eram perceptíveis, outros estavam muito na cara.<br />
Parecia que o sequencer do Leandro não tinha fôlego para disparar<br />
tantos samplers <strong>um</strong> em cima do outro, no mesmo canal<br />
MIDI. Mas fi cou assim mesmo.<br />
Além <strong>de</strong> opinar sobre o disco, produzi a faixa “Entrei no ar”, junto<br />
com o Manomix. O Rei, que viria a montar o grupo Cirurgia Moral,<br />
participou na música “Chega”. E o Dino Black, que anos <strong>de</strong>pois<br />
faria parte do grupo, participou rimando em “Qual é o pó?”. 2<br />
O disco Vamos apagá-los com o nosso raciocínio foi mais <strong>um</strong>a novida<strong>de</strong><br />
no cenário do rap nacional. Tanto pela capa polêmica – em<br />
que o Gog aparece segurando <strong>um</strong>a arma –, como pelo conteúdo<br />
das letras. Lançado em 1994, ele tocou na programação normal <strong>de</strong><br />
alg<strong>um</strong>as rádios <strong>de</strong> São Paulo, fora dos programas <strong>de</strong> rap.<br />
Voltei a Sampa para terminar os trabalhos que estavam em<br />
andamento. Na coletânea União Break (toda gravada no Califórnia),<br />
tinha <strong>um</strong>a música do PMC, rapper que conheci em Juiz <strong>de</strong><br />
Fora na época dos Magrellos, e que se mudou para São Paulo<br />
para tentar a vida no rap. Ele estava meio perdido nessa produção.<br />
Não sabia se queria <strong>um</strong>a coisa mais no estilo break ou no<br />
estilo rap. No fi nal, fi cou mais break. Depois do trabalho pronto,<br />
ele não sentiu muita fi rmeza, mas já era tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais.<br />
O Fiu me pagou a produção com <strong>um</strong> Fusca ver<strong>de</strong>, mo<strong>de</strong>lo 1969,<br />
caindo aos pedaços. Foi o meu primeiro carro em São Paulo. Ele<br />
só me dava problemas. Dormi várias madrugadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le,<br />
voltando do estúdio para casa, ou porque ele quebrava na Avenida<br />
dos Estados, 3 ou porque faltava gasolina.<br />
2 Dino Black e TDZ formavam o grupo Morte Cerebral, que adotou <strong>um</strong>a linha <strong>de</strong><br />
trabalho bastante pesada, com letras sérias e conteúdo político-social.<br />
3 Uma das maiores avenidas <strong>de</strong> São Paulo que liga a cida<strong>de</strong> ao ABC Paulista.
298 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Um dia <strong>de</strong> manhã, eu estava em Santana, indo para o estúdio<br />
e, <strong>de</strong> repente, todo o assoalho do Fusca caiu e fi cou para trás.<br />
Olhei e vi aquela cena engraçada. Uma fi la enorme <strong>de</strong> carros<br />
buzinando, sem po<strong>de</strong>r passar, porque o assoalho ocupava a rua<br />
inteira. Minha reação na hora foi rir muito, porque lembrei do<br />
<strong>de</strong>senho animado Flinstones. Saí do Fusca e o empurrei para<br />
cima da calçada. Peguei o assoalho e liberei a pista. Fiquei<br />
pensando no que eu podia fazer com <strong>um</strong> carro todo lascado:<br />
liguei para o chefe do Califórnia, perguntei se ele não queria<br />
comprar o carro e o vendi por 50 dólares. Naqueles tempos tudo<br />
se negociava em dólar. A moeda americana estava sempre em<br />
alta. Ele foi buscá-lo lá em casa <strong>um</strong>a semana <strong>de</strong>pois, à noite.<br />
Depois <strong>de</strong>sse tra<strong>um</strong>a, não pensei em ter <strong>um</strong> carro <strong>de</strong> novo por<br />
muito tempo.<br />
Continuei a minha rotina <strong>de</strong> produções no Atelier Studio, com o<br />
Duck Jam e Nação Hip Hop, que era composto pelo DJ Pato – que<br />
permanece na ativa até hoje, produzindo grupos <strong>de</strong> São Paulo –,<br />
Nidas, Gordinho, Neno, Fabiano e Neguinho (dançarino). O álb<strong>um</strong><br />
se chamava Metamorfose e a música com a qual eu mais me<br />
i<strong>de</strong>ntifi cava era “Coisas do Brasil”. A letra retratava com inteligência<br />
e ironia os r<strong>um</strong>os que o Brasil tomava politicamente.<br />
Eu estava mais responsável pela gravação e mixagem propriamente<br />
dita, apenas dava suporte e produzia o que eles queriam.<br />
Todas as idéias <strong>de</strong> bases e samples vinham do próprio grupo.<br />
Perto do fi nal do ano, o Giba, da MA Records, e o Frutinha, da<br />
Discol Box, contrataram o Sistema Negro, <strong>de</strong> Campinas, e me<br />
pediram para produzir o disco do grupo. Tentei convencê-los a<br />
fazer no Atelier, mas o preço que eles conseguiram no Califórnia<br />
era bem melhor. A maioria das músicas <strong>de</strong>sse disco era do Doctor<br />
X, que mais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixaria o grupo para tentar carreira solo.<br />
O disco Ponto <strong>de</strong> Vista tinha duas músicas <strong>de</strong> que eu gostava<br />
muito, “Somos pesados” e “Mensagem para otários”. Infelizmente,<br />
a segunda passou com <strong>um</strong> erro que não percebemos na
1993, <strong>um</strong> ano produtivo<br />
299<br />
hora das gravações: eles cantavam <strong>um</strong>a contagem progressiva<br />
e não regressiva como estava na letra.<br />
Um fato engraçado <strong>de</strong>ssas gravações ocorreu quando fazíamos<br />
<strong>um</strong>a vinheta simulando discussão e porrada n<strong>um</strong> baile. O Kid<br />
Nice entrou tão fundo no espírito da coisa que <strong>de</strong>u murro na<br />
pare<strong>de</strong>, saiu sangrando e quase quebrou <strong>um</strong> <strong>de</strong>do da mão. Mas,<br />
pelo menos, a vinheta fi cou original.<br />
Após o disco, o Fábio Macari, que tinha enfrentado problemas<br />
<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> por uns meses, passou lá em casa e pegou os discos<br />
<strong>de</strong>le que estavam comigo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época em que produzimos<br />
juntos para a gravadora R&B. Tivemos <strong>um</strong>a pequena discussão,<br />
porque ele achava que eu não <strong>de</strong>veria ter usado seus discos <strong>de</strong><br />
pesquisa nas minhas produções.<br />
— Fábio, velho, eu trabalhei o ano inteiro só com os meus discos.<br />
O único trabalho que eu fi z em que usei alguns discos seus<br />
foi o do Sistema Negro – disse eu.<br />
— Você podia ter me pedido autorização, meu! – reclamou.<br />
— Fábio, me <strong>de</strong>sculpa, cara! Mas se eles estavam comigo, eu<br />
achei que não tinha problema nenh<strong>um</strong>. E eu não consegui mais<br />
encontrar você.<br />
— Aí, mano, eu estive cheio <strong>de</strong> problemas e doente. Mas não<br />
esquenta, mano. Eu só vim pegar os meus discos.<br />
— Eu nunca pedi pra fi car com eles, Fábio. Você que <strong>de</strong>ixou eles<br />
comigo.<br />
— Eu sei, Raffa. Tenta me enten<strong>de</strong>r. Eles são os meus instr<strong>um</strong>entos<br />
<strong>de</strong> trabalho.<br />
— Fábio, nunca tive a intenção <strong>de</strong> me dar bem nas suas costas,<br />
velho. E te garanto que isso não aconteceu. Se não acredita em<br />
mim, não posso fazer nada. Tá tudo aí bem guardado, beleza?<br />
— Eu tô vendo, Raffa! Morreu! – exclamou.
300 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Vai com Deus, cara. Melhoras!<br />
O Fábio saiu ainda chateado e sem acreditar que eu não me<br />
benefi ciei dos discos <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong>le. Eu realmente não precisava<br />
disso, porque tinha os meus vinis. Nem imaginávamos que,<br />
pouco tempo <strong>de</strong>pois, faríamos <strong>um</strong> novo trabalho juntos.
302 CAPÍTULO 37:
Mesmo fazendo shows a vida do Marcão não estava fácil. Eu tinha<br />
<strong>um</strong> trabalho fora do grupo e isso me dava mais condições fi nanceiras.<br />
Para não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r só dos shows <strong>de</strong> rap, o Marcão resolveu<br />
voltar a ter <strong>um</strong> emprego. Em São Paulo, havia muitas ofertas <strong>de</strong><br />
vagas para vigilante. Ele começou a correr atrás e conseguiu <strong>um</strong>a<br />
vaga. No entanto, ele precisaria se mudar <strong>de</strong> Vila Nova Cachoeirinha<br />
para a Vila Jussara na Zona Sul <strong>de</strong> São Paulo. O problema<br />
era que ele não encontrava alguém disposto a ser fi ador <strong>de</strong>le. Foi<br />
então que lembrou do pai do Getúlio, da R&B, que era fi ador profi<br />
ssional e fora o meu fi ador:<br />
— O que você acha, Gordo? – perguntou.<br />
— Porra, Marcão, você sabe que eu não falo mais com o Getúlio.<br />
E que ele nunca me pagou pelas produções que fi z pra ele –<br />
respondi – Já se esqueceu o que aconteceu comigo por causa<br />
disso? – disse, referindo-me à história do cheque do Gog.<br />
— Mas você já recuperou o teclado, Gordo.<br />
— A que preço, né, Marcão?<br />
— Porra, Gordo, eu vou per<strong>de</strong>r o emprego, se não me mudar logo.<br />
E eu vi <strong>um</strong> barraco legal pra alugar lá na Vila Jussara.<br />
— Marcão, sinto muito, velho. Não vou te ajudar, velho. Não vou<br />
falar com o Getúlio e pedir pra ele falar com o pai <strong>de</strong>le – disse eu.<br />
304
A volta pro DF<br />
305<br />
— Beleza, Gordo. Valeu então! – respon<strong>de</strong>u Marcão, que saiu da<br />
discussão sem enten<strong>de</strong>r o meu ponto-<strong>de</strong>-vista.<br />
Passaram-se alguns dias e, na volta para casa do trabalho, vi<br />
o Getúlio na frente do portão, conversando com o Marcão e a<br />
Kátia. Fiquei puto com a cena! Eu achava que o Marcão tinha<br />
que recorrer a outros meios e não pedir algo para alguém que<br />
me enganou. É claro que o Getúlio tinha interesse no Marcão.<br />
Talvez para gravá-lo futuramente, não sei! Passaram <strong>um</strong> monte<br />
<strong>de</strong> idéias na minha cabeça... Inclusive traição. Entrei direto em<br />
casa e não quis falar com ninguém. Em nome <strong>de</strong> <strong>um</strong>a amiza<strong>de</strong><br />
que acreditava estar acima <strong>de</strong> tudo, eu tinha que tentar enten<strong>de</strong>r<br />
os motivos do Marcão para fazer aquilo. Com certeza, tinha<br />
a infl uência da Kátia, que era muito ambiciosa e fazia a cabeça<br />
<strong>de</strong>le. O clima fi cou pesado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse episódio e quase não<br />
nos falamos mais.<br />
No dia em que eles se mudaram, eu fi quei assistindo a tudo<br />
pela janela. Eles simplesmente foram embora, sabendo que eu<br />
estava em casa, sem ao menos se <strong>de</strong>spedir. Aquilo me magoou<br />
tanto que chorei. Marcão era muito mais do que <strong>um</strong> amigo.<br />
Éramos como irmãos. Ainda mais por tudo por que tínhamos<br />
passado juntos. Acabava ali <strong>um</strong>a fase em minha vida. Para mim,<br />
o Baseado nas Ruas não existia mais. Pensei que nunca mais<br />
falaria com o Marcão <strong>de</strong> novo. E naquele momento o ódio tomou<br />
conta <strong>de</strong> mim e me fez ter raiva do mundo e <strong>de</strong> todos! Anos<br />
<strong>de</strong>pois, Marcão ainda fez <strong>um</strong> disco solo com o nome do Baseado<br />
nas Ruas, produzido pelo DJ H<strong>um</strong> na TNT, que o Donizete nunca<br />
lançou no mercado.<br />
A vida continuava e eu tinha que pensar <strong>um</strong> pouco em mim. Meu<br />
principal objetivo havia mudado, afi nal, eu não tinha mais que me<br />
<strong>de</strong>dicar a <strong>um</strong> grupo do qual não fazia mais parte. Queria crescer<br />
na minha profi ssão. Ser <strong>um</strong> produtor musical mais completo e<br />
abraçar outros estilos também.<br />
O DJ Jonny, que foi DJ do Mt Bronks – rapper que participou da<br />
coletânea Consciência Black 2 e <strong>de</strong>pois lançou <strong>um</strong> disco solo
306 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
também pela Zimbabwe –, e o rapper Magn<strong>um</strong>, do Visão Urbana<br />
– <strong>um</strong> dos grupos da coletânea Rappers e irmãos – começaram<br />
a freqüentar a minha casa, para fazermos alg<strong>um</strong>as produções<br />
juntos. Eles gostavam <strong>de</strong> <strong>um</strong> estilo <strong>de</strong> rap que tinha <strong>um</strong>a batida<br />
mais rápida e era bastante radical, com forte infl uência do<br />
Public Enemy. Esse estilo não tinha espaço nos bailes, mas nem<br />
o Jonny nem o Magn<strong>um</strong> ligavam para isso.<br />
Nos domingos em que eles iam, fazíamos a festa comendo o dia<br />
inteiro pão doce e bebendo Tubaína. 1 Além <strong>de</strong> ser barato, enchia<br />
o estômago.<br />
Alg<strong>um</strong>as das músicas que a gente produziu, mas que infelizmente<br />
não tiveram registro fonográfi co, tinham <strong>um</strong>a forte inspiração<br />
na MPB. O rap nacional já sonhava em fazer parcerias<br />
com os gran<strong>de</strong>s cantores da música popular, como acontece<br />
hoje em dia em trabalhos <strong>de</strong> gente como Rappin’ Hood e Caetano<br />
Veloso. Ainda era <strong>um</strong> sonho distante e a gente se limitava<br />
em samplear mesmo.<br />
A coletânea <strong>de</strong> que Magn<strong>um</strong> participou incluía o registro da<br />
primeira música <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos maiores grupos <strong>de</strong> rap no Brasil.<br />
O RZO (sigla <strong>de</strong> “Rapazes da Zona Oeste”). E da rapper feminina<br />
Sharylane.<br />
Perto do fi nal do ano, o DJ Nino resolveu me procurar em São<br />
Paulo.<br />
— Fala Raffa! Como tá você, velho? – perguntou.<br />
— Que surpresa! Vamos entrando – respondi.<br />
— Esse é o Ariel e o tio <strong>de</strong>le Marquinhos – disse Nino.<br />
— Beleza, véi! O Ariel eu conheci moleque nos bailes da Dizzi.<br />
— Então, Raffa, a gente tá com <strong>um</strong>a proposta pra fazer pra você<br />
– disse Marquinhos, indo direto ao assunto.<br />
1 Refrigerante baratíssimo <strong>de</strong> fabricação nacional.
A volta pro DF<br />
— Po<strong>de</strong> falar.<br />
307<br />
— Eu e o Ariel queremos te convidar pra montar <strong>um</strong>a loja <strong>de</strong><br />
discos e CDs importados lá no Conic, em Brasília.<br />
— Como é que é? – perguntei, surpreso.<br />
— Raffa, o Genivaldo tá ganhando muito dinheiro e não tem<br />
nenh<strong>um</strong>a concorrência. Se a gente abrir não só <strong>um</strong>a empresa <strong>de</strong><br />
venda <strong>de</strong> discos mas também <strong>de</strong> produção dos grupos, a gente<br />
vai longe – explicou o plano Ariel.<br />
— Mas o mercado não tá em Brasília, e sim aqui em São Paulo –<br />
retruquei. O Ariel fez cara <strong>de</strong> quem já esperava ouvir isso.<br />
— Você já fez <strong>um</strong> nome aqui. E não é só isso, Raffa. Precisamos<br />
do seu nome e do seu know-how .<br />
— Agora eu entendi. E o Nino, entra on<strong>de</strong> nessa história? –<br />
perguntei.<br />
— O Nino vai tomar conta da loja e fazer parte da equipe <strong>de</strong> produção<br />
que estamos pensando em montar – respon<strong>de</strong>u Ariel.<br />
— Equipe <strong>de</strong> produção?<br />
— Eu, Nino e você vamos fazer juntos as produções. Eu toco as<br />
guitarras e o Nino entra com pesquisa e acervo, além <strong>de</strong> idéias<br />
<strong>de</strong> samples – explicou ele.<br />
— Vocês tão querendo fazer igual ao Dr. Dre. Ele trabalha com<br />
equipe <strong>de</strong> produção e músicos no estúdio. É isso?<br />
— É exatamente isso, Raffa! – concordou Ariel – O Marquinhos<br />
vai entrar com a maior parte da grana pra montar a loja ven<strong>de</strong>ndo<br />
o carro <strong>de</strong>le e você, através da sua mãe que viaja muito<br />
pro exterior, vai conseguir os vinis <strong>de</strong> fora.<br />
— Isso nem sempre acontece – disse, referindo-me às viagens<br />
<strong>de</strong> minha mãe – Vocês têm que ir na galeria e conseguir os contatos,<br />
através dos caras que têm loja <strong>de</strong> vinil importado, pra irmos<br />
direto nas fontes, sem atravessador – expliquei.
308 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— É aí que você entra, Raffa. Todos te conhecem em São Paulo<br />
e respeitam o teu trabalho.<br />
— Ariel, não é bem assim, cara. Não sonha.<br />
— Eu sei que o DJ Corelo lá no Rio tem esquema <strong>de</strong> trazer discos<br />
importados – disse ele.<br />
— Eu preciso pensar em tudo isso com calma, porque já tenho<br />
vários trabalhos pra fazer aqui em Sampa pra TNT no ano que<br />
vem. E isso tudo implicaria voltar para Brasília.<br />
— Raffa, você já pensou na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar <strong>um</strong> mercado<br />
do rap no DF? – perguntou Nino.<br />
— Não sei se vai dar certo, Nino. Mas é claro que eu penso nisso,<br />
velho – respondi – Eu continuo achando que vai ser muito difícil,<br />
porque o miami bass e o freestyle ainda imperam lá. Na verda<strong>de</strong>,<br />
ninguém daquela cida<strong>de</strong> sabe ao certo o que realmente<br />
acontece no mundo do hip-hop.<br />
— Então tá na hora <strong>de</strong> a gente mudar esse quadro, Raffa – disse<br />
Nino.<br />
— Vocês estão dispostos a lutar contra tudo e todos?<br />
– perguntei.<br />
— A luta será mais forte com você ao nosso lado, Raffa<br />
– respon<strong>de</strong>u Ariel.<br />
Depois <strong>de</strong>ssa conversa, eles foram para o centro <strong>de</strong> Sampa, na<br />
Rua Santa Ifi gênia, fazer pesquisa <strong>de</strong> preços. Fiquei pensando<br />
sobre a proposta o dia inteiro. Não sabia muito bem que <strong>de</strong>cisão<br />
tomar. Alguns pontos me ajudaram a resolver esse problema.<br />
O primeiro ponto era: como eu não fazia mais parte <strong>de</strong> <strong>um</strong> grupo,<br />
não era essencial viver em São Paulo, pois eu não mais faria<br />
shows. Para seguir <strong>um</strong>a carreira <strong>de</strong> produtor musical, eu achava<br />
que po<strong>de</strong>ria viajar periodicamente a São Paulo para fazer as<br />
produções. O segundo ponto era a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tentar implantar<br />
<strong>um</strong> mercado para o hip-hop <strong>de</strong>ntro do DF, que era maior do
A volta pro DF<br />
309<br />
que a <strong>de</strong> pensar só em mim. Se eu recusasse a proposta, seria<br />
egoísta e não estaria me preocupando com os diversos grupos e<br />
cantores que estavam nascendo e precisavam <strong>de</strong> <strong>um</strong> incentivo.<br />
Resolvi então que o certo era realmente ir para Brasília. O contrato<br />
do meu aluguel estava terminando. Conversei com o Donizete<br />
e expliquei que as produções estavam garantidas, que no<br />
ano seguinte eu voltaria a São Paulo para fazê-las. O Donizete<br />
disse que não teria problema, que eu fi caria na casa <strong>de</strong>le, que<br />
tinha bastante espaço.<br />
Antes da minha volta a Brasília, Marquinhos, Nino e Ariel me<br />
convidaram pra passar uns dias em Arraial do Cabo, no litoral<br />
do estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no fi nal do ano. Aceitei porque precisava<br />
mesmo <strong>de</strong> <strong>um</strong>as férias.<br />
A minha fi lha foi antes para Brasília e fi cou no apartamento da<br />
minha mãe, que não queria que eu fosse morar lá com a Zilmar.<br />
No entanto, eu a convenci <strong>de</strong> que seria por <strong>um</strong> curto período <strong>de</strong><br />
tempo, só até eu me instalar em outro lugar.<br />
Eu e Zilmar viajamos para o Rio <strong>de</strong> Janeiro para encontrar o Nino,<br />
o Ariel e o Marquinhos. Fomos todos juntos para Arraial do Cabo.<br />
Pensei que eu <strong>de</strong>scansaria nessa viagem, mas ela foi péssima por<br />
causa das infi ndáveis discussões que eu voltei a ter com a minha<br />
mulher. O nosso relacionamento não existia há muito tempo.<br />
Quando voltamos para casa, ela logo viajou para Brasília. Fiquei<br />
ainda em São Paulo para resolver os últimos problemas. Antes<br />
<strong>de</strong> entregar a casa para a imobiliária, já sem os móveis, eu fi quei<br />
duas semanas muito doente, com febre e incomunicável. Não<br />
tinha forças nem para levantar do colchão. Foi <strong>um</strong>a sensação<br />
horrível <strong>de</strong> abandono e solidão, pela qual eu nunca mais quero<br />
passar na minha vida.<br />
Talvez a minha volta a Brasília fosse <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sculpa para mais<br />
<strong>um</strong>a tentativa <strong>de</strong> fi ngir para a Rafaella que éramos <strong>um</strong>a família.
310<br />
CAPÍTULO 38:
Em Brasília, a correria para conseguir abrir a loja era muito<br />
gran<strong>de</strong>, principalmente por causa da burocracia na doc<strong>um</strong>entação.<br />
Decidimos que o nome da loja seria Planet Records. Todos<br />
os contatos com os fornecedores em São Paulo e no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro estavam fechados. O Nino e o Beto, amigo <strong>de</strong>le, estavam<br />
reformando a loja que alugamos no Conic. Voltamos <strong>de</strong> São<br />
Paulo e do Rio com as caixas <strong>de</strong> som que colocaríamos na loja e<br />
com <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> estoque <strong>de</strong> CDs e discos para DJs importados.<br />
Minha mãe retornou <strong>de</strong> <strong>um</strong>a viagem ao exterior com vários discos,<br />
inclusive o lançamento que todos esperávamos: o EP It’s on<br />
(Dr. Dre) 187<strong>um</strong> Killa, do Eazy-E com a música “Real Muthaphuckkin<br />
G’s” . Essa faixa era <strong>um</strong>a resposta para o Dr. Dre, que fi zera<br />
“Dre Day” que esparrava 1 o Eazy-E.<br />
Como no DF o grupo norte-americano NWA fazia muito sucesso<br />
e a infl uência do som <strong>de</strong> lá, especifi camente <strong>de</strong> Compton 2 era<br />
muito gran<strong>de</strong>, a expectativa era enorme com a abertura da loja.<br />
Os CDs mais procurados durante os anos em que trabalhei<br />
na loja foram justamente os do NWA. Comprávamos muitos<br />
fl ashbacks e clássicos do hip-hop. Pela primeira vez, todas as<br />
pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, com o movimento,<br />
tiveram acesso direto a CDs, discos <strong>de</strong> vinil, fi tas <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o VHS<br />
1 Falar mal, difamar.<br />
2 Bairro na periferia <strong>de</strong> Los Angeles.<br />
312
Planet Records<br />
313<br />
com vi<strong>de</strong>oclipes e acessórios para DJs. Sem contar as informações<br />
que trazíamos dos quatro cantos do mundo.<br />
Resolvemos também diversifi car os produtos da loja, oferecendo<br />
música <strong>de</strong> todos os estilos dançantes da época, <strong>de</strong> r&b a<br />
house, passando pelo miami bass. Tínhamos <strong>um</strong> esquema com<br />
o DJ Elívio Blower, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fase do break era <strong>um</strong>a referência<br />
em Brasília. As músicas que ele lançava, e estouravam na noite<br />
e no programa <strong>de</strong> rádio <strong>de</strong>le, a loja oferecia para quem quisesse<br />
ter. Elívio também fornecia discos para a Planet. Impressionante<br />
como em poucos meses mudamos totalmente a cena do hip-hop<br />
do Cerrado. As pessoas fi nalmente tiveram acesso ao que realmente<br />
acontecia e tocava no resto do mundo. Isso causou <strong>um</strong>a<br />
mudança <strong>de</strong> repórtorio no set list dos DJs da cida<strong>de</strong> e muitos<br />
programas <strong>de</strong> rádio resolveram mudar suas programações. O DJ<br />
Celsão, principal representante do hip-hop no DF e incentivador<br />
do rap nacional, resolveu dar espaço para <strong>um</strong> bloco inteiro no<br />
Mix Mania, que então ia ao ar na Rádio Mega FM, localizada na<br />
cida<strong>de</strong>-satélite Gama. Todo domingo, eu, Nino e Ariel fazíamos<br />
<strong>um</strong> bloco do programa com os lançamentos da Planet. Como eu<br />
viajava muito, em alguns domingos não podia participar. Nunca<br />
pensei que a nossa infl uência fosse provocar tudo isso. Era o<br />
começo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a revolução que logo seria seguida pela revolução<br />
do rap nacional do Cerrado.
314<br />
CAPÍTULO 39:
Neste capítulo, apresento duas das maiores expressões do rap<br />
nacional do Brasil juntas, porque cruzaram a minha vida no fi nal<br />
<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1994, quando o Governo Fe<strong>de</strong>ral editou o conjunto <strong>de</strong><br />
medidas econômicas que fi cariam conhecidas como Plano Real.<br />
Em primeiro <strong>de</strong> julho, houve a substituição da antiga moeda<br />
pelo real.<br />
Enquanto a loja tomava os seus r<strong>um</strong>os, o Giba, da MA Records,<br />
me ligou <strong>de</strong> São Paulo querendo que eu produzisse o Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana. Ele falou que o grupo preferia ir a Brasília. Eles acreditavam<br />
que a concentração para fazer o disco no DF seria maior do<br />
que em Sampa. Essa fi losofi a <strong>de</strong> trabalho permaneceu em todos<br />
os trabalhos que fi zemos juntos nos 10 anos seguintes.<br />
Era a chance <strong>de</strong> pôr em prática a equipe <strong>de</strong> produção que tínhamos<br />
planejado montar nas primeiras conversas em São Paulo,<br />
antes <strong>de</strong> inaugurar a Planet. Eu me i<strong>de</strong>ntifi quei muito com as<br />
idéias do Aplick e W. Gee, que agora contavam com a ajuda do<br />
DJ Adriano. Quando os três chegaram em Brasília, eu não tinha<br />
ainda nem local certo <strong>de</strong> trabalho nem lugar para eles dormirem.<br />
Nos primeiros dias, como eu e a Zilmar já estávamos em<br />
quartos separados, eles fi caram no meu quarto mesmo.<br />
O Pauli, <strong>um</strong> dos três sócios da produtora <strong>de</strong> áudio e ví<strong>de</strong>o Planeta<br />
Comunicação, que estava começando em Brasília, me convidou<br />
para montar o meu estúdio <strong>de</strong> produção n<strong>um</strong>a das salas que eles<br />
316
Consciência H<strong>um</strong>ana, Tá na hora, e Gog,<br />
Brasília periferia<br />
317<br />
tinham no prédio da produtora, porque queria que eu juntasse<br />
forças com eles. O principal objetivo <strong>de</strong>les era fazer concorrência<br />
com o Zen Estúdio, que dominava o cenário musical em Brasília.<br />
A Planeta Comunicação era freqüentada principalmente por<br />
políticos da cida<strong>de</strong>, porque era ano <strong>de</strong> eleições para governador<br />
e <strong>de</strong>putado distrital. Toda a concepção do prédio era glamourosa.<br />
Des<strong>de</strong> a recepção até o <strong>de</strong>pósito. Pensei muito sobre a oferta,<br />
porque achava que o local não tinha muito a ver com o tipo <strong>de</strong> trabalho<br />
que eu fazia. Acabei aceitando e coloquei os meus equipamentos<br />
na sala. Cheguei a fazer lá a primeira música para o disco<br />
novo do Câmbio Negro, que era em cima <strong>de</strong> “Carmina Burana”, do<br />
compositor Carl Orff, <strong>um</strong> clássico da música erudita.<br />
Gog resolveu me procurar novamente. A notícia da equipe <strong>de</strong> produção<br />
se espalhava. Ele fi cou muito interessado em fazer o novo<br />
trabalho com a nossa equipe, pois, além <strong>de</strong> querer <strong>um</strong>a sonorida<strong>de</strong><br />
diferente em seu disco, ele era amigo do Nino e do Ariel.<br />
A idéia <strong>de</strong>sse trabalho era misturar o eletrônico com o acústico.<br />
Não só samplear as bases e grooves que queríamos usar, mas<br />
retocá-los mesmo. E, principalmente, procurar os mesmos timbres<br />
ou recriá-los. Por isso, o Ariel comprou <strong>um</strong> pedal Vox Wah,<br />
que tinha a sonorida<strong>de</strong> retrô das guitarras dos anos 70, com<strong>um</strong>ente<br />
sampleadas em discos <strong>de</strong> rap. Mas isso não bastava,<br />
a timbragem foi toda recriada nesse estilo, principalmente na<br />
mixagem fi nal do disco. As produções <strong>de</strong> rap gringo estavam<br />
muito avançadas nesse sentido. O G Funk – estilo que começava<br />
a predominar nas pistas do mundo inteiro, através <strong>de</strong> rappers<br />
como DJ Quick e Paris, além do LP Cronic, do Dr. Dre, e o primeiro<br />
disco solo do Snoop Doggy Dogg, Doggystyle – invadia o DF.<br />
Também chegamos a fazer alg<strong>um</strong>as músicas do disco do Gog na<br />
Planeta Comunicação. O Consciência H<strong>um</strong>ana e eu não fi camos<br />
por lá muitos dias. Realmente não <strong>de</strong>u certo. Existia no ar <strong>um</strong><br />
preconceito das pessoas que freqüentavam o prédio. No modo<br />
<strong>de</strong> agir e olhar para a gente. Por causa do jeito com que a gente se<br />
vestia, andava e se comportava. Provavelmente também pela cor
318 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
da pele <strong>de</strong> muitos integrantes <strong>de</strong> grupos e admiradores que iam<br />
nas sessões <strong>de</strong> produção, para conhecer o Consciência H<strong>um</strong>ana.<br />
Tudo isso é lamentável.<br />
Resolvemos então continuar o trabalho em casa. O Gog se ofereceu<br />
para hospedar o Consciência H<strong>um</strong>ana durante toda a produção<br />
do disco e a parte <strong>de</strong> estúdio também.<br />
— Não vai te incomodar, não, Gog? – perguntei.<br />
— Não, Gordo. É só você fazer <strong>um</strong>a feira pra ajudar com as <strong>de</strong>spesas<br />
em casa – respon<strong>de</strong>u.<br />
— Beleza então, velho!<br />
De dia, eu trabalhava com o Consciência H<strong>um</strong>ana e à noite, com<br />
o Gog. Essa era a rotina diária e não fugia à regra nem nos fi nais<br />
<strong>de</strong> semana.<br />
A difi culda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer esse disco era a <strong>de</strong> que ele fi casse com<br />
a cara do Gog, marcasse para o Brasil que ele vinha do DF e, ao<br />
mesmo tempo, não regionalizasse <strong>de</strong>mais o trabalho. Precisávamos<br />
também atingir o público do DF. Foi aí que pensei em usar<br />
novamente <strong>um</strong>a batida que já tinha sido muito usada não apenas<br />
no exterior como no Brasil, que era a <strong>de</strong> “Friends”, do grupo norte-<br />
americano Houdini. Essa música era tradição nos bailes do DF.<br />
A idéia que tínhamos era sempre pôr <strong>um</strong> gancho na produção.<br />
O que isso signifi ca? Colocar alg<strong>um</strong> elemento que lembre às<br />
pessoas que ouvem a música <strong>de</strong> <strong>um</strong>a outra música que elas<br />
conhecem. De preferência, <strong>um</strong> sucesso. Eu fi quei pensando n<strong>um</strong>a<br />
maneira <strong>de</strong> usar aquela batida <strong>de</strong> modo diferente. Então, resolvi<br />
sampleá-la e cortá-la ao meio, só usando a primeira parte. Ou<br />
seja, os primeiros quatro compassos. Assim todos lembrariam da<br />
batida, mas ela estaria diferente. Todos gostaram da idéia. Exatamente<br />
essa música dava o nome do título do disco.<br />
Há três musicas <strong>de</strong> que eu gosto muito nesse trabalho: “Assassinos<br />
sociais”, “Brasília periferia” – principalmente pela inovação<br />
da letra, mostrando o DF como ele é <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, porque a maioria
Consciência H<strong>um</strong>ana, Tá na hora, e Gog,<br />
Brasília periferia<br />
319<br />
das pessoas conhece apenas o Plano Piloto – e “É mesmo incrível”.<br />
Nesta faixa, o arranjo e a letra são sensacionais e combinaram<br />
perfeitamente. Um dos trechos <strong>de</strong> que mais gosto é:<br />
Aos 20 e pouco <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, larguei a faculda<strong>de</strong>./ Pra meus pais, <strong>um</strong><br />
baque,/ pra mim nenh<strong>um</strong>a novida<strong>de</strong>./ Sei que errei, mas que lição<br />
tirar?/ O importante é que consegui chegar/ on<strong>de</strong> muitos da minha<br />
cor querem chegar/ e não conseguem chegar./ Ah! Não seja ingênuo,/<br />
a ponto <strong>de</strong> imaginar que eu sou melhor que você/ ou você é<br />
<strong>um</strong> incompetente./ Pare, analise, raciocine friamente. /Quantos <strong>de</strong><br />
nós ocupam hoje altas patentes?<br />
Dia-a-dia da periferia foi o terceiro disco da carreira do Gog e é,<br />
para mim, senão o melhor, <strong>um</strong> dos melhores. Em matéria <strong>de</strong> vendagem,<br />
ele continua sendo o mais bem-sucedido na carreira <strong>de</strong>le.<br />
Naqueles dias, o Gog pediu para eu indicar alguém que eu conhecesse<br />
para cantar junto com ele. Indiquei o Japão, que já morava<br />
na expansão do Setor O, na Ceilândia, fora do grupo Tropa <strong>de</strong> Elite<br />
e muitos anos <strong>de</strong>pois montaria o Viela 17. O DJ Romix também foi<br />
chamado pelo Gog. Os três começaram a fazer shows juntos.<br />
O Consciência H<strong>um</strong>ana fazia <strong>um</strong> som totalmente diferente, mais<br />
polêmico. Aplick, W. Gee e DJ Adriano discutiam muito entre si,<br />
mas tudo para que o trabalho saísse perfeito.<br />
Eu gosto muito <strong>de</strong> três músicas no primeiro disco do Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana, “Enxergue os seus próprios erros: Sangue B”, com participação<br />
do Gog; “Rajada”, que tinha <strong>um</strong>a seqüência <strong>de</strong> guitarra<br />
muito linda no começo criada pelo Ariel; e, claro, “Tá na hora”.<br />
A história <strong>de</strong>sta música é, além <strong>de</strong> polêmica, muito interessante.<br />
“Tá na hora” criticava policiais, justiceiros e, principalmente, o<br />
capitão da reserva da PM <strong>de</strong> São Paulo, Conte Lopes, que foi<br />
reeleito em 2006, pelo sexto mandato consecutivo, a <strong>de</strong>putado<br />
estadual pelo PTB. A música estourou em São Paulo, tocando em<br />
programas <strong>de</strong> rap especializados, bailes e também em rádios<br />
que não incluíam rap nacional na programação normal. No DF,<br />
até hoje, ela é cantada como <strong>um</strong> hino quando toca nos bailes.
320 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Depois do sucesso <strong>de</strong> “Tá na hora”, eles começaram a sofrer perseguições<br />
constantes e receberam várias ameaças <strong>de</strong> morte.<br />
Aplick chegou a ser atropelado por <strong>um</strong>a viatura da polícia.<br />
“Tá na rua” começou com <strong>um</strong>a conversa entre mim e Nino. Ele<br />
me chamou na loja para mostrar <strong>um</strong> disco <strong>de</strong> <strong>um</strong> grupo novo da<br />
gravadora do Eazy-E, a Ruthless Records. O grupo se chamava<br />
Bone Thugs-n-Harmony e o disco era <strong>um</strong> single com “Thuggish<br />
Ruggish Bone”. A música me impressionou muito. Ela era muito<br />
lenta, com uns 68 BPM, e a rima era inovadora. Aquilo me conquistou<br />
na hora e percebi imediatamente que esse estilo iria predominar<br />
nos próximos anos. Minha frustração era que a maioria<br />
dos grupos americanos que faziam o G Funk usava muito <strong>um</strong><br />
instr<strong>um</strong>ento chamado moog. Era <strong>um</strong> teclado analógico, criado<br />
nos anos 70 pelo engenheiro Bob Moog, <strong>um</strong> dos pioneiros no<br />
<strong>de</strong>senvolvimento dos sintetizadores, falecido em 2005. Seus<br />
instr<strong>um</strong>entos foram marcantes na evolução da música, tendo<br />
sido utilizados por artistas <strong>de</strong> vários gêneros, com <strong>um</strong> papel<br />
fundamental na música progressiva. As sonorida<strong>de</strong>s inusitadas<br />
obtidas com os sintetizadores moog continuam a ser usadas<br />
largamente no hip-hop, r&b e dance no mundo inteiro. Como eu<br />
não tinha acesso a esses timbres em nenh<strong>um</strong> módulo e teclado<br />
que eu adquiria, eu tinha que improvisar. Minha mais nova aquisição<br />
era <strong>um</strong> módulo Protheus, da EMU. Ele tinha <strong>um</strong> timbre<br />
parecido com o moog e resolvi usá-lo em “Tá na hora”.<br />
Depois da conversa com o Nino, saí correndo para casa e fi z a<br />
instr<strong>um</strong>ental da música. Mostrei para o Aplick e perguntei se<br />
ele tinha alg<strong>um</strong>a letra que se encaixava nela. Foi então que ele<br />
começou a cantar:<br />
Tá na hora,/ tá na hora <strong>de</strong> parar para pensar./ Somos Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana, porra!/ E não brincamos <strong>de</strong> cara e coroa,/ porque somos<br />
da periferia da Zona Leste <strong>de</strong> São Paulo/ e estamos acost<strong>um</strong>ados<br />
a conviver com má notícia./ Assassinatos causados por gangues<br />
<strong>de</strong> polícia!<br />
— Po<strong>de</strong> parar por aí, velho! Tá <strong>de</strong>mais! – gritei.
Consciência H<strong>um</strong>ana, Tá na hora, e Gog,<br />
Brasília periferia<br />
— Calma, Gordinho – disse Aplick, rindo.<br />
321<br />
— É que tá foda, cara! Essa música vai ser foda! – exclamei,<br />
mais eufórico ainda.<br />
— Só não per<strong>de</strong> o carretel, Gordo – zoou Adriano.<br />
As produções do Consciência H<strong>um</strong>ana sempre eram recheadas<br />
<strong>de</strong> zoação e piadas entre eles. O clima sempre era bom. Mesmo<br />
na hora <strong>de</strong> cantar músicas pesadas .<br />
“Tá na hora” foi a última música que produzimos nesse disco<br />
e a rima do Aplick nada tinha a ver com a do Bone Thugs-n-<br />
Harmony. Graças a Deus, porque isso dava <strong>um</strong> toque exclusivo a<br />
ela. Além disso, o DJ Adriano ainda sugeriu samplear <strong>um</strong> trecho<br />
<strong>de</strong> “Na rua, na chuva, na fazenda”, do cantor Hildon, para inserir<br />
no começo. Ficou muito bom e esse trecho sampleado virou a<br />
marca registrada da música.<br />
Um dia antes <strong>de</strong> gravarmos “Tá na hora” no estúdio estavam no<br />
apartamento da minha mãe Ariel, Aplick, W. Gee, Adriano, eu e<br />
meu irmão Alessandro, que estava <strong>de</strong> férias do curso no exterior.<br />
Alessandro tocou <strong>um</strong>as músicas no piano do meu pai. Foi aí que<br />
tivemos a idéia da vinheta <strong>de</strong> abertura da música no disco. O<br />
Ariel começou a tocar junto com meu irmão, que bolou a melodia.<br />
O Aplick recitou o texto da vinheta, eu apaguei todas as luzes e<br />
comecei a gravar tudo com <strong>um</strong> walkman. Gravamos várias vezes<br />
até conseguirmos a versão que está no disco. Eram essas loucuras<br />
e climas que faziam a diferença dos nossos trabalhos.<br />
No Zen Estúdio a gravação do disco do Gog foi feita primeiro.<br />
Depois fi z todos os vocais do W. Gee, que sempre era muito<br />
rápido e efi ciente nas gravações. Quando o Aplick começou a<br />
gravar, imediatamente tive que parar. A dicção <strong>de</strong>le estava horrível.<br />
É que ele não tinha os dois <strong>de</strong>ntes da frente. Marquei hora<br />
n<strong>um</strong> <strong>de</strong>ntista para ele colocar as próteses e só <strong>de</strong>pois ele voltou<br />
para gravar as rimas.
322 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
No dia da gravação <strong>de</strong> “Tá na hora” o Aplick não se concentrava.<br />
Mas quando consegui tirar a emoção certa <strong>de</strong>le, fazendo-o<br />
lembrar da morte do irmão, ele chegou a chorar e gravamos a<br />
música. É claro que a interpretação fi cou perfeita.<br />
Nasciam dois clássicos do rap Nacional: Dia a dia da periferia,<br />
do Gog, e Enxergue os seus próprios erros, do Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana. Ter feito parte <strong>de</strong>sses trabalhos me <strong>de</strong>ixa orgulhoso.<br />
Para variar, o Giba não honrou com o pagamento <strong>de</strong> todo o dinheiro<br />
gasto no estúdio pelo Consciência H<strong>um</strong>ana. Para tirar o tape <strong>de</strong> lá<br />
e não prejudicar o grupo, paguei a meta<strong>de</strong> que faltava, <strong>um</strong>a grana<br />
que equivale hoje a uns mil reais. Varamos madrugadas gravando<br />
e terminando esse trabalho. Voltávamos todos a pé para o apartamento<br />
da minha mãe, que fi cava a pouco mais <strong>de</strong> cinco quilômetros<br />
<strong>de</strong> distância do Zen Estúdio.<br />
Durante todo o processo <strong>de</strong> produção e fi nalização dos dois<br />
trabalhos, por várias vezes insisti em fazer a feira para ajudar<br />
o Gog com as <strong>de</strong>spesas do Consciência H<strong>um</strong>ana, que estava<br />
hospedado na casa <strong>de</strong>le na cida<strong>de</strong>-satélite Riacho Fundo. Em<br />
nenh<strong>um</strong> momento, o Gog se mostrou interessado e eu, o Ariel e<br />
o Nino acabamos <strong>de</strong>sisitindo e não comentando mais o assunto.<br />
Para fazer esse disco do Gog, que foi o primeiro feito pela então<br />
“equipe <strong>de</strong> produção” da Planet, nós pensamos em cobrar o<br />
equivalente a mil reais. Por todo o trabalho que o disco <strong>de</strong>u e<br />
também porque era essa a média que se cobrava por produções<br />
completas <strong>de</strong> rap nacional. Era <strong>um</strong> preço justo. Deixei para o<br />
Nino e o Ariel a tarefa <strong>de</strong> falar com ele e receber o dinheiro, após<br />
o término do projeto. Nunca fui muito bom em cobrar os outros.<br />
Como o Gog já tinha pago o estúdio, o tape estava nas mãos <strong>de</strong>le.<br />
A <strong>de</strong>cepção se instalou mais <strong>um</strong>a vez quando me contaram a<br />
reação que ele teve ao ser cobrado pelo Nino e pelo Ariel.<br />
— Raffa, quando falamos que o custo da produção era <strong>de</strong> mil<br />
reais, você sabe o que o Gog disse? – perguntou Nino.<br />
— O que foi, Nino? Você parece indignado, cara! – respondi.
Consciência H<strong>um</strong>ana, Tá na hora, e Gog,<br />
Brasília periferia<br />
323<br />
— Raffa, ele disse que esse preço era <strong>um</strong> absurdo. E que se a<br />
gente cobrar isso <strong>de</strong>le, ele vai cobrar o mesmo valor pelos custos<br />
da estadia do Consciência H<strong>um</strong>ana. Você acredita nisso,<br />
velho? – disse Nino, revoltado.<br />
— Acredito – disse eu – Só não consigo enten<strong>de</strong>r por que tudo<br />
que eu faço com o Gog sempre tem que ter <strong>um</strong>a indisposição no<br />
fi nal, e a gente acaba se afastando <strong>um</strong> do outro.<br />
— Mas, Raffa, o que nós temos a ver com o Consciência H<strong>um</strong>ana?<br />
— Vocês, nada, mas eu sim. Como eu faço parte da equipe <strong>de</strong><br />
produção e é <strong>um</strong>a fi rma só, vocês acabaram envolvidos n<strong>um</strong><br />
esquema mal resolvido – expliquei.<br />
— A culpa é nossa por não termos tratado <strong>de</strong>sse assunto do<br />
cachê antes da produção – disse Ariel.<br />
— Você tem razão, cara. A nossa empolgação com o trabalho<br />
não <strong>de</strong>ixou a gente pensar direito nas coisas – concor<strong>de</strong>i.– Pra<br />
mim, galera, é mais <strong>um</strong> prejuízo, porque a meta<strong>de</strong> do estúdio do<br />
Consciência H<strong>um</strong>ana eu também tive que pagar.<br />
— Ele ofereceu pra gente <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses novos telefones aí. Um<br />
telefone celular sem linha pelo pagamento do trabalho – acrescentou<br />
Ariel.<br />
— O que fazer, né? – disse, triste e indignado.<br />
Nino nunca se conformou com a atitu<strong>de</strong> do Gog. Para ele, cobrar<br />
mil reais pela hospedagem dos integrantes do Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana, que praticamente só dormiam lá, era algo difícil <strong>de</strong> se<br />
engolir. A partir <strong>de</strong>sse dia, Nino nunca mais dirigiu a palavra ao<br />
Gog. Eles cruzaram o caminho, logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse episódio n<strong>um</strong>a<br />
rua perto da rodoviária <strong>de</strong> Brasília. Nino queria encher a cara <strong>de</strong>le<br />
<strong>de</strong> porrada, mas o Ariel não <strong>de</strong>ixou.<br />
Eu acho que todos erraram. O Gog, por ter agido daquela forma,<br />
sem valorizar o nosso trampo. E nós, por não termos sido profi ssionais<br />
o sufi ciente para resolver questões fi nanceiras antes <strong>de</strong><br />
pegarmos o trabalho. Mais <strong>um</strong>a vez, me afastei do Gog.
O telefone celular nunca funcionou direito. Não sei se porque<br />
a gente não sabia mexer ou porque estava quebrado mesmo.<br />
Além do mais, ter <strong>um</strong>a linha celular naquela época era inviável.<br />
Só sei que o Nino e o Ariel passaram para frente o aparelho<br />
e, com o dinheiro, pagaram <strong>um</strong>as contas da loja.
326<br />
CAPÍTULO 40:
A gravadora do Donizete não parava <strong>de</strong> crescer. Voltei no ano <strong>de</strong><br />
1994 a São Paulo para fazer várias produções para a TNT. Fiquei<br />
hospedado na casa do Donizete, no porão em que fi cava o <strong>de</strong>pósito<br />
dos discos da gravadora, on<strong>de</strong> havia <strong>um</strong> espaço gran<strong>de</strong> e<br />
<strong>de</strong>u para eu montar o meu equipamento. O Donizete pegava as<br />
músicas <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> cada disco e fazia <strong>um</strong> single promocional,<br />
em vinil, para os DJs. Era mais <strong>um</strong> investimento e novida<strong>de</strong><br />
que crescia muito no mercado do rap nacional.<br />
O mais novo contratado era o PMC. Duas músicas do disco<br />
Revolução <strong>de</strong> novas idéias tocaram bastante. A primeira foi Vila<br />
Santa Rita, que tem <strong>um</strong> sampler <strong>de</strong> Todo menino é <strong>um</strong> rei, do<br />
cantor Roberto Ribeiro. Dessa vez o sampler não foi do instr<strong>um</strong>ental,<br />
e sim do refrão. Colocar refrão <strong>de</strong> outras músicas com<br />
a voz original sampleada começou a ser <strong>um</strong>a prática freqüente<br />
nas produções no rap nacional. E a segunda, Luz Vermelha, com<br />
o refrão “Corre que lá vêm os homens”:<br />
Novamente a Luz Vermelha aparece na rua,<br />
ela pára, enquadra, é a viatura.<br />
Mão na cabeça você <strong>de</strong>itado no chão.<br />
Tem fl agrante? Não! Evi<strong>de</strong>nte que não!<br />
Na sua cabeça <strong>um</strong> (ferro), ele segura com a mão,<br />
acelerando então a batida do seu coração.<br />
O disco ainda teve a participação da cantora e atriz Adriana Lessa,<br />
que estava começando a carreira artística, fazendo backing vocals<br />
328
TNT Records<br />
329<br />
em “Pai Celestial”. Adriana Lessa já participou <strong>de</strong> várias novelas<br />
da Re<strong>de</strong> Globo, e fi cou mais conhecida como a Naná, da novela<br />
Terra Nostra.<br />
Naquele ano eu produzi vários grupos para a TNT, entre eles o<br />
terceiro álb<strong>um</strong> do N<strong>de</strong>e Naldinho, intitulado Bem-vindo ao Hiphop;<br />
o terceiro do Comando DMC, Sangue no olho, e o último do<br />
DF Movimento, Caminho sem volta.<br />
Na minha opinião, Caminho sem volta foi o melhor disco do Maguila.<br />
Não só por causa da refi nada produção musical, com direito a solo<br />
<strong>de</strong> sax do Newton Carneiro, irmão do Van<strong>de</strong>r, do Atelier Studio, mas<br />
também por contar com a parceria do Marcos Telesphoro, <strong>um</strong> dos<br />
maiores letristas que eu conheci. No entanto, o Donizete insistiu<br />
em manter o nome do DF Movimento. A meu ver, isso atrapalhou<br />
muito o amadurecimento do Maguila, que tinha <strong>um</strong>a performance<br />
vocal limitada. Infelizmente, ele foi mais <strong>um</strong>a vítima da violência e<br />
não está mais entre nós.<br />
A TNT também lançou Os Últimos Dias da Lei, do grupo Som<br />
<strong>de</strong> Assalto, que tem como integrante o Marcos Telesphoro, e o<br />
segundo do Geração Rap, O show <strong>de</strong>ve continuar, com Fish, MC<br />
Eddie e DJ Izzy, que substituiu o DJ Alpiste, riscando no disco. Foi<br />
<strong>um</strong>a pena eu não po<strong>de</strong>r participar da produção do disco do Som<br />
<strong>de</strong> Assalto, eu estava muito ocupado com outros trabalhos.<br />
Tanto o Geração Rap como o Comando DMC não foram felizes<br />
em seus trabalhos. Eles não conseguiram repetir sucessos como<br />
“Pirulito” e “Pulem”. Foi aí que comecei a perceber que, na música,<br />
o mais difícil não era entrar no mercado e gravar <strong>um</strong> disco, mas<br />
permanecer nele.<br />
Também produzi para o Giba, da MA Records, o segundo disco do<br />
Produto da Rua. O MC Kult pediu muito para que o Fabio Macari<br />
fi zesse parte <strong>de</strong>ssa produção. Eu não me opus, porque estava<br />
mais maduro, e achava que tínhamos que ser profi ssionais acima<br />
<strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>ixando as diferenças <strong>de</strong> lado. A principal música, que<br />
levou o mesmo nome do disco, “Durma com os anjos, criança”,
330 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
tem <strong>um</strong>a letra muito forte. Ela fala <strong>de</strong> menores abandonados e do<br />
<strong>de</strong>scaso dos políticos, em relação a esse problema:<br />
Fazer campanha na televisão,<br />
diz que o menor é priorida<strong>de</strong>,<br />
fi zeram o Estatuto da Criança na Constituição, quem?<br />
Aqueles que discriminam nossos pequenos irmãos,<br />
e os tratam como lixo.<br />
Na hora do voto a criança é o apelo, é o motivo,<br />
mas <strong>de</strong>pois é queima <strong>de</strong> arquivo!<br />
A letra <strong>de</strong>nunciava os grupos <strong>de</strong> extermínio que agiam há mais<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos nas periferias <strong>de</strong> todo o Brasil, matando jovens,<br />
nem sempre inocentes, mas muitas vezes, vítimas da constante<br />
infl uência ao cons<strong>um</strong>o <strong>de</strong>senfreado que a TV, com seus anúncios<br />
publicitários, traz para os seus lares. Roubar para cons<strong>um</strong>ir<br />
droga não era mais a única prática. Agora a molecada roubava<br />
para satisfazer sonhos <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o.<br />
Eram trabalhos com letras assim que me faziam ter cada vez<br />
mais motivação no dia-a-dia. O Produto da Rua acabou, mas o<br />
MC Kult e o Panther formaram o grupo <strong>de</strong> rap gospel Saqueadores<br />
e se converteram à religião evangélica.<br />
Depois <strong>de</strong> <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> temporada fora <strong>de</strong> casa, morando no porão<br />
da casa do Donizete, entre os discos e as baratas, fi nalmente eu<br />
voltei para Brasília. Foram vários meses ausente. Se eu já tinha<br />
<strong>um</strong>a relação difícil com a Zilmar, mãe da minha fi lha Rafaella, a<br />
situação começava a se tornar insustentável. Acredito que <strong>um</strong><br />
dos motivos <strong>de</strong> eu me enfi ar em tanto trabalho sempre foi esquecer<br />
as amarguras da vida.<br />
Terminava mais <strong>um</strong> ciclo e iniciava outro em minha vida. A concretização<br />
do mercado do hip-hop do DF.
332<br />
CAPÍTULO 41:<br />
tem <strong>um</strong>
Em 1995, o mercado do rap nacional do DF começou a ganhar<br />
fama em todo o Brasil. Além dos meus trabalhos no ano anterior,<br />
o Rei montou o Cirurgia Moral e lançou o disco Cerébro assassino.<br />
Esse álb<strong>um</strong> tinha <strong>um</strong>a forte infl uência do estilo musical do<br />
Câmbio Negro, trazendo o trabalho para <strong>um</strong> som mais acústico.<br />
O Cirurgia conquistou o prêmio “Revelação do ano” na categoria<br />
rap, no evento promovido pela Metro FM <strong>de</strong> São Paulo. A infl uência<br />
do rap do Cerrado estava muito presente em Sampa.<br />
Infelizmente, nesse mesmo ano, o Jamaika se separou do X, que<br />
junto com seus companheiros <strong>de</strong> banda, continuou a levar para<br />
frente o Câmbio Negro. Muito se falou sobre essa separação<br />
e várias teorias se espalharam pelo país. Como eu conhecia e<br />
convivia com os dois, posso mostrar res<strong>um</strong>idamente o que cada<br />
lado dizia.<br />
Jamaika freqüentava muito o apartamento da minha mãe na<br />
Asa Norte, porque ele trabalhava na UTI <strong>de</strong> <strong>um</strong> hospital no Setor<br />
Hospitalar Norte, e também porque nascia nele <strong>um</strong> interesse<br />
maior do que só ser DJ do Câmbio. Ele tinha interesse em produção.<br />
Eu até brincava com ele:<br />
— Pô, Jamaika, quando <strong>um</strong> paciente acordar na UTI e <strong>de</strong>r <strong>de</strong> cara<br />
com você, ele vai achar que morreu e tá no inferno! Hahahaha!<br />
— Loirinho, você tem que ver o que eu faço lá. Não tem aqueles<br />
tubos com oxigênio?<br />
334
O gangsta rap tem <strong>um</strong> Álibi<br />
— Sim, e daí?<br />
335<br />
— Eu fi co cortando o ar do paciente, esperando ele fi car roxo, e<br />
<strong>de</strong>pois abro a válvula e ele volta a respirar! Só pra ver <strong>de</strong> qualé!<br />
— Cê tá doido, velho?<br />
— É muito doido, Loirinho!<br />
— Não acredito, Jamaika. Você tá louco!<br />
— Hahahahahahahaha! É brinca<strong>de</strong>ira, Loirinho! Tô te sacaneando!<br />
— Vai se fu<strong>de</strong>r! – respondia eu. – Mas aí, cara, vamo falar na<br />
moral! O X tá puto contigo, porque você não vai aos ensaios e<br />
não tá se esforçando mais.<br />
— Porra, não é isso! O X não enten<strong>de</strong> que eu tô trabalhando muito<br />
e nem sempre tá dando pra eu ir. Às vezes, eu tenho plantão e<br />
não dá pra ir aos shows! Eu não tenho nada contra a banda não,<br />
Loirinho, mas, na minha opinião, Câmbio Negro sou eu e o X. Não<br />
a banda! A banda é pros shows.<br />
Já n<strong>um</strong>a conversa com o X, ele me disse:<br />
— Gordo, o Jamaika tem faltado aos ensaios. Não po<strong>de</strong> viajar<br />
com a gente em alguns shows. Tá foda!<br />
— Cara, ele tá puto com essa história que você agora tá dizendo<br />
que o Câmbio não é só mais ele e você, e sim a banda toda.<br />
— É verda<strong>de</strong>, Gordo! Porra, os caras tão ralando junto com a<br />
gente. Estão <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> tocar com outras bandas porque acreditam<br />
no futuro do Câmbio Negro – explicou – Ele é o cérebro do<br />
Câmbio, Gordo, mas não tem se esforçado nem pra gente fazer<br />
música nova.<br />
— Ele <strong>de</strong>ve estar <strong>de</strong>sanimado com essa história toda, X.<br />
— Não sei, Gordo, só sei que continuar assim tá foda!<br />
Passado mais <strong>um</strong> tempo, o X me ligou contando que eles tinham<br />
se separado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong>a discussão feia no estúdio <strong>de</strong> ensaios:
336 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Gordo, falei pra ele que do jeito que estava não dava mais. Ele<br />
não gostou não velho, mas fi cou por isso mesmo.<br />
Chegava ao fi m <strong>um</strong>a das maiores duplas do rap nacional.<br />
Alg<strong>um</strong>as semanas <strong>de</strong>pois do rompimento, o Jamaika resolveu<br />
conferir o trabalho do Câmbio Negro em show <strong>de</strong> abertura que<br />
eles fariam para <strong>um</strong>a banda <strong>de</strong> rap alemã n<strong>um</strong> evento no Centro<br />
<strong>de</strong> Brasília. Quando, já alcoolizado, ele se <strong>de</strong>parou com o Gog no<br />
meio do show, começou a xingá-lo, acusando-o <strong>de</strong> ser o culpado<br />
pelo fato <strong>de</strong> o X tê-lo expulsado do Câmbio Negro. O Jamaika<br />
começou a correr atrás do Gog para meter porrada nele. A galera<br />
que estava no show impediu a briga. Mas a partir <strong>de</strong>sse episódio,<br />
Jamaika espalhou que a culpa <strong>de</strong> sua expulsão do grupo,<br />
era da má infl uência que o Gog tinha sobre o X.<br />
Após o ocorrido, <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> acontecimentos mudou a história<br />
do rap no DF e, conseqüentemente, do Brasil.<br />
O Jamaika continuava <strong>de</strong>siludido e se entregava à bebida.<br />
Sabendo <strong>de</strong> tudo, o Genivaldo, dono da Discovery, resolveu<br />
ajudá-lo e o incentivou a continuar no rap, dando-lhe a chance<br />
<strong>de</strong> gravar <strong>um</strong> disco. Jamaika rapidamente enten<strong>de</strong>u que a única<br />
forma <strong>de</strong> mostrar o seu valor seria através da música, mesmo<br />
que para isso, alg<strong>um</strong>as músicas fossem nada conscientes.<br />
Junto com o seu irmão Rivas, ele formou o grupo que infl uenciou<br />
toda <strong>um</strong>a geração <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> rap no DF e no Brasil inteiro,<br />
além <strong>de</strong> iniciar o estilo gangsta no rap nacional. Nascia o Álibi.<br />
Quando eu falo gangsta, não me refi ro à criminalida<strong>de</strong>, com a qual<br />
esse estilo andava lado a lado nos Estados Unidos. Na verda<strong>de</strong>, o<br />
gangsta no rap nacional era bem diferente. Principalmente porque,<br />
ele não estava ligado à ostentação do luxo como o gangsta<br />
americano. Era <strong>um</strong>a mistura <strong>de</strong> música consciente com ritmos<br />
dançantes que, em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar as coisas erradas, apenas<br />
entrava como espectador e cronista da periferia, sem interferir.<br />
Por isso, foi muito mal compreendido, já que nem sempre as<br />
histórias tinham fi nais felizes. O gangsta rap brasileiro relatava
O gangsta rap tem <strong>um</strong> Álibi<br />
337<br />
a violência, as drogas e o <strong>de</strong>scaso nas comunida<strong>de</strong>s e, ao mesmo<br />
tempo, a diversão ao extremo, sem preocupações morais.<br />
Essa era a fi losofi a. O problema é que alg<strong>um</strong>as histórias eram<br />
contadas na primeira pessoa, e quem não soubesse distinguir<br />
o que era fi cção e o que era verda<strong>de</strong>iro acreditava que quem<br />
rimava era <strong>de</strong> fato o personagem da história. É óbvio que isso,<br />
na maioria das vezes, não era verda<strong>de</strong>.<br />
O Jamaika teve a gran<strong>de</strong> idéia <strong>de</strong> juntar essa fi losofi a nas letras<br />
com <strong>um</strong>a instr<strong>um</strong>ental baseada ao extremo no som <strong>de</strong> Los<br />
Angeles, mas em mol<strong>de</strong>s bem brasileiros e regionais. Como ele<br />
freqüentava muito os bailes na periferia, sabia como ninguém o<br />
que o povo queria ouvir.<br />
Como o Câmbio Negro r<strong>um</strong>ava para <strong>um</strong> som cada vez mais<br />
acústico e consciente, a idéia do Jamaika, era ser cada vez mais<br />
a antítese do grupo do X, usando instr<strong>um</strong>entais extremamente<br />
eletrônicas e com muitos graves, chamados <strong>de</strong> bass. Guitarras<br />
não tinham vez. B<strong>um</strong>bos, só com muito graves. Teclados, se fossem<br />
moogs muito agudos e estri<strong>de</strong>ntes, a ponto <strong>de</strong> incomodar<br />
os ouvidos e assim chamarem a atenção <strong>de</strong> todos. Essa foi a<br />
fórmula do Álibi, que conquistou toda <strong>um</strong>a geração <strong>de</strong>ntro do<br />
hip-hop. O rap nunca mais seria o mesmo.<br />
Músicas como “Chaparral” e “No Reino da Morte” – essa com a<br />
participação do Rei, do Cirurgia Moral, que tinha <strong>um</strong>a amiza<strong>de</strong><br />
muito forte com o Jamaika – estouraram nos bailes no DF. Eles<br />
cutucavam levemente em “Álibi vai à forra” o Câmbio Negro e<br />
a DF Zulu Breakers, já que o Rivas era o fundador da Reforços,<br />
principal adversário <strong>de</strong>les:<br />
Nosso movimento ainda não é fi el, falam <strong>de</strong> Deus,<br />
arcanjos, anjos céu.<br />
Mas a sacanagem continua (isso é fato).<br />
Safados carcarás <strong>de</strong> bateria e baixo.<br />
Roda <strong>de</strong> break <strong>de</strong>ntro do “Quarentão”, irmão <strong>de</strong> rocha<br />
entra com <strong>um</strong> oitão.<br />
Pra fazer merda lá <strong>de</strong>ntro, noiado já era.
338 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
O gangsta rap tem <strong>um</strong> Álibi<br />
Joga <strong>um</strong> colado por <strong>um</strong>a ponta <strong>de</strong> merla.<br />
Fora os que entram na roda, cheios da cachaça.<br />
Moinho <strong>de</strong> vento, giro <strong>de</strong> cabeça <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sgraça.<br />
Por isso o movimento não é valorizado.<br />
Culpa <strong>de</strong>sses pilantras safados!<br />
339<br />
Essa foi <strong>um</strong>a característica forte nas letras do Álibi. A revolta<br />
era muito gran<strong>de</strong>. Muitas das colagens e citações eram tão<br />
fortes que eu obriguei o Genivaldo, da Discovery, a colocar na<br />
contracapa do vinil Abutre a seguinte frase: “Todos os samples<br />
usados e colagens inseridas nas faixas <strong>de</strong>sse trabalho são <strong>de</strong><br />
inteira responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jamaika.”<br />
Eu não queria me queimar com o X, com quem eu mantinha <strong>um</strong>a<br />
forte amiza<strong>de</strong>. Eu tinha contrato com a Discovery e não podia<br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> produzir. O X sempre enten<strong>de</strong>u o meu lado e nunca me<br />
culpou e criticou por ser profi ssional e trabalhar nos discos do<br />
Álibi. Só quando bebia <strong>um</strong>as e outras ele se mostrava ressentido<br />
pela minha participação na produção musical dos trabalhos<br />
do Jamaika. Posso dizer que eu e o Jamaika éramos <strong>um</strong>a dupla<br />
perfeita na produção. Era foda mesmo! Tínhamos <strong>um</strong>a afi nida<strong>de</strong><br />
muito gran<strong>de</strong> e por muito tempo, na minha h<strong>um</strong>il<strong>de</strong> opinião, essa<br />
parceria fez alguns dos maiores e melhores discos <strong>de</strong> rap do DF.
340<br />
CAPÍTULO 42:
A Discovery começava a se tornar <strong>um</strong>a das maiores gravadoras<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes no cenário do rap nacional. E, conseqüentemente,<br />
ganhou a fama <strong>de</strong> propagar o estilo gangsta por todo o<br />
Brasil, sendo criticados pela divulgação <strong>de</strong>sse estilo musical.<br />
Todos que estiveram diretamente ou indiretamente envolvidos<br />
com o processo do crescimento da Discovery, sentiram <strong>de</strong>pois<br />
o peso <strong>de</strong>ssas críticas. Genivaldo nem se abalava, ele queria<br />
mesmo era lançar cada vez mais títulos.<br />
Apesar <strong>de</strong> ser apontado como <strong>um</strong> dos culpados por propagar<br />
esse estilo, por ignorantes e mal informados, eu sempre achei<br />
engraçadas essas críticas oportunistas. Eu nunca escrevi <strong>um</strong>a<br />
letra sequer! Apenas emprestava o meu talento musical para<br />
fazer arranjos bem acabados que levavam o público a curtir as<br />
músicas nos bailes. Por que então eu era culpado? Culpado era<br />
quem escrevia as letras. Eu não podia me intrometer na obra<br />
intelectual dos outros. A minha fi losofi a sempre foi a <strong>de</strong> que <strong>um</strong><br />
bom produtor musical coloca a sua marca registrada nos trabalhos<br />
que faz, sem tirar a autenticida<strong>de</strong> do artista.<br />
Como o Álibi fazia muito sucesso, <strong>de</strong>spertava muita inveja. Muitos<br />
criticavam a onda gangsta iniciada no DF por ela ter entrado<br />
com muita força em São Paulo, tirando o espaço dos grupos<br />
paulistas. Engraçado era que ninguém criticava os Racionais<br />
que, a meu ver, era tão gangsta quanto o Álibi e outros grupos<br />
342
Discovery<br />
343<br />
que adotavam esse estilo musical no DF. A diferença estava<br />
apenas nas instr<strong>um</strong>entais e na forma <strong>de</strong> abordar os temas.<br />
Posso dizer que eu sempre gostei da sonorida<strong>de</strong> gangsta –<br />
tanto que a minha marca registrada nos anos em que produzi<br />
quase todos os títulos da Discovery, era usar muito os timbres<br />
moogs – mas nunca das letras. Lá fora quem fazia esse estilo<br />
abusava dos timbres agudos do moog, misturados com samples<br />
retocados com baixos e guitarras. No Brasil, ele era misturado<br />
com o bass, <strong>um</strong>a vertente do miami bass, com batidas bem mais<br />
lentas, que estava estourado no DF. Era a onda do Álibi, seguida<br />
por vários grupos: <strong>um</strong> som tipicamente inspirado no gangsta <strong>de</strong><br />
Los Angeles misturado com o bass <strong>de</strong> Miami.<br />
Nessa época, crescia muito a mania dos carros com som potente<br />
e o bass era o ritmo perfeito para tocar bem alto nas estradas.<br />
Por isso, cresceram bastante as vendas <strong>de</strong> discos nesse estilo<br />
lá na Planet.<br />
O meu gran<strong>de</strong> conhecimento no uso dos timbres moog fazia a<br />
diferença em relação aos outros produtores, que tentavam usálos<br />
em suas produções e não conseguiam. Durante os anos que<br />
eu produzi para a Discovery, usei muito essa técnica.<br />
Nessa época, o CD ganhou força no mercado fonográfi co brasileiro,<br />
a ponto <strong>de</strong> infl uenciar todo o mercado un<strong>de</strong>rground do<br />
rap nacional. A maioria das gravadoras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes lançava<br />
os títulos em vinil e CD. A diferença era que o CD sempre tinha<br />
mais músicas. A estabilida<strong>de</strong> monetária do país, que não sofria<br />
mais com a infl ação, fez com que muitos conseguissem comprar<br />
aparelhos que tocavam CDs, que fi cavam cada vez mais<br />
baratos. Conseqüentemente, o mercado in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do rap<br />
nacional começou a trocar gradativamente os discos <strong>de</strong> vinil<br />
por CDs. Mas, graças a Deus, o vinil resiste até os dias atuais.<br />
Com a mudança, a masterização, que já era praticada há anos<br />
pela indústria fonográfi ca mundial, nascia no Brasil.
344 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
O único cara que masterizava em Brasília era o Andy Costa,<br />
dono do Zen Estúdio, on<strong>de</strong> eu gravava e mixava todas as minhas<br />
produções. Confesso que cada sessão <strong>de</strong> masterização era,<br />
para mim, <strong>um</strong> aprendizado. Eu sempre fui muito observador,<br />
principalmente quando se trata <strong>de</strong> novas tecnologias. O Andy já<br />
usava <strong>um</strong> Macintosh e <strong>um</strong> software chamado Sound Designer.<br />
Eu fi cava fascinado com a maneira <strong>de</strong> o Andy editar, masterizar<br />
e organizar todo o CD. Ainda era <strong>um</strong> processo <strong>de</strong>morado, porque<br />
se mixava em DAT e <strong>de</strong>pois se passava tudo do DAT para o computador.<br />
Eu observava cada <strong>de</strong>talhe do que ele fazia. Aprendi<br />
muita coisa com o Andy, e quando ia para São Paulo conversava<br />
muito com o Van<strong>de</strong>r também. Ao mesmo tempo fui comprando<br />
revistas especializadas e comecei a ler muito sobre o assunto.<br />
Mesmo sem ter <strong>um</strong> computador ainda, eu já sonhava em masterizar<br />
os meus próprios trabalhos.<br />
Acho que a junção <strong>de</strong> vários fatores, como as idéias do Jamaika,<br />
as técnicas <strong>de</strong> produção que eu tinha, o nosso conhecimento<br />
musical, o investimento pessoal para melhorar cada vez mais,<br />
as horas <strong>de</strong> estúdio à vonta<strong>de</strong> para experimentar, a falta <strong>de</strong><br />
interferência do dono da gravadora em nosso trabalho, e a intuição<br />
para encontrar talentos que pu<strong>de</strong>ssem vir a ser gran<strong>de</strong>s<br />
nomes do rap nacional, foi fundamental para que a Discovery<br />
estourasse em todo o Brasil.
346<br />
CAPÍTULO 43:
Eu adorava aquele casal<br />
Pareciam feitos <strong>um</strong> para o outro<br />
Trabalhavam, curtiam, se divertiam<br />
Aon<strong>de</strong> <strong>um</strong> ia, o outro ia<br />
Eram a minha família<br />
Eles gostavam <strong>de</strong> mim e eu <strong>de</strong>les também<br />
Até que a gente se dava bem.<br />
Então, <strong>um</strong> dia o sossego do nosso lar foi quebrado<br />
Somente <strong>um</strong> telegrama, meu pai <strong>de</strong>sempregado<br />
Ele fi cou possesso, completamente irado<br />
Depois <strong>de</strong> <strong>um</strong> ano, emprego <strong>de</strong> vigia, o único que tinha arranjado<br />
Minha mãe tentava acalmá-lo e ele até bateu nela<br />
Jogava tudo, quebrava talheres, pratos, panelas<br />
Sobrou até pro cachorro<br />
Minha mãe pedia socorro<br />
Ele <strong>de</strong>rrubou a porta e foi se embriagar<br />
Graças a Deus, ele saiu, pensei que o sofrimento não ia acabar.<br />
Nos dias que se passavam as coisas só pioravam<br />
Minha mãe lavava, passava, e o dinheiro nunca dava<br />
Eu sem po<strong>de</strong>r fazer nada, só observava<br />
Meu pai saía bem cedo, emprego nunca arranjava<br />
Lavava carro, engraxava, mas a miséria a<strong>um</strong>entava<br />
Tinha aluguel, tinha água, conta <strong>de</strong> luz e comida<br />
Um dia eu ouvi falar em tirar a própria vida<br />
Eles tentavam, é verda<strong>de</strong>, disso sou testemunha<br />
Mas o que ganhavam não dava pra porra nenh<strong>um</strong>a<br />
O cachorro morreu <strong>de</strong> fome<br />
348
Diário <strong>de</strong> <strong>um</strong> feto<br />
E a TV foi vendida<br />
Pra nos garantir mais <strong>um</strong> mês <strong>de</strong> comida<br />
Mesmo com toda essa crise, eles não <strong>de</strong>sistiam<br />
Por muitas vezes, <strong>de</strong> fome eles nem dormiam<br />
Meu pai era meu herói, aquilo sim que era homem<br />
Ficou dias sem comer<br />
Pra que eu não passasse fome<br />
Até que <strong>um</strong> dia o <strong>de</strong>sespero enlouqueceu minha mãe<br />
Disse não querer pra mim aquela vida sofrida<br />
Comida já não havia, agora comíamos lixo<br />
Falou que <strong>um</strong> fi lho seu jamais seria <strong>um</strong> bicho<br />
Abriu as pernas com <strong>um</strong>a haste <strong>de</strong> metal<br />
Me furou, machucou, torceu, dilacerou, estocou<br />
A MINHA MÃE ME MATOU!!!<br />
349<br />
Começo esse capítulo com “Diário <strong>de</strong> <strong>um</strong> feto”, para mim, <strong>um</strong>a das<br />
letras mais impressionantes que X já escreveu.<br />
Com essa faixa-título, o segundo disco do Câmbio Negro – já sem<br />
o Jamaika – também foi feito no meu quarto, no apartamento<br />
da minha mãe. Só que o Bell, guitarrista da banda, instalou <strong>um</strong>a<br />
pedaleira “fudida”, on<strong>de</strong> a gente sampleava com várias timbragens<br />
diferentes as guitarras <strong>de</strong> todas as músicas e as seqüenciava<br />
via MIDI.<br />
A fi losofi a do trabalho era gravar todas as guitarras e baixos<br />
tocados pela banda e programar todas as baterias eletronicamente,<br />
mas buscando, na maioria das músicas, timbres acústicos.<br />
Eu convenci o X <strong>de</strong> que <strong>de</strong>sse jeito seria melhor do que<br />
gravar a bateria do Ritchie, porque ele não tinha experiência <strong>de</strong><br />
estúdio. Durante a produção, alg<strong>um</strong>as vezes, X manifestou o seu<br />
<strong>de</strong>sgosto com o ex-companheiro <strong>de</strong> grupo.<br />
— Pô, Gordo, você é <strong>um</strong> traidor, velho!<br />
— Fala isso não, X! Estou c<strong>um</strong>prindo contrato, e não tenho nada<br />
a ver com essa porra <strong>de</strong> vocês dois.<br />
— Você tá é fi cando em cima do muro, Gordo!
350 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Tem nada a ver, X! Se eu estivesse em cima do muro, eu não<br />
colocaria aquela mensagem na contracapa do disco do Álibi,<br />
dizendo que eu não tenho nada a ver com aquelas paradas lá.<br />
— Tá bom, Raffa! Vamos trabalhar.<br />
— Po<strong>de</strong> crer, X! A gente ganha mais, cara. Você tem que acreditar<br />
que eu continuo seu amigo, cara, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> estar<br />
trabalhando com o Jamaika e o Rei.<br />
N<strong>um</strong>a das músicas <strong>de</strong>sse disco, “A volta”, X mostrava que, apesar<br />
da separação, ainda estava vivo:<br />
Sou negão careca da Ceilândia mermo, e daí?<br />
Não botaram fé, eu tô <strong>de</strong> volta, tô aqui<br />
mostrando meu trabalho, minha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar.<br />
Sou o presente <strong>de</strong> grego <strong>de</strong> quem tentou me parar.<br />
Muitos tentaram me parar, fecharam várias portas,<br />
me julgaram incompetente, <strong>um</strong> perfeito idiota.<br />
Idiota jamais, incompetente ao contrário,<br />
já não caio mais no conto do vigário,<br />
quem conhece a peça sabe que não sou otário.<br />
Pensaram que me jogaram, mas eu ainda estou vivo.<br />
Conto nos <strong>de</strong>dos das mãos os verda<strong>de</strong>iros amigos!<br />
Um dos cantores <strong>de</strong> blues mais famosos <strong>de</strong> Brasília, Adriano<br />
Faquini, emprestou sua voz para o refrão <strong>de</strong> “Ceilândia revanche<br />
do gueto”:<br />
Skatistas e bikers voam no radical,<br />
Curtem Gog, Racionais, Thaí<strong>de</strong>, Câmbio Negro, normal,<br />
Cirurgia Moral, Morte Cerebral,<br />
Reverso da moeda, revanche do gueto,<br />
Amarelos, brancos, negros ou pretos,<br />
Lado sujo da história, porco na engorda, síndrome <strong>de</strong> Caim,<br />
Moleque <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> te boda, 1<br />
Ceilândia, você é foda”!<br />
1 Te bodar signifi ca te matar.
Diário <strong>de</strong> <strong>um</strong> feto<br />
351<br />
A música era <strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>ira reverência à cida<strong>de</strong>-satélite mais<br />
famosa entre aqueles que curtem o rap nacional.<br />
O lançamento <strong>de</strong> Diário <strong>de</strong> <strong>um</strong> feto aconteceu no fi nal da produção<br />
do disco Abutre, do Álibi. Nesse dia, <strong>de</strong>scobri alg<strong>um</strong>as gravações<br />
feitas pelas minhas costas no estúdio, que o Jamaika só mostrou<br />
na masterização. Fiquei indignado, porque eram imitações<br />
grotescas do X. Corri para a festa <strong>de</strong> lançamento do disco e não<br />
quis saber se eu estava sendo X-9 2 ou não, contei o ocorrido ao<br />
X. Para mim, era muito importante esclarecer que eu não sabia<br />
das gravações e que não compactuava com nada daquilo. Graças<br />
a Deus, o X enten<strong>de</strong>u. Horas antes <strong>de</strong> a festa começar, eu ainda<br />
havia ajudado, alugando <strong>um</strong> amplifi cador Marshall para o Bell<br />
para melhorar o show.<br />
Jamaika e eu discutimos <strong>de</strong>pois sobre o assunto. Não queria<br />
abalar a minha amiza<strong>de</strong> por ele, mas <strong>de</strong>ixar bem claro que<br />
aquilo não era certo. Não adiantou nada. Jamaika começava ali<br />
<strong>um</strong>a série <strong>de</strong> músicas, n<strong>um</strong>a vingança particular contra aqueles<br />
que ele julgava que o tinham traído.<br />
No fi nal <strong>de</strong> 1995, X se mudou para São Paulo para investir em sua<br />
carreira artística. Lá conseguiu <strong>um</strong> emprego como locutor <strong>de</strong> rádio<br />
e tocou a vida para frente, afastando-se totalmente do rap do DF.<br />
2 Delator, <strong>de</strong>do-duro.
352<br />
CAPÍTULO 44:
O disco seguinte que produzi com o Jamaika foi o segundo do<br />
Cirurgia Moral. O título é o mesmo <strong>de</strong> sua música principal: A<br />
minha parte eu faço.<br />
Nesse trabalho temos bons exemplos <strong>de</strong> como o gangsta rap atingiu<br />
o seu ápice. Um claro exemplo disso é o refrão da faixa-título:<br />
Vai, vai, mata ele, cara,<br />
tem que ser agora,<br />
pega logo essa arma, cara,<br />
vê se não <strong>de</strong>mora<br />
pra <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r minha área,<br />
meu trono, minha esquina.<br />
Quem cantou o refrão foi o Rivas, e a resposta, que é cantada <strong>de</strong>pois,<br />
o próprio Rei.<br />
O que posso escrever? Só posso dizer h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>mente que ter<br />
participado da produção <strong>de</strong>ssa música foi <strong>um</strong> dos maiores erros<br />
– senão o maior – <strong>de</strong> toda a minha vida pessoal e profi ssional.<br />
Na verda<strong>de</strong>, se você perguntar hoje em dia a todos que participaram<br />
do processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong>ssa faixa, eles vão respon<strong>de</strong>r a<br />
mesma coisa. Eu me arrependo muito <strong>de</strong> ter me envolvido n<strong>um</strong><br />
trabalho que, explicitamente, incentiva a violência. Na época,<br />
tudo no estúdio era festa e a conseqüência que isso nos trouxe<br />
não tem preço. Aqueles que eram contra o rap do DF e generalizavam<br />
as coisas tiveram <strong>um</strong> prato cheio para dispararem seus<br />
354
A minha parte eu faço<br />
355<br />
arsenais contra a gente. Erramos quando não podíamos errar.<br />
Afi nal, todos ali já tinham <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> experiência musical.<br />
Nesse disco está incluída ainda a música “Falsa malandragem”,<br />
cujo alvo principal era novamente o Gog, e <strong>de</strong> quebra o X. Jamaika<br />
acreditava fi elmente que o Gog era responsável pela separação<br />
<strong>de</strong>le e do X.<br />
A melhor música <strong>de</strong>sse trabalho, na minha opinião, se chama<br />
“Gospel gangstar”.<br />
Se o Senhor é o meu pastor e nada me faltará,<br />
Dê-me a droga, meu Deus, para que hoje eu possa usar,<br />
Não <strong>de</strong>ixe que falte por dia em minha cabeça <strong>um</strong>a viagem,<br />
Às vezes, eu vejo irmãos, não sei se é <strong>de</strong> rocha ou <strong>um</strong>a miragem,<br />
Necessito por isso suplico, não me <strong>de</strong>ixe faltar<br />
Cocaína, <strong>um</strong>a bailarina, seus pés pesados em minha cabeça,<br />
Não <strong>de</strong>ixe que eu me esqueça <strong>de</strong> <strong>de</strong>pois te pagar.<br />
Quando se ouve o primeiro trecho da música parece que ela<br />
incentiva mesmo o uso das drogas. Em outro trecho da letra,<br />
mais para frente, nota-se como é justamente o contrário:<br />
Se o Senhor é o meu pastor e nada me faltará,<br />
Não <strong>de</strong>ixe que vendam mais drogas, meu Deus, ao irmãos,<br />
pra quem não fi car,<br />
A viagem que eu falo agora é <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, só leva pilhagem,<br />
Se não acreditam em mim olha a <strong>de</strong>sgraça como po<strong>de</strong>m,<br />
Necessito esclarecer pra que fi que bem claro em sua idéia.<br />
Para fi nalizar, a letra mostra como <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morto o viciado se<br />
perguntava:<br />
Se o Senhor é o meu pastor e nada me faltará,<br />
Por que me <strong>de</strong>ixou cair na cilada? Ah, <strong>de</strong>ixa pra lá!<br />
Mas <strong>de</strong>pois, como em todo bom som gangsta, ele relata em<br />
primeira pessoa, já no inferno, como não resistiu à tentação e<br />
aprontou até morrer nas mãos da polícia:<br />
Como eu queria estar por aí curtindo Racionais,<br />
Em casa, rolando <strong>um</strong> som, f<strong>um</strong>ando bagulho, era <strong>de</strong>mais,
356 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Que sauda<strong>de</strong> que eu tenho da minha quebrada,<br />
Dos meus amigos do bar,<br />
O traçado rolava na alta e a gente saía pra ripar,<br />
Mete o ferro na idéia, 1 puxa o gancho, 2 piso a peita, 3<br />
Tô trepado, não entre na minha frente, não se meta,<br />
Muito safado já <strong>de</strong>itei, nos “homi” nunca encostei,<br />
Mas se for preciso, “pei”!<br />
Nessa que eu fui drogado até a alma,<br />
Botei muita fé em mim e perdi a calma,<br />
Na hora “dos ganho”, os “homi” pintaram <strong>um</strong>a escopeta,<br />
Desse dia pra cá <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> curtir na sexta.<br />
Na maioria das vezes, as músicas no estilo gangsta que tinham<br />
<strong>um</strong>a mensagem consciente eram mal compreendidas. Se você<br />
não escutasse essa letra até o fi m e não conseguisse enten<strong>de</strong>r<br />
que ela mostrava que quem entra para essa vida tem <strong>um</strong> triste<br />
fi m, naturalmente pensaria que a música incentivava o uso <strong>de</strong><br />
drogas. A meu ver, o verda<strong>de</strong>iro rap <strong>de</strong> periferia estava se consolidando.<br />
“Gospel gangstar” tinha atitu<strong>de</strong> na instr<strong>um</strong>ental e<br />
nas letras, porque relatava através da linguagem das ruas e <strong>de</strong><br />
histórias, as conseqüências sofridas por quem se metia com<br />
alg<strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> crime e droga.<br />
O rap mais politizado perdia totalmente espaço para o rap periférico.<br />
E justamente no DF, on<strong>de</strong> todos achavam que o rap com<br />
tendência política sempre seria o mais importante. Estavam<br />
muito enganados.<br />
1 Apontar <strong>um</strong>a arma na cabeça.<br />
2 Apertar o gatilho.<br />
3 Peita signifi ca camiseta ou jaqueta. Pisar a peita, no caso, quer dizer, roubar os<br />
pertences (camista ou jaqueta).
357
358<br />
CAPÍTULO 45:
O ano era 1996.<br />
Falecia <strong>um</strong> dos maiores nomes da música brasileira: Renato Russo,<br />
da banda Legião Urbana. “O rock e o rap <strong>de</strong> Brasília eram dois<br />
mundos diferentes, mas as músicas <strong>de</strong>les eram boas”, disse o<br />
DJ Jamaika sobre Renato, n<strong>um</strong>a entrevista.<br />
No Brasil inteiro, o estilo Ítalo House – que era <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong><br />
house melódico, em que os riffs tinham sempre fortes timbres<br />
analógicos – tomava conta das pistas e das rádios.<br />
Eu adquiri <strong>um</strong> teclado analógico pequeno Bass Station, que nem<br />
é fabricado mais. Sua característica era reproduzir timbres <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento antigo <strong>de</strong> 1982 da Roland, o TB 303. Mas se podia<br />
criar muito mais do que timbres <strong>de</strong> baixos. Bastava ter <strong>um</strong> pouco<br />
<strong>de</strong> conhecimento no uso das freqüências.<br />
O Elívio comprou o primeiro gravador digital <strong>de</strong> HD que eu vi na<br />
minha vida. Era <strong>um</strong> DR4 Akai. Fiquei impressionado com a qualida<strong>de</strong><br />
sonora das gravações que ele fazia.<br />
— Elívio, eu preciso <strong>de</strong> <strong>um</strong> repertório <strong>de</strong> dance legal, que não<br />
tenha sido lançado ainda no Brasil e que seja <strong>de</strong> fácil liberação<br />
dos direitos autorais – pedi a ele.<br />
— Tem muita coisa un<strong>de</strong>rground legal, Raffa. Mas por quê?<br />
– perguntou.<br />
360
Funk Melody Dance Remixes<br />
361<br />
— É que o Donizete tem contato com <strong>um</strong>a fi rma americana<br />
que libera os direitos autorais <strong>de</strong> músicas para serem lançadas<br />
no Brasil.<br />
— Ok, Raffa, mas qual é a idéia?<br />
— Você me passa o repertório, eu consigo a liberação e a prensagem<br />
<strong>de</strong> mil cópias e seu único trabalho será estourar essas<br />
músicas aqui no DF, através do seu programa, e na noite, on<strong>de</strong><br />
você tocar. Aí, ven<strong>de</strong>mos os CDs na loja! – <strong>de</strong>talhei – Então, o<br />
que você acha?<br />
— Tá fechado! Me dá <strong>um</strong>a semana pra montar o repertório! –<br />
respon<strong>de</strong>u Elívio.<br />
— Legal!<br />
Depois, eu entrei em contato com o Donizete que pegou o CD<br />
master pronto com o repertório, e mandou prensar na Argentina.<br />
Passado alg<strong>um</strong> tempo, ele me mostrou a liberação das músicas<br />
que pedimos com carimbo e tudo. Não sei como ele conseguia<br />
isso. Só sei que o CD chegou e, quando fomos ven<strong>de</strong>r as cópias,<br />
o Elívio já tinha estourado todas as músicas. O Donizete me <strong>de</strong>u<br />
essas cópias porque ainda me <strong>de</strong>via <strong>um</strong>a grana <strong>de</strong> produção.<br />
Elívio conseguiu ven<strong>de</strong>r os mil CDs em <strong>um</strong>a semana. Foi incrível!<br />
De pagamento, peguei <strong>um</strong>a parte em dinheiro e a outra eu<br />
quis no gravador DR4, porque sabia que o equipamento ajudaria<br />
muito nas minhas produções.<br />
Sincronizei o DR4 com o meu seqüenciador Alesis MMT8, via<br />
MIDI, e comecei a gravar voz para ver se o sync era perfeito.<br />
Funcionava muito bem. Ele tinha <strong>um</strong>a edição perfeita também.<br />
Na Planet, os CDs e discos que mais vendiam no momento eram<br />
<strong>de</strong> freestyle, movimento que no Rio <strong>de</strong> Janeiro começava a ser<br />
chamado <strong>de</strong> funk melody. Em Brasília, o freestyle sempre teve<br />
força. Peguei na loja <strong>um</strong> CD single do grupo Netzwerk com a faixa<br />
“Memories”, no mais puro estilo Ítalo House, e gravei a versão a<br />
capela, ou seja, só a voz para <strong>de</strong>ntro do gravador digital. Depois
362 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
sincronizei a voz com <strong>um</strong>a batida que criei e acabei fazendo <strong>um</strong><br />
remix da música, em versão funk melody. Na verda<strong>de</strong>, tudo o<br />
que fi z foi na base da brinca<strong>de</strong>ira, só para testar como todos<br />
os aparelhos que eu tinha funcionavam sincronizados. Fiquei<br />
<strong>um</strong> dia inteiro nisso. Quando chegou à noite, liguei para o Nino e<br />
para o Ariel e pedi para eles irem lá em casa.<br />
— Galera, eu tenho algo pra mostrar pra vocês. Estão preparados?<br />
– perguntei, n<strong>um</strong> clima <strong>de</strong> suspense.<br />
— Mostra logo, Raffa! – exclamou Ariel.<br />
— O que é isso, Raffa? – perguntou Nino, apontando para o DR4.<br />
— É <strong>um</strong> gravador digital, Nino.<br />
— Que legal, cara! – disse Nino.<br />
— Então lá vai! – anunciei o remix.<br />
A versão tocou na íntegra e os dois fi caram abismados!<br />
— Raffa, do caralho, velho! Como você fez isso? – perguntou Ariel.<br />
— Peguei a capela da música e fi z <strong>um</strong> remix! – expliquei.<br />
— Cara, isso tá muito bom! Parabéns! – disse Ariel.<br />
— Mas por que você fez isso? – perguntou Nino.<br />
— Só <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, pra testar! – respondi.<br />
— Cara, eu tô com <strong>um</strong>a idéia louca – empolgou-se Ariel. – Vamos<br />
mostrar isso pro Cristóvam, da gravadora Spotlight.<br />
— O Cristóvam que já foi locutor da Transamérica? – perguntei.<br />
— Sim, Raffa. Ele tá em Brasília, cara! Vamos mostrar pra ele –<br />
respon<strong>de</strong>u Ariel.<br />
— Raffa, ele é quem lança a maioria dos Ítalo House no Brasil! –<br />
acrescentou Nino.<br />
— Vamos propor <strong>um</strong> disco <strong>de</strong> remixes em versão funk melody!<br />
E aí? – sugeriu Ariel.
Funk Melody Dance Remixes<br />
363<br />
— Não sei, não, Ariel! A música tem que ser mostrada em estúdio,<br />
com qualida<strong>de</strong> – respondi.<br />
— Gordo, liga pro Andy, do Zen, e pe<strong>de</strong> só <strong>um</strong> tempinho pra você<br />
mostrar o trampo pra ele – sugeriu Nino.<br />
— Eu ligo pro Cristóvam, Raffa, e você pro Andy – propôs Ariel.<br />
— Combinado, então! – exclamei.<br />
Mais <strong>um</strong>a vez, <strong>um</strong>a brinca<strong>de</strong>ira se transformou em algo muito<br />
sério. Conseguimos marcar o encontro e o Cristóvam foi para o<br />
estúdio. Ele escutou a versão remix e perguntou:<br />
— Raffa, você consegue entregar <strong>um</strong> disco inteiro <strong>de</strong> <strong>de</strong>z faixas<br />
em 15 dias pra mim?<br />
— Você consegue as capelas do repertório que escolhermos? –<br />
perguntei.<br />
— Claro! Mas tem que ser artistas que são distribuídos pela<br />
Spotlight – disse Cristóvam, cuja gravadora fi cava no Rio.<br />
— Ok! Então vamos fazer o CD? – indaguei.<br />
— Você ainda tem dúvidas, Raffa? Isso vai estourar, cara! –<br />
exclamou ele. – Ficando pronto o trabalho, você vai pro Rio e a<br />
gente assina contrato. Quanto vai ser o cachê?<br />
— Cinco mil reais, Cristóvam! Vamos mixar e masterizar aqui no<br />
Zen pra ter <strong>um</strong>a “puta” qualida<strong>de</strong>! – disse eu.<br />
— Fechado!<br />
Saí do encontro muito feliz e fui correndo para a loja contar a<br />
novida<strong>de</strong> para o Nino e o Ariel.<br />
— A equipe <strong>de</strong> produção está novamente ativa! – gritou Ariel.<br />
Tínhamos 15 dias para fazer os nove remixes. Isso quer dizer:<br />
eu tinha que sincronizar a capela, <strong>de</strong>pois tirar o arranjo original<br />
da música, transformar esse arranjo em funk melody e, ainda<br />
por cima, encaixar alg<strong>um</strong> “gancho” que combinasse com a
364 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
música e fi zesse lembrar outra. Além disso, procurar timbres<br />
que fossem atuais e tivessem a pegada profi ssional e aspectos<br />
gringos. Todos os dias a produção começava cedo, às oito horas<br />
da manhã, e durava o dia inteiro. À noite, a gente <strong>de</strong>smontava<br />
todo o equipamento e levava para o estúdio para passar cada<br />
timbre, canal por canal, separado. Aí a gente voltava para casa<br />
e na manhã seguinte, antes <strong>de</strong> começar a produção, eu tinha<br />
que montar todo o equipamento <strong>de</strong> novo. Essa rotina durou <strong>de</strong>z<br />
dias. Os outros cinco usei para mixar as músicas no estúdio e<br />
entregar para o Andy masterizar.<br />
Durante a produção, o Nino resolveu levar alguns remixes prontos<br />
para a loja para ouvir e mostrar a alg<strong>um</strong>as pessoas. O resultado<br />
foi impressionante.<br />
— Raffa, a galera tá achando que a gente não tá fazendo esses<br />
remixes, não! Eles tão falando que a gente tá pegando essas<br />
bases <strong>de</strong> CDs gringos que só nós temos – disse.<br />
— Tá louco, Nino! O trabalhão que a gente tá tendo! – respondi,<br />
indignado.<br />
Ariel então sugeriu que a gente fi lmasse as produções e as sessões<br />
<strong>de</strong> estúdio. Filmamos, principalmente, momentos em que<br />
o Nino pegava <strong>um</strong>a música que tinha <strong>um</strong> timbre <strong>de</strong> baixo que<br />
ele queria no remix e eu começava a mexer nas freqüências da<br />
Bass Station até conseguir <strong>um</strong> timbre igual e usar na música.<br />
A opinião dos invejosos mudou rapidamente quando o Ariel e o<br />
Nino colocaram as fi lmagens na Planet para todos apreciarem.<br />
Uma sessão em especial, fi lmada no Zen, foi muito engraçada.<br />
A energia do estúdio caiu e fi camos fi lmando, durante horas,<br />
nós mesmos tentando <strong>de</strong>scobrir o que estava acontecendo.<br />
Quando tudo terminou, eu e o Ariel viajamos para o Rio para assinar<br />
o contrato. O disco era focado em mim – porque a idéia foi<br />
minha e porque eu já tinha nome no meio –, apesar <strong>de</strong> ter sido<br />
<strong>um</strong>a equipe <strong>de</strong> produção a realizá-lo. Mas essa <strong>de</strong>cisão foi <strong>de</strong><br />
todos. Fui até fazer sessão <strong>de</strong> fotos para a contracapa. Depois <strong>de</strong>
Funk Melody Dance Remixes<br />
365<br />
receber a grana da produção, paguei as partes do Ariel e do Nino.<br />
A minha, resolvi investir em mais equipamentos. Comprei <strong>um</strong><br />
módulo <strong>de</strong> teclado da Roland, o XV 2080, e <strong>um</strong> sampler <strong>de</strong>cente,<br />
com bastante memória e que já funcionava com mouse e monitor,<br />
que era o S-760 da Roland.<br />
O projeto foi batizado <strong>de</strong> Funk melody dance remixes e saiu em<br />
vinil, CD e n<strong>um</strong> promocional só para DJs. Viajei <strong>um</strong>as duas vezes<br />
para o Rio pela gravadora para participar <strong>de</strong> programas <strong>de</strong><br />
televisão, como o da Furacão 2000. O cantor nova-iorquino Tony<br />
Garcia, que estava estourado com várias músicas nesse estilo,<br />
estava fazendo divulgação, pela Spotlight, no Rio também e<br />
fomos para o programa da Furacão na mesma van. Quando ele<br />
ouviu a minha versão remix <strong>de</strong> “Memories” tocando n<strong>um</strong>a rádio,<br />
elogiou muito o trabalho. Ela fi cou em primeiro lugar do programa<br />
7 mais da rádio Jovem Pan no Brasil inteiro.<br />
Na coluna sobre hip-hop que o Fábio Macari escrevia mensalmente<br />
para a DJ Sound, ele indiretamente fez <strong>um</strong>a crítica a mim,<br />
apesar <strong>de</strong> não citar nomes, dizendo que “existiam alguns produtores<br />
que estavam usando o seu talento para coisas banais”.<br />
Por que o preconceito? Por que eu não po<strong>de</strong>ria fazer outro tipo<br />
<strong>de</strong> trabalho profi ssionalmente? Por causa disso eu estaria<br />
traindo o movimento hip-hop?<br />
Só se for na visão daqueles que são hipócritas, arrogantes e<br />
têm a mente pequena. Acredito que o hip-hop <strong>de</strong>ve pregar justamente<br />
o não-preconceito a qualquer manifestação cultural e<br />
social. Mas isso não me afetou. Eu tinha confi ança no que estava<br />
fazendo e investi o dinheiro que ganhei nessa produção em mais<br />
equipamentos, que resultaram em mais qualida<strong>de</strong> nas minhas<br />
produções <strong>de</strong> hip-hop nos anos seguintes.<br />
Esse foi o meu primeiro disco <strong>de</strong> ouro.
366<br />
CAPÍTULO 46:
Um dos lugares on<strong>de</strong> o hip-hop mais cresceu no fi nal dos anos<br />
90 foi na cida<strong>de</strong>-satélite <strong>de</strong> Planaltina. O Gog lançou, em 1996,<br />
o álb<strong>um</strong> Prepare-se, cuja faixa-título estourou no Brasil inteiro.<br />
O vi<strong>de</strong>oclipe <strong>de</strong>ssa música era muito bom, assim como a letra:<br />
É, o povo está sempre distante das discussões mais importantes.<br />
Essa po<strong>de</strong>ria ser <strong>um</strong>a das conversas que sempre rolam por aí:<br />
Doutor! Doutor! Um minutinho <strong>de</strong> sua atenção! Eu po<strong>de</strong>ria falar<br />
com o senhor?<br />
Oh, sinto muito, tô muito ocupado agora. Viu, tô indo pro Congresso.<br />
Não dá, não!<br />
Tô enten<strong>de</strong>ndo, papo com o povo você não quer, né, meu irmão?<br />
Gog, vamos logo com isso! Apaga logo esse bacana!<br />
Cabeça fria, Japão. Essa luta com atitu<strong>de</strong> a gente ganha!<br />
Mais <strong>um</strong>a vez, as letras do Gog tinham <strong>um</strong>a ligação muito forte<br />
com os r<strong>um</strong>os da política do país. O Japão e o Mano Mix já faziam<br />
parte do grupo, e no próximo disco o Dino Black também estaria<br />
nesse time.<br />
O Gog praticamente não fi cava mais em Brasília e divulgava o seu<br />
trabalho muito em São Paulo, além do Nor<strong>de</strong>ste. Então, resolveu<br />
abrir <strong>um</strong> selo próprio, chamado Só Balanço. O Código Penal, <strong>de</strong><br />
Planaltina, que já gravara <strong>um</strong>a faixa no disco solo do DJ Leandronik,<br />
DJ do Gueto, estava crescendo muito. Gog procurou o grupo<br />
e ofereceu <strong>um</strong> contrato para eles. Na época, o Código Penal era<br />
formado pelo DJ Dourado, Tales e Osmair. Os três me procuraram<br />
368
Código Penal<br />
369<br />
querendo gravar comigo, e não com outro produtor, como o Gog<br />
tinha sugerido. Conversei com o Nino e o Ariel para que os ajudássemos,<br />
produzindo o grupo e conversando com o Genivaldo, da<br />
Discovery, para lançar o trabalho. Seria tipo meio a meio. Foi assim<br />
que eles escolheram não assinar contrato com a Só Balanço porque<br />
acreditavam que a nossa produção faria a diferença.<br />
Nino e Ariel já tinham separado vários samples que iríamos<br />
utilizar no novo trabalho do Gog, porque achávamos que antes<br />
<strong>de</strong> lançar o Prepare-se, ele nos procuraria para fazer alg<strong>um</strong>a<br />
produção, mesmo <strong>de</strong>pois do infeliz <strong>de</strong>sfecho da produção do<br />
seu disco anterior, Dia-a-dia da periferia. Acabamos usando as<br />
idéias no disco do Código, o Vivemos como o diabo gosta – para<br />
mim, <strong>um</strong> dos melhores trabalhos que realizamos. O Ralph, do<br />
grupo <strong>de</strong> rock Os Cabelo Duro tocou baixo na música “Mente<br />
criminal”. Ariel tocou as guitarras e eu os moogs e rho<strong>de</strong>s.<br />
A cantora Paula Gabi, <strong>de</strong> Sobradinho, que estava começando a<br />
fazer trabalhos comigo fez os backing vocals da versão remix <strong>de</strong><br />
“Mente criminal”. A gente lançou <strong>um</strong> vinil single antes <strong>de</strong> o disco<br />
sair com várias versões para os DJs. Estávamos convencidos <strong>de</strong><br />
que essa era a fórmula certa <strong>de</strong> fazer rap: misturar o sampler<br />
com instr<strong>um</strong>entos acústicos, tocados por músicos, e adicionar<br />
batida eletrônica, com alg<strong>um</strong> loop sujando-as por baixo.<br />
No estúdio resolvemos, na última hora, colocar <strong>um</strong> voco<strong>de</strong>r 1 no<br />
refrão da versão original <strong>de</strong> “Mente criminal”. Quem fez esses<br />
vocais foi o Kosmo que já trabalhara com a cantora Marina<br />
Lima. O Bruno Wambier, que hoje é tecladista da banda <strong>de</strong> reggae<br />
brasiliense Natiruts, tinha <strong>um</strong> voco<strong>de</strong>r original da Roland e<br />
fez a parte do teclado.<br />
Duas músicas <strong>de</strong>sse álb<strong>um</strong> tocaram muito: “A hora do po<strong>de</strong>roso”<br />
e a faixa-título. Todas as letras <strong>de</strong>sse trabalho são conscientes,<br />
1 Voco<strong>de</strong>r é <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento musical que, quando misturado à voz e a <strong>um</strong> timbre<br />
<strong>de</strong> teclado, resulta naquele efeito <strong>de</strong> voz <strong>de</strong> robô. Foi muito usado por grupos <strong>de</strong><br />
electro break nos anos 80. Um exemplo clássico do uso <strong>de</strong>sse dispositivo está em<br />
“Music Non Stop”, do Kraftwerk, lançada em 1996.
370 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
371<br />
mas n<strong>um</strong> estilo bem periférico: espécies <strong>de</strong> relatos sobre a<br />
periferia, mas com idéias conscientes. A partir daí, muitos grupos<br />
começaram a escrever <strong>de</strong>ssa forma. A música <strong>de</strong> que mais<br />
gosto do disco é “Revolução <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte”, por dois motivos.<br />
O primeiro é que a base é maravilhosa e, no disco, ainda vem<br />
com <strong>um</strong>a versão acústica. E o segundo é que o baterista foi o<br />
Pedro Mame<strong>de</strong> e o baixista o André Vasconcelos, <strong>um</strong> dos mais<br />
respeitados do DF. André já tocou com artistas consagrados<br />
como Djavan. Quando produzimos essa música fi camos gravando<br />
n<strong>um</strong>a fi ta cassete e tocamos vários climas em cima do<br />
loop principal. A gente fez <strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>ira jam session. Quando<br />
paramos, vimos que a fi ta tinha gravado quase vinte minutos.<br />
Ouvimos e fi camos impressionados com o que a gente criou. O<br />
Tales tem essa gravação até hoje. Depois que esse disco saiu,<br />
senti claramente que ele seria mais <strong>um</strong> clássico e que o grupo<br />
teria <strong>um</strong>a carreira vitoriosa. Em São Paulo, sem divulgação e<br />
sem pedido formal, “Mente criminal” tocou por conta própria.<br />
Como se diz: “Quando o trabalho é bem feito, original e verda<strong>de</strong>iro,<br />
o público se i<strong>de</strong>ntifi ca mesmo.”<br />
No ano <strong>de</strong> 1999, fi z duas músicas para o disco Brazil 1 – Fazendo<br />
justiça com as próprias mãos, pela Zâmbia (antiga Zimbabwe).<br />
Quem me procurou para fazer as produções foi o Celso Athay<strong>de</strong>.<br />
A primeira foi “A Fuga”, do Consciência H<strong>um</strong>ana. A segunda foi<br />
“Um simples José”, interpretada pelo Gog, que teve <strong>um</strong> sample<br />
do Run DMC da música “You talk too much”. A escolha do sample<br />
aconteceu porque o Escadinha 2 era do Rio e esse trabalho<br />
era direcionado aos cariocas, sendo melhor usar <strong>um</strong>a base que,<br />
nos anos 80, tocava muito nos bailes <strong>de</strong> lá.<br />
2 Chefe do tráfi co <strong>de</strong> drogas no morro do Juramento, Zona Norte do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Ficou famoso por ter fugido <strong>de</strong> helicóptero do presídio <strong>de</strong> Ilha Gran<strong>de</strong>, em 1985. É<br />
autor <strong>de</strong> 10 das 12 faixas do disco Brazil 1 – Fazendo justiça com as próprias mãos.
372<br />
CAPÍTULO 47:
Uma das principais características daqueles anos era que os<br />
trabalhos que fazíamos continuavam a evoluir. E que grupos<br />
como o Álibi e o Cirurgia Moral sabiam muito bem que entrar<br />
no mercado não era fácil, mas permanecer nele, isso sim, era o<br />
maior <strong>de</strong>safi o. Tanto que os discos que vieram <strong>de</strong>pois fi zeram<br />
ainda mais sucesso do que os primeiros. O segundo trabalho do<br />
Álibi se chama Pague pra entrar, reze pra sair. Outra vez a faixatítulo<br />
do disco já vinha com <strong>um</strong> refrão pesado, que relatava diretamente<br />
o cotidiano da violência gratuita na periferia:<br />
Pra eles tudo isso é com<strong>um</strong>,<br />
Dois malucos n<strong>um</strong> opala sete <strong>um</strong>,<br />
Mete os ferros, põe a onda pra ren<strong>de</strong>r,<br />
No porta-malas tem <strong>um</strong> corpo, po<strong>de</strong> crer.<br />
A segunda parte <strong>de</strong>ssa letra mostra que o estilo do gangsta rap<br />
continuava vivo como nunca:<br />
Dia e noite nunca estão satisfeitos,<br />
matar pessoas é o seu divertimento.<br />
As vagabundas que suavam em seu travesseiro,<br />
levaram várias estocadas no chuveiro.<br />
Pra que pagar, se eles po<strong>de</strong>m ter <strong>de</strong> graça,<br />
a violência em suas mentes nunca passa.<br />
Quem sabe <strong>um</strong> dia pagarão por isso mesmo...<br />
Aqui se faz, aqui se paga, use o termo...<br />
Vítimas, vítimas eles querem é mais...<br />
O sabor da morte nunca os satisfaz.<br />
374
Guind’art 121<br />
Boa noite, Bebel, vamos aí,<br />
pague pra entrar e reze pra sair.<br />
375<br />
O Rei, do Cirurgia Moral, vinha com letras mais contun<strong>de</strong>ntes<br />
como a <strong>de</strong> “Respeito a quem merece”, faixa-título do terceiro<br />
disco do grupo:<br />
Você chega do trabalho, fi ca observando o frevo,<br />
o que eu ganho n<strong>um</strong> dia, você leva o mês inteiro.<br />
É muito <strong>de</strong>sespero, quem não quer ter dinheiro.<br />
Você viaja, às vezes, pensa consigo mesmo,<br />
será que eu errei o meu caminho?<br />
A refl exão sobre os caminhos errados que alguns seguiam na<br />
periferia, mesmo quando tinham a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir o<br />
caminho correto, começava a fazer parte das letras dos grupos.<br />
O rap consciente se misturava com o rap gangsta. Em <strong>um</strong> outro<br />
trecho da música do Cirurgia, isso fi ca ainda mais evi<strong>de</strong>nte:<br />
Parece que foi ontem, golzinho e pingue-pongue,<br />
Descalço, pés no chão.<br />
Às vezes, até fome.<br />
Ninguém imaginava o futuro <strong>de</strong> cada <strong>um</strong>,<br />
era só brincar, os pivetes mais comuns,<br />
casa, futebol, sacanagem e escola.<br />
Hoje é roubo, homicídio, tráfi co <strong>de</strong> drogas.<br />
Não foi falta <strong>de</strong> educação, aviso dos pais,<br />
não faltou conselho, ensino ou caminho da paz.<br />
Isso aqui tá aqui <strong>de</strong>ntro, cada <strong>um</strong> tem seu tormento.<br />
O grupo Consciência X Atual, <strong>de</strong> Ribeirão Preto (interior <strong>de</strong> SP),<br />
que se inspirava no estilo do DF, é <strong>de</strong>scoberto e indicado pelo<br />
Jamaika para o Genivaldo, da Discovery. Eles também seguiam<br />
essa temática nas suas músicas. Estouraram tanto no DF que<br />
vinham fazer shows aqui <strong>de</strong> três em três meses. A infl uência<br />
positiva <strong>de</strong>ssa geração atraiu vários seguidores, como Versos<br />
ao Verbo, Tropa <strong>de</strong> Elite, Liberda<strong>de</strong> Condicional e Mente Consciente.<br />
Mas acredito que o principal seguidor do estilo gangsta,<br />
fi el até os dias atuais a esse estilo, é o grupo Guind’art 121.
376 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Produzi os primeiros três discos para o Daher, lí<strong>de</strong>r do grupo.<br />
No primeiro, tivemos <strong>um</strong> pequeno contratempo, porque recebi<br />
o cachê referente à produção musical do disco adiantado e, por<br />
causa <strong>de</strong> outros trabalhos, não comecei a produção na data<br />
prevista. O Daher acionou <strong>um</strong> advogado para me pressionar<br />
a iniciar o trabalho. Realmente não era necessário, porque eu<br />
jamais iria “dar <strong>um</strong>a volta” nele. Acabamos nos enten<strong>de</strong>ndo e<br />
começamos o trabalho. O Marquinhos da Ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Rodas, do<br />
Tropa <strong>de</strong> Elite, fazia parte da primeira formação do Guind’art<br />
121. Uma das músicas que ele fez para o disco, intitulado Ser<br />
ou não ser gangster, chamada “Emanuel”, estourou em todo DF,<br />
principalmente pela participação do Hérico, o irmão mais novo<br />
do Tales, do Código Penal. “Fissurados”, feita em cima <strong>de</strong> “Elevators<br />
(me & you)”, do Outkast, também tocou muito.<br />
O Guind’art 121 ainda produziria mais dois discos comigo nos<br />
três anos seguintes. O Livre Arbítrio que veio com “Deus é<br />
nosso pai” – a música tocou em rádios FM legalizadas, e não<br />
só em emissoras comunitárias – e, por último, o álb<strong>um</strong> Século<br />
XXI. Depois o Daher resolveu trabalhar com outro produtor<br />
musical, o Gibi, que começava a fazer trabalhos na Ceilândia.
377
378<br />
CAPÍTULO 48:
No ano <strong>de</strong> 1998, Gog estava para lançar o CD Das trevas à luz,<br />
pela Zâmbia e produzido pelo DJ Elívio Blower. O Gog tinha essa<br />
idéia fi xa <strong>de</strong> fazer os seus trabalhos sempre com <strong>um</strong> produtor<br />
diferente. O Elívio estava trabalhando com produção no mercado<br />
do hip-hop há pouco tempo. Como ele tinha <strong>um</strong> vasto conhecimento<br />
musical e equipamentos <strong>de</strong> última geração, não foi difícil<br />
conquistar rapidamente o espaço <strong>de</strong>le no DF. Elívio produziu<br />
praticamente quase todos os trabalhos lançados pelo selo do<br />
Bira, CD Box, que entrou no mundo do hip-hop organizando <strong>um</strong><br />
gran<strong>de</strong> concurso <strong>de</strong> rap no ano <strong>de</strong> 1999. Era o Abril Pro Rap.<br />
Na fase <strong>de</strong> mixagem, o Gog me procurou.<br />
— Gordo, gostaria muito que você mixasse o disco – disse.<br />
— Gog, só se for no Zen! Lá eu confi o! Você vai ter que passar<br />
todos os timbres sincronizados para os ADAT 1 – respondi.<br />
— Beleza, Gordo, você é quem manda.<br />
Man<strong>de</strong>i o baixista Marcos Ver<strong>de</strong>, recém-contratado como auxiliar<br />
técnico pelo Zen, com <strong>um</strong> ADAT para a casa do Elívio, a fi m<br />
<strong>de</strong> ajudá-lo a mandar tudo separado para mim. Como os dois não<br />
tinham experiência no assunto, quando recebi as fi tas, percebi que<br />
1 Alesis Digital Audio Tape é <strong>um</strong> gravador <strong>de</strong> áudio digital que usa fi tas similares<br />
ao formato S-VHS dos vi<strong>de</strong>ocassetes. Cada fi ta tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gravar até oito<br />
canais simultaneamente.<br />
380
Na Mira da Socieda<strong>de</strong><br />
381<br />
muitos canais não estavam sincronizados e outros não foram gravados<br />
separadamente. Por exemplo: no canal do b<strong>um</strong>bo também<br />
tocava a caixa da bateria. Eu tinha que consertar isso gravando o<br />
b<strong>um</strong>bo para outro canal do ADAT, apertando manualmente o botão<br />
mute (mudo) cada vez que a caixa soasse, para ter <strong>um</strong> canal limpo,<br />
só com o timbre do b<strong>um</strong>bo. Levei mais horas corrigindo erros <strong>de</strong><br />
gravação e <strong>de</strong> sincronismo do que mixando o disco. Mas era algo<br />
compreensível, por causa da falta <strong>de</strong> experiência dos dois.<br />
Depois <strong>de</strong>ssa maratona <strong>de</strong> trabalho no disco do Gog, o Nino e<br />
o Ariel vieram me falar <strong>de</strong> <strong>um</strong>a idéia que o Genivaldo, da Discovery,<br />
havia tido.<br />
A música “DJ Scratch”, que eu fi zera em 1990, para o primeiro<br />
disco do DF Movimento, me persegue até hoje. Muitas pessoas<br />
e artistas se i<strong>de</strong>ntifi cam com ela. A pedido do Genivaldo, o primeiro<br />
e único vinil lançado pela Planet teve várias versões diferentes<br />
e atualizadas <strong>de</strong> DJ Scratch, que mais era <strong>um</strong>a montagem<br />
com scratches e samplers. Convidamos os DJs TDZ (que ainda<br />
era do grupo Morte Cerebral, com o Dino Black), Chocolate (que<br />
fora campeão brasiliense <strong>de</strong> <strong>um</strong> concurso DJs), Dourado (Código<br />
Penal) e o Júnior Killa (hoje no Viela 17) para que cada <strong>um</strong> fi zesse<br />
<strong>um</strong>a versão diferente da música comigo. O Genivaldo ce<strong>de</strong>u o<br />
selo para po<strong>de</strong>rmos prensar o disco e a capa foi <strong>um</strong>a homenagem<br />
ao gran<strong>de</strong> DJ Zinho, que servira <strong>de</strong> inspiração para todos nós.<br />
Eu já havia mudado o meu estúdio para <strong>um</strong> quartinho que fi cava<br />
na área <strong>de</strong> serviço no apartamento da minha mãe. Eu não queria<br />
mais grupos transitando no apê, nem freqüentando o meu<br />
quarto. Mas <strong>de</strong>pois, talvez tenha nascido em mim não só a vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ter mais privacida<strong>de</strong>, mas também a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter<br />
<strong>um</strong> local <strong>de</strong> trabalho apenas meu.<br />
Conheci <strong>um</strong> cara chamado Marvin, que tinha <strong>um</strong>a sala à disposição<br />
que po<strong>de</strong>ria ser alugada para eu montar o meu primeiro estúdio.<br />
Bem... O único problema era que a sala fi cava n<strong>um</strong> bloco na<br />
comercial da quadra 315 da Asa Norte – a quadra on<strong>de</strong> se
382 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
reuniam as “damas da noite”. Tudo começou por causa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
danceteria. Eu e o Leandro trabalhamos como DJs resi<strong>de</strong>ntes<br />
na boate Somthing por quase <strong>um</strong> ano, no início da década <strong>de</strong> 90.<br />
Depois saímos e entraram outros DJs. Um dia, houve <strong>um</strong>a confusão<br />
que acabou com tiro e morte, e a danceteria foi fechada.<br />
Depois <strong>de</strong> <strong>um</strong> tempo, o dono resolveu mudar o estilo da casa<br />
noturna e transformá-la n<strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> danceteria muito freqüentado<br />
por prostitutas. A casa passou a se chamar Queens e, por<br />
incrível que pareça, n<strong>um</strong>a época, seu DJ resi<strong>de</strong>nte foi o Ariel.<br />
Essa danceteria também não <strong>de</strong>u certo e fechou. Só que aquele<br />
en<strong>de</strong>reço já tinha se tornado o ponto on<strong>de</strong>, infelizmente, mulheres<br />
vendiam o corpo para sobreviver.<br />
Apesar disso, aluguei a sala e mu<strong>de</strong>i o meu equipamento para lá.<br />
Antes, eu e o Nino colocamos <strong>um</strong> carpete para dar mais conforto<br />
e, nesse dia, fi camos chapados por causa do cheiro <strong>de</strong> cola.<br />
Foi nesse estúdio que produzi, junto com o Nino e o Ariel, o CD<br />
single Lei da Periferia, do Consciência H<strong>um</strong>ana. A música com o<br />
mesmo nome do disco mostra <strong>de</strong> forma nua e crua o relato <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> sobrevivente da favela:<br />
Aquela sexta 13 foi pop pra mim,<br />
Primeira sexta-feira 13 pop da minha existência,<br />
Foi o dia em que prontifi quei me distanciar das negligências,<br />
De <strong>um</strong> sistema esbranquiçado.<br />
Acor<strong>de</strong>i cedo disposto a ver o sol nascer,<br />
Já recebi a notícia dos que morreram,<br />
E da lista dos que tinham pra morrer.<br />
De ouvir essas idéias estou empapuçado,<br />
Espancamento, estupro, drogas, assassinato,<br />
Espero <strong>um</strong> dia acordar com as boas notícias,<br />
Sem violência, sem racista, sem polícia,<br />
Sem ouvir tiazinha chorando porque invadiram sua goma,<br />
Sem ouvir pivetada gritando “eu não quero ir pra escola”,<br />
Sem ver a mulher brigando com o marido alcoólatra.<br />
É foda, vou dar <strong>um</strong> rolê e volto outra hora,<br />
Pra ver se a mente controla esse tempo que rola,
Na Mira da Socieda<strong>de</strong><br />
383<br />
Parei n<strong>um</strong>a banca para ler o jornal, me <strong>de</strong>i mal,<br />
Porque o <strong>de</strong>staque era <strong>um</strong>a chacina que espirrava sangue,<br />
A folha <strong>de</strong> notícia é foda, esse modo <strong>de</strong> vida pra mim não dá.<br />
Vou procurar <strong>um</strong> lugar tranqüilo pra raciocinar.<br />
Preciso cuidar da minha coroa agora,<br />
Vou abandonar o crime e dar início a <strong>um</strong>a vida nova,<br />
Vou começar a outra caminhada,<br />
Voltar às aulas, trabalhar antes que os ratos conquistem meu<br />
espaço à bala,<br />
Antes que a minha coroa veja o meu corpo crivado <strong>de</strong> bala.<br />
O baixo <strong>de</strong>ssa música foi tirado <strong>de</strong> “Very special”, da cantora<br />
Debora Laws. Como dizia o Nino, era o gancho <strong>de</strong> “Lei da Periferia”.<br />
Quem tocou esse baixo foi o Alfredo da banda Cachorra<br />
das Cachorras. O arranjo e a melodia foram baseados <strong>de</strong>pois em<br />
cima da linha <strong>de</strong> baixo. Quem conhece a versão original lembra<br />
da música na hora. Nossa imaginação não tinha limites quando<br />
se tratava <strong>de</strong> fazer música. Naqueles dias, produzimos a base<br />
<strong>de</strong> “Lembranças”, que consi<strong>de</strong>ro <strong>um</strong>a obra-prima do rap nacional.<br />
Fizemos essa base sem imaginar a letra maravilhosa que o<br />
Aplick colocaria na música.<br />
Para a contracapa do vinil e do CD single, fotografamos a carranca<br />
que tem na entrada do apartamento <strong>de</strong> minha mãe. Nosso<br />
objetivo era espantar os maus-olhados sobre o disco.<br />
Quando o CD estava quase pronto, após três meses <strong>de</strong> trabalho<br />
em estúdio com as músicas que fi cariam no single, o W. Gee, o<br />
Aplick e o Adriano tiveram que interromper a produção e voltar<br />
para São Paulo. Só quando eles retornaram a Brasília para<br />
fazer o disco Entre a adolescência e o crime, a gente terminou<br />
“Lembranças”.<br />
Lembro que o Nino, Ariel e eu levamos a instr<strong>um</strong>ental <strong>de</strong> “Lembranças”<br />
para o Genivaldo.<br />
— Mas isso não é rap! Parece mais MPB! – disse ele.
384 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Era justamente o que queríamos ouvir, Genivaldo – respon<strong>de</strong>ram<br />
todos.<br />
A minha permanência na sala na 315 Norte não durou muito. O<br />
problema foi que, como eu trabalhava praticamente o dia inteiro<br />
lá e muitas vezes, <strong>de</strong>scia à noite para comer <strong>um</strong> cachorroquente<br />
e tomar <strong>um</strong> refrigerante, acabei fazendo amiza<strong>de</strong>s com<br />
alg<strong>um</strong>as profi ssionais da rua sem querer. Elas faziam muitas<br />
perguntas sobre os artistas <strong>de</strong> rap que subiam o tempo todo<br />
para produzir comigo e, às vezes, elas queriam conhecê-los.<br />
Então, começaram a pedir a sala para fazer programa com <strong>um</strong><br />
ou outro cliente. Eu cedi o espaço alg<strong>um</strong>as vezes, mas quando<br />
isso começou a se tornar <strong>um</strong>a rotina, achei melhor mudar <strong>de</strong><br />
en<strong>de</strong>reço e não me envolver mais com elas.<br />
Antes <strong>de</strong> mudar para outra sala, voltei com todo equipamento<br />
novamente para o quarto na área <strong>de</strong> serviço do apartamento<br />
<strong>de</strong> minha mãe. Foi nessa época que produzi <strong>um</strong> dos maiores<br />
sucessos da carreira do Gog.<br />
O Dario, que fora dono da New Generation, na Galeria 24 <strong>de</strong> Maio,<br />
montou <strong>um</strong>a nova loja, a Porte Ilegal, e resolveu fazer <strong>um</strong>a coletânea<br />
que se chama Na Mira da Socieda<strong>de</strong>. Ele me convidou para<br />
produzir <strong>um</strong>a música nova do Câmbio Negro, que foi feita em<br />
cima <strong>de</strong> <strong>um</strong> tema musical do game “Donkey Kong”. O Dario queria<br />
muito que o Gog também participasse da coletânea. Por sua vez,<br />
o Gog também precisava colocar <strong>um</strong>a música nova no mercado,<br />
porque o último disco <strong>de</strong>le não tinha tido a mesma repercussão<br />
dos anteriores. Foi então que liguei para ele e ofereci essa produção<br />
<strong>de</strong> graça, como <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> mostrar o que ele estaria<br />
per<strong>de</strong>ndo se não produzisse o próximo disco comigo. Lógico que<br />
ele topou. Foi assim que nasceu a clássica “Momento seguinte”:<br />
O teste é forte é, o sangue jorra escorre e ferve,<br />
Delírios a 40 graus <strong>de</strong> febre<br />
A se<strong>de</strong> aperta, merda, não posso beber nada,<br />
Sinto a vida escurecer,<br />
Já não consigo mover a tendência agora é o corpo amolecer
Na Mira da Socieda<strong>de</strong><br />
Pra <strong>de</strong>pois endurecer <strong>de</strong> vez.<br />
Pesa<strong>de</strong>lo, terra<strong>de</strong>iro, agonia.<br />
A sete dias da própria missa <strong>de</strong> sétimo dia.<br />
Pé <strong>um</strong>a vasilha vazia da cabeça aos pés hemorragias,<br />
Quem diria eu reinci<strong>de</strong>nte calejado,<br />
Várias passagens, porte ilegal.<br />
Quadrilhas <strong>de</strong> assalto aqui esticados,<br />
Mirei errei, acabei sendo alvo.<br />
E todo ódio veio em torno do meu lado<br />
E o pior, me pegou <strong>de</strong>spreparado, preciso fi car calmo.<br />
Um chegado foi buscar <strong>um</strong> carro, quem sabe veí<br />
não seja tar<strong>de</strong> e eu chegue vivo ainda na UTI do hospital.<br />
De quase macas, jac’s tubos, lençóis ensangüentados.<br />
O raio-x revela, <strong>um</strong> dos pulmões foi perfurado.<br />
Um salto nada positivo, viu, premeditei meu homicídio.<br />
Minhas idéias, meu cadilho, meus motivos fazem <strong>de</strong> mim.<br />
Há muito tempo morto vivo,<br />
Choros, pedidos <strong>de</strong> socorro, nada disso me comoveu,<br />
Só que o sangue que jorra agora é o meu.<br />
Cirurgia com sucesso, vida salva,<br />
Várias balas pelo corpo se movendo,<br />
As cicatrizes dos 300 pontos, só o tempo, nem o tempo.<br />
Recuperação dos movimentos, fi sioterapia todo dia cedo.<br />
Cedo todo dia, vida normal <strong>de</strong> novo.<br />
Nem <strong>um</strong>a garantia, sem grana, sem emprego.<br />
Ao meu lado, ao meu lado, só minha família.<br />
A mesma que eu conseqüentemente <strong>de</strong>struía<br />
Visitas chegando alguns botando pilha,<br />
Dizendo que fui vítima <strong>de</strong> <strong>um</strong>a armadilha.<br />
Mas eu sei, minha arapuca eu armei, minha cova eu cavei,<br />
E por pouco não me enterrei <strong>de</strong> vez.<br />
Dois anos e seis meses <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas,<br />
Aprovado e reprovado em duras provas.<br />
Muitos castigos pra pagar por mais que o cara peque,<br />
Nada, nem <strong>um</strong>a dor, as previsões do Sarah Kubitschek.<br />
É mesmo forte, quase intransponível.<br />
Teste em meio <strong>de</strong> sangue, urina, fezes...<br />
O impossível para muitos acontece.<br />
As pernas por sinal agora mexem mesmo atrofi adas,<br />
385
386 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Da pior foram anotadas na agenda à caneta,<br />
Seis meses se vão e lá vão as ca<strong>de</strong>iras.<br />
Muletas, estava faminto, agia com instinto<br />
Não f<strong>um</strong>ava, não bebia, careta.<br />
Tava difícil <strong>de</strong>scolar <strong>um</strong>a escopeta.<br />
Minha presa tava <strong>de</strong> vacilo, armei o bote, senhor da situação,<br />
Eu era novamente instr<strong>um</strong>ento do anjo da morte.<br />
Na hora “h” lembrei dos pontos,<br />
Da recuperação, dos cortes,<br />
Do banho dado pelo meu irmão mais novo.<br />
Da minha mãe ao lado o tempo todo, me dando total apoio.<br />
Será que assim que se resolve Papudão, Pavilhão 9?<br />
Não, Gog, nem cheguei a engatilhar a dar o golpe não, escapei.<br />
Só não na<strong>de</strong>i tanto pra morrer na praia.<br />
Quem quer que seja apo<strong>de</strong>rando-se <strong>de</strong> mim<br />
Nesse momento saia, pra que esse sentimento <strong>de</strong> vingança,<br />
vaias<br />
Que viva a vida e que morra <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada <strong>um</strong> <strong>de</strong> nós,<br />
os homicidas.<br />
Quem sabe assim que cale os refrões aqui cantados,<br />
Os papéis aqui interpretados<br />
E que dêem lugar ao sonho <strong>de</strong> Roberto Carlos.<br />
Não tem como não colocar a letra inteira aqui. Todo mundo, mesmo<br />
quem não ouvia hip-hop, se i<strong>de</strong>ntifi cou com a música. Novamente<br />
<strong>um</strong>a música do Gog tocava em rádios <strong>de</strong> São Paulo e do Brasil.<br />
Essa foi a minha última produção na sala da 315 antes <strong>de</strong> ir para a<br />
minha nova sala, na 215 Norte.
Na Mira da Socieda<strong>de</strong><br />
387
388<br />
CAPÍTULO 49:
O primeiro trabalho que produzi na 215 Norte foi o CD solo do<br />
Jamaika, que se chama Utopia. Nesse trabalho revi o Brother,<br />
vocalista, nos anos 80, do antigo grupo Black Jamaika, e <strong>de</strong>pois<br />
do Scambal a Quatro. Também conheci o Angel Duarte, cantor da<br />
famosa banda <strong>de</strong> baile Esquema Seis, no DF. Angel já tinha <strong>um</strong>a<br />
pre<strong>de</strong>stinação para cantar black music. Ele tem muito talento e,<br />
em 2006, participou do programa Ídolos, do SBT.<br />
Duas músicas <strong>de</strong>sse álb<strong>um</strong> estouraram em todo o Brasil. A primeira<br />
é “Tô só observando”, com refrão cantado pelo Brother:<br />
Tô só observando, daqui eu vejo <strong>um</strong>a l<strong>um</strong>inosida<strong>de</strong> <strong>um</strong> tiro.<br />
Tô só observando, <strong>um</strong> véu que separa o joio do trigo.<br />
Esse foi <strong>um</strong> dos refrões mais tocados no DF. “Tô só observando”<br />
tocava sem parar, até em carro <strong>de</strong> playboy e em festa <strong>de</strong> burguês.<br />
A batida era <strong>um</strong> simples sample da música “DJs MCs”, do grupo<br />
americano Rodney O Joe Cooley, e o arranjo foi sampleado <strong>de</strong> “All<br />
my love”, do Led Zeppelin. Quem disse que não se po<strong>de</strong> usar <strong>um</strong><br />
clássico do rock no rap? Eu retoquei o refrão usando o mesmo<br />
timbre synth da época no riff da música.<br />
A segunda é “Dando trabalho pros anjos”, que tem sample <strong>de</strong><br />
Batendo na porta do céu, versão <strong>de</strong> Zé Ramalho para “Knockin’<br />
on heaven’s door”, <strong>de</strong> Bob Dylan:<br />
Nove da manhã, o maior calor,<br />
Não sou bandido, pára <strong>de</strong> me olhar, seu doutor.<br />
390
DJ Jamaika - Utopia<br />
391<br />
A <strong>de</strong>sconfi ança chama a atenção <strong>de</strong> outras pessoas, minha idéia<br />
eu valorizo.<br />
Não sou à toa. Assim que eles vêem quem mora aqui,<br />
Descalço mesmo sem nada, a vida é só pedir.<br />
De esmola em esmola, à procura do pão,<br />
viram lixeiras <strong>de</strong> cabeça pra baixo, meu irmão.<br />
Quantas vezes eu sonhei, com isso aqui.<br />
Que pesa<strong>de</strong>lo, dá <strong>um</strong> tempo, espera aí.<br />
Hoje eu tô <strong>de</strong> boa, com amigos e inimigos<br />
Pra garantir a minha idéia ainda fi z assim:<br />
“Mãe, guarda esses revólveres pra mim.”<br />
Pra on<strong>de</strong> eu tô indo hoje, não vou mais precisar<br />
“Com eles, nunca mais vou atirar.”<br />
Quero fi car <strong>de</strong> boa, nada que possa puxar<br />
Sonhe bem, pense bem, aju<strong>de</strong> alguém.<br />
A noite é fria, seu doutor, você não vem<br />
Na perna <strong>um</strong>a ferida <strong>de</strong> carne crua.<br />
Você não liga, porque a vida não é a sua.<br />
Sonhe bem, pense bem, aju<strong>de</strong> alguém.<br />
A noite é fria, seu doutor, você não vem<br />
Mais <strong>um</strong> corpo endurecido, achado ao léu.<br />
Um anjo o levou pra porta do Céu.<br />
Essa primeira estrofe mostra que Jamaika tinha <strong>um</strong>a preocupação<br />
maior com a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. Algo mais do que falar só<br />
sobre o cotidiano violento da periferia.<br />
O disco ven<strong>de</strong>u mais <strong>de</strong> 50 mil cópias e fez a gravadora Warner<br />
se interessar pelo Jamaika. Alg<strong>um</strong> tempo <strong>de</strong>pois, ele assinou<br />
contrato com <strong>um</strong>a dupla <strong>de</strong> empresários que se aproveitou <strong>de</strong><br />
todos os contatos que ele tinha, por causa <strong>de</strong> shows que o Álibi<br />
havia feito no interior <strong>de</strong> Goiás e Minas. Para mim, eles foram<br />
os principais responsáveis pela separação do irmão <strong>de</strong>le, que<br />
resultou no fi m do grupo, como explicarei <strong>de</strong>pois.<br />
O Rivas fez o seu disco solo também, que se chama Valorizando<br />
a nossa arte. Mas como ele tinha <strong>um</strong>a ligação muito mais forte<br />
com o break, por causa do grupo Reforços, e por ser grafi teiro, o<br />
disco <strong>de</strong>le foi muito mais para o lado dançante para b-boys. Até
392 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
o tema da trilha sonora do fi lme americano Um tira da pesada<br />
a gente usou. O disco não teve muita aceitação no mercado por<br />
ser muito positivo e com batidas mais electro e rápidas. Rivas<br />
nunca se preocupou em estar <strong>de</strong>ntro do mercado, mas sim, em<br />
fazer aquilo <strong>de</strong> que gostava. Lembro, como se fosse hoje, do<br />
Genivaldo louco da vida, porque usamos mais <strong>de</strong> cem horas <strong>de</strong><br />
estúdio para fi nalizar o CD.<br />
Hoje em dia, Jamaika e Rivas formam o grupo Antídoto.
393
394<br />
CAPÍTULO 50:
Na 215 Norte, resolvi que não queria apenas ter <strong>um</strong>a sala para<br />
fazer produção, mas sim <strong>um</strong> estúdio <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, com isolamento<br />
acústico e <strong>um</strong>a cabine <strong>de</strong> gravação. Só não sabia ainda como<br />
faria isso.<br />
Descobri que o Marcão havia voltado para Brasília e fui procurá-lo<br />
na casa <strong>de</strong>le, que fi cava na cida<strong>de</strong>-satélite Guará II. Chegando<br />
lá ele estava sentado na frente do portão, e sem <strong>de</strong>scer<br />
do carro, gritei:<br />
— Fala, Marcão, beleza?<br />
— Fala, Gordo, tranqüilo? – disse ele.<br />
— Graças a Deus, velho. Resolveu voltar pro DF? – perguntei.<br />
— On<strong>de</strong> eu tava morando em Sampa, na Vila Jussara, não tava<br />
mais dando – respon<strong>de</strong>u. – Também, como eu não continuava<br />
no rap, resolvi voltar pra família.<br />
Estacionei o carro e o Marcão me convidou a entrar. Ja lá <strong>de</strong>ntro,<br />
perguntei:<br />
— Então, a minha proposta pra você é que a gente grave <strong>um</strong>a<br />
música nova. O que que você acha?<br />
— Tá querendo voltar com o Baseado, Gordo? – perguntou.<br />
— Tô, Marcão! Há muito tempo que eu quero voltar pros palcos,<br />
cara! Mas só se a gente retomar o grupo – disse eu.<br />
396
Refl exão<br />
— Tá fechado, véi!<br />
397<br />
Saí <strong>de</strong> lá com a alma restaurada, pois fi nalmente tinha o meu<br />
gran<strong>de</strong> amigo <strong>de</strong> volta. Deixamos todas as nossas diferenças para<br />
trás e resolvemos seguir em frente. Rapidamente fi zemos a primeira<br />
música, “Idéias letais”, que eu entreguei às rádios, mesmo<br />
sem saber ao certo se iríamos gravar <strong>um</strong> novo CD ou não. O Brother<br />
fez o refrão e logo fi zemos <strong>um</strong> vi<strong>de</strong>oclipe, gravado em três locações:<br />
Riacho Fundo, área do Gog; Guará II, área do Marcão; e nos<br />
trilhos <strong>de</strong> trem perto <strong>de</strong> Goiânia. A música estourou nos bailes.<br />
— Gordo, por que você não monta <strong>um</strong>a cabine <strong>de</strong> voz aqui na<br />
sala e fi ca in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte? – perguntou Marcão, quando começamos<br />
a produzir o repertório do disco no meu estúdio.<br />
— Porque o material é caro, Marcão!<br />
— Porra, Raffa! Eu corro atrás do material bem mais barato,<br />
ma<strong>de</strong>ira, vidro, carpete. E <strong>de</strong>ixa que eu monto a cabine pra você –<br />
propôs ele.<br />
— Sério, Marcão?<br />
— Gordo, não vai ser <strong>de</strong> Primeiro Mundo como você está acost<strong>um</strong>ado,<br />
mas vai dar pra você gravar voz, velho!<br />
— Então morreu! – exclamei.<br />
Durante mais ou menos <strong>um</strong> mês, o Marcão montou a cabine<br />
sozinho enquanto a gente produzia as novas músicas. Assinamos<br />
contrato para três discos com a Discovery. Marcão me falou<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> cara com quem ele tinha feito amiza<strong>de</strong> na Vila Jussara, o<br />
DJ Nike Jay, porque queria que ele viesse para Brasília participar<br />
das produções riscando no disco, ou seja, fazendo scratch.<br />
— Gordo, o que você acha? – perguntou Marcão.<br />
— Marcão, pe<strong>de</strong> pra ele vir com tudo pra morar aqui – respondi. –<br />
A gente arr<strong>um</strong>a <strong>um</strong> emprego pra ele.<br />
— Gordo, ele quer apren<strong>de</strong>r a produzir, fazer música, trabalhar<br />
em estúdio.
398 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Saquei, velho! Ele po<strong>de</strong> começar lá no meu estúdio, trabalhando<br />
comigo.<br />
— É isso, moleque! – exclamou Marcão.<br />
Nike Jay se mudou da Vila Jussara para Brasília com esposa e<br />
fi lho. Arr<strong>um</strong>amos <strong>um</strong>a pequena quitinete para eles no Guará II,<br />
perto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o Marcão morava. Nike Jay fazia o caminho inverso<br />
<strong>de</strong> muitos artistas. Mas quando lembro como o rap nacional<br />
estava fervendo naqueles tempos no DF, até era justifi cado ele<br />
querer vir para o Planalto Central.<br />
Voltando à produção do disco, resolvi retocar <strong>um</strong>a música do<br />
Juice Orange, “Walking in the rain”, que marcou época nos bailes<br />
nos anos 80. O Jamaika participou rimando a segunda parte da<br />
música. O disco recebeu o nome Refl exão e tiramos as fotos no<br />
Museu Histórico e Artístico <strong>de</strong> Planaltina. A idéia era dar <strong>um</strong><br />
toque antigo à capa. Marcão, que tinha o sonho <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong><br />
disco só com músicas <strong>de</strong> capoeira, convidou os parceiros que<br />
lutavam e fez <strong>um</strong>a faixa com alguns cânticos típicos da luta.<br />
A música “Assaltos” ganhou o Prêmio Renato Russo <strong>de</strong> 1997,<br />
concedido pela Secretaria <strong>de</strong> Cultura do DF para as melhores<br />
músicas <strong>de</strong> artistas do DF. Talvez não só pela letra, mas também<br />
pela instr<strong>um</strong>ental que mesclava mais <strong>um</strong>a vez rock e rap.<br />
Na minha opinião, “Realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> presídio”, que abre o CD, é<br />
a melhor <strong>de</strong>sse disco, porque <strong>de</strong>nuncia a falência do sistema<br />
carcerário no Brasil, como nesse trecho:<br />
Dormimos uns sobre os outros, na cela que cabe <strong>de</strong>z tem trinta,<br />
Que lance escroto, e ainda querem que saiamos daqui<br />
recuperados,<br />
E “<strong>de</strong>smarginalizados”, que bando <strong>de</strong>...<br />
E, principalmente, no fi nal da rima:<br />
Nas entradas, as visitas passam por <strong>um</strong>a revista,<br />
envergonha e <strong>de</strong>smoraliza a qualquer mulher <strong>de</strong> fé.<br />
Ficam peladas,<br />
verifi cam se não carregam nada entre suas pernas.<br />
Se fosse <strong>um</strong>a <strong>de</strong>las eu diria:<br />
“Aqui só entra esperma!”
Refl exão<br />
399<br />
Mais <strong>um</strong>a vez, Brother emprestava a voz para fazer o refrão. Eu,<br />
o Nino e o Ariel fi zemos o lançamento do CD no Salão <strong>de</strong> Festas<br />
City, na cida<strong>de</strong>-satélite Taguatinga, com a Smurphies Disco<br />
Clube. Aproveitamos e levamos o Comando DMC. O DJ Celsão<br />
tocou na festa.<br />
Consegui inscrever o Baseado nas Ruas no circuito <strong>de</strong> shows<br />
Temporadas Populares, que o governo do DF – na época o governador<br />
era o Cristóvam Buarque – patrocinava para os artistas<br />
da cida<strong>de</strong>. No entanto, logo que alguns shows foram marcados,<br />
a Secretaria <strong>de</strong> Segurança mandou cancelar todos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vez,<br />
alegando que o grupo incentivava o uso <strong>de</strong> drogas. Ficamos<br />
revoltados! Ainda mais porque tínhamos passado por algo assim<br />
havia mais <strong>de</strong> cinco anos em Rio Claro (interior paulista). Fui<br />
imediatamente aos jornais alimentar a polêmica <strong>de</strong> vez, dando<br />
<strong>um</strong>a entrevista para o Correio Braziliense e expondo o preconceito<br />
contra o rap e o <strong>de</strong>srespeito à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão.<br />
A então secretária <strong>de</strong> Cultura Maria Duarte, comentou, na mesma<br />
matéria, que havia ouvido o CD inteiro e que não tinha nenh<strong>um</strong>a<br />
letra que incentivasse o uso <strong>de</strong> drogas. Mesmo assim os shows<br />
só foram liberados sob o nome DJ Raffa e Marcão – o do grupo<br />
não aparecia. Muito ridículo mesmo! Nós aceitamos essa exigência<br />
pensando mais no Nike Jay, que precisava do cachê mais do<br />
que a gente. E ainda dizem que a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão estava<br />
garantida no país. Por incrível que pareça, no fi nal do século XX, a<br />
gente ainda se <strong>de</strong>parava com essas idiotices.
400<br />
CAPÍTULO 51:
Quando morei em São Paulo, o De Menos Crime me contactara<br />
através do Consciência H<strong>um</strong>ana, para fazer a produção do disco<br />
do grupo. Isto foi em 1993. Por causa da pressa que o grupo tinha<br />
e da minha falta <strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong>, acabou não dando certo.<br />
Mas como o tempo <strong>de</strong> Deus é diferente do nosso, acredito que<br />
tudo na vida acontece quando tem que acontecer.<br />
Anos <strong>de</strong>pois, em 1998, Abelha me procurou e <strong>de</strong>ssa vez combinamos<br />
a data certa para o De Menos Crime vir a Brasília fazer a<br />
produção. Mikimba, Abelha, Pereira e DJ Vlad já <strong>de</strong>sembarcaram<br />
no Planalto Central “daquele jeito”. Uma das primeiras músicas<br />
que fi zemos para São Mateus pra vida, o segundo álb<strong>um</strong> do<br />
grupo, foi “Fogo na bomba”:<br />
Po<strong>de</strong> vim parar, po<strong>de</strong> vim revistar,<br />
O fl agrante já foi pra mente só pra amenizar,<br />
Os puta fardas explodiram a cabeça <strong>de</strong> raiva,<br />
Enfi aram a mão no meu bolso e no meu saco,<br />
E não acharam nada,<br />
Revistaram a minha cheveteira e não acharam naaaaada.<br />
Não tem fl agrante não, não tem fl agrante não,<br />
Já bolou, acen<strong>de</strong>u, virou f<strong>um</strong>aça, subiu pra cuca,<br />
Fim do silêncio, De Menos Crime não <strong>de</strong>ixa goela,<br />
Malandro que é malandro sempre segue o ritmo da favela.<br />
Nascia <strong>um</strong> sucesso inesperado. A produção da música foi muito<br />
simples. Montei <strong>um</strong>a batida com timbres acústicos que extraí<br />
402
De Menos Crime<br />
403<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> disco <strong>de</strong> reggae e o sample principal foi da banda <strong>de</strong> soul<br />
funk Average With Band.<br />
Outra faixa que marcou foi “1,2 1,2 Drão”. São Mateus inteira<br />
<strong>de</strong>sceu para o DF.<br />
Lado leste <strong>de</strong> São Paulo DRR é só enquadro,<br />
sem dá boi pra oportunista otário;<br />
Sai da goma falsário, na banca não cola mané,<br />
HC São Mateus pretos e brancos <strong>de</strong> fé.<br />
Sou W. Gee, Preto Aplick fi rmou, Adriano CH é banca forte, morou?<br />
Hip-hop <strong>de</strong> periferia, baixo marcando ornando em cima da batida;<br />
Chega Pereira, chega Abelha, De Menos Crime Zona Leste<br />
é muita treta;<br />
Chega Pancho, chega Grand, chega Choque, U Negro, Terceira Divisão,<br />
Homens Crânios...<br />
Foi através <strong>de</strong>ssa música que fi caram conhecidas a posse DRR<br />
– Defensores do Ritmo <strong>de</strong> Rua – e a sigla HC (Homens Crânios),<br />
que juntava os principais grupos da DRR em São Mateus. O Pancho<br />
e o Grand eram do grupo U Negro. Infelizmente, o Pancho<br />
foi morto, tornando-se mais <strong>um</strong>a vítima da violência policial, e<br />
o Grand fi cou <strong>um</strong> tempo preso. Depois, Grand formou o grupo<br />
Alvos da Lei, que até agora tem três CDs na praça.<br />
Nesse CD do De Menos Crime ha várias composições do genial<br />
Mikimba. A melhor para mim é “Bola do mundo”:<br />
Eu tô pra te dizer;<br />
Tá <strong>um</strong> puta clima mau, mau no ar;<br />
Vivemos n<strong>um</strong> sistema on<strong>de</strong> vagabundo é mau;<br />
On<strong>de</strong> o mal reina e o ritmo é malda<strong>de</strong> e real;<br />
Que hoje em dia eu não confi o mais em ninguém;<br />
Chegar em casa eu vou dizer é bem <strong>um</strong>a aventura;<br />
E olha lá se eu não trombar a viatura;<br />
Uma par <strong>de</strong> gambé naquela fi ssura;<br />
Desculpe a mim por fi car <strong>de</strong> cara amarrada;<br />
Desculpe a mim por fi car sem respirar;<br />
Desculpe a mim por dizer todas essas loucuras;<br />
Pois então esse é o mundo, mundo da rua;
404 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
De Menos Crime<br />
Que n<strong>um</strong> rolê você fi ca sempre é nas segundas;<br />
O clima é ruim, a rotina é cruel;<br />
Se vacilar você sobe é pro céu;<br />
O clima é ruim, a rotina é cruel;<br />
Se vacilar você sobe é pro céu;<br />
Vacilo na área é pênalti, morô?<br />
405<br />
Mas ao mesmo tempo em que era <strong>um</strong> talento no rap, Mikimba<br />
dava mancada. Os outros integrantes do grupo <strong>de</strong>cidiram, por<br />
isso, mandá-lo embora para casa, em São Paulo, logo <strong>de</strong>pois que<br />
ele terminou <strong>de</strong> gravar as suas músicas. Ninguém suportava mais<br />
as loucuras <strong>de</strong>le.<br />
O disco foi abraçado pela Kaskatas e virou <strong>um</strong> fenômeno nacional.<br />
A música “Fogo na bomba” estourou no Brasil inteiro, a ponto <strong>de</strong><br />
outros grupos e bandas, como Os Raimundos, tocarem-na em seus<br />
shows. Tive a certeza <strong>de</strong> que essa música realmente era <strong>um</strong>a das<br />
mais executadas no país durante <strong>um</strong>a viagem <strong>de</strong> carro <strong>de</strong> São Paulo<br />
para Brasília, junto com o Japão. Nós paramos <strong>de</strong> madrugada n<strong>um</strong><br />
<strong>de</strong>sses “inferninhos” <strong>de</strong> beira <strong>de</strong> estrada para <strong>de</strong>scansar e tomar<br />
alg<strong>um</strong>a coisa. Sentaram à nossa mesa alg<strong>um</strong>as meninas e, papo<br />
vem, papo vai, perguntamos que música <strong>de</strong> rap elas conheciam.<br />
A resposta foi imediata: cantaram o refrão <strong>de</strong> “Fogo na bomba”.<br />
Em São Paulo, a música tocava o dia inteiro nas rádios.<br />
Acredito que o De Menos Crime serviu <strong>de</strong> inspiração para vários<br />
grupos <strong>de</strong> rap e rock que surgiram com o intuito <strong>de</strong> levantar a<br />
ban<strong>de</strong>ira da legalização da maconha. O Planet Hemp, do Marcelo<br />
D2, é <strong>um</strong> exemplo disso.<br />
Quero esclarecer, porém, que nunca fui a favor ou contra quem<br />
f<strong>um</strong>a maconha. Acho que cada <strong>um</strong> tem que ass<strong>um</strong>ir os seus<br />
atos. Posso dizer que nunca usei drogas, mesmo andando com<br />
quem é usuário. Sempre tive a postura <strong>de</strong> não interferir, a não<br />
ser que me pedissem conselho. Nesse caso, é claro, eu dizia que<br />
o melhor é se afastar <strong>de</strong>sses males.<br />
Mas a questão é: o De Menos Crime sempre ass<strong>um</strong>iu o que fez.<br />
Pior, para mim, são os grupos que em cima do palco dizem que usu-
406 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
ário <strong>de</strong> droga é prego, 1 mas, quando entram no camarim, f<strong>um</strong>am e<br />
cheiram todas. Sem contar aqueles que falam mal da droga legalizada,<br />
que é a bebida alcoólica, e por trás dos panos bebem todas.<br />
Se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mim, sempre farei campanhas <strong>de</strong> conscientização<br />
em relação ao mal que as drogas trazem.<br />
Além <strong>de</strong>ssa questão, o De Menos Crime trazia também <strong>um</strong>a veia<br />
política em suas letras, como em “Burguesia”:<br />
A minha voz não calo, não sou otário, burguesia do caralho;<br />
Sem medo eu falo a podridão domina o seu ciclo;<br />
Seu estilo <strong>de</strong> vida pra mim fe<strong>de</strong>;<br />
Você abafa, <strong>de</strong>spreza a plebe;<br />
Mas no seu interior a pobreza te fere;<br />
Você propôs a pena <strong>de</strong> morte;<br />
Mais <strong>um</strong> <strong>de</strong> seus esquemas para acabar com os pobres;<br />
Mas minha gente é forte e supera seus cortes;<br />
Vocês produzem a miséria;<br />
E nos impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> chegar a nível social;<br />
Enquanto minha gente se quebra e requebra;<br />
Para pôr o pão na mesa, sua lixeira transborda alimentos;<br />
Não é sua fartura que me incomoda, e sim a sua hipocrisia<br />
É que me sufoca, burguesia idiota.<br />
O refrão é <strong>um</strong>a colagem com a música do Cazuza “A burguesia<br />
fe<strong>de</strong>”.<br />
O CD São Mateus pra vida ven<strong>de</strong>u mais <strong>de</strong> 120 mil cópias, o que<br />
foi muito bom para o grupo, para mim e para o rap nacional.<br />
O triste foi precisar <strong>de</strong> <strong>um</strong> advogado para receber meus direitos<br />
<strong>de</strong> 2% do total <strong>de</strong> vendas e o cachê pela produção do trabalho.<br />
Ainda produzi o terceiro CD do De Menos Crime, Rap das quebradas,<br />
pela RDS Fonográfi ca. A música-título do disco era <strong>um</strong> tapa<br />
na cara do sistema, mostrando <strong>de</strong> vez que o verda<strong>de</strong>iro rap nacional<br />
é o rap das quebradas, das periferias, como nesse trecho:<br />
1 Otário, burro.
De Menos Crime<br />
Atitu<strong>de</strong> e expressão hip-hop em ação;<br />
Rap das quebradas fusão <strong>de</strong> idéias união;<br />
Esquecendo o passado e vivendo o presente;<br />
Lutando para que meu povo tenha <strong>um</strong> futuro diferente;<br />
Sistema não tem dó, te suga, te maltrata na maior;<br />
Investimento na favela vem através <strong>de</strong> pó;<br />
No cardápio da periferia combinando bem;<br />
Sobrevivemos n<strong>um</strong> sistema on<strong>de</strong><br />
Você sem dinheiro não é ninguém;<br />
Através do rap obtivemos chances <strong>de</strong> mudar;<br />
Manter opinião conscientizar os que não<br />
Enxergam o que <strong>de</strong>vem;<br />
Gravata sim é uniforme <strong>de</strong> ladrão;<br />
A violência é gerada pelo próprio sistema;<br />
Que mata, divi<strong>de</strong>, tenta fazer o pobre <strong>de</strong> esquema;<br />
Alegando sempre que nós começamos o problema;<br />
Periferia lado leste invadindo o sistema;<br />
Dizendo à burguesia que vão nos ver, trema, trema!;<br />
Pois os rapper não é pouco;<br />
Playboyzada do caralho achando que sou tolo;<br />
Chegando pra somar, rap das quebradas;<br />
Som <strong>de</strong> periferia, som <strong>de</strong> periferia;<br />
Periferia lado leste, paz.<br />
407
408<br />
CAPÍTULO 52:
Neguinho e Alemão, que participaram da primeira formação do<br />
DF Movimento, montaram <strong>um</strong> novo grupo, o Socieda<strong>de</strong> Anônima.<br />
Alemão continuava <strong>um</strong> afi cionado pelo rap nacional e <strong>de</strong>positava<br />
muita serieda<strong>de</strong> à música em sua vida. Ele queria, <strong>de</strong><br />
qualquer jeito, mostrar para todo mundo a sua evolução como<br />
letrista e rimador. Já Neguinho estava trabalhando na área <strong>de</strong><br />
turismo, e integrar o grupo foi só mais <strong>um</strong> hobby. Os dois bancaram<br />
todo o projeto do disco por conta própria. Ainda assim, a<br />
parte do Zen Estúdio era muito cara para eles e, por isso, eu pedi<br />
<strong>um</strong> <strong>de</strong>sconto ao Andy para fi nalizar o trabalho lá.<br />
Duas músicas do disco, intitulado Ainda estamos vivos, tocaram<br />
muito no DF, principalmente no Mix Mania, do Celsão, que<br />
abraçou <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> esse trabalho, ajudando muito o grupo. A<br />
primeira foi “A vida e a morte”:<br />
Cinto, segurança, capacete, cacete, colete à prova <strong>de</strong> bala, carro<br />
blindado, sinal fechado, alarme, vigia, vigilante, polícia preso<br />
atrás das gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua própria casa. Para sua proteção...<br />
Você tem o rabo preso se escapar da morte. Se ela nunca te parou,<br />
você tem sorte. Que religião <strong>de</strong>vo seguir? Pra qual Deus <strong>de</strong>vo<br />
rezar? Tento me encontrar, e não sei nem on<strong>de</strong> estou, quem fui,<br />
quem sou, pra on<strong>de</strong> vou...<br />
Afi nal <strong>de</strong> contas, temos alg<strong>um</strong> objetivo neste Mundo, seja ele qual<br />
for, a esperança é a última que morre, me socorre.<br />
410
Socieda<strong>de</strong> Anônima<br />
411<br />
Nascemos, crescemos ou então apren<strong>de</strong>mos na escola lá fora, o<br />
Mundo te ensina. Vivemos, morremos por <strong>um</strong> pedaço <strong>de</strong> pão!<br />
Jesus disse: “Somos fi lhos do mesmo Pai, somos todos irmãos!”<br />
Mas o maior assassino <strong>de</strong> todos os tempos: Hitler se dizia Cristão<br />
e todos os anticristo também dizem que são.<br />
Falamos da vida sofrida, falamos da vida vivida, falamos da morte<br />
em vida, on<strong>de</strong> está a saída???!!!<br />
A cantora Paula Gabi emprestou a voz para cantar o refrão que<br />
marcou época em Brasília.<br />
A segunda música <strong>de</strong> Ainda estamos vivos que tocou muito no<br />
DF foi “Decadência”:<br />
Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar comigo irmão <strong>de</strong> fé, estou aqui pro que <strong>de</strong>r e vier.<br />
Sem aspirar, nem expirar, sem inspirar, nem transpirar, sem<br />
respirar.<br />
É <strong>um</strong>, é dois, feijão sem arroz. É três, é quatro, nada no prato.<br />
É cinco, é seis, já virei freguês. Salários abusivos no Congresso<br />
Nacional!<br />
E o dinheiro do Povo? E o direito do Povo? Que trabalha tanto<br />
e ganha tão pouco!<br />
Está no bolso do safado que mora logo ali do lado;<br />
n<strong>um</strong> céu cor <strong>de</strong> anil, capital do Brasil!<br />
Ainda bem que é só <strong>um</strong>, mas já se pensou se fi zessem mais<br />
Congressos Nacionais?!<br />
Alemão nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado a veia política nas letras que fez.<br />
Consegui, além <strong>de</strong> <strong>um</strong> contrato na Kaskatas para o grupo, que o<br />
Carlinhos bancasse o estúdio e a capa do disco. Nas gravações<br />
dos vocais no Zen, o Brother trouxe <strong>um</strong>a galera para fazer refrão<br />
n<strong>um</strong>as músicas. Foi então que conheci a Alessandra, que viria a<br />
ser mãe da minha segunda fi lha, a Ana Carolina.<br />
Logo após as gravações, Neguinho e Alemão viajaram para São<br />
Paulo, on<strong>de</strong> foram marcados vários shows. As músicas já tocavam<br />
em programas especializados. Através da gravadora, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong>ssa pequena turnê, Alemão conseguiu espaço para o Socieda<strong>de</strong>
412 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Anônima se apresentar em alguns programas <strong>de</strong> televisão. Só<br />
que, com medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o emprego, Neguinho preferiu voltar o<br />
mais rápido possível para Brasília. Com isso, Alemão foi obrigado<br />
a voltar também. Ele nunca perdoou a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Neguinho. Os<br />
dois brigaram feio e se separaram <strong>de</strong> vez. Alemão fi nalmente <strong>de</strong>scobrira<br />
que só ele levava o rap a sério. Para completar, o Carlinhos<br />
da Kaskatas levou cinco tiros em frente ao Club House, vítima <strong>de</strong><br />
vingança por ter maltratado <strong>um</strong> rapaz <strong>de</strong>ntro do salão. Foi hospitalizado<br />
e, graças a Deus, sobreviveu. No entanto, quem ass<strong>um</strong>iu<br />
a gravadora na ausência <strong>de</strong>le, por quase <strong>um</strong> ano, não conseguiu<br />
levá-la para frente e ela quase foi à falência. Depois disso, Carlinhos<br />
mudou <strong>de</strong> ramo e começou a trabalhar só com reggae.
e o<br />
414<br />
CAPÍTULO 53:
Dario veio para Brasília conversar comigo sobre o novo trabalho<br />
do Consciência H<strong>um</strong>ana. Ele estava empresariando o grupo e<br />
queria <strong>um</strong>a data para que eles viessem ao Cerrado. Fechamos<br />
<strong>um</strong> dia e ele pagou adiantado a produção porque eu tinha a idéia<br />
<strong>de</strong> comprar <strong>um</strong> microfone profi ssional para mim. O Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana fi cou hospedado na minha sala, na 215 Norte. No<br />
primeiro dia <strong>de</strong> trabalho eu tive <strong>um</strong>a forte dor no nervo ciático,<br />
e o Leandro, que por acaso passara por lá, me ajudou a chegar<br />
em casa. Eu não conseguia sequer levantar. Foram cinco dias <strong>de</strong><br />
cama por or<strong>de</strong>m médica.<br />
Aplick, W. Gee e Adriano fi caram ilhados sem enten<strong>de</strong>r bem o que<br />
estava acontecendo. Dario veio <strong>de</strong> São Paulo e todos foram ao<br />
apartamento da minha mãe conferir a situação. Pensaram que eu<br />
não queria mais fazer a produção e que estava enganando eles.<br />
Dario estava furioso, mas expliquei que não enganaria ninguém,<br />
só precisava me recuperar fi sicamente. Pedi para que adiassem o<br />
trabalho mais <strong>um</strong>a vez, como infelizmente acontecera antes, mas<br />
eles não queriam <strong>de</strong> jeito nenh<strong>um</strong>. A pressão foi muito gran<strong>de</strong>.<br />
Ou a produção começava logo ou eu <strong>de</strong>volvia o dinheiro, porque<br />
eles não podiam mais esperar. Saímos <strong>de</strong> lá todos mais calmos e<br />
eu resolvi iniciar o trabalho no dia seguinte, apesar do estado <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong> em que me encontrava.<br />
Quando cheguei à minha sala, todos os meus equipamentos<br />
estavam n<strong>um</strong>a caixa. O Adriano fi zera isso como garantia, caso eu<br />
416
Entre a adolescência e o crime<br />
417<br />
não os produzisse nem <strong>de</strong>volvesse o dinheiro do adiantamento.<br />
Fiquei chateado com essa situação, ainda mais por causa <strong>de</strong> tudo<br />
pelo que eu já fi zera pelo grupo e por tudo que já passáramos juntos.<br />
Levei quase <strong>um</strong> dia inteiro para remontar a aparelhagem. No<br />
entanto, entendi a agonia que eles estavam passando – a pressão<br />
<strong>de</strong> suas mulheres e <strong>de</strong> seus familiares –, afi nal <strong>de</strong> contas, eles<br />
<strong>de</strong>pendiam do novo disco para continuar a sobreviver no rap e<br />
para pagarem as suas dívidas e honrarem os compromissos com a<br />
vendagem <strong>de</strong> CDs e shows. Finalmente também percebi que tinha<br />
que apren<strong>de</strong>r a separar as coisas; a não me envolver <strong>de</strong>mais com<br />
as pessoas e com os grupos; a não misturar problemas pessoais<br />
com problemas profi ssionais.<br />
Assim que a produção pegou ritmo, eles começaram a relaxar e<br />
me pediram <strong>de</strong>sculpas pelo acontecido. Anos <strong>de</strong>pois, o próprio<br />
Dario, do jeito <strong>de</strong>le, me pediu <strong>de</strong>sculpas pela pressão feita na<br />
minha própria casa. Só que muitos no DF, quando souberam<br />
do ocorrido, compraram a minha briga. Eles não conseguiram<br />
enten<strong>de</strong>r por que isso acontecera comigo e por que eu aceitara<br />
o pedido <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas do grupo. Por causa disso, durante anos<br />
o Consciência H<strong>um</strong>ana não teve espaço para shows no DF. Inúmeros<br />
DJs pararam <strong>de</strong> tocar as músicas do grupo (embora eu<br />
não tenha tido nenh<strong>um</strong>a infl uência sobre isso). Mas graças a<br />
Deus, hoje tudo está superado.<br />
Tirando esses problemas, que rapidamente foram esquecidos por<br />
mim, consi<strong>de</strong>ro o CD Entre a adolescência e o crime <strong>um</strong>a obraprima<br />
no rap nacional. A letra da faixa-título do CD é <strong>um</strong> exemplo:<br />
Há muito tempo quis tentar fugir dos homicídios<br />
Se tornando assassino do próprio raciocínio<br />
O inimigo maior, o cara que só<br />
Andava adiantando a morte<br />
E atrasando os arquivos da mente<br />
Infelizmente bateu <strong>de</strong> frente com o pó<br />
Se envolveu com a química, a chance é mínima<br />
E o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>strutivo será maior<br />
Na era do pó, na era do pó
418 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
A barba cresce e você se esquece <strong>de</strong> quem é você<br />
Só quer viver na balada, maldita calada<br />
Maltrata o ser, não seja eu, não seja você<br />
O quinto a fazer parte da oitava banca a ser assassinada<br />
Por isso ao sair <strong>de</strong> casa reze três Ave Maria, três <strong>de</strong> graça<br />
Só para que os ratos cinza não venham nos aborrecer<br />
Nessa jornada, e que Deus il<strong>um</strong>ine a nossa caminhada<br />
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém<br />
Quantos mano se foram, <strong>um</strong>a par <strong>de</strong> manos se foram<br />
É muita treta, <strong>um</strong>a pá <strong>de</strong> pilantragem<br />
Primeira passagem lhe forjaram o 157, ladrão esquece<br />
Chegou sua vez, piou o xadrez, piou o xadrez, piou o xadrez<br />
Chegou sua vez, piou o xadrez, piou o xadrez, piou o xadrez<br />
IPA Instituto Penal Agricular<br />
Sobre o comando policial é <strong>um</strong> coração<br />
Com <strong>um</strong> simples sistema tático <strong>de</strong> proteção é <strong>um</strong>a prisão<br />
De reintegração fi nal na socieda<strong>de</strong><br />
Pra esses criminosos eventual ou habitual<br />
É <strong>um</strong>a tremenda e macabra favela<br />
É <strong>um</strong> inferno real pra muitos normal<br />
PA-PA-PA-PÁ quantos a química irá matar<br />
RA-TA-TA-TÁ se joga se for ligeiro pra te salvar<br />
Difícil <strong>de</strong> se viver porque é pura <strong>de</strong>cadência<br />
Seres h<strong>um</strong>anos jogados <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> quartos<br />
Alojamentos superlotados con<strong>de</strong>nados<br />
A suportar tanto sofrimento, sistema sangrento<br />
Que <strong>de</strong>smoraliza o <strong>de</strong>tento, que por infelicida<strong>de</strong><br />
Per<strong>de</strong> a tranqüilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver com seus familiares<br />
Mas tem perseguição que resulta apreensão<br />
Casa <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção, agora os ratos cinza prontos pra atacar<br />
O ser h<strong>um</strong>ano viciado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
Que se escon<strong>de</strong>, faz o máximo pra respeitar as regras<br />
E não ser levado pra lá novamente, ninho da serpente, prisão<br />
Sistema fechado, a triste regressão, sem condição<br />
Moscas sobrevoam a nossa alimentação<br />
E os banheiros entupidos cheios <strong>de</strong> micróbios<br />
E as pare<strong>de</strong>s podres, me dá neurose<br />
Em ver <strong>um</strong> homem ser espancado até a morte<br />
Falta <strong>de</strong> sorte, tropa <strong>de</strong> choque.
Entre a adolescência e o crime<br />
419<br />
Esse trecho da música mostra como o envolvimento com as<br />
drogas e o crime leva o ser h<strong>um</strong>ano para <strong>um</strong> sistema carcerário<br />
falido no Brasil.<br />
Umas das melhores faixas <strong>de</strong>sse disco é a “Periferia tem o seu<br />
lado bom”:<br />
Na h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> do cidadão a gente acredita;<br />
Naqueles que não abaixam a cabeça para os problemas da vida;<br />
Que com fé e coragem acreditam que tudo po<strong>de</strong> dar certo;<br />
E são pessoas que estão enxergando que não está tudo acabado;<br />
Pessoas que incentivam outras pessoas a darem a volta por cima;<br />
E superar as barreiras, buscar esse mesmo lado positivo;<br />
Po<strong>de</strong> acreditar, esse lado em todo o ser h<strong>um</strong>ano há,<br />
po<strong>de</strong> acreditar;<br />
Pessoas que não são preconceituosas;<br />
Não têm vergonha do que são e nem do bairro on<strong>de</strong> moram;<br />
Que encaram a vida como realmente é;<br />
Quer dar a mão e está consciente dos atos;<br />
Pra se orgulhar <strong>de</strong> cada passo dado simbolizando união;<br />
Periferia tem o seu lado bom.<br />
A visão positiva sobre a favela nesse trecho da música seria muito<br />
importante para <strong>um</strong> grupo que, na maioria das vezes, relatava a<br />
violência policial em suas letras.<br />
Mas, com certeza, o maior sucesso do Consciência H<strong>um</strong>ana seria<br />
“Lembranças”. Retomamos a produção <strong>de</strong>ssa música que havíamos<br />
iniciado anos atrás, ainda na sala na 315 Norte. O violão<br />
fora tocado pelo Ariel Feitosa e o baixo pelo Alfredo. Eu ass<strong>um</strong>ira<br />
o moog, na introdução da música, mas em cima <strong>de</strong> <strong>um</strong> teclado<br />
moog <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> que pedira emprestado ao Denis, dono <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
gran<strong>de</strong> equipe <strong>de</strong> sonorização <strong>de</strong> Brasília.<br />
Quase 10 anos <strong>de</strong>pois do seu lançamento, “Lembranças” ainda<br />
toca nas rádios <strong>de</strong> São Paulo. Essa música, que mais parece MPB<br />
– como já dizia o Genivaldo, da Discovery – fez história pela instr<strong>um</strong>ental<br />
e pela letra, que fala sobre o envolvimento <strong>de</strong> <strong>um</strong> irmão<br />
do Aplick com o crack e a morte <strong>de</strong>le por overdose:
420 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
421
422 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
A lembrança do passado nos torna <strong>um</strong>a penitência;<br />
É que quando lembramos das vítimas;<br />
Das balas perdidas, do crack e da cocaína;<br />
E da inocência das pessoas que moram na periferia;<br />
Por ter <strong>um</strong> dia marcado e ter a noite perdida;<br />
De dia é os planos <strong>de</strong> furto que nos ro<strong>de</strong>iam;<br />
É <strong>um</strong> distúrbio mental, a morte cerebral;<br />
É o <strong>de</strong>saparecer do ser h<strong>um</strong>ano;<br />
São pessoas boas que estão se transformando em pessoas más;<br />
Não posso acreditar que se <strong>de</strong>ixou levar;<br />
A ponto <strong>de</strong> pelo crack estar dominado;<br />
Foram 26 anos perdidos em poucas horas;<br />
E pelo crack você ignorou a sua própria vitória;<br />
Ei cara, quando eu me lembro das suas palavras;<br />
Dos seus planos <strong>de</strong> vida, das nossas idéias trocadas;<br />
Das noites <strong>de</strong> sorriso e das baladas geladas;<br />
Em que comigo você se preocupava;<br />
Você me dizia pra não entrar nas paradas erradas;<br />
E que me afastasse das drogas e das armas;<br />
Que eram <strong>um</strong>a jogada macabra;<br />
E que o mundo pro criminoso era escuro;<br />
E que não era futuro pra mim;<br />
Pra eu seguir os seus conselhos e não os seus caminhos;<br />
Porque on<strong>de</strong> morreram as rosas fi caram os espinhos;<br />
E quem não tem bom aliado anda sempre sozinho;<br />
Pra não ser queima <strong>de</strong> arquivo, não ser queima <strong>de</strong> arquivo;<br />
Eu ouvi seus conselhos, mas você fracassou;<br />
Em <strong>um</strong> balada gelada o crack te dominou;<br />
E os seus planos <strong>de</strong> vida você ignorou;<br />
Dizendo que o crack superou suas palavras;<br />
E na noite andava como <strong>um</strong>a alma penada;<br />
E no meio <strong>de</strong> campo com muitos outros;<br />
Fazia parte da jogada macabra, a noite passava;<br />
E a sauda<strong>de</strong> das pessoas provocam as lágrimas.<br />
Essa é <strong>um</strong>a daquelas músicas em que a instr<strong>um</strong>ental combina<br />
perfeitamente com a letra e a rima. Para mim, “Lembranças” vai<br />
marcar o grupo para sempre, como marcou todo movimento cultural<br />
do hip-hop. Entre a adolescência e o crime colocou, mais <strong>um</strong>a<br />
vez, o Consciência H<strong>um</strong>ana no primeiro time do rap brasileiro.
Entre a adolescência e o crime<br />
423<br />
O último CD do grupo que produzi foi Agonia do morro . Um trabalho<br />
que não seguiu os padrões dos dois anteriores, porque a situação<br />
em que o W. Gee e o Aplick se encontravam refl etia muito nas<br />
letras. E a revolta dos dois com tudo o que estava acontecendo<br />
em São Mateus e no hip-hop era gran<strong>de</strong>. Antes <strong>de</strong> entrarmos<br />
no estúdio para produzir o CD, eu lembro da indignação <strong>de</strong>les<br />
porque a polícia invadira o “Barraco”. Era o local <strong>de</strong> encontro da<br />
DRR, on<strong>de</strong> eles ensaiavam, planejavam ações comunitárias para<br />
melhorar o bairro, se reuniam e escreviam letras. A invasão fora<br />
provocada por <strong>um</strong>a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> que o local seria <strong>um</strong>a boca-<strong>de</strong>f<strong>um</strong>o.<br />
Mais <strong>um</strong>a vez, a língua nervosa dos invejosos e dos mal<br />
informados acabaria com <strong>um</strong> local que, na verda<strong>de</strong>, era usado<br />
para promover a união e a cultura hip-hop. Por isso, o título do<br />
CD. Eles não tiveram letras no mesmo estilo <strong>de</strong>, por exemplo,<br />
“Tá na hora” e “Lembranças”, que fi zeram a carreira do grupo.<br />
O gran<strong>de</strong> público do Consciência H<strong>um</strong>ana se acost<strong>um</strong>ara com<br />
músicas assim. Eles só não pagaram caro por isso porque, graças<br />
ao nome que o grupo tem, o CD ven<strong>de</strong>u muito. Nesse álb<strong>um</strong>, <strong>um</strong>a<br />
das músicas <strong>de</strong> que mais gosto, não apenas pela produção, mas<br />
também pela rima e pela letra, é “Suspeito”:<br />
Vou que vou na trilha do gueto,<br />
Por on<strong>de</strong> eu passo eu sou mais <strong>um</strong> suspeito,<br />
Com os peitos na cena que faz a revolução,<br />
Do farol da cida<strong>de</strong> r<strong>um</strong>o à sua mansão,<br />
Granada na mão te pressionando querendo o cofre aberto,<br />
Jóias, dólares, ouros, objetos,<br />
Projetos valiosos, planos ambiciosos,<br />
Atento a qualquer movimento suspeito,<br />
Protegido por Deus que também protege os parceiros,<br />
Gran<strong>de</strong>s guerreiros revolucionários,<br />
Lutador, cavalo marchador, sofredor,<br />
No cérebro a febre, no olho o veneno transborda rancor,<br />
Rancor que o sistema criou, criou,<br />
Atrás das gra<strong>de</strong>s e através das correntes,<br />
Coronhadas nos <strong>de</strong>ntes, rodar o tambor,<br />
Do oitão niquelado no DP do <strong>de</strong>legado opressor,
424 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Pressão psicológica, agressão ao cidadão com<strong>um</strong>,<br />
Consi<strong>de</strong>rado raça inferior,<br />
Me agredindo, forçando a assinar o BO,<br />
Que BO, que BO, que BO?<br />
Quando estávamos quase fi nalizando o disco, tivemos <strong>um</strong>a ótima<br />
surpresa: após muita insistência, Aplick convenceu a Zâmbia a<br />
trazer a madrinha Beth Carvalho, <strong>um</strong>a das maiores cantoras do<br />
verda<strong>de</strong>iro samba, para participar na música “Território Leste”:<br />
Silêncio, o sambista está dormindo;<br />
Ele foi, mas foi sorrindo;<br />
A notícia chegou quando anoiteceu;<br />
Escolas, eu peço <strong>um</strong> silêncio <strong>de</strong> <strong>um</strong> minuto;<br />
O Bexiga está <strong>de</strong> luto;<br />
O apito <strong>de</strong> pato na água emu<strong>de</strong>ceu;<br />
Partiu, não tem placa <strong>de</strong> bronze, não fi ca na história;<br />
Sambista <strong>de</strong> rua morre sem glória;<br />
Depois <strong>de</strong> tanta alegria que eles nos <strong>de</strong>u;<br />
E assim <strong>um</strong> fato se repete <strong>de</strong> novo;<br />
Sambista <strong>de</strong> rua, artista do povo;<br />
E é mais <strong>um</strong> que foi sem dizer a<strong>de</strong>us.<br />
Esse samba que a Beth Carvalho canta no meio <strong>de</strong> “Território<br />
Leste” é “Silêncio no Bexiga”, do compositor Geraldo Filme, e<br />
homenageia o Pato N’ Água, ex-diretor <strong>de</strong> bateria das escolas<br />
<strong>de</strong> samba Vai-Vai e Camisa Ver<strong>de</strong>, ambas <strong>de</strong> São Paulo. Ele foi<br />
escolhido porque o Aplick fazia na música <strong>um</strong>a comparação:<br />
tanto sambista como rapper, ambos expoentes <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cultura<br />
<strong>de</strong> rua, sofrem preconceito e morrem sem glória. Isso acontecia<br />
com o samba no passado e agora atingia o hip-hop, porque<br />
irmãos como o Pancho, que ele cita na letra, continuavam a ser<br />
vítimas da violência policial, dos grupos <strong>de</strong> extermínio e do tráfi<br />
co <strong>de</strong> drogas. O grupo Quinteto em Branco e Preto, que sempre<br />
acompanhava a Beth Carvalho nos shows em São Paulo, participou<br />
tocando o samba sobre o arranjo que fi zéramos na parte<br />
da rima. Os dois arranjos se encaixaram perfeitamente, até hoje<br />
não sei como. Provavelmente foi obra <strong>de</strong> Deus.
Entre a adolescência e o crime<br />
425<br />
Trabalhar com a Beth Carvalho no Atelier Studio foi <strong>um</strong>a honra<br />
para mim (embora eu tenha lido, <strong>de</strong>pois que o CD saiu, <strong>um</strong>a reportagem<br />
lamentável na revista Isto É, na qual a “madrinha” dizia<br />
que rap não era música. Por que será que a maioria dos artistas<br />
que se dizem do povo têm tanto preconceito com o hip-hop?).
426<br />
CAPÍTULO 54:<br />
Planeta
Antes <strong>de</strong> produzir o CD Entre a adolescência e o crime , eu e Ariel<br />
nos <strong>de</strong>sligamos da socieda<strong>de</strong> na Planet. Ocorreu mais ou menos<br />
assim: logo que a tecnologia <strong>de</strong> gravadores <strong>de</strong> CDs chegou ao<br />
mercado, eu usei meu cartão <strong>de</strong> crédito para comprar o aparelho.<br />
A idéia era fazermos CDs próprios para os nossos clientes.<br />
Mas a gravadora nunca funcionou direito e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vários<br />
testes mal sucedidos, o Ariel <strong>de</strong>sistiu do projeto. Com isso, nós<br />
não conseguimos fazer os CDs que ven<strong>de</strong>ríamos para pagar a<br />
conta do cartão. Tudo sobrou para mim e fi quei com <strong>um</strong>a dívida<br />
interminável. Esse foi <strong>um</strong> dos principais motivos que fez com<br />
que eu me afastasse da loja e <strong>de</strong> todos. O Ariel <strong>de</strong>ixou tudo nas<br />
costas do Nino, que ass<strong>um</strong>iu sozinho o pepino e continuou a<br />
levar a Planet para frente. Somente anos mais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobri<br />
que, na verda<strong>de</strong>, o Nino não tivera nada a ver com os problemas<br />
que enfrentamos por causa da gravadora <strong>de</strong> CD.<br />
Refeito dos contratempos com a Planet, eu adquiri <strong>um</strong> Apple<br />
Macintosh e migrei para o mundo dos computadores na música.<br />
Era <strong>um</strong> Performa 6200. Com o conversor análogo digital da<br />
Yamaha, eu já fazia produção misturando MIDI com áudio. Era<br />
<strong>um</strong> mundo novo e fascinante. Fiz o disco inteiro do grupo Original,<br />
<strong>de</strong> meu amigo Chan<strong>de</strong>lle, chamado Sacudindo o gueto,<br />
gravando no computador as guitarras e os baixos. Também<br />
produzi o segundo CD do Código Penal, Extrema-unção (É isso<br />
que você quer), <strong>de</strong>ssa forma. Nesse trabalho, o então mais novo<br />
428
Planeta Estúdio<br />
429<br />
grupo <strong>de</strong> rap <strong>de</strong> Planaltina, Óbito, participou na faixa “O diabo<br />
que espere”; a Paula Gabi em “Maluco da quebrada”, e o Brother<br />
em “Sobre o amanhã não sei”. O Óbito era formado pelos irmãos<br />
Ney e Gambel. Eles passaram a integrar o Código logo <strong>de</strong>pois<br />
que o disco saiu.<br />
Infelizmente, o Código Penal não quis continuar com a fi losofi a<br />
<strong>de</strong> trabalho do disco anterior (mais acústico, com samples) e<br />
partiu para <strong>um</strong> estilo que se assemelhava ao do Álibi. Aliás, na<br />
época, a maioria dos grupos seguia esse caminho.<br />
Essa infl uência se mostrava também em dois trabalhos que fi z<br />
para a Discovery. O primeiro foi <strong>um</strong> grupo paralelo que eu, Nike Jay<br />
e Marcão formamos e se chamava Sabotagem. A idéia <strong>de</strong> montar<br />
<strong>um</strong> trabalho novo surgiu porque estávamos revoltados: primeiro,<br />
com o preconceito que nos rondava no DF <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a Secretaria<br />
<strong>de</strong> Segurança censurou o nome <strong>de</strong> nosso grupo, Baseado nas<br />
Ruas, nos shows promovidos pelo governo; e, segundo, porque o<br />
Genivaldo colocara o Daher, do Guind’art 121, à frente das vendas<br />
dos produtos da Discovery em São Paulo. Não tínhamos nada<br />
contra o Daher, apenas achávamos que <strong>um</strong> ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a gravadora<br />
não po<strong>de</strong>ria ter qualquer envolvimento com <strong>um</strong> grupo da<br />
mesma gravadora. A proposta era fazer <strong>um</strong> disco extremamente<br />
dançante e com letras que o público pu<strong>de</strong>sse cantar facilmente.<br />
Fizemos todo o trabalho <strong>de</strong> produção, gravação e mixagem em<br />
duas semanas. Pedi para o Andy patrocinar o estúdio.<br />
— Raffa, você fez <strong>um</strong> disco inteiro em 20 horas <strong>de</strong> estúdio e<br />
ainda quer patrocínio? – perguntou, surpreso com o pouco<br />
tempo gasto.<br />
— Andy, estamos por nossa conta! Não temos gravadora ainda. –<br />
expliquei. – Quebra essa!<br />
— Tudo bem, Raffa!<br />
— Valeu, Andy!
430 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Mesmo com as críticas feitas a ele, disfarçadas na letra da música<br />
“Sabotagem”, o Genivaldo abraçou o projeto e lançou o CD.<br />
Rapidamente duas músicas estouraram em todo DF: “A reação” e<br />
“O mala”. O Marquinhos, da Smurphies Disco Clube, foi o principal<br />
divulgador. Ele gostou muito do trabalho e o tocou muito na rádio<br />
e nos bailes que promovia. Fizemos <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> lançamento do<br />
CD, promovido pelo Daher, no espaço cultural Gran Circo Lar, que<br />
ele tinha na época. Ele não existe mais. No mesmo lugar foram<br />
construídos a Biblioteca Nacional e o Museu <strong>de</strong> República. Muitas<br />
pessoas diziam que a estratégia i<strong>de</strong>al para o Baseado nas<br />
Ruas conquistar <strong>de</strong> vez o público do DF seria <strong>um</strong> trabalho on<strong>de</strong> as<br />
bases fossem no estilo do Sabotagem, mas com letras no estilo do<br />
Baseado. Eu não me <strong>de</strong>ixava infl uenciar por comentários assim,<br />
porque sempre tivemos o nosso próprio estilo. Além do mais, eu<br />
nunca tive preocupações mercadológicas em meus trabalhos. No<br />
entanto, não posso negar que o estilo instr<strong>um</strong>ental gangsta, com<br />
batidas eletrônicas com b<strong>um</strong>bos pesados no estilo bass, além <strong>de</strong><br />
tocar breaks antigos, teve <strong>um</strong>a forte infl uência sobre a produção<br />
do último CD do Baseado nas Ruas, A sabotagem continua.<br />
O segundo trabalho que sofreu infl uência do estilo do Álibi eu fi z<br />
junto com o DJ Jamaika. Os Intocáveis foi no estilo “DJ Scratch”,<br />
ou seja, música para dançar nos bailes, feitas em montagem<br />
com vários elementos conhecidos pelo público. Acho que foi o<br />
último disco instr<strong>um</strong>ental produzido especialmente para os bailes.<br />
Claro que fi zemos <strong>um</strong>a versão nova <strong>de</strong> “DJ Scratch”. A idéia<br />
era que o público não soubesse que eu e o Jamaika estávamos<br />
por trás <strong>de</strong>sse trabalho, pois queríamos que pensassem que o<br />
CD era internacional. Por isso, não colocamos os nossos nomes<br />
na contracapa do CD. Demos as músicas para o DJ Celsão, que<br />
adorou as montagens (a ponto <strong>de</strong> tocar tudo nos bailes, fazendo<br />
a galera dançar para valer).<br />
Nessa época, eu resolvi sair da minha sala na 215 Norte. Eu não<br />
agüentava mais trabalhar tanto e receber tão pouco. Tudo porque<br />
eu fi cava como técnico (sempre estive à frente dos meus trampos
Planeta Estúdio<br />
431<br />
<strong>de</strong> produção na Zen), mas não ganhava nada por isso, já que a gravadora<br />
pagava as horas <strong>de</strong> estúdio diretamente para o estúdio, e<br />
quem recebia pelo trabalho <strong>de</strong> técnico era o contratado pela Zen.<br />
Ele não fazia praticamente nada, enquanto eu, que realizava todo<br />
o seu serviço, recebia somente pela produção. No começo, eu<br />
não me importava, tudo era festa, mas com o passar dos anos fui<br />
fi cando revoltado por trabalhar entre 60 e cem horas e não ganhar<br />
nada por isso. Eu não achava justo. Fui procurar o Pauli, do Planeta<br />
Estúdio, e perguntei se ele não me arrendaria o estúdio.<br />
— Raffa, estou tirando <strong>um</strong>a ilha <strong>de</strong> edição <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o da sala ao lado<br />
do estúdio principal. Você po<strong>de</strong> usar essa sala – respon<strong>de</strong>u ele.<br />
— Legal, Pauli, fechado! Mas eu acho que a gente vai precisar<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a secretária para trabalhar pra gente.<br />
— Você conhece <strong>um</strong>a, Raffa?<br />
— Sim. A gente divi<strong>de</strong> o salário <strong>de</strong>la. É a Alessandra, minha<br />
namorada – respondi.<br />
— Você acha que ela vai dar conta?<br />
— A gente ensina a ela, Pauli.<br />
Ao sair <strong>de</strong>sse encontro, eu tinha <strong>um</strong>a sala acusticamente tratada<br />
ao lado do estúdio principal, on<strong>de</strong> faria todas as minhas<br />
produções e mixagens, além da promessa <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ria usar<br />
todo o equipamento do estúdio na hora <strong>de</strong> gravar as vozes <strong>de</strong><br />
minhas produções. Também fi cou acordado que se o Pauli precisasse<br />
<strong>de</strong> mim, eu faria alguns trabalhos para ele.<br />
Naquela sala, produzi muitos trabalhos. Por exemplo, o CD A sabotagem<br />
continua, com participação do Rei (Cirurgia Moral), do Tales<br />
(Código Penal) e do Angel Duarte, que fez refrões em várias músicas.<br />
Regravamos também “Tiro pela culatra” e “Dia D”. A sabotagem<br />
continua foi o primeiro CD que fi z n<strong>um</strong> PC. Eu tive tantos problemas<br />
com a assistência técnica do meu Macintosh, que migrei<br />
para a plataforma PC. Depois produzi a coletânea da DRR que<br />
o DJ Adriano organizou, trazendo os grupos da posse, <strong>um</strong> por
432 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
<strong>um</strong>, <strong>de</strong> São Paulo para Brasília. O Dario, da Loja e gravadora Porte<br />
Ilegal, também trouxe <strong>de</strong> São Paulo o grupo Sistema Negro para<br />
eu produzir no DF. O Kid Nice, do Sistema Negro, insistira muito<br />
nessa escolha, porque acreditava que eu seria o único produtor<br />
capaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o som que eles queriam fazer.<br />
Nessa época, voltei a falar com o Ariel Feitosa, que me procurara<br />
e pedira <strong>de</strong>sculpas. Ariel sabia – e ele próprio dissera isso<br />
– que ele não cresceria profi ssionalmente se não continuasse<br />
a amiza<strong>de</strong> comigo. No mesmo dia ele teve a idéia <strong>de</strong> prensar Os<br />
Intocáveis. Liguei para o Jamaika e pedi sua autorização para o<br />
Ariel começar o trampo.<br />
Passou alg<strong>um</strong> tempo e a dupla <strong>de</strong> empresários do Álibi, com a<br />
qual eu não tinha afi nida<strong>de</strong>, me procurou no estúdio. Eu estava<br />
puto com eles, por causa <strong>de</strong> <strong>um</strong> episódio que acontecera no<br />
I Encontro da Juventu<strong>de</strong>, em 1999, no DF. Os organizadores <strong>de</strong>sse<br />
evento promoveram <strong>um</strong> show <strong>de</strong> rap na Torre <strong>de</strong> TV e os dois<br />
empresários quiseram agenciar o Baseado nas Ruas. Como eu<br />
não tinha nada a per<strong>de</strong>r, aceitei. Pedi a eles para colocar o Baseado<br />
nesse show. Os dois falaram que só três grupos po<strong>de</strong>riam<br />
participar e que seria muito difícil nos encaixar. Fiquei muito<br />
cabreiro e resolvi procurar, pessoalmente, os organizadores do<br />
encontro. Foi aí que <strong>de</strong>scobri: essa dupla <strong>de</strong> empresários nojentos<br />
estava colocando o Jamaika e o Álibi – que, para mim, eram<br />
a mesma coisa, já que o Jamaika fazia parte do Álibi – entre os<br />
três grupos que iriam tocar. O terceiro seria o Gog. Fiquei nervoso<br />
com tal atitu<strong>de</strong> e expliquei o que estava acontecendo para<br />
os organizadores. Graças a Deus, eles sabiam quem eu era e por<br />
isso mudaram as regras do jogo, tirando o Jamaika e <strong>de</strong>ixando o<br />
Álibi, o Baseado nas Ruas e o Gog para o show <strong>de</strong> rap. Mas o fato<br />
é que a tal dupla armara <strong>um</strong>a casinha 1 para mim. Eles se ofereceram<br />
para empresariar o Baseado porque sabiam que eu não<br />
correria atrás e, assim, teriam a chance <strong>de</strong> boicotar o Baseado.<br />
Não acredito que o Jamaika tivesse qualquer infl uência sobre<br />
1 Armadilha.
Planeta Estúdio<br />
433<br />
a dupla. Era o contrário: a dupla manipulava o Jamaika. Depois<br />
<strong>de</strong>sse episódio, eu nunca mais falei com esses empresários.<br />
No entanto, quando os dois me procuraram no estúdio, eu os<br />
<strong>de</strong>ixei entrar para saber o que queriam.<br />
— Raffa, precisamos <strong>de</strong> <strong>um</strong> favor urgente seu – disse <strong>um</strong><br />
<strong>de</strong>les.<br />
— Sim, o que posso fazer?<br />
— A gente sabe que o Genivaldo, da Discovery, só faz produção<br />
com você.<br />
— Sim, é verda<strong>de</strong>. Mas qual é o problema? – perguntei.<br />
— É que a Warner está querendo contratar o Jamaika, mas ele<br />
ainda tem contrato com a Discovery pra mais <strong>um</strong> CD.<br />
— E o que vocês querem <strong>de</strong> mim?<br />
— Queremos que você assine <strong>um</strong>a produção sem ter feito ela –<br />
respon<strong>de</strong>ram.<br />
— O quê? Nem pensar! Tô fora! – respondi indignado.<br />
Eu não acreditava no que ouvia. A dupla convencera o Jamaika a<br />
ir ao Rio <strong>de</strong> Janeiro para fazer <strong>um</strong> CD inteiro, intitulado De rocha,<br />
com o DJ Grandmaster Raphael, que, por sinal, era meu amigo.<br />
Eu e o Jamaika assinaríamos pelo trabalho e eu não contaria<br />
nada para o Genivaldo. O pior não era isso. Eu pegaria a grana<br />
da produção com o Genivaldo e repassaria a parte do Jamaika<br />
para que ele pu<strong>de</strong>sse pagar o que ainda estava <strong>de</strong>vendo para o<br />
Grandmaster Raphael. Isso é o que eu chamo <strong>de</strong> proposta in<strong>de</strong>cente.<br />
A dupla me pediu <strong>de</strong> joelhos, pelo amor <strong>de</strong> Deus, para eu<br />
fazer essa jogada com eles.<br />
— Raffa, pensa no Jamaika. É a oportunida<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong>le <strong>de</strong><br />
assinar com <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> gravadora.
434 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Se fosse ele, não assinava não. Já fui <strong>de</strong> gravadora gran<strong>de</strong>,<br />
multinacional e eles não enten<strong>de</strong>m porra nenh<strong>um</strong>a <strong>de</strong> rap –<br />
disse.<br />
— Estamos <strong>de</strong>sesperados, Raffa. Por favor! – insistiram.<br />
— Tenho que pensar sobre o assunto – respondi.<br />
A última jogada <strong>de</strong>les foi nojenta:<br />
— Pensa bem que quando ele estiver lá <strong>de</strong>ntro, ele vai te chamar<br />
pra você produzir o CD junto com ele. Aí você po<strong>de</strong>rá cobrar<br />
<strong>um</strong>a fortuna <strong>de</strong> cachê pela sua produção.<br />
— Mas agora eu vi mesmo. Não tô no rap pelo dinheiro não,<br />
porra! Se eu fi zer isso vai ser pelo Jamaika e não por vocês! E,<br />
por causa disso, jamais obrigaria ele a fazer a produção do próximo<br />
CD comigo. Ainda mais porque vou mentir pro Genivaldo<br />
que não tem nada a ver com isso. Já tive meus problemas com<br />
ele, mas isso é passado.<br />
Pedi à dupla para ir embora e fi quei pensando no assunto durante<br />
alguns dias. Resolvi aceitar o pedido sem imaginar o quanto me<br />
arrepen<strong>de</strong>ria mais tar<strong>de</strong>. Eles me trouxeram o “CD master” já<br />
mixado para eu masterizar antes <strong>de</strong> entregar para o Genivaldo.<br />
Quando ouvi a mixagem, não gostei. Ainda avisei para a dupla que<br />
o padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> não seria o mesmo dos meus trabalhos,<br />
principalmente porque o estilo <strong>de</strong> produzir era diferente. E que<br />
masterização não resolve problemas <strong>de</strong> mixagem. Acho que eles<br />
não estavam nem aí. Estava na cara que o disco era só para c<strong>um</strong>prir<br />
contrato. Genivaldo <strong>de</strong>sconfi ou.<br />
— Raffa, já tá pronto? Dessa vez foi rápido, hein?<br />
Peguei a grana e repassei a parte do Jamaika. O CD A sabotagem<br />
continua, do Baseado nas Ruas, saiu <strong>um</strong> pouco antes do De rocha<br />
e o Genivaldo conce<strong>de</strong>u <strong>um</strong>a entrevista para <strong>um</strong> jornal dizendo<br />
que o nosso disco era o que mais vendia na gravadora. Mais até<br />
do que o do Jamaika, que começou a reclamar que não gostara<br />
da masterização. O problema é que ele fez a reclamação para
Planeta Estúdio<br />
435<br />
o Genivaldo <strong>um</strong> mês <strong>de</strong>pois que eu entreguei a masterização.<br />
Se ele não gostou, por que não reclamara <strong>um</strong> dia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eu<br />
ter entregado o CD? Na verda<strong>de</strong>, a dupla <strong>de</strong> empresários fazia a<br />
cabeça <strong>de</strong>le contra mim. Fiquei puto com isso e tratei <strong>de</strong> contar<br />
toda a verda<strong>de</strong> para o Genivaldo.<br />
— Porra, Raffa, por que você fez isso, cara? – perguntou Genivaldo.<br />
— Então, fui passado pra trás nessa parada, Genivaldo. Assinei<br />
por <strong>um</strong>a coisa que eu não fi z e agora tão espalhando que sou o<br />
culpado porque o disco não tá vingando – respondi.<br />
— O disco é ruim mesmo, Raffa! Eu sempre <strong>de</strong>sconfi ei.<br />
— Não acho a produção do Raphael ruim, Genivaldo. Ele só<br />
não tem a experiência que eu tenho pra mixar <strong>um</strong> disco. Se eu<br />
tivesse as músicas abertas, teria melhorado a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le.<br />
Me <strong>de</strong>sculpe, Genivaldo, mas a dupla <strong>de</strong> pára-quedistas do rap<br />
me enganou direitinho – disse, referindo-me aos empresários<br />
do Jamaika.<br />
— Esquenta não, Raffa! Eu também não suporto aquela dupla –<br />
disse Genivaldo.<br />
Graças a Deus, ele enten<strong>de</strong>u o meu lado.<br />
Como eu previra, não fui procurado para fazer a produção do<br />
disco do Jamaika que saiu pela Warner. Quem fez esse trabalho<br />
foi <strong>um</strong> produtor chamado Plínio Profeta e o nome do CD é<br />
Pá doido pirá. Ouvi muitos comentários <strong>de</strong> que era <strong>um</strong>a pena<br />
que tivesse acabado a dupla <strong>de</strong> produção formada por mim e<br />
pelo Jamaika. Mas <strong>de</strong>ixei bem claro que o término não fora <strong>um</strong>a<br />
opção minha. E que todos têm o direito <strong>de</strong> seguir a própria carreira.<br />
Tanto é verda<strong>de</strong> que quando o Rei montou <strong>um</strong> pequeno<br />
estúdio no Conic, no Centro <strong>de</strong> Brasília, em socieda<strong>de</strong> com o DJ<br />
Bruno, não achei ruim.<br />
— Loirinho, você sempre me ensinou que eu tenho que ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
– disse ele.
436 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Claro, Rei! No que eu pu<strong>de</strong>r ajudar...<br />
Por várias vezes fui ao estúdio ajudar o Bruno a confi gurar computador,<br />
instalar softwares <strong>de</strong> músicas e ensinar alguns truques,<br />
mesmo sabendo que eles eram meu concorrentes. Para mim,<br />
esse é o verda<strong>de</strong>iro espírito do hip-hop: dividir informações; não<br />
ser egoísta.<br />
No meio do ano <strong>de</strong> 1999, produzi <strong>um</strong> CD inteiro para o rapper Mister<br />
Zoy, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, pela Natasha Records. Mandaram <strong>um</strong>a<br />
passagem para eu ir ao Rio fechar a produção. Quando entrei na<br />
sala <strong>de</strong> reuniões da gravadora, vi em cima da mesa quase todos<br />
os CDs que eu produzira nos últimos cinco anos. Fiquei espantado<br />
como eles estavam por <strong>de</strong>ntro do meu trabalho. Haviam<br />
feito <strong>um</strong>a pesquisa sobre minhas produções. Fui muito elogiado<br />
como produtor e me contrataram para fazer o CD do Zoy.<br />
Zoy veio para Brasília e fi cou mais ou menos <strong>um</strong> mês fazendo o<br />
disco. Depois, voltei com ele ao Rio para capturar alg<strong>um</strong>as participações<br />
especiais. O rap do Rio estava começando a se projetar<br />
nacionalmente. O Artigo 288 era o único grupo <strong>de</strong> rap carioca<br />
que eu lembrava <strong>de</strong> ter gravado <strong>um</strong> disco, no ano <strong>de</strong> 1993, pela<br />
gravadora Radical Records. Além do Zoy, quem <strong>de</strong>spontava no<br />
Rio era o MV Bill. Muitas músicas tinham gírias cariocas que me<br />
agradavam muito, como péla saco, que quer dizer “sujeito chato”.<br />
Mas por causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sentendimentos do Zoy com a Natasha, esse<br />
CD infelizmente nunca saiu.<br />
Acabei, enfi m, <strong>de</strong>ixando o Planeta Estúdio porque não c<strong>um</strong>priram<br />
o combinado comigo. Eu nunca tinha o estúdio principal à<br />
disposição para fazer meus vocais. Ele sempre estava ocupado, a<br />
maioria dos vocais eu fazia na minha sala. O último trabalho que<br />
fi z no Planeta foi o CD gospel da Rose, esposa do Genivaldo.<br />
Nessa época, me casei com a Alessandra e fui morar no Cruzeiro<br />
Novo (bairro <strong>de</strong> Brasília). Começava <strong>um</strong>a das piores fases<br />
da minha vida.
Planeta Estúdio<br />
437
438<br />
CAPÍTULO 55:
Depois que saí do Planeta Estúdio, me instalei provisoriamente<br />
com os meus equipamentos na sala do maestro Pacheko, <strong>um</strong><br />
ex-aluno <strong>de</strong> meu pai. A sala fi cava no Edifício Rádio Center, no<br />
Setor <strong>de</strong> Rádio e TV Norte. O principal trabalho que produzi nessa<br />
sala foi o CPI da Favela, sexto disco da carreira do Gog. Des<strong>de</strong> o<br />
CD Das trevas à luz, o grupo Gog era formado pelo Japão, Mano<br />
Mix, Dino Black e o próprio Gog.<br />
Mas o início foi árduo. Tudo começou quando eu estava em São<br />
Paulo, no Atelier Studio, conversando com o Van<strong>de</strong>r. Repentinamente,<br />
senti <strong>um</strong>a forte dor <strong>de</strong> cabeça. Eu sofria <strong>de</strong> hipertensão<br />
e, quando me dava dor <strong>de</strong> cabeça, já sabia que minha pressão<br />
estava alta. Porém, daquela vez a dor foi muito aguda. Van<strong>de</strong>r<br />
me ajudou pedindo <strong>um</strong> táxi, on<strong>de</strong> fui locomovido para o hospital<br />
mais próximo. Cheguei à emergência gritando <strong>de</strong> dor e logo<br />
mediram minha pressão. Quando o resultado da medição marcou<br />
21, imediatamente me colocaram n<strong>um</strong>a maca, me <strong>de</strong>ram<br />
<strong>um</strong> remédio embaixo da língua e aplicaram soro. A enfermeira<br />
<strong>de</strong>ixou o soro caindo com muita intensida<strong>de</strong> e minha pressão<br />
diminuiu tão rapidamente que quase <strong>de</strong>smaiei. Graças a Deus,<br />
fui socorrido na hora certa. Como eu cost<strong>um</strong>ava me hospedar<br />
no Hotel Danúbio, na Avenida Briga<strong>de</strong>iro Luiz Antônio, na<br />
esquina <strong>de</strong> <strong>um</strong>a travessa com a rua Major Diogo, on<strong>de</strong> fi ca o<br />
Atelier Studio, voltei do hospital direto para lá e fi quei dois dias<br />
<strong>de</strong> repouso, só recebendo visitas dos amigos. Aí o Japão, o Mano<br />
440
CPI da Favela<br />
441<br />
Mix e o Dino Black foram me ver e falaram que queriam muito<br />
produzir o novo disco do Gog comigo.<br />
— Raffa, a gente tem que fazer esse disco com você – disse<br />
Japão.<br />
— Japão, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim, velho. Só do Gog! – respondi.<br />
— Ele vai te procurar amanhã pra conversar e negociar essa<br />
produção, Raffa – adiantou ele.<br />
— Ok, Japão! Vou fi car aguardando, então – respondi.<br />
No outro dia, como previsto, negociamos a produção <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos<br />
melhores discos da carreira do Gog.<br />
Voltando para Brasília, os trabalhos começaram imediatamente.<br />
O Ariel, o Juninho (percussionista), o Mano Mix e o Japão<br />
participaram do processo <strong>de</strong> criação junto comigo. A música<br />
que marca esse disco é, sem dúvida, “Brasil com P”, feita em<br />
cima <strong>de</strong> <strong>um</strong> sample da música “Fio Maravilha”, do ilustre Jorge<br />
Ben Jor:<br />
Pesquisa publicada prova<br />
Preferencialmente preto<br />
Pobre prostituta pra polícia pren<strong>de</strong>r<br />
Pare pense por quê?<br />
Prossigo<br />
Pelas periferias praticam perversida<strong>de</strong>s<br />
PMs<br />
Pelos palanques políticos prometem prometem<br />
Pura palhaçada<br />
Proveito próprio<br />
Praias programas piscinas palmas<br />
Pra periferia<br />
Pânico pólvora pa pa pa<br />
Primeira página<br />
Preço pago<br />
Pescoço peitos pulmões perfurados<br />
Parece pouco<br />
Pedro Paulo
442 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
443
444 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Profi ssão pedreiro<br />
Passatempo predileto<br />
Pan<strong>de</strong>iro<br />
Preso portando pó passou pelos piores pesa<strong>de</strong>los<br />
Presídio porões problemas pessoais<br />
Psicológicos per<strong>de</strong>u parceiros passado presente<br />
Pais parentes principais pertences<br />
PC<br />
Político privilegiado preso parecia piada<br />
Pagou propina pro plantão policial<br />
Passou pela porta principal<br />
Posso parecer psicopata<br />
Pivô pra perseguição<br />
Prefeitos populares portando pistolas<br />
Pronunciando palavrões<br />
Promotores públicos pedindo prisões<br />
Pecado pena prisão perpétua<br />
Palavras pronunciadas<br />
Pelo poeta irmão...<br />
Essa letra é mais <strong>um</strong>a obra-prima do rap nacional. Na minha<br />
opinião, o Gog atravessava <strong>um</strong>a das fases mais criativas <strong>de</strong> sua<br />
vida. A única música <strong>de</strong>sse trabalho que não teve a minha produção<br />
foi “É o terror”, produzido pelo Elívio Blower. O refrão <strong>de</strong>la<br />
é muito marcante:<br />
É o terror é o terror<br />
Rap nacional é o terror que chegou<br />
Rap nacional é o terror é o terror<br />
Rap nacional é o terror que chegou<br />
É o terror!<br />
Aí sistema, sou o rap nacional<br />
Linha <strong>de</strong> frente, trema!<br />
Minha mente talvez alg<strong>um</strong> h<strong>um</strong>ano não entenda<br />
Será que alg<strong>um</strong> cientista <strong>de</strong>svenda esse mistério<br />
Eu quero gentilmente<br />
Eu quero o raio-x do meu cérebro<br />
Eu quero saber por que eu penso diferente<br />
Quem morre no dia-a-dia ladrão é gente
CPI da Favela<br />
Da gente <strong>um</strong> <strong>de</strong>sespero<br />
Um sonho <strong>um</strong> pesa<strong>de</strong>lo o sangue<br />
O crime está no ar e você é mais <strong>um</strong> her<strong>de</strong>iro<br />
Vou novamente me apresentar<br />
Sou revolucionário sou nova forma <strong>de</strong> pensar<br />
Eu sou o papelote a inscrição pra receber o lote<br />
A bomba que explo<strong>de</strong><br />
O batalhão inteiro<br />
A esperança o orgulho do povo brasileiro.<br />
445<br />
Esse trecho da letra mostra o rap nacional em primeira pessoa,<br />
como <strong>um</strong> ser vivo, <strong>um</strong>a entida<strong>de</strong> revolucionária que ninguém<br />
mais podia segurar. Como se essa cultura fosse <strong>um</strong>a consciência<br />
coletiva do povo brasileiro, com o objetivo <strong>de</strong> enfrentar o sistema,<br />
que massacra o Brasil. Tenho muito orgulho <strong>de</strong> ter participado do<br />
processo criativo <strong>de</strong>sse CD.<br />
Depois que o disco saiu, a revista Show Bizz publicou <strong>um</strong>a crítica<br />
excelente sobre ele, com <strong>um</strong> comentário on<strong>de</strong> dizia que o<br />
Gog tinha reencontrado o seu melhor parceiro <strong>de</strong> produção, DJ<br />
Raffa. Não sei se isso agradou ao Gog, mas sei que esse jornalista<br />
lera os meus pensamentos. No entanto, todo o processo<br />
fi nanceiro <strong>de</strong>sse trabalho fora tratado diretamente com a Alessandra,<br />
que tinha o dom <strong>de</strong> estragar tudo e <strong>de</strong> espantar todos<br />
os meus clientes e amigos com quem eu trabalhava. Só eu não<br />
enxergava isso e, por muito tempo, enquanto estávamos juntos,<br />
as pessoas começaram gradativamente a se afastar <strong>de</strong> mim.<br />
Antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>volver a sala para o maestro Pacheko, ainda <strong>de</strong>u tempo<br />
<strong>de</strong> eu fazer <strong>um</strong> trabalho instr<strong>um</strong>ental, a pedido do Gog, para a<br />
gravadora RDS. Esse CD serviria <strong>de</strong> base para os MCs rimarem<br />
em cima. Tive muita inspiração ao criar as bases. O disco ven<strong>de</strong>u<br />
muito rapidamente – até em gran<strong>de</strong>s lojas e supermercados. Foi<br />
<strong>um</strong>a conquista para o hip-hop, já que, se já é difícil ter <strong>um</strong> CD<br />
com<strong>um</strong> <strong>de</strong> rap nacional nas prateleiras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s supermercados<br />
e <strong>de</strong> lojas, imagine <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ental. Hoje em dia é impossível<br />
encontrá-lo à venda.
446<br />
CAPÍTULO 56:
Em 2000, quatro situações marcaram a minha vida.<br />
A primeira: minha mãe criou a Associação Cultural Claudio Santoro<br />
com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver projetos culturais e sociais.<br />
Ela precisava <strong>de</strong> <strong>um</strong>a se<strong>de</strong>, então a convenci <strong>de</strong> que o lugar <strong>de</strong>veria<br />
ter <strong>um</strong> estúdio <strong>de</strong> gravação, o que era permitido pelo estatuto.<br />
Eu seria o seu futuro diretor e o utilizaria principalmente para<br />
projetos <strong>de</strong> digitalização das músicas do meu pai, que ainda<br />
estavam em fi ta magnética. A idéia agradou em cheio e, para<br />
mim, era especialmente boa porque fi nalmente eu po<strong>de</strong>ria exercer<br />
livremente a minha profi ssão e as minhas produções.<br />
Por infl uência negativa da minha ex-mulher, Alessandra, aluguei<br />
<strong>um</strong>a sala pequena, o que não agradou minha mãe. Ela sonhava<br />
com <strong>um</strong> espaço maior, on<strong>de</strong> coubesse o piano <strong>de</strong> cauda <strong>de</strong> meu<br />
pai, com que eu faria gravações <strong>de</strong> músicas para piano, <strong>de</strong> autoria<br />
<strong>de</strong>le. Acabamos fi cando lá mesmo. Com o estúdio pronto, me<br />
impressionei com a qualida<strong>de</strong> sonora dos trabalhos que começava<br />
a fazer. Mas <strong>de</strong>vido ao espaço, infelizmente eu não podia<br />
gravar <strong>um</strong>a bateria acústica inteira na cabine.<br />
A segunda situação marcante foi quando o Jorge, da gravadora<br />
gospel Salmus, me procurou para eu produzir discos <strong>de</strong> rap<br />
gospel, que invadiam com toda a força o mercado do hip-hop.<br />
Meu primeiro trabalho foi Anti crime, segundo CD do Proverbio<br />
X, que tinha como formação inicial: Isaías, DJ Régis e Ed Blue.<br />
448
Associação Cultural Claudio Santoro<br />
449<br />
O Ed saiu após o Não perdi a minha fé, disco <strong>de</strong> estréia do grupo.<br />
No segundo CD juntaram-se aos outros dois, o Stain, o Dedy e o X<br />
Barão, que foi do Versos ao Verbo e se convertera à religião evangélica<br />
havia pouco tempo. O Anti Crime veio com <strong>um</strong> single antes e<br />
ven<strong>de</strong>u mais <strong>de</strong> 50 mil cópias. Ainda no mesmo ano, produzi mais<br />
dois CDs gospel para a Salmus; os discos <strong>de</strong> estréia do Relato<br />
Biblíco e do Verda<strong>de</strong> Relatada. Des<strong>de</strong> então, tornou-se com<strong>um</strong> na<br />
minha vida trabalhar com artistas evangélicos nos mais variados<br />
estilos, o que é muito bom porque, além <strong>de</strong> as sessões <strong>de</strong> estúdio<br />
serem sempre alegres e positivas, as orações antes <strong>de</strong> começar<br />
as produções me ajudam muito espiritualmente.<br />
A terceira foi quando o Genivaldo se converteu à religião evangélica.<br />
Assim que eu soube que, por isso, ele ven<strong>de</strong>ria a Discovery<br />
para o Daher, do Guind’art 121, avisei o Marcão e corremos<br />
para conversar com ele.<br />
— Genivaldo, queremos rescindir o nosso contrato – disse eu.<br />
— Mas por quê, Raffa? – perguntou.<br />
— Você saindo, cara, a gente não tá mais a fi m <strong>de</strong> fi car na gravadora<br />
– respon<strong>de</strong>u Marcão.<br />
— Tudo bem – disse ele.<br />
— A gente só quer receber o que é nosso <strong>de</strong> direito e sair da<br />
Discovery – acrescentei.<br />
— Tá fechado, Raffa.<br />
Saímos antes <strong>de</strong> a gravadora se tornar a Discovery G1. Eu e o<br />
Marcão queríamos ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e, por causa <strong>de</strong> boatos,<br />
<strong>de</strong>sconfi ávamos <strong>de</strong> que, com o Daher, não teríamos a mesma<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação que com o Genivaldo, e também <strong>de</strong> que ele<br />
po<strong>de</strong>ria não fazer mais <strong>um</strong> CD, a que tínhamos direito.<br />
O Daher, por sua vez, investiu pesado em grupos novos e manteve<br />
sua rotina <strong>de</strong> vários lançamentos até hoje. Logo quando<br />
ass<strong>um</strong>iu a gravadora contratou o Revolução Rap e o Tribo da
450 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Periferia, que pertenciam à nova geração. Também lançou CDs<br />
<strong>de</strong> quem já tinha história no DF como o Tropa <strong>de</strong> Elite, com Estopim,<br />
e o Liberda<strong>de</strong> Condicional, com Vida Eterna. Apesar <strong>de</strong> o<br />
Liberda<strong>de</strong> ter sido fundado em 1990 e participado do segundo<br />
concurso <strong>de</strong> rap do DF em 1992 ao lado <strong>de</strong> grupos logo <strong>de</strong>pois<br />
consagrados, como Gog e Câmbio Negro, só consegiu estourar<br />
a primeira música quase seis anos <strong>de</strong>pois. Vida Eterna era o<br />
segundo CD <strong>de</strong>les e tinha a produção <strong>de</strong> Elívio Blower, Nike Jay<br />
e Marcão do Baseado nas Ruas. A inclusão digital e o acesso<br />
cada vez mais fácil aos computadores e softwares <strong>de</strong> música<br />
<strong>de</strong>mocratizaram os trabalhos <strong>de</strong> produção musical, principalmente<br />
no Hip-hop e na música eletrônica. O Elívio e o Nike, por<br />
exemplo, se aventuravam em fazer as suas primeiras produções<br />
com <strong>um</strong> simples computador na casa do Marcão. Claro, às vezes<br />
o talento não bastava, e por esse motivo sempre lutei por <strong>um</strong><br />
local a<strong>de</strong>quado para as fi nalizações.<br />
Nos anos seguintes esse foi <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> diferencial dos trabalhos<br />
que saíam <strong>de</strong> São Paulo para o DF. Em São Paulo, a cultura<br />
<strong>de</strong> fazer tudo em casa crescera forte, mas a consciência da<br />
fi nalização em estúdio por <strong>um</strong> profi ssional era <strong>de</strong> quase 100%.<br />
Bem diferente do DF, acost<strong>um</strong>ado com produções mal feitas em<br />
fundo <strong>de</strong> quintal. Mas estas músicas com má qualida<strong>de</strong> sonora<br />
começaram a tocar nas rádios comunitárias e acost<strong>um</strong>aram a<br />
nova geração <strong>de</strong> ouvintes a apreciá-las. O intuito <strong>de</strong>sses grupos<br />
era o máximo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência possível, e, para isso, o importante<br />
era o conteúdo e não o acabamento do que produziam.<br />
Contra isto, eu mesmo tive preconceito por muito tempo, mas<br />
justamente por não enxergar o conteúdo das letras, das rimas<br />
e do propósito <strong>de</strong>ssa nova geração. Até porque, eles não tinham<br />
dinheiro para pagar <strong>um</strong> estúdio profi ssional. Essas difi culda<strong>de</strong>s<br />
os tornavam mais maduros e faziam suas letras melhores do<br />
que as nossas. Graças a Deus, através da que viria a ser minha<br />
mulher, Aninha, consegui superar o preconceito e mudar o pensamento.<br />
Foi através <strong>de</strong>la que resolvi investir em novos talentos
Associação Cultural Claudio Santoro<br />
451<br />
e ajudar todos os que eu pu<strong>de</strong>sse a colocarem as próprias idéias<br />
em <strong>um</strong>a roupagem cada vez mais profi ssional.<br />
Apesar <strong>de</strong>, antes disso, eu e Alessandra termos passado por constantes<br />
brigas e separações, a quarta e última situação marcante<br />
ocorreu em 12 <strong>de</strong> junho do ano 2000: o nascimento <strong>de</strong> minha fi lha<br />
Ana Carolina. Foi <strong>um</strong> presente <strong>de</strong> Deus. Quando ela nasceu, eu<br />
estava no meio da produção do CD solo Um homem só, do X, em<br />
São Paulo. Ser pai <strong>de</strong> novo foi <strong>um</strong>a experiência maravilhosa.
452 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
Um Homem Só<br />
453
454<br />
CAPÍTULO 57:
No dia do nascimento <strong>de</strong> Ana Carolina, o grupo Ameaça Urbana,<br />
da cida<strong>de</strong>-satélite do Gama, assinava contrato com a Zâmbia.<br />
Conheci o Ameaça Urbana no Abril Pro Rap. Organizador do concurso<br />
<strong>de</strong> rap e dono da loja e gravadora CD Box, o Bira me convidara<br />
para gravar os grupos, porque, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do resultado, ele<br />
queria lançar <strong>um</strong> CD do concurso ao vivo. Acabou que isso não se<br />
concretizou. O DJ TDZ e o Dario, da Porte Ilegal, eram os jurados,<br />
junto com o próprio Bira. Já o Elívio e o Celsão eram os apresentadores<br />
do concurso, que aconteceu no Ginásio <strong>de</strong> Esportes <strong>de</strong><br />
Sobradinho. Vários rappers e grupos se apresentaram, sem estar<br />
concorrendo, como o Marcão, cantando músicas do Baseado nas<br />
Ruas e do Sabotagem, o Guind’art 121 e, em início <strong>de</strong> carreira,<br />
o MV Bill, da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Nesse dia, então, conheci o grupo<br />
Ameaça Urbana, que estava inscrito no evento, e cantou a música<br />
“Proteção à própria vida”. Adorei a apresentação <strong>de</strong>les e quando<br />
o Dario e o TDZ pediram a minha opinião sobre os concorrentes,<br />
contei que o Ameaça Urbana fora o grupo <strong>de</strong> que eu mais gostara.<br />
Apesar disso, quem ganhou foi o Circuito Negro.<br />
Quando o evento terminou, chamei o Batata, <strong>um</strong> dos integrantes<br />
do Ameaça Urbana, para conversar e <strong>de</strong>i o número do meu<br />
telefone para ele.<br />
— Então, velho, gostei muito do som <strong>de</strong> vocês! – disse.<br />
— Valeu, DJ Raffa! Mó satisfação, aí! – agra<strong>de</strong>ceu.<br />
456
Ameaça Urbana<br />
— Você me conhece? – perguntei.<br />
457<br />
— Quem não te conhece! É que todos acham que você é intocável,<br />
metido – respon<strong>de</strong>u.<br />
— Porra, mas isso não é verda<strong>de</strong>! Quem fala isso? – perguntei.<br />
— É que você é <strong>um</strong>a lenda, tio. Pra nossa geração, morô?!<br />
— Ai... Não sou lenda não, velho! Lenda é coisa que não existe –<br />
respondi. – Mas pega o meu telefone e me liga essa semana.<br />
Quero falar com vocês.<br />
— Beleza! – exclamou Batata, bastante empolgado.<br />
Eu não percebera que o rap do DF e entorno, por causa das novas<br />
cida<strong>de</strong>s que nasciam <strong>de</strong> favelas e invasões, estava passando<br />
por <strong>um</strong> processo <strong>de</strong> transformação e renovação, e que ansiava<br />
por mostrar a sua cara. Essa nova geração me via como alguém<br />
“fora <strong>de</strong> alcance”. Por vários motivos.<br />
Exemplo: eles pensavam que eu não morava mais no DF em<br />
razão das minhas constantes viagens e produções com grupos<br />
<strong>de</strong> São Paulo; que a minha produção era muito cara e portanto<br />
inviável para quem não tinha dinheiro; e mais, que eu só trabalhava<br />
com grupos profi ssionais, nunca com grupos que estavam<br />
começando. Meu Deus, isso tudo era <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> mentira. Foi<br />
aí que pensei na minha parcela <strong>de</strong> culpa sobre esses boatos.<br />
Como eu estava ausente por muito tempo e praticamente não<br />
freqüentava mais os bailes, estava por fora da nova cena do<br />
hip-hop local. Foi importante saber disso porque percebi <strong>um</strong><br />
jogo sujo <strong>de</strong> potoqueiros, 1 que faziam questão <strong>de</strong> as pessoas<br />
me verem não só como intocável, mas como <strong>um</strong> mercenário que<br />
não ajudava ninguém. Um dos responsáveis por essa fama mentirosa<br />
fora a minha própria mulher, que, sem eu saber, vendia<br />
o meu trabalho por <strong>um</strong> preço absolutamente fora da realida<strong>de</strong><br />
do rap nacional. Só o enxerguei anos <strong>de</strong>pois, já <strong>de</strong>fi nitivamente<br />
separado <strong>de</strong>la. Por tudo isso, ajudar o Ameaça Urbana se tornara<br />
<strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> honra.<br />
1 Fofoqueiros.
458 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
459
460 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
Após vários encontros com o grupo, nos quais expliquei que<br />
estava disposto a ajudá-los, gravamos Proteção à própria vida,<br />
no Zen Estúdio, com arranjo novo, colocando <strong>um</strong> violão na música<br />
tocada pelo Ariel Feitosa. Depois, levei a gravação para mostrar<br />
ao Serafi m da Zâmbia, em São Paulo. Ele gostou muito e ofereceu<br />
<strong>um</strong> contrato <strong>de</strong> três anos e três discos para o grupo. Esse<br />
contrato nunca se realizou, porque a Zâmbia não c<strong>um</strong>priu a parte<br />
<strong>de</strong>la: prensar, pelo menos, o primeiro CD. Passados três anos<br />
<strong>de</strong> espera, resolvemos mudar e atualizar todo o repertório, que<br />
resultou no CD Nossa história nossa arma, lançado em 2006. Mas<br />
a minha maior satisfação não foi ter ajudado o grupo a alcançar<br />
os seus sonhos, mas sim a amiza<strong>de</strong> que construímos nesses<br />
anos. Batata, Boguinha, Lula e Vidal se tornaram gran<strong>de</strong>s amigos<br />
e aliados. Nossa amiza<strong>de</strong> e consi<strong>de</strong>ração <strong>um</strong> pelo outro vão além<br />
do rap e do hip-hop. Sei que posso contar com eles para tudo o<br />
que precisar.
Ameaça Urbana<br />
461
462<br />
CAPÍTULO 58:
Depois <strong>de</strong> muitas reuniões e conversas a respeito, o Ariel e o Celsão<br />
resolveram criar a Pro Vinil. Esta <strong>de</strong>cisão veio no dia em que<br />
nascia Ana Carolina. Os dois queriam a minha consultoria, porque<br />
eu já <strong>de</strong>ixara bem claro que não seria sócio <strong>de</strong> ninguém na<br />
loja, <strong>de</strong>vido à péssima experiência anterior com a Planet – ass<strong>um</strong>ida,<br />
<strong>de</strong>pois, pelo Nino, com quem eu praticamente per<strong>de</strong>ra o<br />
contato. O Ariel me convencera <strong>de</strong> que a Pro Vinil teria que ser no<br />
mesmo lugar da Planet, porque o ponto da loja ainda estava em<br />
seu nome no contrato original <strong>de</strong> locação, e comprar outro seria<br />
<strong>um</strong> custo inviável. Eu não queria tirar ninguém do local, muito<br />
menos o Nino, mas o Ariel disse que ele tinha que sair porque<br />
não pagava as contas nem o aluguel da loja. Acreditei fi elmente<br />
nessa versão absurda; o Ariel tinha esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> manipulação e<br />
eu não percebia. Descobri anos <strong>de</strong>pois, quando me reaproximei<br />
do Nino, e o Ariel se mudara para São Paulo, que isso não passara<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> mentira. O Nino me mostrou todos os recibos das<br />
contas pagas da loja até o dia em que foi obrigado a se mudar<br />
para outro en<strong>de</strong>reço. As dívidas que a Pro Vinil ac<strong>um</strong>ulou antes<br />
<strong>de</strong> ser inaugurada eram do tempo em que ela fi cara fechada<br />
por causa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a reforma – o que durou quase três meses – e<br />
não <strong>de</strong> débitos da Planet, como o Ariel alegava. Para completar,<br />
quando a Alessandra ass<strong>um</strong>iu várias negociações da loja, conseguiu<br />
ainda piorar as coisas. Era difícil porque o Celsão não<br />
tinha tempo, o Ariel não pisava no Conic, on<strong>de</strong> fi cava a loja – por<br />
razões que nem eu entendia –, e eu me afastava <strong>de</strong> tudo e todos,<br />
464
Pro Vinil<br />
465<br />
me enfi ando no estúdio dia e noite, para esquecer da vida e dos<br />
meus problemas pessoais. Des<strong>de</strong> o meu casamento em 2000 até<br />
a minha separação <strong>de</strong>fi nitiva em meados <strong>de</strong> 2003, a minha vida<br />
particular se res<strong>um</strong>ia a brigas, separações e reconciliações. A<br />
minha fuga era o trabalho, as produções.<br />
Resultado: a loja tinha todo o potencial <strong>de</strong> crescimento, mas,<br />
entregue às moscas, e administrada mais pela Alessandra do que<br />
pelo Ariel e pelo Celsão, contraiu tantas dívidas que foi à falência.<br />
Ainda assim, fez nome no DF e no país. E, graças a isso, o DJ<br />
Marola, do grupo Voz sem Medo, interessou-se por comprar a<br />
logomarca Pro Vinil para montar a loja que tinha em mente. Marola<br />
já comprava roupas e CDs <strong>de</strong> São Paulo para reven<strong>de</strong>r em Brasília<br />
e também fazia o caminho inverso, levando CDs do DF a serem<br />
vendidos na galeria do rap na 24 <strong>de</strong> maio. Ele precisava, então, <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> ponto. No entanto, teve que abrir a loja em outro espaço da<br />
galeria do Conic, porque a imobiliária que tomava conta da loja<br />
on<strong>de</strong> fi cava a Pro Vinil a queria <strong>de</strong> volta, em função das dívidas<br />
ac<strong>um</strong>uladas. Foi assim que a Pro Vinil continuou a existir, mas só<br />
no nome, porque por trás <strong>de</strong>la está a Marola Discos.
466<br />
CAPÍTULO 59:
468<br />
<strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
No ano <strong>de</strong> 2000, eu soube que o X estava passando <strong>um</strong>a temporada<br />
em Brasília, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter lançado o último disco com<br />
o Câmbio Negro, pela gravadora Trama, produzido pelo Edu K.<br />
Fui à Ceilândia revê-lo e trocar <strong>um</strong>a idéia. Ele me pareceu muito<br />
bem e estava casado com a Rosângela, que conhecera em São<br />
Paulo. Colocamos vários assuntos em dia.<br />
— Gordo, eu não tenho mais vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer show! – disse ele.<br />
— Por quê, X? – perguntei.<br />
— Cansei <strong>de</strong> nunca ter condições <strong>de</strong>centes <strong>de</strong> som, luz e palco,<br />
pra fazer <strong>um</strong> show <strong>de</strong>cente com a banda. Agora eu só vou dar<br />
palestra – <strong>de</strong>sabafou.<br />
— E a gravadora não vai achar ruim?<br />
— Eu já tive <strong>um</strong>a conversa com o João Marcelo e ele disse<br />
que estava tudo bem. Aliás, eu pretendo fazer o meu solo –<br />
respon<strong>de</strong>u.<br />
— Mas você não vai fazer a produção comigo. Você me esqueceu,<br />
X! – reclamei.<br />
— Esqueci não, Gordinho! Te <strong>de</strong>i só <strong>um</strong>a lição pra você apren<strong>de</strong>r<br />
a ver quem é quem <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> – disse.<br />
— Tá certo, velho! Então, vamos fechar a produção do solo?
Um Homem Só<br />
469<br />
— Gordo, vou pedir pra você entrar em contato com o Miranda.<br />
O selo <strong>de</strong>le é <strong>um</strong> dos selos da Trama e tudo tem que ser resolvido<br />
através <strong>de</strong>le – explicou X.<br />
— Beleza, velho!<br />
— E eu quero que o TDZ faça a pesquisa musical e a produção<br />
junto com você.<br />
— Combinado! – exclamei.<br />
— O DJ Marcelinho, do Câmbio, também vem <strong>de</strong> São Paulo pra<br />
participar do processo <strong>de</strong> produção e fazer <strong>um</strong>a faixa só <strong>de</strong><br />
scratch junto com o TDZ – <strong>de</strong>talhou ele.<br />
— E vamos fi nalizar tudo aqui no DF mesmo? – perguntei.<br />
— Provavelmente não, Gordo. Eles têm estúdio próprio,<br />
enten<strong>de</strong>u?<br />
— Saquei!<br />
Passado esse encontro, me senti mais fortalecido. A minha autoestima<br />
estava lá embaixo, por causa dos problemas que enfrentava<br />
no casamento. Isso se refl etia no meu dia-a-dia, com todos.<br />
A partir daquele momento, eu tinha <strong>um</strong> estímulo: produzir o disco<br />
novo do X. Depois <strong>de</strong> alguns dias, resolveu-se que toda a produção<br />
e os vocais do X seriam feitos em Brasília. Pus o Andy, do Zen,<br />
em contato direto com a Trama para acertar as horas <strong>de</strong> estúdio<br />
que levaríamos para colocar os vocais, scratches e instr<strong>um</strong>entos<br />
acústicos que vinham na produção, como as guitarras e os violões<br />
do Bell. Depois fomos todos a São Paulo para passar a instr<strong>um</strong>ental,<br />
canal por canal dos meus equipamentos, através <strong>de</strong> “prévalvulados”<br />
para <strong>de</strong>ntro do Pro Tools. 1 Para terminar esse trampo,<br />
fi quei quase <strong>um</strong> mês hospedado n<strong>um</strong> fl at, só voltei a Brasília para<br />
o nascimento da Ana Carolina. E, dois dias <strong>de</strong>pois, retornei a São<br />
Paulo, para continuar as gravações do CD.<br />
1 Software e hardware especializado <strong>de</strong> gravação digital.
470 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
A Trama alugou <strong>um</strong> carro para o X, que me buscava religiosamente<br />
todos os dias às 8h30min da manhã e me levava ao estúdio. N<strong>um</strong><br />
dia <strong>de</strong> mixagem, conheci pessoalmente o João Marcelo Bôscoli,<br />
e fi quei impressionado com os seus equipamentos <strong>de</strong> produção<br />
musical, tais como teclado, samplers e baterias eletrônicas.<br />
Também troquei experiências com o técnico Ferrari que estava<br />
trabalhando na fi nalização do disco comigo. O Rodolfo, dos Raimundos,<br />
fez participação especial no disco, cantando na música<br />
“Casa Gran<strong>de</strong>-Senzala”. No dia da gravação ele não parava quieto<br />
na frente do microfone. Decidi, então, dar à sua mão <strong>um</strong> microfone<br />
dinâmico, o SM 57 Shure, que passava o som da voz por <strong>um</strong> amplifi<br />
cador. Assim, ele podia cantar à vonta<strong>de</strong>, como se estivesse n<strong>um</strong><br />
show, e a sonorida<strong>de</strong> distorcida por causa do “amp” dava <strong>um</strong> som<br />
legal na sua rima.<br />
A faixa que consi<strong>de</strong>ro a obra-prima do CD se chama “Só mais <strong>um</strong><br />
dia”, que tem <strong>um</strong> sample <strong>de</strong> “Sartando <strong>de</strong>ssa”, do Cláudio Zoli, no<br />
refrão. Os violões tocados por Bell <strong>de</strong>ram <strong>um</strong> toque tão especial<br />
à música que ela ganhou <strong>um</strong>a versão acústica, com direito ainda<br />
a <strong>um</strong>a participação <strong>de</strong> Pedro Mariano, fazendo o mesmo refrão<br />
extraído do sample do Zoli. A idéia <strong>de</strong> colocar a voz do Pedro não<br />
foi apenas por causa da versão acústica. Era porque a Trama<br />
fazia questão <strong>de</strong> ter todas as liberações dos samples que a lei<br />
exigia. No caso <strong>de</strong> “Sartando <strong>de</strong>ssa”, tinham que ser feitas três: a<br />
fonográfi ca, porque era <strong>um</strong> sample e não <strong>um</strong>a versão, a da editora<br />
e a do autor. Muitos samples que queríamos usar no disco não<br />
aconteceram por causa da difi culda<strong>de</strong> para se conseguir as liberações.<br />
Porque a Trama estava por trás, acreditavam que havia<br />
muito dinheiro, o que gerou cobranças absurdas, inviabilizando<br />
alguns samples. Mas isso não afetou o brilho do disco.<br />
No dia da masterização, fi z questão <strong>de</strong> ir junto com o X, que<br />
sempre acompanhava os seus trabalhos até o fi nal, para ver<br />
como o Carlos Freitas, <strong>um</strong> dos maiores engenheiros <strong>de</strong> áudio<br />
do país, masterizava <strong>um</strong> disco. Lembro que primeiro ele passou<br />
toda a mixagem para a fi ta magnética, com a intenção <strong>de</strong> ganhar
Um Homem Só<br />
471<br />
o punch 2 analógico nos graves, <strong>de</strong>pois retornou com tudo para o<br />
computador. Acompanhamos o dia inteiro o trabalho do Carlos,<br />
fi quei <strong>de</strong> olhos bem abertos para ver e enten<strong>de</strong>r cada coisinha<br />
feita. Ele teve bastante paciência comigo, pois fi z perguntas o<br />
dia inteiro. Para mim, <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> aprendizado. Fizemos várias<br />
versões da música “Só mais <strong>um</strong> dia”, porque a Trama i<strong>de</strong>alizara<br />
<strong>um</strong> single em vinil, que acabou não se concretizando.<br />
Este CD solo do X, Um Homem Só, que saiu em 2001, foi, infelizmente,<br />
o único trabalho <strong>de</strong> produção que fi z para a Trama.<br />
No fi nal <strong>de</strong> 2000, <strong>um</strong> dos anos mais produtivos <strong>de</strong> minha vida,<br />
aconteceu a primeira edição do Prêmio Hutúz, no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
organizado pelo Celso Athay<strong>de</strong>, empresário do MV Bill e criador da<br />
Central Única das Favelas (Cufa). Concorri na categoria “Melhor<br />
produtor musical do ano” e, para a minha surpresa, quando o<br />
William, da Zâmbia, anunciou o vencedor, o meu nome foi pronunciado.<br />
Subi no palco do Teatro Carlos Gomes com a alma lavada.<br />
Apesar <strong>de</strong> todos os problemas <strong>de</strong>ntro do hip-hop, eu começava a<br />
ter <strong>um</strong> pequeno reconhecimento profi ssional. Com o prêmio na<br />
mão, não quis fazer nenh<strong>um</strong> discurso longo, apenas disse:<br />
— Esse prêmio não é só meu. É <strong>de</strong> vocês!<br />
Na verda<strong>de</strong>, eu pretendi duas coisas com essa frase. A primeira,<br />
que o Hutúz era feito por pessoas envolvidas com a cultura<br />
hip-hop e para as que faziam parte do movimento. A segunda,<br />
me referi ao Cerrado, porque levar o prêmio para o DF era <strong>um</strong>a<br />
gran<strong>de</strong> vitória.<br />
Nunca foi meu intuito fazer a produção musical <strong>de</strong> <strong>um</strong> grupo<br />
para ter reconhecimento. Não entrei para o hip-hop por dinheiro<br />
e fama. Sempre quis alcançar o meu melhor e se disso viessem<br />
conseqüências positivas, ótimo! A partir do meu amadurecimento<br />
pessoal e profi ssional, comecei a me interessar, cada vez mais,<br />
pela área social que o hip-hop era capaz <strong>de</strong> oferecer, e como eu<br />
po<strong>de</strong>ria contribuir para que ela se realizasse.<br />
2 Pegada, peso.
472<br />
CAPÍTULO 60:
No estúdio da Associação Cultural Claudio Santoro eu produzi<br />
o primeiro disco do Viela 17, em 2001. Japão, Mano Mix e Dino<br />
Black se libertaram do Gog – assim o Dino <strong>de</strong>screvia a saída<br />
<strong>de</strong>les – <strong>de</strong>pois do último disco dos quatro juntos, o CPI da<br />
Favela. Não posso dizer que esta separação fora amigável, porque<br />
havia muita mágoa no coração dos três. Achei que o Dino<br />
fora muito oprimido pelo Gog, a ponto <strong>de</strong> não dar valor ao próprio<br />
trabalho que <strong>de</strong>senvolvia, como idéias <strong>de</strong> bases, rimas e<br />
letras. Eu o senti muito inseguro com tudo.<br />
— Raffa, <strong>um</strong> dia terei condições <strong>de</strong> fazer o meu disco solo –<br />
disse ele.<br />
— Por que você acha que já não po<strong>de</strong> fazer <strong>um</strong> CD inteiro seu,<br />
Dino?<br />
— Sei lá, Raffa! Acho que ainda não tenho essa capacida<strong>de</strong>,<br />
velho – respon<strong>de</strong>u.<br />
— Na minha opinião, você já está pronto pra fazer <strong>um</strong> solo –<br />
disse eu.<br />
— Mas como estamos agora nesse projeto do Viela 17, vamos<br />
dar tempo ao tempo.<br />
A produção do disco, que recebeu o título <strong>de</strong> O Jogo, fl uiu<br />
tranqüila. A música “Dupla face” teve as participações <strong>de</strong> Pre-<br />
474
Viela 17<br />
475<br />
gador Luo e Phjay, do Apocalipse 16 e do grupo Circuito Negro,<br />
respectivamente.<br />
Ei, peraí compadre, nesse clima eu exijo respeito.<br />
Viela drogas periferia suspeito.<br />
Olha bem sujeito, eu não sou o que você pensa,<br />
sente o eco no peito.<br />
Eu com os meus parceiros abalando o sistema.<br />
O rap e o tema, trilha sonora do medo do cinema.<br />
Não é novela eu sou Viela, rima furiosa <strong>de</strong> pega.<br />
Sai da reta sente o convite ou meu palpite, no dia seguinte...<br />
Refl etindo seu caráter fui covar<strong>de</strong>,<br />
pensei que você era o certo, bobagem.<br />
Mas aí canalhice é assim mesmo, não me envolvo, Deus é mais.<br />
Meu respeito eu não troco por drogas nem grife <strong>de</strong> moda.<br />
Minha cara é essa eu não mo<strong>de</strong>lo com bosta, te incomoda?<br />
Desse jeito me queima, se joga,<br />
se liga no tema qual é o problema?<br />
Falo <strong>de</strong> favela você sempre na esquerda <strong>de</strong>spreza,<br />
mas pensando bem,<br />
A vela já está acesa, o funeral bem próximo pro ator <strong>de</strong> cinema,<br />
se envolve se vira, tô saindo fora a<strong>de</strong>us...<br />
Duas faces e seu tema o Diretor sou eu!<br />
Este é o trecho da rima do Japão na música. Fica bem evi<strong>de</strong>nte<br />
que em alg<strong>um</strong>as frases ele alfi neta os que o acreditavam usuário<br />
<strong>de</strong> drogas.<br />
O disco já estava pronto, mas ainda não tinha ido para a prensa,<br />
quando eu tentara negociar o trabalho com o Serafi m, da Zâmbia,<br />
em São Paulo.<br />
— Raffa, eu só posso te pagar quando o CD sair, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as<br />
vendas – disse Serafi m.<br />
— Eu já levei tombo <strong>de</strong>mais nessa vida, Serafi m. Não tem como<br />
eu liberar o tape sem, pelo menos, a meta<strong>de</strong> do combinado –<br />
disse eu.
476 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
Viela 17<br />
477<br />
— Raffa, você tem que confi ar em mim. A Zâmbia nunca te <strong>de</strong>u<br />
tombo!<br />
— Mas vocês nem se importaram com o Ameaça Urbana –<br />
disse eu, referindo-me ao não c<strong>um</strong>primento do contrato feito com<br />
o grupo.<br />
— Raffa, não lançamos o CD do Ameaça por falta <strong>de</strong> verba –<br />
justifi cou Serafi m.<br />
— Desculpe, velho, mas eu tomei essa <strong>de</strong>cisão na minha vida e<br />
não vou voltar atrás.<br />
Acho que foi a primeira vez que não fi quei grilado <strong>de</strong> estar<br />
prejudicando <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap por tomar <strong>um</strong>a <strong>de</strong>cisão fi rme.<br />
O Japão estava junto comigo nessa reunião e assim não havia<br />
motivos para duas versões da história. O único estresse ocorreu<br />
porque ele se envolveu com a dupla <strong>de</strong> empresários páraquedistas<br />
que afundara a carreira do Jamaika. Antes mesmo <strong>de</strong><br />
começar a produção, o Japão contara sobre o disco a ela, que<br />
se interessara por empresariar o Viela 17. Voltando para o DF,<br />
sem saber do assédio da dupla, tive a péssima idéia <strong>de</strong> dar <strong>um</strong>a<br />
cópia da master do CD pronta para o Japão ouvir. Os fi lhos da<br />
puta dos empresários pegaram essa master e foram direto para<br />
São Paulo, entregando-a para o Serafi m prensar o CD. Quando<br />
eu soube, fi quei muito nervoso, chateado e me senti profundamente<br />
traído. Fechei os olhos, acreditei <strong>de</strong> todas as maneiras<br />
na inocência do Japão, e me afastei <strong>de</strong> todos.<br />
O CD saiu e nunca vi a cor do dinheiro. Já tornava-se <strong>um</strong>a rotina:<br />
produções não pagas por uns, cheques sem fundo <strong>de</strong> outros,<br />
e assim por diante. O <strong>de</strong>sgosto tomava conta <strong>de</strong> mim, mas a<br />
chama <strong>de</strong> continuar no hip-hop e ajudar a quem realmente precisava<br />
continuava muito acesa no meu coração.<br />
Dois anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> O Jogo , eu ajudaria mais <strong>um</strong>a vez o Japão,<br />
<strong>de</strong>movendo-o da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> rimar, a fazer o segundo<br />
disco do Viela 17, O alheio chora seu dono.
478<br />
CAPÍTULO 61:
Ao conhecer Chico <strong>de</strong> Aquino, lembrei imediatamente do Negro<br />
Taison, que foi da primeira formação do Código Penal. Taison<br />
envolvera-se n<strong>um</strong> assalto por causa <strong>de</strong> pilha 1 alheia e acabara<br />
no Núcleo <strong>de</strong> Custódia. 2 A vítima do assalto, <strong>um</strong> taxista, morrera,<br />
mas não fora sua culpa. A irmã do Taison trabalhara <strong>de</strong><br />
babá para minha irmã Gisele, cuidando do meu sobrinho Claudio<br />
quando ela vinha ao Brasil, e foi através <strong>de</strong> sua irmã que as<br />
primeiras cartas <strong>de</strong> Taison chegaram a mim. Nestas cartas, ele<br />
dizia possuir várias letras <strong>de</strong> rap e querer a minha ajuda para<br />
produzí-las. Pedi, então, que ele colocasse o meu nome na lista<br />
<strong>de</strong> visitas, assim eu po<strong>de</strong>ria conhecê-lo melhor, além <strong>de</strong> trocar<br />
idéias e dar <strong>um</strong>a olhada nas letras.<br />
No primeiro dia em que visitei o Taison foi <strong>um</strong>a loucura. No pátio,<br />
todos queriam falar comigo, eram inúmeros exilados em cima <strong>de</strong><br />
mim, e muitos sequer acreditavam que eu estava lá. Em seguida,<br />
ele me mostrou alg<strong>um</strong>as letras, das quais gostei muito. Visitei-o<br />
várias vezes no Núcleo <strong>de</strong> Custódia, até que <strong>um</strong> dia recebi <strong>um</strong>a<br />
carta em que ele me contava terem armado <strong>um</strong>a casinha para<br />
que fosse transferido para Papuda. Na carta, relatava também<br />
que os antigos parceiros <strong>de</strong> assalto, que <strong>de</strong>nunciara ao ser preso,<br />
estavam lá e que se essa transferência acontecesse, com certeza,<br />
iriam matá-lo. O motivo do <strong>de</strong>sentendimento é que, segundo<br />
1 Infl uência negativa.<br />
2 Parte do complexo penitenciario da papuda, em Brasília.<br />
480
DJ Raffa 20 Anos<br />
481<br />
Taison, os ex-parceiros o traíram ao matarem a vítima, pois essa<br />
nunca fora a sua intenção. Na época, ainda tentei explicar a situação<br />
para o diretor do presídio, mas ele nem me recebeu. Taison<br />
previu a própria morte, e <strong>um</strong>a semana <strong>de</strong>pois aconteceu conforme<br />
anunciara. Tenho essa carta até os dias atuais. As letras, a irmã<br />
<strong>de</strong>le pegou <strong>de</strong> volta e disse que não <strong>de</strong>ixaria ninguém gravá-las.<br />
Era <strong>um</strong> ato <strong>de</strong> revolta, eu tinha que entendê-la.<br />
Por causa <strong>de</strong>sse episódio, fi quei com <strong>um</strong> pé atrás <strong>de</strong> me envolver<br />
com os irmãos presos novamente. Sempre achei que a casinha<br />
armada para o Taison po<strong>de</strong>ria ser fruto <strong>de</strong> invejosos, porque<br />
ele estava recebendo mais atenção do que os outros, graças<br />
às minhas visitas. Foi quando Chico <strong>de</strong> Aquino, ex-presidiário,<br />
procurou-me para <strong>um</strong> trabalho com <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> rap da Papuda.<br />
Aquino estava envolvido com vários projetos sociais para ajudar<br />
a presos, e me convenceu <strong>de</strong> que, através do Fundo <strong>de</strong> Amparo<br />
ao Preso (Funap), ele conseguiria que os três integrantes do<br />
grupo Antece<strong>de</strong>nte Criminal fossem autorizados a ir ao estúdio<br />
da Associação para produzir o disco. Do que ele precisava era<br />
<strong>um</strong> projeto para prensar o CD. Foi aí que minha mãe entrou na<br />
parceria. Através da Associação Cultural Claudio Santoro, ela fez<br />
o projeto para o Fundo <strong>de</strong> Arte e Cultura (FAC), do governo do DF.<br />
Nosso projeto foi aprovado e Aquino conseguiu a liberação do<br />
grupo três vezes por semana. Eram, para eles, dias <strong>de</strong> festa:<br />
suas mulheres e seus fi lhos iam ao estúdio para vê-los e levavam<br />
lanche para todos. Os policiais não se opuseram e nos <strong>de</strong>ixavam<br />
à vonta<strong>de</strong>. Na primeira vez, no entanto, o grupo chegou<br />
algemado ao estúdio, e percebi a h<strong>um</strong>ilhação que era aquela<br />
situação. Espiritualmente, fi quei mal naquele dia.<br />
As mil cópias do CD <strong>de</strong>moraram muito para chegar, isso fez com<br />
que as mulheres <strong>de</strong>sacreditassem o trabalho. Mas assim que<br />
fi caram prontas, a minha mãe reuniu-se com elas – eu estava<br />
em São Paulo produzindo o Consciência H<strong>um</strong>ana e trabalhando<br />
com o Angel Duarte, então não podia estar presente – e fez<br />
questão <strong>de</strong> entregar-lhes todas as mil cópias, pela falta <strong>de</strong> fé
482 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
que elas tiveram em relação à nossa honestida<strong>de</strong>. A ansieda<strong>de</strong><br />
fez a <strong>de</strong>sconfi ança falar mais alto. Tudo bem, mas, para não<br />
haver dúvidas, não quisemos nenh<strong>um</strong>a cópia.<br />
Entre 2001 e 2002, tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comemorar com <strong>um</strong>a coletânea<br />
a minha trajetória <strong>de</strong> 20 anos <strong>de</strong>ntro do movimento hip-hop<br />
do Brasil. Ao mesmo tempo, <strong>de</strong>senvolvi <strong>um</strong> trabalho com o cantor<br />
Angel Duarte. Optei pelas duas produções com o Ariel Feitosa<br />
junto com a colaboração do Ralph Sar<strong>de</strong>lla (da banda <strong>de</strong> rock Os<br />
Cabelo Duro). O Heligazu (Os Cabelo Duro) também participou<br />
em várias composições para o disco do Angel Duarte.<br />
Na coletânea, o intuito era mesclar grupos consagrados, que<br />
eu já produzira, com grupos novos, em início <strong>de</strong> carreira no rap<br />
nacional. Um <strong>de</strong>stes foi o Sttilo Radical, <strong>de</strong> São Paulo, com a<br />
música “Atitu<strong>de</strong> certa” – quem me pediu para ajudá-los e incluílos<br />
no disco foi o Van<strong>de</strong>r, do Atelier. Participaram também do CD:<br />
Consciência H<strong>um</strong>ana, Gog, Japão (Viela 17), Marcão (Baseado<br />
nas Ruas), De Menos Crime, Ameaça Urbana, El Patito Feo, Proverbio<br />
X, Voz sem Medo, X, Angel Duarte e Alemão (Socieda<strong>de</strong><br />
Anônima). O acordo foi que todas as músicas produzidas nesse<br />
trabalho não podiam entrar em outro CD. Para tê-las, seria preciso<br />
adquirir a coletânea. Nela, duas músicas se <strong>de</strong>stacam. A do<br />
Gog, “Guerrilha Gog”, é <strong>um</strong>a:<br />
Mãos ao alto é <strong>um</strong> assalto,<br />
as mentes poluídas que escon<strong>de</strong>m as feridas, apesar <strong>de</strong> vivas,<br />
das páginas dos livros, apagaram os ídolos,<br />
em vez <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>res coroaram os nocivos,<br />
Caxias, Isabel, cada <strong>um</strong> no seu papel,<br />
o po<strong>de</strong>r e o povo, <strong>um</strong>a torre <strong>de</strong> babel.<br />
Náufragos, trafi cantes, <strong>de</strong>golados, <strong>de</strong>gredados,<br />
o vizinho Paraguai 100% arrasado.<br />
13 <strong>de</strong> Maio Abolição, sem terra sem cavalos,<br />
20 <strong>de</strong> novembro, Z<strong>um</strong>bi, <strong>de</strong>sse sim herdamos algo.<br />
Inglaterra nas Malvinas a razão da Argentina.<br />
Bombas estilhaços latinos aos pedacços.<br />
Não sei se isso comove você,
483
484 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
até quando <strong>um</strong> blindado vai te proteger.<br />
Guerrilha Gog pro povo a paz.<br />
A terra ou po<strong>de</strong>r, bom pra mim pra você.<br />
Pior que está não dá, é pegar ou largar, <strong>de</strong>sistir ou lutar,<br />
vai chegar a hora <strong>de</strong> comemorar, nas carreta sem treta,<br />
Hip-hop é seita, bom malandro <strong>um</strong> bingo e letra.<br />
A outra, sem dúvida, é Rap suicida , do X:<br />
A melhoria <strong>de</strong> vida também <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> você,<br />
preste atenção ao falar, cuidado ao escrever,<br />
o rap nunca esteve tão forte como está agora,<br />
são anos <strong>de</strong> trabalho duro não se po<strong>de</strong> jogar fora.<br />
Antigamente chegado era bem mais difícil,<br />
tudo era feito na farra sempre no sacrifício,<br />
pra abrir <strong>um</strong> show <strong>de</strong> alguém, tinha que ralar,<br />
tinha que tirar dinheiro do bolso véi...pra tocar.<br />
Pra produzir <strong>um</strong>a base só na camaradagem,<br />
<strong>um</strong> concurso <strong>de</strong> rap a oportunida<strong>de</strong>.<br />
Eu comecei assim e acho que a maioria,<br />
“porra, velho” são quase 20 anos <strong>de</strong> correria.<br />
Na saída do salão “baculejo” dos “Home”,<br />
falou que é da “Cei” velho...o pau come.<br />
Tapa na cara soco no estômago,<br />
mas se eu fosse da galera do mal era <strong>um</strong> rombo e <strong>um</strong> tombo.<br />
Mas aí me segurei tou aqui escuta só,<br />
lutando pelo meu país fazendo <strong>um</strong> bem melhor.<br />
Tentaram me <strong>de</strong>struir quase quebraram as minhas pernas,<br />
não vou gastar o meu tempo escrevendo merda.<br />
Conheço bem o seu tipo, velho, tu não me engana,<br />
diz que rima que é do rap, o seu negócio é só grana.<br />
Tu ven<strong>de</strong> até a própria mãe é só botar preço,<br />
tá parecendo alguém que eu conheço.<br />
Não, meu irmão, hip-hop não é só isso,<br />
é muito mais do que dinheiro, velho, é compromisso,<br />
é mais que a fama é lutar pela Paz.<br />
As luzes dos holofotes não me ofuscam mais.<br />
Fala mal da miséria mas sobrevive <strong>de</strong>la,<br />
fala da periferia mas explora a favela.<br />
Quer que vão aos seus shows e paguem seu cachê,
DJ Raffa 20 Anos<br />
que ouçam o seu som no rádio e comprem seu CD.<br />
Por eles você está fazendo o quê?<br />
Tou quase mandando você se fu<strong>de</strong>r<br />
Meu povo já tá puto com quem só ilu<strong>de</strong>,<br />
tem que partir pra ação, véi, tome <strong>um</strong>a atitu<strong>de</strong>!<br />
485<br />
As coisas que o X diz nessa letra refl etem exatamente o pensamento<br />
daqueles que levam o hip-hop a sério, não só por diversão<br />
e dinheiro.<br />
Fiz o lançamento <strong>de</strong> DJ Raffa 20 anos <strong>de</strong> Hip Hop no Ginásio<br />
Nilson Nelson, no Plano Piloto. Aproveitei e pedi para o Chico <strong>de</strong><br />
Aquino conseguir <strong>um</strong>a liberação para que o Antece<strong>de</strong>nte Criminal<br />
pu<strong>de</strong>sse lançar seu CD junto com a minha coletânea. Vieram<br />
<strong>de</strong> São Paulo o Stillo Radical e a DRR em peso. O show foi maravilhoso!<br />
O som da Smurphies, do Marquinhos, batia muito. Mas<br />
infelizmente o público foi fraco, pois no mesmo dia houve <strong>um</strong><br />
evento <strong>de</strong> lazer gratuito no Centro da Ceilândia e com o Cirurgia<br />
Moral. Aí realmente era difícil <strong>de</strong> competir.
486<br />
CAPÍTULO 62:
Logo <strong>de</strong>pois do CD DJ Raffa 20 anos, eu, Ariel Feitosa e Ralph<br />
Sar<strong>de</strong>lla produzimos o disco solo do cantor Angel Duarte.<br />
Há muitos anos Angel vinha trabalhando comigo em produções,<br />
fazendo backing vocals para vários artistas e grupos do rap<br />
nacional, entre eles Jamaika, Baseado nas Ruas e Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana. O disco fundia música dançante, r&b e nova MPB,<br />
mistura que resultava da soma <strong>de</strong> baterias eletrônicas programadas<br />
e baixos elétricos, guitarras, violões, rho<strong>de</strong>s e metais,<br />
tocados por músicos <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Este trabalho me <strong>de</strong>u satisfação<br />
e orgulho, por ser <strong>um</strong>a <strong>de</strong>monstração da minha maturida<strong>de</strong><br />
como produtor musical.<br />
Em seis meses, fi zemos todas as faixas do disco. Neste período<br />
eu quase não estava produzindo, <strong>de</strong> modo que tive bastante<br />
tempo para me <strong>de</strong>dicar a este trabalho. As sessões no estúdio<br />
eram verda<strong>de</strong>iras jam sessions. Parecia estúdio <strong>de</strong> ensaios. Os<br />
arranjos nasciam praticamente do nada, apenas com a gente<br />
tocando e experimentando levadas diferentes. Angel tem <strong>um</strong><br />
talento único para cantar r&b, mas com <strong>um</strong> toque totalmente<br />
brasileiro. Ele não vocaliza com exagero, ao mesmo tempo em<br />
que coloca pura emoção na voz.<br />
Resolvemos produzir alg<strong>um</strong>as regravações fazendo arranjos próprios<br />
para “Não vou fi car”, do Tim Maia; “Xamego da nega” do Zé<br />
Rodrix; “Domingo 23”, do Jorge Ben Jor, e “Hora da união”, do Totó,<br />
488
Angel Duarte<br />
489<br />
<strong>um</strong> samba soul. As músicas <strong>de</strong> que mais gosto nesse CD – intitulado<br />
Black Soul, e lançado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita luta pela gravadora<br />
Obi Music, do Nilton Ribeiro – são: “Se você quiser”, “Sem teu<br />
amor” e “O groove”.<br />
Antes <strong>de</strong> o Angel assinar contrato com a Obi Music, nós viajamos<br />
para São Paulo n<strong>um</strong>a tentativa <strong>de</strong> mostrar o trabalho para<br />
donos <strong>de</strong> gravadoras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e empresários dispostos a<br />
lançá-lo. Enquanto isso, fi zemos <strong>um</strong>a maravilhosa abertura do<br />
show <strong>de</strong> Gerson King Kombo, na casa noturna <strong>de</strong> jazz Bourbon<br />
Street. O guitarrista Da Gama, do Cida<strong>de</strong> Negra, também estava<br />
presente. O show do Angel era <strong>um</strong>a mistura <strong>de</strong> acústico com<br />
eletrônico. Toda a parte eletrônica seqüenciada, os scratches<br />
era eu quem fazia.<br />
Tentei diversas vezes falar com o João Marcelo, presi<strong>de</strong>nte da<br />
Trama, que nunca teve tempo para me receber. Enviei o CD através<br />
<strong>de</strong> outra pessoa da gravadora e soube <strong>de</strong>pois, pelo próprio<br />
João, que o disco jamais chegara às suas mãos. Chamo isso<br />
<strong>de</strong> “boicote”. Resolvemos ir ao Rio e o Celsão fez a ponte para<br />
que o famoso DJ Corelo ouvisse o trampo. Aconteceu não só <strong>de</strong><br />
ele gostar muito como <strong>de</strong> mandar o CD para o Nilton Ribeiro,<br />
que acabara <strong>de</strong> montar o selo Obi Music. O Nilton estava contratando<br />
<strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> Belo Horizonte chamado Berimbrau,<br />
mas, ao ouvir o disco do Angel, pediu-nos <strong>um</strong>a reunião em São<br />
Paulo. Com passagem e hospedagem pagas, Angel e eu fomos<br />
a Sampa e fi camos lá até resolver a burocracia para o contrato<br />
do Black Soul, que incluíam: o pagamento <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>spesas<br />
que tivéramos para produzi-lo e a promessa <strong>de</strong> <strong>um</strong> lançamento<br />
<strong>de</strong> alto nível para o CD. Também acertou-se a prensagem da<br />
coletânea DJ Raffa 20 anos, e, após essa conversa produtiva,<br />
peguei o meu book para mostrar <strong>um</strong> pouco da minha trajetória<br />
ao Nilton. Quando ele viu tudo o que eu já fi zera e percebeu <strong>de</strong><br />
quem eu era fi lho, a conversa fi cou melhor ainda:<br />
— Raffa, você é fi lho do maestro Claudio Santoro? – perguntou,<br />
surpreso.
490 <strong>Trajetória</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro<br />
— Sim!<br />
— Cara, seu pai é, para mim, <strong>um</strong> dos gênios da música brasileira<br />
– disse ele. – Eu o conheci há muitos anos, antes da ditadura,<br />
quando eu ainda era <strong>um</strong> divulgador da gravadora Copacabana.<br />
A Copacabana, se não me engano, queria distribuir os discos da<br />
Carrossel com músicas infantis que o seu pai fez.<br />
— Eu me lembro <strong>de</strong>sse disco. Havia os compactos também!<br />
– exclamei.<br />
— Cara, é <strong>um</strong>a honra ter você no time da Obi Music.<br />
— Beleza, Niltão! Tamo aí!<br />
No outro dia, o Angel foi para sessão <strong>de</strong> fotos à noite. Achei que<br />
o estilo do fotógrafo e das fotos não tinham nada a ver com o do<br />
disco, mas eu não po<strong>de</strong>ria criticar sem ver o resultado fi nal. O<br />
Niltão então promoveu no Direct TV Hall, em São Paulo, o lançamento<br />
da Obi Music, com shows do Berimbrau, Angel Duarte,<br />
Jamelão – da Velha Guarda da Mangueira – e outros artistas. Eu<br />
não estava presente porque viajara para fora do Brasil, acompanhando<br />
a minha mãe em assuntos relacionados ao Seminário<br />
Internacional <strong>de</strong> Dança <strong>de</strong> Brasília. Antes <strong>de</strong> embarcar, no<br />
entanto, resolvi adiantar para todo mundo o dinheiro que o Niltão<br />
prometera pagar, cobrindo os gastos com a produção do CD.<br />
Depois, como a minha escala passava por São Paulo, aproveitei<br />
para ir vê-lo na Obi Music.<br />
— Niltão, eu troquei dois cheques com o valor combinado, contando<br />
com a sua promessa <strong>de</strong> <strong>de</strong>positar o dinheiro – disse eu.<br />
— Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar comigo, Raffa. Olha só como fi cou o CD do Angel.<br />
— Nossa, Niltão! Desculpe, velho, mas eu não gostei da capa<br />
do CD.<br />
— Tudo bem, Raffa, só que agora não tem mais jeito.<br />
Acabei viajando sem a grana prometida pelo Niltão, que nunca<br />
me pagou pela produção do Black Soul – entrando na lista dos
Angel Duarte<br />
491<br />
donos <strong>de</strong> gravadoras que não pagam ninguém, explorando o<br />
talento dos outros apenas para o próprio benefício. Mais <strong>um</strong>a vez<br />
fi quei no vermelho e, claro, nenh<strong>um</strong> dos que trabalharam comigo<br />
nessa produção, e receberam a sua parte, fez qualquer esforço<br />
para me ajudar. Para completar, ainda rolou a potoca <strong>de</strong> que eu<br />
falara mal do resultado fi nal do disco, quando eu só comentara<br />
não ter gostado da capa, o que não escondi <strong>de</strong> ninguém. Na volta<br />
da viagem, por causa <strong>de</strong>ssas mentiras, o clima era <strong>de</strong> todos contra<br />
mim. Rapidamente coloquei todos os “pingos nos is”.<br />
A minha amiza<strong>de</strong> com o Angel nunca mais foi igual. Nem mesmo<br />
quando a gente produziu faixas para o seu segundo CD, que<br />
nunca se concretizou. No fi nal das contas, o Niltão não trabalhou<br />
o Black Soul como <strong>de</strong>veria, e <strong>de</strong>u mais atenção ao Berimbrau; o<br />
Angel fi cou “congelado” na gravadora como acontece a vários<br />
artistas ao “ameaçarem” os artistas <strong>de</strong> ponta. O resultado é<br />
que, alg<strong>um</strong> tempo <strong>de</strong>pois, infelizmente o Angel emprestou a voz<br />
para <strong>um</strong> estilo musical que nada tinha a ver com ele. Formou<br />
<strong>um</strong>a banda <strong>de</strong> rock pop que só <strong>de</strong>u certo por <strong>um</strong> curto período<br />
<strong>de</strong> tempo. Recentemente, ele participou do programa Ídolos, no<br />
SBT. Sempre conversei muito com ele sobre o que signifi ca se<br />
expor em programas <strong>de</strong> TV com essa temática: os resultados<br />
po<strong>de</strong>m ser bons temporariamente, mas, na maioria das vezes,<br />
são muito ruins no fi nal.
492<br />
CAPÍTULO 63:
Através do Ameaça Urbana, conheci outros grupos do entorno Sul<br />
do DF. Para mim, esses novos artistas estavam fazendo história<br />
no hip-hop do Cerrado, assim como os grupos da Ceilândia nos<br />
anos 90. Eu estava produzindo <strong>um</strong> grupo chamado Tocaia, que me<br />
apresentou ao Gueto Hábil, outro muito talentoso. Todos amigos do<br />
Batata. Eu e o Ariel marcamos <strong>um</strong> churrasco no Clube do Vicente,<br />
perto da casa do Thiago, integrante do Tocaia, porque queríamos<br />
conversar com alguns grupos. A gente pensava em investir neles,<br />
produzindo e lançando seus CDs no mercado fonográfi co.<br />
Nesta ocasião vi pela primeira vez a cantora Aninha, do Atitu<strong>de</strong><br />
Feminina, e lhe presenteei <strong>um</strong> CD da minha coletânea, DJ Raffa<br />
20 anos <strong>de</strong> Hip Hop. Quando olhei seu rosto, algo mexeu comigo,<br />
no meu coração. Mas não <strong>de</strong>i muita atenção e rapidamente voltei<br />
para a mesa on<strong>de</strong> toda a galera estava sentada. Depois <strong>de</strong>sse<br />
dia, certas atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alguns que participaram da reunião me<br />
fi zeram <strong>de</strong>sanimar em dar prosseguimento ao projeto.<br />
A segunda vez que encontrei Aninha foi n<strong>um</strong> outro churrasco –<br />
<strong>de</strong>sta vez na casa do Thiago – que ele oferecera aos integrantes<br />
do Consciência H<strong>um</strong>ana durante a produção do terceiro CD do<br />
grupo. Porém, como o reencontro foi muito rápido, mais <strong>um</strong>a vez<br />
não <strong>de</strong>i muita atenção.<br />
Já a terceira vez rolou no estúdio da Associação. O Ameaça<br />
Urbana a chamara para <strong>um</strong>a participação cantando o refrão <strong>de</strong><br />
494
A luz no fi m do túnel<br />
495<br />
<strong>um</strong>a música que estávamos produzindo. Devido ao tempo que<br />
se tinha passado e à rapi<strong>de</strong>z com que nos encontrarámos anteriormente,<br />
era, para mim, como se fosse a primeira vez. Quando<br />
ela entrou e <strong>de</strong>u a volta na mesa do equipamento para falar<br />
comigo, não consegui tirar os olhos <strong>de</strong>la. Foi amor à primeira<br />
vista. Mas o guar<strong>de</strong>i para mim, porque vivia <strong>um</strong>a fase em que a<br />
insegurança me dominava, e acreditava que nunca mais teria<br />
outro relacionamento amoroso na vida.<br />
Passaram-se alguns dias, aí aconteceu o que eu temia: fui <strong>de</strong>tido<br />
e preso por causa <strong>de</strong> <strong>um</strong> processo antigo <strong>de</strong> pensão alimentícia,<br />
movido pela Zilmar, minha primeira ex-mulher e mãe da minha<br />
fi lha Rafaella. Fiquei revoltado porque eu provara perante o juiz,<br />
através do meu advogado, que estava pagando a mensalida<strong>de</strong> da<br />
escola e o plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da Rafaella, além <strong>de</strong> sempre comprar<br />
todo material escolar, uniforme e roupas <strong>de</strong> que ela precisava.<br />
A minha experiência na prisão fez <strong>de</strong> mim <strong>um</strong> homem mais frio e<br />
calculista. Fui reconhecido pelos irmãos imediatamente ao entrar<br />
na cela, on<strong>de</strong> cabiam quatro mas tinha 11 presos. Nas primeiras<br />
noites, dormi ao lado da privada, no chão frio, sem cobertor. O que<br />
mais me revoltava não era o fato <strong>de</strong> estar preso, mas <strong>de</strong> ver minha<br />
mãe indo à prisão nos dias <strong>de</strong> visitas. Era h<strong>um</strong>ilhante para ela ter<br />
que passar por tudo aquilo. Fiquei preso 18 dias na Delegacia do<br />
Cruzeiro, porque o meu advogado tentava, em tribunais superiores,<br />
reverter a situação, o que se revelou inútil. Somente com a<br />
ajuda <strong>de</strong> minha mãe, que pagou o que a lei exigia, consegui sair.<br />
Esse episódio abalou muito o meu relacionamento com a minha<br />
fi lha Rafaella, pois me afastou do convívio que tínhamos. E foi pior<br />
para todos, pois, a partir <strong>de</strong> então, comecei a pagar religiosamente<br />
só o que a lei <strong>de</strong>terminava, isto é, menos do que antes eu gastava<br />
com ela, com coisas que eu consi<strong>de</strong>rava fundamentais.<br />
Logo que fui libertado, o meu primo Carlos Gioto me convidou<br />
para <strong>um</strong>a viagem com ele a Manaus. Assim pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar por<br />
<strong>um</strong>a semana, e pensar em toda a minha vida. Eu queria reencontrar<br />
Aninha, os meus pensamentos eram <strong>de</strong>la. E, com sauda<strong>de</strong>s
496 <strong>Trajetória</strong> Trajatória <strong>de</strong> <strong>um</strong> guerreiro
A luz no fi m do túnel<br />
497<br />
e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> revê-la, as lágrimas caíam no meu rosto. Quando<br />
voltei a Brasilia, começamos a nos falar por celular praticamente<br />
todos os dias. Foi então que marcamos <strong>um</strong> encontro<br />
no estúdio da Associação – n<strong>um</strong> dia <strong>de</strong> produção do Ameaça<br />
Urbana – e <strong>de</strong>mos o nosso primeiro beijo. O beijo mais carinhoso,<br />
suave e quente <strong>de</strong> toda a minha vida.<br />
Depois <strong>de</strong>le, soube que tudo mudaria radicalmente para<br />
melhor. Começamos a namorar em agosto <strong>de</strong> 2003 e <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
então a minha vida profi ssional e particular entrou n<strong>um</strong>a fase<br />
<strong>de</strong> alegria, amor e Deus no coração. Logo eu conheceria as<br />
meninas do Atitu<strong>de</strong> Feminina, amigas da Aninha e que, para<br />
mim, passariam a ser como minhas próprias fi lhas. Além do<br />
que, eu faria com elas o melhor e mais importante trabalho <strong>de</strong><br />
rap nacional <strong>de</strong> toda a minha carreira <strong>de</strong> produtor musical, o<br />
CD Rosas, também título da música principal do disco. O tema<br />
<strong>de</strong> “Rosas” é a violência doméstica, e tratar <strong>de</strong>le confi rmava o<br />
engajamento social do Atitu<strong>de</strong> Feminina.<br />
Posso afi rmar que o resultado <strong>de</strong>sse livro se <strong>de</strong>ve à insistência<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulher que me resgatou do fundo do poço – quando<br />
nada mais eu queria na vida além <strong>de</strong> morrer –, para essa felicida<strong>de</strong><br />
que sinto hoje. Lutando para me ver bem profi ssionalmente;<br />
usando camisetas com o meu nome para fazer propaganda<br />
minha; levando-me para todos os bailes e shows <strong>de</strong> rap<br />
para a nova geração me conhecer; trazendo-me <strong>de</strong> volta à cena<br />
musical; fazendo-me sentir <strong>um</strong> artista reciclado, que conseguiu<br />
atravessar as barreiras das gerações; libertando-me dos<br />
amigos falsos, invejosos e traidores; trazendo-me juventu<strong>de</strong>,<br />
alegria e amor, e o mais importante: colocando-me em paz com<br />
Deus novamente. Se estou vivo hoje, escrevendo esse livro,<br />
<strong>de</strong>vo tudo a essa mulher maravilhosa que tanto amo: Aninha.<br />
Mas essa é outra história...
Imagens:<br />
índice e créditos<br />
Introdução:<br />
— DJ Raffa tocando no I Festival <strong>de</strong> Hip-hop do Cerrado na<br />
Torre <strong>de</strong> TV, em Brasília. O DJ Marquinhos, do Smurphies Disco Club.<br />
Foto: Welber <strong>de</strong> Souza.<br />
— Raffa com apenas 1 ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Viernheim, na<br />
Alemanha Oci<strong>de</strong>ntal no início da década <strong>de</strong> 70. Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap. 02:<br />
— Paulo, João (<strong>de</strong> costas) e Raffa, formação do grupo The Breaks,<br />
no concurso <strong>de</strong> break do clube Montonáutica em Brasília, em 1984.<br />
Foto: arquivo pessoal.<br />
— Tampinha (na frente), Clóvis, Raffa e João, grupo The Breaks, no<br />
concurso <strong>de</strong> break do clube Montonáutica em Brasília, em 1984.<br />
Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap. 03:<br />
— (da esquerda para a direita) Raffa, Paulo, João, Tampinha e Clóvis<br />
(grupo The Breaks), no concurso <strong>de</strong> break do clube Montonáutica<br />
em Brasília, em 1984. Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap. 05:<br />
— Beat Street. Capa do disco da trilha sonora do fi lme. (<strong>de</strong>talhe).<br />
Cap. 06:<br />
— DJ Raffa e seu pai no apartamento <strong>de</strong> sua irmã Gisele em Manheim,<br />
na Alemanha Oci<strong>de</strong>ntal, em 1989.<br />
Cap.07:<br />
— Gigolo Tony. Rótulo do single, Smurf Rock. (<strong>de</strong>talhe).<br />
Cap.08:<br />
— Teclado sampler Casio SK1. (<strong>de</strong>talhe).<br />
Cap. 11:<br />
— Capa do disco Hip-hop Cultura <strong>de</strong> Rua. (<strong>de</strong>talhe)<br />
Cap. 12:<br />
— Claudio Santoro e Raffa na cozinha da Casa <strong>de</strong> Brahms em Ba<strong>de</strong>n<br />
Ba<strong>de</strong>n na Alemanha Oci<strong>de</strong>ntal, em 1989. Foto: arquivo pessoal.<br />
498
499<br />
Cap. 13:<br />
— Claudio Santoro na sala da Casa <strong>de</strong> Brahms em Ba<strong>de</strong>n Ba<strong>de</strong>n<br />
na Alemanha Oci<strong>de</strong>ntal, em 1989. Foto: arquivo pessoal<br />
Cap. 14:<br />
— Família Santoro reunida: Alessandro, Raffa, Claudio Santoro (pai),<br />
Gisele e Gisele Santoro (mãe) na Alemanha Oci<strong>de</strong>ntal, na época<br />
do exílio. Foto: arquivo pessoal<br />
Cap.16:<br />
— DJ H<strong>um</strong>, DJ Raffa e Japão do Viela 17 no Rio Presi<strong>de</strong>nte Hotel,<br />
no Rio <strong>de</strong> Janeiro no Prêmio Hutúz 2004. Foto: arquivo pessoal<br />
Cap. 17:<br />
— Relação das <strong>de</strong>z mais tocadas da Kaskatas. Revista Dj Sound, <strong>de</strong>z.1990.<br />
Cap. 18:<br />
— Dj Raffa e os Magrellos.<br />
Cap. 19:<br />
— DJ Raffa e Marcão em frente ao Congresso Nacional, em Brasília<br />
em 2003. Foto: arquivo pessoal<br />
Cap.21:<br />
— Dj e os Magrellos. Detalhe <strong>de</strong> capas.<br />
Cap.22:<br />
— Rossi, Black, Marcão, Freire, Raffa e Tubarão, que formavam os<br />
Magrellos, na Praça dos Três Po<strong>de</strong>res, Brasília em 1989.<br />
Cap.24:<br />
— Baseado nas Ruas. A sabotagem continua, <strong>de</strong>talhe da capa do cd.<br />
Cap.27:<br />
— Baseado nas Ruas: Marcão e DJ Raffa, em 1992.<br />
Foto: Diário <strong>de</strong> Guarulhos<br />
Cap.29:<br />
— Gog. Prepare-se, <strong>de</strong>talhe da capa do cd.<br />
Cap.30:<br />
— Panfl eto do evento Rap do Suplicy no vale do Anhangabaú,<br />
em São Paulo, em 1992.<br />
Cap. 32:<br />
— Câmbio Negro, <strong>de</strong>talhe da capa do cd.<br />
Cap. 34:<br />
— Baseado nas Ruas, <strong>de</strong>talhe da capa do cd Refl exão.<br />
Cap. 39:<br />
— DJ Raffa, Gog e amigo na casa do pai <strong>de</strong> Ariel Feitosa<br />
em Riacho Fundo, Brasília, em 2004. Foto: arquivo pessoal
500<br />
Cap.40:<br />
— Detalhe do estúdio. Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap.41:<br />
— Panfl eto do show da Torre <strong>de</strong> TV no I Encontro da Juventu<strong>de</strong><br />
em Brasília em 1998.<br />
Cap. 45:<br />
— Funk melody dance remixes, <strong>de</strong>talhe da capa do CD.<br />
Cap. 46:<br />
— Celso Athay<strong>de</strong>, fundador da CUFA e Raffa no Hutúz, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap. 47:<br />
— Guind’art 121, <strong>de</strong>talhe da capa do cd Livre arbítrio.<br />
Cap. 48:<br />
— Cre<strong>de</strong>ncial para o show do Public Enemy. São Paulo, 1991.<br />
Cap. 49:<br />
— Personagens do Hip-hop DF: Jamaika, X ,Fabio Macari, Gog, Panther<br />
Souto, Kult e Pitota. Foto: Revista DJ Sound.<br />
Cap. 51:<br />
— De menos Crime. (<strong>de</strong>talhe).<br />
Cap. 53:<br />
— Entre a adolescência e o crime. Detalhe da capa do cd do grupo<br />
Consciência H<strong>um</strong>ana. (<strong>de</strong>talhe).<br />
— DJ Adriano, ex-DJ do grupo Consciência H<strong>um</strong>ana, Beth Carvalho,<br />
DJ Raffa e Van<strong>de</strong>r Carneiro no estúdio Ateliê em São Paulo, em 2004.<br />
Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap. 55:<br />
— Gog, <strong>de</strong>talhe da capa do cd CPI da Favela.<br />
Cap. 56:<br />
— Claudio Santoro em seu piano na casa da família Santoro em<br />
Brasília na década <strong>de</strong> 80. Foto: arquivo pessoal.<br />
— Claudio Santoro em seu estúdio <strong>de</strong> música eletroacústica,<br />
na Alemanha Oci<strong>de</strong>ntal. Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap. 57:<br />
— (da esquerda para a direita) Japão (Viela 17), DJ Raffa, Mikimba<br />
(De Menos Crime), Batata (Ameaça Urbana), W. Gee (Consciência<br />
H<strong>um</strong>ana), Kid Nice (Sistema Negro), Boguinha e Lula (ambos do<br />
Ameaça Urbana), no Hutúz, que aconteceu na casa <strong>de</strong> shows<br />
Canecão, no Rio <strong>de</strong> Janeiro em 2004. Foto: arquivo pessoal.<br />
— DJ Raffa em Belo Horizonte palestrando no evento Hip-hop Doc.<br />
Foto: arquivo pessoal.
Cap. 58:<br />
— Crachá do lançamento do CD DJ Raffa 20 anos no Ginásio Nilson<br />
Nelson em Brasília, no ano <strong>de</strong> 2003.<br />
Cap 60:<br />
— Viela 17. Detalhe da capa do CD: O jogo.<br />
Cap 61:<br />
— DJ Raffa e grupo Antece<strong>de</strong>nte Criminal, do complexo penitenciário<br />
da Papuda, no estúdio da Associação Cultural Claudio Santoro em<br />
2003. Foto: arquivo pessoal.<br />
Cap.63:<br />
— DJ Raffa e sua mulher Aninha, do grupo Atitu<strong>de</strong> Feminina no<br />
I Festival do Cerrado na Torre <strong>de</strong> TV, em julho <strong>de</strong> 2006.<br />
Foto: Welber <strong>de</strong> Souza.<br />
501
Sobre o autor<br />
Está na cultura hip-hop <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1983, quando dançava break nas<br />
ruas do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Montou <strong>um</strong>a equipe <strong>de</strong> som, trabalhou<br />
como DJ em casas noturnas e bailes na periferia. Formou-se<br />
como engenheiro <strong>de</strong> som nos Estados Unidos e começou produzindo<br />
rap nacional em 1987. Foi integrante <strong>de</strong> dois grupos <strong>de</strong> rap<br />
(Magrellos e Baseado nas Ruas), trabalhou em vários estúdios<br />
em São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro, São Luíz e Brasília. Recebeu o prêmio<br />
Hutúz em 2000 e 2004. Atualmente, participa <strong>de</strong> projetos<br />
sociais como Educador e Professor. É i<strong>de</strong>alizador e coor<strong>de</strong>nador<br />
do “Seminário Hip-hop do DF e Entorno” e do “Festival <strong>de</strong><br />
Hip-hop do Cerrado”, principais eventos nesse genero no DF.<br />
É professor da Escola <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Brasília e <strong>um</strong> dos produtores<br />
<strong>de</strong> rap mais solicitados no Brasil. Tem quatro discos <strong>de</strong> ouro<br />
(ofi ciais) e mais <strong>de</strong> cem trabalhos produzidos. Divi<strong>de</strong> os palcos<br />
com o grupo Atitu<strong>de</strong> Feminina, DJ Leandronik e o SomCaTadO<br />
por todo Brasil.<br />
503
Este livro foi composto em Akkurat.<br />
O papel utilizado para o miolo foi o Pólen Bold 90g/m2 .<br />
Para capa o papel é o Supremo Alta Alvura 250 g/m2. A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfi ca<br />
Imprinta Express LTDA. em novembro <strong>de</strong> 2007, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Todos os recursos foram empenhados para i<strong>de</strong>ntifi car e obter as<br />
autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha<br />
nesta obtenção terá ocorrido por total <strong>de</strong>sinformação ou por erro<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntifi cação do próprio contato. A editora está à disposição<br />
para corrigir e conce<strong>de</strong>r os créditos aos verda<strong>de</strong>iros titulares.