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Boneca de pano - Moa Sipriano

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continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste projeto literário único no Brasil.<br />

* * *<br />

Sobre mim-eu-mesmo: “<strong>Moa</strong> <strong>Sipriano</strong> produz exclusivamente literatura adulta que aborda<br />

todos os meandros do universo gay masculino. Seus artigos realistas, contos polêmicos e<br />

romances homoeróticos remetem à reflexão e promovem momentos excitantes <strong>de</strong><br />

surpreen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>scobertas.”<br />

* * *<br />

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2


<strong>Boneca</strong> <strong>de</strong> <strong>pano</strong><br />

<strong>Moa</strong> <strong>Sipriano</strong><br />

2006<br />

3


Ela chegou naquele quarto numa manhã radiante <strong>de</strong> um domingo <strong>de</strong> setembro, o mês <strong>de</strong><br />

todas as realizações. Suas pernas brancas, finas além da conta e seus braços compridos e molengas<br />

eram <strong>de</strong>sproporcionais ao resto do corpo rechonchudo, colorido, macio.<br />

A irmã <strong>de</strong> Tiago <strong>de</strong>sprezou quase que imediatamente o presente feito pela avó com tanto<br />

zelo. Ela disse aos berros, quando a doce velhinha entregou-lhe o embrulho amarfanhado,<br />

<strong>de</strong>ixando à mostra um pedacinho do brinquedo, que “aquilo” tinha cara <strong>de</strong> monstro e não <strong>de</strong><br />

boneca igual a que ela havia visto na tevê.<br />

Zuleica, a boneca <strong>de</strong>sprezada, permaneceu dois dias jogada <strong>de</strong>baixo da cama <strong>de</strong> Tiago,<br />

tentando escon<strong>de</strong>r sua tristeza atrás <strong>de</strong> um sorriso vermelho <strong>de</strong> lábios costurados.<br />

Como o menino não tinha brinquedos, nem amigos, adotou Zuleica. Nas horas vagas,<br />

geralmente <strong>de</strong>pois da escola ou um pouco antes <strong>de</strong> dormir – quando costumava ficar um tempão no<br />

banheiro <strong>de</strong>scobrindo os prazeres <strong>de</strong> tocar no seu pinto que há poucos dias tinha dado sinal <strong>de</strong><br />

vida, empinando e se espichando todo garboso – a boneca <strong>de</strong> <strong>pano</strong> participava ativamente das suas<br />

brinca<strong>de</strong>iras. Finalmente Tiago encontrara boa companhia que lhe compreendia o sentido dos<br />

mistérios.<br />

Passavam horas conversando sobre tudo o que <strong>de</strong>scobriam no <strong>de</strong>correr das suas vidinhas <strong>de</strong><br />

fantasia. Todos os segredos e sonhos <strong>de</strong> Tiago eram revelados à fiel amiga <strong>de</strong> sorriso boboca,<br />

monalístico.<br />

Um dos momentos mais excitantes do dia era quando invadiam o quarto da avó. Dentro do<br />

enorme guarda-roupa se divertiam pra valer, escolhendo peças bizarras para <strong>de</strong>corar os corpos<br />

ingênuos.<br />

Tiago adorava criar combinações esdrúxulas <strong>de</strong> tecidos, texturas e cores. A coitada da<br />

Zuleica geralmente acabava sufocada <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> quilos e quilos <strong>de</strong> calcinhas que mais pareciam<br />

cortinas e também <strong>de</strong> vestidos horrendos que vertiam naftalina ao serem manuseados.<br />

Quantas e quantas vezes Tiago não produzira Zuleica e a si mesmo, e juntos <strong>de</strong>sfilavam pelo<br />

quarto ao som imaginário <strong>de</strong> um Odair José, que o avô <strong>de</strong> Tiago costumava ouvir todo santo dia,<br />

sempre após o Jornal Nacional.<br />

Tiago apren<strong>de</strong>u a lavar roupas por causa <strong>de</strong> um motivo <strong>de</strong>sesperador. Numa tar<strong>de</strong> cinzenta,<br />

ele havia brincado com Zuleica <strong>de</strong> “fazer maquiagem” e não se <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong> que batom e rímel e<br />

sombras não saíam com facilida<strong>de</strong> daquela cara <strong>de</strong> saco <strong>de</strong> estopa.<br />

Foi com muito sacrifício, litros <strong>de</strong> água e quase uma pedra inteira <strong>de</strong> sabão que ele conseguiu<br />

remover parcialmente os estragos na pele alva da sua amiga. Tiago <strong>de</strong>scobriu que ser maquiador,<br />

no futuro, não estava traçado em seu <strong>de</strong>stino.<br />

4


Tiago e Zuleica eram felizes, até o dia em que o avô <strong>de</strong>scobriu aquela amiza<strong>de</strong> singela,<br />

quando o menino e sua boneca brincavam “<strong>de</strong> fazer aniversário”, tranquilos e faceiros <strong>de</strong>baixo da<br />

sombra <strong>de</strong> uma amoreira.<br />

Com os olhos vermelhos como os pimentões que costumava plantar atrás da casa e cheirando<br />

uma mistura horrenda <strong>de</strong> cachaça barata e fumo <strong>de</strong> corda, o avô, aos berros, investiu suas mãos<br />

pesadas contra o corpo frágil do neto, estapeando suas ná<strong>de</strong>gas macias, <strong>de</strong>pois puxando com força<br />

as orelhas compactas, que <strong>de</strong>vido à violência acabaram tomando proporções monstruosas na<br />

imaginação do menino, por causa da dor lancinante que sentia.<br />

Zuleica foi arrancada das mãozinhas suadas <strong>de</strong> Tiago e num relance ele viu os bracinhos e as<br />

pernas finas sendo <strong>de</strong>stroçados, e as entranhas <strong>de</strong> algodão serem expostas ao vento, ganhando o<br />

mundo exterior, flutuando por poucos segundos até atingirem impassíveis o chão <strong>de</strong> terra<br />

vermelha.<br />

“Tiago, homem não brinca com boneca. Isso é coisa <strong>de</strong> anormal, <strong>de</strong> gente doente!”, bradava<br />

aquele velho, gritando e arrastando o que restava do pobre menino pelo cômodo abafado, escada<br />

acima, jogando-o em seguida sobre a cama <strong>de</strong> casal, enquanto retirava sua cinta <strong>de</strong> couro e cortava<br />

aquela pele infantil, sensível e transparente com golpes fortíssimos aprendidos com o casal<br />

Ignorância e Preconceito.<br />

Muito sangue e lágrimas <strong>de</strong> incompreensão foram <strong>de</strong>rramados naquela tar<strong>de</strong>. Zuleica, ou o<br />

que restava do seu corpo esquartejado, espalhado na terra, ainda sorria seu riso triste e indignado<br />

ao sentir à distância os vincos traçados nas pernas finas e brancas do seu amigo Tiago.<br />

A avó Clotilda, coitada, jamais teve coragem <strong>de</strong> encarar o marido e permaneceu estática,<br />

com o rosário na mão, amuada no centro do seu imenso sofá <strong>de</strong> couro, o único móvel <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong><br />

naquela casa, ganhado da filha Júlia, num sorteio <strong>de</strong> bingo realizado na praça da Matriz.<br />

Dona Clotilda chorava e rezava, relembrando da filha e do genro, no que <strong>de</strong>veria ter sido<br />

uma noite <strong>de</strong> festas juninas acabou se tornando um inferno quando explodiu o botijão <strong>de</strong> gás <strong>de</strong><br />

uma das barracas que vendia quitutes, eliminando a vida da mãe e do pai <strong>de</strong> Tiago<br />

instantaneamente.<br />

Reginaldo, o avô, <strong>de</strong>ixou o menino <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos trancado por dois dias inteiros, sem oferecer<br />

água, nem comida, acreditando que essa “lição” espantaria a “coisa ruim” que havia se apossado<br />

do seu neto.<br />

Naquela casa, segundo o avô, homem tinha que ser homem. Os anormais <strong>de</strong>veriam ser<br />

punidos com veemência, pouco importando o laço <strong>de</strong> sangue que pu<strong>de</strong>sse uni-los <strong>de</strong> uma forma ou<br />

<strong>de</strong> outra.<br />

5


Tio Rômulo, o bicha, já tinha sido expulso do seio da família há muito tempo. Aceitar outro<br />

transviado era inadmissível para o “senhor” Reginaldo. Ele sempre repetia durante as reuniões<br />

familiares – após ter tomado a oitava dose <strong>de</strong> cachaça –, que sentia orgulho em ter espancado seu<br />

irmão mais novo quase até a morte, para ver se o sujeito <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> quebrar a munheca e falar<br />

fino, como as tias e a mãe.<br />

* * *<br />

Tiago, aos vinte e sete anos, tornou-se um verda<strong>de</strong>iro fenômeno no disputado mercado da<br />

moda em São Paulo. Suas criações vestem corpos esculturais <strong>de</strong> celebrida<strong>de</strong>s do mundo inteiro.<br />

Ele e seu companheiro, Rodrigo, <strong>de</strong> vinte anos, vivem confortavelmente em um loft <strong>de</strong>scolado<br />

num dos bairros mais charmosos da capital paulista.<br />

Por quase três anos, Tiago <strong>de</strong>dicou boa parte do seu tempo para cuidar do avô moribundo,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>scobriu que ele havia contraído Aids durante relações mantidas com rapazes, sem<br />

proteção, quando frequentava um pulgueiro <strong>de</strong> péssima reputação em Jundiaí, a terra da uva<br />

localizada no interior do estado.<br />

No final dos anos 1980, o avô costumava largar a mulher e os netos em casa todos os<br />

sábados, após a lida na sua horta. Fazia a barba, tomava uma ducha <strong>de</strong> Avanço e colocava o jeans<br />

mais apertado que havia em seu guarda-roupa, para po<strong>de</strong>r impressionar seus jovens amantes<br />

durante as pegações proporcionadas no ambiente <strong>de</strong> escape.<br />

O motivo real <strong>de</strong>le ter espancado e expulsado o irmão <strong>de</strong> casa, tempos atrás, era que Rômulo<br />

também frequentava aquele lugar, em dias e horários diferentes, sendo que o <strong>de</strong>stino havia cruzado<br />

os dois numa <strong>de</strong>terminada ocasião, quando Rômulo pegou em flagrante o irmão homofóbico sendo<br />

enrabado por um jovem soldado e ao mesmo tempo sendo chupado por um conhecido da família, o<br />

dono da quitanda on<strong>de</strong> Reginaldo costumava ven<strong>de</strong>r parte das suas hortaliças.<br />

* * *<br />

Durante o enterro <strong>de</strong> Reginaldo, realizado numa quinta-feira chuvosa <strong>de</strong> um outubro<br />

cinzento, Tiago e seu companheiro cumpriam o ritual <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida sem <strong>de</strong>monstrar emoções ao<br />

corpo que era <strong>de</strong>positado na terra.<br />

Enquanto o caixão era baixado na cova, a irmã <strong>de</strong> Tiago jogava algumas pétalas <strong>de</strong> rosas<br />

brancas que caíam contrariadas por sobre a ma<strong>de</strong>ira envernizada, criando <strong>de</strong>senhos difusos naquela<br />

6


textura marrom, brilhante, pobre.<br />

Antes <strong>de</strong> cobrir o velho homem com camadas <strong>de</strong> terra, Tiago tirou do bolso do casaco um<br />

pequeno embrulho feito <strong>de</strong> seda. Jogou a esmo o conteúdo na cova, que caiu sobre o tampo <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira e escorregou até parar na direção do coração do seu avô.<br />

Zuleica, a boneca <strong>de</strong> <strong>pano</strong> reformada, agora ia fazer companhia ao velho, alegrando-o com<br />

seu sorriso vermelho <strong>de</strong> lábios costurados, sem graça.<br />

FIM<br />

____________________<br />

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