JE590DEZ09 - Exército
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JE590DEZ09 - Exército
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PROPRIEDADE<br />
DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO<br />
Direcção, Redacção e Administração<br />
Largo de S. Sebastião da Pedreira<br />
1069-020 Lisboa<br />
Telef: 213 567 700<br />
Fax Civil: 213 567 791 Militar: 414 091<br />
E-mail: jornal.do.exercito@mail.exercito.pt<br />
E-mail: jornal.exercito@sapo.pt<br />
E-mail − Intranet: Jornal do <strong>Exército</strong><br />
Home page: www.exercito.pt<br />
DIRECÇÃO<br />
Director<br />
Coronel de Infantaria<br />
José Custódio Madaleno Geraldo<br />
Secretária<br />
Ass Técnica Teresa Felicíssimo<br />
Soldado Condutor RC Pedro Ferreira<br />
REDACÇÃO<br />
Chefe<br />
Tenente-Coronel J. Pinto Bessa<br />
Redactores<br />
Tenente RC Rico dos Santos<br />
Alferes RC Nelson Cavaco<br />
1º Sargento Anjos das Neves<br />
Mauro Matias<br />
Operadoras Informáticas<br />
Ass Técnica Elisa Pio<br />
Ass Técnica Guiomar Brito<br />
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO<br />
Chefe<br />
Major Augusto Correia<br />
Operadores Informáticos<br />
Ass Técnica Tânia Espírito Santo<br />
1.º Cabo Gonçalo Silva<br />
Biblioteca<br />
Ass Técnica Joana Moita<br />
SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS<br />
Operador Informático<br />
Sargento-Ajudante João Belém<br />
Distribuição e Publicidade<br />
Sargento-Ajudante Luís Silva<br />
Ass Operacional Filomena Remédios<br />
SECRETARIA<br />
Sargento-Chefe Costa e Silva<br />
COLABORAÇÃO FOTOGRÁFICA<br />
Lusa - Agência de Notícias<br />
de Portugal, SA<br />
Centro de Audiovisuais do <strong>Exército</strong><br />
RCRPP/GabCEME<br />
EXECUÇÃO GRÁFICA<br />
Europress, Lda<br />
Rua João Saraiva, 10-A − 1700-249<br />
Lisboa<br />
Telef 218 444 340 − Fax 218 492 061<br />
Europress@mail.telepac.pt<br />
Tiragem − 6 000 exemplares<br />
Sumário<br />
Ano L - N.º 590 - Dezembro de 2009<br />
Poema de Natal 4<br />
Cibersegurança Uma realidade virtual? 16<br />
Secções<br />
Mensagem de Natal<br />
do CEME 5<br />
O uso da força nas operações<br />
de peacekeeping<br />
das Nações Unidas 24<br />
Timor-Leste<br />
como se reforma um sector de<br />
segurança? 32<br />
Santa Bárbara<br />
Padroeira dos Artilheiros<br />
Cinquentenário 40<br />
Suplemento<br />
VIII – D. Afonso V<br />
e a Batalha de Toro<br />
Figuras e Factos – 8 a 15<br />
Passatempos de outros tempos – 46<br />
Capa: Ministro da Defesa Nacional visita o <strong>Exército</strong> – Foto do Alferes Nelson Cavaco<br />
Contracapa: Anunciação de Jorge Herold, 1930. Colecção particular<br />
Revisão de texto a cargo do Professor Doutor Eurico Gomes Dias<br />
Os artigos publicados com indicação de autor são da inteira responsabilidade dos mesmos, não reflectindo, necessariamente, o pensamento da Chefia do <strong>Exército</strong> Português<br />
Depósito Legal n.º 1465/82<br />
ISSN 0871/8598 ÓRGÃO DE INFORMAÇÃO, CULTURA E RECREIO DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, CRIADO POR PORTARIA DE 14JUL60
4<br />
O Jornal do <strong>Exército</strong> formula a todos os seus leitores<br />
votos de Boas Festas e Feliz Ano Novo<br />
A Magia do Natal<br />
Na breve escola da vida<br />
Festejamos o Natal<br />
A mais bela que foi vivida<br />
Por Jesus, Homem, imortal.<br />
Jesus, O Filho de Deus,<br />
Jesus, Filho de Maria,<br />
Sémen que desceu dos Céus<br />
Na Pomba Branca que luzia.<br />
Ilumina o Mundo Inteiro<br />
Este Natal que é Cristo.<br />
Filho de José, carpinteiro,<br />
E de um Deus sempre visto.<br />
Porque está em toda a parte<br />
É de toda a Humanidade<br />
Basta crer, com magia e arte,<br />
Natal é eternidade!<br />
O Director do JE<br />
José Custódio Madaleno Geraldo<br />
Coronel de Infantaria
Mensagem de Natal<br />
do General CEME<br />
Militares e Funcionários Civis do <strong>Exército</strong>.<br />
Aproxima-se o fim de um ano de intenso trabalho de todos os que têm vindo a<br />
cumprir, com esforço, lealdade e determinação, a sua missão no âmbito das diversas<br />
áreas funcionais, contribuindo assim para a afirmação do <strong>Exército</strong> que se assume na<br />
actualidade, como uma organização flexível, moderna, internacional e com padrões de<br />
funcionamento extremamente exigentes e elevados, que se quer no caminho da excelência.<br />
O Comandante do <strong>Exército</strong> reconhece o significado e o contributo do trabalho desenvolvido durante o ano, no âmbito das<br />
actividades que competem a cada Órgão Central de Administração e Direcção, na transformação do <strong>Exército</strong>, processo contínuo<br />
de melhoria e adaptação, exigindo uma permanente análise e optimização de procedimentos.<br />
De igual forma se reconhece o contributo de todos os militares em missões fora de Portugal, nas Forças Nacionais<br />
Destacadas, nos Quartéis-Generais Multinacionais e em missões de observação, de ligação e em acções de cooperação<br />
técnico-militar, pelo seu profissionalismo, dedicação e patriotismo, com que têm representado o <strong>Exército</strong> e dignificado o País.<br />
Preparamo-nos agora para viver a quadra Natalícia que tradicionalmente se caracteriza pelos valores da fraternidade, da<br />
amizade e da solidariedade. São valores que, a par de outros como a camaradagem, procuramos desenvolver em permanência,<br />
porque fazem parte da nossa cultura institucional.<br />
Sendo por excelência uma festa da Família, é uma oportunidade de fortalecer esses laços que, por força da disponibilidade<br />
com que nos entregamos às nossas missões, não raras vezes, saem prejudicados no apoio e no tempo que gostaríamos de lhes<br />
dedicar, em especial os homens e mulheres do <strong>Exército</strong> que, em vários teatros, em operações de apoio à paz, nas forças<br />
nacionais destacadas, nos quartéis-generais e nas missões de observação cumprem de forma dedicada a sua missão, longe do<br />
convívio das suas famílias.<br />
Saúdo todos os militares e funcionários civis, que com enorme espírito de entrega e profissionalismo, trabalham<br />
quotidianamente nas nossas unidades, estabelecimentos e órgãos. Este esforço anónimo tem-se constituído como a base do<br />
prestígio da instituição que servimos. Relevo ainda a Família Militar que constitui um importante apoio de rectaguarda de forma<br />
incondicional e silenciosa e um indiscutível factor de coesão moral e de disponibilidade dos nossos militares.<br />
Esta quadra propicia igualmente oportunidade para uma reflexão sobre o passado, sobre as nossas acções e comportamentos,<br />
mas também nos impele a projectar o futuro com determinação.<br />
Constituem desafios no curto prazo, o projecto de reestruturação das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento e da<br />
Manutenção Militar; a dinamização das estruturas de Recrutamento que permitam atrair e ampliar o universo de Voluntários e<br />
Contratados, designadamente em Praças, assim como estimular a sua permanência nas fileiras através da aprovação dos<br />
diplomas que concretizem o Regime de Contrato Especial, para os militares RV/RC que favoreçam o enquadramento e a<br />
operacionalidade do Sistema de Forças Nacional mas igualmente propiciem um desenvolvimento equilibrado entre QP/RV-RC,<br />
e permita uma normal progressão de carreira dos Oficiais e Sargentos do Quadro Permanente.<br />
É igualmente necessária a publicação do diploma dos Suplementos Remuneratórios e uma reavaliação do Sistema<br />
Remuneratório, que valorize, decididamente, a Condição Militar e as Carreiras de Oficial e Sargento e o apoio social que é<br />
devido aos militares e à Família Militar, designadamente através da efectiva acção do IASFA neste domínio.<br />
Como elemento basilar do Sistema de Forças Nacional, destacam-se também os projectos estruturantes de Reequipamento,<br />
que lhe conferem coerência e os que materializam os requisitos operacionais urgentes para as Forças Nacionais Destacadas.<br />
Sabendo que nos serão colocados desafios e oportunidades, continuamos firmemente convictos da inequívoca importância<br />
da afirmação do <strong>Exército</strong>, dos seus valores e da grandeza da sua missão e por isso o Comandante do <strong>Exército</strong>, manifesta o seu<br />
optimismo e a sua confiança na determinação, inteligência, dinamismo, ambição e motivação de todos quantos o servem,<br />
garantes de que a missão continuará a ser bem cumprida em todas as circunstâncias, para a dignificação e o prestígio do<br />
<strong>Exército</strong> e de Portugal.<br />
Formulo votos de Boas Festas e de um Feliz Ano Novo para todos os Oficiais, Sargentos, Praças, Civis na situação de<br />
activo, reserva e reforma e também para toda a Família Militar e que o ano de 2010 seja um Bom Ano para o <strong>Exército</strong>.<br />
O Chefe do Estado-Maior do <strong>Exército</strong><br />
José Luís Pinto Ramalho<br />
General<br />
5
8<br />
FIGURAS e FACTOS<br />
Ministro da Defesa Nacional visita <strong>Exército</strong> Português<br />
O<br />
Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor<br />
Doutor Augusto Santos Silva, acompanhado pelo<br />
Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do<br />
Mar, Doutor Marcos Perestrello, visitou o <strong>Exército</strong> Português,<br />
no dia 20 de Novembro.<br />
A visita decorreu no Comando Operacional das Forças<br />
Terrestres, em Oeiras, onde o MDN recebeu as honras militares<br />
da Guarda de Polícia e das Forças em Parada.<br />
Seguidamente, foi efectuado um briefing do <strong>Exército</strong><br />
Português, onde foi apresentado um enquadramento deste<br />
Ramo, nomeadamente, da Missão do <strong>Exército</strong>, das suas<br />
conflitualidades, dos novos paradigmas, da visão para o <strong>Exército</strong><br />
e do nível de ambição, optimização e reequipamento das Força<br />
Operacionais (FOPE). Foi ainda feita referência à estrutura<br />
orgânica do <strong>Exército</strong>, às suas Brigadas, às forças de apoio geral<br />
e às suas zonas militares, ao ponto de situação dos recursos<br />
humanos e financeiros, à actividade operacional, desde os<br />
principais exercícios à implementação do ciclo operacional<br />
Forças Nacionais Destacadas, envolvendo um vasto conjunto<br />
de desafios e projectos estruturantes para o <strong>Exército</strong>.<br />
Seguiu-se uma visita à sala de operações, onde se assistiu<br />
a uma video-conferência, com a participação das Brigadas do<br />
<strong>Exército</strong> (Brigada de Reacção Rápida, Brigada de Intervenção e<br />
Brigada Mecanizada) e das Forças Nacionais Destacadas<br />
(Líbano, Kosovo e Afeganistão).<br />
A visita foi concluída com a assinatura, do Livro de Honra<br />
pelo MDN.
FIGURAS e FACTOS<br />
Dr. Marcos da Cunha e Lorenha Perestrello de Vasconcellos − Secretário da<br />
Defesa Nacional<br />
Nasceu em Lisboa, em 1971. Licenciado<br />
em Direito pela Faculdade de Direito da<br />
Universidade de Lisboa, (1994), é advogado de<br />
profissão e foi, até recentemente, vice-presidente<br />
da Câmara Municipal de Lisboa. Assumiu funções<br />
de adjunto do Ministro dos Assuntos<br />
Parlamentares, em 1995, e de chefe do gabinete<br />
do Secretário de Estado da Administração Interna<br />
(1999). Em 1998, fez o curso de Auditores de Defesa<br />
Nacional.<br />
Em 2001, funda e assume a direcção, durante<br />
seis anos, do Centro de Informação, Mediação e<br />
Arbitragem de Seguros Automóveis. Em 2004, é<br />
eleito membro do Secretariado Nacional do PS<br />
e, em 2005, foi eleito deputado da Assembleia<br />
da República e vice-presidente do Grupo<br />
Parlamentar do PS. Integrou a Comissão de<br />
Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades<br />
e Garantias e é eleito membro da Assembleia<br />
Parlamentar da Organização para a Segurança e<br />
Cooperação na Europa.<br />
Assume a vice-presidência da Câmara<br />
Municipal de Lisboa, em 2007, sendo vereador<br />
da Câmara Municipal de Oeiras (desde 2009).<br />
Visita do Comandante do <strong>Exército</strong> da República de Moçambique ao <strong>Exército</strong><br />
Português<br />
Decorreu no período de 22 a 27 de<br />
Novembro, a visita do Comandante do<br />
<strong>Exército</strong> da República de Moçambique, Major-<br />
General Graça Tomás Chongo, a Portugal.<br />
O Chefe do Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General<br />
Pinto Ramalho, recebeu-o com honras militares,<br />
no Pátio dos Canhões do Estado-Maior, no dia<br />
23 de Novembro, onde mais tarde assistiu a uma<br />
exposição sobre o <strong>Exército</strong> Português.<br />
Do restante programa, destacam-se as<br />
seguintes visitas: Comando das Forças<br />
Terrestres, Brigada de Reacção Rápida, Escola<br />
de Tropas Páraquedistas, Escola Prática de<br />
Infantaria, Instituto Geográfico do <strong>Exército</strong>,<br />
Academia Militar.<br />
http://www.mdn.gov.pt/mdn/pt/mdn/sednam/<br />
Novo Director de Justiça e Disciplina<br />
Em 20 de Julho, iniciou funções de Director de Justiça<br />
e Disciplina do Comando do Pessoal, no Porto, o<br />
Major-General José António Henriques Dinis, nomeado por<br />
despacho do Chefe do Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General<br />
José Luís Pinto Ramalho.<br />
O Major-General Henriques Dinis nasceu em 1954, no<br />
concelho de Oliveira do Hospital, foi incorporado na<br />
Academia Militar em 1973 e promovido ao actual posto em<br />
25 de Novembro de 2008.<br />
Anteriormente, exercia funções de Inspector-Adjunto do<br />
Inspector-Geral do <strong>Exército</strong>.<br />
9
10<br />
FIGURAS e FACTOS<br />
Dia Litúrgico de São Nuno de Santa Maria<br />
Realizou-se, no passado dia 6 de Novembro, na Igreja<br />
do Santo Condestável, em Lisboa, a Missa Solene do<br />
dia de S. Nuno de Santa Maria. A cerimónia foi presidida pelo<br />
Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José da Cruz Policarpo, contando<br />
com a presença de várias ilustres entidades civis e militares,<br />
nomeadamente o Chefe do Estado-Maior General das Forças<br />
Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto e o Chefe do Estado-<br />
Maior do <strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto Ramalho.<br />
Foi a primeira vez que foi celebrada a festa litúrgica de<br />
TABELA DE PREÇOS PARA 2009<br />
S. Nuno de Santa Maria, após a canonização por Bento XVI no<br />
passado dia 26 de Abril, no Vaticano.<br />
Nascido a 24 de Junho de 1360, o novo santo foi um dos<br />
portugueses que mais profundamente marcaram a história do<br />
nosso país. Depois da sua carreira militar, pediu a admissão,<br />
como irmão leigo, na Ordem do Carmo. Tinha grande devoção<br />
à Virgem Maria e mostrou sempre grande compaixão para com<br />
os pobres. Morreu no Domingo da Ressurreição do ano de<br />
1431 (1 de Abril).<br />
Viveu e morreu nesta cidade, amou Portugal, viveu<br />
profundamente essa radicalidade pascal. Foi santo porque<br />
foi um cristão fiel. Com a sua intercessão e com o seu exemplo,<br />
desafia-nos a percorrermos, também nós, o caminho da<br />
santidade na fidelidade. (…) Em Nuno Alvares Pereira, numa<br />
longa vida, variada nas responsabilidades e nas missões a<br />
que foi chamado, sempre se evidenciaram a profundidade da<br />
sua fé e a grandeza da caridade, que levou ao extremo do<br />
apagamento humano para que só ficasse o amor. Ele continua<br />
a dizer-nos que é possível viver com fé todas as realidades<br />
humanas, sociais, políticas, militares, familiares, religiosas;<br />
continua a dizer-nos que é possível ser santo em todas elas,<br />
que se pode viver toda a vida com Deus, que nos vai sugerindo,<br />
em cada momento e em cada circunstância, a maneira de<br />
acreditar e de amar.<br />
D. José da Cruz Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa,<br />
Homilia (Igreja de Santo Condestável, 10 de Maio de 2009).<br />
Lançamento do livro<br />
“A Ascensão da China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?”<br />
R ealizou-se no dia 3 de Novembro, na livraria Almedina,<br />
em Lisboa, o lançamento do livro “A Ascensão da<br />
China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?”, da autoria<br />
do Coronel Tiago Vasconcelos.<br />
O livro explica a lógica da ascensão da China como Potência<br />
Mundial, evidenciando factores Geoestratégicos e Político-<br />
-Culturais, entre outros, procurando responder se a China terá<br />
uma acomodação pacífica ou conflituosa quando se afirmar<br />
como potência mundial.<br />
A obra foi apresentada pelo Tenente-General Abel Cabral<br />
Couto e contou com a presença do Professor Doutor Narana<br />
Coissoró.<br />
O lançamento contou com a presença de diversas e ilustres<br />
personalidades militares e civis.<br />
PREÇO DE CAPA • 2,00<br />
ASSINATURA ANUAL (11 números)<br />
VIA SUPERFÍCIE - Portugal Cont. Madeira e Açores • 20.00<br />
VIA AÉREA - Países europeus • 45,00; Restantes Países • 65,00<br />
NOTA: As assinaturas devem ser pagas antecipadamente<br />
NÚMEROS ATRASADOS - 1960 a 1969 • 4,00; 1970 a 1979 • 4,00; 1980 a 1989 • 3,00; 1990 a 2001 • 2,50; 2002 a 2008 • 2,00<br />
Os preços incluem IVA à taxa de 5%<br />
N.B.: Os pedidos de envio pelos CTT serão acrescidos de portes segundo os códigos postais: 1000/2000 • 4,21; 3000/8000 • 5,79; Açores e Madeira • 6,56.
FIGURAS e FACTOS<br />
Comemorações do 91.º Aniversário do Armistício e do 86.º Aniversário<br />
da Liga dos Combatentes<br />
O<br />
91.º aniversário do Armistício da 1.ª Guerra Mundial,<br />
o 86.º aniversário da Liga dos Combatentes e o 31.º<br />
aniversário da fim da Guerra do Ultramar foram celebrados no<br />
dia 14 de Novembro, junto ao Monumento aos Combatentes<br />
do Ultramar, no Forte do Bom Sucesso, em Belém.<br />
O Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor Doutor<br />
Augusto Santos Silva, presidiu à cerimónia e recebeu as honras<br />
militares da força composta pelos três ramos das Forças<br />
Armadas portuguesas: <strong>Exército</strong>, Força Aérea e Marinha.<br />
As comemorações iniciaram-se com as alocuções proferidas<br />
pelo Presidente da Liga dos Combatentes, Tenente-General<br />
Chito Rodrigues, pelo Chefe do Estado-Maior-General das<br />
Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto e pelo<br />
Ministro da Defesa Nacional.<br />
Na tribuna encontravam-se diversas entidades militares e<br />
civis, entre as quais o Secretário de Estado da Defesa Nacional<br />
e dos Assuntos do Mar, Dr. Marcos Perestrello, o Chefe do<br />
Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto Ramalho, o<br />
Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Fernando José<br />
Ribeiro de Melo Gomes e o Chefe do Estado-Maior da Força<br />
Aérea, General Luís Evangelista Esteves de Araújo.<br />
Assistiu-se à condecoração de membros da Liga dos<br />
Combatentes e à condecoração, a título póstumo, do Major-<br />
General Carlos Manuel Costa Lopes Camilo, com a Grã-Cruz da<br />
Medalha de Mérito Militar.<br />
Foi, de seguida, descerrada uma placa pelo MDN e pelo<br />
Presidente da Liga dos Combatentes, com os nomes de 53<br />
combatentes portugueses mortos em combate na guerra da<br />
Guiné. Os presentes assistiram, também, à cerimónia que<br />
assinalou a transladação dos restos mortais de três soldados<br />
mortos na Guiné-Bissau e à evocação do Armistício e aniversário<br />
da Liga dos Combatentes, com deposição de coroas de flores<br />
no monumento supracitado.<br />
Seguiu-se uma homenagem aos mortos em combate pelo<br />
Bispo das Forças Armadas, D. Januário Torgal Mendes Ferreira,<br />
na presença dos restos mortais dos soldados transladados da<br />
Guiné-Bissau.<br />
No final, escutou-se o Hino da Liga dos Combatentes,<br />
seguindo-se o desfile das Forças em Parada ao som da Banda<br />
da Força Aérea.<br />
Terminada a cerimónia, houve uma visita ao Forte do Bom<br />
Sucesso, onde estavam patentes exposições estáticas alusivas<br />
às efemérides e aos 100 anos da aviação em Portugal.<br />
Visita do Comandante das Forças Armadas de S. Tomé e Príncipe ao<br />
<strong>Exército</strong> Português<br />
O<br />
Estado-Maior do <strong>Exército</strong> (EME) recebeu, em 17 de<br />
Novembro, a visita do Tenente-Coronel de Artilharia,<br />
Idalécio Custódio Pachire, Comandante das Forças Armadas<br />
de S. Tomé e Príncipe.<br />
O Comandante das Forças Armadas de São Tomé e Príncipe<br />
iniciou, dia 16 de Novembro, uma visita oficial a Portugal, a<br />
convite do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas<br />
(CEMGFA), General Luís Vasco Valença Pinto.<br />
No primeiro dia da visita manteve um encontro privado com<br />
o General CEMGFA, onde foram abordados diversos temas,<br />
com destaque para a cooperação bilateral na área militar e a<br />
cooperação no âmbito da Comunidade de Países de Língua<br />
Portuguesa.<br />
Nos dias que se seguiram, o Tenente-Coronel Pachire<br />
cumpriu um programa de visitas a diversas unidades, dos três<br />
ramos das Forças Armadas, tendo sido, o <strong>Exército</strong> o primeiro<br />
ramo a ser visitado.<br />
No dia 17, foi recebido pelo Chefe do Estado-Maior do<br />
<strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto Ramalho, onde foi feita uma<br />
apresentação sobre o <strong>Exército</strong>, a sua organização e estrutura,<br />
visitando posteriormente o Instituto Militar dos Pupilos do<br />
<strong>Exército</strong>. Esta parte da visita prolongou-se por mais dois dias,<br />
nos quais o CEMGFA de S. Tomé e Príncipe teve a oportunidade<br />
de visitar o Centro de Simulação do <strong>Exército</strong>, o Depósito Geral<br />
de Material do <strong>Exército</strong> e a Brigada Mecanizada.<br />
11
12<br />
FIGURAS e FACTOS<br />
Chegada da OMLT KCD 01/02 ao TO do Afeganistão<br />
No dia 28 de Setembro partiu para o Teatro de<br />
Operações (TO) do Afeganistão a 2.ª Operational<br />
Mentor and Liaison Team (OMLT), que vai apoiar a Kabul<br />
Capital Division (KCD) do Afghan National Army (ANA),<br />
tendo chegado a Cabul no dia 30 de Setembro. A força é<br />
comandada pelo Coronel de Infantaria Pára-quedista José<br />
dos Santos Correia e é constituída por nove oficiais e oito<br />
sargentos, bem como organizada num Estado-Maior com o<br />
Brigadeiro General Taur Matan Ruak visita o <strong>Exército</strong> Português<br />
A<br />
convite do Chefe do Estado-Maior-General das<br />
Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto,<br />
respectivo Chefe de Estado-Maior e as várias áreas<br />
funcionais: G1 (Pessoal), G2 (Informações), G3 (Operações),<br />
G4 (Logística), G5 (Planos e CIMIC), G6 (Comunicações) e<br />
G7 (Engenharia), um Oficial Médico e ainda um Sargento-<br />
Mor.<br />
A missão da OMLT KCD no TO consiste na mentorização<br />
da Divisão de Cabul do <strong>Exército</strong> Nacional Afegão,<br />
nomeadamente do seu Comandante, Chefe do Estado-Maior<br />
e outras áreas deste, prestando o apoio necessário na ligação,<br />
no Comando e Controlo e no planeamento e emprego das<br />
sub-unidades da Divisão durante as operações no terreno.<br />
Com este tipo de assessoria, pretende-se que a Divisão esteja<br />
apta a conduzir operações de forma eficaz e independente.<br />
De acordo com estratégia da NATO para o Afeganistão,<br />
é fundamental uma evolução sistemática e consistente do<br />
ANA, de forma a permitir que o Governo seja capaz de<br />
estabelecer e manter um clima de segurança a longo prazo. O<br />
factor mais significativo é o apoio prestado pelas OMLT da<br />
NATO e pelas Embedded Training Teams (ETT) dos EUA.<br />
Assim, numa altura em que o grau de ameaça no TO está<br />
«Alto» e que a NATO pretende recuperar a confiança das<br />
populações afegãs, a missão das OMLT reveste-se da maior<br />
importância para levar a bom termo a estratégia de saída e<br />
atingir o estado final desejado para o Afeganistão.<br />
A 2.ª OMLT KCD constituiu-se como Força Nacional<br />
Destacada e iniciou o seu aprontamento em 15 de Junho nas<br />
instalações da Unidade de Aviação Ligeira do <strong>Exército</strong> em<br />
Tancos, sob a responsabilidade das Brigada de Reacção<br />
Rápida.<br />
decorreu a visita do Brigadeiro General Taur Matan Ruak,<br />
Chefe de Estado-Maior General das Falintil – Forças de<br />
Defesa de Timor Leste a Portugal, no período compreendido<br />
entre 27 de Setembro a 2 de Outubro.<br />
Do programa realça-se a visita ao <strong>Exército</strong> Português<br />
no dia 30 de Setembro. O período da manhã foi destinado<br />
à visita ao Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, tendo o General<br />
Taur Matan Ruak apresentado cumprimentos ao Chefe do<br />
Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto<br />
Ramalho, que o recebeu com honras militares no Pátio<br />
dos Canhões. Seguidamente, no Auditório, foi apresentado<br />
um briefing sobre o <strong>Exército</strong> Português, seguido<br />
de uma visita guiada ao Museu Militar.<br />
Durante a tarde, visitou a Brigada de Reacção Rápida,<br />
no Centro de Tropas Comando, onde pôde apreciar uma<br />
demonstração de capacidades.<br />
O General Taur Matan Ruak, além de visitar as Forças<br />
Armadas ao longo da sua estadia, também visitou a<br />
Associação dos Deficientes das Forças Armadas e a Liga<br />
dos Combatentes.
Rendição de Equipa Médica Militar<br />
Aterrou no Aeródromo de Transito N.º 1, em Figo<br />
Maduro, a 8 de Novembro, pelas 15h00, a primeira<br />
de três equipas de médicos militares que se encontrava,<br />
desde Julho, no Aeroporto de Cabul, no Afeganistão.<br />
Esta primeiro grupo, que se fez transportar num C-130 da<br />
Força Aérea Portuguesa, é constituído por quinze militares,<br />
dos quais dois médicos (um de Clínica Geral e um de<br />
Medicina Interna), oito enfermeiros, um é fisioterapeuta, um<br />
é técnico de laboratório e três socorristas, que tiveram como<br />
missão prestar apoio aos militares da Organização do Tratado<br />
do Atlântico Norte (NATO) no Hospital Militar, em Kaia<br />
(Kabul Internacional Airport).<br />
Estas equipas irão permanecer ao serviço da Força<br />
Internacional de Assistência à Segurança, subordinada à<br />
NATO, pelo período de um ano.<br />
Com a voz embargada, mas com o sentimento de “dever<br />
cumprido”, estes militares reconheceram que o maior desafio<br />
da missão foi a saudade que sentiram dos seus familiares.<br />
O militar mais antigo da equipa, Tenente Alípio Araújo,<br />
salientou que os primeiros meses foram muito complicados,<br />
mas que esta missão “correu muito bem” e que, durante<br />
quatro meses, foi feito “um excelente trabalho. A adaptação<br />
FIGURAS e FACTOS<br />
foi dolorosa, mas foi uma experiência muito positiva”, disse<br />
aquele militar.<br />
13
14<br />
FIGURAS e FACTOS<br />
1.ª Grande Gala da Rádio Sim<br />
Realizou-se, a 19 de Outubro, no Teatro Tivoli, em<br />
Lisboa, a 1.ª Grande Gala da Rádio Sim, que contou<br />
com a especial participação da Orquestra Ligeira do <strong>Exército</strong>.<br />
Com o Tivoli esgotado, foi possível assistir à actuação<br />
de grandes nomes da música portuguesa. Vozes que fizeram<br />
desfilar canções inesquecíveis. Foi possível voltar a ouvir<br />
temas como “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”, “Como Posso<br />
Ter Ciúmes”, “Kanimanbo”, “E Depois do Adeus”, “Ternura<br />
dos Quarenta”, “Regresso”, entre muitas outras canções<br />
de sucesso no passado.<br />
Subiram ao palco Anita Guerreiro, Paco Bandeira, Maria<br />
Valejo, António Calvário, Ada de Castro, Vicente da Câmara,<br />
Artur Garcia, Daniel Bacelar, João Maria Tudela, Rodrigo,<br />
António Sala, Maria José Valério e Paulo de Carvalho,<br />
acompanhados pela Orquestra Ligeira do <strong>Exército</strong>.<br />
Os artistas foram apresentados pelas vozes da Rádio<br />
Sim, que falaram em palco sobre os dias desta emissora, que<br />
é a mais jovem aposta do Grupo Renascença.<br />
Os aplausos foram uma constante durante toda a noite e<br />
quem não conseguiu assistir a esta gala pôde acompanhar a<br />
emissão em directo.<br />
Homenageado em Castelo Branco o Militar mais idoso do <strong>Exército</strong> Português<br />
Por iniciativa do Provedor da Santa Casa da<br />
Misericórdia, acompanhado por militares e amigos<br />
residentes em Castelo Branco, foi homenageado, naquela<br />
instituição, no Dia Nacional do Idoso, o 2.º sargento do<br />
<strong>Exército</strong>, José da Graça Rascão, com 104 anos de idade.<br />
Nasceu em Nisa, a 1 de Agosto de 1905, assentou praça<br />
no <strong>Exército</strong> em 1 de Dezembro de 1927 e passou toda a sua<br />
vida militar nos Regimentos 6 e 8 de Castelo Branco,<br />
terminando a carreira militar no distrito de recrutamento<br />
desta cidade.<br />
A forma afável e disponível como desempenhou as<br />
funções militares e sempre se comportou como cidadão<br />
valeu-lhe a admiração de quantos o conhecem, entre os<br />
quais desfruta de grande prestígio. A Junta de Freguesia<br />
entendeu prestar-lhe, por isso, um público tributo em 2008<br />
e já este ano concedeu-lhe a Medalha de Reconhecimento.<br />
Transcrevemos o último louvor da sua vida militar,<br />
concedido pelo Comandante da Região Militar Centro, que<br />
o Sargento Rascão guarda religiosamente, num excerto bem<br />
revelador do seu carácter: “(…) Militar disciplinado e bom<br />
camarada com elevado brio profissional e comprovada<br />
lealdade e honestidade demonstrou sempre exemplar<br />
conduta ao longo dos 49 anos que serviu o <strong>Exército</strong>. É,<br />
pois, com pesar que todos os que trabalharam com o<br />
Sargento Rascão, sentem o afastamento do seu convívio a<br />
que este distrito de recrutamento fica a dever muito da sua<br />
eficiência”. É detentor das medalhas de ouro e prata de<br />
Comportamento Exemplar.<br />
O 2.º Sargento Rascão (à esquerda), acompanhado pelo Provedor da<br />
Santa Casa da Misericórdia de Castelo Branco, Coronel de Infantaria<br />
reformado, José Guardado Moreira, no dia da homenagem.
77º Aniversário do IGeoE<br />
Celebrou-se, no dia 24 de Novembro de 2009, o 77.º<br />
aniversário do Instituto Geográfico do <strong>Exército</strong><br />
(IGeoE). Neste dia festivo pretendeu-se privilegiar a confraternização<br />
entre todos aqueles que, com grande devoção,<br />
dedicaram parte significativa da sua vida activa à<br />
ciência cartográfica e realizar, simultaneamente, a<br />
apresentação da realidade técnico-científica às entidades<br />
militares e civis presentes, bem como evidenciar o<br />
contributo que o IGeoE presta à Cartografia Nacional e<br />
ao País.<br />
A cerimónia foi presidida pelo Director de Finanças, o<br />
Major-General João António Esteves da Silva, em<br />
representação do Tenente-General Quartel-Mestre General<br />
estando presentes outras altas entidades militares<br />
representativas da hierarquia do <strong>Exército</strong>, Comandantes,<br />
Directores ou Chefes de Unidades, Estabelecimentos e<br />
Órgãos contíguos ou com afinidades no campo técnicocientífico,<br />
bem como entidades civis representativas do<br />
espectro cartográfico nacional, representantes de<br />
instituições com quem o IGeoE estabeleceu protocolos e<br />
que, por razões institucionais ou outras, têm contactos<br />
mais assíduos de cooperação com este Instituto.<br />
Para comemorar esta importante efeméride, e com a<br />
dignidade que merece, também estiveram presentes os<br />
anteriores Chefes/Directores e colaboradores do Serviço<br />
Cartográfico do <strong>Exército</strong> /Instituto Geográfico do <strong>Exército</strong>,<br />
como forma de deferência e respeito pelo contributo por<br />
eles prestado, sob as mais variadas formas, à Cartografia e<br />
ao <strong>Exército</strong>.<br />
Dando continuidade a uma longa tradição que está fortemente<br />
arreigada no espírito militar português, o IGeoE<br />
desenvolveu um conjunto de actividades inseridas no<br />
contexto das comemorações, designadamente o hastear<br />
da Bandeira Nacional, a recepção das Altas Entidades<br />
convidadas, a alocução pelo Director do Instituto, uma<br />
FIGURAS e FACTOS<br />
palestra proferida pelo Capitão<br />
de Artilharia Agostinho Freitas,<br />
subordinada ao tema técnico<br />
“Uma Base de Dados Geográfica<br />
para a Carta Militar de Portugal”<br />
e a imposição de condecorações<br />
a militares do Instituto.<br />
O evento prosseguiu com a<br />
visita às instalações, durante a<br />
qual foi inaugurada a exposição<br />
“Finis Portugalliae = Nos<br />
confins de Portugal”.<br />
15
16<br />
Academia Militar e CIIWAC. Participação dos grupos<br />
de trabalho especializados em Segurança da<br />
Informação e em Guerra de Informação 1<br />
Cientes da necessidade emergente de garantir<br />
uma profunda reflexão de âmbito nacional<br />
sobre a temática da Cibersegurança, procura-se de<br />
forma simples e resumida, numa atitude de mera<br />
divulgação e sensibilização, expôr, enquanto grupo<br />
de reflexão, o nosso modesto contributo nesta temá-<br />
tica. Salienta-se que as ideias e as situações retratadas<br />
no artigo não reflectem qualquer visão doutrinária<br />
ou orientação institucional, mas resultam das<br />
qualificações académicas e da experiência profissional<br />
dos seus elementos e de formação ministrada no<br />
âmbito da Pós-Graduação em Guerra de Informação/<br />
Fotocomposição: Mauro Matias
Competitive Intelligence pela Academia Militar.<br />
Revelada a motivação e a envolvente deste artigo,<br />
preparamos um hipotético cenário que, de forma<br />
abstracta, permite sistematizar alguns dos principais<br />
conceitos envolvidos nesta problemática de natureza<br />
virtual. São ainda objectivos essenciais alertar fundamentalmente<br />
para a necessidade de desenvolver<br />
mecanismos de Segurança da Informação nas Organizações,<br />
onde é fundamental garantir a disponibilidade,<br />
confidencialidade e integridade da informação<br />
que circula nos seus Sistemas de Informação<br />
e que alimenta o processo de decisão organizacional.<br />
Introdução<br />
Segundo a UNESCO e citando Balsinhas (2003,<br />
p. 8), “o Ciberespaço é um novo ambiente humano e<br />
tecnológico de expressão, informação e transacções<br />
económicas. É constituído por pessoas de todos os<br />
países, de todas as culturas e línguas, de todas as<br />
idades e profissões fornecendo e requisitando<br />
informação, de uma rede mundial de computadores<br />
interligada pela infraestrutura de telecomunicações<br />
que permite à informação em trânsito ser processada<br />
e transmitida digitalmente”.<br />
A Internet, como suporte tecnológico do Ciberespaço<br />
e da própria Sociedade em Rede, provoca<br />
assim alterações nas dinâmicas de Poder, em virtude<br />
de através dela se poder explorar e fazer uso da informação<br />
de modo competitivo ou mesmo conflitual. Para<br />
além das vantagens funcionais associadas à sua<br />
utilização, não é possível ignorar também o facto de<br />
ela constituir o suporte ideal para a condução de<br />
actividades como o ciberterrorismo, a cibercriminalidade<br />
e, fundamentalmente, a cyberwarfare<br />
(Nunes, 1999; Martins, 2009 e Nunes, 2009).<br />
Consequentemente, a exploração da Internet exige uma<br />
atitude responsável por parte dos Estados, das<br />
Organizações e dos próprios indivíduos, sob pena<br />
das novas ameaças explorarem vulnerabilidades deste<br />
meio aberto de interacção e poderem pôr em risco a<br />
própria Segurança e Defesa Nacional (Hildreth, 2001;<br />
Martins e Nunes, 2008).<br />
1 Elementos participantes na elaboração do cenário:<br />
TCor António Flambó, TCor António Galindro, Engº Bruno<br />
Réne, Cap GNR Carlos Pimentel, TCor Francisco Martins,<br />
TCor Luís Pinheiro, Engº Luís Sousa, Pedro Salgueiro –<br />
MCSE, Maj Pessoa Dinis, Dr. José Lopes, Engº Jorge<br />
Custódio, Cor José Freire, TCor José Martins, Engº Marco<br />
Manso, Engº Nuno Guerreiro, Maj Paulo Balsinhas, Maj<br />
Paulo Branco e TCor Paulo Nunes.<br />
2 Garantir que os utilizadores autorizados tenham acesso<br />
à informação quando necessário.<br />
Em termos simplistas, os ataques às redes de<br />
computadores desenvolvem-se em quatro fases<br />
(Tipton e Krause, 2004; Young e Aitel, 2004; Santos,<br />
2008). Numa primeira fase, denominada de<br />
Levantamento (Profiling), procura-se identificar/<br />
localizar a(s) rede(s) da organização a atingir, após<br />
o que se verifica numa segunda fase de Pesquisa<br />
(Scanning), quais os computadores e serviços<br />
activos e vulnerabilidades existentes. A terceira<br />
fase, Enumeração (Enumeration), tem como<br />
objectivo apoderar-se de contas de utilizador ou<br />
de direitos de acesso a partilhas em máquinas da<br />
rede (entre outras). Por fim, na fase quatro, Exploração<br />
(Exploiting), pretende-se fundamentalmente<br />
alterar a disponibilidade 2 , confidencialidade 3 ou a<br />
integridade 4 da informação a que se teve acesso.<br />
As duas primeiras fases coincidem com uma possível<br />
metodologia de avaliação de segurança de redes,<br />
divergindo nas fases seguintes (McNab, 2004 e<br />
Clarke, 2005).<br />
O Ciberespaço, enquanto espaço de interacção<br />
aberto e global, facilita o lançamento de ataques planeados<br />
contra Sistemas de Informação via Internet,<br />
podendo consequentemente provocar incidentes<br />
graves, motivados pela destruição física dos sistemas<br />
informáticos ou pela alteração da sua lógica de<br />
funcionamento, sendo fundamental garantir a<br />
Segurança da Informação nas Organizações (Martins,<br />
2008; Martins, Santos e Nunes 2009). Estamos<br />
conscientes que a Segurança e a Economia de um<br />
País, bem como o bem-estar dos seus cidadãos<br />
dependem de determinadas infraestruturas e dos<br />
serviços por elas fornecidos. A destruição ou<br />
perturbação de infraestruturas que prestam serviços<br />
fundamentais pode implicar a perda de vidas e de<br />
bens materiais, bem como um forte abalo da confiança<br />
e da moral dos seus cidadãos.<br />
O advento da iWar 5 reflecte as tendências do<br />
novo século: a disseminação da Internet, o acesso a<br />
esse poder por parte dos indivíduos e o declínio relativo<br />
do poder do Estado no controlo das suas<br />
infraestruturas de comunicação. As instruções disponibilizadas<br />
on-line e o software necessário de fácil<br />
utilização, conferem virtualmente, a qualquer actor com<br />
3 Garantir que a informação seja acessível apenas aqueles<br />
que estão autorizados a terem acesso.<br />
4 Garantir que o conteúdo da informação e/ou os<br />
métodos de processamento não são modificados de forma<br />
inesperada.<br />
5 Guerra da Informação ou seja o conjunto de acções<br />
destinadas a preservar os nossos Sistemas de Informação da<br />
exploração, corrupção ou destruição, enquanto simultaneamente<br />
se explora, corrompe ou destrói os Sistemas de<br />
Informação Inimigos (Nunes, 1999).<br />
17
Entre os principais actores salientam-se as Entidades e as<br />
Organizações responsáveis pelas Infraestruturas Críticas do<br />
País.<br />
uma ligação à Internet o poder de explorar as<br />
vulnerabilidades de adversários ou competidores. Um<br />
problema desta natureza pode ser estudado e<br />
analisado com base na construção de cenários<br />
realistas de Gestão de Crises no Ciberespaço, tendo<br />
em conta fundamentalmente as seguintes dimensões:<br />
- O enquadramento da situação, onde o Ciberespaço<br />
é o palco das relações de poder e onde os<br />
actores procuram explorar assimetrias. As suas<br />
acções poderão ter expressão ao nível Diplomático,<br />
Militar, Económico e da Informação, explorando<br />
algumas das vulnerabilidades potenciadas pelas<br />
Tecnologias de Informação e Comunicação,<br />
especialmente no domínio da Informação e das<br />
Infraestruturas Críticas. Neste âmbito, é notória uma<br />
certa tipificação de métodos de ataque focalizados em<br />
tecnologia e que permitem o aparecimento de cada<br />
vez mais actores capazes de empreender ataques de<br />
modo isolado.<br />
- Os principais actores, entre os quais são normalmente<br />
salientados a título exemplificativo as Entidades<br />
e as Organizações responsáveis pelas Infraestruturas<br />
Críticas do País (Rede Eléctrica,<br />
Telecomunicações, Águas e Saneamento Básico, os<br />
Transportes, o Sistema Financeiro e de Segurança do<br />
Estado).<br />
18<br />
Arquivo JE<br />
Tendo os Órgãos de Comunicação Social um papel<br />
fundamental na gestão correcta da informação em<br />
qualquer situação de Crise, a sua acção é determinante<br />
para o desenvolvimento de uma percepção e<br />
conduta correcta do cidadão, minimizando os impactos<br />
negativos no seu quotidiano, especialmente nas<br />
actividades diárias, ao nível das transacções<br />
comerciais, deslocamentos para o local de trabalho e<br />
na utilização de fontes de energia.<br />
Face à diversidade e complexidade do espectro<br />
da ameaça, o Estado necessita de um Serviço de Informações<br />
Nacional activo e capaz de efectuar uma<br />
identificação e avaliação dos actores capazes de o<br />
poder atingir e fragilizar. Dentro deste contexto, importa<br />
também punir os possíveis criminosos,<br />
responsabilizando-os pelas consequências dos seus<br />
actos. Esta realidade sugere a necessidade de<br />
intervenção de algumas das instituições do Estado<br />
de modo a garantir uma correcta obtenção da prova<br />
de “agressão”, que vise garantir que na evidência 6<br />
digital obtida, nenhum dado possa ser adicionado ou<br />
removido. Exige-se consequentemente elevada<br />
capacidade técnica e científica da Entidade que efectua<br />
a obtenção da prova, de forma a suportar legalmente<br />
a acusação e posterior actuação.<br />
Numa dinâmica de possível Gestão de Crises, a<br />
resposta eficaz e eficiente passa por um envolvimento<br />
activo dos principais agentes políticos (ex-Governo,<br />
Primeiro-Ministro, Ministro da Defesa, Gabinete<br />
Nacional de Segurança), dos Internet Service Provider,<br />
das Instituições de monitorização da Internet<br />
(ex-Computer Emergency Response Team − CERT) e<br />
Institutos de investigação com competências técnicas<br />
específicas nesta temática. Principalmente na<br />
elaboração e coordenação de um plano de Disaster<br />
Recovery (componente de um Plano de Continuidade<br />
de Negócio mais alargado), ao nível do Estado,<br />
elaborando propostas para mitigar os riscos através<br />
da utilização das melhores práticas e do ajustamento<br />
criativo de soluções, de forma a garantir a Segurança<br />
da Informação e dos activos de suporte.<br />
- Os métodos de ataque mais usuais focados em<br />
tecnologia e utilizados pelas ameaças até à presente<br />
data e que consistem na utilização de Malware 7 (ex.<br />
Virus, Worms e Trojans), no DoS 8 (denial of service),<br />
Packet Sniffer 9 , Masquerade 10 (ex. IP spoofing) e<br />
modificar e apagar mensagens (man-in-the-middle).<br />
A narrativa que a seguir se apresenta para<br />
caracterizar uma situação de Crise não tem ligação<br />
com a presente realidade nacional. Por essa razão, a<br />
referência a Empresas, Sistemas ou componentes de<br />
Sistemas que surgem associados a este Cenário ao<br />
longo do artigo são fictícias. Assumimos o Ciberespaço<br />
e os diferentes aspectos associados à Segurança<br />
da Informação como tendo o papel central.
Portugal começa a evidenciar alguns sinais inquietantes ao<br />
nível da Segurança e Criminalidade.<br />
Procuramos, com este cenário, antecipar acontecimentos<br />
e explorar possíveis e diferentes futuros. Tal<br />
como refere Catarina Leal, “o planeamento por cenários<br />
deriva da constatação de que dada a impossibilidade<br />
de saber de que forma o futuro vai evoluir, uma boa<br />
decisão ou estratégia para adoptar é aquela que é<br />
escolhida entre vários futuros possíveis. Para<br />
encontrar uma estratégia (robusta), são criados<br />
cenários, de forma a que cada cenário seja marcadamente<br />
divergente dos outros” (2007).<br />
6 É o vestígio (ex. material) que após ser devidamente<br />
analisado e interpretado, estabelece a relação inequívoca com<br />
o facto de delito e as pessoas com ele relacionadas.<br />
7 Programas maliciosos desenvolvidos por programadores<br />
que, como um vírus biológico, infectam o sistema,<br />
podendo efectuar cópias de si mesmo e tentando nalguns<br />
casos espalhar-se para outros computadores, replicando-se<br />
internamente e externamente se o computador estiver ligado<br />
em rede. Uma das possíveis acções é impedir a execução de<br />
serviços e a destruição de dados, podendo mesmo incapacitar<br />
o funcionamento da máquina que afectou.<br />
8 Trata-se de um tipo de ataque em que as redes são<br />
bombardeadas com quantidades tão grandes de informação<br />
Fotocomposição: Mauro Matias<br />
Iniciamos na primeira secção a caracterização da<br />
situação Nacional no ano de 2012. De seguida<br />
caracterizamos a Crise na segunda secção, tendo como<br />
suporte o Ciberespaço e alguns dos principais actores<br />
Nacionais intervenientes no desenrolar do Cenário<br />
apresentado. Nas considerações finais procuramos<br />
indicar algumas sugestões e propostas para reflexão<br />
do leitor.<br />
Situação Nacional<br />
Estamos no início do Outono do ano de 2012,<br />
Portugal é hoje um País desenvolvido, economicamente<br />
próspero, social e politicamente estável e com<br />
índice de desenvolvimento humano elevado.<br />
Encontra-se entre os 20 países do mundo com melhor<br />
qualidade de vida. Nos últimos tempos, face à crise<br />
energética e dos cereais, com a subida repentina dos<br />
preços, o País tem sofrido grandes movimentações<br />
sociais de protesto.<br />
Situado no extremo sudoeste da Península Ibérica,<br />
a sua localização ao longo da costa atlântica desde<br />
cedo determinou uma vocação marítima. As vantagens<br />
naturais de um País de sol radioso e de surpreendente<br />
variedade geográfica fizeram de Portugal um destino<br />
de eleição, ideal para a prática de desportos náuticos<br />
e de golfe, dotado de modernas infraestruturas<br />
turísticas e de formas muito tradicionais e<br />
personalizadas de acolhimento, como o Turismo de<br />
Habitação, os Hotéis de Charme ou as Pousadas.<br />
Membro da União Europeia desde 1986, Portugal<br />
é hoje uma Nação, que tem conservado através dos<br />
séculos o seu maior tesouro: a identidade de um povo<br />
hospitaleiro que faz do seu País um porto de simpatia<br />
e segurança.<br />
No entanto, Portugal começa a evidenciar alguns<br />
sinais inquietantes ao nível da Segurança e<br />
Criminalidade. O Crime constitui, sem dúvida, um dos<br />
fenómenos contemporâneos que mais tem contribuído<br />
para um aumento dos níveis de ansiedade e de<br />
insegurança existentes na Sociedade Portuguesa.<br />
O problema afecta não só Portugal como<br />
que ocorre um congestionamento ou estrangulamento,<br />
levando à paralisação da rede de computadores.<br />
9 Consiste em capturar dados ou informação que circulam<br />
na rede. Existem dispositivos (sniffer) cuja finalidade é analisar<br />
o tráfego de rede e identificar áreas de potencial preocupação.<br />
Podem analisar um ou mais protocolos de comunicação. A<br />
existência de um sniffer com intenção maliciosa na rede pode<br />
comprometer a segurança, podendo capturar passwords e<br />
informações confidenciais que nela circulam.<br />
10 É o acto de utilizar uma máquina para personificar<br />
outra, por exemplo forjando o endereço de origem de um<br />
ou mais computadores na sua autenticação numa rede<br />
informática.<br />
19
20<br />
potencialmente toda a População da União Europeia,<br />
as empresas, os Governos dos Estados-Membros e a<br />
União Europeia no seu conjunto. Os efeitos podem<br />
ser directos (por exemplo, um atentado terrorista com<br />
vítimas mortais), ou indirectos (por exemplo, a<br />
perturbação de certos serviços na sequência de<br />
problemas numa infraestrutura específica).<br />
O Estado Português, através do seu Serviço de<br />
Informações Nacional dependente do Primeiro-<br />
Ministro e de congéneres europeus, foi informado<br />
que vários actores internos e externos estariam a<br />
ultimar desenvolvimentos para encetar uma<br />
“campanha de Operações Centradas em Rede” com o<br />
fim de afectar seriamente a Infraestrutura de<br />
Informação Global (IIG). Esta campanha caracterizase<br />
principalmente pelo lançamento de ataques levados<br />
a cabo através da Internet, em que os alvos são as<br />
infraestruturas dos Fornecedores de Serviço de<br />
Acesso à Internet, tal como os sítios na WEB que dão<br />
acesso aos serviços on-line, explorando também a<br />
infra-estrutura de Segurança Nacional.<br />
A curto prazo, a iWar coloca uma ameaça crescente<br />
aos membros da OTAN ao conferir poder a<br />
actores menores e a Governos hostis. Resta saber se<br />
a iWar se torna uma ferramenta para os actores estado,<br />
ou se os actores menores mantêm a sua capacidade<br />
de empreender iWar contra os Estados-Nação.<br />
O acesso não autorizado às Local Area Network<br />
(LAN) 11 representa um dos maiores riscos para a<br />
Segurança das Redes e para os Sistemas de<br />
Informação das Organizações. Quando é permitido<br />
acesso não autenticado através de computadores<br />
pessoais não geridos, as Organizações e os respectivos<br />
dados ficam particularmente vulneráveis a<br />
ataques de software malicioso (ex. vírus).<br />
De acordo com as preocupações formuladas pelo<br />
Estado Português (levantadas em abstracto), surgiu<br />
a desconfiança de que um ou mais actores internos e<br />
externos, tenham desenvolvido a capacidade<br />
necessária para aceder e explorar a IIG como um campo<br />
de Operações Político-Militares Estratégicas. Esta<br />
situação levantou uma grande instabilidade e algumas<br />
dúvidas relativamente à Segurança da Infraestrutura<br />
de Informação Nacional (IIN) e da Infraestrutura de<br />
Informação de Defesa (IID) já em evolução,.<br />
As ameaças referenciadas podem utilizar um<br />
possível conjunto de diversos métodos de ataque<br />
que permitem explorar as vulnerabilidades existentes<br />
nos Sistemas de Informação das Instituições<br />
Governamentais e das Organizações públicas e<br />
privadas do País. Das informações disponibilizadas,<br />
podemos considerar que os métodos de<br />
ataque mais utilizados pelas ameaças até à<br />
presente data consistem na utilização de Malware,<br />
no DoS, Packet Sniffer, Masquerade e na<br />
modificação e eliminação de mensagens.<br />
Uma análise superficial dos resultados<br />
apresentados por auditorias externas aos Sistemas<br />
de Informação de Empresas, Organizações e<br />
Órgãos do Estado permitiu verificar em algumas a<br />
inexistência de Políticas de Segurança estruturadas<br />
e coordenadas, a inexistência de<br />
identificação e avaliação dos riscos, bem como a<br />
falta de um modelo de gestão de Segurança da<br />
Informação que integre algumas das suas<br />
possíveis dimensões da Segurança: tecnológica,<br />
física, humana e organizacional.<br />
É nesta situação fictícia que surge a Crise no<br />
Ciberespaço, cujo desenvolvimento processa-se<br />
com a orientação e o enquadramento apresentado<br />
na próxima secção.<br />
A Crise<br />
Na noite de 24 de Dezembro, os sites do Governo<br />
Português, com maior incidência os do Ministério da<br />
Defesa Nacional (Estado-Maior General das Forças<br />
Armadas, <strong>Exército</strong>, Marinha e Força Aérea), do Ministério<br />
da Administração Interna (PSP e GNR), do<br />
Ministério da Justiça e Ministério das Finanças, foram<br />
sujeitos a tentativas de DoS e alteração dos seus<br />
conteúdos.<br />
Na manhã de 25, foram detectadas tentativas de<br />
reconhecimento e avaliação da estrutura e organização<br />
das suas redes através de Port Scans 12 , bem como<br />
tentativas de alteração dos dados existentes nas bases<br />
de dados dos Sistemas de Informação da PSP e GNR,<br />
dos registos de notariado do Ministério Público e<br />
das Bases de Dados de IRS do Ministério das<br />
Finanças.<br />
Face à dimensão dos incidentes foi chamada para<br />
efectuar a análise forense computacional a Brigada de<br />
Combate ao Crime Informático da Polícia Judiciária<br />
apoiada por equipas de especialistas de várias<br />
organizações entre as quais salientamos: a Policia<br />
Judiciária Militar, a PSP, a GNR, o Centro de Dados da<br />
Defesa e uma equipa de especialistas em Segurança<br />
Informática do Regimento de Transmissões do<br />
<strong>Exército</strong>.<br />
Nesta fase inicial, devido à complexidade técnica<br />
do problema foi necessário garantir e coordenar o<br />
apoio de especialistas de diversos Centros de Investigação<br />
& Desenvolvimento Nacionais, coordenadas<br />
pelo Serviço de Resposta a Incidentes de Segurança<br />
Informática (CERT.PT), que identificaram a origem dos<br />
ataques através dos logs de routers e das firewall 13<br />
de algumas organizações atingidas.<br />
Foi também necessário contactar alguns dos<br />
Internet Service Provider (ISP) Nacionais e<br />
Internacionais, face à necessidade de identificar as
Às 20h00, o comboio de passageiros de alta velocidade,<br />
TGV Lisboa - Porto, embatia num comboio de cargas<br />
origens de alguns dos ataques efectuados. Simultaneamente,<br />
contactou-se o Centro de Excelência da<br />
NATO em Ciberdefesa (localizado na Estónia), para<br />
apoiar na identificação e análise das intrusões, face à<br />
sua experiência com casos análogos.<br />
Após estes primeiros eventos e decorrendo um<br />
período de alguma acalmia, surgem novos incidentes<br />
em Março de 2013, na madrugada do dia 10. A Rede de<br />
Energia que serve a região de Lisboa e Vale do Tejo,<br />
onde se inclui o Centro de Dados da Defesa, falhou<br />
por curtos períodos de 30 minutos, no horário<br />
compreendido entre as 05h00 e as 12h00. Embora a<br />
energia fosse restaurada rapidamente, uma avaliação<br />
da causa da falha indicou a intrusão na sua Rede<br />
11 Redes informáticas locais das Organizações que suportam<br />
os seus Sistemas de Informação e as quais na sua maioria se<br />
encontram ligadas à Internet.<br />
12 São programas que consultam as “portas” dos<br />
computadores e obtêm informações valiosas sobre eles, tais<br />
como, que serviços (possíveis vulnerabilidades) estão a ser<br />
executados. Estes programas permitem efectuar uma rápida<br />
auditoria a centenas ou milhares de computadores num curto<br />
espaço de tempo. São excelentes para detectar vulnerabilidades<br />
numa rede, mas simultaneamente permitem sensibilizar/educar<br />
os Administradores de Rede para os potenciais riscos existentes<br />
na sua Rede Informática.<br />
13 É um qualquer dispositivo implementado (hardware ou<br />
www.skyscrapercity.com<br />
Informática principal, onde se localizam os Sistemas<br />
de Gestão e Controlo da Rede Eléctrica Nacional.<br />
Na noite de 12 de Maio, as principais Operadoras<br />
de Comunicações Nacionais (PT, TMN, Vodafone e<br />
Optimus), sofreram uma série de falhas no seu<br />
funcionamento. Simultaneamente, as maiores estações<br />
de fornecimento de água do Alentejo e Algarve<br />
(Alqueva e Odeleite), tiveram um problema no seu<br />
sistema de gestão de funcionamento, permitindo<br />
descarregar o seu caudal máximo, reserva essencial<br />
para fazer face ao período de seca que se avizinhava.<br />
Pelas 19h00 de 14 de Maio, a Rede Telefónica<br />
Pública e as principais Operadoras de Comunicações<br />
Nacionais sofreram novamente uma série de falhas,<br />
dificultando a utilização do número de emergência<br />
112 e, consequentemente, as acções de socorro<br />
prestado pelo Serviço Nacional de Bombeiros e<br />
Protecção Civil às vítimas dos diferentes incidentes<br />
que ocorriam de Norte a Sul do País e dos quais<br />
referimos:<br />
1. Às 20h00, o comboio de passageiros de alta<br />
velocidade, TGV Lisboa - Porto embatia num comboio<br />
de cargas, aparentemente desgovernado perto do<br />
Entrocamento. A PSP constatou que o embate dos<br />
comboios vitimou 100 passageiros e feriu gravemente<br />
outras 200 pessoas.<br />
2. Pelas 23h30, atacantes cibernéticos criam o<br />
pânico no Aeroporto de Lisboa e colocam em risco<br />
todo o tráfego aéreo com destino e origem no referido<br />
Aeroporto, pela indisponibilidade do Sistema de<br />
Controlo de Tráfego Aéreo. O objectivo dos atacantes<br />
foi a penetração na rede informática interna do<br />
Aeroporto e posterior ataque por DoS aos sistemas<br />
de ajuda à aterragem das aeronaves, nomeadamente<br />
os que indicam a direcção da pista, altura das<br />
aeronaves e os radares, sistemas de comunicação<br />
rádio e sinalização luminosa, a sua maioria geridos<br />
através de uma rede informática que usa o protocolo<br />
TCP/IP 14 . Em simultâneo, foi atacado o web site da<br />
principal Transportadora Aérea (TAP), através de<br />
Phishing 15 com o objectivo de falsificar as informações<br />
dos voos, incluindo as reservas, tarifas e horários.<br />
software), para impedir que estranhos acedam a uma determinada<br />
rede informática. As firewalls estão para as redes, assim como as<br />
passwords para a autenticação dos utilizadores nos sistemas<br />
operativos.<br />
14 É um conjunto de protocolos de comunicação entre<br />
computadores em rede. O seu nome provem de dois protocolos,<br />
o TCP (Transmission Control Protocol) e o IP (Internet Protocol).<br />
15 Forma de fraude electrónica, caracterizada pela tentativa<br />
de adquirir informações confidenciais, tais como por exemplo o<br />
número de cartão de crédito, fazendo passar-se por uma pessoa<br />
de confiança ou uma empresa, através do envio uma comunicação<br />
digital oficial, como uma mensagem de correio electrónico.<br />
21
22<br />
A rede ATM 16 deixou de funcionar, lançando o caos nos principais Centros Comerciais.<br />
3. Entre as 22h00 e as 00h30, surgiu uma avaria<br />
simultânea nos sistemas de controlo de trânsito das<br />
principais cidades do País, do qual resultaram inúmeros<br />
acidentes que vitimaram 50 pessoas e feriram<br />
gravemente outras 150.<br />
Também os Bancos portugueses, durante<br />
auditorias de rotina, conduzidas pelas equipas<br />
internas, detectaram dispositivos sniffer no seu principal<br />
sistema de transferência de fundos, temendo a<br />
Administração dos Bancos que indivíduos não<br />
autorizados possam agora tentar entrar num sistema<br />
que se considerava invulnerável.<br />
Durante o dia 17 de Maio, a comunicação Nacional<br />
especulou sobre a extensão das vulnerabilidades de<br />
Portugal no Ciberespaço, essencialmente sobre as<br />
origens dos ataques de iWar sofridos até ao momento<br />
e sobre as capacidades Nacionais para enfrentar a<br />
Crise. Simultaneamente, com as notícias surgidas, a<br />
rede ATM 16 deixou de funcionar por volta das 17h00,<br />
lançando o caos nos principais Centros Comerciais e<br />
paralisando praticamente todo o comércio local.<br />
Uma reunião governamental de emergência foi<br />
realizada às 21H00 do dia 18 de Maio, para estudar<br />
algumas das possíveis recomendações imediatas e<br />
de médio prazo para uma resposta concertada a esta<br />
“Crise no Ciberespaço” que actualmente afecta Portugal.<br />
A reunião abriu com um briefing do Serviço de<br />
Informações de Segurança que enfatizou a incerteza<br />
existente na determinação da fonte ou das fontes dos<br />
ciberataques, seguido por algumas recomendações<br />
do Gabinete Nacional da Segurança que fez notar que<br />
nesta altura não havia “nenhuma maneira de saber ao<br />
certo” se o conjunto de acções registado configura<br />
ou não:<br />
(1) um teste à capacidade portuguesa de<br />
Ciberdefesa desenvolvido por um ou mais actores;<br />
(2) ou o início de uma campanha de iWar orientada<br />
para perturbar com alguma antecedência a coesão do<br />
Governo Português e o funcionamento das<br />
Instituições Democráticas.<br />
Durante a reunião, o Primeiro-Ministro alertou<br />
repetidas vezes os elementos da Comunicação Social<br />
presentes para a necessidade de manter a calma e de<br />
diminuir toda a especulação relativamente à extensão<br />
das vulnerabilidades de Portugal no Ciberespaço (em<br />
virtude da mitigação dos principais riscos já ter sido<br />
realizada), quer ao que diz respeito às origens dos<br />
ataques de iWar sofridos até ao momento, em especial<br />
aqueles que tiveram origem no Território Nacional.<br />
Fizeram notar que futuras decisões relacionadas com<br />
a crise podiam tornar-se cada vez mais difíceis se existir<br />
um pânico generalizado, acrescido pelo empolamento<br />
dos efeitos dos ataques por parte dos meios de<br />
comunicação.<br />
Após encerramento da reunião, o Primeiro-<br />
Ministro solicitou ao Ministro da Defesa Nacional<br />
que coordenasse um grupo de peritos de Segurança<br />
da Informação, de Redes Informáticas e de Computer<br />
Network Operations, com o objectivo de gerar ideias<br />
novas e criativas capazes de minorar num curto espaço<br />
de tempo, os problemas de iWar que suscitam uma<br />
maior preocupação na presente Crise no Ciberespaço.<br />
Descreveu-lhe as suas principais preocupações e<br />
pediu-lhe possíveis recomendações para os<br />
problemas encontrados, de modo a garantir a<br />
segurança dos Sistemas de Informação que as<br />
Organizações Governamentais utilizam ou<br />
provavelmente virão a utilizar, reflectindo o seu impacto<br />
no domínio Diplomático/Político, no ambiente da<br />
Informação Nacional, na área Militar e no domínio<br />
Económico (DIME).<br />
Uma Possível Resposta…<br />
Arquivo JE<br />
Após a realização de diversas reuniões, a equipa<br />
de peritos sugeriu, entre outras, as seguintes propostas<br />
fundamentais para o médio prazo:<br />
1. Proceder à implementação de uma Certificção<br />
de Segurança da Informação nas Organizações consideradas<br />
mais críticas e importantes face à avaliação<br />
da sua informação e à identificação e avaliação dos<br />
riscos de segurança existentes;<br />
2. Desenvolver e aplicar uma metodologia de auditoria<br />
aos Sistemas de Informação implementados,<br />
que garanta a sua real Segurança da Informação, com<br />
base em indicadores de segurança mensuráveis;<br />
3. Desenvolver um manual de boas práticas de
Segurança da Informação para apoiar as Pequenas e<br />
Médias Empresas, onde os requisitos principais sejam<br />
a facilidade de operacionalização e o custo mínimo de<br />
implementação;<br />
4. Sensibilizar os utilizadores das tecnologias de<br />
informação para a problemática da Segurança da<br />
Informação, evitando desta forma os ataques de<br />
Engenharia Social 17 mais usuais sobre o elo mais fraco<br />
da cadeia de segurança: o elemento humano;<br />
No contexto formulado pela equipa de peritos,<br />
importa salientar que o importante é o planeamento<br />
rigoroso dos controlos de segurança a implementar<br />
ao nível das Organizações consideradas críticas, onde<br />
a coordenação de esforços e de competências nesta<br />
temática é obrigatória, face à complexidade e<br />
importância dos assuntos envolvidos.<br />
Considerações Finais<br />
Enquanto processo de sistematização e instrumento<br />
de aplicação dos pressupostos associados à<br />
necessidades de qualquer Estado garantir a sua<br />
Ciberdefesa, o levantamento de cenários e a própria<br />
condução de Exercícios de Gestão de Crises no<br />
Ciberespaço representa uma manifesta mais-valia,<br />
permitindo:<br />
- avaliar as implicações políticas e estratégicas do<br />
Ciberespaço e analisar a sua importância como factor<br />
decisivo para o planeamento e condução das<br />
actividades associadas aos diversos instrumentos de<br />
exercício do Poder dos Estados (Diplomático/Político,<br />
Informação, Militar e Económico);<br />
- estudar metodologias para analisar e gerir o Risco<br />
Social, capazes de avaliar ameaças, identificar<br />
vulnerabilidades e promover a adopção de contramedidas<br />
especialmente orientadas para fazer face aos<br />
riscos emergentes da Sociedade de Informação,<br />
Comunicação e Conhecimento;<br />
- identificar iniciativas que ajudem a desenvolver<br />
as capacidades necessárias para minimizar as<br />
implicações negativas da ocorrência de Crises no<br />
Ciberespaço, permitindo mitigar as suas consequências<br />
e reduzir a sua probabilidade de ocorrência;<br />
- estimular o desenvolvimento de actividades e<br />
iniciativas cooperativas destinadas a melhorar o intercâmbio<br />
entre os diversos actores envolvidos na<br />
Protecção da IIN, através da análise de assuntos<br />
emergentes de interesse mútuo, onde a Segurança e<br />
Defesa Nacional se apresentam como temas privilegiados<br />
de análise.<br />
Apesar de ter surgido num contexto académico, o<br />
Cenário aqui apresentado, poderá servir de suporte e<br />
permitir a exploração destes objectivos. Tendo por<br />
base o Cenário apresentado para reflexão, importa<br />
referir que todas as possíveis soluções destinadas a<br />
mitigar o risco social no Ciberespaço devem ter por<br />
base as boas práticas já existentes em algumas das<br />
Instituições/Organizações públicas ou privadas e em<br />
estudos já realizados e publicados, garantindo a<br />
celeridade no processo e evitando custos<br />
desnecessários. No que diz respeito às medidas<br />
imediatas a implementar, em artigo posterior serão<br />
analisadas as futuras propostas.JE<br />
16 Sistema de máquinas para realizar operações bancárias.<br />
17 Evitando a manipulação dos utilizadores de forma a<br />
convencê-los a realizar determinadas acções que visam<br />
alterar as propriedades da segurança da informação.<br />
Bibliografia<br />
BALSINHAS, Paulo (2003). Os Riscos do<br />
Ciberespaço - Análise e Gestão dos Riscos nas Infra-<br />
Estruturas Criticas de Informação, Pós – Graduação em<br />
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Dinis dos e NUNES, Paulo Viegas (2009). “ Subsídios para<br />
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in Vários, Proelium-Revista da Academia Militar, VI Série<br />
Nº 11, p. 131-154.<br />
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NUNES, Paulo Viegas (2009). “Ciberterrorismo:<br />
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de Junho, Lisboa.<br />
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YOUNG, Susan and AITEL, Dave (2004). The<br />
Hacker´s Handbook. Averbach, United States of America.<br />
23
24<br />
A ONU e o uso da força<br />
Dra. Maria do Céu Pinto<br />
Durante a Guerra-Fria, o Conselho de<br />
Segurança (CS) não conseguiu chegar a<br />
acordo quanto a mecanismos colectivos de<br />
enforcement, nomeadamente a activação do artigo<br />
43.º da Carta das Nações Unidas, que prevê o uso<br />
da força contra os Estados agressores1 e o seu<br />
corolário: a constituição de um corpo de forças armadas<br />
ao serviço das Nações Unidas (NU) 2 . Para colmatar<br />
essa falha, foi desenvolvido um instrumento<br />
menor − o peacekeeping −, sob os auspícios das<br />
NU. O peacekeeping foi o expediente de um CS<br />
Fonte: unescap.org<br />
dividido ao qual faltava o consenso para a acção<br />
colectiva e que se contentava em usar um instrumento<br />
menos poderoso e que não tinha implicações<br />
nas relações de poder das superpotências 3 .<br />
No caso de um conflito, o CS pode adoptar<br />
medidas provisórias para “evitar o agravar da<br />
situação”, dispondo de várias opções que não<br />
envolvem o uso da força. Esgotadas as medidas<br />
pacíficas do Capítulo VI da Carta, as hipóteses<br />
apresentadas foram as sanções (artigo 41.º), uma<br />
forma de enforcement não-militar. Se as medidas<br />
anteriormente mencionadas não surtirem efeito, o<br />
CS “(…) poderá levar a efeito, por meio de forças
O peacekeeping foi o expediente de um CS dividido ao qual<br />
faltava o consenso para a acção colectiva<br />
aéreas, navais ou terrestres, a acção que julgar<br />
necessária […]. Tal acção poderá compreender<br />
demonstrações, bloqueios e outras operações, por<br />
parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos<br />
Membros das Nações Unidas” (artigo 42.º).<br />
O enforcement militar na Carta da ONU, previsto<br />
no artigo 42.º, deriva da necessidade de sustentar o<br />
princípio da segurança colectiva. A ideia central do<br />
sistema de segurança colectiva é a defesa de certos<br />
valores, principalmente o da paz. Contudo, se os<br />
meios pacíficos não forem suficientes para assegurar<br />
a paz, então a organização poderá recorrer à ameaça<br />
e/ou uso efectivo da força 4 . Na Agenda para a Paz,<br />
o ex-Secretário-Geral, Boutros Boutros-Ghali, afirma:<br />
“a essência do conceito de segurança colectiva, tal<br />
como contida na Carta, é que se as medidas pacíficas<br />
falharem, as medidas previstas no Capítulo VII devem<br />
ser usadas, por decisão do Conselho de Segurança,<br />
para manter ou restaurar a paz e a segurança<br />
internacional, se se estiver face a uma 'ameaça à paz,<br />
1 O artigo 43.º estabelece que os Estados-membros<br />
concordam em “(…) proporcionar ao Conselho de<br />
Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou<br />
acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades,<br />
inclusive direitos de passagem (…)”<br />
2 Aquele artigo prevê a criação de forças armadas das<br />
NU a serem utilizadas de acordo com planos de acção<br />
determinados pelo CS com a assistência da Comissão de<br />
Estado-Maior, composta pelos Chefes de Estado-Maior dos<br />
membros permanentes do CS (ou respectivos representantes).<br />
O Comité reuniu-se entre 1946 e 1948 para estudar,<br />
do ponto de vista militar, as implicações do artigo 43.º e<br />
avançar com propostas para dar corpo àquele artigo. Devido<br />
a desacordos insanáveis, o Comité suspendeu os seus<br />
trabalhos em 1948 (v. Derek W. Bowett, United Nations<br />
Forces: A Legal Study, NY, Praeger, 1964, pp. 12-18).<br />
Fonte: UN.org<br />
ruptura de paz ou acto de agressão'.” 5<br />
A possibilidade do CS tomar medidas militares<br />
foi considerada um progresso notável em relação ao<br />
sistema da Sociedade das Nações. Contudo, a<br />
importância destas medidas não residia na<br />
expectativa ou probabilidade de se recorrer a elas.<br />
Efectivamente, “pensava-se que a ameaça de acção<br />
militar seria um incentivo importante para fazer com<br />
que os Estados implementassem as medidas que o<br />
Conselho considerasse necessárias para manter ou<br />
restaurar a paz e segurança internacionais. Também<br />
serviria para deter os actos agressivos dos Estados,<br />
constituindo um incentivo adicional para resolver<br />
as disputas entre os Estados.” 6<br />
Voltando ao peacekeeping, este consiste no uso<br />
das forças militares, desprovidas, no seu exercício,<br />
do uso normal da força, para de-escalar ou pacificar<br />
situações de conflito. Boutros-Ghali definiu-o<br />
sinteticamente como o “uso não violento da força<br />
militar para preservar a paz.” 7<br />
O uso de efectivos militares para o desempenho<br />
de tarefas de peacekeeping encerra uma contradição<br />
nos termos. O uso de militares, canonicamente<br />
treinados para a guerra e o combate, parece não se<br />
coadunar com tarefas pacíficas que exigem dos<br />
militares grande restrição e auto-controlo e um<br />
sentido rigoroso de imparcialidade. Apesar disso, a<br />
comunidade internacional vê no peacekeeping militar<br />
uma “panaceia moldável e infinita para os conflitos<br />
mundiais” 8 . Após o exemplo bem-sucedido da UNEF<br />
I I (UN Emergency Force I) para assistir à retirada<br />
das forças invasoras do Egipto (1956-67), criou-se a<br />
convicção de que o peacekeeping se poderia aplicar<br />
indistintamente para implementar cessar-fogos,<br />
retiradas militares e verificar acordos de paz. A função<br />
original do peacekeeping era monitorar as tréguas e<br />
acordos de cessar-fogo com observadores militares<br />
da ONU, desarmados ou usando armamento ligeiro,<br />
que vigiavam as linhas de fronteira e as zonas-tampão<br />
("buffer zones").<br />
3 John Mackinlay e Jarat Chopra, “Second Generation<br />
Multinational Operations”, The Washington Quarterly, vol.<br />
15, nº 3, Verão de 1992, p. 114.<br />
4 Alex J. Bellamy et al., Understanding Peacekeeping,<br />
Cambridge, Polity Press, 2004, p. 147.<br />
5 Boutros-Ghali, Agenda para a Paz, NY, Nações<br />
Unidas, 1992 (ed. em português; a partir de agora, referida<br />
como Agenda), § 42.<br />
6 V. Leland M. Goodrich et al., Charter of the United<br />
Nations: Commentary and Documents, NY, Columbia U.P,<br />
1969, p. 291.<br />
7 United Nations, The Blue Helmets: A Review of United<br />
Nations Peacekeeping, NY, UNDPI, 1996, p. 4.<br />
8 David Rieff cit. in Tom Woodhouse, “The Gentle<br />
Hand of Peace?”, International Peacekeeping, vol. 6, n.º<br />
2, Verão de 1999, p. 24.<br />
25
26<br />
O peacekeeping tornou-se o remédio miraculoso<br />
para resolver os conflitos que proliferaram na Guerrafria,<br />
pela simples razão de que os Estados e as<br />
organizações internacionais não conseguiam<br />
encontrar outro remédio. Escudados pelos princípios<br />
sagrados que os deveriam nortear (a “trindade sagrada”:<br />
consentimento, imparcialidade e o uso da<br />
força) 9 , os peacekeepers foram enviados para todo o<br />
tipo de missões, até para as mais inverosímeis, como<br />
o Congo, o Líbano e a Somália.<br />
Se o peacekeeping é desempenhado por militares,<br />
em última instância ele remete-nos para a possibilidade<br />
de estes usarem da sua prerrogativa natural:<br />
a aplicação da força. Na realidade, o peacekeeping<br />
assenta, como afirma Findlay, sobre um elemento<br />
(implícito e indefinido) de bluff: a de que os capacetes<br />
azuis, se confrontados com situações extremas, usarão<br />
a força. Este bluff é produtivo se tiver um efeito<br />
dissuasor sobre potenciais opositores, isto é, se a<br />
parte antagonista se convencer de que tem algo a<br />
perder se não respeitar os compromissos que<br />
assumiu. Contudo, a capacidade das NU deterem as<br />
forças hostis só existe se: se tiver comunicado de<br />
forma clara à parte adversária o objectivo da missão,<br />
bem como a ameaça da aplicação da força, no caso de<br />
incumprimento ou obstrução por parte dos<br />
“spoilers” 10 ; se a força de peacekeeping demonstrar<br />
a capacidade e a intenção de usar a força.<br />
A realidade é que o peacekeeping nunca foi, como<br />
idealmente se projectou, uma prática inteiramente<br />
pacífica: na UNEF I, a força foi usada logo nos<br />
primeiros dias da operação e, no total, a missão<br />
registou 89 vítimas 11 . A questão do consentimento<br />
das partes também não tem sido uniforme: embora o<br />
Egipto e Israel tivessem aceite a presença da UNEF I<br />
e II, tiveram de ser persuadidos a tal. A ONUC<br />
(Opération des Nations Unies au Congo, entre 1960<br />
e 1964), foi enviada sem o consentimento das<br />
autoridades da província secessionista do Katanga e<br />
a Bélgica, potência colonial em retirada, deu o seu<br />
consentimento com relutância. A UNIFIL (United<br />
Nations Interim Force in Lebanon) trabalha no Líbano<br />
desde 1978 com a aquiescência deste país, mas foi<br />
frequentemente hostilizada e atingida durante<br />
incursões e ataques militares dos israelitas no sul do<br />
Líbano. Os Khmers Vermelhos aceitaram com mávontade<br />
a entrada da UNTAC (United Nations<br />
Transitional Authority in Cambodia) no Cambodja.<br />
O mesmo aconteceu com as facções somalis em relação<br />
à UNOSOM I e II (UN Operation in Somalia). A<br />
Indonésia aceitou a presença da INTERFET<br />
(International Force for East Timor) e da UNTAET<br />
(UN Transition Authority in East Timor) após fortes<br />
pressões da comunidade internacional, inclusive dos<br />
EUA.<br />
Fonte: UN.org<br />
A experiência veio a demonstrar a necessidade de permitir<br />
aos capacetes azuis usar a força.<br />
O uso da força no peacekeeping, para além da<br />
auto-defesa, é viável se a operação for enquadrada<br />
no Capítulo VII da Carta, uma vez que este capítulo<br />
trata de medidas que o Conselho de Segurança pode<br />
impor, como as sanções ou o uso da força militar. Este<br />
entendimento foi confirmado por uma sentença do<br />
Tribunal Internacional de Justiça, em 1962, que<br />
afirmava que as NU têm a capacidade inerente de criar<br />
e assumir o comando de forças militares. Contudo, a<br />
sentença estabelece que estas só podem usar de<br />
“direitos beligerantes” quando autorizadas para tal<br />
pelo Conselho de Segurança, ao abrigo do Capítulo<br />
VII 12 .<br />
O uso da força em auto-defesa é legitimado por<br />
várias fontes. O filósofo holandês Hugo Grotius (1583-<br />
1645) defendeu a auto-preservação como um direito<br />
inerente e natural do indivíduo que nenhuma lei<br />
poderia limitar ou ab-rogar. Também afirmou o direito<br />
dos Estados à auto-defesa, um conceito que está<br />
consagrado na lei internacional através do artigo 51.º<br />
da Carta das NU. Uma vez que as forças armadas são<br />
as principais defensoras do Estado, tem-se deduzido<br />
que o seu direito de auto-defesa colectiva é um<br />
prolongamento do direito dos Estados de assegurarem<br />
a sua auto-defesa. Tem-se partido do princípio de que<br />
os militares desfrutam daquele direito, mesmo quando<br />
operam sob comando das NU. Alguns autores<br />
defendem que a ONU, tal como os Estados, goza do<br />
direito de defesa própria e que o seu pessoal, por<br />
extensão, goza do direito de defesa individual e<br />
colectiva 13 .<br />
Inicialmente, auto-defesa significava a defesa da<br />
pessoa do peacekeeper através das suas armas.<br />
Contudo, a experiência veio a demonstrar a necessidade<br />
de alargar este entendimento de forma a permi-
tir aos capacetes azuis usar a força para: impedir<br />
tentativas de os desarmar, defender as suas posições,<br />
veículos e equipamento contra ataques armados ou<br />
contra tentativas de captura dos capacetes azuis e<br />
apoiar outros contingentes da ONU 14 . Esta concepção<br />
foi posteriormente alargada de forma a autorizar os<br />
capacetes azuis a defender as agências civis e outro<br />
pessoal das NU. Trata-se de uma situação menos clara<br />
porque cabe ao comandante da força decidir sobre<br />
estas situações numa base casuística.<br />
Após 1973, a regra da auto-defesa foi expandida<br />
para acomodar a necessidade de “defesa da missão”.<br />
A auto-defesa passou assim a incluir a resistência a<br />
tentativas, pela força, de impedir os peacekeepers de<br />
desempenhar a sua missão 15 . Trata-se também aqui<br />
de um “terreno pantanoso”, que veio gerar mais<br />
confusão e incerteza, principalmente ao nível dos<br />
comandantes da força, relativamente à interpretação<br />
do sentido de “defesa da sua missão”. Como é sabido,<br />
o CS tende a elaborar o mandato das missões no<br />
sentido mais amplo e a ser o menos concreto possível<br />
em relação a detalhes cruciais e potencialmente<br />
comprometedores para o bom funcionamento da<br />
missão, como o que fazer se a missão não conseguir<br />
desempenhar as tarefas que lhe foram cometidas, se<br />
as partes não cooperarem ou deliberadamente<br />
oferecerem resistência. Face ao habitual alheamento<br />
do CS, a responsabilidade de interpretar a “defesa da<br />
missão” é devolvida ao Secretário-Geral/Secretariado.<br />
A interpretação do que é a “defesa da missão”<br />
depende, obviamente, da natureza e do contexto da<br />
missão. Se se tratar essencialmente de uma missão<br />
humanitária, então a força pode ser usada para permitir<br />
que os capacetes azuis tenham livre acesso às áreas<br />
críticas. Se a missão exigir o desarmamento e<br />
desmobilização dos beligerantes, o uso da força pode<br />
ser mais problemático porque pode desencadear uma<br />
espiral de confrontação.<br />
A utilização da força em auto-defesa tem limites<br />
que estão codificados na lei internacional e têm sido<br />
estabelecidos com a prática. Os mais importantes são<br />
os critérios da necessidade e da proporcionalidade. A<br />
força pode ser empregue se houver necessidade<br />
9 “Holy trinity”, v. Bellamy et al., op. cit., p. 95.<br />
10 Stephen J. Stedman, “Spoiler Problems in Peace<br />
Processes”, International Security, vol. 22, n.º 2, 1997.<br />
11 Trevor Findlay, The Use of Force in UN Peace<br />
Operations, Estocolmo, SIPRI/Oxford University Press,<br />
2002, p. 44.<br />
12 International Court of Justice, Certain Expenses of<br />
the United Nations (Article 17, § 1), Advisory Opinion of<br />
20 July 1962, Reports of Judgements, Advisory Opinions<br />
and Orders International Court of Justice, Haia, 1962, p.<br />
177; cit. in Findlay, op. cit., p. 8.<br />
13 Sobre este assunto, v. Findlay, op. cit., p. 15.<br />
14 International Peace Academy, Peacekeeper´s<br />
absoluta dela, isto é, em última necessidade. Em<br />
segundo lugar, a força usada deve ser proporcional à<br />
ameaça.<br />
O relatório da ONU, A More Secure World, lançado<br />
em Dezembro de 2004, aborda a questão do uso da<br />
força sancionado pelas NU. Trata-se, quer de<br />
situações de auto-defesa (artigo 51.º), quer de<br />
respostas no âmbito das ameaças previstas no<br />
Capítulo VII 16 . Em todos os casos, para ser legítimo, o<br />
emprego da força deve obedecer aos seguintes<br />
critérios:<br />
- Seriedade da ameaça: o mal em causa (contra os<br />
Estados, ordem internacional ou segurança humana)<br />
é suficientemente claro e sério para justificar, prima<br />
facie, o uso da força militar?;<br />
- Justo propósito: é claro que o principal objectivo<br />
da acção militar é deter ou evitar a ameaça em questão,<br />
à parte de outras considerações envolvidas?;<br />
- Último recurso: todas as opções não-militares<br />
foram exploradas a fundo?;<br />
- Meios proporcionais: a escala, duração e<br />
intensidade da acção militar são estabelecidas com<br />
base no mínimo necessário para fazer frente à ameaça<br />
em questão?;<br />
- Balanço das consequências: a acção militar tem<br />
probabilidades razoáveis de fazer face à ameaça ou as<br />
consequências dessa acção podem ser piores do que<br />
a falta de acção?.<br />
Em relação ao uso da força, os Estados têm<br />
demonstrado uma dupla atitude. Por um lado, a<br />
insistência para que o mandato das operações ONU<br />
preveja o uso da força em auto-defesa de forma a<br />
terem alguma garantia de preservação das suas<br />
tropas. Por outro, a relutância em que as operações<br />
de peacekeeping passem esta fronteira e se<br />
envolvam em actividades de enforcement. A<br />
relutância em autorizar missões de enforcement<br />
prende-se com o facto de nas mesmas haver maior<br />
probabilidade de haver vítimas entre os soldados.<br />
Além disso, e no que se refere aos grandes Estados,<br />
o seu receio é que a organização usurpe o seu<br />
monopólio do uso da força 17 .<br />
Apesar disso, as resoluções do Conselho de<br />
Handbook, NY, IPA e Pergamon Press, 1984, p. 57.<br />
15 O relatório da ONU, A More Secure World: Our<br />
Shared Responsibility (Report of the High-level Panel on<br />
Threats, Challenges and Change, 2004), afirma que o uso<br />
da força “[…] é amplamente entendido como estendendose<br />
à 'defesa da missão””, § 213.<br />
16 Em relação ao Capítulo VII, o relatório faz a distinção<br />
entre as ameaças externas (a ameaça que os Estados põem<br />
a outros Estados, a povos fora das suas fronteiras e à ordem<br />
internacional em geral) e as ameaças internas e a consequente<br />
responsabilidade dos Estados de protegerem as suas<br />
populações.<br />
17 V. Findlay, op. cit., p. 16.<br />
27
Segurança que prevêem o enforcement (sanções e<br />
uso da força), raramente o mencionam de forma<br />
explícita 18 . Na operação militar contra a Coreia do<br />
Norte, em 1950, por exemplo, embora a operação<br />
fosse de enforcement, ela não foi enquadrada ao<br />
abrigo do Capítulo VII 19 .<br />
São raras as resoluções, como a 660, de 2 de<br />
Agosto de 1990, em resposta à agressão iraquiana<br />
contra o Kuwait, em que o Conselho explicitamente<br />
afirma agir ao abrigo dos artigos 39.º, 40.º ou 42.º. O<br />
artigo 42.º foi invocado em poucas ocasiões: o que se<br />
explica por este invocar o uso da força. Também o<br />
artigo 39.º, que tem menos implicações, foi referido<br />
raramente: este artigo, estabelece que o CS deve<br />
determinar se, nos conflitos em consideração, existe<br />
qualquer situação de ameaça à paz, ruptura de paz ou<br />
acto de agressão. Nas suas resoluções ao abrigo do<br />
Capítulo VII, o que o CS geralmente tem feito é a<br />
constatação geral da existência (ou da continuação)<br />
de uma ameaça à paz internacional, sem referir o artigo<br />
39.º 20 . Ao qualificar a situação como uma ameaça à<br />
paz, ruptura de paz ou acto de agressão, o CS está a<br />
lidar com situações delicadas, podendo, em<br />
consequência (e dependendo do seu julgamento<br />
político do caso), accionar medidas de injunção. O<br />
Conselho também aplicou medidas do artigo 41.º sem<br />
o citar expressamente e sem ter previamente<br />
determinado se a situação em causa era de natureza a<br />
requerer medidas ao abrigo do Capítulo VII 21 .<br />
No geral, as resoluções referem que o CS está a<br />
agir “ao abrigo do Capítulo VII", uma forma lacónica<br />
de autorizar os Estados-membros a usar a força ou a<br />
fazer uso de outros instrumentos coercivos. Noutros<br />
casos, o CS afirma que se está perante uma ameaça à<br />
paz e segurança internacionais. Por vezes, a<br />
autorização do uso da força vem encapotado em<br />
18 Higgins faz esta observação a propósito das resoluções<br />
relativas ao Congo, mas diz que aquelas se reportavam aos<br />
artigos 25.º e 49.º para vincar a sua natureza obrigatória e o<br />
dever dos Estados-membros de as apoiar: Rosalyn Higgins,<br />
The Development of International Law through the Political<br />
Organs of the United Nations, Londres, Oxford University<br />
Press, 1963, p. 235.<br />
19 Na Resolução 83 do Conselho de Segurança (27 de<br />
Junho de 1950) relativa à invasão da Coreia do Sul, o<br />
Conselho de Segurança “recomenda que os Estados-membros<br />
das Nações Unidas forneçam a assistência à República da<br />
Coreia que for necessária para repelir o ataque armado e para<br />
restaurar a paz e a segurança internacional na área”.<br />
20 Jerzy Ciechanski, “Enforcement Measures under<br />
Chapter VII of the UN Charter: UN Practice after the Cold<br />
War”, in Michael Pugh (ed.), The UN, Peace and Force,<br />
Londres, Frank Cass, 1997, p. 84.<br />
21 Ver, por exemplo, as sanções contra a África do Sul<br />
(resolução 181, de 7 de Agosto de 1963; resolução 182, de 4<br />
de Dezembro de 1963 e resolução 421, de 9 de Dezembro de<br />
1977), Portugal (resolução 180, de 31 de Julho de 1963 e<br />
resolução 218, de 23 de Novembro de 1965) e a Rodésia<br />
28<br />
linguagem eufemística, como “todas as medidas<br />
necessárias” (UNPROFOR, na Bósnia-Herzegovina)<br />
ou “todos os meios necessários” (UNOSOM II, na<br />
Somália). O enquadramento vago do uso da força tem<br />
ainda como consequência não definir o nível ou tipo<br />
de força a ser usada na operação específica.<br />
O CS não só tem decidido sobre o emprego de<br />
medidas de injunção sem as nomear claramente, mas<br />
tem-no feito mesmo quando já tem em vista o executor<br />
dessas medidas: é o caso das resoluções 83 e 84 sobre<br />
a Coreia (1950) 22 e da resolução 221 sobre o embargo<br />
petrolífero contra a Rodésia do Sul (1966) 23 . A<br />
resolução 83 (27 de Junho de 1950) recomenda que os<br />
Estados-membros da ONU forneçam ajuda à Coreia<br />
do Sul; a resolução 84 (7 de Julho de 1950) cria um<br />
Comando Unificado dirigido pelos EUA. A resolução<br />
221 apela aos Estados-membros que quebrem as<br />
relações económicas com a Rodésia do Sul (regime<br />
“branco” de Ian Smith) e que implementem um embargo<br />
ao petróleo e produtos derivados. A resolução foi<br />
criada tendo em mente o Reino Unido, que orquestrou<br />
a elaboração da resolução para montar um bloqueio<br />
naval destinado a impedir a chegada de petroleiros ao<br />
porto da Beira, Moçambique (embargo esse também<br />
dirigido pela Royal Navy, do Reino Unido).<br />
Com o fim da Guerra-fria, as NU começaram a<br />
enquadrar as novas missões de peacekeeping<br />
explicitamente ao abrigo do Capítulo VII, dando lugar<br />
de relevo ao uso da força ou outras medidas de<br />
carácter coercivo. Wallensteen e Johansson calcularam<br />
que 93% das resoluções adoptadas pelo CS ao abrigo<br />
daquele capítulo aconteceram na pós-Guerra-fria 24 .<br />
Desde 1990, 25% das resoluções do CS foram<br />
enquadradas no Capítulo VII. Em 2001, a média foi de<br />
35% e em 2002, de 47%.<br />
Algumas resoluções fazem referência explícita ao<br />
(resolução 216, de 12 de Novembro de 1965 e resolução<br />
217, de 20 de Novembro de 1965). V. Goodrich et al., op.<br />
cit., p. 313.<br />
22 Na realidade, o uso da força na Coreia não foi<br />
sancionado pelo artigo 42.º: a acção foi tomada com base<br />
numa “recomendação” do CS ao abrigo do artigo 39.º V.<br />
Goodrich et al., op. cit., p. 315.<br />
23 A resolução fala explicitamente da conivência das<br />
autoridades portuguesas com o regime da Rodésia.<br />
24 Entre 1946 e 1989, as NU invocaram o Capítulo VII<br />
em 24 ocasiões (v. Bellamy et al., op. cit., pp. 19-20). Entre<br />
1946 e 1986, o CS adoptou oito resoluções ao abrigo do<br />
Capítulo VII. Outras sete resoluções eram de natureza<br />
obrigatória, embora não invocassem aquele capítulo.<br />
25 A UNCRO foi lançada pela Resolução 981, de 31 de<br />
Março de 1995. A UNCRO substituiu a UNPROFOR na<br />
Croácia. Tinha como principais funções velar pela<br />
tranquilidade na região com vista à integração pacífica das<br />
zonas dominadas pelos Sérvios na Croácia (Eslavónia<br />
Ocidental e Oriental, a região da Krajina e a península de<br />
Prevlaka, e garantir os direitos e a segurança das comunidades<br />
minoritárias na Croácia). Em Maio e Agosto de 1995, a<br />
Fonte: www.army.cz.
Em casos mais raros, as missões de peacekeeping dotadas<br />
de mandatos ao abrigo do Capítulo VII eram na realidade<br />
operações de peace enforcement<br />
Capítulo VII nas resoluções que criavam. É o caso da<br />
UNCRO (UN Confidence Restoration Operation) e<br />
da UNTAES (UN Transitional Administration for<br />
Eastern Slavonia, Baranja and Western Sirmium) que<br />
contemplavam, nas resoluções que as instituíam 25 , o<br />
direito de usar a força em auto-defesa (uma<br />
redundância, uma vez que, por natureza, o<br />
peacekeeping permite o uso da força em auto-defesa).<br />
Resoluções mais recentes não só enquadram as<br />
operações ao abrigo do Capítulo VII, como<br />
determinam ainda a existência de uma situação de<br />
“ameaça à paz e à segurança internacional” 26 . Outras<br />
invocam o Capítulo VII e explicitam detalhadamente<br />
as situações em que os peacekeepers estão<br />
autorizados a “usar todos os meios” para desempenhar<br />
o mandato.<br />
A resolução 1545 27 , que cria a ONUB (UN<br />
Croácia conquistou a Eslavónia Ocidental e a Krajina. As NU<br />
ficaram reduzidas à presença na Eslavónia Oriental, o último<br />
reduto sérvio. A UNTAES (v. a Resolução 1037, de 15 de<br />
Janeiro de 1996) foi criada na sequência da assinatura do<br />
Basic Agreement on the Region of Eastern Slavonia, Baranja<br />
and Western Sirmium (parte dos Acordos de Dayton, 1995),<br />
que previa a transferência pacífica destas regiões, de população<br />
maioritariamente sérvia, para o governo croata. O Acordo<br />
solicitava ao CS que estabelecesse uma administração<br />
transitória durante 12 meses e que criasse uma força<br />
internacional para manter a paz e a segurança nesse período<br />
(a operação acabaria por ter a duração de 24 meses). A<br />
UNTAES tinha uma componente militar (essencialmente<br />
para supervisionar a desmilitarização da região, assegurar o<br />
regresso dos refugiados e pessoas deslocadas aos seus locais de<br />
origem e manter a segurança em geral) e uma componente<br />
civil (para criar e treinar uma força de polícia, organizar<br />
eleições, ajudar na reconstrução económica e monitorizar o<br />
respeito pelos Direitos Humanos); v. http://www.un.org/<br />
Depts/dpko/dpko/co_mission/untaes_p.htm. É ainda o caso<br />
da MINURCA (UN Mission in the Central African Republic),<br />
criada em Abril de 1998. A MINURCA foi dotada de um<br />
Fonte: www.gov.east-timor.org.<br />
Operation in Burundi), enuncia uma lista de nove<br />
situações em que os soldados da missão estão<br />
autorizados a “usar todos os meios”. Elas vão da<br />
monitorização do cessar-fogo, até ao desarmamento<br />
e desmobilização dos combatentes, protecção dos<br />
civis e protecção do pessoal das NU, das suas<br />
instalações e equipamento. A resolução que cria a<br />
missão das Nações Unidas no Sudão, a UN Mission<br />
in Sudan, é mais concisa, mas paradigmática no que<br />
se refere às situações de enforcement tuteladas pelo<br />
CS: “Decide que a UNMIS é autorizada a tomar as<br />
acções necessárias, dentro das suas possibilidades e<br />
na área de posicionamento das suas forças, para<br />
proteger o pessoal das Nações Unidas, suas<br />
instalações e equipamento; garantir a segurança e<br />
liberdade de movimento do pessoal das Nações<br />
Unidas, pessoal humanitário, do pessoal do<br />
mecanismo de avaliação conjunta e da comissão de<br />
avaliação e, sem prejuízo da responsabilidade do<br />
governo do Sudão, proteger os civis sob ameaça<br />
iminente de violência física” 28 .<br />
Noutros casos, algumas missões lançadas ao<br />
abrigo do Capítulo VI foram posteriormente reforçadas<br />
com a previsão do uso da força. Trata-se do caso<br />
mais comum nos anos 90, em que certas missões se<br />
defrontaram com dificuldade continuadas, como a<br />
UNPROFOR. A UNPROFOR foi inicialmente lançada<br />
como uma missão de peacekeeping. Em Fevereiro de<br />
1993, dois dos seus três segmentos (Croácia e Bósnia-<br />
Herzegovina) transformaram-se em operações do<br />
Capítulo VII 29 . Também a UNOSOM, na Somália, foi<br />
uma operação de peacekeeping entre 1992 e Junho<br />
de 1993. Nessa altura, o CS rebaptizou a operação<br />
(UNOSOM II) e deu-lhe um mandato ao abrigo do<br />
Capítulo VII. Em casos mais raros, as missões de<br />
peacekeeping dotadas de mandatos ao abrigo do<br />
mandato do Capítulo VI, substituindo a operação MISAB<br />
(Inter-African Mission to Monitor the Implementation of<br />
the Bangui Agreements) que tinha sido dotada de um mandato<br />
do Capítulo VII, mas apenas para proteger a segurança e<br />
liberdade de movimentos do seu pessoal. A Multinational<br />
Protection Force, lançada para a Albânia em 1997, recebeu<br />
a mesma autorização de uso da força da MISAB. A MONUC,<br />
estabelecida em Novembro de 1999 para o Congo, recebeu<br />
um mandato do Capítulo VII em Fevereiro de 2000: para<br />
proteger a força, o pessoal da Comissão Conjunta Militar e<br />
os civis ameaçados.<br />
26 Caso da resolução 1509, de 19 de Setembro de 2003,<br />
que cria a UNMIS para o Sudão.<br />
27 De 21 de Maio de 2004.<br />
28 Ao contrário destas resoluções, a resolução 1479, de 13<br />
de Maio de 2003, que cria a UN Mission in Côte d´Ivoire<br />
(MINUCI), não refere explicitamente o Capítulo VII, mas<br />
determina “[…] que a situação na Costa do Marfim constitui<br />
uma ameaça à paz e segurança internacional na região”.<br />
29 Resolução 807, de 19 de Fevereiro de 1993, e Resolução<br />
815, de 30 de Março de 1993. A UNPROFOR na Macedónia<br />
permaneceu como operação de peacekeeping.<br />
29
30<br />
Capítulo VII eram na realidade operações de peace<br />
enforcement: casos da UNOSOM II, na Somália, da<br />
UNTAET, em Timor, e da UNAMSIL, na Serra Leoa.<br />
Modalidades do uso da força<br />
Geralmente, o CS não tem usado a força nos moldes<br />
previstos no Capítulo VII, isto é, usando as forças<br />
militares ao abrigo de acções colectivas como aquelas<br />
previstas no artigo 43.º (com o uniforme da ONU e<br />
sob o seu comando). Jane Boulden faz a distinção<br />
entre operações de puro peace-enforcement e<br />
operações de “mandate enforcement”. As primeiras<br />
poderiam definir-se com mais precisão como “fullfledged<br />
enforcement”, o que “[…] significa conduzir<br />
operações ofensivas de combate para impor os termos<br />
de um mandato a um malfeitor renitente identificado<br />
pelo Conselho de Segurança” (caso da Coreia do<br />
Norte e do Iraque) 30 . As segundas (actualmente<br />
denominadas “grey area operations”) situam-se num<br />
ponto indefinido algures num percurso que se situa<br />
entre o peacekeeping tradicional e o peaceenforcement.<br />
Nelas, o uso da força é uma necessidade<br />
para assegurar o cumprimento do mandato 31 .<br />
O uso da força autorizado pelo Conselho de Segurança<br />
destina-se, por regra, a reforçar a implementação<br />
do mandato das operações de paz ou a implementar<br />
os acordos entre os beligerantes. Nesse sentido, o<br />
peace-enforcement das NU, geralmente, não<br />
corresponde ao “full-scale enforcement” de<br />
operações, como a intervenção contra o Kuwait de<br />
1991. As operações de enforcement, geralmente,<br />
reúnem os seguintes requisitos:<br />
- autorização ao abrigo do Capítulo VII da Carta;<br />
- autorização para usar a força para fins que vão<br />
além da auto-defesa;<br />
- respeito pela imparcialidade, o que significa que<br />
a operação não tem em conta as reivindicações ou<br />
posições das partes no conflito, mas que se rege<br />
unicamente pelo respeito do mandato;<br />
- o consentimento das partes para a operação não<br />
é um pré-requisito 32 .<br />
Em vez disso, o CS tem autorizado certos Estados-Membros<br />
ou coligações de Estados a, por sua<br />
delegação e em seu nome, usar a força. Aliás, o artigo<br />
42.º não especifica que as forças empregues em<br />
operação de enforcement sejam forças da ONU: limitase<br />
a autorizar o CS a fazê-lo “[…] por meio de forças<br />
aéreas, navais ou terrestres”. Além disso, o artigo 48.º<br />
refere expressamente que “[A] acção necessária ao<br />
cumprimento das decisões do Conselho de Segurança<br />
para a manutenção da paz e da segurança internacionais<br />
será levada a efeito por todos os Membros das<br />
Nações Unidas ou, por alguns deles, conforme seja<br />
determinado pelo Conselho de Segurança.” 33<br />
O artigo fala ainda do papel que outras organizações<br />
internacionais podem desempenhar na<br />
execução das “decisões” do CS: “[Essas] decisões<br />
serão executadas pelos Membros das Nações Unidas<br />
directamente, e, por seu intermédio, nos organismos<br />
internacionais apropriados de que façam<br />
parte.” 34 O artigo 53.º afirma que o CS pode lançar<br />
mão de acordos ou organizações regionais para “[…]<br />
uma acção coercitiva sob a sua própria autoridade.”<br />
O uso da força, autorizado pelo Conselho de<br />
Segurança, tem revestido as seguintes modalidades:<br />
- coligações lideradas pelos Americanos: Coreia<br />
(1950), Iraque-Kuwait (1990), Somália (1992), Haiti<br />
(1994);<br />
- autorizações a países a título individual para<br />
organizar e comandar uma força multinacional: A<br />
França, no Ruanda (“Operação Turquesa”, 1994), a<br />
Itália, na Albânia (“Operação Alba”, em 1997) e a<br />
Austrália, em Timor-Leste (INTERFET, 1999);<br />
- a delegação do uso da força em entidades<br />
regionais: É o caso das acções militares da NATO na<br />
Bósnia-Herzegovina em 1994-5, em especial a<br />
“Operação Deliberate Force”. Um exemplo recente<br />
foi a criação da Multinational Force to Liberia,<br />
composta por membros da Comunidade Económica<br />
dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e<br />
destinada a restabelecer a segurança no país após o<br />
reacender do conflito em inícios de 2003. É ainda o<br />
caso da missão da Interim Emergency Multinational<br />
Force (conhecida como “Operação Artémis”, em<br />
2003), lançada pela União Europeia para a República<br />
Democrática do Congo a fim de permitir às Nações<br />
Unidas reforçarem a MONUC 35 ;<br />
- as operações da NATO autorizadas pelo<br />
Conselho de Segurança na Bósnia-Herzegovina: na<br />
sequência dos Acordos de Dayton, de Novembro de<br />
1995, foram lançadas a Implementation Force, em 1995<br />
(IFOR), e a Stabilization Force, em 1996 (SFOR);<br />
- o uso da força em certas operações de peacekeeping,<br />
como a UN Operation in Somalia II (UNOSOM<br />
II) e a UN Mission in Sierra Leone (UNAMSIL);<br />
- autorização do uso da força concedida a missões<br />
que não são da ONU: é o caso da autorização<br />
concedida a uma força autorizada pela ONU, a International<br />
Security Assistance Force, ISAF no<br />
Afeganistão. Trata-se de uma força constituída nos<br />
moldes de uma “coalition of the willing”, criada<br />
com a autorização do CS mas organizada fora do<br />
âmbito da ONU 36 . Foi mandatada para providenciar<br />
a segurança na área em torno de Cabul, para apoiar a<br />
Autoridade Transitória do Afeganistão, o Governo<br />
Provisório (eleito em Janeiro de 2005) e para auxiliar<br />
as actividades da UN Assistance Mission to Afghanistan<br />
(UNAMA), bem como outras agências<br />
humanitárias.
Foto: arquivo JE<br />
Foto: arquivo JE<br />
As intervenções da ONU após a Guerra-fria<br />
(Cambodja, Somália, Bósnia-Herzegovina e Ruanda)<br />
ocorreram em ambientes voláteis, de alto risco e<br />
incerteza e em guerras civis de contornos mutáveis.<br />
Nestas operações, é fundamental que os contornos<br />
do uso da força sejam definidos sem margem para<br />
ambiguidades. É necessário “[…] que decisões<br />
políticas claras precedam e sustentem um mandato<br />
[…] na execução das tarefas, a importância da eficácia<br />
militar cresce à medida que a intensidade da operação<br />
aumenta, até que no limiar do enforcement colectivo,<br />
se torna a chave principal do sucesso.” 37<br />
Trata-se de operações que têm vindo a ser<br />
designadas, na gíria, como missões de “middle<br />
ground” ou “grey area operations” por se encontrarem<br />
a meio caminho entre o peacekeeping tradicional<br />
e o peace-enforcement 38 . Brian Urquhart, um dos<br />
30 Donald C. F. Daniel e Bradd C. Hayes, Securing<br />
Observance of UN Mandates Through the Employment of<br />
Military Force, in Pugh, op. cit., p. 108.<br />
31 Jane Boulden, The United Nations and Mandate<br />
Enforcement, Kingston, Ontário, Centre for International<br />
Relations/Institut Quebécois des Hautes Études Internationales,<br />
1999, p. 3.<br />
32 Id., p. 4.<br />
33 Meu itálico.<br />
34 Artigo 48.º § 2 (meu itálico).<br />
35 UN Organization Mission in the Democratic Republic<br />
of Congo; Resolução 1484 de 30 de Maio de 2003.<br />
36 Inicialmente, certos Estados ofereceram-se para liderar<br />
a ISAF numa base semestral. O primeiro foi o Reino Unido,<br />
seguido pela Turquia. A terceira missão da ISAF, a partir de<br />
Fevereiro de 2003, foi liderada conjuntamente pela Alemanha<br />
e pela Holanda, com o apoio da NATO. Desde 11 de Agosto de<br />
2003, a ISAF é liderada pela NATO e financiada pelos Estados-<br />
Membros que contribuem com tropas (v. http://www.nato.int/<br />
issues/afghanistan/evolution.htm e http://www.afnorth.<br />
artífices do peacekeeping onusiano, admitiu a<br />
necessidade de encontrar uma opção intermédia que<br />
se situe entre o binário peacekeeping - peaceenforcement:<br />
“É necessária uma terceira categoria de<br />
operações internacionais militares algures entre o<br />
peacekeeping e o enforcement em larga escala. Seria<br />
destinada a pôr fim à violência descontrolada e a criar<br />
um grau razoável de paz e ordem, de forma a que o<br />
trabalho humanitário possa prosseguir e que o<br />
processo de reconciliação possa ter início […] ao<br />
contrário das forças de peacekeeping, tais tropas<br />
incorreriam, pelo menos inicialmente, em alguns riscos<br />
em combate para controlar a violência: consistiriam<br />
essencialmente em acções armadas de polícia.” 39<br />
O uso da força em missão de peacekeeping é uma<br />
matéria polémica e os debates em curso sobre esta<br />
matéria não são sempre definitivos. O General Michael<br />
Rose, antigo comandante da UNPROFOR, inventou<br />
a expressão “linha de Mogadíscio” (“Mogadishu<br />
line”) − que depois se popularizou nos debates da<br />
área − para transmitir a ideia dos riscos que se incorre<br />
ao ultrapassar a fronteira que separa o peacekeeping<br />
do enforcement. O General Rose diz que o nível de<br />
força que supera os requerimentos do peacekeeping<br />
é como “[…] atravessar a fronteira - a linha de<br />
Mogadíscio - que separa os não-combatentes dos<br />
combatentes.” O General Rose afirma que “[…] é<br />
óbvio que, quando uma força militar está ao serviço<br />
de uma missão humanitária de peacekeeping, estálhe<br />
interdito, pela sua natureza e regras de<br />
empenhamento, actuar como combatente.” 40 O General<br />
Rose conclui que “[…] a necessidade de manter o<br />
consentimento e a imparcialidade, por um lado, e a<br />
necessidade de usar a força, por outro, devem ser<br />
reconciliados, se a comunidade internacional pretender<br />
que o peacekeeping continue a ser uma opção viável<br />
para a resolução internacional de conflitos.” 41 JE<br />
nato.int/ISAF/about/about/_history.htm).).<br />
37 Mackinlay e Chopra, op. cit., p. 118.<br />
38 Também designadas como “Capítulo VI+”, “Capítulo<br />
VI e Meio”, “Segundo Nível”, “Wider Peacekeeping” e<br />
“Peacekeeping Musculado ou Robusto”: v. Robert M. Cassidy,<br />
“Armed Humanitarian Operations”, Working Paper da<br />
CIAONET, 1998, p. 1. V. Peter Viggo Jakobsen, “The<br />
Emerging Consensus on Grey Area Peace Operations<br />
Doctrine: Will It Last and Enhance Operational<br />
Effectiveness?”, International Peacekeeping, vol. 7, nº 3,<br />
Outono de 2000, pp. 38-47. V. também a posição de Michael<br />
Pugh, “From Mission Cringe to Mission Creep?”, in Pugh<br />
(ed.), op. cit., p. 191.<br />
39 Sir Brian Urquhart, “Who Can Stop Civil Wars?”, The<br />
New York Times, 29 de Dezembro de 1991, secção 4, p. 9.<br />
40 Sir Michael Rose, “Military Aspects of Peacekeeping”,<br />
in Wolfgang Biermann e Martin Vadset (eds.), UN<br />
Peacekeeping in Trouble: Lessons Learned from the Former<br />
Yugoslavia, Aldershot, Ashgate, 1998, p. 159.<br />
41 Ibid.<br />
31
32<br />
A<br />
centralidade dos programas de Governação<br />
e Reforma do Sector de Segurança (RSS)<br />
nas agendas da cooperação internacional e,<br />
mormente, nos esforços de reconstrução pósconflito<br />
ou de processos de transição democrática<br />
ficou a dever-se a uma alteração paradigmática: a<br />
segurança não é mais exclusiva do Estado, nem<br />
como referente, nem como fornecedor; a segurança<br />
é humana. Isto trouxe implicações bem mais<br />
profundas do que aquelas que iremos abordar, mas<br />
do ponto de vista do sector de segurança isto<br />
significou a introdução de padrões e normas de<br />
governação, transparência e responsabilização, do<br />
primado do estado de direito, da sujeição da acção<br />
destas forças a agendas de direitos humanos e ao<br />
controlo civil, e à reconversão do modo como um<br />
sector de segurança é pensado, funciona e é<br />
monitorizado.<br />
O nexo segurança e desenvolvimento, a<br />
demonstração que sem paz não há desenvolvimento<br />
e que o desenvolvimento sem paz é apenas<br />
temporário, fez com que a comunidade internacional<br />
reconhecesse que tem que dar resposta a ambos<br />
os desafios, em simultâneo. A reforma dos sectores<br />
de segurança surge inserida neste esforço mais global<br />
de optimizar a eficácia da ajuda, tratar as causas<br />
profundas dos conflitos e perceber o que faz uma<br />
sociedade constituir-se com resiliência, como<br />
espaço democrático, de paz e com um projecto de<br />
desenvolvimento sustentável.<br />
Em Timor-Leste este é um projecto para gerações.<br />
Portugal é um parceiro privilegiado nesta construção<br />
e, não obstante os sucessos limitados até agora, há<br />
um caminho que deve continuar a ser percorrido, com<br />
ajustes, mas sempre com a certeza de que a viabilidade<br />
do estado, o desenvolvimento do país e a segurança<br />
do povo implicam uma profunda revisão e consequente<br />
reforma do sector de segurança.<br />
Da assistência militar<br />
tradicional à reforma<br />
do sector de segurança<br />
Mestre Mónica Ferro<br />
Os programas de RSS são novos na história da<br />
cooperação entre os Estados. O que é novo é o<br />
facto de a reestruturação e assistência nestas<br />
matérias ter deixado de ser vista como um exclusivo<br />
dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da<br />
Defesa, altamente politizada e focada na segurança<br />
do Estado e na assistência técnica e desenvolvimento<br />
de capacidades tecnológico-militares; e ter<br />
cessado a abordagem de soma-zero aos gastos<br />
militares, isto é, a ideia de que cortes nos gastos
militares se converteriam imediatamente em<br />
recursos disponíveis para o desenvolvimento.<br />
Enquanto a primeira abordagem é sintoma de Guerra<br />
Fria, a segunda traduz uma lógica simplista, datada,<br />
de certos programas, como os de ajustamento<br />
estrutural do Banco Mundial, em que a redução das<br />
despesas militares era, em si, uma coisa boa e<br />
proporcionaria ganhos de desenvolvimento.<br />
Foi o fim da Guerra Fria e a demonstração de que<br />
tal ligação entre a redução dos aparelhos de segurança<br />
e os ganhos em estabilidade política e em<br />
www.un.org (Reuters Photo by Cheryl Ravelo)<br />
desenvolvimento era, na melhor das hipóteses,<br />
contingente, e, com frequência, causa de mais<br />
instabilidade, podendo até levar à destruição dos<br />
aparelhos de segurança, tornando-os incapazes de<br />
garantirem a segurança interna e a defesa contra as<br />
ameaças externas, a ascensão de sociedades civis<br />
livres e organizadas, a afirmação do paradigma da<br />
segurança humana e de um novo pensamento sobre<br />
a RSS que fez desta o ponto de entrada privilegiado<br />
para a consolidação e fortalecimento de estados numa<br />
qualquer situação de fragilidade.<br />
Os países da Europa Central e de Leste, após 1989,<br />
foram os primeiros a executarem RSS em sentido actual,<br />
quando reorientaram as suas sociedades e as<br />
reformaram para poderem aderir à Organização do Tratado<br />
do Atlântico Norte (NATO) e à União Europeia<br />
(UE); para além de reorganizarem e reestruturarem as<br />
suas forças armadas e aparelhos de defesa, tiveram<br />
que desenvolver estruturas civis de monitorização e<br />
supervisão, reescrever conceitos e doutrinas,<br />
promover o envolvimento dos parlamentos no<br />
processo e mudar toda uma atitude e mentalidade típica<br />
do período bipolar que se encerrava.<br />
Esta RSS foi potenciada, desenvolvida em padrões,<br />
normas, boas práticas e inserida na agenda do<br />
desenvolvimento graças a iniciativas dos países<br />
nórdicos e da Holanda e do Departamento para o<br />
Desenvolvimento Internacional do governo britânico,<br />
e por organizações como a Organização para a<br />
Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE),<br />
que tem desenvolvido um trabalho conceptual e<br />
programático notável. A ONU e, mais recentemente, a<br />
UE têm levado a cabo projectos de RSS, bem como a<br />
NATO, a União Africana e outras organizações<br />
regionais, mas sem uma doutrina policial e militar que<br />
os sustente conceptualmente.<br />
O que é Reforma do Sector<br />
de Segurança<br />
A RSS é um conceito normativo e programático<br />
que visa reformar ou reconstruir o sector de segurança<br />
dos estados. Tem como ponto de partida um sector<br />
disfuncional que não garante a segurança ao estado<br />
e ao povo, ou ainda, sectores de segurança que são<br />
fontes de insegurança em si.<br />
A RSS é um esforço sistematizado, holístico<br />
abordando segurança e desenvolvimento como se<br />
de dois gémeos virtuosos se tratassem, de construir,<br />
reconstruir, reformar ou transformar sectores de<br />
segurança (onde se incluem todos os actores<br />
envolvidos no mesmo desde o Parlamento que faz as<br />
leis, aos Ministérios que as executam, aos agentes<br />
que a aplicam e aos organismos que supervisionam a<br />
33
34<br />
democraticidade e transparência deste processo e,<br />
ainda, às forças de segurança que operam à margem<br />
deste quadro de referência), tornando-os mais<br />
adequados aos desafios que os países têm que<br />
enfrentar: o desenvolvimento humano sustentável e<br />
a consolidação da paz.<br />
A governação do sector de segurança, de todas<br />
as entidades com um mandato legítimo para o exercício<br />
da força, e de todas as estruturas que a exercem à<br />
margem da lei ou mesmo competindo com o poder<br />
legítimo, num quadro de governação democrática de<br />
provisão de segurança humana é, por conseguinte, o<br />
No que diz respeito<br />
à Polícia, que após<br />
a crise de 2006<br />
tem recebido o grosso<br />
da atenção<br />
e dos recursos, é,<br />
mais uma vez<br />
Portugal que,<br />
ao lado da UNMIT<br />
e da UNPOL, mais apoia<br />
o processo de reforma<br />
fim último.<br />
Em Timor-Leste, a agenda de reforma é uma agenda<br />
típica de cenários de reconstrução pós-conflito,<br />
com tarefas como desarmamento, desmobilização e<br />
reintegração de antigos combatentes, desminagem,<br />
combate ao tráfico de armas ligeiras, justiça transitória,<br />
reforço do estado de direito, reforma da Polícia e das<br />
Forças Armadas, boas práticas para o sector de<br />
segurança e construção de um enquadramento<br />
legislativo adequado.<br />
A Reforma do Sector<br />
de Segurança em Timor-Leste<br />
O Sector de Segurança em Timor-<br />
Leste<br />
O sector de segurança em Timor-Leste é o produto<br />
de factores resultantes da ocupação indonésia, da<br />
UN Photo - Martine Perret<br />
A construção da Polícia Nacional de Timor Leste foi outra<br />
das prioridades do mandato da UNTAET.<br />
desmobilização da resistência, da actuação da<br />
Administração Transitória das Nações Unidas<br />
(UNTAET) na construção de um estado timorense e<br />
das decisões pós-independência.<br />
A construção das forças armadas de Timor-Leste<br />
foi feita com a desmobilização dos antigos<br />
combatentes das FALINTIL – que actuava na<br />
clandestinidade e em que muitos dos seus elementos,<br />
embora tivessem alguma experiência de combate, não<br />
tinham treino militar nem disciplina ou coesão, típicos<br />
de uma força organizada. Para além disso, alguns<br />
combatentes não “puderam ser integrados no novo<br />
exército, deixando-os ressentidos por terem sido<br />
deixados de fora e a sentirem-se desprezados 1 ”.<br />
Decidir quem ficava e com que posto no pequeno<br />
exército timorense foi uma fonte constante de<br />
tensões 2 .<br />
E mesmo a criação de forças armadas foi uma<br />
decisão pressionada pela evolução dos acontecimentos.<br />
Sérgio Vieira de Mello, o administrador<br />
transitório de Timor-Leste, reconheceu que antes de<br />
Setembro de 1999 a opção da equipa das Nações<br />
Unidas que acompanhava Timor era por um modelo<br />
tipo Costa Rica 3 . E, quando a violência de Setembro<br />
eclode, essa opção é afastada sem que essa equipa<br />
estivesse preparada para decidir o que fazer com as<br />
forças de guerrilha das FALINTIL, e para sequer<br />
pensar como criar um aparelho militar para um pequeno<br />
pobre país vizinho de um gigante 4 .<br />
A construção da Polícia Nacional de Timor Leste<br />
(PNTL) foi outra das prioridades do mandato da<br />
UNTAET 5 . Também aqui as Nações Unidas tinham<br />
experiência, mas não tinham doutrina ou filosofia<br />
própria, e tiveram que criar a PNTL com indivíduos<br />
sem experiência relevante e com elementos que
tinham sido membros da polícia indonésia acusados<br />
de corrupção e violações de direitos humanos. A<br />
PNTL acabou por incluir antigos membros da polícia<br />
indonésia ao lado de recrutas sem qualquer<br />
experiência e alguns postos elevados, incluindo o<br />
de comandante, foram ocupados por timorenses<br />
que tinham pertencido à polícia indonésia 6 .<br />
As sementes para as cisões e tensões dentro<br />
das forças de segurança estavam lançadas. A falta<br />
de estatuto da Polícia (que estava mal equipada e<br />
mal preparada), o descontentamento generalizado<br />
pelos salários baixos e falta de infra-estruturas e<br />
equipamento adequado, o ressentimento contra os<br />
que tinham trabalhado nas forças indonésias e as<br />
evidentes tensões entre os protagonistas políticos<br />
timorenses, em especial entre o Presidente da<br />
República e o Primeiro-Ministro, alimentaram um<br />
clima de instabilidade e frustração social. A crise de<br />
2006, a chamada “crise dos peticionários”, apenas<br />
veio juntar a este contexto as acusações de<br />
discriminação e politizar um conflito que nunca<br />
havia sido relevante: as rivalidades inter-regionais<br />
entre loromunus e lorosaes.<br />
A Crise dos peticionários<br />
Foi a crise de 2006, a tal dos<br />
peticionários, que fez com que a questão<br />
da Reforma do Sector de Segurança<br />
subisse ao topo da agenda timorense com<br />
carácter de urgência.<br />
A crise de 2006 é profundamente<br />
complexa e teve como catalisador<br />
o despedimento de cerca de 600<br />
soldados das F-FDTL, em<br />
Março de 2006, que<br />
reivindicavam não terem<br />
sido promovidos por<br />
motivos de discriminação.<br />
As manifestações em Díli, em Abril,<br />
rapidamente revelaram que os<br />
manifestantes estavam altamente politizados,<br />
alinhados partidariamente e que a questão tinha mais<br />
a ver com o controlo do poder político no país do<br />
que com a alegada discriminação. A mobilização de<br />
grupos de jovens foi o corolário da exploração política<br />
do descontentamento provocado pela falta de<br />
emprego e de oportunidades de uma larga maioria<br />
da população. Em 28 de Abril, quando a violência<br />
eclodiu, as imagens de jovens, polícias e forças armadas<br />
combatendo nas ruas deixou prever o pior:<br />
que a mais jovem nação do mundo estivesse a<br />
caminho de se tornar no seu mais recente Estado<br />
falhado 7 .<br />
O saldo final da crise foi um sector de segurança<br />
desacreditado, disfuncional e um pedido de apoio<br />
internacional para a reposição da ordem e da paz em<br />
Timor. Timor-Leste não foi capaz de lidar com os<br />
problemas que esta crise pôs a descoberto; as<br />
demissões de Xanana Gusmão e de Mari Alkatiri<br />
levaram o país a eleições antecipadas e os problemas<br />
do sector de segurança foram relegados para<br />
segundo plano, preparando o cenário para os<br />
atentados de Fevereiro de 2008 e prolongando a<br />
situação das pessoas internamente deslocadas que<br />
apenas agora regressaram a casa. Um exemplo cabal<br />
de que procrastinar apenas torna a solução mais<br />
difícil.<br />
A Revisão e Reforma do Sector<br />
de Segurança<br />
O mês de Abril de 2006 revelou a ausência de<br />
uma política de segurança nacional e graves falhas<br />
na legislação sobre segurança; uma polícia com baixo<br />
prestígio e um excesso de interferência política na<br />
sua actuação; falta de transparência e de mecanismos<br />
de controlo político, tais como supervisão parlamentar<br />
e judicial para ambas as forças de segurança.<br />
Uma crise que estava à espera de acontecer.<br />
Ao estabelecer a<br />
UNMIT, o<br />
Conselho de<br />
Segurança<br />
advoga explicitamente<br />
necessidade<br />
de uma<br />
revisão integrada<br />
do sector<br />
de segurança8<br />
. O relatório<br />
do SG, do mesmo mês,<br />
afirma que a superação da crise<br />
recente implicava uma abordagem<br />
holística ao sector de segurança, em que<br />
se identificassem as necessidades e futuros<br />
papéis da polícia e das forças armadas, bem como as<br />
formas pelas quais se pudesse transformar uma<br />
relação competitiva numa relação cooperativa9 e 10 untaet-cap www.diggerhistory.info.jpg<br />
.<br />
Está assim montado o palco para que a RSS fosse<br />
a protagonista dos esforços de cooperação<br />
internacional.<br />
Em Timor-Leste estão em curso vários programas<br />
de RSS executados por organizações internacionais<br />
ou bilateralmente. A falta de coordenação entre<br />
doadores internacionais tem-se revelado contraproducente<br />
e apenas o novo paradigma que parece<br />
surgir, em que o governo se apropria dessa<br />
coordenação, parece poder resgatar alguma eficácia<br />
35
36<br />
dos processos em curso.<br />
As áreas de reforma mais activas são a das<br />
forças armadas, da polícia, do sistema de justiça, a<br />
inclusão de uma dimensão de género e de direitos<br />
humanos nas boas práticas para o sector, a justiça<br />
transitória com ênfase no apuramento da verdade e<br />
o fim da impunidade e, ainda, a criação de<br />
capacidades nacionais para a governação do sector<br />
de segurança 11 .<br />
A reforma das F-FDTL tem sido executada no<br />
âmbito da cooperação bilateral com Portugal, ao<br />
lado da Austrália, a serem os grandes parceiros de<br />
Timor. Portugal tem disponibilizado recursos,<br />
consultores e formadores e todo o tipo de assistência<br />
solicitada. O Secretário de Estado da Defesa<br />
timorense afirma que o modelo para a formação<br />
militar básica em Timor será o “sistema português,<br />
o qual se rege pelos padrões da NATO, podendo a<br />
formação especializada basear-se no sistema de<br />
outros países” 12 . Também o Brasil e a China se<br />
posicionam como interessados em aprofundar a<br />
cooperação nestas áreas.<br />
No que diz respeito à Polícia, que após a crise<br />
de 2006 tem recebido o grosso da atenção e dos<br />
recursos, é mais uma vez Portugal que, ao lado da<br />
UNMIT e da UNPOL 13 , mais apoia o processo de<br />
reforma. A liderança timorense favorece um sistema<br />
de polícia tipo português (Ramos-Horta já declarou<br />
publicamente que o modelo da Guarda Nacional<br />
Republicana é o que melhor se adequa a Timor-<br />
Leste) e Portugal tem prestado aconselhamento nas<br />
várias fases de constituição da Polícia, desde o<br />
processo legislativo até o recrutamento, certificação<br />
e formação. Austrália e Nova Zelândia são, também,<br />
parceiros relevantes nesta matéria.<br />
A inclusão de uma dimensão de género na<br />
Polícia, de uma cultura de direitos humanos nas<br />
forças armadas são processos de formação<br />
demorados e cujos resultados poderemos aferir a<br />
médio prazo. A realização de workshops e de acções<br />
de formação têm dado frutos muito limitados.<br />
A questão do apuramento da verdade e fim da<br />
impunidade é um assunto que tem sido muito<br />
controverso, sobretudo face à ausência de quaisquer<br />
consequências das conclusões da Comissão<br />
de Acolhimento, Verdade e Recepção, e à inclinação,<br />
de alguma liderança timorense para uma prática de<br />
amnistias que em nada favorece a justiça transitória,<br />
não contribui para a reconciliação nacional e gera,<br />
na população, a sensação de que os elementos das<br />
forças de segurança e do governo estão imunes à<br />
O forte investimento que o Governo está a fazer em infraestruturas<br />
e equipamento para as forças de segurança<br />
melhorará a eficácia das mesmas e aumentará a auto-estima<br />
dos seus elementos.<br />
UN Photo - Martine Perret<br />
UN Photo - Martine Perret<br />
Ramos-Horta declarou que o modelo da GNR é o que melhor<br />
se adequa a Timor-Leste.<br />
justiça.<br />
Da perspectiva da acção multilateral, a UNMIT<br />
tem uma Unidade de Apoio à RSS e a equipa das<br />
Nações Unidas no terreno gere três programas<br />
exclusivamente centrados no sector de segurança.<br />
Como já referimos, a RSS é definida pela ONU<br />
como uma área fundamental para a consolidação<br />
do estado e na resolução que estende o mandato<br />
da UNMIT até Fevereiro de 2010 é reafirmada a<br />
importância de clarificar os papéis e responsabilidades<br />
das F-FDTL e da PNTL, de modo a fortalecer<br />
os quadros legais e melhorar os mecanismos civis<br />
de fiscalização e responsabilização de ambas as
instituições de segurança, é solicitado à UNMIT que<br />
continue a apoiar o Governo de Timor-Leste nestes<br />
esforços 15 .<br />
Para este efeito, destacamos o programa de revisão<br />
e levantamento das necessidades do sector de<br />
segurança 16 , o programa de apoio ao desenvolvimento<br />
de uma capacidade nacional para uma boa governação<br />
do sector de segurança 17 e, ainda, o Projecto de Justiça<br />
também do PNUD 18 .<br />
De facto, há uma evidente abundância de<br />
parceiros e de programas de RSS em Timor-Leste sem<br />
que a coordenação esteja assegurada ou a<br />
sobreposição seja evitada. Neste sentido, os esforços<br />
recentes do governo de apropriação do processo<br />
parecem-nos um passo na direcção certa.<br />
RSS made in Timor-Leste<br />
O governo timorense, no seu programa (com uma<br />
parte intitulada especificamente Reforma do Sector<br />
de Segurança) na forma como constitui o seu<br />
organograma e nas suas declarações revela vontade<br />
de construir uma capacidade nacional para gestão e<br />
governação do seu sector de segurança. Esta evolução<br />
é resultado de dois fluxos de sinal divergente: por um<br />
lado, a desejável timorização do processo que significa<br />
que têm que ser os timorenses, em processos<br />
inclusivos, apartidários, a consensualizarem quais são<br />
as suas necessidades de segurança e quais os meios<br />
que deverão ser cativados para garantia da mesma;<br />
pelo outro, algum desconforto e descrédito na forma<br />
como os actores internacionais o têm estado a fazer,<br />
de cima para baixo, de fora para dentro, mais orientados<br />
pelas suas agendas do que para as necessidades do<br />
beneficiário 19 .<br />
A criação do Grupo para a Reforma e Desenvolvimento<br />
do Sector de Segurança é sintomático desta<br />
mudança de paradigma. Para além desta, há várias<br />
reformas a destacar: o Decreto-Lei que aprova a Lei<br />
Orgânica do Ministério da Defesa e da Segurança, a<br />
Proposta de Lei de Segurança Nacional (que regulamenta<br />
a cooperação entre a PNTL, as F-F-DTL e a<br />
Protecção Civil), a Revisão da Lei do Serviço Militar<br />
(e respectiva regulamentação), a Proposta de Lei de<br />
Defesa Nacional. Em fase de aprovação encontramse<br />
diplomas relevantes, tais como a Lei da Programação<br />
Militar e o Código de Justiça Militar; a definição<br />
de um novo Conceito e Sistema de Formação e a<br />
criação de um novo Conceito de Emprego das Forças<br />
Armadas. O forte investimento que o Governo está a<br />
fazer em infra-estruturas e equipamento para as forças<br />
de segurança melhorará a eficácia das mesmas e<br />
aumentará a auto-estima dos seus elementos.<br />
São passos no caminho certo, mas que não<br />
dispensam a monitorização e aconselhamento<br />
internacional no que diz respeito a ajudar os timorenses<br />
a escolherem o melhor modelo para o seu sector<br />
de segurança e a sujeição destes a boas práticas<br />
identificadas.<br />
O caminho em diante<br />
O caminho em diante foi o título do primeiro<br />
relatório de desenvolvimento humano de Timor-<br />
Leste, em 2002. Além de ter identificado a pobreza<br />
como o principal desafio que Timor-Leste teria que<br />
vencer, o Relatório demonstra como um compromisso<br />
com o desenvolvimento humano pode pôr o<br />
país num caminho de paz e prosperidade. É esse<br />
compromisso que tem que ser recuperado, reconhecendo<br />
que sem segurança nenhum dos dividendos<br />
da paz será sustentável, como a destruição de<br />
infra-estruturas e o elevado número de pessoas<br />
internamente deslocadas, provocados pela crise de<br />
2006, tão bem demonstraram.<br />
Construir um sector de segurança eficiente e<br />
eficaz, profissional, integrando todos grupos<br />
diferenciados do país, cumprindo uma agenda de<br />
direitos humanos, sujeito ao primado do direito e a<br />
mecanismos de controlo parlamentar e civil e a<br />
padrões e normas internacionais de boa governação<br />
é uma missão quase impossível, sobretudo num<br />
estado em situação de fragilidade como é Timor-<br />
Leste. Uma reforma tão profunda como a que é<br />
necessária implicaria uma espécie de pausa na<br />
segurança – uma situação em que o país pararia e<br />
cessariam as necessidades de segurança enquanto<br />
se procederia à reforma. Na impossibilidade deste<br />
cenário, as forças de segurança têm que ser<br />
reformadas enquanto executam o seu papel que<br />
também vai sendo reformado, acrescentando mais<br />
desafios a um processo que nunca é simples, nem<br />
rápido, nem passível de ser aprendido num sítio e<br />
aplicado a outro, de tão distintas que são as<br />
condições no terreno.<br />
Não obstante estes constrangimentos, há uma<br />
série de recomendações que Timor-Leste e os seus<br />
parceiros podem seguir tentando optimizar recursos<br />
e resultados.<br />
A RSS é um processo de longa duração, de<br />
gerações, com medidas de impacto rápido, mas que<br />
devem ser sempre pensadas para cada caso concreto<br />
e de forma sustentável. Esta sustentabilidade<br />
é garantida pelo empenho das lideranças nacionais,<br />
pela definição de objectivos claros, pela programação<br />
e financiamento adequados, mas também por<br />
alguma flexibilidade do projecto original que<br />
permita adapta-lo às dinâmicas de cada caso.<br />
Como Timor-Leste já o demonstrou antes, a<br />
vontade de devolver o poder e as responsabilidades<br />
37
A vontade de devolver o poder e as responsabilidades às autoridades nacionais não deve traduzir-se em saídas precipitadas<br />
e sem estratégia.<br />
às autoridades nacionais não deve traduzir-se em<br />
saídas precipitadas e sem estratégia. Isto significa que<br />
os doadores internacionais devem estar preparados<br />
para sair, mas apenas quando os padrões<br />
internacionais tiverem sido atingidos. A programação<br />
deve ter este desígnio muito presente.<br />
As organizações internacionais que não tenham<br />
doutrinas militares e policiais definidas (não obstante<br />
os recursos e a experiência que possuam) devem<br />
abster-se de liderar missões de construção de<br />
capacidade nacionais para boa governação do sector<br />
de segurança. Em Timor, uma das críticas que se ouve<br />
é que cada acção de formação tem a marca da<br />
nacionalidade do formador, precisamente porque as<br />
Nações Unidas não têm uma doutrina que os enquadre<br />
a todos. Aqui, a competição entre modelos e agendas<br />
nacionais é uma constante.<br />
A coordenação internacional deverá ser preparada<br />
desde o planeamento e não tentada no terreno. O que<br />
as experiências demonstram é que os doadores não<br />
comunicam entre si e raramente reconhecem que o<br />
modelo do outro é melhor do que o seu. Assim, a<br />
apropriação nacional dos programas e da sua<br />
coordenação, possibilitada pela construção de<br />
capacidades nacionais para o efeito, parece ser a<br />
resposta a essa descoordenação.<br />
Esta preparação do governo para assumir as suas<br />
responsabilidades passa por uma mudança de atitude<br />
da comunidade de doadores que deverá permitir que<br />
sejam os próprios timorenses a escolher quais os<br />
modelos de polícia, de forças armadas, de sistema<br />
judicialque preferem, bem como de quem querem que<br />
os ajude a implementá-los. A solução chave na mão,<br />
38<br />
do tipo aqui têm um modelo e um agente de<br />
implementação, e que tem sido seguida em relação a<br />
Timor, tem sido rejeitada pelas lideranças políticas e<br />
militares locais.<br />
Mais uma vez a solução é timorizar o processo:<br />
construir capacidades para que o governo, o parlamento,<br />
o sistema judicial, a sociedade civil e todos os<br />
outros actores saibam identificar as suas necessidades<br />
de segurança, escolher de entre todas as opções<br />
disponíveis o modelo que melhor se lhes adapta e, de<br />
acordo com normas internacionais exigentes,<br />
escolherem e trilharem o seu próprio caminho.<br />
O caminho em diante é cheio de obstáculos, mas<br />
fazendo justiça e reforçando o estado de direito, a boa<br />
governação e reforma do seu sector de segurança<br />
serão uma consequência e uma etapa para um Timor-<br />
Leste mais desenvolvido, mais pacífico e mais seguro.<br />
O preço de não escolher este caminho será a próxima<br />
crise.JE<br />
1 Initiative for Peacebuilding, Country Case Study: Timor-<br />
Leste, Security Sector Reform in Timor-Leste, Junho 2009, p. 8.<br />
2 Mónica Ferro, “Chasing Failure Away in Timor-Leste,”<br />
DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos,<br />
12, 2007, Instituto do Oriente, Lisboa, http://ioriente.<br />
iscsp.utl.pt/revista_12.pdf p. 94<br />
3 Idem.<br />
4 Sérgio Vieira de Mello, UNTAET: Lessons to learn for<br />
future United Nations Peace Operations, Presentation to the<br />
Oxford University European Affairs Society, Oxford, 26 de<br />
Outubro de 2001<br />
5 Cfr. UNTAET Press Office, Fact Sheet 6 – Law and<br />
Order, Abril 2002.<br />
UN Photo - Martine Perret
6 Initiative for Peacebuilding, SSR in Timor-Leste, op.<br />
cit., p. 9.<br />
7 Mark Forbes, “A nation ruled by the gun,” The Age, 21<br />
Maio 2006.<br />
8 S/RES/2006/1704, 25 Agosto 2006.<br />
9 S/RES/2006/628, para. 62<br />
10 A Comissão de Inquérito que investigou as causas da<br />
crise de 2006 concluiu que o governo não tinha sido<br />
suficientemente proactivo no tratamento da falta de uma<br />
política nacional de segurança e dos problemas evidentes<br />
entre a polícia e as forças armadas. “Report of the United<br />
Nations Independent Special Commission of Inquiry for<br />
Timor-Leste (CoI)”, 2 Outubro 2006 disponível in<br />
www.ohchr.org/english/countries/tp/docs/CoIReport-<br />
English.pdf<br />
11 Mónica Ferro, Reinaldo Hermenegildo Saraiva, “Re/<br />
Formação do Sector de Segurança em Timor-Leste,”<br />
DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos,<br />
14, 2009, no prelo.<br />
12 Júlio Tomás Pinto, “A Reforma do Sector de Segurança,<br />
Enfrentado desafios, alcançando o progresso de Timor-<br />
Leste”, 20 de Agosto de 2009, disponível in http://forumhaksesuk.blogsopt.com/2009/08/reforma-do-sector-daseguranca.html<br />
13 A UNPOL é chefiada pelo Intendente Luís Carilho.<br />
Para uma análise e crítica da actuação da UNPOL na<br />
reabilitação, reconstrução e reforma (RRR) da PNTL ver,<br />
entre outros, Nicolas Lemay-Hébert, “UNPOL and Police<br />
Reform in Timor-Leste: Accomplishments and Setbacks,”<br />
International Peacekeeping, 16:3, pp. 393-406.<br />
14 A S/2009/72, para. 21., estabelece como critérios para<br />
essa transferência a capacidade de a polícia nacional responder<br />
adequadamente ao ambiente de segurança num determinado<br />
distrito; a certificação final de pelo menos 80% dos oficiais<br />
de polícia nacional elegíveis num determinado distrito ou<br />
unidade; a existência de certos requisitos iniciais operacionais<br />
e logísticos; e estabilidade institucional que inclui, entre outros,<br />
a capacidade para exercer o comando, controlo e a sua<br />
aceitação pela comunidade.<br />
15 S/RES/1867 (2009), 26 de Fevereiro de 2009.<br />
16 Security Sector Review in Timor-Leste, Disponível in<br />
http://unmit.unmissions.org/Portals/UNMIT/SSR/<br />
Project%20document%20for%20SSR%20signed%<br />
2013June2008.pdf.<br />
17 Projecto coordenado pela União Europeia e pelo<br />
PNUD, executado pelo PNUD em Timor-Leste, intitulado:<br />
Security Sector Review in Timor-Leste – Capacity Development<br />
Facility, assinado em Dezembro de 2008.<br />
18 PNUD “Enhancing the Democratic Rule of Law<br />
through Strengthening the Justice System in Timor-Leste”<br />
programme,” assinado em Dezembro de 2008.<br />
19 Yoshino Funaki, The UN and Security Sector Reform<br />
in Timor-Leste: A Widening Credibility Gap, Center on International<br />
Cooperation, Maio 2009, disponível in http://<br />
fundasaunmahein.files.wordpress.com/2009/07/funakitimor-ssr-final.pdf.<br />
39
40<br />
Tenente-Coronel de Artilharia<br />
Joaquim Luís Correia Lopes<br />
Não será necessário trovejar para evocarmos<br />
Santa Bárbara, porque estará sempre<br />
presente na memória de todos e fundamentalmente,<br />
na dos Artilheiros − a sua Santa protectora e<br />
Padroeira.<br />
Mas, talvez na memória dos mais novos<br />
(artilheiros), se possa depreender que Santa<br />
Bárbara sempre foi a Padroeira da Artilharia<br />
Portuguesa, porque na realidade fez exactamente<br />
cinquenta anos que, por despacho de 14 de Abril<br />
de 1959, o Sub-secretário de Estado do <strong>Exército</strong>,<br />
escolheu Santa Bárbara como Padroeira da<br />
Artilharia Portuguesa e 4 de Dezembro, o dia da<br />
Escola Prática de Artilharia.<br />
Parafraseando as palavras do Coronel de<br />
Artilharia, Marino da Cunha Sanches Ferreira, nos<br />
seus comentários na Revista de Artilharia de<br />
Agosto de 1959 (pág. 59), diríamos “vamos<br />
recolocar os pontos nos ii”.<br />
Santa Bárbara viveu na época do imperador<br />
romano Diocleciano. Nascido em 244 na costa da<br />
Dalmácia (Croácia), Diocleciano era de origem muito<br />
humilde. Seu pai foi escriba, talvez mesmo um<br />
antigo escravo de um rico senador. Aparentemente,<br />
recebeu pouca educação para além daquela tida,<br />
no seu tempo, como elementar.<br />
Os primeiros anos de vida de Diocleciano foram<br />
vividos em contexto de falência do Império Romano,<br />
graça a desmazelos internos e externos. Os<br />
imperadores sucediam-se com frequência, sendo<br />
assim a presença de “Deus na Terra” marcada pela<br />
instabilidade e diversidade; concediam grandes<br />
aumentos aos militares ou a quem militasse nos<br />
seus <strong>Exército</strong>s, a fim de “comprar o seu apoio”.<br />
Neste contexto, Diocleciano procurou também<br />
a fortuna nas legiões. Durante esse período, provou<br />
ser astuto, hábil e ambicioso. Foi nomeado “dux da<br />
Mésia” (uma província na margem do baixo
Danúbio), com responsabilidades na defesa das<br />
fronteiras do império. Era um oficial prudente e<br />
metódico, tendo sido mais tarde promovido a<br />
comandante de Cavalaria da guarda pessoal imperial<br />
− posto este que o colocava na condição de virtual<br />
candidato ao trono imperial e mais tarde, por volta<br />
de 283, foi nomeado cônsul.<br />
Com a morte do Imperador Caro, o poder ficou<br />
entregue aos seus dois jovens filhos, Numeriano<br />
no Leste e Carino no Ocidente. Num curto período<br />
Foi na primeira<br />
metade do século XIV<br />
que se iniciou o culto<br />
dos militares à gloriosa<br />
Santa Bárbara<br />
de tempo, Numeriano morreu sob circunstâncias<br />
misteriosas e, em 285, Carino foi morto em combate<br />
perto de Belgrado passando, desde então,<br />
Diocleciano a controlar todo o império.<br />
Diocleciano reabilitou as velhas tradições,<br />
incentivando o culto dos deuses antigos. Perseguiu<br />
os maniqueus, que praticavam uma religião de<br />
origem persa. Empreendeu aquela que é conhecida<br />
por alguns historiadores eclesiásticos como a<br />
penúltima grande perseguição levada a cabo pelo<br />
Império Romano contra o Cristianismo: foi a Era<br />
dos Mártires.<br />
Santa Bárbara viveu na época do imperador romano<br />
Diocleciano<br />
fonte: www.infopedia.pt<br />
A primeira perseguição a todo o espaço imperial<br />
aconteceu sob o “governo” de Maximino, mas o<br />
seu clímax deu-se no tempo de Diocleciano, no final<br />
do século III e início do IV. Esta é considerada a<br />
maior de todas as perseguições. Proibiu as práticas<br />
cristãs e emitiu ordem de prisão ao clero. Aquela<br />
perseguição intensificou-se até que ordenou a<br />
todos os cristãos do Império que se sacrificassem<br />
aos deuses imperiais, sob pena de execução em<br />
caso de recusa.<br />
O termo “Mártir”, de origem grega, que significa<br />
“testemunha”, é aplicado àqueles que morrem<br />
defendendo o Evangelho. Corria então o ano de<br />
303, em que os cristãos foram perseguidos, na justa<br />
medida da sua rejeição aos deuses do Império<br />
Romano e ao culto do imperador. Destas perseguições<br />
e consequentes mártires, dois nomes se<br />
evidenciaram, sendo venerados até aos nossos dias,<br />
particularmente pelos Artilheiros: Santa Bárbara e<br />
São Sebastião.<br />
Santa Bárbara<br />
Foi em Nicomédia (hoje Izmit), capital da antiga<br />
província romana da Bitínia (território actualmente<br />
integrado na Turquia), no séc. III, que nasceu e<br />
viveu Santa Bárbara, sendo também testemunho<br />
do seu martírio.<br />
Os artilheiros escolheram-na como a Santa Padroeira no<br />
início de 1529.<br />
fonte: wikimedia.commons<br />
41
42<br />
Bárbara era filha única de Dióscoro, um rico<br />
comerciante. Ambos eram pagãos. Cioso da beleza de<br />
sua filha, para que ela não tivesse contacto com algum<br />
jovem diferente do tipo que pretendia para seu genro<br />
e para que não sofresse a influência do Cristianismo,<br />
Dióscoro mandou construir uma torre na sua<br />
propriedade e para lá enviou Bárbara. A vigiá-la,<br />
colocou pajens e damas de companhia, seus leais<br />
seguidores, alegando que a filha precisava de<br />
recolhimento para se entregar aos estudos.<br />
Após a instalação de Bárbara na torre, Dióscoro<br />
partiu para uma longa viagem de negócios pelas ilhas<br />
do mar Egeu, permanecendo fora de casa<br />
aproximadamente um ano. Entretanto, Entrementes, o<br />
velho cristão preceptor de retórica, instruía Bárbara<br />
nas verdades cristãs, o que a levou a aceitar o<br />
Cristianismo, a pedir e a receber o baptismo.<br />
Quando o pai voltou encontrou Bárbara,<br />
exuberante nos seus 20 anos, mas logo foi informado<br />
das transformações ocorridas na vida da filha,<br />
incluindo a sua recusa em casar, o que o terá levado a<br />
repreendê-la severamente. Bárbara, conhecendo a ira<br />
do pai, fugiu de casa, mas rapidamente foi encontrada.<br />
Sabendo pela própria filha que se tornara cristã,<br />
acusou-a perante as autoridades e entregou-a para<br />
ser presa. Houve tentativas fracassadas para fazê-la<br />
mudar de ideias, incluindo torturas horríveis. Bárbara,<br />
todavia, permanecia impassível. Foi então condenada<br />
à decapitação.<br />
Alguns historiadores afirmam que o próprio<br />
Dióscoro teria solicitado ao governador Marciano para<br />
ser o executor da sentença. Outros, referem que o<br />
governador, surpreso diante da obstinação de Bárbara,<br />
teria insinuado que o pai era o principal acusador da<br />
filha e fosse também o seu algoz, o seu executor.<br />
Bárbara foi então decapitada pelo próprio pai,<br />
Dióscoro.<br />
Conta-se, então, que após a execução da mártir,<br />
no alto de uma colina, uma tremenda tempestade se<br />
abateu sobre o local. Naquele instante, seu pai foi<br />
atingido por um raio, tendo morte imediata. Por isso,<br />
devido às circunstâncias em que ocorreu o seu<br />
martírio, Santa Bárbara é invocada como protectora<br />
contra tempestades, temporais e tormentas.<br />
O martírio de Bárbara aconteceu em Nicomédia, a<br />
4 de Dezembro, provavelmente no ano de 235, primeiro<br />
ano do reinado do cruel Maximino.<br />
Santa Bárbara foi homenageada desde os tempos<br />
antigos, pelos sírios, gregos e latinos. Inicialmente,<br />
como uma protectora das obras e torres fortificadas,<br />
tornando-se padroeira dos militares, após a invenção<br />
da pólvora. Foi a divina protectora dos soldados que<br />
detinham a força e os depósitos das armas de guerra,<br />
bem como dos marinheiros que tinham à sua guarda<br />
os explosivos existentes a bordo dos navios.<br />
Fonte: almocreve.blogs.sapo.pt<br />
Bárbara foi decapitada pelo próprio pai, Dióscoro.<br />
De salientar que, embora a pólvora negra fosse já<br />
conhecida pelos chineses nos primeiros séculos da<br />
Era cristã, apenas era utilizada em fogos de artifício,<br />
aparecendo na Europa como pólvora e como um meio<br />
de destruição só no século XIV.<br />
Foi precisamente na primeira metade deste século<br />
que se iniciou o culto dos militares à gloriosa Santa<br />
Bárbara. Os artilheiros escolheram-na como a Santa<br />
Padroeira no início de 1529. O Papa Pio XII, em 4 de<br />
Dezembro de 1951, proclamou solenemente Santa<br />
Bárbara de Nicomédia, Celestial Padroeira dos<br />
Artilheiros, Marinheiros, Engenheiros e Bombeiros,<br />
estendendo-se mais tarde o culto da Santa aos doentes<br />
e a todas as pessoas com deficiência, tais como os<br />
leprosos e os moribundos.<br />
Na iconografia cristã, Santa Bárbara é geralmente<br />
apresentada como uma virgem, alta, majestosa, com<br />
uma palma que significa o martírio, um cálice como<br />
símbolo de sua protecção em favor dos moribundos<br />
e, ao lado, uma espada, instrumento da sua morte.<br />
No século VI, as relíquias de Santa Bárbara foram<br />
transladadas para Constantinopla. No século XII, a<br />
filha do Imperador Bizantino Aleixo Comenes, a<br />
princesa Bárbara, após contrair matrimónio com o<br />
príncipe russo Miguel Izyaslavich, transladou-as para
Fonte: S.Sebastião, 1535-40 Museu de Grão Vasco Viseu, Portugal<br />
Kiev, capital da actual Ucrânia, local onde hoje as<br />
suas santas relíquias descansam na Catedral de São<br />
Valdomiro.<br />
São Sebastião e Nossa<br />
Senhora da Saúde<br />
São Sebastião nasceu em França no ano de 256.<br />
Era originário de Narbonne, mas foi criado pela sua<br />
mãe na cidade de Milão, em Itália. O seu nome deriva<br />
do grego Sebastós, que significa divino, venerável.<br />
Sebastião era um soldado que se alistou no exército<br />
romano por volta de 283 com a única intenção de<br />
afirmar o coração dos cristãos, enfraquecidos diante<br />
das torturas. Era apreciado pelos imperadores<br />
Sebastião era um soldado que se alistou no exército romano<br />
por volta de 283 com a única intenção de afirmar o coração<br />
dos cristãos.<br />
Diocleciano e Maximino, que o queriam sempre<br />
próximo; ignorando tratar-se de um cristão,<br />
designaram-no capitão da sua guarda pessoal − a<br />
Guarda Pretoriana.<br />
Por volta de 286, a sua conduta branda para com<br />
os prisioneiros cristãos levou o imperador a julgá-lo<br />
sumariamente como traidor, tendo ordenado a sua<br />
execução.<br />
Entregue a um grupo de arqueiros da Mauritânia,<br />
para que se divertissem atirando flechas para o seu<br />
corpo amarrado a um tronco, foi crivado daqueles<br />
artefactos e depois abandonado como morto, para<br />
ser devorado pelos abutres, conforme também era<br />
habitual nessa altura. Uma cristã, Irene, em segredo,<br />
São Sebastião, de Guido Rurei (séc XVII), Museu do Palácio Rosso de Génova<br />
foi retirar o corpo de Sebastião a fim de lhe dar uma<br />
sepultura digna e, para surpresa sua, viu que estava<br />
vivo.<br />
Sebastião depois de curado, não só não fugiu<br />
para longe do Império, como se pôs a confirmar e a<br />
proclamar a fé cristã, levando outros a crerem em<br />
Jesus. Tendo recebido a notícia de que Sebastião<br />
estava vivo e a provocar os deuses, Diocleciano<br />
ordenou que o aprisionassem; preso, foi condenado<br />
ao espancamento até a morte e decapitado no dia<br />
20 de Janeiro, sendo o seu corpo lançado numa<br />
fossa.<br />
Sabendo do ocorrido, uma cristã, chamada Lucina,<br />
descobriu onde estava o corpo, foi buscá-lo e<br />
sepultou-o no lugar chamado ad catacumbas, na Via<br />
Ápia. Nessas catacumbas, fora dos muros da cidade<br />
de Roma, em 288, tinham sido exumadas as relíquias<br />
dos apóstolos Pedro e Paulo e foi aí que o apóstolo<br />
dos mártires foi também sepultado. Corriam os<br />
primeiros anos do século IV, talvez o ano 303-304,<br />
quando São Sebastião se tornou Mártir.<br />
Mais tarde, no ano de 680, as suas relíquias foram<br />
solenemente transportadas para a Basílica de S. Paulo,<br />
construída pelo Imperador Constantino, onde se<br />
encontram até aos dias de hoje.<br />
Naquela altura, Roma estava assolada por uma<br />
terrível peste que vitimou muita gente. Curiosamente,<br />
a epidemia desapareceu a partir do momento da<br />
transladação dos restos mortais deste mártir, pelo que<br />
43
44<br />
passou a ser venerado como padroeiro contra a peste,<br />
a fome e a guerra.<br />
Foi sobretudo no século XVI que o culto a São<br />
Sebastião se intensificou no nosso País. D. Sebastião<br />
foi, aliás, baptizado com o seu nome, em 1554, por ter<br />
nascido em 20 de Janeiro, dia em que se assinala a<br />
morte do mártir. São Sebastião constitui-se, assim<br />
como o patrono de todos os Artilheiros desde o início<br />
do séc. XVI.<br />
No princípio do século XVI, a classe militar foi<br />
particularmente atingida pela peste, pelo que os<br />
artilheiros invocaram o auxílio de São Sebastião, tido<br />
como protector contra a peste, a fome e a guerra. À<br />
data, os artilheiros da Corte, instalados no Castelo de<br />
S. Jorge, em Lisboa, agradeceram ao seu santo protector<br />
por os ter poupado e constituíram a Irmandade<br />
de São Sebastião. Os artilheiros da Guarnição de<br />
Lisboa, denominados por bombardeiros, mandaram<br />
erguer em 1505, uma pequena ermida dedicada a São<br />
Sebastião, padroeiro e advogado da peste, em<br />
cumprimento da promessa feita ao mártir pelo fim da<br />
epidemia, que nesse ano assolou toda a cidade, tendo<br />
vitimado muitos habitantes.<br />
Mais tarde, em 1569, a peste provocou novamente<br />
uma enorme mortandade em Lisboa: morreram 50 a<br />
60 mil pessoas, numa população de 120 mil habitantes.<br />
Segundo relatos da época, registavam-se por dia mais<br />
de 600 funerais. A epidemia era de tal ordem que, como<br />
havia falta de gente para enterrar os mortos, foi<br />
necessário libertar os presos para esta missão. El-Rei<br />
D. Sebastião e parte da Corte refugiaram-se em Sintra<br />
e a rainha D. Catarina, sua avó, foi para Alenquer. Em<br />
pânico, o povo e a nobreza de Lisboa invocaram em<br />
seu auxílio a Mãe do Céu. Por esse motivo, D.<br />
Sebastião terá pedido uma relíquia significativa de S.<br />
Sebastião, para que a mortandade provocada pela<br />
cólera tivesse um fim, pelo que terá sido enviado de<br />
Roma um braço de São Sebastião.<br />
Assim, e após a chegada das relíquias de São<br />
Sebastião, a peste reduziu-se e como foram atendidos<br />
nas suas preces, mandaram, em prova de gratidão,<br />
fazer uma imagem da Virgem, que foi benzida com o<br />
nome de Nossa Senhora da Saúde. A imagem ficou<br />
então exposta à veneração pública na ermida do<br />
Colégio de Jesus dos Meninos Órfãos.<br />
A 20 de Abril de 1570, teve lugar a primeira<br />
procissão em honra de Nossa Senhora da Saúde,<br />
decorrendo sem interrupções, durante 341 anos −<br />
desde 1570 até 1910, sempre com grande pompa<br />
religiosa e militar (apelidada variadíssimas vezes por<br />
Procissão dos Artilheiros). Com a implantação da<br />
República, seguiu-se um interregno que perdurou até<br />
21 de Abril de 1940, data em que se reatou esta antiga<br />
manifestação de fé e de religiosidade, permanecendo<br />
até aos dias de hoje.<br />
Fonte: Judah Benoliel, 1958, Arquivo Municipal de Lisboa – AFML A43114<br />
Ermida de Nossa Senhora da Saúde.<br />
Padroeira da Artilharia<br />
Por volta de 1959, o debate sobre quem deveria<br />
ser a padroeira da Artilharia entrou na temática dos<br />
números 405 e 406 da Revista de Artilharia. Num<br />
artigo da autoria do General Monteiro do Amaral,<br />
questionava-se qual o dia da Arma, qual a padroeira e<br />
qual o patrono da Artilharia Portuguesa.<br />
Por fim, em Agosto de 1959 no número 407/408 da<br />
Revista de Artilharia, o Coronel de Artilharia, Marino<br />
da Cunha Sanches Ferreira, num artigo intitulado<br />
“Pontos nos ii”, levanta e responde à temática iniciada<br />
pelo General Monteiro Amaral referindo:<br />
“Sabemos que por proposta do Exmº General<br />
Correia Leal, quando ocupava o lugar de Director<br />
da Arma, foi indicada Santa Bárbara para padroeira<br />
da artilharia portuguesa. Essa proposta foi enviada<br />
ao Estado-Maior do <strong>Exército</strong> e mandada submeter<br />
ao estudo da Comissão de História Militar, que lhe<br />
deve ter dado parecer favorável, visto que foi já<br />
oficialmente considerada como padroeira da<br />
Artilharia Portuguesa, afirmação esta baseada na<br />
leitura da Ordem de Serviço nº 106 de 4 de Maio<br />
último, da Escola Prática de Artilharia, assinada<br />
pelo seu Comandante, Coronel Carlos Vidal de<br />
Campos Andrada, que diz”:<br />
Art.º 17 − Dia Festivo da E.P.A. -<br />
Segundo comunica o Q.G. da 4ª R.M. em nota nº<br />
137/1 − P.º 219.2 de 27-4-59, foi o seguinte o despacho<br />
de Sua Excelência acerca do assunto em epígrafe:<br />
“1 − Informo V. Ex.ª que, por despacho de 14 do<br />
corrente de Sua Excelência o Subsecretário de Estado<br />
do <strong>Exército</strong>, é considerada Santa Bárbara como<br />
padroeira da Artilharia Portuguesa.<br />
2 − Deve, portanto o dia da E.P.A. ser transferido<br />
para 4 de Dezembro − Dia daquele Santo − e não para<br />
20 de Janeiro.”
Interior da Capela Real, na EPA.<br />
Em 4 de Dezembro de 1959, realizou-se a cerimónia<br />
de entronização da imagem de Santa Bárbara, na capela<br />
da Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas.<br />
No passado dia 4 de Dezembro de 2009, comemorou-se,<br />
assim, o cinquentenário da designação de<br />
Santa Bárbara como Padroeira da Artilharia Portuguesa<br />
e da sua casa Mãe. É, igualmente, de salientar<br />
que a Escola Prática de Artilharia, como escola mais<br />
antiga do <strong>Exército</strong> Português, celebrará em 18 de<br />
Março de 2011 os seus 150 anos de existência.JE<br />
Biografia<br />
Joaquim Luís Correia Lopes, Tenente-Coronel de<br />
Artilharia, ingressou na Academia Militar em 1984. Prestou<br />
serviço em várias Unidades, nomeadamente: Escola Prática<br />
de Artilharia, Centro de Classificação e Selecção de Lisboa,<br />
Campo Militar de Santa Margarida e Quartel General da RMS.<br />
Presentemente desempenha as funções de Chefe da Secção<br />
de Logística da EPA.<br />
Bibliografia<br />
FERRIL, Arther - A Queda do Império Romano, Rio de<br />
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989<br />
FINLEY, Moses I. - "O Imperador Diocleciano", in<br />
Aspectos da Antiguidade, Lisboa, Edições 70, 1989<br />
http://portalapui.com.br/paroquia/?page_id=5<br />
SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo, Dicionário<br />
da História de Lisboa, 1.ª ed.,<br />
http://www.monumentos.pt/Monumentos/forms/<br />
002_B1.aspx )<br />
http://www.ordemengenheiros.pt/Default.aspx?<br />
tabid=1761<br />
http://www.jf-sspedreira.pt/<br />
Estatutos da Real Irmandade de Nossa Senhora da Saúde<br />
Revistas de Artilharia n.º 405, 406, 407 e 408, Junho e<br />
Agosto de 1959<br />
45
46<br />
PASSATEMPOS DE OUTROS TEMPOS<br />
in Jornal do <strong>Exército</strong> n.º 2 de Fevereiro de 1961<br />
Soluções deste número:<br />
1 - Sold. com pistola-metr. ao ombro; 2 - Idem sem polainitos; 3 - Cabo clarim com gravata, em camisa; 4 - Sentinela de bivaque; 5 - Faxina<br />
com capote; 6 - Idem sem cinturão; 7 - Ordenança com sabre no lado direito; 8 - Esporas do Oficial de dia.<br />
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Cronologia<br />
1432 (Janeiro) – Nasce,<br />
em Sintra, o infante<br />
D. Afonso.<br />
1438 (Novembro) –<br />
Afonso V, com seis anos<br />
de idade, é aclamado rei<br />
de Portugal, por morte<br />
de D. Duarte; Infante<br />
D. Pedro regente do reino.<br />
1448 (Agosto) –<br />
D. Afonso V assume<br />
a governação do reino.<br />
1449 (Maio) – Batalha<br />
da Alfarrobeira e morte<br />
do Infante D. Pedro.<br />
1452 – Descoberta das<br />
ilhas ocidentais dos<br />
Açores (Flores e Corvo).<br />
1458 (Outubro) – Conquista<br />
de Alcácer Ceguer.<br />
1461-62 – Descobrimento<br />
das ilhas de Cabo<br />
Verde.<br />
1469 – Arrendamento<br />
do comércio da Guiné<br />
a Fernão Gomes.<br />
1471 – Conquista<br />
de Arzila (após insucesso<br />
em 1463) e ocupação<br />
de Tânger.<br />
1472 – Descoberta<br />
dos Camarões e da Ilha<br />
Formosa.<br />
1475 (Maio) – Invasão<br />
e guerra contra Castela;<br />
casa com a princesa D.<br />
Joana e proclama-se rei<br />
de Portugal, Leão<br />
e Castela.<br />
1475 (Setembro) –<br />
Tratado de aliança com<br />
a França de Luís XI.<br />
1476 (1 de Março) –<br />
Batalha de Toro.<br />
1479 (Setembro) –<br />
Firma o Tratado<br />
de Alcáçovas com os reis<br />
Católicos.<br />
1481 (Agosto) –<br />
Morte de D. Afonso V.<br />
D. Afonso V<br />
e a Batalha de Toro<br />
O Comandante<br />
Filho de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão,<br />
D. Afonso V é aclamado com apenas seis<br />
anos de idade, tornando-se no décimo terceiro<br />
Rei de Portugal e terceiro da Dinastia de Avis.<br />
O seu reinado surge marcado, internamente,<br />
pelo regresso a uma mentalidade feudal mediante<br />
o fortalecimento das casas senhoriais<br />
em detrimento da Coroa.<br />
A acção governativa de D. Afonso V divide-se<br />
em três períodos distintos: o primeiro decorre<br />
desde a sua aclamação ao trono (1438) até ao<br />
desfecho da batalha da Alfarrobeira (1449); o<br />
segundo é marcado pelas expedições ao Norte de<br />
África, que lhe fazem merecer o epíteto de «O<br />
Africano» e acrescentar ao título de «Rei de<br />
Portugal e dos Algarves», a referência «de aquém<br />
e além-mar em África»; a terceira fase integra a<br />
tentativa de união ibérica sob o ceptro<br />
português, chegando a intitular-se rei “per graça<br />
de Deus Rei de Castela e de Léon e de Portugal e<br />
de Toledo e de Galiza e de Sevilha e de Córdoba e<br />
de Múrcia e de Jaen e dos Algarves daquém e de<br />
Além-mar em África e das Aljariza e de Gibraltar e<br />
senhor de Biscaia e de Molina”.<br />
Com uma situação interna estável, D. Afonso V<br />
concentra-se na expansão no Norte de África,<br />
que adia devido à queda de Constantinopla<br />
(1453) e à penetração otomana na Europa,<br />
correspondendo ao apelo de cruzada lançado<br />
pelo Papa Calisto III (1456) com a preparação de<br />
um exército de cerca de 12 000 homens. Contudo,<br />
a morte do Papa cancela o projecto e D. Afonso V<br />
recupera a ideia de conquista no Norte de África.<br />
Consequentemente, conquista Alcácer Ceguer<br />
(1458) e ocupa Arzila e Tânger (1471). A sua<br />
presença no comando dos exércitos no norte de<br />
África granjeia-lhe grande prestígio por toda a<br />
Europa. Para além destes feitos, D. Afonso V<br />
subsidia as explorações no oceano Atlântico e<br />
arrenda o comércio na Guiné a Fernão Gomes,<br />
comerciante de Lisboa, por duzentos mil réis<br />
anuais, na condição de descobrir todos os anos<br />
cem léguas de costa da Serra Leoa para sul<br />
(1469). Desta forma, a exploração da costa<br />
africana atinge o cabo de Santa Catarina<br />
(Gabão), em 1475.<br />
GOMES, Saul, D. Afonso V, Circulo de Leitores, 2006<br />
D. Afonso V.<br />
A empresa das conquistas africanas com que de<br />
D. Afonso V «cravou» o estandarte português<br />
nas terras entre o rio do Ouro e o cabo de Santa<br />
Catarina foi, depois, abandonada em detrimento<br />
do projecto de união ibérica, aproveitando uma<br />
crise sucessória na coroa castelhana e a<br />
aproximação desta a Aragão. Neste contexto, a<br />
aura vitoriosa do rei de Portugal e as liberdades<br />
concedidas à fidalguia portuguesa motivaram<br />
uma franja da nobreza castelhana a solicitar a sua<br />
intervenção. D. Afonso V aproxima-se, então, da<br />
França de Luís XI, negociando uma aliança<br />
ofensiva contra Aragão, em 1475, e ataca nesse<br />
mesmo ano território castelhano. A batalha de<br />
Toro é o culminar de todo o processo.<br />
Será a desastrosa campanha militar em Castela a<br />
causa da perda da influência de D. Afonso V ante<br />
a nobreza castelhana, o rei Luís XI de França e o<br />
Sumo Pontífice. A recuperação do prestígio da<br />
Coroa portuguesa caberá ao filho e sucessor, D.<br />
João II, que privilegiará a estratégia política em<br />
detrimento da militar.<br />
73
74<br />
Cerco de Arzila.<br />
Enquadramento<br />
Político-Estratégico<br />
SÁNCHEZ, Aurélio Valdês, Artillería y Fortificaciones en la corona de Castilla durante el reinado de Isabel la Católica. Secretaria General Técnica del Ministério de Defensa, 2004.<br />
Portugal, no segundo quartel do século XV, é um<br />
Estado que começa a firmar-se na modernidade.<br />
Para isso muito contribui a regência do infante D.<br />
Pedro, marcada por uma política de reforço dos<br />
laços comerciais com áreas e países<br />
economicamente desenvolvidos (Borgonha,<br />
Flandres, Inglaterra, Mar do Norte e<br />
Mediterrâneo) e pelo afastamento relativamente<br />
ao binómio Castela - Aragão. Será esta “visão<br />
arejada”, no quadro da política externa, a razão<br />
pela qual eclode um clima de hostilidade para com<br />
a regência por parte de determinadas franjas da<br />
nobreza. O clima de guerra civil (incitado pela<br />
rainha D. Leonor e pelo duque de Bragança) e o<br />
desapego que o regente tem pelas conquistas<br />
africanas motivam D. Afonso V, após atingir a<br />
maioridade, a dispensar os serviços de D. Pedro.<br />
Depois, impulsionado pela fidalguia e com o<br />
apoio do Duque de Bragança, combate o tio na<br />
Batalha da Alfarrobeira (14 de Maio de 1449),<br />
onde este último morre. Livre “do importuno<br />
censor”, o monarca português lança-se na<br />
cruzada africana.<br />
As conquistas no norte de África representam,<br />
para Afonso V, o reconhecimento perante a<br />
Cristandade da cruzada encetada por Portugal.<br />
Mas, para a Coroa, esta empresa era<br />
politicamente complexa, dela não advindo<br />
riquezas que compensassem a perda de vidas e<br />
energias, constituindo a erosão do erário real um<br />
facto incontornável. Acresce que a conquista de<br />
Marrocos, enquanto ponto decisivo para atingir<br />
Jerusalém, também se mostrou estéril. Contudo,<br />
as conquistas portuguesas no norte de África<br />
concorrem para evitar agitações internas,<br />
garantindo à nobreza e à população em geral
serviço em prol de uma causa colectiva e uma<br />
“escola de guerra”.<br />
O vector ibérico, abandonado por D. Pedro em<br />
consonância com a tradicional política de Avis,<br />
passa, com D. Afonso V, a ter outro<br />
entendimento. Em 1455, promove o casamento da<br />
sua irmã, D. Joana, com Henrique IV de Castela,<br />
lançando as bases de uma política orientada para<br />
a Península Ibérica. Desta união nasce a princesa<br />
Joana que, após um longo período de esterilidade<br />
do rei de Castela, faz levantar a questão da<br />
paternidade da princesa. A discussão do assunto<br />
introduz uma marcada hostilidade sócio-política<br />
relativamente ao monarca castelhano, chegando a<br />
assumir contornos insurreccionais.<br />
Esta é uma questão decisiva, que dividirá Castela<br />
em dois partidos antagónicos, “legitimistas” e<br />
“Isabelistas”. Os primeiros, compostos na<br />
essência pela alta nobreza, vêm na princesa<br />
Joana, (depreciativamente denominada pelos<br />
opositores de “A Beltraneja”) a legítima herdeira<br />
da Coroa. Os segundos, viam no infante Afonso<br />
(irmão de Henrique IV) a solução para conduzir<br />
os destinos de Castela. Porém, este sentimento<br />
esmoreceu após a morte prematura do infante<br />
Afonso, sendo este apoio transferido para a<br />
infanta Isabel (sua irmã), que anui assumir o<br />
trono após a morte de Henrique IV, ocorrida em<br />
Dezembro de 1474. Entretanto, ainda em 1474,<br />
Isabel casa com Fernando, herdeiro do trono de<br />
Aragão (contrariando a tradicional política de<br />
alianças peninsulares), faz-se aclamar rainha de<br />
Castela, em Segóvia, e prepara-se para sustentar<br />
as suas pretensões contra os partidários da<br />
“Beltraneja”. A inserção de Portugal na<br />
conjuntura e o ensejo de D. Afonso V em cingir<br />
as coroas ibéricas completam o xadrez estratégico<br />
peninsular. A questão da sucessão ao trono de<br />
Castela, tal como ocorrera em Portugal em 1383,<br />
ficava em aberto e à mercê do “partido”<br />
politicamente mais hábil e militarmente mais forte.<br />
Aproveitando as solicitações feitas pela fidalguia<br />
castelhana apoiante de Joana, D. Afonso V fica<br />
com “via aberta” para intervir em proveito<br />
próprio. Porém, a aliança de Castela com Aragão<br />
introduziu um factor destabilizador na balança de<br />
poderes da região. Por um lado, colocava<br />
Portugal numa situação de inferioridade face ao<br />
bloco castelhano-aragonês e, por outro, a França,<br />
que mantinha com Aragão um diferendo em<br />
relação ao Rossilhão, passava a contar com um<br />
adversário de peso junto à fronteira ocidental.<br />
Consequentemente, convinha a D. Afonso V a<br />
entrada da França numa hipotética campanha,<br />
que obrigaria João II de Aragão a desviar<br />
atenções militares para a fronteira francoaragonesa,<br />
fragilizando a frente interna de apoio<br />
ao filho e herdeiro Fernando. Dessa forma, D.<br />
Afonso V garantia a liberdade de acção<br />
necessária para intervir na região, sujeitando o<br />
bloco castelano-aragonês a uma guerra em duas<br />
frentes. Assim, D. Afonso V dá início a<br />
negociações com Luís XI em Janeiro de 1475,<br />
sendo o Tratado de Liga Ofensiva entre Luís XI e<br />
D. Afonso V contra o reino de Aragão assinado<br />
em Setembro daquele ano.<br />
Em Abril de 1475, D. Afonso V enceta os<br />
preparativos para dar início à campanha militar,<br />
reunindo em Arronches um exército para o efeito,<br />
nomeia o príncipe D. João para a regência do<br />
reino e marcha para Plasencia, onde realiza<br />
esponsais com Joana “a Beltraneja” (não<br />
materializados) e recebe apoios dos partidários<br />
desta. Iniciava-se a operação “conquista de<br />
Castela”.<br />
A erosão do tesouro real, que as exageradas<br />
doações à fidalguia provocou, aconselhava que a<br />
campanha fosse conduzida com muita<br />
racionalidade. Para o efeito, dever-se-ia<br />
consolidar, inicialmente, os apoios em Castela e,<br />
então, defrontar as forças leais aos futuros Reis<br />
Católicos. Mas a inépcia política e as irresoluções<br />
militares do monarca português deitarão tudo a<br />
perder. Desde logo, a espera por reforços em<br />
Arévalo (onde sofreu enormes baixas resultantes<br />
da peste), permitem a Fernando de Aragão o<br />
tempo necessário para reunir “um exército de más<br />
tropas” que lança cerco, durante nove meses, a<br />
Burgos, leal ao partido da “Beltraneja”.<br />
Percepcionando a falta de capacidade<br />
operacional para socorrer aquela praça, D.<br />
Afonso V abandona-a à sua sorte e dirige-se a<br />
Toro que entretanto, se lhe entrega. Mas o<br />
episódio de Burgos marca, de forma significativa,<br />
a sorte do partido de Isabel que, aos poucos,<br />
fruto da irresoluta actividade militar de D. Afonso<br />
V, favorece a transferência dos apoios de Joana.<br />
Em Dezembro de 1475, forças de Fernando de<br />
Aragão lançam cerco a Zamora, leal ao partido do<br />
«Africano», dando início a um período de<br />
impasse na condução das operações militares.<br />
Incapaz de fazer levantar o cerco a Zamora, D.<br />
Afonso V pede auxílio ao príncipe D. João que, a<br />
partir de Portugal e com o apoio do clero da Beira,<br />
organiza uma hoste para reforçar o exército do<br />
pai. Com as suas forças regeneradas, e numa<br />
tentativa dar batalha a Fernando, “o Africano”,<br />
acomete sobre Zamora, localidade que, mais uma<br />
vez, estaria no centro das grandes decisões<br />
políticas da Península.<br />
75
76<br />
Caracterização dos Aparelhos<br />
Militares<br />
O efeito contrário ao espírito da cavalaria<br />
medieva introduzido pela besta e pela alabarda<br />
nos campos de batalha exponencia-se, a partir<br />
do século XV, com a utilização da arma de fogo.<br />
Assim, a cavalaria perde importância militar e<br />
mantém a sobranceria nobiliárquica, a infantaria<br />
ganha dignidade militar, mas permanece na<br />
base da pirâmide social, a artilharia anula a<br />
característica de baluarte defensivo do castelo<br />
e redu-lo a casa senhorial, a engenharia<br />
desenvolve as futuras fortalezas abaluartadas<br />
enquanto anti-arma dos projécteis de ferro.<br />
Porém, a diminuta mobilidade e a baixa<br />
cadência de tiro, aliadas à reduzida eficácia<br />
demonstrada no número de baixas causadas no<br />
Serpentina e Falconete.<br />
inimigo, leva a que a artilharia raramente seja<br />
usada em batalhas campais. Já as armas de<br />
fogo individuais (espingardas de mecha),<br />
colectivas ligeiras (bombardas de mão ou<br />
colibrina) ou colectivas pesadas (canhões<br />
como a serpentina e o falconete montados em<br />
carretas) conheceram uma forma relativamente<br />
eficaz de emprego em batalha.<br />
A introdução das armas de fogo em Portugal<br />
coincide com o início da dinastia de Avis. D.<br />
Duarte, pelo Regimento de Coudéis, para além<br />
de definir as obrigações de cada súbdito e<br />
província de acordo com os bens e classe<br />
social, insere o recrutamento dos artilheiros,<br />
por contrato, na classe dos mesteirais dos<br />
burgos. As primeiras notícias do emprego<br />
deste novo tipo de armamento, em batalha, são<br />
na malograda tentativa de conquistar Tânger<br />
(1437), na qual os espingardeiros não estariam,<br />
ainda, organizados num corpo autónomo,<br />
combatendo por isso lado a lado com<br />
besteiros.<br />
A regência de D. Pedro reveste-se de especial<br />
importância no que concerne à organização<br />
militar e à aquisição de material oriundo,<br />
principalmente, do Norte da Europa. É com o<br />
Infante que surge a função de Vedor-Mor da<br />
Artilharia (1446), reconfirmada posteriormente<br />
por Afonso V (1449), cujas competências eram<br />
sobretudo territoriais: identificar as peças de<br />
artilharia pertencentes à Coroa e que andassem<br />
DUARTE, Luís Miguel, “1549-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003<br />
extraviadas, fazendo-as recolher aos armazéns<br />
régios; requisitar, aos juízes locais, meios de<br />
locomoção (em geral, animais), bem como<br />
carros e barcas para o transporte das peças;<br />
controlar a entrega das peças nos referidos<br />
armazéns para emprego da hoste real; garantir<br />
o pagamento a mesteirais (bombardeiros,<br />
carpinteiros, pedreiros e ferreiros) destacados<br />
para o serviço da artilharia; garantir que os<br />
castelos e respectivos armazéns estivessem<br />
devidamente providos de artilharia (peças,<br />
munições e pólvora) e que esta fosse bem
Espingarda.<br />
DUARTE, Luís Miguel, “1449-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003<br />
usada e cuidada.<br />
É na segunda metade do<br />
século XV que, decorrente<br />
dos empenhamentos no Norte<br />
de África, se encontra uma<br />
preocupação de organizar os<br />
espingardeiros para combate.<br />
O seu emprego nas<br />
campanhas marroquinas<br />
deve-se, provavelmente, à<br />
generalização da espingarda<br />
que, em 1460, já se fabricava<br />
em Portugal, ainda que a<br />
importação deste armamento<br />
tivesse um peso significativo<br />
em termos de geração de<br />
forças. Deste modo, os<br />
espingardeiros encontravamse<br />
organizados em corpo<br />
próprio e o recrutamento e<br />
treino era dirigido pelo<br />
Anadel-Mor dos<br />
espingardeiros, cargo criado à<br />
semelhança do que existia<br />
para a bestaria de conto. De<br />
facto, a importância que esta<br />
nova força possui em batalha<br />
verifica-se com o seu emprego<br />
na batalha de Toro, quer do<br />
lado castelhano (ainda que o<br />
seu emprego só fosse<br />
generalizado nas primeiras<br />
duas décadas do século XVI),<br />
quer do lado português. Em<br />
batalha, a principal tarefa<br />
destas armas era de<br />
desorganizar a cavalaria<br />
inimiga, de forma a criar<br />
brechas para perturbar e<br />
enfraquecer o efeito do<br />
choque da carga inicial. Isso é<br />
visível em Toro, onde a<br />
primeira salva dos<br />
espingardeiros castelhanos<br />
paralisou e assustou os<br />
cavalos portugueses e os<br />
disparos dos espingardeiros<br />
do príncipe D. João facilitou o<br />
trabalho das lanças que<br />
romperam com grande ímpeto<br />
a formação castelhana.<br />
Não obstante, a introdução<br />
das armas de fogo teve,<br />
inicialmente, efeitos bastante<br />
penosos para os exércitos. O<br />
A Pólvora e a Transformação<br />
da Guerra<br />
O aparecimento da pólvora nos campos de<br />
batalha representou o fim de uma era e<br />
constitui a primeira (e porventura maior)<br />
transformação dos assuntos militares. Trata-se<br />
de um acontecimento “revolucionário”,<br />
desenvolvido ao longo de décadas, que<br />
impeliu a profundas alterações políticas<br />
(centralização do poder do estado e do<br />
príncipe), sociais/mentalidades (fim da<br />
exclusividade guerreira da cavalaria e<br />
consequente “democratização” da guerra com<br />
a crescente importância do infante),<br />
económicos (porque os novos meios técnicos<br />
eram dispendiosos e os exércitos se<br />
sobredimensionaram, os poderes passaram a<br />
ponderar o binómio custos/objectivos) e<br />
militares (readaptações de planeamento<br />
estratégico, organização dos dispositivos,<br />
novas concepções tácticas). Com a utilização<br />
da pólvora nos meios de coacção militares<br />
entra-se, assim, na época técnica da arte da<br />
guerra, em que a tendência latente é a<br />
eliminação, simultaneamente física e moral, do<br />
adversário. A bravura cede o lugar à mecânica,<br />
pois aquele que brandir a melhor arma e dela<br />
souber tirar o máximo proveito técnico e<br />
táctico é o adversário mais temível, qualquer<br />
que seja a sua situação social ou a sua<br />
coragem. Desta forma, a cavalaria, renitente em<br />
adaptar-se aos novos tempos e à novas armas,<br />
vê a sua importância decair, não<br />
compreendendo que a pólvora transformara o<br />
modo de vida cristão da Idade Média. A guerra<br />
deixara de ser uma prova moral pela batalha,<br />
um julgamento de Deus que a Igreja arbitrava<br />
em seu nome; agora, era um meio de que os<br />
governantes se socorriam para atingir fins<br />
políticos.<br />
aumento assinalável dos efectivos dos<br />
exércitos (para além dos homens, a<br />
necessidade de transportar o armamento,<br />
munições e pólvora careceu de um aumento no<br />
número de animais) associado a uma<br />
incapacidade sanitária de processar os<br />
resíduos, que por certo inquinariam fontes de<br />
água e alimentos frescos, levaram para ao<br />
campo de batalha a peste, um inimigo invisível<br />
e quase impossível de combater.<br />
77
80<br />
Descrição da Batalha<br />
Situada a meio caminho entre Zamora e<br />
Tordesilhas (localidades leonesas emblemáticas<br />
na História de Portugal), Toro é uma pequena<br />
vila que D. Afonso V transformou em base<br />
operacional da campanha em Castela. Em<br />
meados de Fevereiro de 1476, o monarca sai de<br />
Toro e marcha para Zamora, que Fernando de<br />
Aragão submete a um cerco a partir das<br />
muralhas a norte. Sem capacidade militar para<br />
romper o assédio do adversário e levar auxílio<br />
aos sitiados no castelo, D. Afonso V monta<br />
arraial na margem esquerda do Douro, junto da<br />
ponte e em linha de vista com a porta sul,<br />
fortificando o terreno. Dessa forma, controlando<br />
o itinerário de exfiltração e mantendo o exército<br />
de Fernando sob pressão, D. Afonso V espera<br />
provocar batalha. No campo contrário,<br />
Fernando, enquanto recebe reforços de Isabel, a<br />
partir de Burgos, e “mede” a força de D. Afonso<br />
V, propõe tréguas, que resultam inócuas face às<br />
exigências territoriais do rei português.<br />
Decorridos cerca de quinze dias e perante o<br />
impasse, agravado por condições climatéricas<br />
adversas que minam o moral da tropa, a 1 de<br />
Março D. Afonso V levanta o arraial e decide<br />
recolher a Toro. É nesta altura que Fernando,<br />
liberto de pressão, abandona Zamora e marcha<br />
na peugada do inimigo. Envia uma força de<br />
cavalaria ligeira a esclarecer a situação, que<br />
estreita contacto com a guarda da retaguarda e é<br />
repelida. Então, perto do fim da tarde, o grosso<br />
do exército castelhano depara-se com o exército<br />
português na veiga de Toro, nas cercanias de<br />
Peleagonzalo. Feito o contacto, os dois exércitos<br />
“medem-se” e os respectivos comandantes<br />
determinam dar batalha, conscientes que o seu<br />
resultado decidirá a sorte da guerra.<br />
A região de Peleagonzalo, relativamente plana, é<br />
delimitada a Norte e a Oeste pelo rio Douro, e a<br />
Sul pelas elevações de Castro Queimado. Com a<br />
frente para Sudoeste, o exército de Afonso V<br />
adoptou a seguinte ordem de batalha: na<br />
vanguarda, com peças artilhadas à sua frente,<br />
estava o senhor da Feria com os seus homens<br />
de armas, no centro da qual se posicionou o<br />
«Africano» com o estandarte real; na ala direita,<br />
apoiada no rio Douro, estava o arcebispo de<br />
Toledo, com as suas lanças, e as forças do<br />
Duque de Guimarães e de Vila Real; na ala<br />
esquerda, apoiado nas cercanias da serra, o<br />
príncipe D. João organizou uma força menos<br />
numerosa que as restantes, mas “cortesaã e mui<br />
limpa”, que contava com os espingardeiros do<br />
bispo de Évora, que lhe guarneciam o flanco<br />
direito, e um grupo de fiéis da “sua casa” e de<br />
besteiros, que sustentavam o flanco esquerdo; a<br />
reserva estava sob o comando do Conde de<br />
Monsanto que, juntamente com os quatro<br />
corpos de peonagem, foi colocada na<br />
retaguarda, junto ao Rio Douro. A hoste<br />
castelhana, cujo potencial se equivalia ao<br />
português (cerca de 10 000 homens),<br />
posicionou-se da seguinte forma: na vanguarda,<br />
a guarda real, comandada pelo mordomo-mor<br />
Henrique, onde se distribuíram os<br />
espingardeiros; na ala direita, sob o comando de<br />
Álvaro de Mendoza, seis pequenos troços de<br />
homens de armas, fronteiro ao contingente de D.<br />
João; a ala esquerda, comandada pelo Duque de<br />
Alba, estava no enfiamento do Arcebispo de<br />
Toledo e compreendia cavalaria e<br />
espingardeiros; a peonagem encontrava-se à<br />
retaguarda da vanguarda, preenchendo os seus<br />
intervalos, sob o comando de D. Fernando; a<br />
“encerrar” o dispositivo encontrava-se uma<br />
pequena reserva.<br />
Portanto, os dois exércitos organizados para a<br />
batalha encaixavam um no outro: formavam em<br />
duas linhas, a vanguarda e as alas consistiam<br />
em troços de cavalaria e espingardeiros, a<br />
segunda linha, apeada, era constituída por<br />
piqueiros e besteiros, enquanto um pequeno<br />
núcleo de reserva montada (superior no<br />
dispositivo português) aguardava as<br />
contingências da batalha. As diferenças<br />
estavam na peonagem, que no caso português<br />
se situava à retaguarda da reserva e,<br />
principalmente, ao nível dos comandantes, pois<br />
D. Afonso V estava na linha da frente,<br />
enquanto D. Fernando se resguardou na linha<br />
de peonagem.<br />
Debaixo de chuva e na fase crepuscular de um<br />
frio dia de Inverno, as trombetas dos<br />
contendores dão o sinal de início da batalha e<br />
os gritos de guerra impelem os homens a medir<br />
forças. Iniciava-se a batalha de Toro, marcada<br />
pela confusão de decisões contraditórias e<br />
ataques simultâneos que redundou no seu<br />
fraccionamento, com resultados divergentes.<br />
Assim, enquanto as vanguardas se<br />
entrechocam, do lado do rio o Duque de Alba<br />
acomete a força do Arcebispo de Toledo e, na<br />
direcção oposta, D. João irrompe contra o flanco<br />
de Álvaro de Mendoza.<br />
O ataque da cavalaria e dos espingardeiros do<br />
Duque de Alba rompe a ala direita portuguesa,<br />
desorganizando-a, criando uma situação de
Croqui da batalha.<br />
desequilíbrio passível de envolver o dispositivo.<br />
Esta acção criou a desordem nas forças da<br />
retaguarda e colocou a vanguarda portuguesa<br />
na iminência de combater numa frente invertida,<br />
que lhe seria fatal. Perante a rotura da sua força,<br />
a impotência da segunda linha e a inacção da<br />
reserva, que se colocam maioritariamente em<br />
fuga na direcção do rio, D. Afonso V,<br />
desconhecendo o que se passava no “combate<br />
de D. João”, dá a batalha como perdida e<br />
abandona o campo, recolhendo à fortaleza de<br />
Castro Nuño.<br />
Contudo, no “outro lado da batalha” os<br />
acontecimentos favoreciam as armas<br />
portuguesas. Detendo a iniciativa, D. João,<br />
apoiado pelos espingardeiros do bispo de<br />
Évora, caiu sobre os seis troços dos homens de<br />
armas de Álvaro de Mendoza, que desbaratou e<br />
empurrou para dentro das linhas inimigas,<br />
seguindo-se uma fuga desordenada na direcção<br />
dos montes sobranceiros, debaixo de<br />
perseguição das tropas do príncipe. No entanto,<br />
não tendo conhecimento do desenrolar da<br />
batalha no seu todo, D. João troca a exploração<br />
Autores<br />
do sucesso e regressa à posição inicial,<br />
reorganizando as suas forças na posição, onde<br />
se lhe junta o remanescente da ala direita<br />
desarticulada pela ofensiva do Duque de Alba.<br />
Porém, o tempo perdido na perseguição ao<br />
contingente de Álvaro de Mendoza gorara,<br />
eventualmente, a oportunidade de anular o<br />
sucesso do ataque do Duque de Alba às tropas<br />
de D. Afonso V.<br />
Decorridas três horas de batalha e com a noite a<br />
velar o campo, Fernando de Aragão, que<br />
assistiu à retirada de D. Afonso V, à derrota de<br />
Álvaro de Mendoza e acompanha a actuação de<br />
D. João, receia o desenlace da batalha e retira<br />
para Zamora, deixando a condução das<br />
operações ao Duque de Alba, que não terá<br />
consequências. D. João é senhor do campo,<br />
onde permanece simbolicamente durante três<br />
horas, a conselho do Arcebispo de Toledo, e se<br />
posiciona como vencedor, mandando acender<br />
fogueiras e tocar trombetas. Só então retirou<br />
para Toro, onde entrou de forma triunfante e<br />
soube da “sorte” do pai, conseguindo mitigar o<br />
caos que grassava na cidade.<br />
81
82<br />
Análise da Batalha<br />
A importância da batalha de Toro visualiza-se na<br />
proeminência dos chefes militares presentes,<br />
concretamente, o rei e o príncipe de Portugal, de<br />
um lado, o príncipe herdeiro de Aragão e o<br />
condestável de Castela, do outro. Toro é uma<br />
batalha em que dois exércitos de potencial<br />
equivalente se defrontam na procura de um<br />
resultado politicamente definitivo. Porém, apesar<br />
do valor individual demonstrado, o resultado é<br />
militarmente indefinido.<br />
Para isso muito contribuíram as condições em<br />
que a batalha se desenrolou. O terreno,<br />
relativamente plano e empapado, conjugado<br />
com as condições meteorológicas adversas e o<br />
cair da noite apresentam-se como um factor<br />
multiplicador dos desacertos tácticos de ambos<br />
os contendores. A ausência de planeamento fica<br />
patente nos esquemas de manobra adoptados<br />
por ambos os adversários em Peleagonzalo. A<br />
opção de uma reserva fraca, no centro do<br />
dispositivo de Fernando, indicia o<br />
conhecimento que este detém da ameaça<br />
portuguesa, permitindo-lhe colocar o máximo<br />
potencial na frente. Para D. Afonso V, o<br />
desconhecimento do potencial de combate do<br />
inimigo é notório. Por isso necessita de uma<br />
reserva forte situada o mais próximo possível da<br />
frente, de modo a reduzir os prazos de<br />
intervenção e, assim, assegurar a necessária<br />
flexibilidade durante a batalha. Além do mais, a<br />
reserva situa-se num local servido de caminhos<br />
que facilitam a sua intervenção e<br />
cumulativamente garante profundidade ao<br />
dispositivo na ala direita.<br />
O resultado indeciso da batalha começa a<br />
desenhar-se logo pós o soar das trombetas. Em<br />
Toro denota-se falta de coesão nos<br />
dispositivos, que é maximizada pela ausência de<br />
comando e controlo por parte dos dois<br />
monarcas. Afonso V, ao mais puro estilo<br />
medieval, coloca-se junto da vanguarda, o que<br />
lhe retira capacidade de tomar decisões durante<br />
o desenrolar da batalha, permitindo que cada<br />
“troço” combata de per si. A ala direita é<br />
rompida e coloca-se em fuga, desorganizando a<br />
reserva e a peonagem que estava na sua<br />
retaguarda. Falta de liderança? Moral baixa? O<br />
facto é que esta retirada se apresentou fatal para<br />
a vanguarda. Sem possibilidade de repor a frente<br />
na ala direita, D. Afonso V vê-se envolvido e<br />
colocado perante a contingência de combater<br />
em duas direcções. A ala esquerda,<br />
http://purl.pt<br />
Batalha de Toro.<br />
contrariamente à primeira, é bem sucedida<br />
na refrega inicial. Porém, a falta de coordenação<br />
e de comando e controlo impedem uma acção<br />
de conjunto do “grupo” de D. João,<br />
desconhecedor das ocorrências da batalha<br />
no seu todo.<br />
Fernando de Aragão, numa posição<br />
resguardada, deixa ao livre arbítrio do<br />
comandante da sua vanguarda o desenrolar da<br />
acção. Neste sentido, se o combate inicial terá<br />
resultados positivos para o partido castelhano,<br />
em virtude da manobra de envolvimento<br />
produzida pela sua ala esquerda, a ausência do<br />
rei é determinante para a retirada do<br />
contestável de Castela, impossibilitado de fazer<br />
a exploração do sucesso. Esta retirada<br />
castelhano-aragonesa permite a D. João<br />
permanecer no campo de batalha, por três<br />
horas, dando, perante os costumes, a vitória<br />
aos portugueses.<br />
Toro é, acima de tudo, uma batalha de grandes<br />
feitos individuais mas, militarmente, uma derrota<br />
de ambos os contendores e uma prova da<br />
“pequenez” táctica dos dois comandantes, que<br />
se permitiram abandonar o campo de batalha<br />
como desconhecedores do seu desenlace.<br />
http://www.vidaslusofonas.pt<br />
D. J
ão II.<br />
Tratado de Alcáçovas.<br />
Consequências<br />
Se a batalha de Toro foi militarmente<br />
inconclusiva, as consequências políticas<br />
resultantes da campanha portuguesa em Castela<br />
foram definitivas. D. Afonso V viu esvair-se o<br />
objectivo de união das coroas de Portugal,<br />
Castela e Leão sob o seu ceptro.<br />
Após a batalha, D. João recolhe a<br />
Portugal de modo a garantir a<br />
defesa da fronteira do Alentejo,<br />
sujeita a assédios nos anos<br />
seguintes. Enquanto isso D.<br />
Afonso V, tendo a percepção da<br />
dificuldade de derrotar Isabel e<br />
Fernando sozinho, retira de Castela<br />
em Junho de 1476.<br />
No final desse ano, o «Africano»<br />
manda preparar uma armada e parte<br />
para França, com o objectivo de<br />
solicitar o cumprimento do Tratado<br />
luso-francês de 1475, ou seja, motivar<br />
a França a auxiliar Portugal na<br />
campanha contra o bloco castelhanoaragonês.<br />
Porém, com Toro tudo<br />
havia mudado. O prestígio de “O<br />
Africano” diluiu-se junto de Luís XI,<br />
não obtendo disponibilidade para a<br />
empresa. Entretanto, Isabel firma-se<br />
SARAIVA, José Hermano (coord.), História de Portugal, (Vol. III, Quidnovi, 2004<br />
como rainha de Castela, unindo o estrato social do<br />
reino, enquanto Fernando sobe ao trono de Aragão<br />
em 1479. Do enlace matrimonial entre os dois e da<br />
união das duas coroas surgirá, posteriormente, a<br />
Espanha, onde o prestígio dos Reis Católicos sobe<br />
de patamar, particularmente junto de Roma, com a<br />
conquista de Granada em 1492.<br />
Assim, D. Afonso V vê diminuir o peso relativo<br />
de Portugal face ao conjunto peninsular por<br />
oposição à dinastia castelhana-aragonesa, perde<br />
credibilidade política junto da França e<br />
desperdiça as “boas graças” do sumo pontífice.<br />
Tal situação é suficiente para o monarca<br />
português entrar num estado de letargia, que o<br />
impele à vontade de resignar em nome do filho. E,<br />
de facto, a partir de 1477, é D. João quem<br />
governa, em nome do pai. Portanto, Toro<br />
desligou, definitivamente, Castela de Portugal e<br />
criou um clima de agressividade que se estendeu<br />
ao mar, passando os castelhanos a atacar os<br />
entrepostos comerciais portugueses em África e<br />
a disputar o domínio da rota da Guiné. D. Afonso<br />
V reconhece, então, os Reis Católicos como<br />
soberanos legítimos de Castela e abandona as<br />
pretensões às Canárias, enquanto que Castela<br />
anula as reivindicações a tudo o que fica para sul<br />
deste arquipélago, até à Guiné. A estratégia<br />
portuguesa passou a residir no domínio marítimo<br />
desde a costa portuguesa à Guiné e no exercício<br />
do esforço negocial com a Santa Sé. Assim, Em<br />
1479, Portugal celebra com Castela a paz de<br />
Alcáçovas, que põe fim à guerra peninsular e aos<br />
diferendos ultramarinos, através de uma primeira<br />
delimitação, em latitude, dos espaços marítimos<br />
das duas potências. Conjuntamente com o<br />
Tratado de Alcáçovas, no sentido de serem<br />
dadas garantias recíprocas de paz, assinava-se<br />
também o Tratado das Terçarias de Moura, no<br />
qual D. Afonso, primogénito de D. João, casaria<br />
com a Princesa D. Isabel, filha dos reis Católicos,<br />
e D. Joana de Portugal casaria com o príncipe D.<br />
João de Castela.<br />
O «Africano» morreria acalentando o sonho de<br />
união Ibérica. O que não se havia sido<br />
conseguido pelas armas mostrava-se, agora,<br />
possível através do engenho diplomático do<br />
Príncipe Perfeito, apresentado internamente como<br />
o vencedor de Toro. Após 1481, D. João II é rei de<br />
Portugal que, de acordo com as suas palavras, e<br />
fruto das liberdades que o pai concedera à<br />
fidalguia, “era rei das estradas do reino”. Mas<br />
tudo iria mudar nos anos seguintes, para quem a<br />
centralização régia e a estratégia de “conter<br />
Castela em terra e batê-la no mar” seriam o<br />
normativo da governação.<br />
83
84<br />
Curiosidades<br />
Curiosamente, a batalha de Toro, segundo as<br />
crónicas da época, teve dois vencedores.<br />
Efectivamente, o cronista castelhano Hernando del<br />
Pulgar, e o português Rui de Pina, enfatizam a vitória<br />
memorável da sua bandeira. O mesmo acontece<br />
quando Fernando de Aragão a relata por carta aos<br />
dignitários do reino, a partir de Zamora (logo a 2 de<br />
Março de 1476) e D. João II, como rei, o faz à Câmara<br />
do Porto (11 de Março de 1482). Estrondosa vitória,<br />
que justifica, em ambos os reinos, efusivas e<br />
solenes festas religiosas em acção de graças, que se<br />
arrastam por anos, e mercês aos valorosos<br />
combatentes que dignificaram as armas reais.<br />
Curioso paradoxo.<br />
Contudo, a batalha de Toro releva, sobretudo, de<br />
actos de heroísmo individuais, que merecem<br />
perdurar na memória colectiva. D. Duarte de<br />
Almeida, o Decepado, é, sem dúvida, um desses<br />
heróis que timbraram com honra o sangue vertido<br />
no campo de batalha.<br />
No final da tarde de 1 de Março de 1476, em Castro<br />
Queimado, na fase mais dura da peleja, D. Duarte de<br />
Almeida, alferes-mor do reino e a quem estava<br />
confiado o pendão real, viu-se cercado de inimigos<br />
que procuravam capturar a balsa portuguesa. Nesse<br />
sentido, uma lâmina castelhana desfere um golpe,<br />
amputando a mão direita do valoroso alferes. D.<br />
Duarte passou o pendão real para a mão esquerda<br />
que, resultante da acção de outra lâmina castelhana,<br />
não tardou a ser cortada. No entanto, perante a dor,<br />
a resistência daquele cavaleiro não fraquejou e,<br />
conforme relata Sousa Viterbo, “com os côtos e com<br />
os dentes, no phrenesi da honra e do patriotismo,<br />
oppunha ainda a mais tenaz resistência”. Incapaz de<br />
resistir, o pendão real foi, então, arrebatado ao<br />
decepado, depois de este ser derrubado da sua<br />
montada. O alferes-mor terá sido levado como<br />
prisioneiro para Zamora e as suas armas e arnês<br />
para a Igreja de Santa Maria de Toledo. Mas o<br />
pendão real português, arrancado «a ferros» do<br />
http://nelsonas.do.sapo.pt<br />
Episódio de “O Decepado”.<br />
alferes-mor, não se manteve em posse castelhana o<br />
tempo suficiente para que o inimigo pudesse tirar<br />
partido da glória alcançada. Efectivamente, Gonçalo<br />
Peres, posteriormente apelidado de Bandeira, um<br />
simples soldado sem o nome inscrito no rol da<br />
nobreza, é outro dos nomes associados a Toro. O<br />
assédio dos cavaleiros castelhanos a D. Duarte de<br />
Almeida foi, provavelmente, presenciado pelo<br />
escudeiro Gonçalo Peres, que se colocou no<br />
caminho daquele que transportava a balsa régia<br />
portuguesa (um fidalgo castelhano de sobrenome<br />
Sottomayor) e “tão rijo golpe lhe deu, que o<br />
derrubou e aprisionou, tomando-lhe o precioso<br />
trophéo, que foi logo apresentar ao principe, cujo<br />
contentamento bem se póde imaginar” (Viterbo). O<br />
prémio a Gonçalo Peres surgiu cerca de sete anos<br />
depois dos acontecimentos de Toro pela mão de D.<br />
João II sob a forma de carta de fidalgo, onde atribuía<br />
um brasão de armas e a possibilidade de<br />
acrescentar, ao seu nome, o apelido de Bandeira.<br />
Toro não foi apenas uma batalha de resultado<br />
indefinido, foi acima de tudo uma batalha medieval<br />
no alvor da época moderna onde o valor individual<br />
se sobrepôs ao valor do todo. Os exemplos de<br />
coragem, lealdade e abnegação traduzidos nas<br />
acções de D. Duarte de Almeida e de Gonçalo Peres<br />
Bandeira e tantos outros heróis de Toro são, ainda<br />
hoje, reconhecidos e lembrados.<br />
Autores:<br />
Tenente-Coronel Abílio Pires Lousada, Professor de História Militar do IESM.<br />
Major Luís Falcão Escorrega, Professor de Estratégia do IESM.<br />
Major António Cordeiro Menezes, Professor de Táctica do IESM.<br />
Bibliografia<br />
- DUARTE, António Paulo, Equilíbrio Ibérico. Séc. XI – XX. História e Fundamentos, Lisboa, Edições Cosmos e<br />
Instituto de Defesa Nacional, 2003.<br />
- DUARTE, Luís Miguel, “1495-1549: o Triunfo da Pólvora”, in Nova História Militar, Direcção de Themudo Barata<br />
e Severiano Teixeira, Vol. 1, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2003.<br />
- DURO, Cesáreo Fernandez,”La Batalla de Toro (1476). Datos y Documentos Para su Monografía Histórica”, in<br />
Boletin de la Real Academia de La Historia, Tomo 38, Cuaderno IV, Abril de 1901.<br />
- GOMES, Saul António, D. Afonso V, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2006.<br />
- RODRIGUES, Barros, Organização dos <strong>Exército</strong>s, Organização Militar Portuguesa, Estratégia, Geografia e História,<br />
Secção IV, História Militar, Lisboa, Escola do <strong>Exército</strong>, 1935-1936.<br />
- VITERBO, Sousa, “A Batalha de Toro. Alguns dados e documentos para a sua monographia histórica”, in Revista<br />
Militar, Ano LII, nº 6, Lisboa, Março de 1900.