16.04.2013 Views

JE590DEZ09 - Exército

JE590DEZ09 - Exército

JE590DEZ09 - Exército

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

PROPRIEDADE<br />

DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO<br />

Direcção, Redacção e Administração<br />

Largo de S. Sebastião da Pedreira<br />

1069-020 Lisboa<br />

Telef: 213 567 700<br />

Fax Civil: 213 567 791 Militar: 414 091<br />

E-mail: jornal.do.exercito@mail.exercito.pt<br />

E-mail: jornal.exercito@sapo.pt<br />

E-mail − Intranet: Jornal do <strong>Exército</strong><br />

Home page: www.exercito.pt<br />

DIRECÇÃO<br />

Director<br />

Coronel de Infantaria<br />

José Custódio Madaleno Geraldo<br />

Secretária<br />

Ass Técnica Teresa Felicíssimo<br />

Soldado Condutor RC Pedro Ferreira<br />

REDACÇÃO<br />

Chefe<br />

Tenente-Coronel J. Pinto Bessa<br />

Redactores<br />

Tenente RC Rico dos Santos<br />

Alferes RC Nelson Cavaco<br />

1º Sargento Anjos das Neves<br />

Mauro Matias<br />

Operadoras Informáticas<br />

Ass Técnica Elisa Pio<br />

Ass Técnica Guiomar Brito<br />

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO<br />

Chefe<br />

Major Augusto Correia<br />

Operadores Informáticos<br />

Ass Técnica Tânia Espírito Santo<br />

1.º Cabo Gonçalo Silva<br />

Biblioteca<br />

Ass Técnica Joana Moita<br />

SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS<br />

Operador Informático<br />

Sargento-Ajudante João Belém<br />

Distribuição e Publicidade<br />

Sargento-Ajudante Luís Silva<br />

Ass Operacional Filomena Remédios<br />

SECRETARIA<br />

Sargento-Chefe Costa e Silva<br />

COLABORAÇÃO FOTOGRÁFICA<br />

Lusa - Agência de Notícias<br />

de Portugal, SA<br />

Centro de Audiovisuais do <strong>Exército</strong><br />

RCRPP/GabCEME<br />

EXECUÇÃO GRÁFICA<br />

Europress, Lda<br />

Rua João Saraiva, 10-A − 1700-249<br />

Lisboa<br />

Telef 218 444 340 − Fax 218 492 061<br />

Europress@mail.telepac.pt<br />

Tiragem − 6 000 exemplares<br />

Sumário<br />

Ano L - N.º 590 - Dezembro de 2009<br />

Poema de Natal 4<br />

Cibersegurança Uma realidade virtual? 16<br />

Secções<br />

Mensagem de Natal<br />

do CEME 5<br />

O uso da força nas operações<br />

de peacekeeping<br />

das Nações Unidas 24<br />

Timor-Leste<br />

como se reforma um sector de<br />

segurança? 32<br />

Santa Bárbara<br />

Padroeira dos Artilheiros<br />

Cinquentenário 40<br />

Suplemento<br />

VIII – D. Afonso V<br />

e a Batalha de Toro<br />

Figuras e Factos – 8 a 15<br />

Passatempos de outros tempos – 46<br />

Capa: Ministro da Defesa Nacional visita o <strong>Exército</strong> – Foto do Alferes Nelson Cavaco<br />

Contracapa: Anunciação de Jorge Herold, 1930. Colecção particular<br />

Revisão de texto a cargo do Professor Doutor Eurico Gomes Dias<br />

Os artigos publicados com indicação de autor são da inteira responsabilidade dos mesmos, não reflectindo, necessariamente, o pensamento da Chefia do <strong>Exército</strong> Português<br />

Depósito Legal n.º 1465/82<br />

ISSN 0871/8598 ÓRGÃO DE INFORMAÇÃO, CULTURA E RECREIO DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, CRIADO POR PORTARIA DE 14JUL60


4<br />

O Jornal do <strong>Exército</strong> formula a todos os seus leitores<br />

votos de Boas Festas e Feliz Ano Novo<br />

A Magia do Natal<br />

Na breve escola da vida<br />

Festejamos o Natal<br />

A mais bela que foi vivida<br />

Por Jesus, Homem, imortal.<br />

Jesus, O Filho de Deus,<br />

Jesus, Filho de Maria,<br />

Sémen que desceu dos Céus<br />

Na Pomba Branca que luzia.<br />

Ilumina o Mundo Inteiro<br />

Este Natal que é Cristo.<br />

Filho de José, carpinteiro,<br />

E de um Deus sempre visto.<br />

Porque está em toda a parte<br />

É de toda a Humanidade<br />

Basta crer, com magia e arte,<br />

Natal é eternidade!<br />

O Director do JE<br />

José Custódio Madaleno Geraldo<br />

Coronel de Infantaria


Mensagem de Natal<br />

do General CEME<br />

Militares e Funcionários Civis do <strong>Exército</strong>.<br />

Aproxima-se o fim de um ano de intenso trabalho de todos os que têm vindo a<br />

cumprir, com esforço, lealdade e determinação, a sua missão no âmbito das diversas<br />

áreas funcionais, contribuindo assim para a afirmação do <strong>Exército</strong> que se assume na<br />

actualidade, como uma organização flexível, moderna, internacional e com padrões de<br />

funcionamento extremamente exigentes e elevados, que se quer no caminho da excelência.<br />

O Comandante do <strong>Exército</strong> reconhece o significado e o contributo do trabalho desenvolvido durante o ano, no âmbito das<br />

actividades que competem a cada Órgão Central de Administração e Direcção, na transformação do <strong>Exército</strong>, processo contínuo<br />

de melhoria e adaptação, exigindo uma permanente análise e optimização de procedimentos.<br />

De igual forma se reconhece o contributo de todos os militares em missões fora de Portugal, nas Forças Nacionais<br />

Destacadas, nos Quartéis-Generais Multinacionais e em missões de observação, de ligação e em acções de cooperação<br />

técnico-militar, pelo seu profissionalismo, dedicação e patriotismo, com que têm representado o <strong>Exército</strong> e dignificado o País.<br />

Preparamo-nos agora para viver a quadra Natalícia que tradicionalmente se caracteriza pelos valores da fraternidade, da<br />

amizade e da solidariedade. São valores que, a par de outros como a camaradagem, procuramos desenvolver em permanência,<br />

porque fazem parte da nossa cultura institucional.<br />

Sendo por excelência uma festa da Família, é uma oportunidade de fortalecer esses laços que, por força da disponibilidade<br />

com que nos entregamos às nossas missões, não raras vezes, saem prejudicados no apoio e no tempo que gostaríamos de lhes<br />

dedicar, em especial os homens e mulheres do <strong>Exército</strong> que, em vários teatros, em operações de apoio à paz, nas forças<br />

nacionais destacadas, nos quartéis-generais e nas missões de observação cumprem de forma dedicada a sua missão, longe do<br />

convívio das suas famílias.<br />

Saúdo todos os militares e funcionários civis, que com enorme espírito de entrega e profissionalismo, trabalham<br />

quotidianamente nas nossas unidades, estabelecimentos e órgãos. Este esforço anónimo tem-se constituído como a base do<br />

prestígio da instituição que servimos. Relevo ainda a Família Militar que constitui um importante apoio de rectaguarda de forma<br />

incondicional e silenciosa e um indiscutível factor de coesão moral e de disponibilidade dos nossos militares.<br />

Esta quadra propicia igualmente oportunidade para uma reflexão sobre o passado, sobre as nossas acções e comportamentos,<br />

mas também nos impele a projectar o futuro com determinação.<br />

Constituem desafios no curto prazo, o projecto de reestruturação das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento e da<br />

Manutenção Militar; a dinamização das estruturas de Recrutamento que permitam atrair e ampliar o universo de Voluntários e<br />

Contratados, designadamente em Praças, assim como estimular a sua permanência nas fileiras através da aprovação dos<br />

diplomas que concretizem o Regime de Contrato Especial, para os militares RV/RC que favoreçam o enquadramento e a<br />

operacionalidade do Sistema de Forças Nacional mas igualmente propiciem um desenvolvimento equilibrado entre QP/RV-RC,<br />

e permita uma normal progressão de carreira dos Oficiais e Sargentos do Quadro Permanente.<br />

É igualmente necessária a publicação do diploma dos Suplementos Remuneratórios e uma reavaliação do Sistema<br />

Remuneratório, que valorize, decididamente, a Condição Militar e as Carreiras de Oficial e Sargento e o apoio social que é<br />

devido aos militares e à Família Militar, designadamente através da efectiva acção do IASFA neste domínio.<br />

Como elemento basilar do Sistema de Forças Nacional, destacam-se também os projectos estruturantes de Reequipamento,<br />

que lhe conferem coerência e os que materializam os requisitos operacionais urgentes para as Forças Nacionais Destacadas.<br />

Sabendo que nos serão colocados desafios e oportunidades, continuamos firmemente convictos da inequívoca importância<br />

da afirmação do <strong>Exército</strong>, dos seus valores e da grandeza da sua missão e por isso o Comandante do <strong>Exército</strong>, manifesta o seu<br />

optimismo e a sua confiança na determinação, inteligência, dinamismo, ambição e motivação de todos quantos o servem,<br />

garantes de que a missão continuará a ser bem cumprida em todas as circunstâncias, para a dignificação e o prestígio do<br />

<strong>Exército</strong> e de Portugal.<br />

Formulo votos de Boas Festas e de um Feliz Ano Novo para todos os Oficiais, Sargentos, Praças, Civis na situação de<br />

activo, reserva e reforma e também para toda a Família Militar e que o ano de 2010 seja um Bom Ano para o <strong>Exército</strong>.<br />

O Chefe do Estado-Maior do <strong>Exército</strong><br />

José Luís Pinto Ramalho<br />

General<br />

5


8<br />

FIGURAS e FACTOS<br />

Ministro da Defesa Nacional visita <strong>Exército</strong> Português<br />

O<br />

Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor<br />

Doutor Augusto Santos Silva, acompanhado pelo<br />

Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do<br />

Mar, Doutor Marcos Perestrello, visitou o <strong>Exército</strong> Português,<br />

no dia 20 de Novembro.<br />

A visita decorreu no Comando Operacional das Forças<br />

Terrestres, em Oeiras, onde o MDN recebeu as honras militares<br />

da Guarda de Polícia e das Forças em Parada.<br />

Seguidamente, foi efectuado um briefing do <strong>Exército</strong><br />

Português, onde foi apresentado um enquadramento deste<br />

Ramo, nomeadamente, da Missão do <strong>Exército</strong>, das suas<br />

conflitualidades, dos novos paradigmas, da visão para o <strong>Exército</strong><br />

e do nível de ambição, optimização e reequipamento das Força<br />

Operacionais (FOPE). Foi ainda feita referência à estrutura<br />

orgânica do <strong>Exército</strong>, às suas Brigadas, às forças de apoio geral<br />

e às suas zonas militares, ao ponto de situação dos recursos<br />

humanos e financeiros, à actividade operacional, desde os<br />

principais exercícios à implementação do ciclo operacional<br />

Forças Nacionais Destacadas, envolvendo um vasto conjunto<br />

de desafios e projectos estruturantes para o <strong>Exército</strong>.<br />

Seguiu-se uma visita à sala de operações, onde se assistiu<br />

a uma video-conferência, com a participação das Brigadas do<br />

<strong>Exército</strong> (Brigada de Reacção Rápida, Brigada de Intervenção e<br />

Brigada Mecanizada) e das Forças Nacionais Destacadas<br />

(Líbano, Kosovo e Afeganistão).<br />

A visita foi concluída com a assinatura, do Livro de Honra<br />

pelo MDN.


FIGURAS e FACTOS<br />

Dr. Marcos da Cunha e Lorenha Perestrello de Vasconcellos − Secretário da<br />

Defesa Nacional<br />

Nasceu em Lisboa, em 1971. Licenciado<br />

em Direito pela Faculdade de Direito da<br />

Universidade de Lisboa, (1994), é advogado de<br />

profissão e foi, até recentemente, vice-presidente<br />

da Câmara Municipal de Lisboa. Assumiu funções<br />

de adjunto do Ministro dos Assuntos<br />

Parlamentares, em 1995, e de chefe do gabinete<br />

do Secretário de Estado da Administração Interna<br />

(1999). Em 1998, fez o curso de Auditores de Defesa<br />

Nacional.<br />

Em 2001, funda e assume a direcção, durante<br />

seis anos, do Centro de Informação, Mediação e<br />

Arbitragem de Seguros Automóveis. Em 2004, é<br />

eleito membro do Secretariado Nacional do PS<br />

e, em 2005, foi eleito deputado da Assembleia<br />

da República e vice-presidente do Grupo<br />

Parlamentar do PS. Integrou a Comissão de<br />

Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades<br />

e Garantias e é eleito membro da Assembleia<br />

Parlamentar da Organização para a Segurança e<br />

Cooperação na Europa.<br />

Assume a vice-presidência da Câmara<br />

Municipal de Lisboa, em 2007, sendo vereador<br />

da Câmara Municipal de Oeiras (desde 2009).<br />

Visita do Comandante do <strong>Exército</strong> da República de Moçambique ao <strong>Exército</strong><br />

Português<br />

Decorreu no período de 22 a 27 de<br />

Novembro, a visita do Comandante do<br />

<strong>Exército</strong> da República de Moçambique, Major-<br />

General Graça Tomás Chongo, a Portugal.<br />

O Chefe do Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General<br />

Pinto Ramalho, recebeu-o com honras militares,<br />

no Pátio dos Canhões do Estado-Maior, no dia<br />

23 de Novembro, onde mais tarde assistiu a uma<br />

exposição sobre o <strong>Exército</strong> Português.<br />

Do restante programa, destacam-se as<br />

seguintes visitas: Comando das Forças<br />

Terrestres, Brigada de Reacção Rápida, Escola<br />

de Tropas Páraquedistas, Escola Prática de<br />

Infantaria, Instituto Geográfico do <strong>Exército</strong>,<br />

Academia Militar.<br />

http://www.mdn.gov.pt/mdn/pt/mdn/sednam/<br />

Novo Director de Justiça e Disciplina<br />

Em 20 de Julho, iniciou funções de Director de Justiça<br />

e Disciplina do Comando do Pessoal, no Porto, o<br />

Major-General José António Henriques Dinis, nomeado por<br />

despacho do Chefe do Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General<br />

José Luís Pinto Ramalho.<br />

O Major-General Henriques Dinis nasceu em 1954, no<br />

concelho de Oliveira do Hospital, foi incorporado na<br />

Academia Militar em 1973 e promovido ao actual posto em<br />

25 de Novembro de 2008.<br />

Anteriormente, exercia funções de Inspector-Adjunto do<br />

Inspector-Geral do <strong>Exército</strong>.<br />

9


10<br />

FIGURAS e FACTOS<br />

Dia Litúrgico de São Nuno de Santa Maria<br />

Realizou-se, no passado dia 6 de Novembro, na Igreja<br />

do Santo Condestável, em Lisboa, a Missa Solene do<br />

dia de S. Nuno de Santa Maria. A cerimónia foi presidida pelo<br />

Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José da Cruz Policarpo, contando<br />

com a presença de várias ilustres entidades civis e militares,<br />

nomeadamente o Chefe do Estado-Maior General das Forças<br />

Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto e o Chefe do Estado-<br />

Maior do <strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto Ramalho.<br />

Foi a primeira vez que foi celebrada a festa litúrgica de<br />

TABELA DE PREÇOS PARA 2009<br />

S. Nuno de Santa Maria, após a canonização por Bento XVI no<br />

passado dia 26 de Abril, no Vaticano.<br />

Nascido a 24 de Junho de 1360, o novo santo foi um dos<br />

portugueses que mais profundamente marcaram a história do<br />

nosso país. Depois da sua carreira militar, pediu a admissão,<br />

como irmão leigo, na Ordem do Carmo. Tinha grande devoção<br />

à Virgem Maria e mostrou sempre grande compaixão para com<br />

os pobres. Morreu no Domingo da Ressurreição do ano de<br />

1431 (1 de Abril).<br />

Viveu e morreu nesta cidade, amou Portugal, viveu<br />

profundamente essa radicalidade pascal. Foi santo porque<br />

foi um cristão fiel. Com a sua intercessão e com o seu exemplo,<br />

desafia-nos a percorrermos, também nós, o caminho da<br />

santidade na fidelidade. (…) Em Nuno Alvares Pereira, numa<br />

longa vida, variada nas responsabilidades e nas missões a<br />

que foi chamado, sempre se evidenciaram a profundidade da<br />

sua fé e a grandeza da caridade, que levou ao extremo do<br />

apagamento humano para que só ficasse o amor. Ele continua<br />

a dizer-nos que é possível viver com fé todas as realidades<br />

humanas, sociais, políticas, militares, familiares, religiosas;<br />

continua a dizer-nos que é possível ser santo em todas elas,<br />

que se pode viver toda a vida com Deus, que nos vai sugerindo,<br />

em cada momento e em cada circunstância, a maneira de<br />

acreditar e de amar.<br />

D. José da Cruz Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa,<br />

Homilia (Igreja de Santo Condestável, 10 de Maio de 2009).<br />

Lançamento do livro<br />

“A Ascensão da China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?”<br />

R ealizou-se no dia 3 de Novembro, na livraria Almedina,<br />

em Lisboa, o lançamento do livro “A Ascensão da<br />

China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?”, da autoria<br />

do Coronel Tiago Vasconcelos.<br />

O livro explica a lógica da ascensão da China como Potência<br />

Mundial, evidenciando factores Geoestratégicos e Político-<br />

-Culturais, entre outros, procurando responder se a China terá<br />

uma acomodação pacífica ou conflituosa quando se afirmar<br />

como potência mundial.<br />

A obra foi apresentada pelo Tenente-General Abel Cabral<br />

Couto e contou com a presença do Professor Doutor Narana<br />

Coissoró.<br />

O lançamento contou com a presença de diversas e ilustres<br />

personalidades militares e civis.<br />

PREÇO DE CAPA • 2,00<br />

ASSINATURA ANUAL (11 números)<br />

VIA SUPERFÍCIE - Portugal Cont. Madeira e Açores • 20.00<br />

VIA AÉREA - Países europeus • 45,00; Restantes Países • 65,00<br />

NOTA: As assinaturas devem ser pagas antecipadamente<br />

NÚMEROS ATRASADOS - 1960 a 1969 • 4,00; 1970 a 1979 • 4,00; 1980 a 1989 • 3,00; 1990 a 2001 • 2,50; 2002 a 2008 • 2,00<br />

Os preços incluem IVA à taxa de 5%<br />

N.B.: Os pedidos de envio pelos CTT serão acrescidos de portes segundo os códigos postais: 1000/2000 • 4,21; 3000/8000 • 5,79; Açores e Madeira • 6,56.


FIGURAS e FACTOS<br />

Comemorações do 91.º Aniversário do Armistício e do 86.º Aniversário<br />

da Liga dos Combatentes<br />

O<br />

91.º aniversário do Armistício da 1.ª Guerra Mundial,<br />

o 86.º aniversário da Liga dos Combatentes e o 31.º<br />

aniversário da fim da Guerra do Ultramar foram celebrados no<br />

dia 14 de Novembro, junto ao Monumento aos Combatentes<br />

do Ultramar, no Forte do Bom Sucesso, em Belém.<br />

O Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor Doutor<br />

Augusto Santos Silva, presidiu à cerimónia e recebeu as honras<br />

militares da força composta pelos três ramos das Forças<br />

Armadas portuguesas: <strong>Exército</strong>, Força Aérea e Marinha.<br />

As comemorações iniciaram-se com as alocuções proferidas<br />

pelo Presidente da Liga dos Combatentes, Tenente-General<br />

Chito Rodrigues, pelo Chefe do Estado-Maior-General das<br />

Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto e pelo<br />

Ministro da Defesa Nacional.<br />

Na tribuna encontravam-se diversas entidades militares e<br />

civis, entre as quais o Secretário de Estado da Defesa Nacional<br />

e dos Assuntos do Mar, Dr. Marcos Perestrello, o Chefe do<br />

Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto Ramalho, o<br />

Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Fernando José<br />

Ribeiro de Melo Gomes e o Chefe do Estado-Maior da Força<br />

Aérea, General Luís Evangelista Esteves de Araújo.<br />

Assistiu-se à condecoração de membros da Liga dos<br />

Combatentes e à condecoração, a título póstumo, do Major-<br />

General Carlos Manuel Costa Lopes Camilo, com a Grã-Cruz da<br />

Medalha de Mérito Militar.<br />

Foi, de seguida, descerrada uma placa pelo MDN e pelo<br />

Presidente da Liga dos Combatentes, com os nomes de 53<br />

combatentes portugueses mortos em combate na guerra da<br />

Guiné. Os presentes assistiram, também, à cerimónia que<br />

assinalou a transladação dos restos mortais de três soldados<br />

mortos na Guiné-Bissau e à evocação do Armistício e aniversário<br />

da Liga dos Combatentes, com deposição de coroas de flores<br />

no monumento supracitado.<br />

Seguiu-se uma homenagem aos mortos em combate pelo<br />

Bispo das Forças Armadas, D. Januário Torgal Mendes Ferreira,<br />

na presença dos restos mortais dos soldados transladados da<br />

Guiné-Bissau.<br />

No final, escutou-se o Hino da Liga dos Combatentes,<br />

seguindo-se o desfile das Forças em Parada ao som da Banda<br />

da Força Aérea.<br />

Terminada a cerimónia, houve uma visita ao Forte do Bom<br />

Sucesso, onde estavam patentes exposições estáticas alusivas<br />

às efemérides e aos 100 anos da aviação em Portugal.<br />

Visita do Comandante das Forças Armadas de S. Tomé e Príncipe ao<br />

<strong>Exército</strong> Português<br />

O<br />

Estado-Maior do <strong>Exército</strong> (EME) recebeu, em 17 de<br />

Novembro, a visita do Tenente-Coronel de Artilharia,<br />

Idalécio Custódio Pachire, Comandante das Forças Armadas<br />

de S. Tomé e Príncipe.<br />

O Comandante das Forças Armadas de São Tomé e Príncipe<br />

iniciou, dia 16 de Novembro, uma visita oficial a Portugal, a<br />

convite do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas<br />

(CEMGFA), General Luís Vasco Valença Pinto.<br />

No primeiro dia da visita manteve um encontro privado com<br />

o General CEMGFA, onde foram abordados diversos temas,<br />

com destaque para a cooperação bilateral na área militar e a<br />

cooperação no âmbito da Comunidade de Países de Língua<br />

Portuguesa.<br />

Nos dias que se seguiram, o Tenente-Coronel Pachire<br />

cumpriu um programa de visitas a diversas unidades, dos três<br />

ramos das Forças Armadas, tendo sido, o <strong>Exército</strong> o primeiro<br />

ramo a ser visitado.<br />

No dia 17, foi recebido pelo Chefe do Estado-Maior do<br />

<strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto Ramalho, onde foi feita uma<br />

apresentação sobre o <strong>Exército</strong>, a sua organização e estrutura,<br />

visitando posteriormente o Instituto Militar dos Pupilos do<br />

<strong>Exército</strong>. Esta parte da visita prolongou-se por mais dois dias,<br />

nos quais o CEMGFA de S. Tomé e Príncipe teve a oportunidade<br />

de visitar o Centro de Simulação do <strong>Exército</strong>, o Depósito Geral<br />

de Material do <strong>Exército</strong> e a Brigada Mecanizada.<br />

11


12<br />

FIGURAS e FACTOS<br />

Chegada da OMLT KCD 01/02 ao TO do Afeganistão<br />

No dia 28 de Setembro partiu para o Teatro de<br />

Operações (TO) do Afeganistão a 2.ª Operational<br />

Mentor and Liaison Team (OMLT), que vai apoiar a Kabul<br />

Capital Division (KCD) do Afghan National Army (ANA),<br />

tendo chegado a Cabul no dia 30 de Setembro. A força é<br />

comandada pelo Coronel de Infantaria Pára-quedista José<br />

dos Santos Correia e é constituída por nove oficiais e oito<br />

sargentos, bem como organizada num Estado-Maior com o<br />

Brigadeiro General Taur Matan Ruak visita o <strong>Exército</strong> Português<br />

A<br />

convite do Chefe do Estado-Maior-General das<br />

Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto,<br />

respectivo Chefe de Estado-Maior e as várias áreas<br />

funcionais: G1 (Pessoal), G2 (Informações), G3 (Operações),<br />

G4 (Logística), G5 (Planos e CIMIC), G6 (Comunicações) e<br />

G7 (Engenharia), um Oficial Médico e ainda um Sargento-<br />

Mor.<br />

A missão da OMLT KCD no TO consiste na mentorização<br />

da Divisão de Cabul do <strong>Exército</strong> Nacional Afegão,<br />

nomeadamente do seu Comandante, Chefe do Estado-Maior<br />

e outras áreas deste, prestando o apoio necessário na ligação,<br />

no Comando e Controlo e no planeamento e emprego das<br />

sub-unidades da Divisão durante as operações no terreno.<br />

Com este tipo de assessoria, pretende-se que a Divisão esteja<br />

apta a conduzir operações de forma eficaz e independente.<br />

De acordo com estratégia da NATO para o Afeganistão,<br />

é fundamental uma evolução sistemática e consistente do<br />

ANA, de forma a permitir que o Governo seja capaz de<br />

estabelecer e manter um clima de segurança a longo prazo. O<br />

factor mais significativo é o apoio prestado pelas OMLT da<br />

NATO e pelas Embedded Training Teams (ETT) dos EUA.<br />

Assim, numa altura em que o grau de ameaça no TO está<br />

«Alto» e que a NATO pretende recuperar a confiança das<br />

populações afegãs, a missão das OMLT reveste-se da maior<br />

importância para levar a bom termo a estratégia de saída e<br />

atingir o estado final desejado para o Afeganistão.<br />

A 2.ª OMLT KCD constituiu-se como Força Nacional<br />

Destacada e iniciou o seu aprontamento em 15 de Junho nas<br />

instalações da Unidade de Aviação Ligeira do <strong>Exército</strong> em<br />

Tancos, sob a responsabilidade das Brigada de Reacção<br />

Rápida.<br />

decorreu a visita do Brigadeiro General Taur Matan Ruak,<br />

Chefe de Estado-Maior General das Falintil – Forças de<br />

Defesa de Timor Leste a Portugal, no período compreendido<br />

entre 27 de Setembro a 2 de Outubro.<br />

Do programa realça-se a visita ao <strong>Exército</strong> Português<br />

no dia 30 de Setembro. O período da manhã foi destinado<br />

à visita ao Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, tendo o General<br />

Taur Matan Ruak apresentado cumprimentos ao Chefe do<br />

Estado-Maior do <strong>Exército</strong>, General José Luís Pinto<br />

Ramalho, que o recebeu com honras militares no Pátio<br />

dos Canhões. Seguidamente, no Auditório, foi apresentado<br />

um briefing sobre o <strong>Exército</strong> Português, seguido<br />

de uma visita guiada ao Museu Militar.<br />

Durante a tarde, visitou a Brigada de Reacção Rápida,<br />

no Centro de Tropas Comando, onde pôde apreciar uma<br />

demonstração de capacidades.<br />

O General Taur Matan Ruak, além de visitar as Forças<br />

Armadas ao longo da sua estadia, também visitou a<br />

Associação dos Deficientes das Forças Armadas e a Liga<br />

dos Combatentes.


Rendição de Equipa Médica Militar<br />

Aterrou no Aeródromo de Transito N.º 1, em Figo<br />

Maduro, a 8 de Novembro, pelas 15h00, a primeira<br />

de três equipas de médicos militares que se encontrava,<br />

desde Julho, no Aeroporto de Cabul, no Afeganistão.<br />

Esta primeiro grupo, que se fez transportar num C-130 da<br />

Força Aérea Portuguesa, é constituído por quinze militares,<br />

dos quais dois médicos (um de Clínica Geral e um de<br />

Medicina Interna), oito enfermeiros, um é fisioterapeuta, um<br />

é técnico de laboratório e três socorristas, que tiveram como<br />

missão prestar apoio aos militares da Organização do Tratado<br />

do Atlântico Norte (NATO) no Hospital Militar, em Kaia<br />

(Kabul Internacional Airport).<br />

Estas equipas irão permanecer ao serviço da Força<br />

Internacional de Assistência à Segurança, subordinada à<br />

NATO, pelo período de um ano.<br />

Com a voz embargada, mas com o sentimento de “dever<br />

cumprido”, estes militares reconheceram que o maior desafio<br />

da missão foi a saudade que sentiram dos seus familiares.<br />

O militar mais antigo da equipa, Tenente Alípio Araújo,<br />

salientou que os primeiros meses foram muito complicados,<br />

mas que esta missão “correu muito bem” e que, durante<br />

quatro meses, foi feito “um excelente trabalho. A adaptação<br />

FIGURAS e FACTOS<br />

foi dolorosa, mas foi uma experiência muito positiva”, disse<br />

aquele militar.<br />

13


14<br />

FIGURAS e FACTOS<br />

1.ª Grande Gala da Rádio Sim<br />

Realizou-se, a 19 de Outubro, no Teatro Tivoli, em<br />

Lisboa, a 1.ª Grande Gala da Rádio Sim, que contou<br />

com a especial participação da Orquestra Ligeira do <strong>Exército</strong>.<br />

Com o Tivoli esgotado, foi possível assistir à actuação<br />

de grandes nomes da música portuguesa. Vozes que fizeram<br />

desfilar canções inesquecíveis. Foi possível voltar a ouvir<br />

temas como “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”, “Como Posso<br />

Ter Ciúmes”, “Kanimanbo”, “E Depois do Adeus”, “Ternura<br />

dos Quarenta”, “Regresso”, entre muitas outras canções<br />

de sucesso no passado.<br />

Subiram ao palco Anita Guerreiro, Paco Bandeira, Maria<br />

Valejo, António Calvário, Ada de Castro, Vicente da Câmara,<br />

Artur Garcia, Daniel Bacelar, João Maria Tudela, Rodrigo,<br />

António Sala, Maria José Valério e Paulo de Carvalho,<br />

acompanhados pela Orquestra Ligeira do <strong>Exército</strong>.<br />

Os artistas foram apresentados pelas vozes da Rádio<br />

Sim, que falaram em palco sobre os dias desta emissora, que<br />

é a mais jovem aposta do Grupo Renascença.<br />

Os aplausos foram uma constante durante toda a noite e<br />

quem não conseguiu assistir a esta gala pôde acompanhar a<br />

emissão em directo.<br />

Homenageado em Castelo Branco o Militar mais idoso do <strong>Exército</strong> Português<br />

Por iniciativa do Provedor da Santa Casa da<br />

Misericórdia, acompanhado por militares e amigos<br />

residentes em Castelo Branco, foi homenageado, naquela<br />

instituição, no Dia Nacional do Idoso, o 2.º sargento do<br />

<strong>Exército</strong>, José da Graça Rascão, com 104 anos de idade.<br />

Nasceu em Nisa, a 1 de Agosto de 1905, assentou praça<br />

no <strong>Exército</strong> em 1 de Dezembro de 1927 e passou toda a sua<br />

vida militar nos Regimentos 6 e 8 de Castelo Branco,<br />

terminando a carreira militar no distrito de recrutamento<br />

desta cidade.<br />

A forma afável e disponível como desempenhou as<br />

funções militares e sempre se comportou como cidadão<br />

valeu-lhe a admiração de quantos o conhecem, entre os<br />

quais desfruta de grande prestígio. A Junta de Freguesia<br />

entendeu prestar-lhe, por isso, um público tributo em 2008<br />

e já este ano concedeu-lhe a Medalha de Reconhecimento.<br />

Transcrevemos o último louvor da sua vida militar,<br />

concedido pelo Comandante da Região Militar Centro, que<br />

o Sargento Rascão guarda religiosamente, num excerto bem<br />

revelador do seu carácter: “(…) Militar disciplinado e bom<br />

camarada com elevado brio profissional e comprovada<br />

lealdade e honestidade demonstrou sempre exemplar<br />

conduta ao longo dos 49 anos que serviu o <strong>Exército</strong>. É,<br />

pois, com pesar que todos os que trabalharam com o<br />

Sargento Rascão, sentem o afastamento do seu convívio a<br />

que este distrito de recrutamento fica a dever muito da sua<br />

eficiência”. É detentor das medalhas de ouro e prata de<br />

Comportamento Exemplar.<br />

O 2.º Sargento Rascão (à esquerda), acompanhado pelo Provedor da<br />

Santa Casa da Misericórdia de Castelo Branco, Coronel de Infantaria<br />

reformado, José Guardado Moreira, no dia da homenagem.


77º Aniversário do IGeoE<br />

Celebrou-se, no dia 24 de Novembro de 2009, o 77.º<br />

aniversário do Instituto Geográfico do <strong>Exército</strong><br />

(IGeoE). Neste dia festivo pretendeu-se privilegiar a confraternização<br />

entre todos aqueles que, com grande devoção,<br />

dedicaram parte significativa da sua vida activa à<br />

ciência cartográfica e realizar, simultaneamente, a<br />

apresentação da realidade técnico-científica às entidades<br />

militares e civis presentes, bem como evidenciar o<br />

contributo que o IGeoE presta à Cartografia Nacional e<br />

ao País.<br />

A cerimónia foi presidida pelo Director de Finanças, o<br />

Major-General João António Esteves da Silva, em<br />

representação do Tenente-General Quartel-Mestre General<br />

estando presentes outras altas entidades militares<br />

representativas da hierarquia do <strong>Exército</strong>, Comandantes,<br />

Directores ou Chefes de Unidades, Estabelecimentos e<br />

Órgãos contíguos ou com afinidades no campo técnicocientífico,<br />

bem como entidades civis representativas do<br />

espectro cartográfico nacional, representantes de<br />

instituições com quem o IGeoE estabeleceu protocolos e<br />

que, por razões institucionais ou outras, têm contactos<br />

mais assíduos de cooperação com este Instituto.<br />

Para comemorar esta importante efeméride, e com a<br />

dignidade que merece, também estiveram presentes os<br />

anteriores Chefes/Directores e colaboradores do Serviço<br />

Cartográfico do <strong>Exército</strong> /Instituto Geográfico do <strong>Exército</strong>,<br />

como forma de deferência e respeito pelo contributo por<br />

eles prestado, sob as mais variadas formas, à Cartografia e<br />

ao <strong>Exército</strong>.<br />

Dando continuidade a uma longa tradição que está fortemente<br />

arreigada no espírito militar português, o IGeoE<br />

desenvolveu um conjunto de actividades inseridas no<br />

contexto das comemorações, designadamente o hastear<br />

da Bandeira Nacional, a recepção das Altas Entidades<br />

convidadas, a alocução pelo Director do Instituto, uma<br />

FIGURAS e FACTOS<br />

palestra proferida pelo Capitão<br />

de Artilharia Agostinho Freitas,<br />

subordinada ao tema técnico<br />

“Uma Base de Dados Geográfica<br />

para a Carta Militar de Portugal”<br />

e a imposição de condecorações<br />

a militares do Instituto.<br />

O evento prosseguiu com a<br />

visita às instalações, durante a<br />

qual foi inaugurada a exposição<br />

“Finis Portugalliae = Nos<br />

confins de Portugal”.<br />

15


16<br />

Academia Militar e CIIWAC. Participação dos grupos<br />

de trabalho especializados em Segurança da<br />

Informação e em Guerra de Informação 1<br />

Cientes da necessidade emergente de garantir<br />

uma profunda reflexão de âmbito nacional<br />

sobre a temática da Cibersegurança, procura-se de<br />

forma simples e resumida, numa atitude de mera<br />

divulgação e sensibilização, expôr, enquanto grupo<br />

de reflexão, o nosso modesto contributo nesta temá-<br />

tica. Salienta-se que as ideias e as situações retratadas<br />

no artigo não reflectem qualquer visão doutrinária<br />

ou orientação institucional, mas resultam das<br />

qualificações académicas e da experiência profissional<br />

dos seus elementos e de formação ministrada no<br />

âmbito da Pós-Graduação em Guerra de Informação/<br />

Fotocomposição: Mauro Matias


Competitive Intelligence pela Academia Militar.<br />

Revelada a motivação e a envolvente deste artigo,<br />

preparamos um hipotético cenário que, de forma<br />

abstracta, permite sistematizar alguns dos principais<br />

conceitos envolvidos nesta problemática de natureza<br />

virtual. São ainda objectivos essenciais alertar fundamentalmente<br />

para a necessidade de desenvolver<br />

mecanismos de Segurança da Informação nas Organizações,<br />

onde é fundamental garantir a disponibilidade,<br />

confidencialidade e integridade da informação<br />

que circula nos seus Sistemas de Informação<br />

e que alimenta o processo de decisão organizacional.<br />

Introdução<br />

Segundo a UNESCO e citando Balsinhas (2003,<br />

p. 8), “o Ciberespaço é um novo ambiente humano e<br />

tecnológico de expressão, informação e transacções<br />

económicas. É constituído por pessoas de todos os<br />

países, de todas as culturas e línguas, de todas as<br />

idades e profissões fornecendo e requisitando<br />

informação, de uma rede mundial de computadores<br />

interligada pela infraestrutura de telecomunicações<br />

que permite à informação em trânsito ser processada<br />

e transmitida digitalmente”.<br />

A Internet, como suporte tecnológico do Ciberespaço<br />

e da própria Sociedade em Rede, provoca<br />

assim alterações nas dinâmicas de Poder, em virtude<br />

de através dela se poder explorar e fazer uso da informação<br />

de modo competitivo ou mesmo conflitual. Para<br />

além das vantagens funcionais associadas à sua<br />

utilização, não é possível ignorar também o facto de<br />

ela constituir o suporte ideal para a condução de<br />

actividades como o ciberterrorismo, a cibercriminalidade<br />

e, fundamentalmente, a cyberwarfare<br />

(Nunes, 1999; Martins, 2009 e Nunes, 2009).<br />

Consequentemente, a exploração da Internet exige uma<br />

atitude responsável por parte dos Estados, das<br />

Organizações e dos próprios indivíduos, sob pena<br />

das novas ameaças explorarem vulnerabilidades deste<br />

meio aberto de interacção e poderem pôr em risco a<br />

própria Segurança e Defesa Nacional (Hildreth, 2001;<br />

Martins e Nunes, 2008).<br />

1 Elementos participantes na elaboração do cenário:<br />

TCor António Flambó, TCor António Galindro, Engº Bruno<br />

Réne, Cap GNR Carlos Pimentel, TCor Francisco Martins,<br />

TCor Luís Pinheiro, Engº Luís Sousa, Pedro Salgueiro –<br />

MCSE, Maj Pessoa Dinis, Dr. José Lopes, Engº Jorge<br />

Custódio, Cor José Freire, TCor José Martins, Engº Marco<br />

Manso, Engº Nuno Guerreiro, Maj Paulo Balsinhas, Maj<br />

Paulo Branco e TCor Paulo Nunes.<br />

2 Garantir que os utilizadores autorizados tenham acesso<br />

à informação quando necessário.<br />

Em termos simplistas, os ataques às redes de<br />

computadores desenvolvem-se em quatro fases<br />

(Tipton e Krause, 2004; Young e Aitel, 2004; Santos,<br />

2008). Numa primeira fase, denominada de<br />

Levantamento (Profiling), procura-se identificar/<br />

localizar a(s) rede(s) da organização a atingir, após<br />

o que se verifica numa segunda fase de Pesquisa<br />

(Scanning), quais os computadores e serviços<br />

activos e vulnerabilidades existentes. A terceira<br />

fase, Enumeração (Enumeration), tem como<br />

objectivo apoderar-se de contas de utilizador ou<br />

de direitos de acesso a partilhas em máquinas da<br />

rede (entre outras). Por fim, na fase quatro, Exploração<br />

(Exploiting), pretende-se fundamentalmente<br />

alterar a disponibilidade 2 , confidencialidade 3 ou a<br />

integridade 4 da informação a que se teve acesso.<br />

As duas primeiras fases coincidem com uma possível<br />

metodologia de avaliação de segurança de redes,<br />

divergindo nas fases seguintes (McNab, 2004 e<br />

Clarke, 2005).<br />

O Ciberespaço, enquanto espaço de interacção<br />

aberto e global, facilita o lançamento de ataques planeados<br />

contra Sistemas de Informação via Internet,<br />

podendo consequentemente provocar incidentes<br />

graves, motivados pela destruição física dos sistemas<br />

informáticos ou pela alteração da sua lógica de<br />

funcionamento, sendo fundamental garantir a<br />

Segurança da Informação nas Organizações (Martins,<br />

2008; Martins, Santos e Nunes 2009). Estamos<br />

conscientes que a Segurança e a Economia de um<br />

País, bem como o bem-estar dos seus cidadãos<br />

dependem de determinadas infraestruturas e dos<br />

serviços por elas fornecidos. A destruição ou<br />

perturbação de infraestruturas que prestam serviços<br />

fundamentais pode implicar a perda de vidas e de<br />

bens materiais, bem como um forte abalo da confiança<br />

e da moral dos seus cidadãos.<br />

O advento da iWar 5 reflecte as tendências do<br />

novo século: a disseminação da Internet, o acesso a<br />

esse poder por parte dos indivíduos e o declínio relativo<br />

do poder do Estado no controlo das suas<br />

infraestruturas de comunicação. As instruções disponibilizadas<br />

on-line e o software necessário de fácil<br />

utilização, conferem virtualmente, a qualquer actor com<br />

3 Garantir que a informação seja acessível apenas aqueles<br />

que estão autorizados a terem acesso.<br />

4 Garantir que o conteúdo da informação e/ou os<br />

métodos de processamento não são modificados de forma<br />

inesperada.<br />

5 Guerra da Informação ou seja o conjunto de acções<br />

destinadas a preservar os nossos Sistemas de Informação da<br />

exploração, corrupção ou destruição, enquanto simultaneamente<br />

se explora, corrompe ou destrói os Sistemas de<br />

Informação Inimigos (Nunes, 1999).<br />

17


Entre os principais actores salientam-se as Entidades e as<br />

Organizações responsáveis pelas Infraestruturas Críticas do<br />

País.<br />

uma ligação à Internet o poder de explorar as<br />

vulnerabilidades de adversários ou competidores. Um<br />

problema desta natureza pode ser estudado e<br />

analisado com base na construção de cenários<br />

realistas de Gestão de Crises no Ciberespaço, tendo<br />

em conta fundamentalmente as seguintes dimensões:<br />

- O enquadramento da situação, onde o Ciberespaço<br />

é o palco das relações de poder e onde os<br />

actores procuram explorar assimetrias. As suas<br />

acções poderão ter expressão ao nível Diplomático,<br />

Militar, Económico e da Informação, explorando<br />

algumas das vulnerabilidades potenciadas pelas<br />

Tecnologias de Informação e Comunicação,<br />

especialmente no domínio da Informação e das<br />

Infraestruturas Críticas. Neste âmbito, é notória uma<br />

certa tipificação de métodos de ataque focalizados em<br />

tecnologia e que permitem o aparecimento de cada<br />

vez mais actores capazes de empreender ataques de<br />

modo isolado.<br />

- Os principais actores, entre os quais são normalmente<br />

salientados a título exemplificativo as Entidades<br />

e as Organizações responsáveis pelas Infraestruturas<br />

Críticas do País (Rede Eléctrica,<br />

Telecomunicações, Águas e Saneamento Básico, os<br />

Transportes, o Sistema Financeiro e de Segurança do<br />

Estado).<br />

18<br />

Arquivo JE<br />

Tendo os Órgãos de Comunicação Social um papel<br />

fundamental na gestão correcta da informação em<br />

qualquer situação de Crise, a sua acção é determinante<br />

para o desenvolvimento de uma percepção e<br />

conduta correcta do cidadão, minimizando os impactos<br />

negativos no seu quotidiano, especialmente nas<br />

actividades diárias, ao nível das transacções<br />

comerciais, deslocamentos para o local de trabalho e<br />

na utilização de fontes de energia.<br />

Face à diversidade e complexidade do espectro<br />

da ameaça, o Estado necessita de um Serviço de Informações<br />

Nacional activo e capaz de efectuar uma<br />

identificação e avaliação dos actores capazes de o<br />

poder atingir e fragilizar. Dentro deste contexto, importa<br />

também punir os possíveis criminosos,<br />

responsabilizando-os pelas consequências dos seus<br />

actos. Esta realidade sugere a necessidade de<br />

intervenção de algumas das instituições do Estado<br />

de modo a garantir uma correcta obtenção da prova<br />

de “agressão”, que vise garantir que na evidência 6<br />

digital obtida, nenhum dado possa ser adicionado ou<br />

removido. Exige-se consequentemente elevada<br />

capacidade técnica e científica da Entidade que efectua<br />

a obtenção da prova, de forma a suportar legalmente<br />

a acusação e posterior actuação.<br />

Numa dinâmica de possível Gestão de Crises, a<br />

resposta eficaz e eficiente passa por um envolvimento<br />

activo dos principais agentes políticos (ex-Governo,<br />

Primeiro-Ministro, Ministro da Defesa, Gabinete<br />

Nacional de Segurança), dos Internet Service Provider,<br />

das Instituições de monitorização da Internet<br />

(ex-Computer Emergency Response Team − CERT) e<br />

Institutos de investigação com competências técnicas<br />

específicas nesta temática. Principalmente na<br />

elaboração e coordenação de um plano de Disaster<br />

Recovery (componente de um Plano de Continuidade<br />

de Negócio mais alargado), ao nível do Estado,<br />

elaborando propostas para mitigar os riscos através<br />

da utilização das melhores práticas e do ajustamento<br />

criativo de soluções, de forma a garantir a Segurança<br />

da Informação e dos activos de suporte.<br />

- Os métodos de ataque mais usuais focados em<br />

tecnologia e utilizados pelas ameaças até à presente<br />

data e que consistem na utilização de Malware 7 (ex.<br />

Virus, Worms e Trojans), no DoS 8 (denial of service),<br />

Packet Sniffer 9 , Masquerade 10 (ex. IP spoofing) e<br />

modificar e apagar mensagens (man-in-the-middle).<br />

A narrativa que a seguir se apresenta para<br />

caracterizar uma situação de Crise não tem ligação<br />

com a presente realidade nacional. Por essa razão, a<br />

referência a Empresas, Sistemas ou componentes de<br />

Sistemas que surgem associados a este Cenário ao<br />

longo do artigo são fictícias. Assumimos o Ciberespaço<br />

e os diferentes aspectos associados à Segurança<br />

da Informação como tendo o papel central.


Portugal começa a evidenciar alguns sinais inquietantes ao<br />

nível da Segurança e Criminalidade.<br />

Procuramos, com este cenário, antecipar acontecimentos<br />

e explorar possíveis e diferentes futuros. Tal<br />

como refere Catarina Leal, “o planeamento por cenários<br />

deriva da constatação de que dada a impossibilidade<br />

de saber de que forma o futuro vai evoluir, uma boa<br />

decisão ou estratégia para adoptar é aquela que é<br />

escolhida entre vários futuros possíveis. Para<br />

encontrar uma estratégia (robusta), são criados<br />

cenários, de forma a que cada cenário seja marcadamente<br />

divergente dos outros” (2007).<br />

6 É o vestígio (ex. material) que após ser devidamente<br />

analisado e interpretado, estabelece a relação inequívoca com<br />

o facto de delito e as pessoas com ele relacionadas.<br />

7 Programas maliciosos desenvolvidos por programadores<br />

que, como um vírus biológico, infectam o sistema,<br />

podendo efectuar cópias de si mesmo e tentando nalguns<br />

casos espalhar-se para outros computadores, replicando-se<br />

internamente e externamente se o computador estiver ligado<br />

em rede. Uma das possíveis acções é impedir a execução de<br />

serviços e a destruição de dados, podendo mesmo incapacitar<br />

o funcionamento da máquina que afectou.<br />

8 Trata-se de um tipo de ataque em que as redes são<br />

bombardeadas com quantidades tão grandes de informação<br />

Fotocomposição: Mauro Matias<br />

Iniciamos na primeira secção a caracterização da<br />

situação Nacional no ano de 2012. De seguida<br />

caracterizamos a Crise na segunda secção, tendo como<br />

suporte o Ciberespaço e alguns dos principais actores<br />

Nacionais intervenientes no desenrolar do Cenário<br />

apresentado. Nas considerações finais procuramos<br />

indicar algumas sugestões e propostas para reflexão<br />

do leitor.<br />

Situação Nacional<br />

Estamos no início do Outono do ano de 2012,<br />

Portugal é hoje um País desenvolvido, economicamente<br />

próspero, social e politicamente estável e com<br />

índice de desenvolvimento humano elevado.<br />

Encontra-se entre os 20 países do mundo com melhor<br />

qualidade de vida. Nos últimos tempos, face à crise<br />

energética e dos cereais, com a subida repentina dos<br />

preços, o País tem sofrido grandes movimentações<br />

sociais de protesto.<br />

Situado no extremo sudoeste da Península Ibérica,<br />

a sua localização ao longo da costa atlântica desde<br />

cedo determinou uma vocação marítima. As vantagens<br />

naturais de um País de sol radioso e de surpreendente<br />

variedade geográfica fizeram de Portugal um destino<br />

de eleição, ideal para a prática de desportos náuticos<br />

e de golfe, dotado de modernas infraestruturas<br />

turísticas e de formas muito tradicionais e<br />

personalizadas de acolhimento, como o Turismo de<br />

Habitação, os Hotéis de Charme ou as Pousadas.<br />

Membro da União Europeia desde 1986, Portugal<br />

é hoje uma Nação, que tem conservado através dos<br />

séculos o seu maior tesouro: a identidade de um povo<br />

hospitaleiro que faz do seu País um porto de simpatia<br />

e segurança.<br />

No entanto, Portugal começa a evidenciar alguns<br />

sinais inquietantes ao nível da Segurança e<br />

Criminalidade. O Crime constitui, sem dúvida, um dos<br />

fenómenos contemporâneos que mais tem contribuído<br />

para um aumento dos níveis de ansiedade e de<br />

insegurança existentes na Sociedade Portuguesa.<br />

O problema afecta não só Portugal como<br />

que ocorre um congestionamento ou estrangulamento,<br />

levando à paralisação da rede de computadores.<br />

9 Consiste em capturar dados ou informação que circulam<br />

na rede. Existem dispositivos (sniffer) cuja finalidade é analisar<br />

o tráfego de rede e identificar áreas de potencial preocupação.<br />

Podem analisar um ou mais protocolos de comunicação. A<br />

existência de um sniffer com intenção maliciosa na rede pode<br />

comprometer a segurança, podendo capturar passwords e<br />

informações confidenciais que nela circulam.<br />

10 É o acto de utilizar uma máquina para personificar<br />

outra, por exemplo forjando o endereço de origem de um<br />

ou mais computadores na sua autenticação numa rede<br />

informática.<br />

19


20<br />

potencialmente toda a População da União Europeia,<br />

as empresas, os Governos dos Estados-Membros e a<br />

União Europeia no seu conjunto. Os efeitos podem<br />

ser directos (por exemplo, um atentado terrorista com<br />

vítimas mortais), ou indirectos (por exemplo, a<br />

perturbação de certos serviços na sequência de<br />

problemas numa infraestrutura específica).<br />

O Estado Português, através do seu Serviço de<br />

Informações Nacional dependente do Primeiro-<br />

Ministro e de congéneres europeus, foi informado<br />

que vários actores internos e externos estariam a<br />

ultimar desenvolvimentos para encetar uma<br />

“campanha de Operações Centradas em Rede” com o<br />

fim de afectar seriamente a Infraestrutura de<br />

Informação Global (IIG). Esta campanha caracterizase<br />

principalmente pelo lançamento de ataques levados<br />

a cabo através da Internet, em que os alvos são as<br />

infraestruturas dos Fornecedores de Serviço de<br />

Acesso à Internet, tal como os sítios na WEB que dão<br />

acesso aos serviços on-line, explorando também a<br />

infra-estrutura de Segurança Nacional.<br />

A curto prazo, a iWar coloca uma ameaça crescente<br />

aos membros da OTAN ao conferir poder a<br />

actores menores e a Governos hostis. Resta saber se<br />

a iWar se torna uma ferramenta para os actores estado,<br />

ou se os actores menores mantêm a sua capacidade<br />

de empreender iWar contra os Estados-Nação.<br />

O acesso não autorizado às Local Area Network<br />

(LAN) 11 representa um dos maiores riscos para a<br />

Segurança das Redes e para os Sistemas de<br />

Informação das Organizações. Quando é permitido<br />

acesso não autenticado através de computadores<br />

pessoais não geridos, as Organizações e os respectivos<br />

dados ficam particularmente vulneráveis a<br />

ataques de software malicioso (ex. vírus).<br />

De acordo com as preocupações formuladas pelo<br />

Estado Português (levantadas em abstracto), surgiu<br />

a desconfiança de que um ou mais actores internos e<br />

externos, tenham desenvolvido a capacidade<br />

necessária para aceder e explorar a IIG como um campo<br />

de Operações Político-Militares Estratégicas. Esta<br />

situação levantou uma grande instabilidade e algumas<br />

dúvidas relativamente à Segurança da Infraestrutura<br />

de Informação Nacional (IIN) e da Infraestrutura de<br />

Informação de Defesa (IID) já em evolução,.<br />

As ameaças referenciadas podem utilizar um<br />

possível conjunto de diversos métodos de ataque<br />

que permitem explorar as vulnerabilidades existentes<br />

nos Sistemas de Informação das Instituições<br />

Governamentais e das Organizações públicas e<br />

privadas do País. Das informações disponibilizadas,<br />

podemos considerar que os métodos de<br />

ataque mais utilizados pelas ameaças até à<br />

presente data consistem na utilização de Malware,<br />

no DoS, Packet Sniffer, Masquerade e na<br />

modificação e eliminação de mensagens.<br />

Uma análise superficial dos resultados<br />

apresentados por auditorias externas aos Sistemas<br />

de Informação de Empresas, Organizações e<br />

Órgãos do Estado permitiu verificar em algumas a<br />

inexistência de Políticas de Segurança estruturadas<br />

e coordenadas, a inexistência de<br />

identificação e avaliação dos riscos, bem como a<br />

falta de um modelo de gestão de Segurança da<br />

Informação que integre algumas das suas<br />

possíveis dimensões da Segurança: tecnológica,<br />

física, humana e organizacional.<br />

É nesta situação fictícia que surge a Crise no<br />

Ciberespaço, cujo desenvolvimento processa-se<br />

com a orientação e o enquadramento apresentado<br />

na próxima secção.<br />

A Crise<br />

Na noite de 24 de Dezembro, os sites do Governo<br />

Português, com maior incidência os do Ministério da<br />

Defesa Nacional (Estado-Maior General das Forças<br />

Armadas, <strong>Exército</strong>, Marinha e Força Aérea), do Ministério<br />

da Administração Interna (PSP e GNR), do<br />

Ministério da Justiça e Ministério das Finanças, foram<br />

sujeitos a tentativas de DoS e alteração dos seus<br />

conteúdos.<br />

Na manhã de 25, foram detectadas tentativas de<br />

reconhecimento e avaliação da estrutura e organização<br />

das suas redes através de Port Scans 12 , bem como<br />

tentativas de alteração dos dados existentes nas bases<br />

de dados dos Sistemas de Informação da PSP e GNR,<br />

dos registos de notariado do Ministério Público e<br />

das Bases de Dados de IRS do Ministério das<br />

Finanças.<br />

Face à dimensão dos incidentes foi chamada para<br />

efectuar a análise forense computacional a Brigada de<br />

Combate ao Crime Informático da Polícia Judiciária<br />

apoiada por equipas de especialistas de várias<br />

organizações entre as quais salientamos: a Policia<br />

Judiciária Militar, a PSP, a GNR, o Centro de Dados da<br />

Defesa e uma equipa de especialistas em Segurança<br />

Informática do Regimento de Transmissões do<br />

<strong>Exército</strong>.<br />

Nesta fase inicial, devido à complexidade técnica<br />

do problema foi necessário garantir e coordenar o<br />

apoio de especialistas de diversos Centros de Investigação<br />

& Desenvolvimento Nacionais, coordenadas<br />

pelo Serviço de Resposta a Incidentes de Segurança<br />

Informática (CERT.PT), que identificaram a origem dos<br />

ataques através dos logs de routers e das firewall 13<br />

de algumas organizações atingidas.<br />

Foi também necessário contactar alguns dos<br />

Internet Service Provider (ISP) Nacionais e<br />

Internacionais, face à necessidade de identificar as


Às 20h00, o comboio de passageiros de alta velocidade,<br />

TGV Lisboa - Porto, embatia num comboio de cargas<br />

origens de alguns dos ataques efectuados. Simultaneamente,<br />

contactou-se o Centro de Excelência da<br />

NATO em Ciberdefesa (localizado na Estónia), para<br />

apoiar na identificação e análise das intrusões, face à<br />

sua experiência com casos análogos.<br />

Após estes primeiros eventos e decorrendo um<br />

período de alguma acalmia, surgem novos incidentes<br />

em Março de 2013, na madrugada do dia 10. A Rede de<br />

Energia que serve a região de Lisboa e Vale do Tejo,<br />

onde se inclui o Centro de Dados da Defesa, falhou<br />

por curtos períodos de 30 minutos, no horário<br />

compreendido entre as 05h00 e as 12h00. Embora a<br />

energia fosse restaurada rapidamente, uma avaliação<br />

da causa da falha indicou a intrusão na sua Rede<br />

11 Redes informáticas locais das Organizações que suportam<br />

os seus Sistemas de Informação e as quais na sua maioria se<br />

encontram ligadas à Internet.<br />

12 São programas que consultam as “portas” dos<br />

computadores e obtêm informações valiosas sobre eles, tais<br />

como, que serviços (possíveis vulnerabilidades) estão a ser<br />

executados. Estes programas permitem efectuar uma rápida<br />

auditoria a centenas ou milhares de computadores num curto<br />

espaço de tempo. São excelentes para detectar vulnerabilidades<br />

numa rede, mas simultaneamente permitem sensibilizar/educar<br />

os Administradores de Rede para os potenciais riscos existentes<br />

na sua Rede Informática.<br />

13 É um qualquer dispositivo implementado (hardware ou<br />

www.skyscrapercity.com<br />

Informática principal, onde se localizam os Sistemas<br />

de Gestão e Controlo da Rede Eléctrica Nacional.<br />

Na noite de 12 de Maio, as principais Operadoras<br />

de Comunicações Nacionais (PT, TMN, Vodafone e<br />

Optimus), sofreram uma série de falhas no seu<br />

funcionamento. Simultaneamente, as maiores estações<br />

de fornecimento de água do Alentejo e Algarve<br />

(Alqueva e Odeleite), tiveram um problema no seu<br />

sistema de gestão de funcionamento, permitindo<br />

descarregar o seu caudal máximo, reserva essencial<br />

para fazer face ao período de seca que se avizinhava.<br />

Pelas 19h00 de 14 de Maio, a Rede Telefónica<br />

Pública e as principais Operadoras de Comunicações<br />

Nacionais sofreram novamente uma série de falhas,<br />

dificultando a utilização do número de emergência<br />

112 e, consequentemente, as acções de socorro<br />

prestado pelo Serviço Nacional de Bombeiros e<br />

Protecção Civil às vítimas dos diferentes incidentes<br />

que ocorriam de Norte a Sul do País e dos quais<br />

referimos:<br />

1. Às 20h00, o comboio de passageiros de alta<br />

velocidade, TGV Lisboa - Porto embatia num comboio<br />

de cargas, aparentemente desgovernado perto do<br />

Entrocamento. A PSP constatou que o embate dos<br />

comboios vitimou 100 passageiros e feriu gravemente<br />

outras 200 pessoas.<br />

2. Pelas 23h30, atacantes cibernéticos criam o<br />

pânico no Aeroporto de Lisboa e colocam em risco<br />

todo o tráfego aéreo com destino e origem no referido<br />

Aeroporto, pela indisponibilidade do Sistema de<br />

Controlo de Tráfego Aéreo. O objectivo dos atacantes<br />

foi a penetração na rede informática interna do<br />

Aeroporto e posterior ataque por DoS aos sistemas<br />

de ajuda à aterragem das aeronaves, nomeadamente<br />

os que indicam a direcção da pista, altura das<br />

aeronaves e os radares, sistemas de comunicação<br />

rádio e sinalização luminosa, a sua maioria geridos<br />

através de uma rede informática que usa o protocolo<br />

TCP/IP 14 . Em simultâneo, foi atacado o web site da<br />

principal Transportadora Aérea (TAP), através de<br />

Phishing 15 com o objectivo de falsificar as informações<br />

dos voos, incluindo as reservas, tarifas e horários.<br />

software), para impedir que estranhos acedam a uma determinada<br />

rede informática. As firewalls estão para as redes, assim como as<br />

passwords para a autenticação dos utilizadores nos sistemas<br />

operativos.<br />

14 É um conjunto de protocolos de comunicação entre<br />

computadores em rede. O seu nome provem de dois protocolos,<br />

o TCP (Transmission Control Protocol) e o IP (Internet Protocol).<br />

15 Forma de fraude electrónica, caracterizada pela tentativa<br />

de adquirir informações confidenciais, tais como por exemplo o<br />

número de cartão de crédito, fazendo passar-se por uma pessoa<br />

de confiança ou uma empresa, através do envio uma comunicação<br />

digital oficial, como uma mensagem de correio electrónico.<br />

21


22<br />

A rede ATM 16 deixou de funcionar, lançando o caos nos principais Centros Comerciais.<br />

3. Entre as 22h00 e as 00h30, surgiu uma avaria<br />

simultânea nos sistemas de controlo de trânsito das<br />

principais cidades do País, do qual resultaram inúmeros<br />

acidentes que vitimaram 50 pessoas e feriram<br />

gravemente outras 150.<br />

Também os Bancos portugueses, durante<br />

auditorias de rotina, conduzidas pelas equipas<br />

internas, detectaram dispositivos sniffer no seu principal<br />

sistema de transferência de fundos, temendo a<br />

Administração dos Bancos que indivíduos não<br />

autorizados possam agora tentar entrar num sistema<br />

que se considerava invulnerável.<br />

Durante o dia 17 de Maio, a comunicação Nacional<br />

especulou sobre a extensão das vulnerabilidades de<br />

Portugal no Ciberespaço, essencialmente sobre as<br />

origens dos ataques de iWar sofridos até ao momento<br />

e sobre as capacidades Nacionais para enfrentar a<br />

Crise. Simultaneamente, com as notícias surgidas, a<br />

rede ATM 16 deixou de funcionar por volta das 17h00,<br />

lançando o caos nos principais Centros Comerciais e<br />

paralisando praticamente todo o comércio local.<br />

Uma reunião governamental de emergência foi<br />

realizada às 21H00 do dia 18 de Maio, para estudar<br />

algumas das possíveis recomendações imediatas e<br />

de médio prazo para uma resposta concertada a esta<br />

“Crise no Ciberespaço” que actualmente afecta Portugal.<br />

A reunião abriu com um briefing do Serviço de<br />

Informações de Segurança que enfatizou a incerteza<br />

existente na determinação da fonte ou das fontes dos<br />

ciberataques, seguido por algumas recomendações<br />

do Gabinete Nacional da Segurança que fez notar que<br />

nesta altura não havia “nenhuma maneira de saber ao<br />

certo” se o conjunto de acções registado configura<br />

ou não:<br />

(1) um teste à capacidade portuguesa de<br />

Ciberdefesa desenvolvido por um ou mais actores;<br />

(2) ou o início de uma campanha de iWar orientada<br />

para perturbar com alguma antecedência a coesão do<br />

Governo Português e o funcionamento das<br />

Instituições Democráticas.<br />

Durante a reunião, o Primeiro-Ministro alertou<br />

repetidas vezes os elementos da Comunicação Social<br />

presentes para a necessidade de manter a calma e de<br />

diminuir toda a especulação relativamente à extensão<br />

das vulnerabilidades de Portugal no Ciberespaço (em<br />

virtude da mitigação dos principais riscos já ter sido<br />

realizada), quer ao que diz respeito às origens dos<br />

ataques de iWar sofridos até ao momento, em especial<br />

aqueles que tiveram origem no Território Nacional.<br />

Fizeram notar que futuras decisões relacionadas com<br />

a crise podiam tornar-se cada vez mais difíceis se existir<br />

um pânico generalizado, acrescido pelo empolamento<br />

dos efeitos dos ataques por parte dos meios de<br />

comunicação.<br />

Após encerramento da reunião, o Primeiro-<br />

Ministro solicitou ao Ministro da Defesa Nacional<br />

que coordenasse um grupo de peritos de Segurança<br />

da Informação, de Redes Informáticas e de Computer<br />

Network Operations, com o objectivo de gerar ideias<br />

novas e criativas capazes de minorar num curto espaço<br />

de tempo, os problemas de iWar que suscitam uma<br />

maior preocupação na presente Crise no Ciberespaço.<br />

Descreveu-lhe as suas principais preocupações e<br />

pediu-lhe possíveis recomendações para os<br />

problemas encontrados, de modo a garantir a<br />

segurança dos Sistemas de Informação que as<br />

Organizações Governamentais utilizam ou<br />

provavelmente virão a utilizar, reflectindo o seu impacto<br />

no domínio Diplomático/Político, no ambiente da<br />

Informação Nacional, na área Militar e no domínio<br />

Económico (DIME).<br />

Uma Possível Resposta…<br />

Arquivo JE<br />

Após a realização de diversas reuniões, a equipa<br />

de peritos sugeriu, entre outras, as seguintes propostas<br />

fundamentais para o médio prazo:<br />

1. Proceder à implementação de uma Certificção<br />

de Segurança da Informação nas Organizações consideradas<br />

mais críticas e importantes face à avaliação<br />

da sua informação e à identificação e avaliação dos<br />

riscos de segurança existentes;<br />

2. Desenvolver e aplicar uma metodologia de auditoria<br />

aos Sistemas de Informação implementados,<br />

que garanta a sua real Segurança da Informação, com<br />

base em indicadores de segurança mensuráveis;<br />

3. Desenvolver um manual de boas práticas de


Segurança da Informação para apoiar as Pequenas e<br />

Médias Empresas, onde os requisitos principais sejam<br />

a facilidade de operacionalização e o custo mínimo de<br />

implementação;<br />

4. Sensibilizar os utilizadores das tecnologias de<br />

informação para a problemática da Segurança da<br />

Informação, evitando desta forma os ataques de<br />

Engenharia Social 17 mais usuais sobre o elo mais fraco<br />

da cadeia de segurança: o elemento humano;<br />

No contexto formulado pela equipa de peritos,<br />

importa salientar que o importante é o planeamento<br />

rigoroso dos controlos de segurança a implementar<br />

ao nível das Organizações consideradas críticas, onde<br />

a coordenação de esforços e de competências nesta<br />

temática é obrigatória, face à complexidade e<br />

importância dos assuntos envolvidos.<br />

Considerações Finais<br />

Enquanto processo de sistematização e instrumento<br />

de aplicação dos pressupostos associados à<br />

necessidades de qualquer Estado garantir a sua<br />

Ciberdefesa, o levantamento de cenários e a própria<br />

condução de Exercícios de Gestão de Crises no<br />

Ciberespaço representa uma manifesta mais-valia,<br />

permitindo:<br />

- avaliar as implicações políticas e estratégicas do<br />

Ciberespaço e analisar a sua importância como factor<br />

decisivo para o planeamento e condução das<br />

actividades associadas aos diversos instrumentos de<br />

exercício do Poder dos Estados (Diplomático/Político,<br />

Informação, Militar e Económico);<br />

- estudar metodologias para analisar e gerir o Risco<br />

Social, capazes de avaliar ameaças, identificar<br />

vulnerabilidades e promover a adopção de contramedidas<br />

especialmente orientadas para fazer face aos<br />

riscos emergentes da Sociedade de Informação,<br />

Comunicação e Conhecimento;<br />

- identificar iniciativas que ajudem a desenvolver<br />

as capacidades necessárias para minimizar as<br />

implicações negativas da ocorrência de Crises no<br />

Ciberespaço, permitindo mitigar as suas consequências<br />

e reduzir a sua probabilidade de ocorrência;<br />

- estimular o desenvolvimento de actividades e<br />

iniciativas cooperativas destinadas a melhorar o intercâmbio<br />

entre os diversos actores envolvidos na<br />

Protecção da IIN, através da análise de assuntos<br />

emergentes de interesse mútuo, onde a Segurança e<br />

Defesa Nacional se apresentam como temas privilegiados<br />

de análise.<br />

Apesar de ter surgido num contexto académico, o<br />

Cenário aqui apresentado, poderá servir de suporte e<br />

permitir a exploração destes objectivos. Tendo por<br />

base o Cenário apresentado para reflexão, importa<br />

referir que todas as possíveis soluções destinadas a<br />

mitigar o risco social no Ciberespaço devem ter por<br />

base as boas práticas já existentes em algumas das<br />

Instituições/Organizações públicas ou privadas e em<br />

estudos já realizados e publicados, garantindo a<br />

celeridade no processo e evitando custos<br />

desnecessários. No que diz respeito às medidas<br />

imediatas a implementar, em artigo posterior serão<br />

analisadas as futuras propostas.JE<br />

16 Sistema de máquinas para realizar operações bancárias.<br />

17 Evitando a manipulação dos utilizadores de forma a<br />

convencê-los a realizar determinadas acções que visam<br />

alterar as propriedades da segurança da informação.<br />

Bibliografia<br />

BALSINHAS, Paulo (2003). Os Riscos do<br />

Ciberespaço - Análise e Gestão dos Riscos nas Infra-<br />

Estruturas Criticas de Informação, Pós – Graduação em<br />

Guerra de Informação / Competitive Intelligence, Academia<br />

Militar, Lisboa.<br />

CLARKE, Justin and NITESH, Dhanjani (2005). Network<br />

Security Tools. O´Reilly.<br />

HILDRETH, Steven (2001). Cyberwarfare, Report for<br />

Congress U.S. Congressional Research Service, The Library<br />

of Congress, United States of America.<br />

LEAL, Catarina Mendes (2007). “ Construir Cenários<br />

– O Método da Global Business Network”, Documento de<br />

Trabalho Nº7, Departamento de Prospectiva e Planeamento<br />

e Relações Internacionais, Ministério do Ambiente, do<br />

Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional,<br />

Lisboa.<br />

MARTINS, José Carlos L. (2008). Framework de<br />

Segurança para um Sistema de Informação, Tese de<br />

Mestrado, Escola de Engenharia, Universidade do Minho.<br />

MARTINS, José Carlos L. e NUNES, Paulo Viegas<br />

(2008). “ A Internet como factor de Transformação Social<br />

e das Relações de Poder”, in Vários, Proelium-Revista da<br />

Academia Militar, VI Série Nº 9, p. 135-158.<br />

MARTINS, José Carlos L., SANTOS, Henrique Manuel<br />

Dinis dos e NUNES, Paulo Viegas (2009). “ Subsídios para<br />

uma Eficaz Segurança da Informação nas Organizações”,<br />

in Vários, Proelium-Revista da Academia Militar, VI Série<br />

Nº 11, p. 131-154.<br />

MARTINS, José Carlos L. (2009). “Segurança e<br />

Inseguranças das Infra-Estruturas de Informação e<br />

Comunicação Organizacionais”, in Vários, Cadernos do IDN<br />

de Junho, II Série Nº 02, p. 13-20.<br />

NUNES, Paulo Viegas (1999). “Impacto das Novas<br />

Tecnologias no Meio Militar: A Guerra de Informação”,<br />

in Vários, Revista Militar, p. 1721- 1745, Lisboa.<br />

NUNES, Paulo Viegas (2009). “Ciberterrorismo:<br />

Aspectos de Segurança”, in Vários, Revista Militar, Edição<br />

de Junho, Lisboa.<br />

McNAB, Chris (2004). Network Security Assessment.<br />

O´Reilly, United States of America.<br />

SANTOS, Henrique (2008). Apontamentos de<br />

Segurança Digital, Pós – Graduação em Guerra de Informação<br />

/ Competitive Intelligence, Academia Militar, Lisboa.<br />

TIPTON, F. Harold and KRAUSE, Micki (2004). Information<br />

Security Management Handbook. Fifth Edition,<br />

Averbach, United States of America.<br />

YOUNG, Susan and AITEL, Dave (2004). The<br />

Hacker´s Handbook. Averbach, United States of America.<br />

23


24<br />

A ONU e o uso da força<br />

Dra. Maria do Céu Pinto<br />

Durante a Guerra-Fria, o Conselho de<br />

Segurança (CS) não conseguiu chegar a<br />

acordo quanto a mecanismos colectivos de<br />

enforcement, nomeadamente a activação do artigo<br />

43.º da Carta das Nações Unidas, que prevê o uso<br />

da força contra os Estados agressores1 e o seu<br />

corolário: a constituição de um corpo de forças armadas<br />

ao serviço das Nações Unidas (NU) 2 . Para colmatar<br />

essa falha, foi desenvolvido um instrumento<br />

menor − o peacekeeping −, sob os auspícios das<br />

NU. O peacekeeping foi o expediente de um CS<br />

Fonte: unescap.org<br />

dividido ao qual faltava o consenso para a acção<br />

colectiva e que se contentava em usar um instrumento<br />

menos poderoso e que não tinha implicações<br />

nas relações de poder das superpotências 3 .<br />

No caso de um conflito, o CS pode adoptar<br />

medidas provisórias para “evitar o agravar da<br />

situação”, dispondo de várias opções que não<br />

envolvem o uso da força. Esgotadas as medidas<br />

pacíficas do Capítulo VI da Carta, as hipóteses<br />

apresentadas foram as sanções (artigo 41.º), uma<br />

forma de enforcement não-militar. Se as medidas<br />

anteriormente mencionadas não surtirem efeito, o<br />

CS “(…) poderá levar a efeito, por meio de forças


O peacekeeping foi o expediente de um CS dividido ao qual<br />

faltava o consenso para a acção colectiva<br />

aéreas, navais ou terrestres, a acção que julgar<br />

necessária […]. Tal acção poderá compreender<br />

demonstrações, bloqueios e outras operações, por<br />

parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos<br />

Membros das Nações Unidas” (artigo 42.º).<br />

O enforcement militar na Carta da ONU, previsto<br />

no artigo 42.º, deriva da necessidade de sustentar o<br />

princípio da segurança colectiva. A ideia central do<br />

sistema de segurança colectiva é a defesa de certos<br />

valores, principalmente o da paz. Contudo, se os<br />

meios pacíficos não forem suficientes para assegurar<br />

a paz, então a organização poderá recorrer à ameaça<br />

e/ou uso efectivo da força 4 . Na Agenda para a Paz,<br />

o ex-Secretário-Geral, Boutros Boutros-Ghali, afirma:<br />

“a essência do conceito de segurança colectiva, tal<br />

como contida na Carta, é que se as medidas pacíficas<br />

falharem, as medidas previstas no Capítulo VII devem<br />

ser usadas, por decisão do Conselho de Segurança,<br />

para manter ou restaurar a paz e a segurança<br />

internacional, se se estiver face a uma 'ameaça à paz,<br />

1 O artigo 43.º estabelece que os Estados-membros<br />

concordam em “(…) proporcionar ao Conselho de<br />

Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou<br />

acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades,<br />

inclusive direitos de passagem (…)”<br />

2 Aquele artigo prevê a criação de forças armadas das<br />

NU a serem utilizadas de acordo com planos de acção<br />

determinados pelo CS com a assistência da Comissão de<br />

Estado-Maior, composta pelos Chefes de Estado-Maior dos<br />

membros permanentes do CS (ou respectivos representantes).<br />

O Comité reuniu-se entre 1946 e 1948 para estudar,<br />

do ponto de vista militar, as implicações do artigo 43.º e<br />

avançar com propostas para dar corpo àquele artigo. Devido<br />

a desacordos insanáveis, o Comité suspendeu os seus<br />

trabalhos em 1948 (v. Derek W. Bowett, United Nations<br />

Forces: A Legal Study, NY, Praeger, 1964, pp. 12-18).<br />

Fonte: UN.org<br />

ruptura de paz ou acto de agressão'.” 5<br />

A possibilidade do CS tomar medidas militares<br />

foi considerada um progresso notável em relação ao<br />

sistema da Sociedade das Nações. Contudo, a<br />

importância destas medidas não residia na<br />

expectativa ou probabilidade de se recorrer a elas.<br />

Efectivamente, “pensava-se que a ameaça de acção<br />

militar seria um incentivo importante para fazer com<br />

que os Estados implementassem as medidas que o<br />

Conselho considerasse necessárias para manter ou<br />

restaurar a paz e segurança internacionais. Também<br />

serviria para deter os actos agressivos dos Estados,<br />

constituindo um incentivo adicional para resolver<br />

as disputas entre os Estados.” 6<br />

Voltando ao peacekeeping, este consiste no uso<br />

das forças militares, desprovidas, no seu exercício,<br />

do uso normal da força, para de-escalar ou pacificar<br />

situações de conflito. Boutros-Ghali definiu-o<br />

sinteticamente como o “uso não violento da força<br />

militar para preservar a paz.” 7<br />

O uso de efectivos militares para o desempenho<br />

de tarefas de peacekeeping encerra uma contradição<br />

nos termos. O uso de militares, canonicamente<br />

treinados para a guerra e o combate, parece não se<br />

coadunar com tarefas pacíficas que exigem dos<br />

militares grande restrição e auto-controlo e um<br />

sentido rigoroso de imparcialidade. Apesar disso, a<br />

comunidade internacional vê no peacekeeping militar<br />

uma “panaceia moldável e infinita para os conflitos<br />

mundiais” 8 . Após o exemplo bem-sucedido da UNEF<br />

I I (UN Emergency Force I) para assistir à retirada<br />

das forças invasoras do Egipto (1956-67), criou-se a<br />

convicção de que o peacekeeping se poderia aplicar<br />

indistintamente para implementar cessar-fogos,<br />

retiradas militares e verificar acordos de paz. A função<br />

original do peacekeeping era monitorar as tréguas e<br />

acordos de cessar-fogo com observadores militares<br />

da ONU, desarmados ou usando armamento ligeiro,<br />

que vigiavam as linhas de fronteira e as zonas-tampão<br />

("buffer zones").<br />

3 John Mackinlay e Jarat Chopra, “Second Generation<br />

Multinational Operations”, The Washington Quarterly, vol.<br />

15, nº 3, Verão de 1992, p. 114.<br />

4 Alex J. Bellamy et al., Understanding Peacekeeping,<br />

Cambridge, Polity Press, 2004, p. 147.<br />

5 Boutros-Ghali, Agenda para a Paz, NY, Nações<br />

Unidas, 1992 (ed. em português; a partir de agora, referida<br />

como Agenda), § 42.<br />

6 V. Leland M. Goodrich et al., Charter of the United<br />

Nations: Commentary and Documents, NY, Columbia U.P,<br />

1969, p. 291.<br />

7 United Nations, The Blue Helmets: A Review of United<br />

Nations Peacekeeping, NY, UNDPI, 1996, p. 4.<br />

8 David Rieff cit. in Tom Woodhouse, “The Gentle<br />

Hand of Peace?”, International Peacekeeping, vol. 6, n.º<br />

2, Verão de 1999, p. 24.<br />

25


26<br />

O peacekeeping tornou-se o remédio miraculoso<br />

para resolver os conflitos que proliferaram na Guerrafria,<br />

pela simples razão de que os Estados e as<br />

organizações internacionais não conseguiam<br />

encontrar outro remédio. Escudados pelos princípios<br />

sagrados que os deveriam nortear (a “trindade sagrada”:<br />

consentimento, imparcialidade e o uso da<br />

força) 9 , os peacekeepers foram enviados para todo o<br />

tipo de missões, até para as mais inverosímeis, como<br />

o Congo, o Líbano e a Somália.<br />

Se o peacekeeping é desempenhado por militares,<br />

em última instância ele remete-nos para a possibilidade<br />

de estes usarem da sua prerrogativa natural:<br />

a aplicação da força. Na realidade, o peacekeeping<br />

assenta, como afirma Findlay, sobre um elemento<br />

(implícito e indefinido) de bluff: a de que os capacetes<br />

azuis, se confrontados com situações extremas, usarão<br />

a força. Este bluff é produtivo se tiver um efeito<br />

dissuasor sobre potenciais opositores, isto é, se a<br />

parte antagonista se convencer de que tem algo a<br />

perder se não respeitar os compromissos que<br />

assumiu. Contudo, a capacidade das NU deterem as<br />

forças hostis só existe se: se tiver comunicado de<br />

forma clara à parte adversária o objectivo da missão,<br />

bem como a ameaça da aplicação da força, no caso de<br />

incumprimento ou obstrução por parte dos<br />

“spoilers” 10 ; se a força de peacekeeping demonstrar<br />

a capacidade e a intenção de usar a força.<br />

A realidade é que o peacekeeping nunca foi, como<br />

idealmente se projectou, uma prática inteiramente<br />

pacífica: na UNEF I, a força foi usada logo nos<br />

primeiros dias da operação e, no total, a missão<br />

registou 89 vítimas 11 . A questão do consentimento<br />

das partes também não tem sido uniforme: embora o<br />

Egipto e Israel tivessem aceite a presença da UNEF I<br />

e II, tiveram de ser persuadidos a tal. A ONUC<br />

(Opération des Nations Unies au Congo, entre 1960<br />

e 1964), foi enviada sem o consentimento das<br />

autoridades da província secessionista do Katanga e<br />

a Bélgica, potência colonial em retirada, deu o seu<br />

consentimento com relutância. A UNIFIL (United<br />

Nations Interim Force in Lebanon) trabalha no Líbano<br />

desde 1978 com a aquiescência deste país, mas foi<br />

frequentemente hostilizada e atingida durante<br />

incursões e ataques militares dos israelitas no sul do<br />

Líbano. Os Khmers Vermelhos aceitaram com mávontade<br />

a entrada da UNTAC (United Nations<br />

Transitional Authority in Cambodia) no Cambodja.<br />

O mesmo aconteceu com as facções somalis em relação<br />

à UNOSOM I e II (UN Operation in Somalia). A<br />

Indonésia aceitou a presença da INTERFET<br />

(International Force for East Timor) e da UNTAET<br />

(UN Transition Authority in East Timor) após fortes<br />

pressões da comunidade internacional, inclusive dos<br />

EUA.<br />

Fonte: UN.org<br />

A experiência veio a demonstrar a necessidade de permitir<br />

aos capacetes azuis usar a força.<br />

O uso da força no peacekeeping, para além da<br />

auto-defesa, é viável se a operação for enquadrada<br />

no Capítulo VII da Carta, uma vez que este capítulo<br />

trata de medidas que o Conselho de Segurança pode<br />

impor, como as sanções ou o uso da força militar. Este<br />

entendimento foi confirmado por uma sentença do<br />

Tribunal Internacional de Justiça, em 1962, que<br />

afirmava que as NU têm a capacidade inerente de criar<br />

e assumir o comando de forças militares. Contudo, a<br />

sentença estabelece que estas só podem usar de<br />

“direitos beligerantes” quando autorizadas para tal<br />

pelo Conselho de Segurança, ao abrigo do Capítulo<br />

VII 12 .<br />

O uso da força em auto-defesa é legitimado por<br />

várias fontes. O filósofo holandês Hugo Grotius (1583-<br />

1645) defendeu a auto-preservação como um direito<br />

inerente e natural do indivíduo que nenhuma lei<br />

poderia limitar ou ab-rogar. Também afirmou o direito<br />

dos Estados à auto-defesa, um conceito que está<br />

consagrado na lei internacional através do artigo 51.º<br />

da Carta das NU. Uma vez que as forças armadas são<br />

as principais defensoras do Estado, tem-se deduzido<br />

que o seu direito de auto-defesa colectiva é um<br />

prolongamento do direito dos Estados de assegurarem<br />

a sua auto-defesa. Tem-se partido do princípio de que<br />

os militares desfrutam daquele direito, mesmo quando<br />

operam sob comando das NU. Alguns autores<br />

defendem que a ONU, tal como os Estados, goza do<br />

direito de defesa própria e que o seu pessoal, por<br />

extensão, goza do direito de defesa individual e<br />

colectiva 13 .<br />

Inicialmente, auto-defesa significava a defesa da<br />

pessoa do peacekeeper através das suas armas.<br />

Contudo, a experiência veio a demonstrar a necessidade<br />

de alargar este entendimento de forma a permi-


tir aos capacetes azuis usar a força para: impedir<br />

tentativas de os desarmar, defender as suas posições,<br />

veículos e equipamento contra ataques armados ou<br />

contra tentativas de captura dos capacetes azuis e<br />

apoiar outros contingentes da ONU 14 . Esta concepção<br />

foi posteriormente alargada de forma a autorizar os<br />

capacetes azuis a defender as agências civis e outro<br />

pessoal das NU. Trata-se de uma situação menos clara<br />

porque cabe ao comandante da força decidir sobre<br />

estas situações numa base casuística.<br />

Após 1973, a regra da auto-defesa foi expandida<br />

para acomodar a necessidade de “defesa da missão”.<br />

A auto-defesa passou assim a incluir a resistência a<br />

tentativas, pela força, de impedir os peacekeepers de<br />

desempenhar a sua missão 15 . Trata-se também aqui<br />

de um “terreno pantanoso”, que veio gerar mais<br />

confusão e incerteza, principalmente ao nível dos<br />

comandantes da força, relativamente à interpretação<br />

do sentido de “defesa da sua missão”. Como é sabido,<br />

o CS tende a elaborar o mandato das missões no<br />

sentido mais amplo e a ser o menos concreto possível<br />

em relação a detalhes cruciais e potencialmente<br />

comprometedores para o bom funcionamento da<br />

missão, como o que fazer se a missão não conseguir<br />

desempenhar as tarefas que lhe foram cometidas, se<br />

as partes não cooperarem ou deliberadamente<br />

oferecerem resistência. Face ao habitual alheamento<br />

do CS, a responsabilidade de interpretar a “defesa da<br />

missão” é devolvida ao Secretário-Geral/Secretariado.<br />

A interpretação do que é a “defesa da missão”<br />

depende, obviamente, da natureza e do contexto da<br />

missão. Se se tratar essencialmente de uma missão<br />

humanitária, então a força pode ser usada para permitir<br />

que os capacetes azuis tenham livre acesso às áreas<br />

críticas. Se a missão exigir o desarmamento e<br />

desmobilização dos beligerantes, o uso da força pode<br />

ser mais problemático porque pode desencadear uma<br />

espiral de confrontação.<br />

A utilização da força em auto-defesa tem limites<br />

que estão codificados na lei internacional e têm sido<br />

estabelecidos com a prática. Os mais importantes são<br />

os critérios da necessidade e da proporcionalidade. A<br />

força pode ser empregue se houver necessidade<br />

9 “Holy trinity”, v. Bellamy et al., op. cit., p. 95.<br />

10 Stephen J. Stedman, “Spoiler Problems in Peace<br />

Processes”, International Security, vol. 22, n.º 2, 1997.<br />

11 Trevor Findlay, The Use of Force in UN Peace<br />

Operations, Estocolmo, SIPRI/Oxford University Press,<br />

2002, p. 44.<br />

12 International Court of Justice, Certain Expenses of<br />

the United Nations (Article 17, § 1), Advisory Opinion of<br />

20 July 1962, Reports of Judgements, Advisory Opinions<br />

and Orders International Court of Justice, Haia, 1962, p.<br />

177; cit. in Findlay, op. cit., p. 8.<br />

13 Sobre este assunto, v. Findlay, op. cit., p. 15.<br />

14 International Peace Academy, Peacekeeper´s<br />

absoluta dela, isto é, em última necessidade. Em<br />

segundo lugar, a força usada deve ser proporcional à<br />

ameaça.<br />

O relatório da ONU, A More Secure World, lançado<br />

em Dezembro de 2004, aborda a questão do uso da<br />

força sancionado pelas NU. Trata-se, quer de<br />

situações de auto-defesa (artigo 51.º), quer de<br />

respostas no âmbito das ameaças previstas no<br />

Capítulo VII 16 . Em todos os casos, para ser legítimo, o<br />

emprego da força deve obedecer aos seguintes<br />

critérios:<br />

- Seriedade da ameaça: o mal em causa (contra os<br />

Estados, ordem internacional ou segurança humana)<br />

é suficientemente claro e sério para justificar, prima<br />

facie, o uso da força militar?;<br />

- Justo propósito: é claro que o principal objectivo<br />

da acção militar é deter ou evitar a ameaça em questão,<br />

à parte de outras considerações envolvidas?;<br />

- Último recurso: todas as opções não-militares<br />

foram exploradas a fundo?;<br />

- Meios proporcionais: a escala, duração e<br />

intensidade da acção militar são estabelecidas com<br />

base no mínimo necessário para fazer frente à ameaça<br />

em questão?;<br />

- Balanço das consequências: a acção militar tem<br />

probabilidades razoáveis de fazer face à ameaça ou as<br />

consequências dessa acção podem ser piores do que<br />

a falta de acção?.<br />

Em relação ao uso da força, os Estados têm<br />

demonstrado uma dupla atitude. Por um lado, a<br />

insistência para que o mandato das operações ONU<br />

preveja o uso da força em auto-defesa de forma a<br />

terem alguma garantia de preservação das suas<br />

tropas. Por outro, a relutância em que as operações<br />

de peacekeeping passem esta fronteira e se<br />

envolvam em actividades de enforcement. A<br />

relutância em autorizar missões de enforcement<br />

prende-se com o facto de nas mesmas haver maior<br />

probabilidade de haver vítimas entre os soldados.<br />

Além disso, e no que se refere aos grandes Estados,<br />

o seu receio é que a organização usurpe o seu<br />

monopólio do uso da força 17 .<br />

Apesar disso, as resoluções do Conselho de<br />

Handbook, NY, IPA e Pergamon Press, 1984, p. 57.<br />

15 O relatório da ONU, A More Secure World: Our<br />

Shared Responsibility (Report of the High-level Panel on<br />

Threats, Challenges and Change, 2004), afirma que o uso<br />

da força “[…] é amplamente entendido como estendendose<br />

à 'defesa da missão””, § 213.<br />

16 Em relação ao Capítulo VII, o relatório faz a distinção<br />

entre as ameaças externas (a ameaça que os Estados põem<br />

a outros Estados, a povos fora das suas fronteiras e à ordem<br />

internacional em geral) e as ameaças internas e a consequente<br />

responsabilidade dos Estados de protegerem as suas<br />

populações.<br />

17 V. Findlay, op. cit., p. 16.<br />

27


Segurança que prevêem o enforcement (sanções e<br />

uso da força), raramente o mencionam de forma<br />

explícita 18 . Na operação militar contra a Coreia do<br />

Norte, em 1950, por exemplo, embora a operação<br />

fosse de enforcement, ela não foi enquadrada ao<br />

abrigo do Capítulo VII 19 .<br />

São raras as resoluções, como a 660, de 2 de<br />

Agosto de 1990, em resposta à agressão iraquiana<br />

contra o Kuwait, em que o Conselho explicitamente<br />

afirma agir ao abrigo dos artigos 39.º, 40.º ou 42.º. O<br />

artigo 42.º foi invocado em poucas ocasiões: o que se<br />

explica por este invocar o uso da força. Também o<br />

artigo 39.º, que tem menos implicações, foi referido<br />

raramente: este artigo, estabelece que o CS deve<br />

determinar se, nos conflitos em consideração, existe<br />

qualquer situação de ameaça à paz, ruptura de paz ou<br />

acto de agressão. Nas suas resoluções ao abrigo do<br />

Capítulo VII, o que o CS geralmente tem feito é a<br />

constatação geral da existência (ou da continuação)<br />

de uma ameaça à paz internacional, sem referir o artigo<br />

39.º 20 . Ao qualificar a situação como uma ameaça à<br />

paz, ruptura de paz ou acto de agressão, o CS está a<br />

lidar com situações delicadas, podendo, em<br />

consequência (e dependendo do seu julgamento<br />

político do caso), accionar medidas de injunção. O<br />

Conselho também aplicou medidas do artigo 41.º sem<br />

o citar expressamente e sem ter previamente<br />

determinado se a situação em causa era de natureza a<br />

requerer medidas ao abrigo do Capítulo VII 21 .<br />

No geral, as resoluções referem que o CS está a<br />

agir “ao abrigo do Capítulo VII", uma forma lacónica<br />

de autorizar os Estados-membros a usar a força ou a<br />

fazer uso de outros instrumentos coercivos. Noutros<br />

casos, o CS afirma que se está perante uma ameaça à<br />

paz e segurança internacionais. Por vezes, a<br />

autorização do uso da força vem encapotado em<br />

18 Higgins faz esta observação a propósito das resoluções<br />

relativas ao Congo, mas diz que aquelas se reportavam aos<br />

artigos 25.º e 49.º para vincar a sua natureza obrigatória e o<br />

dever dos Estados-membros de as apoiar: Rosalyn Higgins,<br />

The Development of International Law through the Political<br />

Organs of the United Nations, Londres, Oxford University<br />

Press, 1963, p. 235.<br />

19 Na Resolução 83 do Conselho de Segurança (27 de<br />

Junho de 1950) relativa à invasão da Coreia do Sul, o<br />

Conselho de Segurança “recomenda que os Estados-membros<br />

das Nações Unidas forneçam a assistência à República da<br />

Coreia que for necessária para repelir o ataque armado e para<br />

restaurar a paz e a segurança internacional na área”.<br />

20 Jerzy Ciechanski, “Enforcement Measures under<br />

Chapter VII of the UN Charter: UN Practice after the Cold<br />

War”, in Michael Pugh (ed.), The UN, Peace and Force,<br />

Londres, Frank Cass, 1997, p. 84.<br />

21 Ver, por exemplo, as sanções contra a África do Sul<br />

(resolução 181, de 7 de Agosto de 1963; resolução 182, de 4<br />

de Dezembro de 1963 e resolução 421, de 9 de Dezembro de<br />

1977), Portugal (resolução 180, de 31 de Julho de 1963 e<br />

resolução 218, de 23 de Novembro de 1965) e a Rodésia<br />

28<br />

linguagem eufemística, como “todas as medidas<br />

necessárias” (UNPROFOR, na Bósnia-Herzegovina)<br />

ou “todos os meios necessários” (UNOSOM II, na<br />

Somália). O enquadramento vago do uso da força tem<br />

ainda como consequência não definir o nível ou tipo<br />

de força a ser usada na operação específica.<br />

O CS não só tem decidido sobre o emprego de<br />

medidas de injunção sem as nomear claramente, mas<br />

tem-no feito mesmo quando já tem em vista o executor<br />

dessas medidas: é o caso das resoluções 83 e 84 sobre<br />

a Coreia (1950) 22 e da resolução 221 sobre o embargo<br />

petrolífero contra a Rodésia do Sul (1966) 23 . A<br />

resolução 83 (27 de Junho de 1950) recomenda que os<br />

Estados-membros da ONU forneçam ajuda à Coreia<br />

do Sul; a resolução 84 (7 de Julho de 1950) cria um<br />

Comando Unificado dirigido pelos EUA. A resolução<br />

221 apela aos Estados-membros que quebrem as<br />

relações económicas com a Rodésia do Sul (regime<br />

“branco” de Ian Smith) e que implementem um embargo<br />

ao petróleo e produtos derivados. A resolução foi<br />

criada tendo em mente o Reino Unido, que orquestrou<br />

a elaboração da resolução para montar um bloqueio<br />

naval destinado a impedir a chegada de petroleiros ao<br />

porto da Beira, Moçambique (embargo esse também<br />

dirigido pela Royal Navy, do Reino Unido).<br />

Com o fim da Guerra-fria, as NU começaram a<br />

enquadrar as novas missões de peacekeeping<br />

explicitamente ao abrigo do Capítulo VII, dando lugar<br />

de relevo ao uso da força ou outras medidas de<br />

carácter coercivo. Wallensteen e Johansson calcularam<br />

que 93% das resoluções adoptadas pelo CS ao abrigo<br />

daquele capítulo aconteceram na pós-Guerra-fria 24 .<br />

Desde 1990, 25% das resoluções do CS foram<br />

enquadradas no Capítulo VII. Em 2001, a média foi de<br />

35% e em 2002, de 47%.<br />

Algumas resoluções fazem referência explícita ao<br />

(resolução 216, de 12 de Novembro de 1965 e resolução<br />

217, de 20 de Novembro de 1965). V. Goodrich et al., op.<br />

cit., p. 313.<br />

22 Na realidade, o uso da força na Coreia não foi<br />

sancionado pelo artigo 42.º: a acção foi tomada com base<br />

numa “recomendação” do CS ao abrigo do artigo 39.º V.<br />

Goodrich et al., op. cit., p. 315.<br />

23 A resolução fala explicitamente da conivência das<br />

autoridades portuguesas com o regime da Rodésia.<br />

24 Entre 1946 e 1989, as NU invocaram o Capítulo VII<br />

em 24 ocasiões (v. Bellamy et al., op. cit., pp. 19-20). Entre<br />

1946 e 1986, o CS adoptou oito resoluções ao abrigo do<br />

Capítulo VII. Outras sete resoluções eram de natureza<br />

obrigatória, embora não invocassem aquele capítulo.<br />

25 A UNCRO foi lançada pela Resolução 981, de 31 de<br />

Março de 1995. A UNCRO substituiu a UNPROFOR na<br />

Croácia. Tinha como principais funções velar pela<br />

tranquilidade na região com vista à integração pacífica das<br />

zonas dominadas pelos Sérvios na Croácia (Eslavónia<br />

Ocidental e Oriental, a região da Krajina e a península de<br />

Prevlaka, e garantir os direitos e a segurança das comunidades<br />

minoritárias na Croácia). Em Maio e Agosto de 1995, a<br />

Fonte: www.army.cz.


Em casos mais raros, as missões de peacekeeping dotadas<br />

de mandatos ao abrigo do Capítulo VII eram na realidade<br />

operações de peace enforcement<br />

Capítulo VII nas resoluções que criavam. É o caso da<br />

UNCRO (UN Confidence Restoration Operation) e<br />

da UNTAES (UN Transitional Administration for<br />

Eastern Slavonia, Baranja and Western Sirmium) que<br />

contemplavam, nas resoluções que as instituíam 25 , o<br />

direito de usar a força em auto-defesa (uma<br />

redundância, uma vez que, por natureza, o<br />

peacekeeping permite o uso da força em auto-defesa).<br />

Resoluções mais recentes não só enquadram as<br />

operações ao abrigo do Capítulo VII, como<br />

determinam ainda a existência de uma situação de<br />

“ameaça à paz e à segurança internacional” 26 . Outras<br />

invocam o Capítulo VII e explicitam detalhadamente<br />

as situações em que os peacekeepers estão<br />

autorizados a “usar todos os meios” para desempenhar<br />

o mandato.<br />

A resolução 1545 27 , que cria a ONUB (UN<br />

Croácia conquistou a Eslavónia Ocidental e a Krajina. As NU<br />

ficaram reduzidas à presença na Eslavónia Oriental, o último<br />

reduto sérvio. A UNTAES (v. a Resolução 1037, de 15 de<br />

Janeiro de 1996) foi criada na sequência da assinatura do<br />

Basic Agreement on the Region of Eastern Slavonia, Baranja<br />

and Western Sirmium (parte dos Acordos de Dayton, 1995),<br />

que previa a transferência pacífica destas regiões, de população<br />

maioritariamente sérvia, para o governo croata. O Acordo<br />

solicitava ao CS que estabelecesse uma administração<br />

transitória durante 12 meses e que criasse uma força<br />

internacional para manter a paz e a segurança nesse período<br />

(a operação acabaria por ter a duração de 24 meses). A<br />

UNTAES tinha uma componente militar (essencialmente<br />

para supervisionar a desmilitarização da região, assegurar o<br />

regresso dos refugiados e pessoas deslocadas aos seus locais de<br />

origem e manter a segurança em geral) e uma componente<br />

civil (para criar e treinar uma força de polícia, organizar<br />

eleições, ajudar na reconstrução económica e monitorizar o<br />

respeito pelos Direitos Humanos); v. http://www.un.org/<br />

Depts/dpko/dpko/co_mission/untaes_p.htm. É ainda o caso<br />

da MINURCA (UN Mission in the Central African Republic),<br />

criada em Abril de 1998. A MINURCA foi dotada de um<br />

Fonte: www.gov.east-timor.org.<br />

Operation in Burundi), enuncia uma lista de nove<br />

situações em que os soldados da missão estão<br />

autorizados a “usar todos os meios”. Elas vão da<br />

monitorização do cessar-fogo, até ao desarmamento<br />

e desmobilização dos combatentes, protecção dos<br />

civis e protecção do pessoal das NU, das suas<br />

instalações e equipamento. A resolução que cria a<br />

missão das Nações Unidas no Sudão, a UN Mission<br />

in Sudan, é mais concisa, mas paradigmática no que<br />

se refere às situações de enforcement tuteladas pelo<br />

CS: “Decide que a UNMIS é autorizada a tomar as<br />

acções necessárias, dentro das suas possibilidades e<br />

na área de posicionamento das suas forças, para<br />

proteger o pessoal das Nações Unidas, suas<br />

instalações e equipamento; garantir a segurança e<br />

liberdade de movimento do pessoal das Nações<br />

Unidas, pessoal humanitário, do pessoal do<br />

mecanismo de avaliação conjunta e da comissão de<br />

avaliação e, sem prejuízo da responsabilidade do<br />

governo do Sudão, proteger os civis sob ameaça<br />

iminente de violência física” 28 .<br />

Noutros casos, algumas missões lançadas ao<br />

abrigo do Capítulo VI foram posteriormente reforçadas<br />

com a previsão do uso da força. Trata-se do caso<br />

mais comum nos anos 90, em que certas missões se<br />

defrontaram com dificuldade continuadas, como a<br />

UNPROFOR. A UNPROFOR foi inicialmente lançada<br />

como uma missão de peacekeeping. Em Fevereiro de<br />

1993, dois dos seus três segmentos (Croácia e Bósnia-<br />

Herzegovina) transformaram-se em operações do<br />

Capítulo VII 29 . Também a UNOSOM, na Somália, foi<br />

uma operação de peacekeeping entre 1992 e Junho<br />

de 1993. Nessa altura, o CS rebaptizou a operação<br />

(UNOSOM II) e deu-lhe um mandato ao abrigo do<br />

Capítulo VII. Em casos mais raros, as missões de<br />

peacekeeping dotadas de mandatos ao abrigo do<br />

mandato do Capítulo VI, substituindo a operação MISAB<br />

(Inter-African Mission to Monitor the Implementation of<br />

the Bangui Agreements) que tinha sido dotada de um mandato<br />

do Capítulo VII, mas apenas para proteger a segurança e<br />

liberdade de movimentos do seu pessoal. A Multinational<br />

Protection Force, lançada para a Albânia em 1997, recebeu<br />

a mesma autorização de uso da força da MISAB. A MONUC,<br />

estabelecida em Novembro de 1999 para o Congo, recebeu<br />

um mandato do Capítulo VII em Fevereiro de 2000: para<br />

proteger a força, o pessoal da Comissão Conjunta Militar e<br />

os civis ameaçados.<br />

26 Caso da resolução 1509, de 19 de Setembro de 2003,<br />

que cria a UNMIS para o Sudão.<br />

27 De 21 de Maio de 2004.<br />

28 Ao contrário destas resoluções, a resolução 1479, de 13<br />

de Maio de 2003, que cria a UN Mission in Côte d´Ivoire<br />

(MINUCI), não refere explicitamente o Capítulo VII, mas<br />

determina “[…] que a situação na Costa do Marfim constitui<br />

uma ameaça à paz e segurança internacional na região”.<br />

29 Resolução 807, de 19 de Fevereiro de 1993, e Resolução<br />

815, de 30 de Março de 1993. A UNPROFOR na Macedónia<br />

permaneceu como operação de peacekeeping.<br />

29


30<br />

Capítulo VII eram na realidade operações de peace<br />

enforcement: casos da UNOSOM II, na Somália, da<br />

UNTAET, em Timor, e da UNAMSIL, na Serra Leoa.<br />

Modalidades do uso da força<br />

Geralmente, o CS não tem usado a força nos moldes<br />

previstos no Capítulo VII, isto é, usando as forças<br />

militares ao abrigo de acções colectivas como aquelas<br />

previstas no artigo 43.º (com o uniforme da ONU e<br />

sob o seu comando). Jane Boulden faz a distinção<br />

entre operações de puro peace-enforcement e<br />

operações de “mandate enforcement”. As primeiras<br />

poderiam definir-se com mais precisão como “fullfledged<br />

enforcement”, o que “[…] significa conduzir<br />

operações ofensivas de combate para impor os termos<br />

de um mandato a um malfeitor renitente identificado<br />

pelo Conselho de Segurança” (caso da Coreia do<br />

Norte e do Iraque) 30 . As segundas (actualmente<br />

denominadas “grey area operations”) situam-se num<br />

ponto indefinido algures num percurso que se situa<br />

entre o peacekeeping tradicional e o peaceenforcement.<br />

Nelas, o uso da força é uma necessidade<br />

para assegurar o cumprimento do mandato 31 .<br />

O uso da força autorizado pelo Conselho de Segurança<br />

destina-se, por regra, a reforçar a implementação<br />

do mandato das operações de paz ou a implementar<br />

os acordos entre os beligerantes. Nesse sentido, o<br />

peace-enforcement das NU, geralmente, não<br />

corresponde ao “full-scale enforcement” de<br />

operações, como a intervenção contra o Kuwait de<br />

1991. As operações de enforcement, geralmente,<br />

reúnem os seguintes requisitos:<br />

- autorização ao abrigo do Capítulo VII da Carta;<br />

- autorização para usar a força para fins que vão<br />

além da auto-defesa;<br />

- respeito pela imparcialidade, o que significa que<br />

a operação não tem em conta as reivindicações ou<br />

posições das partes no conflito, mas que se rege<br />

unicamente pelo respeito do mandato;<br />

- o consentimento das partes para a operação não<br />

é um pré-requisito 32 .<br />

Em vez disso, o CS tem autorizado certos Estados-Membros<br />

ou coligações de Estados a, por sua<br />

delegação e em seu nome, usar a força. Aliás, o artigo<br />

42.º não especifica que as forças empregues em<br />

operação de enforcement sejam forças da ONU: limitase<br />

a autorizar o CS a fazê-lo “[…] por meio de forças<br />

aéreas, navais ou terrestres”. Além disso, o artigo 48.º<br />

refere expressamente que “[A] acção necessária ao<br />

cumprimento das decisões do Conselho de Segurança<br />

para a manutenção da paz e da segurança internacionais<br />

será levada a efeito por todos os Membros das<br />

Nações Unidas ou, por alguns deles, conforme seja<br />

determinado pelo Conselho de Segurança.” 33<br />

O artigo fala ainda do papel que outras organizações<br />

internacionais podem desempenhar na<br />

execução das “decisões” do CS: “[Essas] decisões<br />

serão executadas pelos Membros das Nações Unidas<br />

directamente, e, por seu intermédio, nos organismos<br />

internacionais apropriados de que façam<br />

parte.” 34 O artigo 53.º afirma que o CS pode lançar<br />

mão de acordos ou organizações regionais para “[…]<br />

uma acção coercitiva sob a sua própria autoridade.”<br />

O uso da força, autorizado pelo Conselho de<br />

Segurança, tem revestido as seguintes modalidades:<br />

- coligações lideradas pelos Americanos: Coreia<br />

(1950), Iraque-Kuwait (1990), Somália (1992), Haiti<br />

(1994);<br />

- autorizações a países a título individual para<br />

organizar e comandar uma força multinacional: A<br />

França, no Ruanda (“Operação Turquesa”, 1994), a<br />

Itália, na Albânia (“Operação Alba”, em 1997) e a<br />

Austrália, em Timor-Leste (INTERFET, 1999);<br />

- a delegação do uso da força em entidades<br />

regionais: É o caso das acções militares da NATO na<br />

Bósnia-Herzegovina em 1994-5, em especial a<br />

“Operação Deliberate Force”. Um exemplo recente<br />

foi a criação da Multinational Force to Liberia,<br />

composta por membros da Comunidade Económica<br />

dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e<br />

destinada a restabelecer a segurança no país após o<br />

reacender do conflito em inícios de 2003. É ainda o<br />

caso da missão da Interim Emergency Multinational<br />

Force (conhecida como “Operação Artémis”, em<br />

2003), lançada pela União Europeia para a República<br />

Democrática do Congo a fim de permitir às Nações<br />

Unidas reforçarem a MONUC 35 ;<br />

- as operações da NATO autorizadas pelo<br />

Conselho de Segurança na Bósnia-Herzegovina: na<br />

sequência dos Acordos de Dayton, de Novembro de<br />

1995, foram lançadas a Implementation Force, em 1995<br />

(IFOR), e a Stabilization Force, em 1996 (SFOR);<br />

- o uso da força em certas operações de peacekeeping,<br />

como a UN Operation in Somalia II (UNOSOM<br />

II) e a UN Mission in Sierra Leone (UNAMSIL);<br />

- autorização do uso da força concedida a missões<br />

que não são da ONU: é o caso da autorização<br />

concedida a uma força autorizada pela ONU, a International<br />

Security Assistance Force, ISAF no<br />

Afeganistão. Trata-se de uma força constituída nos<br />

moldes de uma “coalition of the willing”, criada<br />

com a autorização do CS mas organizada fora do<br />

âmbito da ONU 36 . Foi mandatada para providenciar<br />

a segurança na área em torno de Cabul, para apoiar a<br />

Autoridade Transitória do Afeganistão, o Governo<br />

Provisório (eleito em Janeiro de 2005) e para auxiliar<br />

as actividades da UN Assistance Mission to Afghanistan<br />

(UNAMA), bem como outras agências<br />

humanitárias.


Foto: arquivo JE<br />

Foto: arquivo JE<br />

As intervenções da ONU após a Guerra-fria<br />

(Cambodja, Somália, Bósnia-Herzegovina e Ruanda)<br />

ocorreram em ambientes voláteis, de alto risco e<br />

incerteza e em guerras civis de contornos mutáveis.<br />

Nestas operações, é fundamental que os contornos<br />

do uso da força sejam definidos sem margem para<br />

ambiguidades. É necessário “[…] que decisões<br />

políticas claras precedam e sustentem um mandato<br />

[…] na execução das tarefas, a importância da eficácia<br />

militar cresce à medida que a intensidade da operação<br />

aumenta, até que no limiar do enforcement colectivo,<br />

se torna a chave principal do sucesso.” 37<br />

Trata-se de operações que têm vindo a ser<br />

designadas, na gíria, como missões de “middle<br />

ground” ou “grey area operations” por se encontrarem<br />

a meio caminho entre o peacekeeping tradicional<br />

e o peace-enforcement 38 . Brian Urquhart, um dos<br />

30 Donald C. F. Daniel e Bradd C. Hayes, Securing<br />

Observance of UN Mandates Through the Employment of<br />

Military Force, in Pugh, op. cit., p. 108.<br />

31 Jane Boulden, The United Nations and Mandate<br />

Enforcement, Kingston, Ontário, Centre for International<br />

Relations/Institut Quebécois des Hautes Études Internationales,<br />

1999, p. 3.<br />

32 Id., p. 4.<br />

33 Meu itálico.<br />

34 Artigo 48.º § 2 (meu itálico).<br />

35 UN Organization Mission in the Democratic Republic<br />

of Congo; Resolução 1484 de 30 de Maio de 2003.<br />

36 Inicialmente, certos Estados ofereceram-se para liderar<br />

a ISAF numa base semestral. O primeiro foi o Reino Unido,<br />

seguido pela Turquia. A terceira missão da ISAF, a partir de<br />

Fevereiro de 2003, foi liderada conjuntamente pela Alemanha<br />

e pela Holanda, com o apoio da NATO. Desde 11 de Agosto de<br />

2003, a ISAF é liderada pela NATO e financiada pelos Estados-<br />

Membros que contribuem com tropas (v. http://www.nato.int/<br />

issues/afghanistan/evolution.htm e http://www.afnorth.<br />

artífices do peacekeeping onusiano, admitiu a<br />

necessidade de encontrar uma opção intermédia que<br />

se situe entre o binário peacekeeping - peaceenforcement:<br />

“É necessária uma terceira categoria de<br />

operações internacionais militares algures entre o<br />

peacekeeping e o enforcement em larga escala. Seria<br />

destinada a pôr fim à violência descontrolada e a criar<br />

um grau razoável de paz e ordem, de forma a que o<br />

trabalho humanitário possa prosseguir e que o<br />

processo de reconciliação possa ter início […] ao<br />

contrário das forças de peacekeeping, tais tropas<br />

incorreriam, pelo menos inicialmente, em alguns riscos<br />

em combate para controlar a violência: consistiriam<br />

essencialmente em acções armadas de polícia.” 39<br />

O uso da força em missão de peacekeeping é uma<br />

matéria polémica e os debates em curso sobre esta<br />

matéria não são sempre definitivos. O General Michael<br />

Rose, antigo comandante da UNPROFOR, inventou<br />

a expressão “linha de Mogadíscio” (“Mogadishu<br />

line”) − que depois se popularizou nos debates da<br />

área − para transmitir a ideia dos riscos que se incorre<br />

ao ultrapassar a fronteira que separa o peacekeeping<br />

do enforcement. O General Rose diz que o nível de<br />

força que supera os requerimentos do peacekeeping<br />

é como “[…] atravessar a fronteira - a linha de<br />

Mogadíscio - que separa os não-combatentes dos<br />

combatentes.” O General Rose afirma que “[…] é<br />

óbvio que, quando uma força militar está ao serviço<br />

de uma missão humanitária de peacekeeping, estálhe<br />

interdito, pela sua natureza e regras de<br />

empenhamento, actuar como combatente.” 40 O General<br />

Rose conclui que “[…] a necessidade de manter o<br />

consentimento e a imparcialidade, por um lado, e a<br />

necessidade de usar a força, por outro, devem ser<br />

reconciliados, se a comunidade internacional pretender<br />

que o peacekeeping continue a ser uma opção viável<br />

para a resolução internacional de conflitos.” 41 JE<br />

nato.int/ISAF/about/about/_history.htm).).<br />

37 Mackinlay e Chopra, op. cit., p. 118.<br />

38 Também designadas como “Capítulo VI+”, “Capítulo<br />

VI e Meio”, “Segundo Nível”, “Wider Peacekeeping” e<br />

“Peacekeeping Musculado ou Robusto”: v. Robert M. Cassidy,<br />

“Armed Humanitarian Operations”, Working Paper da<br />

CIAONET, 1998, p. 1. V. Peter Viggo Jakobsen, “The<br />

Emerging Consensus on Grey Area Peace Operations<br />

Doctrine: Will It Last and Enhance Operational<br />

Effectiveness?”, International Peacekeeping, vol. 7, nº 3,<br />

Outono de 2000, pp. 38-47. V. também a posição de Michael<br />

Pugh, “From Mission Cringe to Mission Creep?”, in Pugh<br />

(ed.), op. cit., p. 191.<br />

39 Sir Brian Urquhart, “Who Can Stop Civil Wars?”, The<br />

New York Times, 29 de Dezembro de 1991, secção 4, p. 9.<br />

40 Sir Michael Rose, “Military Aspects of Peacekeeping”,<br />

in Wolfgang Biermann e Martin Vadset (eds.), UN<br />

Peacekeeping in Trouble: Lessons Learned from the Former<br />

Yugoslavia, Aldershot, Ashgate, 1998, p. 159.<br />

41 Ibid.<br />

31


32<br />

A<br />

centralidade dos programas de Governação<br />

e Reforma do Sector de Segurança (RSS)<br />

nas agendas da cooperação internacional e,<br />

mormente, nos esforços de reconstrução pósconflito<br />

ou de processos de transição democrática<br />

ficou a dever-se a uma alteração paradigmática: a<br />

segurança não é mais exclusiva do Estado, nem<br />

como referente, nem como fornecedor; a segurança<br />

é humana. Isto trouxe implicações bem mais<br />

profundas do que aquelas que iremos abordar, mas<br />

do ponto de vista do sector de segurança isto<br />

significou a introdução de padrões e normas de<br />

governação, transparência e responsabilização, do<br />

primado do estado de direito, da sujeição da acção<br />

destas forças a agendas de direitos humanos e ao<br />

controlo civil, e à reconversão do modo como um<br />

sector de segurança é pensado, funciona e é<br />

monitorizado.<br />

O nexo segurança e desenvolvimento, a<br />

demonstração que sem paz não há desenvolvimento<br />

e que o desenvolvimento sem paz é apenas<br />

temporário, fez com que a comunidade internacional<br />

reconhecesse que tem que dar resposta a ambos<br />

os desafios, em simultâneo. A reforma dos sectores<br />

de segurança surge inserida neste esforço mais global<br />

de optimizar a eficácia da ajuda, tratar as causas<br />

profundas dos conflitos e perceber o que faz uma<br />

sociedade constituir-se com resiliência, como<br />

espaço democrático, de paz e com um projecto de<br />

desenvolvimento sustentável.<br />

Em Timor-Leste este é um projecto para gerações.<br />

Portugal é um parceiro privilegiado nesta construção<br />

e, não obstante os sucessos limitados até agora, há<br />

um caminho que deve continuar a ser percorrido, com<br />

ajustes, mas sempre com a certeza de que a viabilidade<br />

do estado, o desenvolvimento do país e a segurança<br />

do povo implicam uma profunda revisão e consequente<br />

reforma do sector de segurança.<br />

Da assistência militar<br />

tradicional à reforma<br />

do sector de segurança<br />

Mestre Mónica Ferro<br />

Os programas de RSS são novos na história da<br />

cooperação entre os Estados. O que é novo é o<br />

facto de a reestruturação e assistência nestas<br />

matérias ter deixado de ser vista como um exclusivo<br />

dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da<br />

Defesa, altamente politizada e focada na segurança<br />

do Estado e na assistência técnica e desenvolvimento<br />

de capacidades tecnológico-militares; e ter<br />

cessado a abordagem de soma-zero aos gastos<br />

militares, isto é, a ideia de que cortes nos gastos


militares se converteriam imediatamente em<br />

recursos disponíveis para o desenvolvimento.<br />

Enquanto a primeira abordagem é sintoma de Guerra<br />

Fria, a segunda traduz uma lógica simplista, datada,<br />

de certos programas, como os de ajustamento<br />

estrutural do Banco Mundial, em que a redução das<br />

despesas militares era, em si, uma coisa boa e<br />

proporcionaria ganhos de desenvolvimento.<br />

Foi o fim da Guerra Fria e a demonstração de que<br />

tal ligação entre a redução dos aparelhos de segurança<br />

e os ganhos em estabilidade política e em<br />

www.un.org (Reuters Photo by Cheryl Ravelo)<br />

desenvolvimento era, na melhor das hipóteses,<br />

contingente, e, com frequência, causa de mais<br />

instabilidade, podendo até levar à destruição dos<br />

aparelhos de segurança, tornando-os incapazes de<br />

garantirem a segurança interna e a defesa contra as<br />

ameaças externas, a ascensão de sociedades civis<br />

livres e organizadas, a afirmação do paradigma da<br />

segurança humana e de um novo pensamento sobre<br />

a RSS que fez desta o ponto de entrada privilegiado<br />

para a consolidação e fortalecimento de estados numa<br />

qualquer situação de fragilidade.<br />

Os países da Europa Central e de Leste, após 1989,<br />

foram os primeiros a executarem RSS em sentido actual,<br />

quando reorientaram as suas sociedades e as<br />

reformaram para poderem aderir à Organização do Tratado<br />

do Atlântico Norte (NATO) e à União Europeia<br />

(UE); para além de reorganizarem e reestruturarem as<br />

suas forças armadas e aparelhos de defesa, tiveram<br />

que desenvolver estruturas civis de monitorização e<br />

supervisão, reescrever conceitos e doutrinas,<br />

promover o envolvimento dos parlamentos no<br />

processo e mudar toda uma atitude e mentalidade típica<br />

do período bipolar que se encerrava.<br />

Esta RSS foi potenciada, desenvolvida em padrões,<br />

normas, boas práticas e inserida na agenda do<br />

desenvolvimento graças a iniciativas dos países<br />

nórdicos e da Holanda e do Departamento para o<br />

Desenvolvimento Internacional do governo britânico,<br />

e por organizações como a Organização para a<br />

Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE),<br />

que tem desenvolvido um trabalho conceptual e<br />

programático notável. A ONU e, mais recentemente, a<br />

UE têm levado a cabo projectos de RSS, bem como a<br />

NATO, a União Africana e outras organizações<br />

regionais, mas sem uma doutrina policial e militar que<br />

os sustente conceptualmente.<br />

O que é Reforma do Sector<br />

de Segurança<br />

A RSS é um conceito normativo e programático<br />

que visa reformar ou reconstruir o sector de segurança<br />

dos estados. Tem como ponto de partida um sector<br />

disfuncional que não garante a segurança ao estado<br />

e ao povo, ou ainda, sectores de segurança que são<br />

fontes de insegurança em si.<br />

A RSS é um esforço sistematizado, holístico<br />

abordando segurança e desenvolvimento como se<br />

de dois gémeos virtuosos se tratassem, de construir,<br />

reconstruir, reformar ou transformar sectores de<br />

segurança (onde se incluem todos os actores<br />

envolvidos no mesmo desde o Parlamento que faz as<br />

leis, aos Ministérios que as executam, aos agentes<br />

que a aplicam e aos organismos que supervisionam a<br />

33


34<br />

democraticidade e transparência deste processo e,<br />

ainda, às forças de segurança que operam à margem<br />

deste quadro de referência), tornando-os mais<br />

adequados aos desafios que os países têm que<br />

enfrentar: o desenvolvimento humano sustentável e<br />

a consolidação da paz.<br />

A governação do sector de segurança, de todas<br />

as entidades com um mandato legítimo para o exercício<br />

da força, e de todas as estruturas que a exercem à<br />

margem da lei ou mesmo competindo com o poder<br />

legítimo, num quadro de governação democrática de<br />

provisão de segurança humana é, por conseguinte, o<br />

No que diz respeito<br />

à Polícia, que após<br />

a crise de 2006<br />

tem recebido o grosso<br />

da atenção<br />

e dos recursos, é,<br />

mais uma vez<br />

Portugal que,<br />

ao lado da UNMIT<br />

e da UNPOL, mais apoia<br />

o processo de reforma<br />

fim último.<br />

Em Timor-Leste, a agenda de reforma é uma agenda<br />

típica de cenários de reconstrução pós-conflito,<br />

com tarefas como desarmamento, desmobilização e<br />

reintegração de antigos combatentes, desminagem,<br />

combate ao tráfico de armas ligeiras, justiça transitória,<br />

reforço do estado de direito, reforma da Polícia e das<br />

Forças Armadas, boas práticas para o sector de<br />

segurança e construção de um enquadramento<br />

legislativo adequado.<br />

A Reforma do Sector<br />

de Segurança em Timor-Leste<br />

O Sector de Segurança em Timor-<br />

Leste<br />

O sector de segurança em Timor-Leste é o produto<br />

de factores resultantes da ocupação indonésia, da<br />

UN Photo - Martine Perret<br />

A construção da Polícia Nacional de Timor Leste foi outra<br />

das prioridades do mandato da UNTAET.<br />

desmobilização da resistência, da actuação da<br />

Administração Transitória das Nações Unidas<br />

(UNTAET) na construção de um estado timorense e<br />

das decisões pós-independência.<br />

A construção das forças armadas de Timor-Leste<br />

foi feita com a desmobilização dos antigos<br />

combatentes das FALINTIL – que actuava na<br />

clandestinidade e em que muitos dos seus elementos,<br />

embora tivessem alguma experiência de combate, não<br />

tinham treino militar nem disciplina ou coesão, típicos<br />

de uma força organizada. Para além disso, alguns<br />

combatentes não “puderam ser integrados no novo<br />

exército, deixando-os ressentidos por terem sido<br />

deixados de fora e a sentirem-se desprezados 1 ”.<br />

Decidir quem ficava e com que posto no pequeno<br />

exército timorense foi uma fonte constante de<br />

tensões 2 .<br />

E mesmo a criação de forças armadas foi uma<br />

decisão pressionada pela evolução dos acontecimentos.<br />

Sérgio Vieira de Mello, o administrador<br />

transitório de Timor-Leste, reconheceu que antes de<br />

Setembro de 1999 a opção da equipa das Nações<br />

Unidas que acompanhava Timor era por um modelo<br />

tipo Costa Rica 3 . E, quando a violência de Setembro<br />

eclode, essa opção é afastada sem que essa equipa<br />

estivesse preparada para decidir o que fazer com as<br />

forças de guerrilha das FALINTIL, e para sequer<br />

pensar como criar um aparelho militar para um pequeno<br />

pobre país vizinho de um gigante 4 .<br />

A construção da Polícia Nacional de Timor Leste<br />

(PNTL) foi outra das prioridades do mandato da<br />

UNTAET 5 . Também aqui as Nações Unidas tinham<br />

experiência, mas não tinham doutrina ou filosofia<br />

própria, e tiveram que criar a PNTL com indivíduos<br />

sem experiência relevante e com elementos que


tinham sido membros da polícia indonésia acusados<br />

de corrupção e violações de direitos humanos. A<br />

PNTL acabou por incluir antigos membros da polícia<br />

indonésia ao lado de recrutas sem qualquer<br />

experiência e alguns postos elevados, incluindo o<br />

de comandante, foram ocupados por timorenses<br />

que tinham pertencido à polícia indonésia 6 .<br />

As sementes para as cisões e tensões dentro<br />

das forças de segurança estavam lançadas. A falta<br />

de estatuto da Polícia (que estava mal equipada e<br />

mal preparada), o descontentamento generalizado<br />

pelos salários baixos e falta de infra-estruturas e<br />

equipamento adequado, o ressentimento contra os<br />

que tinham trabalhado nas forças indonésias e as<br />

evidentes tensões entre os protagonistas políticos<br />

timorenses, em especial entre o Presidente da<br />

República e o Primeiro-Ministro, alimentaram um<br />

clima de instabilidade e frustração social. A crise de<br />

2006, a chamada “crise dos peticionários”, apenas<br />

veio juntar a este contexto as acusações de<br />

discriminação e politizar um conflito que nunca<br />

havia sido relevante: as rivalidades inter-regionais<br />

entre loromunus e lorosaes.<br />

A Crise dos peticionários<br />

Foi a crise de 2006, a tal dos<br />

peticionários, que fez com que a questão<br />

da Reforma do Sector de Segurança<br />

subisse ao topo da agenda timorense com<br />

carácter de urgência.<br />

A crise de 2006 é profundamente<br />

complexa e teve como catalisador<br />

o despedimento de cerca de 600<br />

soldados das F-FDTL, em<br />

Março de 2006, que<br />

reivindicavam não terem<br />

sido promovidos por<br />

motivos de discriminação.<br />

As manifestações em Díli, em Abril,<br />

rapidamente revelaram que os<br />

manifestantes estavam altamente politizados,<br />

alinhados partidariamente e que a questão tinha mais<br />

a ver com o controlo do poder político no país do<br />

que com a alegada discriminação. A mobilização de<br />

grupos de jovens foi o corolário da exploração política<br />

do descontentamento provocado pela falta de<br />

emprego e de oportunidades de uma larga maioria<br />

da população. Em 28 de Abril, quando a violência<br />

eclodiu, as imagens de jovens, polícias e forças armadas<br />

combatendo nas ruas deixou prever o pior:<br />

que a mais jovem nação do mundo estivesse a<br />

caminho de se tornar no seu mais recente Estado<br />

falhado 7 .<br />

O saldo final da crise foi um sector de segurança<br />

desacreditado, disfuncional e um pedido de apoio<br />

internacional para a reposição da ordem e da paz em<br />

Timor. Timor-Leste não foi capaz de lidar com os<br />

problemas que esta crise pôs a descoberto; as<br />

demissões de Xanana Gusmão e de Mari Alkatiri<br />

levaram o país a eleições antecipadas e os problemas<br />

do sector de segurança foram relegados para<br />

segundo plano, preparando o cenário para os<br />

atentados de Fevereiro de 2008 e prolongando a<br />

situação das pessoas internamente deslocadas que<br />

apenas agora regressaram a casa. Um exemplo cabal<br />

de que procrastinar apenas torna a solução mais<br />

difícil.<br />

A Revisão e Reforma do Sector<br />

de Segurança<br />

O mês de Abril de 2006 revelou a ausência de<br />

uma política de segurança nacional e graves falhas<br />

na legislação sobre segurança; uma polícia com baixo<br />

prestígio e um excesso de interferência política na<br />

sua actuação; falta de transparência e de mecanismos<br />

de controlo político, tais como supervisão parlamentar<br />

e judicial para ambas as forças de segurança.<br />

Uma crise que estava à espera de acontecer.<br />

Ao estabelecer a<br />

UNMIT, o<br />

Conselho de<br />

Segurança<br />

advoga explicitamente<br />

necessidade<br />

de uma<br />

revisão integrada<br />

do sector<br />

de segurança8<br />

. O relatório<br />

do SG, do mesmo mês,<br />

afirma que a superação da crise<br />

recente implicava uma abordagem<br />

holística ao sector de segurança, em que<br />

se identificassem as necessidades e futuros<br />

papéis da polícia e das forças armadas, bem como as<br />

formas pelas quais se pudesse transformar uma<br />

relação competitiva numa relação cooperativa9 e 10 untaet-cap www.diggerhistory.info.jpg<br />

.<br />

Está assim montado o palco para que a RSS fosse<br />

a protagonista dos esforços de cooperação<br />

internacional.<br />

Em Timor-Leste estão em curso vários programas<br />

de RSS executados por organizações internacionais<br />

ou bilateralmente. A falta de coordenação entre<br />

doadores internacionais tem-se revelado contraproducente<br />

e apenas o novo paradigma que parece<br />

surgir, em que o governo se apropria dessa<br />

coordenação, parece poder resgatar alguma eficácia<br />

35


36<br />

dos processos em curso.<br />

As áreas de reforma mais activas são a das<br />

forças armadas, da polícia, do sistema de justiça, a<br />

inclusão de uma dimensão de género e de direitos<br />

humanos nas boas práticas para o sector, a justiça<br />

transitória com ênfase no apuramento da verdade e<br />

o fim da impunidade e, ainda, a criação de<br />

capacidades nacionais para a governação do sector<br />

de segurança 11 .<br />

A reforma das F-FDTL tem sido executada no<br />

âmbito da cooperação bilateral com Portugal, ao<br />

lado da Austrália, a serem os grandes parceiros de<br />

Timor. Portugal tem disponibilizado recursos,<br />

consultores e formadores e todo o tipo de assistência<br />

solicitada. O Secretário de Estado da Defesa<br />

timorense afirma que o modelo para a formação<br />

militar básica em Timor será o “sistema português,<br />

o qual se rege pelos padrões da NATO, podendo a<br />

formação especializada basear-se no sistema de<br />

outros países” 12 . Também o Brasil e a China se<br />

posicionam como interessados em aprofundar a<br />

cooperação nestas áreas.<br />

No que diz respeito à Polícia, que após a crise<br />

de 2006 tem recebido o grosso da atenção e dos<br />

recursos, é mais uma vez Portugal que, ao lado da<br />

UNMIT e da UNPOL 13 , mais apoia o processo de<br />

reforma. A liderança timorense favorece um sistema<br />

de polícia tipo português (Ramos-Horta já declarou<br />

publicamente que o modelo da Guarda Nacional<br />

Republicana é o que melhor se adequa a Timor-<br />

Leste) e Portugal tem prestado aconselhamento nas<br />

várias fases de constituição da Polícia, desde o<br />

processo legislativo até o recrutamento, certificação<br />

e formação. Austrália e Nova Zelândia são, também,<br />

parceiros relevantes nesta matéria.<br />

A inclusão de uma dimensão de género na<br />

Polícia, de uma cultura de direitos humanos nas<br />

forças armadas são processos de formação<br />

demorados e cujos resultados poderemos aferir a<br />

médio prazo. A realização de workshops e de acções<br />

de formação têm dado frutos muito limitados.<br />

A questão do apuramento da verdade e fim da<br />

impunidade é um assunto que tem sido muito<br />

controverso, sobretudo face à ausência de quaisquer<br />

consequências das conclusões da Comissão<br />

de Acolhimento, Verdade e Recepção, e à inclinação,<br />

de alguma liderança timorense para uma prática de<br />

amnistias que em nada favorece a justiça transitória,<br />

não contribui para a reconciliação nacional e gera,<br />

na população, a sensação de que os elementos das<br />

forças de segurança e do governo estão imunes à<br />

O forte investimento que o Governo está a fazer em infraestruturas<br />

e equipamento para as forças de segurança<br />

melhorará a eficácia das mesmas e aumentará a auto-estima<br />

dos seus elementos.<br />

UN Photo - Martine Perret<br />

UN Photo - Martine Perret<br />

Ramos-Horta declarou que o modelo da GNR é o que melhor<br />

se adequa a Timor-Leste.<br />

justiça.<br />

Da perspectiva da acção multilateral, a UNMIT<br />

tem uma Unidade de Apoio à RSS e a equipa das<br />

Nações Unidas no terreno gere três programas<br />

exclusivamente centrados no sector de segurança.<br />

Como já referimos, a RSS é definida pela ONU<br />

como uma área fundamental para a consolidação<br />

do estado e na resolução que estende o mandato<br />

da UNMIT até Fevereiro de 2010 é reafirmada a<br />

importância de clarificar os papéis e responsabilidades<br />

das F-FDTL e da PNTL, de modo a fortalecer<br />

os quadros legais e melhorar os mecanismos civis<br />

de fiscalização e responsabilização de ambas as


instituições de segurança, é solicitado à UNMIT que<br />

continue a apoiar o Governo de Timor-Leste nestes<br />

esforços 15 .<br />

Para este efeito, destacamos o programa de revisão<br />

e levantamento das necessidades do sector de<br />

segurança 16 , o programa de apoio ao desenvolvimento<br />

de uma capacidade nacional para uma boa governação<br />

do sector de segurança 17 e, ainda, o Projecto de Justiça<br />

também do PNUD 18 .<br />

De facto, há uma evidente abundância de<br />

parceiros e de programas de RSS em Timor-Leste sem<br />

que a coordenação esteja assegurada ou a<br />

sobreposição seja evitada. Neste sentido, os esforços<br />

recentes do governo de apropriação do processo<br />

parecem-nos um passo na direcção certa.<br />

RSS made in Timor-Leste<br />

O governo timorense, no seu programa (com uma<br />

parte intitulada especificamente Reforma do Sector<br />

de Segurança) na forma como constitui o seu<br />

organograma e nas suas declarações revela vontade<br />

de construir uma capacidade nacional para gestão e<br />

governação do seu sector de segurança. Esta evolução<br />

é resultado de dois fluxos de sinal divergente: por um<br />

lado, a desejável timorização do processo que significa<br />

que têm que ser os timorenses, em processos<br />

inclusivos, apartidários, a consensualizarem quais são<br />

as suas necessidades de segurança e quais os meios<br />

que deverão ser cativados para garantia da mesma;<br />

pelo outro, algum desconforto e descrédito na forma<br />

como os actores internacionais o têm estado a fazer,<br />

de cima para baixo, de fora para dentro, mais orientados<br />

pelas suas agendas do que para as necessidades do<br />

beneficiário 19 .<br />

A criação do Grupo para a Reforma e Desenvolvimento<br />

do Sector de Segurança é sintomático desta<br />

mudança de paradigma. Para além desta, há várias<br />

reformas a destacar: o Decreto-Lei que aprova a Lei<br />

Orgânica do Ministério da Defesa e da Segurança, a<br />

Proposta de Lei de Segurança Nacional (que regulamenta<br />

a cooperação entre a PNTL, as F-F-DTL e a<br />

Protecção Civil), a Revisão da Lei do Serviço Militar<br />

(e respectiva regulamentação), a Proposta de Lei de<br />

Defesa Nacional. Em fase de aprovação encontramse<br />

diplomas relevantes, tais como a Lei da Programação<br />

Militar e o Código de Justiça Militar; a definição<br />

de um novo Conceito e Sistema de Formação e a<br />

criação de um novo Conceito de Emprego das Forças<br />

Armadas. O forte investimento que o Governo está a<br />

fazer em infra-estruturas e equipamento para as forças<br />

de segurança melhorará a eficácia das mesmas e<br />

aumentará a auto-estima dos seus elementos.<br />

São passos no caminho certo, mas que não<br />

dispensam a monitorização e aconselhamento<br />

internacional no que diz respeito a ajudar os timorenses<br />

a escolherem o melhor modelo para o seu sector<br />

de segurança e a sujeição destes a boas práticas<br />

identificadas.<br />

O caminho em diante<br />

O caminho em diante foi o título do primeiro<br />

relatório de desenvolvimento humano de Timor-<br />

Leste, em 2002. Além de ter identificado a pobreza<br />

como o principal desafio que Timor-Leste teria que<br />

vencer, o Relatório demonstra como um compromisso<br />

com o desenvolvimento humano pode pôr o<br />

país num caminho de paz e prosperidade. É esse<br />

compromisso que tem que ser recuperado, reconhecendo<br />

que sem segurança nenhum dos dividendos<br />

da paz será sustentável, como a destruição de<br />

infra-estruturas e o elevado número de pessoas<br />

internamente deslocadas, provocados pela crise de<br />

2006, tão bem demonstraram.<br />

Construir um sector de segurança eficiente e<br />

eficaz, profissional, integrando todos grupos<br />

diferenciados do país, cumprindo uma agenda de<br />

direitos humanos, sujeito ao primado do direito e a<br />

mecanismos de controlo parlamentar e civil e a<br />

padrões e normas internacionais de boa governação<br />

é uma missão quase impossível, sobretudo num<br />

estado em situação de fragilidade como é Timor-<br />

Leste. Uma reforma tão profunda como a que é<br />

necessária implicaria uma espécie de pausa na<br />

segurança – uma situação em que o país pararia e<br />

cessariam as necessidades de segurança enquanto<br />

se procederia à reforma. Na impossibilidade deste<br />

cenário, as forças de segurança têm que ser<br />

reformadas enquanto executam o seu papel que<br />

também vai sendo reformado, acrescentando mais<br />

desafios a um processo que nunca é simples, nem<br />

rápido, nem passível de ser aprendido num sítio e<br />

aplicado a outro, de tão distintas que são as<br />

condições no terreno.<br />

Não obstante estes constrangimentos, há uma<br />

série de recomendações que Timor-Leste e os seus<br />

parceiros podem seguir tentando optimizar recursos<br />

e resultados.<br />

A RSS é um processo de longa duração, de<br />

gerações, com medidas de impacto rápido, mas que<br />

devem ser sempre pensadas para cada caso concreto<br />

e de forma sustentável. Esta sustentabilidade<br />

é garantida pelo empenho das lideranças nacionais,<br />

pela definição de objectivos claros, pela programação<br />

e financiamento adequados, mas também por<br />

alguma flexibilidade do projecto original que<br />

permita adapta-lo às dinâmicas de cada caso.<br />

Como Timor-Leste já o demonstrou antes, a<br />

vontade de devolver o poder e as responsabilidades<br />

37


A vontade de devolver o poder e as responsabilidades às autoridades nacionais não deve traduzir-se em saídas precipitadas<br />

e sem estratégia.<br />

às autoridades nacionais não deve traduzir-se em<br />

saídas precipitadas e sem estratégia. Isto significa que<br />

os doadores internacionais devem estar preparados<br />

para sair, mas apenas quando os padrões<br />

internacionais tiverem sido atingidos. A programação<br />

deve ter este desígnio muito presente.<br />

As organizações internacionais que não tenham<br />

doutrinas militares e policiais definidas (não obstante<br />

os recursos e a experiência que possuam) devem<br />

abster-se de liderar missões de construção de<br />

capacidade nacionais para boa governação do sector<br />

de segurança. Em Timor, uma das críticas que se ouve<br />

é que cada acção de formação tem a marca da<br />

nacionalidade do formador, precisamente porque as<br />

Nações Unidas não têm uma doutrina que os enquadre<br />

a todos. Aqui, a competição entre modelos e agendas<br />

nacionais é uma constante.<br />

A coordenação internacional deverá ser preparada<br />

desde o planeamento e não tentada no terreno. O que<br />

as experiências demonstram é que os doadores não<br />

comunicam entre si e raramente reconhecem que o<br />

modelo do outro é melhor do que o seu. Assim, a<br />

apropriação nacional dos programas e da sua<br />

coordenação, possibilitada pela construção de<br />

capacidades nacionais para o efeito, parece ser a<br />

resposta a essa descoordenação.<br />

Esta preparação do governo para assumir as suas<br />

responsabilidades passa por uma mudança de atitude<br />

da comunidade de doadores que deverá permitir que<br />

sejam os próprios timorenses a escolher quais os<br />

modelos de polícia, de forças armadas, de sistema<br />

judicialque preferem, bem como de quem querem que<br />

os ajude a implementá-los. A solução chave na mão,<br />

38<br />

do tipo aqui têm um modelo e um agente de<br />

implementação, e que tem sido seguida em relação a<br />

Timor, tem sido rejeitada pelas lideranças políticas e<br />

militares locais.<br />

Mais uma vez a solução é timorizar o processo:<br />

construir capacidades para que o governo, o parlamento,<br />

o sistema judicial, a sociedade civil e todos os<br />

outros actores saibam identificar as suas necessidades<br />

de segurança, escolher de entre todas as opções<br />

disponíveis o modelo que melhor se lhes adapta e, de<br />

acordo com normas internacionais exigentes,<br />

escolherem e trilharem o seu próprio caminho.<br />

O caminho em diante é cheio de obstáculos, mas<br />

fazendo justiça e reforçando o estado de direito, a boa<br />

governação e reforma do seu sector de segurança<br />

serão uma consequência e uma etapa para um Timor-<br />

Leste mais desenvolvido, mais pacífico e mais seguro.<br />

O preço de não escolher este caminho será a próxima<br />

crise.JE<br />

1 Initiative for Peacebuilding, Country Case Study: Timor-<br />

Leste, Security Sector Reform in Timor-Leste, Junho 2009, p. 8.<br />

2 Mónica Ferro, “Chasing Failure Away in Timor-Leste,”<br />

DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos,<br />

12, 2007, Instituto do Oriente, Lisboa, http://ioriente.<br />

iscsp.utl.pt/revista_12.pdf p. 94<br />

3 Idem.<br />

4 Sérgio Vieira de Mello, UNTAET: Lessons to learn for<br />

future United Nations Peace Operations, Presentation to the<br />

Oxford University European Affairs Society, Oxford, 26 de<br />

Outubro de 2001<br />

5 Cfr. UNTAET Press Office, Fact Sheet 6 – Law and<br />

Order, Abril 2002.<br />

UN Photo - Martine Perret


6 Initiative for Peacebuilding, SSR in Timor-Leste, op.<br />

cit., p. 9.<br />

7 Mark Forbes, “A nation ruled by the gun,” The Age, 21<br />

Maio 2006.<br />

8 S/RES/2006/1704, 25 Agosto 2006.<br />

9 S/RES/2006/628, para. 62<br />

10 A Comissão de Inquérito que investigou as causas da<br />

crise de 2006 concluiu que o governo não tinha sido<br />

suficientemente proactivo no tratamento da falta de uma<br />

política nacional de segurança e dos problemas evidentes<br />

entre a polícia e as forças armadas. “Report of the United<br />

Nations Independent Special Commission of Inquiry for<br />

Timor-Leste (CoI)”, 2 Outubro 2006 disponível in<br />

www.ohchr.org/english/countries/tp/docs/CoIReport-<br />

English.pdf<br />

11 Mónica Ferro, Reinaldo Hermenegildo Saraiva, “Re/<br />

Formação do Sector de Segurança em Timor-Leste,”<br />

DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos,<br />

14, 2009, no prelo.<br />

12 Júlio Tomás Pinto, “A Reforma do Sector de Segurança,<br />

Enfrentado desafios, alcançando o progresso de Timor-<br />

Leste”, 20 de Agosto de 2009, disponível in http://forumhaksesuk.blogsopt.com/2009/08/reforma-do-sector-daseguranca.html<br />

13 A UNPOL é chefiada pelo Intendente Luís Carilho.<br />

Para uma análise e crítica da actuação da UNPOL na<br />

reabilitação, reconstrução e reforma (RRR) da PNTL ver,<br />

entre outros, Nicolas Lemay-Hébert, “UNPOL and Police<br />

Reform in Timor-Leste: Accomplishments and Setbacks,”<br />

International Peacekeeping, 16:3, pp. 393-406.<br />

14 A S/2009/72, para. 21., estabelece como critérios para<br />

essa transferência a capacidade de a polícia nacional responder<br />

adequadamente ao ambiente de segurança num determinado<br />

distrito; a certificação final de pelo menos 80% dos oficiais<br />

de polícia nacional elegíveis num determinado distrito ou<br />

unidade; a existência de certos requisitos iniciais operacionais<br />

e logísticos; e estabilidade institucional que inclui, entre outros,<br />

a capacidade para exercer o comando, controlo e a sua<br />

aceitação pela comunidade.<br />

15 S/RES/1867 (2009), 26 de Fevereiro de 2009.<br />

16 Security Sector Review in Timor-Leste, Disponível in<br />

http://unmit.unmissions.org/Portals/UNMIT/SSR/<br />

Project%20document%20for%20SSR%20signed%<br />

2013June2008.pdf.<br />

17 Projecto coordenado pela União Europeia e pelo<br />

PNUD, executado pelo PNUD em Timor-Leste, intitulado:<br />

Security Sector Review in Timor-Leste – Capacity Development<br />

Facility, assinado em Dezembro de 2008.<br />

18 PNUD “Enhancing the Democratic Rule of Law<br />

through Strengthening the Justice System in Timor-Leste”<br />

programme,” assinado em Dezembro de 2008.<br />

19 Yoshino Funaki, The UN and Security Sector Reform<br />

in Timor-Leste: A Widening Credibility Gap, Center on International<br />

Cooperation, Maio 2009, disponível in http://<br />

fundasaunmahein.files.wordpress.com/2009/07/funakitimor-ssr-final.pdf.<br />

39


40<br />

Tenente-Coronel de Artilharia<br />

Joaquim Luís Correia Lopes<br />

Não será necessário trovejar para evocarmos<br />

Santa Bárbara, porque estará sempre<br />

presente na memória de todos e fundamentalmente,<br />

na dos Artilheiros − a sua Santa protectora e<br />

Padroeira.<br />

Mas, talvez na memória dos mais novos<br />

(artilheiros), se possa depreender que Santa<br />

Bárbara sempre foi a Padroeira da Artilharia<br />

Portuguesa, porque na realidade fez exactamente<br />

cinquenta anos que, por despacho de 14 de Abril<br />

de 1959, o Sub-secretário de Estado do <strong>Exército</strong>,<br />

escolheu Santa Bárbara como Padroeira da<br />

Artilharia Portuguesa e 4 de Dezembro, o dia da<br />

Escola Prática de Artilharia.<br />

Parafraseando as palavras do Coronel de<br />

Artilharia, Marino da Cunha Sanches Ferreira, nos<br />

seus comentários na Revista de Artilharia de<br />

Agosto de 1959 (pág. 59), diríamos “vamos<br />

recolocar os pontos nos ii”.<br />

Santa Bárbara viveu na época do imperador<br />

romano Diocleciano. Nascido em 244 na costa da<br />

Dalmácia (Croácia), Diocleciano era de origem muito<br />

humilde. Seu pai foi escriba, talvez mesmo um<br />

antigo escravo de um rico senador. Aparentemente,<br />

recebeu pouca educação para além daquela tida,<br />

no seu tempo, como elementar.<br />

Os primeiros anos de vida de Diocleciano foram<br />

vividos em contexto de falência do Império Romano,<br />

graça a desmazelos internos e externos. Os<br />

imperadores sucediam-se com frequência, sendo<br />

assim a presença de “Deus na Terra” marcada pela<br />

instabilidade e diversidade; concediam grandes<br />

aumentos aos militares ou a quem militasse nos<br />

seus <strong>Exército</strong>s, a fim de “comprar o seu apoio”.<br />

Neste contexto, Diocleciano procurou também<br />

a fortuna nas legiões. Durante esse período, provou<br />

ser astuto, hábil e ambicioso. Foi nomeado “dux da<br />

Mésia” (uma província na margem do baixo


Danúbio), com responsabilidades na defesa das<br />

fronteiras do império. Era um oficial prudente e<br />

metódico, tendo sido mais tarde promovido a<br />

comandante de Cavalaria da guarda pessoal imperial<br />

− posto este que o colocava na condição de virtual<br />

candidato ao trono imperial e mais tarde, por volta<br />

de 283, foi nomeado cônsul.<br />

Com a morte do Imperador Caro, o poder ficou<br />

entregue aos seus dois jovens filhos, Numeriano<br />

no Leste e Carino no Ocidente. Num curto período<br />

Foi na primeira<br />

metade do século XIV<br />

que se iniciou o culto<br />

dos militares à gloriosa<br />

Santa Bárbara<br />

de tempo, Numeriano morreu sob circunstâncias<br />

misteriosas e, em 285, Carino foi morto em combate<br />

perto de Belgrado passando, desde então,<br />

Diocleciano a controlar todo o império.<br />

Diocleciano reabilitou as velhas tradições,<br />

incentivando o culto dos deuses antigos. Perseguiu<br />

os maniqueus, que praticavam uma religião de<br />

origem persa. Empreendeu aquela que é conhecida<br />

por alguns historiadores eclesiásticos como a<br />

penúltima grande perseguição levada a cabo pelo<br />

Império Romano contra o Cristianismo: foi a Era<br />

dos Mártires.<br />

Santa Bárbara viveu na época do imperador romano<br />

Diocleciano<br />

fonte: www.infopedia.pt<br />

A primeira perseguição a todo o espaço imperial<br />

aconteceu sob o “governo” de Maximino, mas o<br />

seu clímax deu-se no tempo de Diocleciano, no final<br />

do século III e início do IV. Esta é considerada a<br />

maior de todas as perseguições. Proibiu as práticas<br />

cristãs e emitiu ordem de prisão ao clero. Aquela<br />

perseguição intensificou-se até que ordenou a<br />

todos os cristãos do Império que se sacrificassem<br />

aos deuses imperiais, sob pena de execução em<br />

caso de recusa.<br />

O termo “Mártir”, de origem grega, que significa<br />

“testemunha”, é aplicado àqueles que morrem<br />

defendendo o Evangelho. Corria então o ano de<br />

303, em que os cristãos foram perseguidos, na justa<br />

medida da sua rejeição aos deuses do Império<br />

Romano e ao culto do imperador. Destas perseguições<br />

e consequentes mártires, dois nomes se<br />

evidenciaram, sendo venerados até aos nossos dias,<br />

particularmente pelos Artilheiros: Santa Bárbara e<br />

São Sebastião.<br />

Santa Bárbara<br />

Foi em Nicomédia (hoje Izmit), capital da antiga<br />

província romana da Bitínia (território actualmente<br />

integrado na Turquia), no séc. III, que nasceu e<br />

viveu Santa Bárbara, sendo também testemunho<br />

do seu martírio.<br />

Os artilheiros escolheram-na como a Santa Padroeira no<br />

início de 1529.<br />

fonte: wikimedia.commons<br />

41


42<br />

Bárbara era filha única de Dióscoro, um rico<br />

comerciante. Ambos eram pagãos. Cioso da beleza de<br />

sua filha, para que ela não tivesse contacto com algum<br />

jovem diferente do tipo que pretendia para seu genro<br />

e para que não sofresse a influência do Cristianismo,<br />

Dióscoro mandou construir uma torre na sua<br />

propriedade e para lá enviou Bárbara. A vigiá-la,<br />

colocou pajens e damas de companhia, seus leais<br />

seguidores, alegando que a filha precisava de<br />

recolhimento para se entregar aos estudos.<br />

Após a instalação de Bárbara na torre, Dióscoro<br />

partiu para uma longa viagem de negócios pelas ilhas<br />

do mar Egeu, permanecendo fora de casa<br />

aproximadamente um ano. Entretanto, Entrementes, o<br />

velho cristão preceptor de retórica, instruía Bárbara<br />

nas verdades cristãs, o que a levou a aceitar o<br />

Cristianismo, a pedir e a receber o baptismo.<br />

Quando o pai voltou encontrou Bárbara,<br />

exuberante nos seus 20 anos, mas logo foi informado<br />

das transformações ocorridas na vida da filha,<br />

incluindo a sua recusa em casar, o que o terá levado a<br />

repreendê-la severamente. Bárbara, conhecendo a ira<br />

do pai, fugiu de casa, mas rapidamente foi encontrada.<br />

Sabendo pela própria filha que se tornara cristã,<br />

acusou-a perante as autoridades e entregou-a para<br />

ser presa. Houve tentativas fracassadas para fazê-la<br />

mudar de ideias, incluindo torturas horríveis. Bárbara,<br />

todavia, permanecia impassível. Foi então condenada<br />

à decapitação.<br />

Alguns historiadores afirmam que o próprio<br />

Dióscoro teria solicitado ao governador Marciano para<br />

ser o executor da sentença. Outros, referem que o<br />

governador, surpreso diante da obstinação de Bárbara,<br />

teria insinuado que o pai era o principal acusador da<br />

filha e fosse também o seu algoz, o seu executor.<br />

Bárbara foi então decapitada pelo próprio pai,<br />

Dióscoro.<br />

Conta-se, então, que após a execução da mártir,<br />

no alto de uma colina, uma tremenda tempestade se<br />

abateu sobre o local. Naquele instante, seu pai foi<br />

atingido por um raio, tendo morte imediata. Por isso,<br />

devido às circunstâncias em que ocorreu o seu<br />

martírio, Santa Bárbara é invocada como protectora<br />

contra tempestades, temporais e tormentas.<br />

O martírio de Bárbara aconteceu em Nicomédia, a<br />

4 de Dezembro, provavelmente no ano de 235, primeiro<br />

ano do reinado do cruel Maximino.<br />

Santa Bárbara foi homenageada desde os tempos<br />

antigos, pelos sírios, gregos e latinos. Inicialmente,<br />

como uma protectora das obras e torres fortificadas,<br />

tornando-se padroeira dos militares, após a invenção<br />

da pólvora. Foi a divina protectora dos soldados que<br />

detinham a força e os depósitos das armas de guerra,<br />

bem como dos marinheiros que tinham à sua guarda<br />

os explosivos existentes a bordo dos navios.<br />

Fonte: almocreve.blogs.sapo.pt<br />

Bárbara foi decapitada pelo próprio pai, Dióscoro.<br />

De salientar que, embora a pólvora negra fosse já<br />

conhecida pelos chineses nos primeiros séculos da<br />

Era cristã, apenas era utilizada em fogos de artifício,<br />

aparecendo na Europa como pólvora e como um meio<br />

de destruição só no século XIV.<br />

Foi precisamente na primeira metade deste século<br />

que se iniciou o culto dos militares à gloriosa Santa<br />

Bárbara. Os artilheiros escolheram-na como a Santa<br />

Padroeira no início de 1529. O Papa Pio XII, em 4 de<br />

Dezembro de 1951, proclamou solenemente Santa<br />

Bárbara de Nicomédia, Celestial Padroeira dos<br />

Artilheiros, Marinheiros, Engenheiros e Bombeiros,<br />

estendendo-se mais tarde o culto da Santa aos doentes<br />

e a todas as pessoas com deficiência, tais como os<br />

leprosos e os moribundos.<br />

Na iconografia cristã, Santa Bárbara é geralmente<br />

apresentada como uma virgem, alta, majestosa, com<br />

uma palma que significa o martírio, um cálice como<br />

símbolo de sua protecção em favor dos moribundos<br />

e, ao lado, uma espada, instrumento da sua morte.<br />

No século VI, as relíquias de Santa Bárbara foram<br />

transladadas para Constantinopla. No século XII, a<br />

filha do Imperador Bizantino Aleixo Comenes, a<br />

princesa Bárbara, após contrair matrimónio com o<br />

príncipe russo Miguel Izyaslavich, transladou-as para


Fonte: S.Sebastião, 1535-40 Museu de Grão Vasco Viseu, Portugal<br />

Kiev, capital da actual Ucrânia, local onde hoje as<br />

suas santas relíquias descansam na Catedral de São<br />

Valdomiro.<br />

São Sebastião e Nossa<br />

Senhora da Saúde<br />

São Sebastião nasceu em França no ano de 256.<br />

Era originário de Narbonne, mas foi criado pela sua<br />

mãe na cidade de Milão, em Itália. O seu nome deriva<br />

do grego Sebastós, que significa divino, venerável.<br />

Sebastião era um soldado que se alistou no exército<br />

romano por volta de 283 com a única intenção de<br />

afirmar o coração dos cristãos, enfraquecidos diante<br />

das torturas. Era apreciado pelos imperadores<br />

Sebastião era um soldado que se alistou no exército romano<br />

por volta de 283 com a única intenção de afirmar o coração<br />

dos cristãos.<br />

Diocleciano e Maximino, que o queriam sempre<br />

próximo; ignorando tratar-se de um cristão,<br />

designaram-no capitão da sua guarda pessoal − a<br />

Guarda Pretoriana.<br />

Por volta de 286, a sua conduta branda para com<br />

os prisioneiros cristãos levou o imperador a julgá-lo<br />

sumariamente como traidor, tendo ordenado a sua<br />

execução.<br />

Entregue a um grupo de arqueiros da Mauritânia,<br />

para que se divertissem atirando flechas para o seu<br />

corpo amarrado a um tronco, foi crivado daqueles<br />

artefactos e depois abandonado como morto, para<br />

ser devorado pelos abutres, conforme também era<br />

habitual nessa altura. Uma cristã, Irene, em segredo,<br />

São Sebastião, de Guido Rurei (séc XVII), Museu do Palácio Rosso de Génova<br />

foi retirar o corpo de Sebastião a fim de lhe dar uma<br />

sepultura digna e, para surpresa sua, viu que estava<br />

vivo.<br />

Sebastião depois de curado, não só não fugiu<br />

para longe do Império, como se pôs a confirmar e a<br />

proclamar a fé cristã, levando outros a crerem em<br />

Jesus. Tendo recebido a notícia de que Sebastião<br />

estava vivo e a provocar os deuses, Diocleciano<br />

ordenou que o aprisionassem; preso, foi condenado<br />

ao espancamento até a morte e decapitado no dia<br />

20 de Janeiro, sendo o seu corpo lançado numa<br />

fossa.<br />

Sabendo do ocorrido, uma cristã, chamada Lucina,<br />

descobriu onde estava o corpo, foi buscá-lo e<br />

sepultou-o no lugar chamado ad catacumbas, na Via<br />

Ápia. Nessas catacumbas, fora dos muros da cidade<br />

de Roma, em 288, tinham sido exumadas as relíquias<br />

dos apóstolos Pedro e Paulo e foi aí que o apóstolo<br />

dos mártires foi também sepultado. Corriam os<br />

primeiros anos do século IV, talvez o ano 303-304,<br />

quando São Sebastião se tornou Mártir.<br />

Mais tarde, no ano de 680, as suas relíquias foram<br />

solenemente transportadas para a Basílica de S. Paulo,<br />

construída pelo Imperador Constantino, onde se<br />

encontram até aos dias de hoje.<br />

Naquela altura, Roma estava assolada por uma<br />

terrível peste que vitimou muita gente. Curiosamente,<br />

a epidemia desapareceu a partir do momento da<br />

transladação dos restos mortais deste mártir, pelo que<br />

43


44<br />

passou a ser venerado como padroeiro contra a peste,<br />

a fome e a guerra.<br />

Foi sobretudo no século XVI que o culto a São<br />

Sebastião se intensificou no nosso País. D. Sebastião<br />

foi, aliás, baptizado com o seu nome, em 1554, por ter<br />

nascido em 20 de Janeiro, dia em que se assinala a<br />

morte do mártir. São Sebastião constitui-se, assim<br />

como o patrono de todos os Artilheiros desde o início<br />

do séc. XVI.<br />

No princípio do século XVI, a classe militar foi<br />

particularmente atingida pela peste, pelo que os<br />

artilheiros invocaram o auxílio de São Sebastião, tido<br />

como protector contra a peste, a fome e a guerra. À<br />

data, os artilheiros da Corte, instalados no Castelo de<br />

S. Jorge, em Lisboa, agradeceram ao seu santo protector<br />

por os ter poupado e constituíram a Irmandade<br />

de São Sebastião. Os artilheiros da Guarnição de<br />

Lisboa, denominados por bombardeiros, mandaram<br />

erguer em 1505, uma pequena ermida dedicada a São<br />

Sebastião, padroeiro e advogado da peste, em<br />

cumprimento da promessa feita ao mártir pelo fim da<br />

epidemia, que nesse ano assolou toda a cidade, tendo<br />

vitimado muitos habitantes.<br />

Mais tarde, em 1569, a peste provocou novamente<br />

uma enorme mortandade em Lisboa: morreram 50 a<br />

60 mil pessoas, numa população de 120 mil habitantes.<br />

Segundo relatos da época, registavam-se por dia mais<br />

de 600 funerais. A epidemia era de tal ordem que, como<br />

havia falta de gente para enterrar os mortos, foi<br />

necessário libertar os presos para esta missão. El-Rei<br />

D. Sebastião e parte da Corte refugiaram-se em Sintra<br />

e a rainha D. Catarina, sua avó, foi para Alenquer. Em<br />

pânico, o povo e a nobreza de Lisboa invocaram em<br />

seu auxílio a Mãe do Céu. Por esse motivo, D.<br />

Sebastião terá pedido uma relíquia significativa de S.<br />

Sebastião, para que a mortandade provocada pela<br />

cólera tivesse um fim, pelo que terá sido enviado de<br />

Roma um braço de São Sebastião.<br />

Assim, e após a chegada das relíquias de São<br />

Sebastião, a peste reduziu-se e como foram atendidos<br />

nas suas preces, mandaram, em prova de gratidão,<br />

fazer uma imagem da Virgem, que foi benzida com o<br />

nome de Nossa Senhora da Saúde. A imagem ficou<br />

então exposta à veneração pública na ermida do<br />

Colégio de Jesus dos Meninos Órfãos.<br />

A 20 de Abril de 1570, teve lugar a primeira<br />

procissão em honra de Nossa Senhora da Saúde,<br />

decorrendo sem interrupções, durante 341 anos −<br />

desde 1570 até 1910, sempre com grande pompa<br />

religiosa e militar (apelidada variadíssimas vezes por<br />

Procissão dos Artilheiros). Com a implantação da<br />

República, seguiu-se um interregno que perdurou até<br />

21 de Abril de 1940, data em que se reatou esta antiga<br />

manifestação de fé e de religiosidade, permanecendo<br />

até aos dias de hoje.<br />

Fonte: Judah Benoliel, 1958, Arquivo Municipal de Lisboa – AFML A43114<br />

Ermida de Nossa Senhora da Saúde.<br />

Padroeira da Artilharia<br />

Por volta de 1959, o debate sobre quem deveria<br />

ser a padroeira da Artilharia entrou na temática dos<br />

números 405 e 406 da Revista de Artilharia. Num<br />

artigo da autoria do General Monteiro do Amaral,<br />

questionava-se qual o dia da Arma, qual a padroeira e<br />

qual o patrono da Artilharia Portuguesa.<br />

Por fim, em Agosto de 1959 no número 407/408 da<br />

Revista de Artilharia, o Coronel de Artilharia, Marino<br />

da Cunha Sanches Ferreira, num artigo intitulado<br />

“Pontos nos ii”, levanta e responde à temática iniciada<br />

pelo General Monteiro Amaral referindo:<br />

“Sabemos que por proposta do Exmº General<br />

Correia Leal, quando ocupava o lugar de Director<br />

da Arma, foi indicada Santa Bárbara para padroeira<br />

da artilharia portuguesa. Essa proposta foi enviada<br />

ao Estado-Maior do <strong>Exército</strong> e mandada submeter<br />

ao estudo da Comissão de História Militar, que lhe<br />

deve ter dado parecer favorável, visto que foi já<br />

oficialmente considerada como padroeira da<br />

Artilharia Portuguesa, afirmação esta baseada na<br />

leitura da Ordem de Serviço nº 106 de 4 de Maio<br />

último, da Escola Prática de Artilharia, assinada<br />

pelo seu Comandante, Coronel Carlos Vidal de<br />

Campos Andrada, que diz”:<br />

Art.º 17 − Dia Festivo da E.P.A. -<br />

Segundo comunica o Q.G. da 4ª R.M. em nota nº<br />

137/1 − P.º 219.2 de 27-4-59, foi o seguinte o despacho<br />

de Sua Excelência acerca do assunto em epígrafe:<br />

“1 − Informo V. Ex.ª que, por despacho de 14 do<br />

corrente de Sua Excelência o Subsecretário de Estado<br />

do <strong>Exército</strong>, é considerada Santa Bárbara como<br />

padroeira da Artilharia Portuguesa.<br />

2 − Deve, portanto o dia da E.P.A. ser transferido<br />

para 4 de Dezembro − Dia daquele Santo − e não para<br />

20 de Janeiro.”


Interior da Capela Real, na EPA.<br />

Em 4 de Dezembro de 1959, realizou-se a cerimónia<br />

de entronização da imagem de Santa Bárbara, na capela<br />

da Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas.<br />

No passado dia 4 de Dezembro de 2009, comemorou-se,<br />

assim, o cinquentenário da designação de<br />

Santa Bárbara como Padroeira da Artilharia Portuguesa<br />

e da sua casa Mãe. É, igualmente, de salientar<br />

que a Escola Prática de Artilharia, como escola mais<br />

antiga do <strong>Exército</strong> Português, celebrará em 18 de<br />

Março de 2011 os seus 150 anos de existência.JE<br />

Biografia<br />

Joaquim Luís Correia Lopes, Tenente-Coronel de<br />

Artilharia, ingressou na Academia Militar em 1984. Prestou<br />

serviço em várias Unidades, nomeadamente: Escola Prática<br />

de Artilharia, Centro de Classificação e Selecção de Lisboa,<br />

Campo Militar de Santa Margarida e Quartel General da RMS.<br />

Presentemente desempenha as funções de Chefe da Secção<br />

de Logística da EPA.<br />

Bibliografia<br />

FERRIL, Arther - A Queda do Império Romano, Rio de<br />

Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989<br />

FINLEY, Moses I. - "O Imperador Diocleciano", in<br />

Aspectos da Antiguidade, Lisboa, Edições 70, 1989<br />

http://portalapui.com.br/paroquia/?page_id=5<br />

SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo, Dicionário<br />

da História de Lisboa, 1.ª ed.,<br />

http://www.monumentos.pt/Monumentos/forms/<br />

002_B1.aspx )<br />

http://www.ordemengenheiros.pt/Default.aspx?<br />

tabid=1761<br />

http://www.jf-sspedreira.pt/<br />

Estatutos da Real Irmandade de Nossa Senhora da Saúde<br />

Revistas de Artilharia n.º 405, 406, 407 e 408, Junho e<br />

Agosto de 1959<br />

45


46<br />

PASSATEMPOS DE OUTROS TEMPOS<br />

in Jornal do <strong>Exército</strong> n.º 2 de Fevereiro de 1961<br />

Soluções deste número:<br />

1 - Sold. com pistola-metr. ao ombro; 2 - Idem sem polainitos; 3 - Cabo clarim com gravata, em camisa; 4 - Sentinela de bivaque; 5 - Faxina<br />

com capote; 6 - Idem sem cinturão; 7 - Ordenança com sabre no lado direito; 8 - Esporas do Oficial de dia.<br />

Pretendo assinar o Jornal do <strong>Exército</strong><br />

Para encomendar basta fotocopiar o cupão e enviar para ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO – Secção de<br />

Logística, Rua dos Remédios, n.º 202 – 1140-065 LISBOA<br />

Nome: ____________________________________________________ Profissão: _________________<br />

Morada: ______________________________________________________________________________<br />

Código Postal: __________________ Localidade: ___________________ Telefone: _______________<br />

(Só para Militares) Posto: _________________ Ramo das FA: _______________ NIF: _____________<br />

Assinatura Anual – Continente e Ilhas: € 20.00 - Via Aérea: Países Europeus € 45.00 - Restantes Países € 65.00<br />

Para pedido de números atrasados, ou encadernações, contacte-nos para: Largo S. Sebastião da Pedreira - 1069-020 Lisboa,<br />

Tel: 213 567 700 ou via email: jornal.exercito@sapo.pt<br />

PARA PAGAMENTO DA MINHA ASSINATURA<br />

TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA: Nacional 0781 0112 0112 0011 6976 9 – D.G.T.<br />

CHEQUE: junto envio o Cheque n.º - ________________ s/Banco - ______________________ à ordem da<br />

Secção de Logística do Estado-Maior do <strong>Exército</strong>.<br />

VALE POSTAL: junto envio o vale postal n.º ______________ no valor de ___________________________


Cronologia<br />

1432 (Janeiro) – Nasce,<br />

em Sintra, o infante<br />

D. Afonso.<br />

1438 (Novembro) –<br />

Afonso V, com seis anos<br />

de idade, é aclamado rei<br />

de Portugal, por morte<br />

de D. Duarte; Infante<br />

D. Pedro regente do reino.<br />

1448 (Agosto) –<br />

D. Afonso V assume<br />

a governação do reino.<br />

1449 (Maio) – Batalha<br />

da Alfarrobeira e morte<br />

do Infante D. Pedro.<br />

1452 – Descoberta das<br />

ilhas ocidentais dos<br />

Açores (Flores e Corvo).<br />

1458 (Outubro) – Conquista<br />

de Alcácer Ceguer.<br />

1461-62 – Descobrimento<br />

das ilhas de Cabo<br />

Verde.<br />

1469 – Arrendamento<br />

do comércio da Guiné<br />

a Fernão Gomes.<br />

1471 – Conquista<br />

de Arzila (após insucesso<br />

em 1463) e ocupação<br />

de Tânger.<br />

1472 – Descoberta<br />

dos Camarões e da Ilha<br />

Formosa.<br />

1475 (Maio) – Invasão<br />

e guerra contra Castela;<br />

casa com a princesa D.<br />

Joana e proclama-se rei<br />

de Portugal, Leão<br />

e Castela.<br />

1475 (Setembro) –<br />

Tratado de aliança com<br />

a França de Luís XI.<br />

1476 (1 de Março) –<br />

Batalha de Toro.<br />

1479 (Setembro) –<br />

Firma o Tratado<br />

de Alcáçovas com os reis<br />

Católicos.<br />

1481 (Agosto) –<br />

Morte de D. Afonso V.<br />

D. Afonso V<br />

e a Batalha de Toro<br />

O Comandante<br />

Filho de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão,<br />

D. Afonso V é aclamado com apenas seis<br />

anos de idade, tornando-se no décimo terceiro<br />

Rei de Portugal e terceiro da Dinastia de Avis.<br />

O seu reinado surge marcado, internamente,<br />

pelo regresso a uma mentalidade feudal mediante<br />

o fortalecimento das casas senhoriais<br />

em detrimento da Coroa.<br />

A acção governativa de D. Afonso V divide-se<br />

em três períodos distintos: o primeiro decorre<br />

desde a sua aclamação ao trono (1438) até ao<br />

desfecho da batalha da Alfarrobeira (1449); o<br />

segundo é marcado pelas expedições ao Norte de<br />

África, que lhe fazem merecer o epíteto de «O<br />

Africano» e acrescentar ao título de «Rei de<br />

Portugal e dos Algarves», a referência «de aquém<br />

e além-mar em África»; a terceira fase integra a<br />

tentativa de união ibérica sob o ceptro<br />

português, chegando a intitular-se rei “per graça<br />

de Deus Rei de Castela e de Léon e de Portugal e<br />

de Toledo e de Galiza e de Sevilha e de Córdoba e<br />

de Múrcia e de Jaen e dos Algarves daquém e de<br />

Além-mar em África e das Aljariza e de Gibraltar e<br />

senhor de Biscaia e de Molina”.<br />

Com uma situação interna estável, D. Afonso V<br />

concentra-se na expansão no Norte de África,<br />

que adia devido à queda de Constantinopla<br />

(1453) e à penetração otomana na Europa,<br />

correspondendo ao apelo de cruzada lançado<br />

pelo Papa Calisto III (1456) com a preparação de<br />

um exército de cerca de 12 000 homens. Contudo,<br />

a morte do Papa cancela o projecto e D. Afonso V<br />

recupera a ideia de conquista no Norte de África.<br />

Consequentemente, conquista Alcácer Ceguer<br />

(1458) e ocupa Arzila e Tânger (1471). A sua<br />

presença no comando dos exércitos no norte de<br />

África granjeia-lhe grande prestígio por toda a<br />

Europa. Para além destes feitos, D. Afonso V<br />

subsidia as explorações no oceano Atlântico e<br />

arrenda o comércio na Guiné a Fernão Gomes,<br />

comerciante de Lisboa, por duzentos mil réis<br />

anuais, na condição de descobrir todos os anos<br />

cem léguas de costa da Serra Leoa para sul<br />

(1469). Desta forma, a exploração da costa<br />

africana atinge o cabo de Santa Catarina<br />

(Gabão), em 1475.<br />

GOMES, Saul, D. Afonso V, Circulo de Leitores, 2006<br />

D. Afonso V.<br />

A empresa das conquistas africanas com que de<br />

D. Afonso V «cravou» o estandarte português<br />

nas terras entre o rio do Ouro e o cabo de Santa<br />

Catarina foi, depois, abandonada em detrimento<br />

do projecto de união ibérica, aproveitando uma<br />

crise sucessória na coroa castelhana e a<br />

aproximação desta a Aragão. Neste contexto, a<br />

aura vitoriosa do rei de Portugal e as liberdades<br />

concedidas à fidalguia portuguesa motivaram<br />

uma franja da nobreza castelhana a solicitar a sua<br />

intervenção. D. Afonso V aproxima-se, então, da<br />

França de Luís XI, negociando uma aliança<br />

ofensiva contra Aragão, em 1475, e ataca nesse<br />

mesmo ano território castelhano. A batalha de<br />

Toro é o culminar de todo o processo.<br />

Será a desastrosa campanha militar em Castela a<br />

causa da perda da influência de D. Afonso V ante<br />

a nobreza castelhana, o rei Luís XI de França e o<br />

Sumo Pontífice. A recuperação do prestígio da<br />

Coroa portuguesa caberá ao filho e sucessor, D.<br />

João II, que privilegiará a estratégia política em<br />

detrimento da militar.<br />

73


74<br />

Cerco de Arzila.<br />

Enquadramento<br />

Político-Estratégico<br />

SÁNCHEZ, Aurélio Valdês, Artillería y Fortificaciones en la corona de Castilla durante el reinado de Isabel la Católica. Secretaria General Técnica del Ministério de Defensa, 2004.<br />

Portugal, no segundo quartel do século XV, é um<br />

Estado que começa a firmar-se na modernidade.<br />

Para isso muito contribui a regência do infante D.<br />

Pedro, marcada por uma política de reforço dos<br />

laços comerciais com áreas e países<br />

economicamente desenvolvidos (Borgonha,<br />

Flandres, Inglaterra, Mar do Norte e<br />

Mediterrâneo) e pelo afastamento relativamente<br />

ao binómio Castela - Aragão. Será esta “visão<br />

arejada”, no quadro da política externa, a razão<br />

pela qual eclode um clima de hostilidade para com<br />

a regência por parte de determinadas franjas da<br />

nobreza. O clima de guerra civil (incitado pela<br />

rainha D. Leonor e pelo duque de Bragança) e o<br />

desapego que o regente tem pelas conquistas<br />

africanas motivam D. Afonso V, após atingir a<br />

maioridade, a dispensar os serviços de D. Pedro.<br />

Depois, impulsionado pela fidalguia e com o<br />

apoio do Duque de Bragança, combate o tio na<br />

Batalha da Alfarrobeira (14 de Maio de 1449),<br />

onde este último morre. Livre “do importuno<br />

censor”, o monarca português lança-se na<br />

cruzada africana.<br />

As conquistas no norte de África representam,<br />

para Afonso V, o reconhecimento perante a<br />

Cristandade da cruzada encetada por Portugal.<br />

Mas, para a Coroa, esta empresa era<br />

politicamente complexa, dela não advindo<br />

riquezas que compensassem a perda de vidas e<br />

energias, constituindo a erosão do erário real um<br />

facto incontornável. Acresce que a conquista de<br />

Marrocos, enquanto ponto decisivo para atingir<br />

Jerusalém, também se mostrou estéril. Contudo,<br />

as conquistas portuguesas no norte de África<br />

concorrem para evitar agitações internas,<br />

garantindo à nobreza e à população em geral


serviço em prol de uma causa colectiva e uma<br />

“escola de guerra”.<br />

O vector ibérico, abandonado por D. Pedro em<br />

consonância com a tradicional política de Avis,<br />

passa, com D. Afonso V, a ter outro<br />

entendimento. Em 1455, promove o casamento da<br />

sua irmã, D. Joana, com Henrique IV de Castela,<br />

lançando as bases de uma política orientada para<br />

a Península Ibérica. Desta união nasce a princesa<br />

Joana que, após um longo período de esterilidade<br />

do rei de Castela, faz levantar a questão da<br />

paternidade da princesa. A discussão do assunto<br />

introduz uma marcada hostilidade sócio-política<br />

relativamente ao monarca castelhano, chegando a<br />

assumir contornos insurreccionais.<br />

Esta é uma questão decisiva, que dividirá Castela<br />

em dois partidos antagónicos, “legitimistas” e<br />

“Isabelistas”. Os primeiros, compostos na<br />

essência pela alta nobreza, vêm na princesa<br />

Joana, (depreciativamente denominada pelos<br />

opositores de “A Beltraneja”) a legítima herdeira<br />

da Coroa. Os segundos, viam no infante Afonso<br />

(irmão de Henrique IV) a solução para conduzir<br />

os destinos de Castela. Porém, este sentimento<br />

esmoreceu após a morte prematura do infante<br />

Afonso, sendo este apoio transferido para a<br />

infanta Isabel (sua irmã), que anui assumir o<br />

trono após a morte de Henrique IV, ocorrida em<br />

Dezembro de 1474. Entretanto, ainda em 1474,<br />

Isabel casa com Fernando, herdeiro do trono de<br />

Aragão (contrariando a tradicional política de<br />

alianças peninsulares), faz-se aclamar rainha de<br />

Castela, em Segóvia, e prepara-se para sustentar<br />

as suas pretensões contra os partidários da<br />

“Beltraneja”. A inserção de Portugal na<br />

conjuntura e o ensejo de D. Afonso V em cingir<br />

as coroas ibéricas completam o xadrez estratégico<br />

peninsular. A questão da sucessão ao trono de<br />

Castela, tal como ocorrera em Portugal em 1383,<br />

ficava em aberto e à mercê do “partido”<br />

politicamente mais hábil e militarmente mais forte.<br />

Aproveitando as solicitações feitas pela fidalguia<br />

castelhana apoiante de Joana, D. Afonso V fica<br />

com “via aberta” para intervir em proveito<br />

próprio. Porém, a aliança de Castela com Aragão<br />

introduziu um factor destabilizador na balança de<br />

poderes da região. Por um lado, colocava<br />

Portugal numa situação de inferioridade face ao<br />

bloco castelhano-aragonês e, por outro, a França,<br />

que mantinha com Aragão um diferendo em<br />

relação ao Rossilhão, passava a contar com um<br />

adversário de peso junto à fronteira ocidental.<br />

Consequentemente, convinha a D. Afonso V a<br />

entrada da França numa hipotética campanha,<br />

que obrigaria João II de Aragão a desviar<br />

atenções militares para a fronteira francoaragonesa,<br />

fragilizando a frente interna de apoio<br />

ao filho e herdeiro Fernando. Dessa forma, D.<br />

Afonso V garantia a liberdade de acção<br />

necessária para intervir na região, sujeitando o<br />

bloco castelano-aragonês a uma guerra em duas<br />

frentes. Assim, D. Afonso V dá início a<br />

negociações com Luís XI em Janeiro de 1475,<br />

sendo o Tratado de Liga Ofensiva entre Luís XI e<br />

D. Afonso V contra o reino de Aragão assinado<br />

em Setembro daquele ano.<br />

Em Abril de 1475, D. Afonso V enceta os<br />

preparativos para dar início à campanha militar,<br />

reunindo em Arronches um exército para o efeito,<br />

nomeia o príncipe D. João para a regência do<br />

reino e marcha para Plasencia, onde realiza<br />

esponsais com Joana “a Beltraneja” (não<br />

materializados) e recebe apoios dos partidários<br />

desta. Iniciava-se a operação “conquista de<br />

Castela”.<br />

A erosão do tesouro real, que as exageradas<br />

doações à fidalguia provocou, aconselhava que a<br />

campanha fosse conduzida com muita<br />

racionalidade. Para o efeito, dever-se-ia<br />

consolidar, inicialmente, os apoios em Castela e,<br />

então, defrontar as forças leais aos futuros Reis<br />

Católicos. Mas a inépcia política e as irresoluções<br />

militares do monarca português deitarão tudo a<br />

perder. Desde logo, a espera por reforços em<br />

Arévalo (onde sofreu enormes baixas resultantes<br />

da peste), permitem a Fernando de Aragão o<br />

tempo necessário para reunir “um exército de más<br />

tropas” que lança cerco, durante nove meses, a<br />

Burgos, leal ao partido da “Beltraneja”.<br />

Percepcionando a falta de capacidade<br />

operacional para socorrer aquela praça, D.<br />

Afonso V abandona-a à sua sorte e dirige-se a<br />

Toro que entretanto, se lhe entrega. Mas o<br />

episódio de Burgos marca, de forma significativa,<br />

a sorte do partido de Isabel que, aos poucos,<br />

fruto da irresoluta actividade militar de D. Afonso<br />

V, favorece a transferência dos apoios de Joana.<br />

Em Dezembro de 1475, forças de Fernando de<br />

Aragão lançam cerco a Zamora, leal ao partido do<br />

«Africano», dando início a um período de<br />

impasse na condução das operações militares.<br />

Incapaz de fazer levantar o cerco a Zamora, D.<br />

Afonso V pede auxílio ao príncipe D. João que, a<br />

partir de Portugal e com o apoio do clero da Beira,<br />

organiza uma hoste para reforçar o exército do<br />

pai. Com as suas forças regeneradas, e numa<br />

tentativa dar batalha a Fernando, “o Africano”,<br />

acomete sobre Zamora, localidade que, mais uma<br />

vez, estaria no centro das grandes decisões<br />

políticas da Península.<br />

75


76<br />

Caracterização dos Aparelhos<br />

Militares<br />

O efeito contrário ao espírito da cavalaria<br />

medieva introduzido pela besta e pela alabarda<br />

nos campos de batalha exponencia-se, a partir<br />

do século XV, com a utilização da arma de fogo.<br />

Assim, a cavalaria perde importância militar e<br />

mantém a sobranceria nobiliárquica, a infantaria<br />

ganha dignidade militar, mas permanece na<br />

base da pirâmide social, a artilharia anula a<br />

característica de baluarte defensivo do castelo<br />

e redu-lo a casa senhorial, a engenharia<br />

desenvolve as futuras fortalezas abaluartadas<br />

enquanto anti-arma dos projécteis de ferro.<br />

Porém, a diminuta mobilidade e a baixa<br />

cadência de tiro, aliadas à reduzida eficácia<br />

demonstrada no número de baixas causadas no<br />

Serpentina e Falconete.<br />

inimigo, leva a que a artilharia raramente seja<br />

usada em batalhas campais. Já as armas de<br />

fogo individuais (espingardas de mecha),<br />

colectivas ligeiras (bombardas de mão ou<br />

colibrina) ou colectivas pesadas (canhões<br />

como a serpentina e o falconete montados em<br />

carretas) conheceram uma forma relativamente<br />

eficaz de emprego em batalha.<br />

A introdução das armas de fogo em Portugal<br />

coincide com o início da dinastia de Avis. D.<br />

Duarte, pelo Regimento de Coudéis, para além<br />

de definir as obrigações de cada súbdito e<br />

província de acordo com os bens e classe<br />

social, insere o recrutamento dos artilheiros,<br />

por contrato, na classe dos mesteirais dos<br />

burgos. As primeiras notícias do emprego<br />

deste novo tipo de armamento, em batalha, são<br />

na malograda tentativa de conquistar Tânger<br />

(1437), na qual os espingardeiros não estariam,<br />

ainda, organizados num corpo autónomo,<br />

combatendo por isso lado a lado com<br />

besteiros.<br />

A regência de D. Pedro reveste-se de especial<br />

importância no que concerne à organização<br />

militar e à aquisição de material oriundo,<br />

principalmente, do Norte da Europa. É com o<br />

Infante que surge a função de Vedor-Mor da<br />

Artilharia (1446), reconfirmada posteriormente<br />

por Afonso V (1449), cujas competências eram<br />

sobretudo territoriais: identificar as peças de<br />

artilharia pertencentes à Coroa e que andassem<br />

DUARTE, Luís Miguel, “1549-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003<br />

extraviadas, fazendo-as recolher aos armazéns<br />

régios; requisitar, aos juízes locais, meios de<br />

locomoção (em geral, animais), bem como<br />

carros e barcas para o transporte das peças;<br />

controlar a entrega das peças nos referidos<br />

armazéns para emprego da hoste real; garantir<br />

o pagamento a mesteirais (bombardeiros,<br />

carpinteiros, pedreiros e ferreiros) destacados<br />

para o serviço da artilharia; garantir que os<br />

castelos e respectivos armazéns estivessem<br />

devidamente providos de artilharia (peças,<br />

munições e pólvora) e que esta fosse bem


Espingarda.<br />

DUARTE, Luís Miguel, “1449-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003<br />

usada e cuidada.<br />

É na segunda metade do<br />

século XV que, decorrente<br />

dos empenhamentos no Norte<br />

de África, se encontra uma<br />

preocupação de organizar os<br />

espingardeiros para combate.<br />

O seu emprego nas<br />

campanhas marroquinas<br />

deve-se, provavelmente, à<br />

generalização da espingarda<br />

que, em 1460, já se fabricava<br />

em Portugal, ainda que a<br />

importação deste armamento<br />

tivesse um peso significativo<br />

em termos de geração de<br />

forças. Deste modo, os<br />

espingardeiros encontravamse<br />

organizados em corpo<br />

próprio e o recrutamento e<br />

treino era dirigido pelo<br />

Anadel-Mor dos<br />

espingardeiros, cargo criado à<br />

semelhança do que existia<br />

para a bestaria de conto. De<br />

facto, a importância que esta<br />

nova força possui em batalha<br />

verifica-se com o seu emprego<br />

na batalha de Toro, quer do<br />

lado castelhano (ainda que o<br />

seu emprego só fosse<br />

generalizado nas primeiras<br />

duas décadas do século XVI),<br />

quer do lado português. Em<br />

batalha, a principal tarefa<br />

destas armas era de<br />

desorganizar a cavalaria<br />

inimiga, de forma a criar<br />

brechas para perturbar e<br />

enfraquecer o efeito do<br />

choque da carga inicial. Isso é<br />

visível em Toro, onde a<br />

primeira salva dos<br />

espingardeiros castelhanos<br />

paralisou e assustou os<br />

cavalos portugueses e os<br />

disparos dos espingardeiros<br />

do príncipe D. João facilitou o<br />

trabalho das lanças que<br />

romperam com grande ímpeto<br />

a formação castelhana.<br />

Não obstante, a introdução<br />

das armas de fogo teve,<br />

inicialmente, efeitos bastante<br />

penosos para os exércitos. O<br />

A Pólvora e a Transformação<br />

da Guerra<br />

O aparecimento da pólvora nos campos de<br />

batalha representou o fim de uma era e<br />

constitui a primeira (e porventura maior)<br />

transformação dos assuntos militares. Trata-se<br />

de um acontecimento “revolucionário”,<br />

desenvolvido ao longo de décadas, que<br />

impeliu a profundas alterações políticas<br />

(centralização do poder do estado e do<br />

príncipe), sociais/mentalidades (fim da<br />

exclusividade guerreira da cavalaria e<br />

consequente “democratização” da guerra com<br />

a crescente importância do infante),<br />

económicos (porque os novos meios técnicos<br />

eram dispendiosos e os exércitos se<br />

sobredimensionaram, os poderes passaram a<br />

ponderar o binómio custos/objectivos) e<br />

militares (readaptações de planeamento<br />

estratégico, organização dos dispositivos,<br />

novas concepções tácticas). Com a utilização<br />

da pólvora nos meios de coacção militares<br />

entra-se, assim, na época técnica da arte da<br />

guerra, em que a tendência latente é a<br />

eliminação, simultaneamente física e moral, do<br />

adversário. A bravura cede o lugar à mecânica,<br />

pois aquele que brandir a melhor arma e dela<br />

souber tirar o máximo proveito técnico e<br />

táctico é o adversário mais temível, qualquer<br />

que seja a sua situação social ou a sua<br />

coragem. Desta forma, a cavalaria, renitente em<br />

adaptar-se aos novos tempos e à novas armas,<br />

vê a sua importância decair, não<br />

compreendendo que a pólvora transformara o<br />

modo de vida cristão da Idade Média. A guerra<br />

deixara de ser uma prova moral pela batalha,<br />

um julgamento de Deus que a Igreja arbitrava<br />

em seu nome; agora, era um meio de que os<br />

governantes se socorriam para atingir fins<br />

políticos.<br />

aumento assinalável dos efectivos dos<br />

exércitos (para além dos homens, a<br />

necessidade de transportar o armamento,<br />

munições e pólvora careceu de um aumento no<br />

número de animais) associado a uma<br />

incapacidade sanitária de processar os<br />

resíduos, que por certo inquinariam fontes de<br />

água e alimentos frescos, levaram para ao<br />

campo de batalha a peste, um inimigo invisível<br />

e quase impossível de combater.<br />

77


80<br />

Descrição da Batalha<br />

Situada a meio caminho entre Zamora e<br />

Tordesilhas (localidades leonesas emblemáticas<br />

na História de Portugal), Toro é uma pequena<br />

vila que D. Afonso V transformou em base<br />

operacional da campanha em Castela. Em<br />

meados de Fevereiro de 1476, o monarca sai de<br />

Toro e marcha para Zamora, que Fernando de<br />

Aragão submete a um cerco a partir das<br />

muralhas a norte. Sem capacidade militar para<br />

romper o assédio do adversário e levar auxílio<br />

aos sitiados no castelo, D. Afonso V monta<br />

arraial na margem esquerda do Douro, junto da<br />

ponte e em linha de vista com a porta sul,<br />

fortificando o terreno. Dessa forma, controlando<br />

o itinerário de exfiltração e mantendo o exército<br />

de Fernando sob pressão, D. Afonso V espera<br />

provocar batalha. No campo contrário,<br />

Fernando, enquanto recebe reforços de Isabel, a<br />

partir de Burgos, e “mede” a força de D. Afonso<br />

V, propõe tréguas, que resultam inócuas face às<br />

exigências territoriais do rei português.<br />

Decorridos cerca de quinze dias e perante o<br />

impasse, agravado por condições climatéricas<br />

adversas que minam o moral da tropa, a 1 de<br />

Março D. Afonso V levanta o arraial e decide<br />

recolher a Toro. É nesta altura que Fernando,<br />

liberto de pressão, abandona Zamora e marcha<br />

na peugada do inimigo. Envia uma força de<br />

cavalaria ligeira a esclarecer a situação, que<br />

estreita contacto com a guarda da retaguarda e é<br />

repelida. Então, perto do fim da tarde, o grosso<br />

do exército castelhano depara-se com o exército<br />

português na veiga de Toro, nas cercanias de<br />

Peleagonzalo. Feito o contacto, os dois exércitos<br />

“medem-se” e os respectivos comandantes<br />

determinam dar batalha, conscientes que o seu<br />

resultado decidirá a sorte da guerra.<br />

A região de Peleagonzalo, relativamente plana, é<br />

delimitada a Norte e a Oeste pelo rio Douro, e a<br />

Sul pelas elevações de Castro Queimado. Com a<br />

frente para Sudoeste, o exército de Afonso V<br />

adoptou a seguinte ordem de batalha: na<br />

vanguarda, com peças artilhadas à sua frente,<br />

estava o senhor da Feria com os seus homens<br />

de armas, no centro da qual se posicionou o<br />

«Africano» com o estandarte real; na ala direita,<br />

apoiada no rio Douro, estava o arcebispo de<br />

Toledo, com as suas lanças, e as forças do<br />

Duque de Guimarães e de Vila Real; na ala<br />

esquerda, apoiado nas cercanias da serra, o<br />

príncipe D. João organizou uma força menos<br />

numerosa que as restantes, mas “cortesaã e mui<br />

limpa”, que contava com os espingardeiros do<br />

bispo de Évora, que lhe guarneciam o flanco<br />

direito, e um grupo de fiéis da “sua casa” e de<br />

besteiros, que sustentavam o flanco esquerdo; a<br />

reserva estava sob o comando do Conde de<br />

Monsanto que, juntamente com os quatro<br />

corpos de peonagem, foi colocada na<br />

retaguarda, junto ao Rio Douro. A hoste<br />

castelhana, cujo potencial se equivalia ao<br />

português (cerca de 10 000 homens),<br />

posicionou-se da seguinte forma: na vanguarda,<br />

a guarda real, comandada pelo mordomo-mor<br />

Henrique, onde se distribuíram os<br />

espingardeiros; na ala direita, sob o comando de<br />

Álvaro de Mendoza, seis pequenos troços de<br />

homens de armas, fronteiro ao contingente de D.<br />

João; a ala esquerda, comandada pelo Duque de<br />

Alba, estava no enfiamento do Arcebispo de<br />

Toledo e compreendia cavalaria e<br />

espingardeiros; a peonagem encontrava-se à<br />

retaguarda da vanguarda, preenchendo os seus<br />

intervalos, sob o comando de D. Fernando; a<br />

“encerrar” o dispositivo encontrava-se uma<br />

pequena reserva.<br />

Portanto, os dois exércitos organizados para a<br />

batalha encaixavam um no outro: formavam em<br />

duas linhas, a vanguarda e as alas consistiam<br />

em troços de cavalaria e espingardeiros, a<br />

segunda linha, apeada, era constituída por<br />

piqueiros e besteiros, enquanto um pequeno<br />

núcleo de reserva montada (superior no<br />

dispositivo português) aguardava as<br />

contingências da batalha. As diferenças<br />

estavam na peonagem, que no caso português<br />

se situava à retaguarda da reserva e,<br />

principalmente, ao nível dos comandantes, pois<br />

D. Afonso V estava na linha da frente,<br />

enquanto D. Fernando se resguardou na linha<br />

de peonagem.<br />

Debaixo de chuva e na fase crepuscular de um<br />

frio dia de Inverno, as trombetas dos<br />

contendores dão o sinal de início da batalha e<br />

os gritos de guerra impelem os homens a medir<br />

forças. Iniciava-se a batalha de Toro, marcada<br />

pela confusão de decisões contraditórias e<br />

ataques simultâneos que redundou no seu<br />

fraccionamento, com resultados divergentes.<br />

Assim, enquanto as vanguardas se<br />

entrechocam, do lado do rio o Duque de Alba<br />

acomete a força do Arcebispo de Toledo e, na<br />

direcção oposta, D. João irrompe contra o flanco<br />

de Álvaro de Mendoza.<br />

O ataque da cavalaria e dos espingardeiros do<br />

Duque de Alba rompe a ala direita portuguesa,<br />

desorganizando-a, criando uma situação de


Croqui da batalha.<br />

desequilíbrio passível de envolver o dispositivo.<br />

Esta acção criou a desordem nas forças da<br />

retaguarda e colocou a vanguarda portuguesa<br />

na iminência de combater numa frente invertida,<br />

que lhe seria fatal. Perante a rotura da sua força,<br />

a impotência da segunda linha e a inacção da<br />

reserva, que se colocam maioritariamente em<br />

fuga na direcção do rio, D. Afonso V,<br />

desconhecendo o que se passava no “combate<br />

de D. João”, dá a batalha como perdida e<br />

abandona o campo, recolhendo à fortaleza de<br />

Castro Nuño.<br />

Contudo, no “outro lado da batalha” os<br />

acontecimentos favoreciam as armas<br />

portuguesas. Detendo a iniciativa, D. João,<br />

apoiado pelos espingardeiros do bispo de<br />

Évora, caiu sobre os seis troços dos homens de<br />

armas de Álvaro de Mendoza, que desbaratou e<br />

empurrou para dentro das linhas inimigas,<br />

seguindo-se uma fuga desordenada na direcção<br />

dos montes sobranceiros, debaixo de<br />

perseguição das tropas do príncipe. No entanto,<br />

não tendo conhecimento do desenrolar da<br />

batalha no seu todo, D. João troca a exploração<br />

Autores<br />

do sucesso e regressa à posição inicial,<br />

reorganizando as suas forças na posição, onde<br />

se lhe junta o remanescente da ala direita<br />

desarticulada pela ofensiva do Duque de Alba.<br />

Porém, o tempo perdido na perseguição ao<br />

contingente de Álvaro de Mendoza gorara,<br />

eventualmente, a oportunidade de anular o<br />

sucesso do ataque do Duque de Alba às tropas<br />

de D. Afonso V.<br />

Decorridas três horas de batalha e com a noite a<br />

velar o campo, Fernando de Aragão, que<br />

assistiu à retirada de D. Afonso V, à derrota de<br />

Álvaro de Mendoza e acompanha a actuação de<br />

D. João, receia o desenlace da batalha e retira<br />

para Zamora, deixando a condução das<br />

operações ao Duque de Alba, que não terá<br />

consequências. D. João é senhor do campo,<br />

onde permanece simbolicamente durante três<br />

horas, a conselho do Arcebispo de Toledo, e se<br />

posiciona como vencedor, mandando acender<br />

fogueiras e tocar trombetas. Só então retirou<br />

para Toro, onde entrou de forma triunfante e<br />

soube da “sorte” do pai, conseguindo mitigar o<br />

caos que grassava na cidade.<br />

81


82<br />

Análise da Batalha<br />

A importância da batalha de Toro visualiza-se na<br />

proeminência dos chefes militares presentes,<br />

concretamente, o rei e o príncipe de Portugal, de<br />

um lado, o príncipe herdeiro de Aragão e o<br />

condestável de Castela, do outro. Toro é uma<br />

batalha em que dois exércitos de potencial<br />

equivalente se defrontam na procura de um<br />

resultado politicamente definitivo. Porém, apesar<br />

do valor individual demonstrado, o resultado é<br />

militarmente indefinido.<br />

Para isso muito contribuíram as condições em<br />

que a batalha se desenrolou. O terreno,<br />

relativamente plano e empapado, conjugado<br />

com as condições meteorológicas adversas e o<br />

cair da noite apresentam-se como um factor<br />

multiplicador dos desacertos tácticos de ambos<br />

os contendores. A ausência de planeamento fica<br />

patente nos esquemas de manobra adoptados<br />

por ambos os adversários em Peleagonzalo. A<br />

opção de uma reserva fraca, no centro do<br />

dispositivo de Fernando, indicia o<br />

conhecimento que este detém da ameaça<br />

portuguesa, permitindo-lhe colocar o máximo<br />

potencial na frente. Para D. Afonso V, o<br />

desconhecimento do potencial de combate do<br />

inimigo é notório. Por isso necessita de uma<br />

reserva forte situada o mais próximo possível da<br />

frente, de modo a reduzir os prazos de<br />

intervenção e, assim, assegurar a necessária<br />

flexibilidade durante a batalha. Além do mais, a<br />

reserva situa-se num local servido de caminhos<br />

que facilitam a sua intervenção e<br />

cumulativamente garante profundidade ao<br />

dispositivo na ala direita.<br />

O resultado indeciso da batalha começa a<br />

desenhar-se logo pós o soar das trombetas. Em<br />

Toro denota-se falta de coesão nos<br />

dispositivos, que é maximizada pela ausência de<br />

comando e controlo por parte dos dois<br />

monarcas. Afonso V, ao mais puro estilo<br />

medieval, coloca-se junto da vanguarda, o que<br />

lhe retira capacidade de tomar decisões durante<br />

o desenrolar da batalha, permitindo que cada<br />

“troço” combata de per si. A ala direita é<br />

rompida e coloca-se em fuga, desorganizando a<br />

reserva e a peonagem que estava na sua<br />

retaguarda. Falta de liderança? Moral baixa? O<br />

facto é que esta retirada se apresentou fatal para<br />

a vanguarda. Sem possibilidade de repor a frente<br />

na ala direita, D. Afonso V vê-se envolvido e<br />

colocado perante a contingência de combater<br />

em duas direcções. A ala esquerda,<br />

http://purl.pt<br />

Batalha de Toro.<br />

contrariamente à primeira, é bem sucedida<br />

na refrega inicial. Porém, a falta de coordenação<br />

e de comando e controlo impedem uma acção<br />

de conjunto do “grupo” de D. João,<br />

desconhecedor das ocorrências da batalha<br />

no seu todo.<br />

Fernando de Aragão, numa posição<br />

resguardada, deixa ao livre arbítrio do<br />

comandante da sua vanguarda o desenrolar da<br />

acção. Neste sentido, se o combate inicial terá<br />

resultados positivos para o partido castelhano,<br />

em virtude da manobra de envolvimento<br />

produzida pela sua ala esquerda, a ausência do<br />

rei é determinante para a retirada do<br />

contestável de Castela, impossibilitado de fazer<br />

a exploração do sucesso. Esta retirada<br />

castelhano-aragonesa permite a D. João<br />

permanecer no campo de batalha, por três<br />

horas, dando, perante os costumes, a vitória<br />

aos portugueses.<br />

Toro é, acima de tudo, uma batalha de grandes<br />

feitos individuais mas, militarmente, uma derrota<br />

de ambos os contendores e uma prova da<br />

“pequenez” táctica dos dois comandantes, que<br />

se permitiram abandonar o campo de batalha<br />

como desconhecedores do seu desenlace.<br />

http://www.vidaslusofonas.pt<br />

D. J


ão II.<br />

Tratado de Alcáçovas.<br />

Consequências<br />

Se a batalha de Toro foi militarmente<br />

inconclusiva, as consequências políticas<br />

resultantes da campanha portuguesa em Castela<br />

foram definitivas. D. Afonso V viu esvair-se o<br />

objectivo de união das coroas de Portugal,<br />

Castela e Leão sob o seu ceptro.<br />

Após a batalha, D. João recolhe a<br />

Portugal de modo a garantir a<br />

defesa da fronteira do Alentejo,<br />

sujeita a assédios nos anos<br />

seguintes. Enquanto isso D.<br />

Afonso V, tendo a percepção da<br />

dificuldade de derrotar Isabel e<br />

Fernando sozinho, retira de Castela<br />

em Junho de 1476.<br />

No final desse ano, o «Africano»<br />

manda preparar uma armada e parte<br />

para França, com o objectivo de<br />

solicitar o cumprimento do Tratado<br />

luso-francês de 1475, ou seja, motivar<br />

a França a auxiliar Portugal na<br />

campanha contra o bloco castelhanoaragonês.<br />

Porém, com Toro tudo<br />

havia mudado. O prestígio de “O<br />

Africano” diluiu-se junto de Luís XI,<br />

não obtendo disponibilidade para a<br />

empresa. Entretanto, Isabel firma-se<br />

SARAIVA, José Hermano (coord.), História de Portugal, (Vol. III, Quidnovi, 2004<br />

como rainha de Castela, unindo o estrato social do<br />

reino, enquanto Fernando sobe ao trono de Aragão<br />

em 1479. Do enlace matrimonial entre os dois e da<br />

união das duas coroas surgirá, posteriormente, a<br />

Espanha, onde o prestígio dos Reis Católicos sobe<br />

de patamar, particularmente junto de Roma, com a<br />

conquista de Granada em 1492.<br />

Assim, D. Afonso V vê diminuir o peso relativo<br />

de Portugal face ao conjunto peninsular por<br />

oposição à dinastia castelhana-aragonesa, perde<br />

credibilidade política junto da França e<br />

desperdiça as “boas graças” do sumo pontífice.<br />

Tal situação é suficiente para o monarca<br />

português entrar num estado de letargia, que o<br />

impele à vontade de resignar em nome do filho. E,<br />

de facto, a partir de 1477, é D. João quem<br />

governa, em nome do pai. Portanto, Toro<br />

desligou, definitivamente, Castela de Portugal e<br />

criou um clima de agressividade que se estendeu<br />

ao mar, passando os castelhanos a atacar os<br />

entrepostos comerciais portugueses em África e<br />

a disputar o domínio da rota da Guiné. D. Afonso<br />

V reconhece, então, os Reis Católicos como<br />

soberanos legítimos de Castela e abandona as<br />

pretensões às Canárias, enquanto que Castela<br />

anula as reivindicações a tudo o que fica para sul<br />

deste arquipélago, até à Guiné. A estratégia<br />

portuguesa passou a residir no domínio marítimo<br />

desde a costa portuguesa à Guiné e no exercício<br />

do esforço negocial com a Santa Sé. Assim, Em<br />

1479, Portugal celebra com Castela a paz de<br />

Alcáçovas, que põe fim à guerra peninsular e aos<br />

diferendos ultramarinos, através de uma primeira<br />

delimitação, em latitude, dos espaços marítimos<br />

das duas potências. Conjuntamente com o<br />

Tratado de Alcáçovas, no sentido de serem<br />

dadas garantias recíprocas de paz, assinava-se<br />

também o Tratado das Terçarias de Moura, no<br />

qual D. Afonso, primogénito de D. João, casaria<br />

com a Princesa D. Isabel, filha dos reis Católicos,<br />

e D. Joana de Portugal casaria com o príncipe D.<br />

João de Castela.<br />

O «Africano» morreria acalentando o sonho de<br />

união Ibérica. O que não se havia sido<br />

conseguido pelas armas mostrava-se, agora,<br />

possível através do engenho diplomático do<br />

Príncipe Perfeito, apresentado internamente como<br />

o vencedor de Toro. Após 1481, D. João II é rei de<br />

Portugal que, de acordo com as suas palavras, e<br />

fruto das liberdades que o pai concedera à<br />

fidalguia, “era rei das estradas do reino”. Mas<br />

tudo iria mudar nos anos seguintes, para quem a<br />

centralização régia e a estratégia de “conter<br />

Castela em terra e batê-la no mar” seriam o<br />

normativo da governação.<br />

83


84<br />

Curiosidades<br />

Curiosamente, a batalha de Toro, segundo as<br />

crónicas da época, teve dois vencedores.<br />

Efectivamente, o cronista castelhano Hernando del<br />

Pulgar, e o português Rui de Pina, enfatizam a vitória<br />

memorável da sua bandeira. O mesmo acontece<br />

quando Fernando de Aragão a relata por carta aos<br />

dignitários do reino, a partir de Zamora (logo a 2 de<br />

Março de 1476) e D. João II, como rei, o faz à Câmara<br />

do Porto (11 de Março de 1482). Estrondosa vitória,<br />

que justifica, em ambos os reinos, efusivas e<br />

solenes festas religiosas em acção de graças, que se<br />

arrastam por anos, e mercês aos valorosos<br />

combatentes que dignificaram as armas reais.<br />

Curioso paradoxo.<br />

Contudo, a batalha de Toro releva, sobretudo, de<br />

actos de heroísmo individuais, que merecem<br />

perdurar na memória colectiva. D. Duarte de<br />

Almeida, o Decepado, é, sem dúvida, um desses<br />

heróis que timbraram com honra o sangue vertido<br />

no campo de batalha.<br />

No final da tarde de 1 de Março de 1476, em Castro<br />

Queimado, na fase mais dura da peleja, D. Duarte de<br />

Almeida, alferes-mor do reino e a quem estava<br />

confiado o pendão real, viu-se cercado de inimigos<br />

que procuravam capturar a balsa portuguesa. Nesse<br />

sentido, uma lâmina castelhana desfere um golpe,<br />

amputando a mão direita do valoroso alferes. D.<br />

Duarte passou o pendão real para a mão esquerda<br />

que, resultante da acção de outra lâmina castelhana,<br />

não tardou a ser cortada. No entanto, perante a dor,<br />

a resistência daquele cavaleiro não fraquejou e,<br />

conforme relata Sousa Viterbo, “com os côtos e com<br />

os dentes, no phrenesi da honra e do patriotismo,<br />

oppunha ainda a mais tenaz resistência”. Incapaz de<br />

resistir, o pendão real foi, então, arrebatado ao<br />

decepado, depois de este ser derrubado da sua<br />

montada. O alferes-mor terá sido levado como<br />

prisioneiro para Zamora e as suas armas e arnês<br />

para a Igreja de Santa Maria de Toledo. Mas o<br />

pendão real português, arrancado «a ferros» do<br />

http://nelsonas.do.sapo.pt<br />

Episódio de “O Decepado”.<br />

alferes-mor, não se manteve em posse castelhana o<br />

tempo suficiente para que o inimigo pudesse tirar<br />

partido da glória alcançada. Efectivamente, Gonçalo<br />

Peres, posteriormente apelidado de Bandeira, um<br />

simples soldado sem o nome inscrito no rol da<br />

nobreza, é outro dos nomes associados a Toro. O<br />

assédio dos cavaleiros castelhanos a D. Duarte de<br />

Almeida foi, provavelmente, presenciado pelo<br />

escudeiro Gonçalo Peres, que se colocou no<br />

caminho daquele que transportava a balsa régia<br />

portuguesa (um fidalgo castelhano de sobrenome<br />

Sottomayor) e “tão rijo golpe lhe deu, que o<br />

derrubou e aprisionou, tomando-lhe o precioso<br />

trophéo, que foi logo apresentar ao principe, cujo<br />

contentamento bem se póde imaginar” (Viterbo). O<br />

prémio a Gonçalo Peres surgiu cerca de sete anos<br />

depois dos acontecimentos de Toro pela mão de D.<br />

João II sob a forma de carta de fidalgo, onde atribuía<br />

um brasão de armas e a possibilidade de<br />

acrescentar, ao seu nome, o apelido de Bandeira.<br />

Toro não foi apenas uma batalha de resultado<br />

indefinido, foi acima de tudo uma batalha medieval<br />

no alvor da época moderna onde o valor individual<br />

se sobrepôs ao valor do todo. Os exemplos de<br />

coragem, lealdade e abnegação traduzidos nas<br />

acções de D. Duarte de Almeida e de Gonçalo Peres<br />

Bandeira e tantos outros heróis de Toro são, ainda<br />

hoje, reconhecidos e lembrados.<br />

Autores:<br />

Tenente-Coronel Abílio Pires Lousada, Professor de História Militar do IESM.<br />

Major Luís Falcão Escorrega, Professor de Estratégia do IESM.<br />

Major António Cordeiro Menezes, Professor de Táctica do IESM.<br />

Bibliografia<br />

- DUARTE, António Paulo, Equilíbrio Ibérico. Séc. XI – XX. História e Fundamentos, Lisboa, Edições Cosmos e<br />

Instituto de Defesa Nacional, 2003.<br />

- DUARTE, Luís Miguel, “1495-1549: o Triunfo da Pólvora”, in Nova História Militar, Direcção de Themudo Barata<br />

e Severiano Teixeira, Vol. 1, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2003.<br />

- DURO, Cesáreo Fernandez,”La Batalla de Toro (1476). Datos y Documentos Para su Monografía Histórica”, in<br />

Boletin de la Real Academia de La Historia, Tomo 38, Cuaderno IV, Abril de 1901.<br />

- GOMES, Saul António, D. Afonso V, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2006.<br />

- RODRIGUES, Barros, Organização dos <strong>Exército</strong>s, Organização Militar Portuguesa, Estratégia, Geografia e História,<br />

Secção IV, História Militar, Lisboa, Escola do <strong>Exército</strong>, 1935-1936.<br />

- VITERBO, Sousa, “A Batalha de Toro. Alguns dados e documentos para a sua monographia histórica”, in Revista<br />

Militar, Ano LII, nº 6, Lisboa, Março de 1900.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!