ALÉM DA ENXADA, A UTOPIA: - Repositórios Digitais da UFSC
ALÉM DA ENXADA, A UTOPIA: - Repositórios Digitais da UFSC
ALÉM DA ENXADA, A UTOPIA: - Repositórios Digitais da UFSC
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
131<br />
No Rio Grande, em julho era a Nossa Senhora do Carmo, e em outubro,<br />
São Francisco, os dois santos que tinha lá. Então nós comia carne de<br />
gado, naquela época o meu pai comprava dois quilos naquela festa pra<br />
trazer pra casa e dois quilos na outra festa. Depois, o ano todo, carne de<br />
gado na<strong>da</strong>. Era só lá. Só que peixe era que nem ir num galinheiro, peixe à<br />
vontade, sempre tinha. Água limpa, água de rio, peixe criado no rio, ao<br />
natural. A gente tinha uma gaiola de ferro, colocava duas espigas de<br />
milho lá dentro e tinha um buraco. Jogava o milho debulhado no chão,<br />
depois botava aquela espiga lá dentro. O peixe rodeava e entrava lá<br />
dentro, só que pra sair ele não achava mais aquele buraquinho. Nós<br />
levava com o cesto os cascudos pra casa. Polenta e peixe, e tinha que ter<br />
sempre o porco engor<strong>da</strong>ndo pra ter a banha pra cozinhar, porque azeite<br />
não existia. Depois nós tinha uma açude de água e soltava eles lá, vivos.<br />
Lá era só pular lá dentro e pegar. Carne de peixe faz muito melhor do que<br />
carne de gado. Polenta não podia faltar, a mãe fazia duas polentas por<br />
dia, naqueles panelões de ferro. Nos primeiros tempos, o trigo não <strong>da</strong>va<br />
bem, nós morava na costa do rio, cerração até de manhã, às vezes. Depois<br />
saía aquele sol quente. Então o trigo quando tava na flor, queimava,<br />
enferrujava. Depois começamos a plantar no alto, na terra dos outros, aí<br />
sim <strong>da</strong>va, não faltou mais pão. Nós chegamos de vender cem bolsas de<br />
trigo. Tudo plantado a boi, arado e enxa<strong>da</strong>, e tudo colhido à mão,<br />
foicinha. Empilhado na roça, nem levava pra dentro do paiol 154 .<br />
Nos dias comuns, era a mulher quem preparava a refeição e, ao reunir a família,<br />
criava a sacrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> união ao redor <strong>da</strong> mesa. Sentar à mesa não implicava apenas no ato<br />
de ingerir o alimento, mas no encontro com a família, pois era geralmente o único tempo<br />
livre do dia. O respeito mútuo era fun<strong>da</strong>mental, mesmo porque não se toleravam outras<br />
atitudes, e a arte de prolongar a existência transmiti<strong>da</strong> pelos mais velhos aconselhava<br />
dedicar esse tempo à alegria e a um bom copo de vinho para facilitar a digestão.<br />
À noite, senta<strong>da</strong> à mesa diante <strong>da</strong> figura paterna, a família se reunia para comer e,<br />
após esse momento, discutia-se a divisão de tarefas para o dia seguinte e analisava-se o dia<br />
que passara. Após a lavagem <strong>da</strong> louça feita pela mulher, ou por uma filha mais velha, todos<br />
se reuniam em frente a uma imagem sagra<strong>da</strong> para as orações costumeiras. A mãe se<br />
encarregava de chamar a família para rezar o terço “com la<strong>da</strong>inhas e tudo, não tão<br />
154 COLPO, Evaristo. Entrevista cita<strong>da</strong>, p. 07.