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Memórias do Holocausto. Aristides de Sousa Mendes - Escola ...

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<strong>Memórias</strong> <strong>do</strong> <strong>Holocausto</strong>.<br />

<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s - Cônsul em Bordéus.<br />

Humanida<strong>de</strong> e castigo ou … o crime <strong>de</strong> salvar ju<strong>de</strong>us<br />

O assunto, ou melhor, a figura que irei apresentar <strong>de</strong> seguida, só há poucos anos me foi<br />

possível dar conta da sua existência, embora eu fosse rapaz já bem cresci<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu<br />

falecimento.<br />

Acontece que este conhecimento tardio, e que envolveu e ainda envolve a quase<br />

totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Portugueses <strong>de</strong>ve-se ao criminoso silêncio que durante longos anos pesou sobre<br />

<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

Nos finais da 2ª Guerra a ditadura estava a caminho <strong>de</strong> se tornar uma das mais longas da<br />

História Mo<strong>de</strong>rna da Europa, e essa própria longevida<strong>de</strong> não augurava nada <strong>de</strong> bom para a<br />

reabilitação daquele que tinha si<strong>do</strong> nosso representante em Bordéus.<br />

De facto, foi preciso esperar até 13 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1988 para que a Assembleia da<br />

República o reabilitasse oficialmente: 48 anos <strong>de</strong>pois da operação <strong>de</strong> Bordéus, mas também 14<br />

anos <strong>de</strong>pois da queda da ditadura!<br />

Como explicar esta lentidão <strong>do</strong> novo regime, saí<strong>do</strong> da Revolução <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1974?<br />

“Muitos <strong>do</strong>s responsáveis pela queda da ditadura eram <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> jovens e não sabiam o<br />

que tinha aconteci<strong>do</strong> durante a guerra. Outros, os mais politiza<strong>do</strong>s, como Álvaro Cunhal ou Mário<br />

Soares, não tinham conheci<strong>do</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, pois não fizera parte da Oposição ao regime<br />

salazarista. Para eles, o cônsul não passava <strong>de</strong> um aristocrata monárquico, que nunca tinha<br />

cumpri<strong>do</strong> uma pena <strong>de</strong> prisão nem nunca fora manda<strong>do</strong> para o exílio.”<br />

Consequência: Mário Soares, Ministro <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros <strong>do</strong> 1º Governo<br />

Democrático, não respon<strong>de</strong>u às cartas que lhe foram enviadas por Joana <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, filha <strong>do</strong><br />

cônsul. O sucessor, Major Melo Antunes, foi mais sensível a esta causa e, em Maio <strong>de</strong> 1976,<br />

encarregou o diplomata Bessa Lopes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>bruçar sobre o caso. Diplomata <strong>de</strong> carreira, Bessa<br />

Lopes tinha também si<strong>do</strong> vítima <strong>de</strong> perseguição política, tanto sob o regime <strong>de</strong> Salazar como da<br />

ditadura supostamente benigna <strong>de</strong> Marcelo Caetano. Tal como <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, Bessa Lopes foi<br />

con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> por um perío<strong>do</strong> in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> à situação <strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong> em serviço.<br />

A primeira coisa que Bessa Lopes fez foi procurar e abrir o processo que tinha si<strong>do</strong><br />

enterra<strong>do</strong> na casa Forte <strong>do</strong>s arquivos <strong>do</strong> Ministério, isto é, levantar a pedra que Salazar tinha<br />

manda<strong>do</strong> colocar sobre o antigo cônsul para toda a eternida<strong>de</strong>.<br />

O Dr. Bessa Lopes redigiu um longo relatório começan<strong>do</strong> por confirmar haver uma lei que<br />

permitia a integração póstuma e imediata “<strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s e que to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>cumentos eram<br />

favoráveis à sua reabilitação”.<br />

1


Num registo muito pessoal, <strong>de</strong>vo referir que na figura <strong>do</strong> honra<strong>do</strong> cônsul <strong>de</strong> Bordéus me<br />

sensibilizou profundamente a sua imensa, incomensurável bonda<strong>de</strong>. Colocan<strong>do</strong> acima das<br />

razões <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e das orientações meramente funcionais (para não referir as pessoais) a causa<br />

<strong>do</strong>s direitos humanos e a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> vidas ameaçadas e con<strong>de</strong>nadas por regimes políticos<br />

bárbaros e totalitários e por uma guerra absurda e <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>ra, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s é hoje<br />

legitimamente reconheci<strong>do</strong> como um símbolo da liberda<strong>de</strong> e <strong>do</strong> espírito <strong>de</strong> resistência.<br />

Finalizan<strong>do</strong> esta introdução queria sublinhar, <strong>de</strong>ixar bem sublinha<strong>do</strong>, que tu<strong>do</strong> quanto irá<br />

ser <strong>de</strong>scrito se encontra sobejamente <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>, nomeadamente nos arquivos pertencentes<br />

ao Esta<strong>do</strong> Português e em testemunhos escritos insuspeitos, excluin<strong>do</strong>-se assim, o que<br />

eventualmente pu<strong>de</strong>sse consi<strong>de</strong>rar-se como matéria <strong>de</strong> opinião, ou <strong>de</strong> invenção.<br />

DE CABANAS DE VIRIATO A BORDÉUS<br />

Quan<strong>do</strong> a França foi invadida pela Alemanha nazi, em Maio <strong>de</strong> 1940, o cônsul português<br />

em Bordéus, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, viu-se perante um <strong>do</strong>loroso dilema. Deveria cumprir as<br />

or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Salazar, negan<strong>do</strong> vistos para Portugal aos refugia<strong>do</strong>s que os solicitavam? Ou <strong>de</strong>veria<br />

seguir os imperativos da sua consciência <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> ao dita<strong>do</strong>r e passan<strong>do</strong> os vistos que<br />

significavam a diferença entre a vida e a morte para milhares <strong>de</strong> pessoas, sobretu<strong>do</strong> ju<strong>de</strong>us.<br />

O cônsul seguiu a sua consciência: em Junho <strong>de</strong> 1940, em Bordéus e posteriormente na<br />

cida<strong>de</strong> fronteiriça <strong>de</strong> Bayonne, passou milhares e milhares <strong>de</strong> vistos. Salazar nunca lho per<strong>do</strong>ou:<br />

a tragédia para si e para a sua família foi o preço que <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s pagou pelo seu corajoso<br />

acto.<br />

Arma<strong>do</strong> com uma caneta e o selo branco da chancelaria, o Cônsul assinava os vistos com<br />

uma energia febril. Domina<strong>do</strong> pelo terror da tragédia a que assistia, quebrou irremediavelmente<br />

as ca<strong>de</strong>ias da posição, <strong>do</strong> conforto e <strong>do</strong> êxito por esse apelo maior que é o amor e a fraternida<strong>de</strong><br />

humanas. As palavras <strong>do</strong> seu nome, para muitos o salvo conduto que os pouparia ao holocausto,<br />

foram para ele o anátema que o cobriu até ao fim <strong>do</strong>s seus dias.<br />

Toca<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sespero <strong>do</strong>s que acorriam ao Consula<strong>do</strong> em busca <strong>de</strong> um visto para<br />

Portugal, este homem <strong>de</strong>cidiu correr o risco <strong>de</strong> salvar aquela gente, contrarian<strong>do</strong> frontalmente as<br />

directivas <strong>do</strong> Governo <strong>de</strong> Salazar. Em três dias passou cerca <strong>de</strong> 30.000 vistos – um terço <strong>de</strong>les a<br />

ju<strong>de</strong>us.<br />

Repreendi<strong>do</strong> pelo embaixa<strong>do</strong>r em Madrid, é substituí<strong>do</strong> no seu cargo e imediatamente<br />

chama<strong>do</strong> a Portugal para respon<strong>de</strong>r pelo seu grave acto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência.<br />

Neste regresso a Portugal, o Cônsul não podia imaginar que esta sua viagem era o início<br />

<strong>de</strong> um longo calvário em que expiaria amargamente a sua insubmissão.<br />

Em consequência: (e utilizo agora o presente histórico)<br />

2


“Con<strong>de</strong>no o cônsul <strong>de</strong> 1ª classe, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, na pena <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong><br />

inactivida<strong>de</strong> com direito a meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> vencimento <strong>de</strong> categoria, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> em seguida ser<br />

aposenta<strong>do</strong>”.<br />

Lisboa, 30 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1940<br />

Oliveira Salazar<br />

Deste mo<strong>do</strong> se encerrava o processo disciplinar <strong>de</strong> um homem cujo único crime foi ter<br />

salvo milhares <strong>de</strong> vidas. Mas para o fazer <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ceu às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Salazar. Por isso Salazar o<br />

<strong>de</strong>struiu.<br />

Em seguida Salazar or<strong>de</strong>nou que as provas fossem seladas. Só quase meio século<br />

<strong>de</strong>pois é que os <strong>do</strong>cumentos foram finalmente torna<strong>do</strong>s públicos.<br />

Por que é que os <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> processo disciplinar estiveram escondi<strong>do</strong>s durante tanto<br />

tempo? Estiveram escondi<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao que revelavam sobre a política anti-semita a<strong>do</strong>ptada por<br />

Salazar em relação aos refugia<strong>do</strong>s, entre 1939-1940. Estiveram escondi<strong>do</strong>s porque expunham<br />

Salazar e os seus alia<strong>do</strong>s mais fiéis <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros, Teotónio Pereira e<br />

o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tovar, mostran<strong>do</strong>-os tal como eram – homens sem princípios.<br />

Estiveram escondi<strong>do</strong>s porque revelavam um crime: não um crime cometi<strong>do</strong> por <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s, mas sim um crime cometi<strong>do</strong> contra <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

Quem foi, ou talvez melhor, quem é <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s?<br />

Se hoje fizéssemos um inquérito sobre quem teria si<strong>do</strong> o homem cujo nome figura em<br />

to<strong>do</strong>s os museus <strong>do</strong> <strong>Holocausto</strong>, poucos saberiam dizer quem foi e o que fez. E, no entanto,<br />

<strong>de</strong>veria ser um nome lembra<strong>do</strong> nas escolas on<strong>de</strong> a sua história, melhor que muitas outras,<br />

po<strong>de</strong>ria preencher algumas páginas <strong>do</strong>s manuais escolares, revelan<strong>do</strong> a aventura maravilhosa<br />

<strong>de</strong>ste gran<strong>de</strong> diplomata cuja acção <strong>de</strong>ve ser conhecida e tomada como um exemplo <strong>de</strong> coragem<br />

moral e cívica.<br />

Que o regime anterior o tenha apaga<strong>do</strong> e escondi<strong>do</strong> a sua acção exemplar e heróica,<br />

ainda se percebe, ou tinha que se perceber! Mas hoje, que vivemos num país <strong>de</strong>mocrático, não<br />

se admite o seu esquecimento.<br />

O futuro cônsul nasceu em 19 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1885 na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cabanas <strong>de</strong> Viriato,<br />

concelho <strong>de</strong> Carregal <strong>do</strong> Sal, distrito <strong>de</strong> Viseu. Filho <strong>do</strong> juiz José <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> sua<br />

esposa D. Maria Angelina Ribeiro <strong>de</strong> Abranches, era gémeo <strong>de</strong> César <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, que<br />

viria a ser Ministro <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros <strong>de</strong> Salazar…<br />

Licenciou-se em Direito na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra em 1907, conjuntamente com o seu<br />

irmão gémeo e ao contrário <strong>do</strong> pai optaram pela diplomacia.<br />

Casou com sua prima Angelina <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

O que <strong>de</strong>le se sabe como homem é que era católico conserva<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> simpatias<br />

monárquicas, <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> nas suas opções e chefe <strong>de</strong> família extremoso, preocupan<strong>do</strong>-se com<br />

o sustento e a educação da sua numerosa prole.<br />

3


Como funcionário consular <strong>de</strong>monstrou competência escrupulosa na <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s<br />

interesses <strong>de</strong> Portugal.<br />

Em 12 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1910 é nomea<strong>do</strong> cônsul <strong>de</strong> 2ª classe na Guiana Britânica para on<strong>de</strong><br />

partiu com sua esposa e <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> César, o seu primeiro filho, nasci<strong>do</strong> no ano anterior. Regressou<br />

ao fim <strong>do</strong> 1º ano para convalescença <strong>de</strong> um ataque <strong>de</strong> paludismo.<br />

Depois <strong>de</strong> uma breve missão à Galiza, foi nomea<strong>do</strong> em 26 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1911 Cônsul-<br />

Geral em Zanzibar, território africano sob administração britânica, on<strong>de</strong> esteve até 1919, com<br />

interregnos em 1914 e 1915, em que esteve em Portugal por motivos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

Face aos problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que a vida em Zanzibar levantou quer a si quer aos seus, –<br />

um <strong>do</strong>s filhos foi ataca<strong>do</strong> <strong>de</strong> malária e esteve às portas da morte – solicitou a sua transferência, o<br />

que veio a acontecer em 13 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1919, seguin<strong>do</strong> para Curitiba, no Brasil.<br />

Era ministro <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros Sidónio Pais, quan<strong>do</strong> <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> foi promovi<strong>do</strong> a<br />

Cônsul <strong>de</strong> 1ª classe, em 20 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1918.<br />

Sidónio Pais é assassina<strong>do</strong> em Dezembro <strong>de</strong>sse mesmo ano e em Julho <strong>de</strong> 1919 <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s é suspenso das funções que exercia em Curitiba, por ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> hostil ao regime<br />

republicano e <strong>de</strong>mocrático vigente, e coloca<strong>do</strong> na situação <strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong>, que significava<br />

ficar inactivo ou em serviço irregular, com redução consi<strong>de</strong>rável <strong>do</strong> vencimento. É incontestável<br />

que o católico, o conserva<strong>do</strong>r, o monárquico <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s não trazia a República<br />

no coração.<br />

Com a ajuda <strong>do</strong> seu irmão César, que ao tempo era Encarrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> Negócios na<br />

Embaixada Portuguesa no Rio <strong>de</strong> Janeiro, apelou ao Ministério e conseguiu que fosse levantada<br />

a suspensão das funções diplomáticas.<br />

A perseguição que lhe moviam pelas suas i<strong>de</strong>ias monárquicas só aumentava as suas<br />

convicções e em Novembro <strong>de</strong> 1920 altera o seu nome para <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />

Amaral e Abranches, assumin<strong>do</strong> assim as suas raízes aristocráticas.<br />

Fica oficialmente inactivo <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1919 a Junho <strong>de</strong> 1921, ten<strong>do</strong> durante esses <strong>do</strong>is<br />

anos ajuda<strong>do</strong> o seu irmão na Legação Portuguesa <strong>de</strong> Berlim, até porque César se encontrava<br />

combali<strong>do</strong> com a morte da esposa, falecida subitamente em Novembro <strong>de</strong> 1920.<br />

A 11 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1921 é nomea<strong>do</strong> temporariamente para o consula<strong>do</strong> <strong>de</strong> S. Francisco da<br />

Califórnia, E.U.A.. Ali ficou aproximadamente <strong>do</strong>is anos, ten<strong>do</strong> aí nasci<strong>do</strong> 2 <strong>do</strong>s seus 14 filhos,<br />

respectivamente em 1922 e 1923. Vinte anos <strong>de</strong>pois, em Junho <strong>de</strong> 1943, esses mesmos <strong>do</strong>is<br />

filhos, Carlos, a quem chamavam o “Arcebispo” e Sebastião, o “Americano”, juntavam-se às<br />

forças americanas na Europa, sen<strong>do</strong> envia<strong>do</strong>s para Inglaterra. Carlos ficou em Londres e <strong>de</strong>pois<br />

esteve em Paris, enquanto Sebastião saltou <strong>de</strong> pára-quedas sobre a Normandia, horas <strong>de</strong>pois <strong>do</strong><br />

DIA D.<br />

Em 2 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1924 é transferi<strong>do</strong> para o Consula<strong>do</strong> <strong>do</strong> Maranhão, outra vez no Brasil,<br />

on<strong>de</strong> esteve até Dezembro, seguin<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois para Porto Alegre. Em 29 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1926 é<br />

chama<strong>do</strong> a Lisboa para prestar serviço na Direcção-Geral <strong>do</strong>s Negócios Comerciais e<br />

4


Consulares; em 15 <strong>de</strong> Abril <strong>do</strong> mesmo ano é nomea<strong>do</strong> secretário da Comissão Internacional <strong>de</strong><br />

Limites entre Portugal e Espanha.<br />

Em Maio <strong>de</strong> 1926 dá-se a revolução militar que iria originar o Esta<strong>do</strong> Novo.<br />

Nos primeiros anos, o Governo <strong>de</strong> Salazar conce<strong>de</strong>u crédito diplomático a <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, da<strong>do</strong> que o seu perfil conserva<strong>do</strong>r servia os <strong>de</strong>sígnios <strong>do</strong> novo regime.<br />

A 29 <strong>de</strong> Março é envia<strong>do</strong> para o Consula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Vigo, na Galiza, on<strong>de</strong> recebeu palavras <strong>de</strong><br />

louvor pelos serviços presta<strong>do</strong>s.<br />

Estamos perante um homem que serviu com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e aprumo os primeiros anos da<br />

ditadura, até porque consi<strong>de</strong>rava a República em 1910 como ímpia e corrupta.<br />

É nomea<strong>do</strong> Cônsul-Geral em Antuérpia, na Bélgica, em Setembro <strong>de</strong> 1929, lugar que era<br />

cobiça<strong>do</strong> quer pelo prestígio, quer pela rendibilida<strong>de</strong> que dava ao seu titular. Estava a atravessar<br />

o cume da carreira.<br />

Enquanto esteve em Antuérpia, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong>, continuou a prática que manteve em toda a sua<br />

carreira, <strong>de</strong> compilar inúmeros relatórios sobre questões comerciais. Pronunciou incontáveis<br />

conferências sobre temas comerciais, turísticos e culturais, fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que podia para<br />

melhorar a imagem e aumentar o prestígio <strong>de</strong> Portugal na Bélgica. Foi uma das principais forças<br />

motoras que estiveram por trás da formação da Casa <strong>de</strong> Portugal em Antuérpia, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> o seu<br />

primeiro presi<strong>de</strong>nte. Referin<strong>do</strong>-se à Casa <strong>de</strong> Portugal durante a presidência <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s,<br />

um jornal belga falava <strong>de</strong> “la bonne grâce charmante qui est <strong>de</strong> tradition dans cette maison du<br />

bom accueil.”<br />

<strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s foi também presi<strong>de</strong>nte honorário e um <strong>do</strong>s mais activos membros da<br />

Associação Belga – Ibero-Americana. Fez numerosas palestras sobre a História e a Cultura<br />

Portuguesa para a Associação. Fun<strong>do</strong>u também cursos <strong>de</strong> Português.<br />

Em 1936 tornou-se <strong>de</strong>cano <strong>do</strong> corpo diplomático em Antuérpia.<br />

Durante <strong>do</strong>is anos ocupou essa posição sem remuneração adicional <strong>de</strong> qualquer espécie,<br />

a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong>s gastos adicionais que isso obviamente impunha. Teve enorme êxito nessa<br />

qualida<strong>de</strong>, como <strong>de</strong>monstram numerosos artigos publica<strong>do</strong>s na imprensa <strong>de</strong> língua francesa e<br />

flamenga. O rei belga, Leopol<strong>do</strong> III, tinha tanto apreço por <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> que lhe conferiu duas<br />

con<strong>de</strong>corações, fazen<strong>do</strong>-o oficial da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Leopol<strong>do</strong> e comenda<strong>do</strong>r da Or<strong>de</strong>m da Coroa, a<br />

mais alta con<strong>de</strong>coração da Bélgica.<br />

Em Julho <strong>de</strong> 1932 Salazar torna-se Presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Conselho <strong>de</strong> Ministros e convida para a<br />

pasta <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros César <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s. Foi, no entanto, “sol <strong>de</strong> pouca dura”,<br />

uma vez que apenas ocupou o cargo durante 9 meses.<br />

O novo ministro começou por ter <strong>de</strong> se <strong>de</strong>frontar com o pequeno círculo, variável <strong>de</strong><br />

acor<strong>do</strong> com as circunstâncias, <strong>de</strong> íntimos <strong>de</strong> Salazar.<br />

De seguida, confrontou-se com este no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> uma reunião <strong>do</strong> Conselho <strong>de</strong> Ministros<br />

em que se discutiam questões relativas ao ensino superior. César que tinha si<strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r na<br />

Suécia, ficara maravilha<strong>do</strong> com a importância que este país atribuía à educação. E disse o que<br />

5


sentia. O dita<strong>do</strong>r contradisse-o em tu<strong>do</strong>. Para ele, não era <strong>de</strong>sejável alterar as coisas, procurar<br />

um maior <strong>de</strong>senvolvimento para o ensino. Um dia, recebeu um telefonema <strong>de</strong> Salazar:<br />

“Senhor Ministro, agra<strong>de</strong>ço-lhe os seus serviços”.<br />

Admira<strong>do</strong>, César perguntou ao secretário-geral <strong>do</strong> Ministério qual era o significa<strong>do</strong><br />

daquela frase sibilina.<br />

“Ele quis simplesmente dizer-lhe que o senhor <strong>do</strong>utor já não é ministro”. Por vezes fazia-o<br />

através <strong>de</strong> um cartão <strong>de</strong> visita.<br />

Franco Nogueira refere que César <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, como ministro se mostrou muito<br />

aquém das exigências da função, resultan<strong>do</strong> daí que os altos funcionários <strong>do</strong> Departamento se<br />

dirigiam directamente a Salazar.<br />

Calvet <strong>de</strong> Magalhães, embaixa<strong>do</strong>r e secretário-geral <strong>do</strong> M.N.E., consi<strong>de</strong>ra que César<br />

estava absorvi<strong>do</strong> pela reforma <strong>do</strong> Ministério por ele proposta e, assim, terá negligencia<strong>do</strong> as suas<br />

outras obrigações.<br />

No entanto, o embaixa<strong>do</strong>r alu<strong>de</strong> também a intriga e traições internas.<br />

Este parece, aliás, o cenário mais provável num Ministério que funcionava mais como<br />

uma socieda<strong>de</strong> secreta <strong>do</strong> que como uma parte <strong>do</strong>s serviços <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Também não era<br />

segre<strong>do</strong> para ninguém no Ministério que o secretário-geral, Luís Teixeira <strong>de</strong> Sampaio e César <strong>de</strong><br />

<strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s tinham uma intensa antipatia um pelo outro.<br />

César teve <strong>de</strong> ir ocupar o lugar <strong>de</strong> embaixa<strong>do</strong>r em Varsóvia. Foi lá que recebeu uma carta<br />

<strong>de</strong> <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> – a dizer-lhe o que pensava <strong>de</strong> Salazar: “Maldito seja e que o seu nome seja<br />

pronuncia<strong>do</strong> com <strong>de</strong>sprezo se um dia ele se vier a tornar a causa da nossa <strong>de</strong>sgraça colectiva”.<br />

Começara então a sua <strong>de</strong>silusão sobre Salazar.<br />

O que é certo é que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que César <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser ministro a carreira <strong>de</strong> <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong><br />

passou a sofrer sérias contrarieda<strong>de</strong>s.<br />

Permaneceu à frente <strong>do</strong> Consula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Antuérpia até 1938, embora viven<strong>do</strong> quase<br />

sempre em Lovaina on<strong>de</strong> alguns <strong>do</strong>s seus filhos frequentavam a Universida<strong>de</strong> Católica.<br />

Problemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m financeira voltam a fazer-se sentir até porque para além <strong>do</strong>s<br />

encargos familiares, são-lhe retiradas 20 libras mensais que eram um bónus aos Consula<strong>do</strong>s<br />

com receitas mais altas, além <strong>de</strong> outros cortes orçamentais. A situação tornou-se crítica também<br />

porque <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s enviara gran<strong>de</strong>s quantias para Portugal para ampliar a casa <strong>de</strong> Cabanas<br />

<strong>de</strong> Viriato que se transformou numa autêntica residência palaciana não esquecen<strong>do</strong> os custos da<br />

estátua em pedra <strong>do</strong> Cristo-Rei, que man<strong>do</strong>u executar na Bélgica e colocar junto a uma colina<br />

próxima da sua casa em Cabanas.<br />

Tu<strong>do</strong> isto levou a que atrasasse o envio <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Consula<strong>do</strong> contrain<strong>do</strong><br />

empréstimos <strong>de</strong>sse dinheiro.<br />

Em 1935 alguém o <strong>de</strong>nuncia e tem que prestar contas. Solicita a ajuda <strong>de</strong> César que<br />

pedin<strong>do</strong> dinheiro empresta<strong>do</strong> lho envia. Feita a inspecção não se prova a falta <strong>de</strong> dinheiro mas<br />

<strong>de</strong>scobrem-se as irregularida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> seu envio tardio para os cofres <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

6


Continuan<strong>do</strong> sob vigilância, em 5 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1938 é-lhe instaura<strong>do</strong> um processo<br />

disciplinar pelo facto <strong>de</strong> se ter ausenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu posto e ter vin<strong>do</strong> a Portugal sem licença e sem<br />

conhecimento <strong>do</strong> Ministério. O que se passou foi que em 1 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1937 morrera em<br />

Viseu o seu sogro e ele viera ao funeral.<br />

Em Fevereiro <strong>de</strong> 1938 <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s escreveu a Salazar solicitan<strong>do</strong>-lhe a sua promoção<br />

a “chefe <strong>de</strong> missão <strong>de</strong> 2ª classe” na Legação Chinesa ou Japonesa. Salazar, em jeito <strong>de</strong><br />

resposta, transferiu-o para o Consula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Bordéus, um lugar pouco atractivo.<br />

A família sentia-se tão bem na Bélgica que os filhos mais velhos – <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong>, José,<br />

Clotil<strong>de</strong>, Isabel, Geral<strong>do</strong>, Joana, Pedro Nuno – escreveram ao Presi<strong>de</strong>nte da República para<br />

pedir que o pai continuasse em Lovaina, para que eles pu<strong>de</strong>ssem ali prosseguir os estu<strong>do</strong>s.<br />

A resposta foi um remoque a <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong>, convida<strong>do</strong> a não confundir os negócios <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

com os assuntos da família.<br />

Desta vez, a teimosia <strong>de</strong> Salazar revelar-se-ia positiva: o seu resulta<strong>do</strong> final seria o<br />

salvamento <strong>de</strong> um incontável número <strong>de</strong> vidas.<br />

História.<br />

É aqui, em Bordéus, que <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s tem marca<strong>do</strong> o seu encontro com a<br />

BENDITA DESOBEDIÊNCIA<br />

A 29 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1938, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s e a Esposa, acompanha<strong>do</strong>s por parte <strong>do</strong>s<br />

filhos chegaram oficialmente a Bordéus. A família instalou-se no n.º 14 <strong>do</strong> Quai Louis XVIII, <strong>de</strong><br />

frente para o rio Garona, ocupan<strong>do</strong> as catorze divisões <strong>do</strong> andar, das quais duas foram<br />

reservadas para os serviços consulares.<br />

O secretário consular, José Seabra, estava à espera <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s. Chega<strong>do</strong> a<br />

França em 1930, trabalhava no Consula<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1936, <strong>de</strong>pressa se <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong><br />

conquistar pelo encanto que emanava <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, pela generosida<strong>de</strong>, energia e<br />

entusiasmo <strong>do</strong> cônsul.<br />

Fernanda Dias <strong>de</strong> Jesus da Silva, a criada fiel, também fez a viagem para Bordéus.<br />

Nascida em Carregal <strong>do</strong> Sal, tinha si<strong>do</strong> aluna <strong>de</strong> uma irmã <strong>de</strong> Salazar na escola primária.<br />

“Naquela altura, servir em casa <strong>de</strong> um diplomata valia mais <strong>do</strong> que ir para um colégio”,<br />

respon<strong>de</strong>u a um jornalista <strong>do</strong> Expresso, que a entrevistou em Novembro <strong>de</strong> 1996. Em Bordéus, a<br />

“petiza”, como lhe chamava toda a família, tinha várias funções. “Era concierge” (porteira), conta<br />

ela, “cuidava <strong>do</strong>s meninos, atendia o telefone e ajudava no que fosse preciso”.<br />

À medida que o nazismo crescia, crescia também o número <strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s. Ju<strong>de</strong>us e<br />

opositores ao regime tinham fugi<strong>do</strong> da Alemanha com a subida <strong>de</strong> Hitler ao po<strong>de</strong>r em 1933.<br />

Continuavam a fugir à medida que, sucessivamente, Hitler ocupava a Renânia em 1936, anexava<br />

a Áustria em Março <strong>de</strong> 1938 e invadia a Checoslováquia e a Polónia em Março e Setembro <strong>de</strong><br />

1939.<br />

7


A Guerra Civil <strong>de</strong> Espanha provocara um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> refugia<strong>do</strong>s (republicanos) a<br />

maior parte <strong>do</strong>s quais fugiu pela fronteira para o Su<strong>do</strong>este <strong>de</strong> França. Muitos <strong>de</strong>les pediram<br />

<strong>de</strong>pois para emigrar para os países <strong>de</strong> língua espanhola da América Latina.<br />

Foi neste cal<strong>de</strong>irão que <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s se encontrou quan<strong>do</strong> a 2ª Guerra Mundial tem<br />

início em 3 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1939. Durante o conflito, Salazar escolheu a neutralida<strong>de</strong>, ou<br />

melhor, uma política ambígua, dan<strong>do</strong> “uma no cravo e outra na ferradura”. O seu gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejo teria si<strong>do</strong> promover o afastamento entre britânicos e soviéticos e uma paz negociada<br />

entre Londres e Berlim.<br />

Temen<strong>do</strong> os planos alemães <strong>de</strong> invasão da Península Ibérica, os partidários <strong>de</strong> Salazar<br />

salientaram a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não se fazer nada que pu<strong>de</strong>sse enfurecer Hitler. Quanto a<br />

Churchill e Montgomery, esses <strong>de</strong>pressa compreen<strong>de</strong>ram os limites <strong>de</strong>ste jogo duplo, e<br />

acabaram por <strong>de</strong>testar o antigo professor <strong>de</strong> Coimbra. Já no fim <strong>do</strong> conflito aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong><br />

clima <strong>de</strong> “guerra fria”, Salazar iria servir-se <strong>do</strong> anticomunismo para se integrar no campo<br />

oci<strong>de</strong>ntal.<br />

As dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s começaram com as novas regras para a concessão <strong>de</strong><br />

vistos que, tal como to<strong>do</strong>s os diplomatas portugueses, recebeu em Novembro <strong>de</strong> 1939.<br />

As instruções estavam contidas na Circular N.º 14, assinada pelo secretário-geral <strong>do</strong><br />

M.N.E., Luís <strong>de</strong> Sampaio (“pelo ministro”). O ministro era o dita<strong>do</strong>r português, que tinha várias<br />

pastas.<br />

A referida Circular N.º 14 começava por uma introdução subtil acerca das “circunstâncias<br />

anormais <strong>do</strong> momento” e pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “se a<strong>do</strong>ptarem medidas mesmo que a título<br />

provisório”, para “prevenir abusos”.<br />

Seguia-se a proibição feita aos cônsules <strong>de</strong> carreira <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r passaportes ou vistos,<br />

sem or<strong>de</strong>m expressa <strong>do</strong> M.N.E., às seguintes pessoas:<br />

A – Estrangeiros <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida, contestada ou em litígio, “apátridas”,<br />

porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> passaportes Nansen (<strong>do</strong> nome <strong>de</strong> um diplomata norueguês que tinha consegui<strong>do</strong><br />

que as pessoas <strong>de</strong>slocadas, refugiadas ou “apátridas”, pu<strong>de</strong>ssem dispor <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

fornecida pela Socieda<strong>de</strong> das Nações (a antepassada da ONU)), “russos”;<br />

B – Estrangeiros que, segun<strong>do</strong> o critério <strong>do</strong> cônsul, não apresentem razões legítimas para<br />

viajar para Portugal ou “aqueles que apresentem nos seus passaportes a <strong>de</strong>claração ou qualquer<br />

sinal <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rem regressar livremente ao país <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provêm”;<br />

C – Estrangeiros sem meios <strong>de</strong> subsistência;<br />

D – Ju<strong>de</strong>us expulsos <strong>do</strong>s seus países <strong>de</strong> origem ou <strong>de</strong> aqueles <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provêm;<br />

E – Estrangeiros que afirmassem estar em trânsito para a América mas não tivessem um<br />

visto para o país <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino ou não tivessem bilhete <strong>de</strong> passagem marcada num barco ou avião.<br />

8


O primeiro acto <strong>de</strong> resistência prece<strong>de</strong>ra mesmo a recepção da directiva 14. A 27 e a 6 <strong>de</strong><br />

Dezembro <strong>de</strong> 1939, pediu a Lisboa autorização para conce<strong>de</strong>r vistos a um cidadão austríaco,<br />

Arnold Wiznitzer, e à respectiva família. Assim, seguiu as instruções contidas na directiva 14 ...<br />

só que a 16 <strong>de</strong> Janeiro o Ministério respondia ironicamente, não compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o motivo <strong>do</strong><br />

pedi<strong>do</strong>, da<strong>do</strong> que o visto já tinha si<strong>do</strong> concedi<strong>do</strong>!<br />

Como tinha o Ministério <strong>de</strong>scoberto a verda<strong>de</strong>? A polícia política tinha, sem dúvida,<br />

processos sobre os refugia<strong>do</strong>s em Portugal, e provavelmente tinham si<strong>do</strong> esse processos a<br />

necessária informação.<br />

Não é possível saber-se quantas vezes o caso Wiznitzer se repetiu <strong>de</strong> formas<br />

ligeiramente diferentes. De qualquer mo<strong>do</strong> a polícia política e o Ministério parecem não terem<br />

<strong>de</strong>tecta<strong>do</strong> outras irregularida<strong>de</strong>s até Abril <strong>de</strong> 1940.<br />

A 2 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1940, um professor espanhol <strong>de</strong> Barcelona – Eduar<strong>do</strong> Neira Laporte<br />

– que fugia <strong>do</strong> regime franquista explicou o seu problema ao cônsul. <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s apressou-se<br />

a pedir autorização para Lisboa. Não obteve resposta. A 1 <strong>de</strong> Março <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s<br />

assinou o visto, ainda antes <strong>de</strong> receber a resposta <strong>de</strong> Lisboa. Esta chega <strong>de</strong>z dias <strong>de</strong>pois:<br />

negativa! A 12 <strong>de</strong> Março, Laporte e a família chegaram a Lisboa com o visto data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1 <strong>de</strong><br />

Março. Consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s in<strong>de</strong>sejáveis, pu<strong>de</strong>ram, não obstante, embarcar para a Bolívia.<br />

Numa carta oficial datada <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1940, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s foi admoesta<strong>do</strong> uma<br />

segunda vez pela concessão <strong>de</strong> um visto não autoriza<strong>do</strong>. Assinava a carta, “(pelo) Ministro”, o<br />

secretário-geral, Sampaio falava sem ro<strong>de</strong>ios. Informava <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, em termos precisos, <strong>de</strong><br />

que o Ministério não tinha esqueci<strong>do</strong> o caso <strong>do</strong> visto Wiznitzer. Não tinha si<strong>do</strong> tomada nenhuma<br />

medida disciplinar, escrevia o secretário-geral, porque o Ministério confiara em que a<br />

irregularida<strong>de</strong> se não repetiria. <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s traíra a confiança <strong>do</strong> Ministério. Toda a<br />

complacência iria terminar. O aviso era inequívoco:<br />

“A repetição <strong>de</strong> factos <strong>de</strong>sta natureza, lesivos da disciplina, é altamente prejudicial para o<br />

serviço, para os interessa<strong>do</strong>s e sobretu<strong>do</strong> para a indispensável dignida<strong>de</strong> da função consular.<br />

Qualquer nova falta ou infracção nesta matéria será havida por <strong>de</strong>sobediência e dará lugar a<br />

processo disciplinar em que não po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ter-se em conta que são repeti<strong>do</strong>s os actos <strong>de</strong><br />

V.ª Ex.ª que motivam advertências e repreensões.”<br />

O dita<strong>do</strong>r português era conheci<strong>do</strong> pela sua rígida severida<strong>de</strong> e por ser implacável para<br />

com aqueles que contrariavam as suas or<strong>de</strong>ns ou se opunham à sua vonta<strong>de</strong>. A mensagem<br />

enviada a <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s ia direita ao âmago: não seriam toleradas novas infracções.<br />

Como se não lhe bastasse ter o M.N.E. e a polícia política a vigiar to<strong>do</strong>s os seus<br />

movimentos, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s tinha também outras preocupações <strong>de</strong> natureza mais privada: um<br />

caso com uma senhora <strong>de</strong> Limoges, <strong>de</strong> nome Andrée, e que conhecera pouco antes, estava<br />

grávida.<br />

Em mea<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1940, gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> território francês é toma<strong>do</strong> <strong>de</strong> assalto pelos<br />

blinda<strong>do</strong>s “Panzer”. A famosa linha Maginot não resistira ao avanço das tropas hitlerianas.<br />

9


Centenas <strong>de</strong> milhar <strong>de</strong> famílias procuram refúgio no Su<strong>do</strong>este da França. Entre estas, milhares<br />

<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us.<br />

Aqui começa a gesta heróica <strong>de</strong> <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, embora, como já referi, os<br />

sinais <strong>do</strong> seu espírito <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> se tivessem manifesta<strong>do</strong> antes.<br />

Em final <strong>do</strong> mês, logo que chegaram a Bordéus, numerosos refugia<strong>do</strong>s precipitaram-se<br />

para o Consula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Portugal, pois sabiam que um visto para Lisboa lhes abria o caminho para o<br />

mun<strong>do</strong>: muitos tinham ouvi<strong>do</strong> dizer que o cônsul <strong>de</strong> Portugal parecia particularmente sensível<br />

aos problemas <strong>de</strong>les. E isso começava a saber-se entre os refugia<strong>do</strong>s que tinham a vida em<br />

risco, a <strong>de</strong>les e a <strong>do</strong>s familiares.<br />

Havia, por isso, cada vez mais pessoas que pediam vistos. Para respeitar o conteú<strong>do</strong> e a<br />

forma da Circular 14, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s teria <strong>de</strong> pedir, praticamente em to<strong>do</strong>s os casos, uma<br />

autorização, por escrito, ao M.N.E. . Uma tal exigência, já difícil <strong>de</strong> respeitar em tempos normais,<br />

tornava-se totalmente irrealizável num lugar como Bordéus, naquele Verão <strong>de</strong> 1940.<br />

O Consula<strong>do</strong> Português abria às 9 horas da manhã (por vezes mais ce<strong>do</strong>) e permanecia<br />

aberto até à 1 ou 2 horas da madrugada. O número <strong>de</strong> requerentes <strong>de</strong> vistos era da or<strong>de</strong>m das<br />

centenas por dia.<br />

As pressões morais exercidas sobre <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s eram tremendas e ele começou a<br />

sucumbir-lhes. Provavelmente nunca ninguém saberá quantas vezes violou as suas instruções<br />

nestes últimos dias <strong>de</strong> Maio. Existem casos <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>s que envolvem pelo menos 22<br />

indivíduos. Em 27 <strong>de</strong> Maio, a polícia política portuguesa interceptou em Vilar Formoso 17 belgas<br />

com vistos não autoriza<strong>do</strong>s emiti<strong>do</strong>s pelo Cônsul em Bordéus. O M.N.E. foi informa<strong>do</strong> no dia<br />

seguinte, e em 29 <strong>de</strong> Maio o secretário-geral Sampaio, actuan<strong>do</strong> ”(pelo) ministro”, Salazar, emitiu<br />

um <strong>de</strong>spacho or<strong>de</strong>nan<strong>do</strong> que se averiguasse quais as autorizações que haviam si<strong>do</strong> dadas a<br />

<strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, com vista a instaurar-lhe um processo disciplinar se os regulamentos tivessem<br />

si<strong>do</strong> viola<strong>do</strong>s.<br />

No mesmo dia, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>u mais três vistos não autoriza<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>sta vez a polacos,<br />

que foram <strong>de</strong>ti<strong>do</strong>s pela polícia política em Vilar Formoso.<br />

O director da polícia política, capitão Agostinho Lourenço, indicava que “várias vezes” a<br />

polícia tinha informa<strong>do</strong> o Ministério <strong>de</strong> que o Cônsul em Bordéus conce<strong>de</strong>ra vistos sem obter as<br />

necessárias autorizações prévias.<br />

As irregularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s na sua tentativa <strong>de</strong> ajudar alguns <strong>do</strong>s que<br />

<strong>de</strong>sejavam aban<strong>do</strong>nar a França não se limitavam à concessão <strong>de</strong> vistos não autoriza<strong>do</strong>s. Pelo<br />

menos uma vez, emitiu um passaporte falso.<br />

Na noite <strong>de</strong> 13 para 14 <strong>de</strong> Junho, na data prevista por Hitler, as tropas alemãs entraram<br />

em Paris. Assim, a partir <strong>de</strong>sse dia Bordéus passou novamente a ser a capital da França.<br />

Bordéus tornara-se “la capital <strong>de</strong> la peur” (a capital <strong>do</strong> me<strong>do</strong>). A cida<strong>de</strong> estava a assumir um ar<br />

<strong>de</strong> total confusão. Com a chegada constante <strong>de</strong> novos refugia<strong>do</strong>s, a população da cida<strong>de</strong> tinha<br />

10


aumenta<strong>do</strong> <strong>de</strong> 300.000 para mais <strong>de</strong> 700.000. Segun<strong>do</strong> alguns, a população parecia muito<br />

maior.<br />

A DECISÃO: “VOU SALVÁ-LOS A TODOS”<br />

Na manhã <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> Junho tu<strong>do</strong> mudaria. A partir <strong>de</strong>sse momento <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>cidira<br />

dar vistos a toda a gente, <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> haver nacionalida<strong>de</strong>s, raças, religiões. Afirmava não po<strong>de</strong>r<br />

consentir que todas aquelas pessoas morressem. Muitas <strong>de</strong>las eram judias e a Constituição<br />

Portuguesa dizia claramente que nem a religião, nem as i<strong>de</strong>ias políticas <strong>de</strong> um estrangeiro<br />

podiam servir <strong>de</strong> pretexto para lhe recusar a entrada em Portugal.<br />

fé <strong>de</strong> cristão”.<br />

“Só agin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta maneira, diz, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a minha consciência, serei digno da minha<br />

Naquele Domingo, 16 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1940, começou em Bordéus aquela que Yehuda<br />

Bauer, um <strong>do</strong>s melhores historia<strong>do</strong>res <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>, chama “a maior operação <strong>de</strong> salvamento<br />

levada a cabo por uma só pessoa durante o holocausto”. Refira-se que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Raoul<br />

Wallenberg, que salvou cerca <strong>de</strong> cem mil ju<strong>de</strong>us, apoia<strong>do</strong> inteiramente pelo governo sueco,<br />

<strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s foi o homem que, ao contrário da política <strong>de</strong> Salazar, salvou mais vítimas <strong>do</strong><br />

holocausto.<br />

No referi<strong>do</strong> Domingo, 16 <strong>de</strong> Junho, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s passou o dia a assinar<br />

vistos. Para toda a gente, sem exigir nada a ninguém.<br />

Religião? Pouco importa, assina-se!<br />

Origem “étnica”? Não tem importância, assina-se!<br />

Ju<strong>de</strong>u, Católico, protestante? È tu<strong>do</strong> o mesmo, assina-se!<br />

Russo? Assina-se!<br />

Apátrida? Assina-se!<br />

Nesse dia quan<strong>do</strong> em França e numa parte importante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> começava a funcionar<br />

um sistema industrial, científico, programa<strong>do</strong>,<strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> um povo, tu<strong>do</strong> o que era humano<br />

tinha importância no Quai Louis XVIII, em Bordéus.<br />

Para se andar mais <strong>de</strong>pressa instala-se uma verda<strong>de</strong>ira ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> montagem. Uma vez<br />

coloca<strong>do</strong>s os passaportes em cima da secretária, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> assinava e José Seabra apunha o<br />

carimbo exigi<strong>do</strong>.<br />

Na segunda-feira, 17 <strong>de</strong> Junho, a notícia propagou-se como um relâmpago entre os<br />

refugia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Bordéus: o Cônsul <strong>de</strong> Portugal conce<strong>de</strong> vistos a toda a gente! A casa foi tomada<br />

<strong>de</strong> assalto.<br />

O maior número <strong>de</strong> pessoas obrigaram-no a “sintetizar” progressivamente a assinatura.<br />

Acabaram-se os nomes sonantes “<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s”” Passou a assinar apenas<br />

“Men<strong>de</strong>s”.<br />

11


E, o seguinte!<br />

O seguinte podia ser um ju<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Lille, um “apátrida” <strong>de</strong> Riga, um lapida<strong>do</strong>r <strong>de</strong> diamantes<br />

<strong>de</strong> Antuérpia, um burguês <strong>de</strong> Praga, ou até, o célebre actor <strong>de</strong> Hollywood Robert Montgomery,<br />

com o visto n.º 1436.<br />

A 18 <strong>de</strong> Junho, como nos <strong>do</strong>is dias anteriores, os que <strong>de</strong>sejavam os vistos continuavam a<br />

ser numerosos, agora sob uma atmosfera ainda mais tensa, mais nervosa, talvez, à medida que<br />

os alemães se aproximavam e que o Governo Francês se preparava para colaborar com eles.<br />

Quarta-feira, 19 <strong>de</strong> Junho, a onda <strong>de</strong> refugia<strong>do</strong>s pareceu diminuir um pouco. Contu<strong>do</strong>,<br />

<strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s continuou a assinar passaportes. Ainda não se tinha <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> a parar. Pretendia<br />

cumprir a promessa que tinha feito: “Vou salvá-los a to<strong>do</strong>s”!<br />

A tarefa era imensa.<br />

Em Toulouse, Baiona, Hendaia havia ainda milhares <strong>de</strong> refugia<strong>do</strong>s à espera <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem<br />

<strong>de</strong>ixar a França.<br />

<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s já tinha autoriza<strong>do</strong> o vice-cônsul honorário <strong>de</strong> Portugal em<br />

Toulouse, o francês Émile Gissot, a conce<strong>de</strong>r pessoalmente vistos, um acto que não fazia parte<br />

das suas atribuições.<br />

Tinha <strong>de</strong> andar <strong>de</strong>pressa para Baiona, já que os alemães se aproximavam rapidamente e<br />

havia que salvar os milhares <strong>de</strong> refugia<strong>do</strong>s que estavam à espera. Depois, porque ele sentia que<br />

as autorida<strong>de</strong>s portuguesas não lhe iam permitir “<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer” durante muito mais tempo.<br />

Ao chegar a Baiona <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s encontrou uma situação <strong>de</strong> catástrofe.<br />

O Cônsul <strong>de</strong> Portugal em Baiona, Faria Macha<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> respeitar escrupulosamente<br />

as normas ditadas por Lisboa, totalmente <strong>de</strong>stituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, não cessava <strong>de</strong> enviar<br />

telegramas ao seu ministro a pedir instruções.<br />

Assim, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s empreen<strong>de</strong>u uma nova “operação <strong>de</strong> coman<strong>do</strong>s” <strong>de</strong> assinaturas,<br />

que durou três dias e parte <strong>de</strong> duas noites. Era preciso andar <strong>de</strong>pressa. A exemplo <strong>do</strong> que fizera<br />

em Bordéus nos últimos dias não cobrava taxas referentes à concessão <strong>de</strong> vistos.<br />

Para evitar que os refugia<strong>do</strong>s subissem a escada <strong>do</strong> Consula<strong>do</strong>, com o risco <strong>de</strong> ela<br />

<strong>de</strong>sabar, passaram a ir buscar os passaportes ao exterior. <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s chegou ao ponto <strong>de</strong><br />

colocar uma mesa <strong>do</strong> Consula<strong>do</strong> na rua.<br />

Faria Macha<strong>do</strong>, cada vez mais assusta<strong>do</strong>, pediu instruções a Lisboa e advertiu os<br />

superiores <strong>de</strong> que, obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, tinha concedi<strong>do</strong> vistos<br />

sem as taxas respectivas.<br />

Salazar reage, envian<strong>do</strong> um telegrama para Bordéus que retirava a <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s a<br />

maioria das suas atribuições, nomeadamente a capacida<strong>de</strong> para conce<strong>de</strong>r vistos. A partir <strong>de</strong>ste<br />

telegrama <strong>de</strong> Salazar o Cônsul entrava na ilegalida<strong>de</strong>.<br />

Já bem informa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que se passava, Salazar enviou então o Embaixa<strong>do</strong>r português em<br />

Madrid, Pedro Teotónio Pereira, para resolver a situação na fronteira franco-espanhola <strong>de</strong> Irun<br />

on<strong>de</strong> chegou a 22 <strong>de</strong> Junho. O Embaixa<strong>do</strong>r or<strong>de</strong>na o cumprimento das or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Salazar e<br />

12


comunica “às autorida<strong>de</strong>s espanholas a nulida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s vistos concedi<strong>do</strong>s pelo Consula<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

Bordéus”.<br />

Em 24 <strong>de</strong> Junho, a Espanha <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> reconhecer os vistos nas ruas <strong>de</strong> Hendaia. Nesse<br />

mesmo dia, a fronteira portuguesa <strong>de</strong> Vilar Formoso foi encerrada ten<strong>do</strong>-se aí amontoa<strong>do</strong> até<br />

ao dia 26 <strong>de</strong> Junho cerca <strong>de</strong> 18.000 refugia<strong>do</strong>s, muitos com vistos da<strong>do</strong>s pelo Cônsul em<br />

Bordéus. Perante a recusa das autorida<strong>de</strong>s espanholas em receber os refugia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> volta, com o<br />

argumento <strong>de</strong> que os vistos seriam respeita<strong>do</strong>s, o director da P.V.D.E., Agostinho Lourenço teve<br />

<strong>de</strong> mandar reabrir a fronteira e tentou que a vaga <strong>de</strong> estrangeiros não se dirigisse para Lisboa,<br />

<strong>de</strong>svian<strong>do</strong> muitos <strong>de</strong>les para zonas balneárias e termais on<strong>de</strong> havia hotéis e pensões.<br />

No n.º 14 <strong>do</strong> Quai Louis XVIII, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s ainda tentava salvar to<strong>do</strong>s os<br />

que podia. Continua a recolher refugia<strong>do</strong>s em casa. Como já não dispõe <strong>de</strong> qualquer po<strong>de</strong>r legal,<br />

vê-se obriga<strong>do</strong> a “fazer batota”. Para além da hospitalida<strong>de</strong>, dará ainda <strong>do</strong>is falsos passaportes a<br />

<strong>do</strong>is ju<strong>de</strong>us fugi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Viena: Galimir e a filha Marguerite.<br />

“Graças a estes passaportes”, escreveu ela em Março <strong>de</strong> 1966, “fomos protegi<strong>do</strong>s pelas<br />

autorida<strong>de</strong>s francesas e não fomos envia<strong>do</strong>s para o campo <strong>de</strong> concentração”.<br />

A 8 <strong>de</strong> Julho, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s regressou a Portugal.<br />

O PROCESSO DISCIPLINAR DE 1940: ACUSAÇÃO, DEFESA E SENTENÇA<br />

O primeiro passo da<strong>do</strong> por <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s à sua chegada a Lisboa fora pedir uma<br />

audiência ao Chefe <strong>do</strong> Governo. O pedi<strong>do</strong> foi, simplesmente recusa<strong>do</strong>.<br />

<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s não tinha compreendi<strong>do</strong> o essencial <strong>do</strong> carácter <strong>do</strong> dita<strong>do</strong>r: o<br />

gosto maníaco, imo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, <strong>do</strong>entio pela or<strong>de</strong>m. Que lhe importavam os milhares <strong>de</strong> pessoas<br />

salvas por <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, os apelos à sua fé cristã; que lhe importava isso quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong><br />

com um crime maior: a não obediência a uma directiva governamental. E a <strong>de</strong>sobediência tinha<br />

<strong>de</strong> ser punida.<br />

Francisco <strong>de</strong> Paula Brito Júnior, chefe <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Questões Económicas <strong>do</strong><br />

Ministério <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros, foi encarrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> redigir a acta <strong>de</strong> acusação <strong>do</strong><br />

processo, enquanto Salazar tinha também manda<strong>do</strong> iniciar um inquérito paralelo. Assim, enviam<br />

telegramas a várias pessoas a perguntar o que se tinha passa<strong>do</strong> e o conteú<strong>do</strong> exacto das or<strong>de</strong>ns<br />

que tinham si<strong>do</strong> dadas a <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

Bessa Lopes diz que o processo disciplinar não foi mais que uma farsa, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> tirar<br />

outra conclusão <strong>de</strong> um telegrama envia<strong>do</strong> por Salazar ao embaixa<strong>do</strong>r português em Londres,<br />

Armin<strong>do</strong> Monteiro (pai <strong>do</strong> escritor Luís <strong>de</strong> Sttau Monteiro) em 2 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1940, <strong>do</strong>is dias antes<br />

<strong>de</strong> ter instaura<strong>do</strong> o processo disciplinar e um dia antes <strong>de</strong> receber o relatório <strong>de</strong> Arman<strong>do</strong> Lopes<br />

Simeão, envia<strong>do</strong> especial <strong>de</strong> Salazar a Baiona.<br />

Entre outras informações acerca da situação <strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s, o telegrama contém esta<br />

afirmação inteiramente incriminatória:<br />

13


“Vistos concedi<strong>do</strong>s em Bordéus foram-no, em contravenção <strong>de</strong> instruções expressas <strong>do</strong><br />

Ministério, por cônsul que já afastei <strong>do</strong> serviço”.<br />

julgamento.<br />

Era esta a maneira expedita <strong>de</strong> Salazar administrar justiça: primeiro a sentença, <strong>de</strong>pois o<br />

Brito fundamentou o essencial <strong>do</strong> seu inquérito no testemunho <strong>de</strong> três pessoas: o capitão<br />

Agostinho Lourenço, chefe da polícia política, Arman<strong>do</strong> Lopes Simeão, envia<strong>do</strong> especial <strong>de</strong><br />

Salazar a Baiona e Teotónio Pereira, embaixa<strong>do</strong>r em Madrid.<br />

O <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Teotónio Pereira foi o mais gravoso para <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s. Começou por<br />

confirmar que, na sua maioria, os vistos exibi<strong>do</strong>s pelos refugia<strong>do</strong>s tinham si<strong>do</strong> concedi<strong>do</strong>s pelos<br />

Consula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Bordéus. Confirmou que <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s tinha or<strong>de</strong>na<strong>do</strong> ao cônsul em Baiona que<br />

continuasse a conce<strong>de</strong>r vistos.<br />

Descreven<strong>do</strong> o seu encontro com <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s na fronteira franco-espanhola, quis,<br />

afinal, <strong>de</strong>monstrar que o Cônsul tinha <strong>de</strong> facto perdi<strong>do</strong> a razão:<br />

“Exigi-lhe que me explicasse tão insólita situação (...). De tu<strong>do</strong> o que ouvi e <strong>do</strong> seu<br />

aspecto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>salinho, fiquei com a impressão <strong>de</strong> que o homem estava profundamente<br />

perturba<strong>do</strong> e fora <strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong> normal”:<br />

E Teotónio Pereira prosseguiu, dizen<strong>do</strong> que a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s pressupunha um<br />

tal <strong>de</strong>satino que se vira obriga<strong>do</strong> a pedir às autorida<strong>de</strong>s espanholas que consi<strong>de</strong>rassem aqueles<br />

vistos como nulos. Concluiu que não tivera quaisquer dúvidas em <strong>de</strong>clarar às autorida<strong>de</strong>s<br />

espanholas “que o Cônsul havia perdi<strong>do</strong> o uso da razão”.<br />

Como não ficar choca<strong>do</strong> com estas <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> um homem que em 1973, escreveu<br />

nas suas “<strong>Memórias</strong>”: “A 20 <strong>de</strong> Junho, tomei a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> me <strong>de</strong>slocar à fronteira francesa.<br />

Chegavam notícias <strong>de</strong> que multidões <strong>de</strong> fugitivos <strong>de</strong> várias nacionalida<strong>de</strong>s se comprimiam na<br />

fronteira <strong>do</strong>s Pirinéus, buscan<strong>do</strong> apavoradamente continuar a viagem para Portugal”.<br />

– “Durante <strong>do</strong>is ou três dias circulei penosamente entre Hendaia e Baiona, fazen<strong>do</strong><br />

respeitar pelas autorida<strong>de</strong>s espanholas os vistos portugueses e acudin<strong>do</strong> àquele <strong>de</strong>sastre por<br />

todas as maneiras que estivessem ao meu alcance”:<br />

pontos:<br />

Remeti<strong>do</strong> a <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s no dia 2 <strong>de</strong> Agosto, o auto <strong>de</strong> acusação <strong>de</strong> Brito tinha 15<br />

– A concessão <strong>de</strong> vistos a Arnold Wiznitzer e à família antes mesmo <strong>de</strong> ter recebi<strong>do</strong> a<br />

resposta <strong>de</strong> Lisboa.<br />

– A concessão, nas mesmas condições, <strong>de</strong> visto ao professor Laporte.<br />

– A violação da circular 14, com a concessão <strong>de</strong> vistos a três cidadãos polacos.<br />

– A exigência feita a cidadãos britânicos para contribuírem para um fun<strong>do</strong> caritativo<br />

português antes da concessão <strong>de</strong> vistos.<br />

– A or<strong>de</strong>m dada ao Cônsul em Baiona para que conce<strong>de</strong>sse vistos a to<strong>do</strong>s os que<br />

pedissem “alegan<strong>do</strong> ser necessário salvar todas estas pessoas”.<br />

14


– Exercício <strong>de</strong> funções numa secretaria que não era a sua e a or<strong>de</strong>m dada ao cônsul<br />

em Baiona para conce<strong>de</strong>r os vistos gratuitamente.<br />

– A permissão, dada pelo telefone, ao cônsul em Toulouse para conce<strong>de</strong>r vistos.<br />

– A resposta dada a Arman<strong>do</strong> Simeão, quan<strong>do</strong> este insistiu na gravida<strong>de</strong> das faltas:<br />

“recusar o visto àquela pobre gente era um esforço superior às minhas forças”.<br />

– Criação <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong>sonrosa para Portugal perante as autorida<strong>de</strong>s espanholas<br />

e alemãs.<br />

– O facto <strong>do</strong> director da Polícia <strong>de</strong> Vigilância e Defesa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ter podi<strong>do</strong> verificar que<br />

a maior parte <strong>do</strong>s estrangeiros que queriam entrar em Portugal tinham <strong>do</strong>cumentos<br />

assina<strong>do</strong>s pelo acusa<strong>do</strong>.<br />

– A presença, entre os estrangeiros, <strong>de</strong> nacionais <strong>de</strong> países a quem estava interdita a<br />

concessão <strong>de</strong> vistos.<br />

– A aposição <strong>de</strong> vistos em <strong>do</strong>cumentos que não eram verda<strong>de</strong>iros passaportes.<br />

– A entrada em Portugal <strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s luxemburgueses Paul Miny e Maria da<br />

Conceição Miny com passaportes portugueses.<br />

– A falsificação <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> parentesco existente entre Paul e Maria Miny.<br />

– O pedi<strong>do</strong> feito pelo acusa<strong>do</strong> ao casal Miny para que lhe fosse <strong>de</strong>volvi<strong>do</strong> o passaporte<br />

litigioso <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eles terem entra<strong>do</strong> em Portugal.<br />

<strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s tinha <strong>de</strong>z dias para preparar a <strong>de</strong>fesa.<br />

Quan<strong>do</strong> <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s entregou a <strong>de</strong>fesa, um <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> uma vintena <strong>de</strong><br />

páginas, juntou-lhe o artigo <strong>do</strong> “Diário <strong>de</strong> Notícias”, <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1940, que sob o título<br />

“Portugal Foi Sempre Cristão”, prestava homenagem à hospitalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> país para com os<br />

refugia<strong>do</strong>s: ”A nossa hospitalida<strong>de</strong> não tem cor nem é guiada por qualquer sentimento que não<br />

seja a virtu<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> perante a <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong>sarmada, a <strong>de</strong>sgraça inocente ou<br />

o apelo <strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>”.<br />

<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s junta também uma carta da escritora Gisèle Allotini: “Tenho<br />

<strong>de</strong> testemunhar a profunda admiração que as pessoas têm por si em to<strong>do</strong>s os países on<strong>de</strong><br />

exerceu as funções <strong>de</strong> cônsul. O senhor é para Portugal a melhor das propagandas, é uma honra<br />

para a sua pátria. To<strong>do</strong>s aqueles que o conheceram louvam a sua coragem, o gran<strong>de</strong> coração, o<br />

espírito cavalheiresco”, e acrescenta “se os Portugueses se parecem com o cônsul-geral<br />

Men<strong>de</strong>s, são um povo <strong>de</strong> cavalheiros e <strong>de</strong> heróis”.<br />

Na <strong>de</strong>fesa, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s respon<strong>de</strong>, uma por uma, às acusações <strong>de</strong> Paula Brito,<br />

acrescentan<strong>do</strong> que o seu objectivo tinha si<strong>do</strong> sempre “humanitário” que preten<strong>de</strong>ra salvar vidas e<br />

evitar a dispersão das famílias. Que também tinha pensa<strong>do</strong> na sorte reservada àquelas pessoas<br />

se caíssem nas mãos <strong>do</strong> inimigo. “Muitos <strong>de</strong>les eram ju<strong>de</strong>us, que, já persegui<strong>do</strong>s antes,<br />

procuravam angustiosamente escapar ao horror <strong>de</strong> novas perseguições; por fim, havia um<br />

eleva<strong>do</strong> número <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os países invadi<strong>do</strong>s que procuravam evitar ficar à mercê<br />

15


da brutal sexualida<strong>de</strong> teutónica. A este juntava-se o espectáculo <strong>de</strong> centenares <strong>de</strong> crianças, que,<br />

acompanhan<strong>do</strong> os pais, participavam <strong>do</strong>s seus sofrimentos e angústias”...<br />

Explicava que apenas tinha procura<strong>do</strong> honrar a missão que lhe estava confiada e<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o bom nome <strong>de</strong> Portugal e que numerosas personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> países estrangeiros<br />

tinham recorri<strong>do</strong> a ele, que todas essas pessoas lhe disseram palavras <strong>de</strong> reconhecimento que<br />

eram en<strong>de</strong>reçadas a Portugal, o único país da Europa que se mostrava acolhe<strong>do</strong>r para tantas<br />

pessoas em situação <strong>de</strong>sesperada.<br />

E concluía: ”Posso ter erra<strong>do</strong>, mas se errei não o fiz com intenção, ten<strong>do</strong> procedi<strong>do</strong><br />

sempre segun<strong>do</strong> os ditames da minha consciência que (...) nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> me guiar no<br />

cumprimento <strong>do</strong>s meus <strong>de</strong>veres, com pleno conhecimento das minhas responsabilida<strong>de</strong>s”.<br />

A 29 <strong>de</strong> Agosto, Brito apresentou o relatório ao Conselho Disciplinar: <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s era acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência, premeditação, reincidência e acumulação <strong>de</strong> infracções.<br />

Disciplinar.<br />

Precisamente <strong>do</strong>is meses <strong>de</strong>pois, a 29 <strong>de</strong> Outubro o relatório foi aprova<strong>do</strong> pelo Conselho<br />

No dia seguinte, 30 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1940, o dita<strong>do</strong>r, passan<strong>do</strong> por cima das normas<br />

administrativas em vigor que impedia as penas duplas, con<strong>de</strong>nou <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s a um ano <strong>de</strong><br />

suspensão, com direito a meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> vencimento, fin<strong>do</strong> o qual seria aposenta<strong>do</strong>.<br />

Salazar con<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>-o à morte económica <strong>de</strong>u o processo por concluí<strong>do</strong>. Nunca mais<br />

queria ouvir falar em <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

TEMPOS DIFÍCEIS<br />

Obriga<strong>do</strong> a reformar-se aos cinquenta e cinco anos, sem trabalho, ten<strong>do</strong> quase toda a<br />

família para sustentar, nem assim <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sanimou.<br />

A 28 <strong>de</strong> Novembro, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, ajuda<strong>do</strong> por um advoga<strong>do</strong> que já tinha ti<strong>do</strong> problemas<br />

com a polícia política <strong>do</strong> regime – A<strong>de</strong>lino da Palma Carlos –, fez entrar um recurso no Tribunal<br />

Administrativo <strong>de</strong> Lisboa. Insistia, nomeadamente, no <strong>de</strong>srespeito <strong>do</strong>s seus direitos <strong>de</strong> argui<strong>do</strong><br />

durante o processo.<br />

Enquanto esperava que o Tribunal Administrativo se pronunciasse, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s, cuja situação era cada vez mais catastrófica, enviou, em Dezembro <strong>de</strong> 1940, um novo<br />

telegrama a Salazar. Evocan<strong>do</strong> estar “absolutamente <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> recursos” para prover às<br />

necessida<strong>de</strong>s da família, “uma das mais numerosas <strong>de</strong> Portugal”, pedia que Salazar se dignasse,<br />

com a máxima urgência, mandar entregar-lhe as quantias “a que tem direito pelas leis em vigor”.<br />

Não obteve resposta.<br />

A comunida<strong>de</strong> judaica <strong>de</strong> Lisboa estipulou uma ajuda mensal a <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s e tornou-<br />

lhe possível que fosse comer à respectiva cantina, juntamente com os filhos.<br />

A 19 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1941, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, recebeu uma má notícia, apenas mais uma: o<br />

Tribunal Administrativo tinha rejeita<strong>do</strong> o recurso.<br />

Nada a fazer. <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> esgotava-se em diligências inúteis.<br />

16


A 30 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1945, Hitler suici<strong>do</strong>u-se. O presi<strong>de</strong>nte irlandês De Valera e Salazar foram<br />

os únicos dirigentes políticos a enviarem telegramas <strong>de</strong> con<strong>do</strong>lências e, durante <strong>do</strong>is dias, as<br />

ban<strong>de</strong>iras foram colocadas a meia haste em Lisboa o que não impediu Salazar <strong>de</strong>, a 8 <strong>de</strong> Maio,<br />

<strong>de</strong>clarar na tribuna da Assembleia Nacional: “Bendigamos a Paz. Bendigamos a Vitória.”.<br />

popular.<br />

Nesse dia, as ruas da capital foram palco <strong>de</strong> manifestações <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro regozijo<br />

Como tantos outros, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s pensou que era possível uma verda<strong>de</strong>ira<br />

mudança em Portugal. Mesmo vítima <strong>de</strong> uma primeira hemorragia cerebral, em Maio <strong>de</strong> 1945,<br />

continuava a bater-se. O “Discurso da Paz”, pronuncia<strong>do</strong> por Salazar a 16 <strong>de</strong> Maio, chocou-o <strong>de</strong><br />

forma muito especial, nomeadamente quan<strong>do</strong> o dita<strong>do</strong>r <strong>de</strong>clarou que quanto aos refugia<strong>do</strong>s o<br />

Governo tinha cumpri<strong>do</strong> o seu <strong>de</strong>ver, mesmo lamentan<strong>do</strong> não ter podi<strong>do</strong> fazer mais. <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong>,<br />

um homem habitualmente tão calmo e bon<strong>do</strong>so, ficou louco <strong>de</strong> raiva.<br />

Em Dezembro <strong>de</strong> 1945, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s dirigiu-se ao Presi<strong>de</strong>nte da Assembleia Nacional.<br />

Desta vez o ataque foi mais directo: a Circular 14 era pura e simplesmente inconstitucional!<br />

Tratava-se, repetia, <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r vistos “a milhares <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> religião judaica, vindas <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong>s os países invadi<strong>do</strong>s, já perseguidas na Alemanha e noutros países”. Prosseguia, dizen<strong>do</strong>,<br />

consi<strong>de</strong>rar que a Circular contrariava o artigo 8º da Constituição, que garantia a liberda<strong>de</strong> e a<br />

inviolabilida<strong>de</strong> das crenças e não permitia que as pessoas fossem perseguidas por causa <strong>de</strong>las,<br />

ou que fossem obrigadas a <strong>de</strong>clarar a que religião pertenciam.<br />

Dizia já não po<strong>de</strong>r suportar ter si<strong>do</strong> severamente puni<strong>do</strong> por factos pelos quais “a<br />

administração tem si<strong>do</strong> elogiada, em Portugal e no estrangeiro, manifestamente por engano<br />

porque” segun<strong>do</strong> ele dizia, “os encómios cabem ao País e sua população, cujos sentimentos<br />

altruístas e humanitários tiveram larga aplicação e retumbância <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à <strong>de</strong>sobediência <strong>do</strong><br />

reclamante”.<br />

Não ten<strong>do</strong> obti<strong>do</strong> resposta, a 24 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1946, <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s escreveu ao<br />

Presi<strong>de</strong>nte da República a pedir a sua intervenção. Também aqui nunca recebeu qualquer<br />

resposta.<br />

A pedra que Salazar mandara colocar sobre o processo estava lá para ficar.<br />

O regime continuava a persegui-lo com to<strong>do</strong> o género <strong>de</strong> manobras burocráticas. Salazar<br />

nunca lhe quis per<strong>do</strong>ar, embora soubesse que lhe bastava dar uma or<strong>de</strong>m para que <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s pu<strong>de</strong>sse acabar tranquilamente os seus dias. O rancor daquele homem era imortal.<br />

Também se dirigiu a D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Car<strong>de</strong>al-Patriarca <strong>de</strong> Lisboa, um <strong>do</strong>s<br />

raros íntimos <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Conselho <strong>de</strong> Ministros, pedin<strong>do</strong>-lhe que interce<strong>de</strong>sse a favor <strong>de</strong>le.<br />

O Car<strong>de</strong>al respon<strong>de</strong>u-lhe, o que não po<strong>de</strong>rá ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> surpresa, visto tratar-se <strong>de</strong> um caso<br />

extremamente humano e <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s ter si<strong>do</strong> toda a vida um fervoroso católico. Não<br />

conheço a resposta <strong>do</strong> Car<strong>de</strong>al Cerejeira, no entanto, e apesar da sua gran<strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> com<br />

Salazar, com quem partilhara a casa nos tempos <strong>de</strong> Coimbra, o meu raciocínio leva-me a<br />

concluir que o Patriarca nunca teria aborda<strong>do</strong> Salazar, quer por escrito, quer <strong>de</strong> viva voz.<br />

17


Conhecen<strong>do</strong>-o sobejamente, tinha consciência da nulida<strong>de</strong> da sua intercessão, e mais: tocar em<br />

tal assunto só po<strong>de</strong>ria aumentar a irritação <strong>de</strong> Oliveira Salazar e até, talvez, levar a um<br />

esfriamento <strong>de</strong> relações.<br />

A este propósito não po<strong>de</strong>rei <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> referir o artigo “Padre Abel Varzim”, publica<strong>do</strong> no<br />

“Diário <strong>do</strong> Minho” (20/8/2004) da autoria <strong>do</strong> Doutor J. M. da Cruz Pontes, Professor <strong>de</strong> quem<br />

guar<strong>do</strong> muito boas recordações.<br />

A 16 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1948, no seu “Diário”, escrevia o Padre Abel Varzim:<br />

… “Escreverei as minhas impressões, pouco a pouco. Por agora, apenas quero registar,<br />

no dia <strong>de</strong> hoje o facto: - Querem que eu saia da Acção Católica! Porquê? Por ter <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> a<br />

<strong>do</strong>utrina social da Igreja e reagir contra a sua submissão a Salazar … O senhor Car<strong>de</strong>al disse-<br />

me há dias, que tinha <strong>do</strong>is caminhos a seguir: cobrir-me e sofrer-lhe as consequências <strong>de</strong> uma<br />

má vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; ou então guardar-me como uma reserva da Igreja. Compreendi tu<strong>do</strong> !!!”<br />

Por isso … adiante.<br />

MORTE DE UM “HOMEM BOM”<br />

Os testemunhos sobre os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros anos da vida <strong>do</strong> Cônsul variam bastante. Mas todas<br />

as pessoas parecem <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> num ponto: mesmo nos momentos mais duros, mais<br />

humilhantes, quan<strong>do</strong> se sentia rejeita<strong>do</strong>, manteve sempre uma atitu<strong>de</strong> benévola em relação à<br />

vida.<br />

Em Janeiro <strong>de</strong> 1948 Angelina sofreu uma hemorragia cerebral que a mergulhou em coma,<br />

vin<strong>do</strong> a falecer seis meses <strong>de</strong>pois.<br />

Antes da morte <strong>de</strong> Angelina, a família <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s tinha <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> que a emigração era<br />

o único caminho que lhe restava, visto estarem to<strong>do</strong>s na lista negra por motivos políticos. Em<br />

Novembro <strong>de</strong> 1945, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s assinou juntamente com os filhos: <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong>,<br />

Geral<strong>do</strong>, Carlos e Pedro Nuno, uma petição <strong>do</strong> recentemente cria<strong>do</strong> Movimento <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong><br />

Democrática (M.U.D.) que tinha começa<strong>do</strong> por exigir eleições livres. Apesar das garantias <strong>do</strong><br />

po<strong>de</strong>r, as listas <strong>de</strong> filia<strong>do</strong>s e simpatizantes <strong>do</strong> movimento caíram nas mãos da polícia política,<br />

que convocou a família.<br />

A imprensa estava <strong>de</strong> novo amordaçada e a oposição preferiu abster-se <strong>de</strong> concorrer às<br />

eleições <strong>de</strong> Novembro.<br />

emigração.<br />

A principal razão por que a família permanecia em Lisboa era para tratar <strong>do</strong> processo <strong>de</strong><br />

O ex-cônsul não via futuro para a sua família num país governa<strong>do</strong> por dirigentes como<br />

Salazar e Carmona. À medida que iam conseguin<strong>do</strong> os vistos, os filhos iam partin<strong>do</strong>. <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s tinha vivi<strong>do</strong> para a família e a família estava a dispersar-se. Sentia-se sozinho e<br />

vulnerável.<br />

Os últimos cinco anos da vida <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s foram os mais difíceis.<br />

18


Vendi<strong>do</strong>s os móveis <strong>de</strong> estilo, os pianos, as gran<strong>de</strong>s mesas, as bibliotecas, chegou a vez<br />

<strong>de</strong> ven<strong>de</strong>rem as camas, os sofás, as ca<strong>de</strong>iras e outros bens.<br />

De facto, os problemas financeiros não <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> o atormentar. Desta vez, no entanto,<br />

tiveram consequências verda<strong>de</strong>iramente trágicas.<br />

No Inverno <strong>de</strong> 1953 foi intentada uma acção legal contra <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s por falta <strong>de</strong><br />

pagamento <strong>de</strong> dívidas. Os seus <strong>do</strong>is principais cre<strong>do</strong>res eram os bancos que <strong>de</strong>tinham a primeira<br />

e a segunda hipotecas sobre o Passal e aos quais ele <strong>de</strong>via setenta contos.<br />

Em Setembro <strong>de</strong>sse ano, o tribunal <strong>de</strong>cidiu que <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s tinha que pagar<br />

prestações mensais <strong>de</strong> 3.900$00, equivalentes a um terço da sua pensão.<br />

Também o seu esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> se agravava <strong>de</strong> dia para dia. Regressa<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma viagem<br />

a França, on<strong>de</strong> fora visitar a filha Maria Rosa, Andrée levou-o para o Hospital da Or<strong>de</strong>m Terceira<br />

<strong>de</strong> S. Francisco. <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s morreu aí a 3 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1954, <strong>de</strong> uma trombose<br />

cerebral agravada pela pneumonia.<br />

Entre os papéis pessoais <strong>do</strong> irmão César, foi encontra<strong>do</strong> um cartão <strong>de</strong> visita <strong>de</strong> Salazar,<br />

redigi<strong>do</strong> a 5 <strong>de</strong> Abril. Tinha apenas duas palavras, escritas à mão: “Senti<strong>do</strong>s pêsames”.<br />

<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s teve a “coragem <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer” no gesto heróico <strong>de</strong> salvar<br />

vidas, movi<strong>do</strong> por razões <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> humana quan<strong>do</strong> estava em jogo, para milhares <strong>de</strong><br />

pessoas, o direito à vida.<br />

REABILITAÇÃO DE ARISTIDES DE SOUSA MENDES (1967-2001)<br />

A 13 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1988, a Assembleia da República votou, por unanimida<strong>de</strong>, a<br />

reabilitação <strong>do</strong> Cônsul, quer dizer, quarenta e oito anos <strong>de</strong>pois <strong>do</strong>s acontecimentos <strong>de</strong> Bordéus e<br />

catorze anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 74.<br />

Passo a referir os marcos mais relevantes <strong>de</strong>ssa reabilitação.<br />

Em Outubro <strong>de</strong> 1967, o cônsul-geral <strong>de</strong> Israel em New York entregou a Joana <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s (filha) a Medalha <strong>de</strong> Ouro <strong>do</strong>s Justos, <strong>do</strong> Yad Vashem, à memória <strong>de</strong> seu pai (o único<br />

Português que a <strong>de</strong>tém).<br />

Em Jerusalém, o Museu <strong>de</strong> Yad Vashem – memorial às vítimas <strong>do</strong> holocausto –<br />

homenageou-o, plantan<strong>do</strong> uma árvore à sua memória na Floresta <strong>do</strong>s Mártires.<br />

Após Abril <strong>de</strong> 1974 a família conseguiu que o Governo saí<strong>do</strong> da Revolução proce<strong>de</strong>sse a<br />

investigações. Nomea<strong>do</strong> o embaixa<strong>do</strong>r Bessa Lopes, este apresentou relatório em 1976. Só <strong>de</strong>z<br />

anos <strong>de</strong>pois o relatório foi da<strong>do</strong> a conhecer publicamente.<br />

Em 1987, na Embaixada Portuguesa <strong>de</strong> Washington, o Presi<strong>de</strong>nte da República Mário<br />

Soares, entrega à família <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s a Or<strong>de</strong>m da Liberda<strong>de</strong>.<br />

Em Março <strong>de</strong> 1988, a Assembleia da República aprova o Projecto <strong>de</strong> Lei, da autoria <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>puta<strong>do</strong> socialista Jaime Gama, reabilitan<strong>do</strong> oficialmente <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s; um mês<br />

<strong>de</strong>pois o Diário da República publica o diploma que o reintegra a título póstumo na carreira<br />

diplomática, com a promoção a embaixa<strong>do</strong>r.<br />

19


seu centro.<br />

Em 1990, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Montreal (Canadá) dá o nome <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s a um parque no<br />

Em 24 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1993, a R.T.P., Canal 2, no programa “Sinais <strong>do</strong> Tempo”, exibiu o<br />

<strong>do</strong>cumentário, “O Cônsul Injustiça<strong>do</strong>” <strong>de</strong> Diana Andringa, Teresa Olga e Fátima Cavaco.<br />

Em Junho <strong>do</strong> mesmo ano, o Presi<strong>de</strong>nte da República <strong>de</strong>scerrou uma lápi<strong>de</strong> evocativa na<br />

Sinagoga <strong>de</strong> Lisboa.<br />

No ano seguinte, e ainda Mário Soares, em Bordéus, no Jardim da Resistência,<br />

<strong>de</strong>scerrava o busto <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, ofereci<strong>do</strong> pela comunida<strong>de</strong> portuguesa resi<strong>de</strong>nte.<br />

A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bordéus atribuiu a uma das suas ruas e a um importante liceu o nome <strong>de</strong><br />

<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

O Canal France 3 exibe o “Cônsul Injustiça<strong>do</strong>”.<br />

A 23 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1995, no antigo cinema Tivoli, a Fundação “Pro Dignitate” presidida<br />

pela Dr.ª Maria <strong>de</strong> Jesus Barroso promove uma homenagem nacional, sen<strong>do</strong> con<strong>de</strong>cora<strong>do</strong><br />

postumamente com a Grã-Cruz da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo.<br />

No mês <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1997, na Feira <strong>do</strong> Livro em Frankfurt, é lançada a edição alemã <strong>do</strong><br />

livro <strong>de</strong> Júlia Néry, “O Cônsul”, já antes traduzi<strong>do</strong> em francês e edita<strong>do</strong> em Bordéus.<br />

Em 31 <strong>do</strong> mesmo mês, o diário francês “Le Mon<strong>de</strong>” homenageia <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s no dia em que perfaziam 500 anos da data limite <strong>do</strong> édito <strong>de</strong> D. Manuel I, obrigan<strong>do</strong> à<br />

conversão ou expulsão <strong>do</strong>s ju<strong>de</strong>us.<br />

No ano seguinte, 1998, é publica<strong>do</strong> o livro “Le Juste <strong>de</strong> Bor<strong>de</strong>aux”, segui<strong>do</strong> <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate<br />

público, em Bordéus, e <strong>de</strong> um programa televisivo, por satélite: “Bouillon <strong>de</strong> Culture””.<br />

Pouco antes <strong>de</strong> findar o ano, o Parlamento Europeu homenageia <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s,<br />

atribuin<strong>do</strong>-lhe uma importante medalha-con<strong>de</strong>coração.<br />

Em Abril <strong>de</strong> 1999, a Câmara <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro atribuía a Con<strong>de</strong>coração da Cida<strong>de</strong> à<br />

Memória <strong>do</strong> Cônsul; em Maio, o Presi<strong>de</strong>nte da República Jorge Sampaio presta homenagem, em<br />

Cabanas <strong>de</strong> Viriato, a <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

Em Junho, o Teatro Experimental <strong>de</strong> Cascais leva à cena a peça <strong>de</strong> Luís Francisco<br />

Rebelo, “A Desobediência”, encenada por Carlos Avilez.<br />

Em Viseu, a Associação AVIS promove um Congresso <strong>de</strong> Homenagem a <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s.<br />

Em Cabanas <strong>de</strong> Viriato, junto ao jazigo on<strong>de</strong> repousam os restos mortais <strong>do</strong> Cônsul, D. António<br />

Monteiro, Bispo <strong>de</strong> Viseu, pe<strong>de</strong> publicamente perdão, em nome da hierarquia da Igreja, pela<br />

recusa <strong>de</strong> auxílio a A.S.M. e família, quan<strong>do</strong> estes a solicitaram.<br />

Em 23 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 2000, por escritura notarial, proce<strong>de</strong>u-se, em Lisboa, à<br />

constituição da Fundação A.S.M.; um mês <strong>de</strong>pois, no Palácio das Necessida<strong>de</strong>s, Jaime Gama,<br />

M.N.E., <strong>do</strong>ava 50.000 contos à referida fundação.<br />

Uma exposição <strong>de</strong>dicada ao cônsul <strong>de</strong> Portugal em Bordéus foi inaugurada em 6 <strong>de</strong><br />

Novembro <strong>de</strong> 2001, no Museu da República e Resistência, com a presença <strong>de</strong> membros <strong>do</strong><br />

corpo diplomático e da família <strong>do</strong> diplomata faleci<strong>do</strong>.<br />

20


A exposição retrata o perfil humano <strong>de</strong> <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, abordan<strong>do</strong> ainda<br />

temas relativos à II Guerra Mundial, nomeadamente o papel <strong>do</strong> nazismo, o holocausto e os<br />

refugia<strong>do</strong>s entre outros.<br />

Resta dizer o seguinte: “Esqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Portugueses, mas bem vivo, inapagável nos 30<br />

mil corações que salvara num gesto universalista, <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s foi um herói pelas<br />

mesmas razões e no mesmo quadro <strong>de</strong> sentimentos que distinguiram o diplomata sueco, Raul<br />

Wallenberg ou Oskar Schindler. A Humanida<strong>de</strong> guardará memória <strong>de</strong>stes três heróis cuja figura<br />

ressalta luminosa, heróica, grandiosa, por sobre o vendaval <strong>do</strong>s instintos selvagens que<br />

ensanguentaram a Europa.”<br />

EM LOUVOR DE UM JUSTO<br />

Quan<strong>do</strong> o coração bateu e a razão se revoltou<br />

ele não se intimi<strong>do</strong>u, <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ceu<br />

àquela or<strong>de</strong>m mordaz, vinda <strong>de</strong> um algoz<br />

que não sabia <strong>do</strong> que ali se passava.<br />

Salvar aquela gente era apenas o que interessava<br />

mesmo que isso o levasse à punição.<br />

Perante a opressão e a tirania não claudicou<br />

manten<strong>do</strong>-se firme no seu posto consular,<br />

sem <strong>do</strong>rmir, sem comer, sem gemer,<br />

foi passan<strong>do</strong> vistos sem par<br />

e salvou milhares <strong>de</strong> vidas<br />

<strong>de</strong> uma perseguição singular.<br />

Nada lhe valeram as explicações que <strong>de</strong>u<br />

ao governo que então representava.<br />

Con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> e espolia<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> à sua sorte<br />

morreu... mas <strong>de</strong> pé como uma árvore<br />

que seca mas não cai.<br />

Honremos a memória <strong>de</strong>ste justo<br />

e façamos <strong>do</strong> seu gesto um hino à paz<br />

para que nunca mais o ódio seja<br />

universal.<br />

Homenagem a <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s<br />

José <strong>de</strong> Castro<br />

18.6.1999<br />

21


Bibliografia consultada<br />

AFONSO, Rui – “Injustiça”. Lisboa, Ed. Caminho, 1990.<br />

AFONSO, Rui – “Um Homem Bom – <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s”, o “Wallenberg Português”.<br />

Lisboa, Caminho, 1995.<br />

CARVALHO, António – “”Wallenberg Português” – “Merece ser reabilita<strong>do</strong>: família <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong><br />

Men<strong>de</strong>s pe<strong>de</strong> que seja feita justiça”, in “Capital”, 2 /Março/1986.<br />

ERLICH, Reese – “O herói português <strong>do</strong> <strong>Holocausto</strong>”, in “Diário Popular”, 15/Maio/ 1987.<br />

FRALON, José Alain – “<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s – Le Juste <strong>de</strong> Bor<strong>de</strong>aux ”. Bor<strong>de</strong>aux, Ed.<br />

Mollat, 1988 (Trad. port. <strong>de</strong> Saúl Barata, “ <strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s – Um Herói<br />

Português”. Lisboa. Presença, 1999).<br />

GRANADA, Novais – “Português que salvou 30 mil recorda<strong>do</strong> na Estação <strong>do</strong> Parque: Metro <strong>de</strong><br />

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MAGNO, Carlos – “Salazar, o cônsul e a criada”, in “Expresso” – Revista, 9/Novembro/1996.<br />

MASCARENHAS, João e MARTINS, Maria João – “<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s – A Coragem da<br />

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MELO, António – “Em Nome da Dignida<strong>de</strong>”, in “Público”, 17/Novembro/1998.<br />

MILGRAM, Avraham – “Os cônsules portugueses e a questão <strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s ju<strong>de</strong>us”, in<br />

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NERY, Júlia – “O Cônsul”. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1991.<br />

NOGUEIRA, Franco – “Salazar”. Livraria Civilização Editora. Porto. 6 Vols.<br />

PEREIRA, Pedro Teotónio – “<strong>Memórias</strong>: Postos em que servi e algumas recordações pessoais;<br />

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PONTES, J. M. da Cruz – “Padre Abel Varzim”, in “Diário <strong>do</strong> Minho”, 20/8/2004.<br />

RODRIGUES, Manuel Augusto – “<strong>Aristi<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong> Men<strong>de</strong>s, aluno da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Coimbra”, in “Revista <strong>de</strong> História das I<strong>de</strong>ias”, N.º 17, Coimbra, 1995.<br />

TELO, António José – “Portugal na Segunda Guerra”. Lisboa, Edições Veja, 1992.<br />

Nota – O tema <strong>de</strong>scrito foi objecto <strong>de</strong> uma conferência em Fevereiro <strong>de</strong> 2002 na <strong>Escola</strong><br />

Secundária <strong>de</strong> Alberto Sampaio e em Maio <strong>de</strong> 2003 na <strong>Escola</strong> Secundária Sá <strong>de</strong> Miranda<br />

e que tiveram a preciosa colaboração da Dr.ª Teresa Vilaça.<br />

Porém, agora, resolvi dar-lhe um maior fôlego acrescentan<strong>do</strong>-lhe os elementos possíveis<br />

e que julguei por convenientes.<br />

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