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O ESPELHO NOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E GUIMARÃES ROSA: A<br />
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS PERSONAGENS MASCULINOS<br />
Cyelle Carmem Vasconcelos Pereira 1 (UFPB)<br />
cy_carmem@hotmail.com.<br />
Quem consegue resistir ao mistério do <strong>espelho</strong>? Por vezes objeto <strong>de</strong> adoração,<br />
outras, necessida<strong>de</strong> básica e ainda <strong>de</strong> manifestação da verda<strong>de</strong> e do obscuro. Ele também é<br />
sinônimo <strong>de</strong> autoestima, <strong>de</strong> amor próprio e vaida<strong>de</strong>. Diante <strong>de</strong> um <strong>espelho</strong>, o que você vê?<br />
Essa é a resposta que incessantemente <strong>de</strong>sejamos obter.<br />
Segundo o Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, o <strong>espelho</strong> representa a verda<strong>de</strong>, a<br />
autocontemplação e reflexão do universo. No entanto, po<strong>de</strong> mostrar o puro, as coisas como<br />
elas são, por outro lado, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>turpar a verda<strong>de</strong>, enganar. Já <strong>de</strong> acordo com o significado<br />
do <strong>espelho</strong> em sonhos, se a imagem for nítida, indica bons presságios, no entanto se for<br />
opaca, turva, <strong>de</strong>ve-se ficar atento, pois anuncia mortes e cuidados com a saú<strong>de</strong>.<br />
O objetivo do trabalho é mostrar o <strong>espelho</strong> como instrumento para construção<br />
da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>nos</strong> personagens masculi<strong>nos</strong> <strong>nos</strong> <strong>contos</strong> <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis e Guimarães<br />
Rosa, ambos intitulados “O Espelho”, uma vez que enfatizam a busca por sentidos<br />
existenciais <strong>de</strong> suas personalida<strong>de</strong>s.<br />
1. O Espelho na Mitologia Grega<br />
A mitologia foi a primeira a levantar o mito do <strong>espelho</strong>, com a imagem <strong>de</strong><br />
Narciso. A história <strong>nos</strong> conta que Tirésias, um sábio cego, ao ser consultado a respeito do<br />
<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Narciso por Liríope, a mãe, previu seu o <strong>de</strong>stino: “Consultado sobre este<br />
1 Graduada em Letras e Mestre em Literatura e Cultura pela UFPB. Especialista em<br />
Psicopedagogia Institucional pelo CINTEP-PB e Editora da Revista Nova Esperança.<br />
0
assunto – a criança viveria longos a<strong>nos</strong> <strong>de</strong> uma velhice prolongada? – Sim, se ele não se<br />
conhecer”, disse o adivinho intérprete do <strong>de</strong>stino”. 2<br />
Segundo Raïssa Cavalcanti (1992, p. 12), “o ato <strong>de</strong> conhecer exige abertura e<br />
disponibilida<strong>de</strong> para o outro, e receptivida<strong>de</strong> para o diferente”. Como Narciso nunca havia<br />
se visto, a imagem refletida, para ele, era outra pessoa. A ignorância <strong>de</strong> si mesmo seria a<br />
salvação <strong>de</strong> jovem mancebo. Mas sabemos que o gran<strong>de</strong> final do mito que envolve Narciso<br />
termina com sua morte no exato momento em que vê seu rosto refletido na água <strong>de</strong> um rio:<br />
Havia uma fonte límpida <strong>de</strong> cujas águas brilhantes e argênteas, nem os<br />
pastores, nem os cavalos que pastavam sobre a montanha, nem nenhum<br />
outro gado, tinham jamais se aproximado, nem nenhum pássaro tinha<br />
perturbado, nenhuma besta selvagem, nenhum ramo tombado <strong>de</strong> uma<br />
árvore. Ela era ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> relva que sustentava a proximida<strong>de</strong> da água; e<br />
a floresta impedia o sol <strong>de</strong> jamais esquentar esses lugares. É lá que o<br />
jovem, fatigado pelo ardor da caça e pelo calor, veio se esten<strong>de</strong>r, atraído<br />
pelo aspecto do lugar e pela fonte. Mas, ao invés <strong>de</strong> tentar apaziguar sua<br />
se<strong>de</strong>, uma outra se<strong>de</strong> cresceu nele. Inclinado enquanto bebia, seduzido<br />
pela imagem <strong>de</strong> sua beleza que ele percebeu, apaixonou-se <strong>de</strong> um reflexo<br />
sem consistência, preso por um corpo que não é mais que uma sombra.<br />
Caído em êxtase diante <strong>de</strong> si mesmo, e, sem mover-se, a vista fixa,<br />
absorvido nesse espetáculo, parecia uma estátua feita <strong>de</strong> mármore <strong>de</strong><br />
Paros. Ele contempla, <strong>de</strong>itado sobre o solo, dois astros, seus próprios<br />
olhos, e seus cabelos, dig<strong>nos</strong> <strong>de</strong> Baco, dig<strong>nos</strong> <strong>de</strong> Apolo, essas faces<br />
imberbes, seu colo <strong>de</strong> marfim, sua boca charmosa, e o rubor que colore a<br />
brancura <strong>de</strong> neve <strong>de</strong> sua tez. Admira tudo o que inspira a admiração. Ele<br />
<strong>de</strong>seja, em sua ignorância, a si mesmo. Esses elogios, é ele mesmo que<br />
lhes atribui. (...) O que via ele? Ignora-o; mas aquilo que via o abraça, e o<br />
mesmo erro que engana seus olhos excita sua cobiça. Crédulo jovem,<br />
para que esses vão esforços para agarrar uma aparência fugitiva? O objeto<br />
<strong>de</strong> teu <strong>de</strong>sejo não existe! Desse teu amor, <strong>de</strong>svia-te, e tu o farás<br />
<strong>de</strong>saparecer. Essa sombra que tu vês, é o reflexo <strong>de</strong> tua imagem. (...) Eu<br />
estou seduzido, eu vejo, mas isso que eu vejo e que me seduz, eu não<br />
posso agarrar; tão gran<strong>de</strong> é o engano que me abuso em meu amor. E, para<br />
aumentar ainda mais minha dor, nem a imensida<strong>de</strong> do mar <strong>nos</strong> separa,<br />
nem uma longa distância, nem montanhas, nem muralhas com portas<br />
fechadas; uma fina camada d’água é tudo aquilo que impe<strong>de</strong> <strong>nos</strong>sa união.<br />
Ele mesmo aspira a meu abraço; porque, cada vez que eu estendo os<br />
lábios a essas ondas límpida, ele, cada vez, <strong>de</strong> sua boca voltada, tem<br />
buscado aten<strong>de</strong>r à minha. (ZAMBOLLI, 2002, p.31-32)<br />
2 Tradução da versão francesa <strong>de</strong> Joseph Chammonard, Les Metamorphoses, GF Flammarion,<br />
1999. In: ZAMBOLLI, p. 30.<br />
1
sua própria imagem:<br />
Depois <strong>de</strong> algum tempo, Narciso percebe que a imagem que tanto o encantou é<br />
O final trágico:<br />
Tu não és outro senão eu mesmo, eu o compreendo; eu não estou mais<br />
enganado <strong>de</strong> minha própria imagem. É por mim que eu queimo <strong>de</strong> amor,<br />
e esse ardor, eu o provocarei por sua vez e o sinto. Que fazer? Ser querido<br />
ou querer? (...) E eis que a dor me retira minhas forças; não me resta mais<br />
muito tempo para viver e eu me extingo na flor da ida<strong>de</strong>. Mas morrer não<br />
me é um peso, pois que morrendo eu <strong>de</strong>ixarei o fardo <strong>de</strong> minha dor. (...)<br />
Disse isso, e insensato, voltou ainda à sua contemplação. Mas suas<br />
lágrimas agitaram as águas e, no lago agitado, a imagem tornou-se<br />
indistinta. (ZAMBOLLI, 2002, p.32)<br />
A última fala <strong>de</strong> Narciso, os olhos mergulhados nessa água que se tornara<br />
familiar, foi: ‘Ai! Jovem querido, meu vão amor!’ e o lugar retornou-lhe<br />
todas as palavras. (...) o corpo tinha <strong>de</strong>saparecido. Em seu lugar,<br />
encontraram uma flor amarelo-alaranjada cujo coração é ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong><br />
pétalas brancas. (ZAMBOLLI, 2002, p.33)<br />
Como um objeto <strong>de</strong> revelação, o <strong>espelho</strong> é utilizado em <strong>contos</strong> <strong>de</strong> fadas como<br />
Branca <strong>de</strong> Neve, cuja madrasta confirmava sua beleza no <strong>espelho</strong>. Neste, a revelação <strong>de</strong><br />
um ser mais belo causa inveja e ódio na bruxa. Em filmes <strong>de</strong> terror ou espíritas, o <strong>espelho</strong><br />
aparece como porta <strong>de</strong> entrada para o mal, como Constantine (2005), cuja cena mostra um<br />
exorcismo utilizando o <strong>espelho</strong> como instrumento. No que se refere à literatura, <strong>nos</strong>so<br />
trabalho enfocará o <strong>espelho</strong> como instrumento <strong>de</strong> revelação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s masculinas, <strong>nos</strong><br />
<strong>contos</strong> brasileiros <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis e Guimarães Rosa, ambos intitulados O Espelho.<br />
2. O <strong>espelho</strong> <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis<br />
No conto O Espelho <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, publicado no livro Papéis Avulsos<br />
<strong>de</strong> 1982, Jacobina, o narrador, afirma haver duas almas: uma que olha <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro e<br />
outra <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora. Acredita que uma completa a outra e a “perda da alma exterior<br />
2
implica a <strong>de</strong> uma existência inteira”. O narrador conta que virou alferes, posto <strong>de</strong> oficial<br />
subalterno nas forças armadas, aos 25 a<strong>nos</strong> e passou a ser paparicado pela tia Marcolina. O<br />
orgulho sentido pelo sobrinho era tanto que ela colocou um gran<strong>de</strong> <strong>espelho</strong> no quarto em<br />
que Jacobina estava hospedado para que este se olhasse e se envai<strong>de</strong>cesse como alferes,<br />
alimentando seu amor próprio, mesmo vindo <strong>de</strong> uma posição social e não pessoal. Dessa<br />
forma, com a presença do <strong>espelho</strong>, o alferes eliminou o homem. “A alma exterior passou a<br />
ser cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do<br />
homem.” Após três semanas, era exclusivamente alferes.<br />
Por ocasião <strong>de</strong> doença da filha <strong>de</strong> tia Marcolina, Jacobina ficou sozinho na<br />
fazenda e, por isso, sentiu-se oprimido. Os carinhos da tia foram substituídos pelos<br />
respeitos dos escravos, que não duraram muito em virtu<strong>de</strong> da fuga <strong>de</strong>stes. Ao ficar<br />
completamente solitário na casa, dizia-se não sentir medo, mas uma sensação estranha, <strong>de</strong><br />
não-vida. Sonhava, à noite, ser convidado a tornar-se tenente, capitão e isso o fazia sentir-<br />
se vivo.<br />
Des<strong>de</strong> que ficou sozinho, não havia se olhado ao <strong>espelho</strong>. Após oito dias,<br />
tomou coragem e a imagem refletida era “vaga, difusa”. Resolveu ir embora. Depois<br />
<strong>de</strong>cidiu vestir-se com a roupa <strong>de</strong> alferes e a imagem pareceu-lhe real, integral. Como<br />
sentia-se bem ao ver-se uniformizado, vestia-se todos os dias, a certa hora, e assim<br />
permanecia por duas ou três horas.<br />
2.1. Análise do conto<br />
O <strong>espelho</strong> no conto <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis faz um duplo papel: ao mesmo tempo<br />
que dá vida ao alferes, rouba a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do homem Jacobina. A tia, orgulhosa <strong>de</strong><br />
sobrinho alcançar a patente nas forças armadas, previu o ponto <strong>de</strong> vista que o <strong>espelho</strong> teria,<br />
<strong>de</strong> exagerar, valorizar as qualida<strong>de</strong>s e as características <strong>de</strong> exaltação <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong><br />
masculina. Ao se ausentar da fazenda e dos olhos do sobrinho, o <strong>espelho</strong> passa a fazer o<br />
papel da carinhosa parente, <strong>de</strong> paparicá-lo, <strong>de</strong> agradar seu ego. A partir daí, o <strong>espelho</strong> faz<br />
nascer o alferes, orgulhoso <strong>de</strong> si mesmo, digno <strong>de</strong> vestir a<strong>de</strong>quadamente com a farda não<br />
3
ilustre. Semelhante a que acontece na mitologia, segundo Raïssa Cavalcanti (1992, p. 21),<br />
“Narciso representa a cegueira do amor, e a escolha pela beleza do corpo, no lugar da<br />
beleza divina”. Dessa forma, não se ouvem mais elogios, pois o reflexo no <strong>espelho</strong> agrada<br />
aos olhos, como se a voz da tia ainda pu<strong>de</strong>sse ser ouvida, ou seja, a audição é substituída<br />
pela visão, dois sentidos primordiais para a conquista, a paixão e a vaida<strong>de</strong>.<br />
A psicologia explica e prova através <strong>de</strong> pesquisas que só vemos aquilo que <strong>nos</strong><br />
interessa ver. Como os elogios, o tratamento especial e a adulação da tia contaminaram o<br />
inconsciente do jovem alferes, este só via a imagem eminente, antes tão valorizada. Diante<br />
disso, po<strong>de</strong>-se comprovar que Jacobina esquece-se <strong>de</strong> observar seu eu pessoal e foca<br />
apenas na personalida<strong>de</strong> masculina formada pelo uniforme. Neste momento, o <strong>espelho</strong><br />
sequestra a persona e <strong>de</strong>volve o homem criado pela aparência social.<br />
3. O Espelho <strong>de</strong> Guimarães Rosa<br />
No conto <strong>de</strong> mesmo título <strong>de</strong> Guimarães Rosa, parte integrante do livro<br />
Primeiras Estórias (2005), assim como no conto supracitado, os fatos são experiências do<br />
narrador. Neste, o narrador afirma que há os <strong>espelho</strong>s bons e maus, os que favorecem e os<br />
que traem, como por exemplo, as fotografias. “Os olhos, por enquanto, são a porta do<br />
engano; duvi<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, dos seus, não <strong>de</strong> mim”. O narrador faz analogia à mitologia <strong>de</strong><br />
Narciso e Tirésias, quando este tem a premonição do que irá acontecer a Narciso. É para se<br />
ter medo dos <strong>espelho</strong>s!<br />
Nosso interlocutor diz que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> menino, sempre evitou os <strong>espelho</strong>s, pois<br />
acreditava que o reflexo <strong>de</strong> uma pessoa no <strong>espelho</strong> fosse a própria alma. A alma do <strong>espelho</strong><br />
– esplêndida metáfora. Outros i<strong>de</strong>ntificam a alma como a sombra do corpo. Quando<br />
alguém morria, era costume tapar os <strong>espelho</strong>s. Em rituais, os vi<strong>de</strong>ntes a utilizam como a<br />
bola <strong>de</strong> cristal, utensílio <strong>de</strong> previsão <strong>de</strong> futuros fatos.<br />
O narrador começa a explicar sua repulsa ao <strong>espelho</strong>, quando da ocasião <strong>de</strong><br />
ver-se em dois <strong>espelho</strong>s, um em frente ao outro, e o reflexo ter-lhe causado espanto.<br />
Depois <strong>de</strong> perceber-se, começou a buscar-se, ou melhor, “o eu por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> mim”.<br />
4
Guimarães cita os rituais e superstições com <strong>espelho</strong>s, no entanto,<br />
posteriormente nega que não preten<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> “metempsicose ou teorias biogenéticas”, ou<br />
seja, não há interesse em discutir sobre transmigração da alma, <strong>de</strong> um corpo para outro<br />
corpo. Aborda temas espirituais, <strong>de</strong> bipolarida<strong>de</strong> luz/escuridão e a ioga, os exercícios<br />
espirituais <strong>de</strong> concentração.<br />
A tentativa do narrador é retirar as arestas, abstrair o que não é importante ou<br />
<strong>de</strong>snecessário. Após esquecer sua investigação, por covardia como ele mesmo confessa,<br />
ficou me<strong>nos</strong> inquieto. Um dia viu-se no <strong>espelho</strong> e não viu mais nada, não se viu, nem como<br />
homem, nem como reflexo <strong>de</strong>le. “Eu era-o transparente contemplador?” “Voltei a querer<br />
encarar-me. Nada... eu não via os meus olhos. Seria eu um... <strong>de</strong>s-almado?”<br />
O narrador fala com o leitor, supondo julgá-lo <strong>de</strong>sorientado e que nada se<br />
prova do que foi falado. Justifica-se um mau contador, precipitado. Confessa que, por um<br />
certo tempo, não se viu refletido, só após a<strong>nos</strong>. “Que luzinha aquela, que <strong>de</strong> mim se emitia,<br />
para <strong>de</strong>ter-se acolá, refletida, surpresa?” E era não mais que: rostinho <strong>de</strong> menino, <strong>de</strong><br />
me<strong>nos</strong>-que-menino, só. Só.”<br />
3.1. Análise do conto<br />
Guimarães Rosa utiliza o <strong>espelho</strong> para fazer uma reflexão a respeito da<br />
busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da personalida<strong>de</strong>, mo<strong>de</strong>lo contrário ao existente no conto <strong>de</strong> Machado<br />
<strong>de</strong> Assis, que retrata um personagem que per<strong>de</strong>u sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> em função <strong>de</strong> outra criada<br />
pela socieda<strong>de</strong>.<br />
O narrador <strong>de</strong> Guimarães, cujo nome não é revelado, <strong>de</strong>monstra ser mais<br />
preocupado com o misticismo, com a espiritualida<strong>de</strong> e não é à toa que associa seu medo <strong>de</strong><br />
<strong>espelho</strong> às superstições, aos rituais espíritas.<br />
O narrador afirma que o rosto é “apenas um movimento <strong>de</strong>ceptivo,<br />
constante”. Nós não conseguimos ver o real, as “mais necessárias novas percepções”.<br />
Assim como o Jacobina <strong>de</strong> Machado, não se vê mais o homem, apenas o alferes, a imagem<br />
5
criada pela família, insuflada pelo orgulho, pela aparência, pelo status que a posição lhe<br />
atribuiu.<br />
Segundo José Carlos Zambolli (2002, p. 48), em sua dissertação A poeta ao<br />
<strong>espelho</strong> (Cecília Meireles e o Mito <strong>de</strong> Narciso), “o tema do <strong>espelho</strong> como imitação da vida<br />
relaciona-se quase sempre ao autoconhecimento. No texto <strong>de</strong> Guimarães, o narrador tem<br />
consciência <strong>de</strong> si mesmo e para ele basta, não sente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se buscar no reflexo,<br />
até por que ele criou uma aversão ao <strong>espelho</strong> e o colocou como algo que po<strong>de</strong>ria mostrar-<br />
lhe aquilo que tanto teme, que po<strong>de</strong>ria incluí-lo no campo <strong>de</strong>sconhecido do misticismo.<br />
Os dois <strong>contos</strong> abordam o tema “<strong>espelho</strong>” <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista diferentes,<br />
embora a meta seja a análise do próprio eu, a busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> masculina e o<br />
reconhecimento <strong>de</strong> sua perda, seja através <strong>de</strong> substituições por personagens artificiais, seja<br />
por perda total <strong>de</strong> si mesmo, afetada por influências externas como as crenças místicas.<br />
Assim, o <strong>espelho</strong> é um instrumento <strong>de</strong> diálogo consigo mesmo,<br />
incessantemente à procura <strong>de</strong> respostas para questionamentos imanentes do ser humano, da<br />
alma inquieta e sem acolhimento. Para satisfazer o ego masculino, os conceitos formados<br />
<strong>de</strong> si mesmo, quer sejam verda<strong>de</strong>iros ou falsos, o homem busca encontrar uma maneira <strong>de</strong><br />
ver-se como vê o outro, como se a distância permitisse a análise formal <strong>de</strong> uma imagem<br />
fora <strong>de</strong> si.<br />
Observamos <strong>nos</strong> três exemplos citados acima, Narciso, Jacobina e o<br />
narrador <strong>de</strong> Guimarães Rosa, uma <strong>de</strong>pendência do olhar externo para si próprio. Não basta<br />
a consciência <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ser uma pessoa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualquer coisa. Para se<br />
afirmar como existente, como algo valoroso, os personagens buscam a admiração externa a<br />
si, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma aprovação para continuar vivendo ou fazendo aquilo que vinham<br />
fazendo.<br />
O interesse <strong>de</strong>ssas histórias é que a literatura se utiliza <strong>de</strong> um campo da<br />
psicologia para compor tramas complexas e intrigantes. Todos os homens têm um pouco<br />
<strong>de</strong> Narciso em si. Precisam se vir com outros olhos, além dos seus, precisam ser aceitos<br />
para o mundo alheio, como se não bastasse apenas aceitar a si próprio. A civilização<br />
6
ensinou o homem a conviver em socieda<strong>de</strong> e, para isso, é necessário haver uma aceitação<br />
mútua entre os seres. Quando essa aceitação não ocorre, sente-se vulnerável, receoso <strong>de</strong> ser<br />
expulso como membro <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que se auto-consome, em diversos âmbitos, seja<br />
social, cultural e economicamente.<br />
Ao contrário do pensamento recorrente com relação a Narciso, ele não se<br />
apaixona por si mesmo, pois não havia a consciência <strong>de</strong> que a imagem refletida era ele<br />
mesmo, Narciso se apaixona pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver alguém além <strong>de</strong>le mesmo, pela<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um outro que o visse como um ser importante, essencial e principalmente<br />
belo. A autoestima é um dos combustíveis da vida em socieda<strong>de</strong>; é preciso algo fora<br />
aprovar o que temos para dar, ou o que realmente somos, daí, a autoestima <strong>nos</strong> mantém<br />
vivos e sadios. Quando ela não está bem alimentada, o corpo fraqueja, o espírito se esvazia<br />
e continuar vivendo se torna pe<strong>nos</strong>o, sofredor.<br />
Os homens já nascem com a condição <strong>de</strong> fazer parte <strong>de</strong> um grupo com suas<br />
regras <strong>de</strong> sobrevivência já <strong>de</strong>finidas, preestabelecidas e imutáveis, na maioria das vezes.<br />
Quando alguém tenta <strong>de</strong>struir ou <strong>de</strong>svirtuar essas regras, o grupo pune, acorrenta e tira-lhe<br />
a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir e vir, como se seguir as regras impostas já não fosse uma forma <strong>de</strong><br />
aprisionamento. Acostuma-se à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o ser humano é incompleto, imperfeito e para<br />
que essa condição não se mantenha, a cultura <strong>de</strong> cada povo criou a <strong>de</strong>pendência mútua <strong>de</strong><br />
aceitação e aprovação uns dos outros. Narciso precisou do amor do outro refletido na água;<br />
Jacobina sentia falta da admiração e paparicos da sua tia e <strong>de</strong> todos os seus empregados e o<br />
narrador em Guimarães Rosa receia o julgamento alheio simbolizado pelo reflexo no<br />
<strong>espelho</strong> e pelo medo do ocultismo.<br />
REFERÊNCIAS:<br />
ASSIS, Machado <strong>de</strong>. O <strong>espelho</strong> (Esboço <strong>de</strong> uma teoria da alma humana). In: Obra<br />
Completa. Vol. II. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar, 1994.<br />
CAVALCANTI, Raïssa. O mito <strong>de</strong> Narciso: o herói da consciência. São Paulo: Cultrix,<br />
1992.<br />
ROSA, João Guimarães. O <strong>espelho</strong>. In: Primeiras estórias. Nova Fronteira, 2005<br />
7
ZAMBOLLI, José Carlos. A poeta ao <strong>espelho</strong>. [Dissertação <strong>de</strong> mestrado]. São Paulo, 2002.<br />
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