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INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
odiar aquele lugar. Leila cuspiu no capim e jogou o balde no poço.<br />
Fumou o último cigarro e o jogou no poço também. Era hora de<br />
entrar e dormir.<br />
Se ela tivesse ficado só mais um pouquinho... teria visto a<br />
pequena brasa do cigarro fazer uma graciosa pirueta na escuridão.<br />
Teria visto outras luzinhas também avermelhadas respondendo lá<br />
em baixo.<br />
****<br />
O corpo esguio e frio dela me tirou do cochilo quando entrou<br />
sob as cobertas. Tão fria, devia estar há algum tempo lá fora.<br />
Havia me arrependido de tê-la mandado sair, não gostei de ficar<br />
sozinho. É ridículo admitir, mas a casa estava começando a me dar<br />
medo. São sons de passos e pequenas vozes sempre que tento me<br />
concentrar em alguma coisa.<br />
No início atribuí isso ao vento incessante no penhasco, porém<br />
vento algum fala coisas como “termine logo”, “mais três laudas”,<br />
“estamos com sede” ou “saia e venha ficar conosco”. Assim que<br />
Leila saiu, ouvi todas essas coisas. Vou tentar dormir, talvez seja<br />
apenas cansaço.<br />
****<br />
Que imbecil! Ele fala dormindo! Af, onde você estava com a<br />
cabeça quando aceitou vir Leila? Ainda por cima chuta quando<br />
dorme.<br />
****<br />
“Temos sede, Pedro”, “sede”. “Dê-nos algo e terminará seu<br />
livro”. Foi o último sonho estranho que tive. E quando o dia<br />
amanheceu notei que não tinha sido o único a ter uma noite ruim.<br />
Leila tinha olheiras que nem a pesada maquiagem escondeu.<br />
Mathias me ligou com seu ar bonachão e perguntou sobre o livro.<br />
— Quase terminado — respondi.<br />
Era mentira, claro. Estava muito longe de acabar. Minhas obras<br />
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