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anno domini - A Irmandade

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CONTOS<br />

FANTÁSTICOS<br />

Desafios literários do site<br />

A IRMANDADE<br />

site: www.airmandade.net<br />

Diagramação e Projeto Gráfico<br />

Afonso Luiz Pereira


In<br />

ÍNDICE DE CONTOS<br />

Você pode acessar<br />

qualquer conto clicando<br />

com o mouse nos títulos<br />

deste índice.


Autores Participantes<br />

Alexandre Ribeiro<br />

André Soares da Silva<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

Elsen Pontual<br />

Emerson Pimenta<br />

F. P. Andrade<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

Lucélia Rodrigues<br />

Rangel Luiz<br />

Swylmar Ferreira<br />

Thasyel Fall<br />

Valter Marques<br />

4


Direitos autorais<br />

Todos os textos publicados neste<br />

ebook são de propriedade intelectual<br />

de seus respectivos autores. A<br />

Impressão ou a reprodução por meio<br />

de qualquer outra mídia, para fins<br />

comerciais ou não, só poderá ser<br />

feita sob a autorização expressa dos<br />

mesmos. Para isto, disponibilizamos<br />

os endereços de e-mails dos autores<br />

no final da obra. Você poderá clicar no<br />

link Autor no rodapé de cada conto.<br />

5


A PROPOSTA DESTE EBOOK<br />

O presente ebook, distribuído gratuitamente pelo site A<br />

IRMANDADE, tem como objetivo registrar e apresentar aos admiradores<br />

da Literatura Fantástica os melhores contos desenvolvidos dentro da<br />

seção Desafio Literário do referido site. A proposta principal do Desafio<br />

Literário é fomentar a criação de textos de Literatura de gênero entre<br />

os seus membros cadastrados, buscando, em ambiente colaborativo,<br />

experimentar estilos literários diferenciados, compartilhar idéias e<br />

dúvidas, fazer comentários de forma crítica e respeitosa. Todos os<br />

textos são disponibilizados para posterior apreciação da comunidade<br />

virtual e visitantes do site.<br />

Na seção Desafio Literário, a criação dos textos obedece sempre<br />

alguns parâmetros estabelecidos pelos seus organizadores, que devem<br />

ser obrigatoriamente escritos dentro de um determinado tempo (de<br />

20 a 30 dias). Há, às vezes, premiações simbólicas de livros para os<br />

5 melhores textos que, é bom esclarecer, são indicados pelos próprios<br />

participantes e Membros Fundadores em votação nominal no fórum<br />

do site.<br />

Para a confecção deste ebook ficou estabelecido o registro dos 5<br />

melhores contos de cada um dos 3 Desafios Literário promovidos no<br />

2º semestre de 2011 dentro dos seguintes parâmetros:<br />

No 1º Desafio, em Julho, os participantes deveriam basear os<br />

seus contos apenas em uma única imagem, escolhida no sentido de<br />

direcionar o tema para o gênero terror.<br />

No 2º Desafio, em setembro, a criação deveria versar nas opções<br />

de outras 3 ilustrações que remetiam aos seguintes temas: terror a<br />

brasileira, Ficção Científica em futuro pós-apocalíptico e uma cena<br />

de batalha campal no estilo de Alta Fantasia. Esclarecemos que o<br />

resultado de votação contemplou a escolha de 4 contos de FC e um de<br />

Fantasia.<br />

E, no 3º e último, em dezembro de 2011, as imagens já não eram<br />

prioridade e a idéia central, para participar do certame, passou a ser<br />

o desenvolvimento de contos pautados numa visão mais adulta e<br />

sombria das clássicas histórias infantis, que poderiam versar dentro<br />

de qualquer gênero da Literatura Fantástica.<br />

Tenham uma boa leitura!<br />

6


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

7


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

L ondres, 02 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor.<br />

Meu nome é Padre Ignácio de Montesso e começo este diário<br />

impelido pelo que só posso julgar ser a mão divina. Assim como<br />

todos os servos da Santa Fé, fui doutrinado na arte da escrita sem,<br />

no entanto, nutrir qualquer apreço especial por ela. Ao menos até<br />

o dia de hoje.<br />

Como que tocado por pentecostes, sinto a obrigação de<br />

iniciar este humilde relato de meus dias e, guiado pela vocação,<br />

o faço em idioma comum e linguagem simplória. Estranho essa<br />

necessidade, mas a única resposta possível ao divino chamado<br />

é: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa vontade”. E como são<br />

sábios e misteriosos os desígnios do Pai!<br />

Justamente hoje, o dia em que fui tocado pelo ânimo celeste,<br />

dois incomuns fatos romperam o ordeiro mosaico de minha<br />

rotina: o recebimento de uma carta de meu velho mentor e uma<br />

mensagem da Santa Sé, nomeando-me pároco de um pequeno<br />

vilarejo ao norte da capital. As duas missivas vieram pelas mãos<br />

do mesmo mensageiro que, cheirando a suor e pêlo de cavalo,<br />

entregou-as e desapareceu em galope desvairado sem, ao menos,<br />

aceitar pouso ou refeição.<br />

À primeira vista, pode parecer que não há nada de<br />

extraordinário no ocorrido, mas os conteúdos das mensagens<br />

estavam tão intimamente ligados, que apenas a solidez da minha<br />

fé me impede de procurar qualquer razão mística para isso. Porém,<br />

me apresso. Preciso organizar o pensamento e retomar a ordem<br />

cronológica dos eventos. Guia-me, Senhor.<br />

8


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

Sorri ao ler o nome e reconhecer o selo de Monsenhor Fernandez<br />

na primeira carta. O velho frade espanhol havia sido, para mim,<br />

como uma espécie de mestre e protetor, sempre ensinando a<br />

reconhecer a beleza da criação e a confiar na fé, mesmo diante dos<br />

mais terríveis obstáculos. Porém, como o dever para com a Santa<br />

Sé antecede os laços de amizade, pus a mensagem de Monsenhor<br />

de lado e abri primeiro a carta do bispo. As palavras ali escritas<br />

eram poucas e diretas, mas tamanho impacto me causaram.<br />

Em parcas linhas sua eminência me informava que eu deveria<br />

seguir viagem imediatamente para o vilarejo de Wistonbury e<br />

assumir o lugar do antigo pároco, Monsenhor Fernandez Távora,<br />

que havia falecido há poucos dias. Por alguns instantes, o ar me<br />

escapou dos pulmões. Como poderia meu velho mestre estar<br />

morto? Sofria ele de alguma doença? Que mal súbito lhe ceifara a<br />

vida antes mesmo que pudesse me escre...<br />

Meus olhos recaíram sobre a segunda carta, ainda fechada,<br />

guardiã das últimas palavras de Monsenhor. Confesso que ainda<br />

não tenho coragem de abri-la. O farei amanhã, agora preciso<br />

dormir. Dias tempestuosos se avizinham e devo preparar-me para<br />

a viagem.<br />

Estrada para Wistonbury, 05 de fevereiro de 1502, Ano<br />

do Senhor<br />

Sinto que negligenciei meus deveres ao deixar de escrever<br />

nestes últimos dias, mas creio que o Senhor há de me perdoar. Os<br />

preparativos eram tantos, e tão poucas eram as horas das quais<br />

podíamos dispor, que todo o meu tempo desperto foi dedicado<br />

exclusivamente à viagem. Somos três e estamos há um dia e meio<br />

na estrada.<br />

Viajam comigo padre Brian Ville, um jovem clérigo recém<br />

ordenado, e “Sir” Thomas Ergon, na falta de melhores termos, um<br />

guarda-costas. Thomas, ou Tom como prefere, é o ser mais odioso<br />

em que já pousei os olhos. Seus modos são brutos, sua higiene<br />

pessoal é nula e seu vocabulário parece ser composto apenas de<br />

pragas e obscenidades, mas as estradas do Rei Enrique VII não são<br />

famosas por sua segurança e sua presença é um mal necessário.<br />

9


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

Agora mesmo ele me encara enquanto escrevo. Seus olhos<br />

verdes injetados de curiosidade e raiva não me deixam um só<br />

instante. Quiçá, como muitos cavaleiros, ele seja iletrado e se<br />

ressinta daqueles a quem as letras não são um mistério insolúvel.<br />

Ainda me encara. Talvez não tenha notado que já o percebi, talvez<br />

apenas não se importe. Sei que devo ser paciente e piedoso com<br />

todas as criaturas de deus. Senhor, ajuda-me com Sir Thomas.<br />

Ainda não encontrei coragem para ler as últimas vontades de<br />

Monsenhor Fernandez. Sei que não devo ser dado a superstições,<br />

mas sinto que a missiva de meu mestre contém sua derradeira<br />

lição e, enquanto esta ainda não for aprendida, ele não me deixará<br />

sozinho.<br />

Estrada para Wistonbury, 6 de fevereiro de 1502, Ano do<br />

Senhor<br />

Ontem à noite, mal guardei a pena e assoprei a vela, um<br />

evento digno de nota ocorreu em nosso pequeno acampamento.<br />

De início, uma estranha cerração se abateu sobre nós, como se<br />

nos forrassem, de uma única vez, com um cobertor de brumas, e<br />

em seguida, vieram os uivos.<br />

Não me prenderei aos terríveis detalhes do ocorrido, mas<br />

perdemos os cavalos e uma das bestas de carga, esta última<br />

sacrificada por Thomas para saciar o apetite voraz das feras<br />

em nosso encalço. Em nome de nosso salvador, como é difícil<br />

conviver com este homem! Ainda banhado pelo sangue da mula,<br />

praticamente nos açoitou para que corrêssemos mais depressa.<br />

Tentei argumentar que a vida monástica não nos havia preparado<br />

para desafios físicos, mas sua retórica, composta basicamente de<br />

ameaças e meneios com a espada, foi mais eficaz.<br />

A noite caiu há apenas poucos minutos e todos estamos<br />

temendo a vinda da cerração, do breu branco que prenuncia os<br />

uivos e a morte. Talvez os lobos tenham ficado para trás, talvez<br />

nós estejamos a... Ouço algo. Brian foi verif...<br />

(TRECHO PERDIDO)<br />

10


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

Vilarejo de Wistonbury, 10 de fevereiro de 1502, Ano do<br />

Senhor<br />

Louvado seja o Pai! Apesar de todos os obstáculos, alcançamos<br />

nosso destino. Irmão Brian permanece desacordado e sua ferida<br />

parece ter infeccionado. Minha própria febre ainda queima forte<br />

e cruel. O maldito Thomas é único de nós que ainda consegue se<br />

manter de pé. Às vezes penso que sua crueldade lhe dá alguma<br />

espécie de força sobre-humana.<br />

Estou alojado na casa paroquial. A vila é pequena e de aspecto<br />

sombrio, as nuvens de fim de outono lhe emprestam um tom<br />

tétrico e o rugido do oceano próximo mais assusta que acalenta.<br />

Porém, o que realmente me roubou a atenção foi o velho castelo.<br />

O local parece estar abandonado há décadas, mas ainda guarda<br />

um pouco de sua velha elegância. Altas torres e janelas, que<br />

lembram olhos vazios e fixos, saúdam todos aqueles que entram<br />

na vila e um poço fétido e semi-destruído afugenta qualquer alma<br />

mais curiosa com seus miasmas imundos. Lembro que perguntei<br />

o nome daquela peculiar construção, mas houve uma estranha<br />

recusa dos gentis em me responder. No entanto, alguém deve ter<br />

sussurrado algo, pois o nome “Despensa do Carniçal” me assombra<br />

sempre que me encontro sob o olhar vítreo daquelas janelas...<br />

(TRECHO PERDIDO)<br />

Vilarejo de Wistonbury, 14 de fevereiro de 1502, Ano do<br />

Senhor<br />

A febre finalmente deixou meu corpo e aos poucos estou<br />

me adaptando ao ritmo do vilarejo. Ainda não celebrei minha<br />

primeira missa, afinal a capela ainda se encontra destruída pelo<br />

incêndio, e tento não pensar que assim se foi meu velho professor,<br />

consumido pelas chamas. De toda maneira, a pequena população<br />

de Wistonbury tem muito a agradecer.<br />

Diferente das demais vilas e aldeias próximas, esta parece<br />

prosperar e não sofrer com ataques de bandoleiros ou bestas<br />

selvagens. A população é bastante jovem e cordial e ainda não<br />

11


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

ouvi queixas sobre as criações ou a colheita. Apenas um pequeno<br />

grupo de anciões parece viver em constante pesar, com seus rostos<br />

taciturnos e passo arrastado, como se guardassem um terrível<br />

segredo. Tentei aproximar-me, mas minha juventude deve tê-los<br />

espantado, pois andam ainda mais reclusos esses dias.<br />

Tenho também o infeliz dever de registrar que o estado de<br />

saúde de irmão Brian é cada vez mais precário e que “Sir” Thomas<br />

ainda nos brinda com sua dispensável companhia.<br />

Vilarejo de Wistonbury, 15 de fevereiro, Ano do Senhor<br />

Meu Senhor, dê-me paciência para suportar a ignorância dos<br />

tolos! Já convivi com aldeões e sei que algumas vezes sua natureza<br />

supersticiosa os leva à prática de comportamentos estranhos, mas<br />

o que me foi sugerido aqui beira a heresia! Pai, ajuda-me a acalmar<br />

meu ânimo para que possa relatar imparcialmente os tristes fatos<br />

deste dia negro.<br />

Hoje faleceu o irmão Brian. Apesar do esforço de todos para<br />

salvá-lo, seu corpo mortal não resistiu aos ferimentos e sucumbiu<br />

ante o abraço cálido da morte. Que o Senhor o tenha em sua<br />

companhia. Porém, esse triste fato foi o estopim para a epidemia<br />

de insensatez que tomou a vila.<br />

Os mais velhos foram os primeiros a me comunicar sobre a<br />

intenção de realizar seu herético ritual. Custei a acreditar que<br />

falavam sério quando me sugeriram que, segundo os costumes<br />

locais, não deveria velar o corpo de meu confrade, ou mesmo<br />

realizar um cerimônia fúnebre adequada, mas sim atirá-lo como<br />

um bicho no poço do profano castelo!<br />

De repente, entendi de onde vinha o fedor que exalava daquela<br />

boca pútrida e blasfema, aquele buraco negro deveria estar repleto<br />

com os cadáveres dos mortos do vilarejo, cada um em diferente<br />

estado de decomposição! Meu deus! Estaria Monsenhor Fernandez<br />

também legado àquela conspurca sepultura?! Queira o Senhor que<br />

não tenha sido esse seu destino.<br />

Obviamente, afastei qualquer possibilidade de tamanha<br />

insanidade ocorrer e os exortei severamente a abandonar tão<br />

blasfemo costume! Ainda tive de lidar com a ignorância costumaz<br />

12


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

de Thomas que chegou a sugerir que seguíssemos a lei local.<br />

Obriguei-o a me ajudar a levar o corpo inerte de Brian à casa<br />

paroquial, onde agora estamos. Esta noite será de vigília e orações,<br />

portanto devo encerrar brevemente este relato... Alguém bate à<br />

porta, deixarei Thomas atender.<br />

Vilarejo de Wistonbury, 16 de fevereiro de 1502, Ano do<br />

Senhor<br />

Louvado seja Deus por homens como Thomas! Se vivo hoje<br />

para descrever os fatos, que até agora me recuso a acreditar, é<br />

por exclusiva responsabilidade deste servo do Senhor. Escrevo<br />

apenas para manter a sanidade e ajudar minha mente e espírito<br />

a compreenderem a grandiosidade e perigo da missão que me<br />

aguarda.<br />

Ao finalizar os relatos do dia de ontem, fui verificar o porquê<br />

da demora de Thomas em me indicar quem nos visitava em tão<br />

inoportuna hora e deparei-me com a mais bizarra das visões.<br />

Diante de mim, o cavaleiro batia-se em combate contra duas<br />

criaturas saídas dos mais terríveis pesadelos da espécie humana.<br />

A raça das trevas tinha a pele da cor do azeviche, grossa e<br />

coberta de chagas, seu crânio alongado possuía, a guisa de face,<br />

uma bocarra repleta das mais pontiagudas presas que a noite<br />

era capaz de produzir e um focinho animalesco sempre a fungar,<br />

seus braços finos, de músculos rijos e definidos, terminavam em<br />

garras alongadas, forjadas para rasgar a carne e perfurar os ossos.<br />

Porém, sua maior arma era o fedor nauseabundo que exalavam.<br />

Petrificado, assisti a Thomas, armado de archote e espada,<br />

empreender sua dança mortal com as criaturas. Aço e fogo contra<br />

garras e presas, e por nosso senhor Jesus Cristo, ele estava<br />

ganhando! O guerreiro abanava o archote em longos semicírculos<br />

enquanto saltava e estocava a carne podre dos demônios com<br />

sua espada longa, enquanto isso, as bestas recuavam e silvavam,<br />

ameaçando com suas garras e mostrando os dentes serrilhados.<br />

Apenas quando eles cruzaram os umbrais, notei o porquê daquele<br />

estranho comportamento.<br />

Em seu jogo mortal, as criaturas atraiam Thomas para fora<br />

13


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

da casa paroquial! Corri em seu auxílio, mas meu grito de alerta<br />

morreu em minha garganta quando senti um ardor lancinante<br />

descer da nuca até o meio das costas. Um terceiro demônio me<br />

atingira de raspão, enquanto o quarto saltava pela janela com um<br />

fardo enrolado em mortalha branca. A raça das trevas havia vindo<br />

buscar seu tributo, o corpo do irmão Brian.<br />

Virei-me para encarar a face de meu algoz. Bem sabia que não<br />

era capaz de derrotar em combate tamanha monstruosidade, mas<br />

algo ainda me impelia, algum fio de esperança não permitia que eu<br />

me abandonasse ao puro terror que aquela cena evocava. Peso em<br />

relatar que vi astúcia naqueles olhos amarelos, uma inteligência<br />

maliciosa que se deleitava com meu medo. Um urro inumano,<br />

porém, tirou o prazer daquele blasfemo sorriso. Ao que parece, o<br />

cavaleiro estava vendendo caro demais sua própria vida!<br />

Com um safanão, a criatura atirou-me de lado e partiu em<br />

auxílio de suas irmãs demoníacas, mas o verdadeiro monstro se<br />

chamava Thomas e ao final de seu mórbido ofício, três cadáveres<br />

profanos jaziam inertes aos seus pés. Não conseguimos impedir<br />

que levassem o corpo do irmão Brian e sofro ao pensar que<br />

terríveis abominações encontram repasto em sua carne, mas ao<br />

menos escapamos com vida.<br />

Tarde demais, abri a carta de meu mentor. Poucas eram suas<br />

palavras, mas que falta me fizeram! Transcrevo-as agora: “A noite<br />

é sua inimiga. Os seus filhos se alimentam da carne dos mortos<br />

enquanto o seu Mestre bebe do sangue dos vivos. Ele repousa no<br />

velho casarão e apenas a luz do sol, o fogo e o aço santificado são<br />

capazes de ferí-lo. Eu falhei, Ignácio, mas você há de triunfar”. E<br />

assim o farei. Ao raiar do dia, meu Senhor há de guiar minha mão<br />

e meu espírito até a sagrada vitória. Amém.<br />

(DIVERSOS TRECHOS PERDIDOS)<br />

Londres, 2 de fevereiro de 2011, Ano do Senhor<br />

Encontrei hoje meu velho diário e relembrei com saudades<br />

daqueles dias ingênuos. A quem interessar possa, realmente venci<br />

o duelo contra o demônio do casarão, mas não foi livre de preço.<br />

14


ANNO DOMINI<br />

Elsen Pontual<br />

Tive vários séculos para especular e hoje acredito que foi seu sangue<br />

contaminado que me legou sua maldição, mas depois de tanto tempo<br />

já não me importo mais. Irei encerrar por essa noite, pois o dia não<br />

tardará a amanhecer e Thomas deve estar retornando com minha<br />

comida. Tenham todos uma boa noite.<br />

15


INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

16


INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

O ploc da bola de chiclete cor de rosa foi bem próximo ao<br />

meu ouvido direito. Já tinha falado milhões de vezes<br />

para ela não fazer isso, ainda mais quando eu estava trabalhando.<br />

Leila fingiu que não percebeu que eu fingia ignorá-la, brincou com<br />

uns papéis soltos e depois se sentou com os pés em cima da minha<br />

mesa, e ainda por cima com aquelas botas. As escolhidas da vez<br />

eram da Doc Marten, meio palmo de salto e um couro tingido de<br />

roxo que me dava arrepios só de olhar.<br />

Novo ploc da bolha rosa. Se Mathias, meu editor, visse minha<br />

cara ia morrer de rir. Segundo ele, Leila era o jeito que eu tinha<br />

arranjado para me sentir jovem de novo. O velho clichê do<br />

divorciado de meia idade que arranja uma namorada que parece<br />

sua filha. Ele achava a prática saudável e ficou feliz quando lhe<br />

contei sobre ela, mas não foi capaz de esconder o choque quando<br />

os apresentei. Não era culpa dele. Meia dúzia de piercings e um<br />

cabelo laranja fazem isso com qualquer um.<br />

Perguntei-me por que a trouxe comigo quando resolvi vir para<br />

esse fim de mundo terminar meu último romance. Sim, é muito<br />

bonita apesar de todo esse metal na cara, me faz rir também...<br />

Ah, seja sincero consigo mesmo Virgílio: você não queria dormir<br />

sozinho.<br />

— Está chato aqui. — Ela resmungou enrolando uma mecha do<br />

cabelo laranja.<br />

Percebi que as unhas, no dia anterior, azuis, naquela noite<br />

estavam verdes. Talvez Mathias tivesse razão, ela era jovem demais<br />

para mim. Talvez, na volta, pudesse mandá-la para sua casa. Pela<br />

primeira vez me dei conta de que nem sabia se Leila morava com<br />

17


INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

os pais ou não antes de chegar ao meu apartamento com uma<br />

mochila de lona preta três dias depois de nos conhecermos.<br />

Devia ter lhe dito: olhe querida, nos damos muito bem em<br />

muitos sentidos, mas essa coisa de morar juntos é um pouco<br />

demais. Pensei em dizer, mas perdia as palavras sempre que ela<br />

me encarava com aqueles olhos zombeteiros cheios de lápis preto.<br />

Às vezes me sentia um idiota.<br />

— Vamos sair? — não convidou, bufou irritada levantando da<br />

cadeira que rodopiou e ameaçou cair tamanha a brusquidão do<br />

movimento.<br />

— Você pode ir se quiser. — Disse — Tenho que terminar este<br />

capítulo.<br />

A verdade é que, desde que ela me interrompeu com seu<br />

odioso chiclete cor de rosa, tinha parado de trabalhar. Abri outro<br />

documento, minhas anotações pessoais, e começei a escrever<br />

obsessivamente o que estava pensando, isto é, Leila. Como me<br />

livrar de Leila.<br />

— E eu vou fazer o quê sozinha? — ela tornou — Essa cidade é<br />

o c... do mundo.<br />

— Deveria ter ficado em casa. — Falei fingindo concentração<br />

na página do Word, metade preenchida, mas nem de longe sobre<br />

meus personagens fictícios.<br />

Queria irritá-la só um pouquinho, como ela me irritava, mas<br />

sempre dava errado. Leila me olhou como se eu fosse um inseto<br />

estranho e não disse nada. Afinal, eu a convidei não foi assim?<br />

Ela andou e as tábuas do velho casarão rangiram como se<br />

reclamassem. “Até as tábuas reclamam de você, querida”.<br />

— Pegue o carro — sugiri — há um barzinho um quilômetro<br />

daqui, é melhor do que ficar aqui pintando as unhas de roxo e<br />

ouvindo Iron Maiden.<br />

Na verdade, não queria ficar sozinho, mas bastava-me saber<br />

que ela estava na casa, não à minha frente. Leila pegou as chaves<br />

do jipe e me deu as costas sem mais uma palavra.<br />

****<br />

18


INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

O palavrão ficou engasgado por causa da dor causada pela<br />

queimadura de cigarro. “Quem manda fumar dirigindo sua tonta?<br />

E quem mandou vir com aquele imbecil pra esse fim de mundo?”<br />

O bar se revelou um nojo, um misto de cheiro de cerveja e de<br />

banheiro quebrado. Leila bebeu alguma coisa só para não perder<br />

a viagem, depois voltou para a maldita casa caindo de velha que<br />

Mathias emprestou a Pedro.<br />

Ela não entendia a razão do rico editor conservar uma velharia<br />

daquela, até tinha estilo, mas estava ruindo! E, à noite, o vento<br />

vindo do mar fazia sons estranhos quando ecoava por aquelas<br />

paredes emboloradas. Pedro podia achar interessante, ele tinha<br />

imaginação para isso, ela não.<br />

Estacionou o jipe em frente ao casarão e acendeu outro cigarro,<br />

não tinha pressa para entrar, com certeza Pedro continuava<br />

grudado no Mac. Acreditava que ele estava mesmo ficando<br />

corcunda de tanto se debruçar sobre o teclado, mas se recusava a<br />

usar óculos. Idiota.<br />

Leila andou até a borda no penhasco sobre o qual a casa estava<br />

assentada, a noite estava fria como todas as malditas noites ali. A<br />

única coisa bonita era o mar, mesmo à noite com as águas escuras<br />

como breu. Ela se espreguiçou fazendo estalar as juntas dos braços<br />

magrelos e acendeu mais um cigarro.<br />

Parecia uma chaminé andando com as mãos nos bolsos da<br />

jaqueta de couro detonada. Até que uma das Doc Marten roxas<br />

bateu com tudo em alguma coisa enterrada no chão. O dedão<br />

doeu e ela praguejou alto o bastante para Pedro ouvir, ele e quem<br />

passasse a meio quilômetro dali.<br />

Abaixou para ver o que tinha tentado inutilizar seu pé. Não era<br />

nada, só um velho balde parcialmente enterrado.<br />

— Mas essa... — ainda resmungou.<br />

As luzes da casa iluminavam parcialmente o que parecia ser<br />

um velho poço abandonado. Leila não queria dar outro tropeção<br />

no caco de balde de novo. Caminhou até o poço e olho para dentro<br />

dele.<br />

Não esperava ver nada mesmo, era noite. Com certeza ninguém<br />

usava o poço. Quando estava debruçada sobre os tijolinhos, um<br />

forte odor a atingiu. Cheiro de coisa podre. Mais uma razão para<br />

19


INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

odiar aquele lugar. Leila cuspiu no capim e jogou o balde no poço.<br />

Fumou o último cigarro e o jogou no poço também. Era hora de<br />

entrar e dormir.<br />

Se ela tivesse ficado só mais um pouquinho... teria visto a<br />

pequena brasa do cigarro fazer uma graciosa pirueta na escuridão.<br />

Teria visto outras luzinhas também avermelhadas respondendo lá<br />

em baixo.<br />

****<br />

O corpo esguio e frio dela me tirou do cochilo quando entrou<br />

sob as cobertas. Tão fria, devia estar há algum tempo lá fora.<br />

Havia me arrependido de tê-la mandado sair, não gostei de ficar<br />

sozinho. É ridículo admitir, mas a casa estava começando a me dar<br />

medo. São sons de passos e pequenas vozes sempre que tento me<br />

concentrar em alguma coisa.<br />

No início atribuí isso ao vento incessante no penhasco, porém<br />

vento algum fala coisas como “termine logo”, “mais três laudas”,<br />

“estamos com sede” ou “saia e venha ficar conosco”. Assim que<br />

Leila saiu, ouvi todas essas coisas. Vou tentar dormir, talvez seja<br />

apenas cansaço.<br />

****<br />

Que imbecil! Ele fala dormindo! Af, onde você estava com a<br />

cabeça quando aceitou vir Leila? Ainda por cima chuta quando<br />

dorme.<br />

****<br />

“Temos sede, Pedro”, “sede”. “Dê-nos algo e terminará seu<br />

livro”. Foi o último sonho estranho que tive. E quando o dia<br />

amanheceu notei que não tinha sido o único a ter uma noite ruim.<br />

Leila tinha olheiras que nem a pesada maquiagem escondeu.<br />

Mathias me ligou com seu ar bonachão e perguntou sobre o livro.<br />

— Quase terminado — respondi.<br />

Era mentira, claro. Estava muito longe de acabar. Minhas obras<br />

20


INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

haviam sido consideradas perfeitas pela crítica, sem exceção. E<br />

sempre funcionava me retirar para essa casa longe de tudo para<br />

me concentrar, uma ideia de Mathias que deu muito certo.<br />

Mas porque eu estava com medo da casa agora?<br />

À noite mais uma vez debruçado sobre o teclado, só que Leila<br />

não apareceu para me perturbar. A visão de suas pernas quando<br />

ela punha os pés na mesa até que era boa...<br />

Página em branco. Uma hora. Duas horas. Página em branco.<br />

“Sede”. “Nunca mais, nunca mais...”. “Dê-nos de beber, Pedro, e<br />

terminaremos para você”.<br />

Quase saltei da cadeira, estava cochilando e havia uma leve<br />

ardência no meu pulso. Quando fui fechar o computador uma gota<br />

púrpura pingou no teclado.<br />

Não me lembrava de ter me ferido. Não me lembrava de ter<br />

dormido.<br />

Seja como for eu estava bem acordado, e vi a figura esquelética<br />

na janela sob as cortinas de mau gosto.<br />

— Como você entrou? — perguntei me pondo de pé.<br />

Minha indignação era puramente para esconder o mal estar<br />

que me fazia suar frio.<br />

— Leila se for você isso não tem graça...<br />

Mas logo descobri que não era ela. Não poderia ser! Nem<br />

com sua mais alta bota gótica Leila ficaria mais alta do que eu. E<br />

logo uma lufada de vento me fez ter certeza de que aquilo nunca<br />

poderia ser Leila. Nunca poderia ser humano.<br />

O rosto descarnado e a pele cinza não eram parecidos com<br />

nada que eu já tivesse visto. Uma língua comprida serpenteava<br />

pela boca de dentes afiados enquanto o ser me olhava fixamente<br />

nos olhos.<br />

— Achei que tínhamos um trato. — A criatura silvou. — Você<br />

não cumpriu sua parte. Onde está nossa bebida?<br />

Como um sonho ruim o tempo congelou. Não tinha ideia do<br />

que ele estava falando, mas no fundo sabia que era tudo verdade.<br />

— Que bebida? — gaguejei.<br />

21


INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

Recuaria se minhas pernas permitissem, mas não conseguia<br />

me mexer.<br />

Um dedo ossudo foi erguido e em uma fração de segundos<br />

estava encostado na minha testa, arranhando a pele com a sua<br />

unha suja e comprida.<br />

Foi como cair durante um sonho, eu me via chegando naquela<br />

casa pela primeira vez. Via Mathias e Rita. Mathias me mostrou<br />

tudo e foi embora, tinha negócios na capital. Eu e Rita, minha<br />

namorada na época, ficamos ali.<br />

A imagem seguinte foi aterradora! Aquilo não podia ser eu!<br />

Senti o peso do machado que, o que parecia ser eu, pegou no<br />

porão. Rita dormia. Foi um golpe seco no pescoço. Mais daqueles<br />

monstros me circundavam e sussurravam coisas para eu fazer,<br />

aparentemente fracos demais para fazerem sozinhos. Depois que<br />

a matei arrastei-a para fora e a atirei no poço onde vi mãos semihumanas<br />

recebendo e estraçalhando seu corpo jovem.<br />

Em seguida, me sentei para escrever, o escritório estava cheio<br />

deles e todos me sussurravam o que fazer. Um livro em dois dias,<br />

sem comer nem dormir, eu não precisava de nada. “O Uivo da<br />

Besta” foi lançado na primavera seguinte. O sumiço de Rita foi<br />

atribuído a um acidente, para todos os efeitos ela caiu no mar<br />

bêbada.<br />

Rita era bem parecida com Leila, gótica e revoltada. Ninguém<br />

contestava que ela bebia e, eventualmente, se drogava. Leila não<br />

usava drogas, mas ninguém colocaria a mão no fogo por ela...<br />

“Vá agora, Pedro”, “precisa terminar seu livro e nós precisamos<br />

beber”.<br />

Começei a procurar algo que não sei ao certo o quê. Então<br />

me lembrei: o machado. Ao invés dele a criatura me estendia um<br />

punhal curvo com uma lâmina de 30 centímetros.<br />

— Leila? Onde você está, meu bem?<br />

São as únicas palavras que consigui dizer, como uma prece<br />

sinistra repetida uma dúzia de vezes.<br />

Ela apareceu no topo da escada com o rosto parcialmente<br />

oculto pelas sombras.<br />

22


— O que foi agora?<br />

INSPIRAÇÃO<br />

Lucélia Rodrigues<br />

Meu corpo subiu cautelosamente os degraus. “Só mais uma<br />

vez”, repetia para mim mesmo, só mais esse romance. O punhal<br />

curvo era bonito em movimento, a lâmina riscou o ar. Meus olhos<br />

estão muito abertos quando rolei escada abaixo com uma dor<br />

terrível no estômago. Bem onde ela me acertou com suas Doc<br />

Marten. Sempre odiei essas botas.<br />

A lâmina penetrou até o cabo no meu abdômen e a dor me<br />

fez sair do transe. Eu não queria ter saído. Estava lúcido quando<br />

a criatura farejou meu sangue. E ainda estava lúcido quando<br />

surgiram outras como ela e me arrastaram para o poço.<br />

****<br />

Leila sentia frio no escritório, mas não se importava. A luz<br />

do Mac de Pedro fazia seu cabelo laranja parecer em chamas<br />

na penumbra. Ela não dormia e nem comia há 48 horas. Se não<br />

estivesse em transe, veria que não estava sozinha. Ela veria<br />

dezenas de criaturas cinzentas lhe sussurrando o que pôr na<br />

página branca que logo era preenchida.<br />

Mathias chegou no sábado pela manhã como havia combinado<br />

com Pedro. Não tocou a campainha, pois a casa não era sua? Ouviu<br />

o som das teclas do computador e outro mais... Foi direto para o<br />

escritório escuro.<br />

Ficou um pouco surpreso em ver Leila trabalhando. Como não<br />

adivinhou que aquela seria mais dura na queda? Mas que diferença<br />

isso fazia?<br />

Mathias pousou uma mão bem tratada no ombro nu da moça,<br />

ela parou de digitar. Mecanicamente como uma boneca.<br />

As criaturas se inclinaram em uma pequena reverência ao seu<br />

mestre.<br />

Ele se dirigiu à única humana ali:<br />

— Diga meu bem, você quer um editor?<br />

23


PRESAS<br />

CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

24


PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

P rospero forçou os olhos na escuridão. Por um momento,<br />

ajudado pela luminosidade do luar, vislumbrou um<br />

movimento furtivo entre os ciprestes que ladeavam o jardim.<br />

Cauteloso, percebendo a ameaça crescer ao seu redor, preparouse<br />

para dar o alarme.<br />

Então, às suas costas, advindos do portão principal, passos<br />

ressoaram em seus ouvidos. Elétrico, espada em punho, ele se<br />

virou. Com os lábios trêmulos, balbuciou sua ordem:<br />

— Quem está ai?<br />

PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

O eco de sua voz se perdeu na noite, nada mais que um<br />

sussurro abafado pelo farfalhar das árvores. De súbito, saindo das<br />

sombras, uma voz feminina soou a resposta:<br />

— Lazüe, Alta Inquisidora da Ordem de Häramor.<br />

— Lazüe? - disse o homem, aliviado. - Deuses! Não esperava<br />

que o mensageiro houvesse sido tão rápido, muito menos que a<br />

Guarda de Ytheron nos enviasse um Inquisidor.<br />

— E eles não enviaram - obtemperou Lazüe, seus olhos,<br />

velados pelo longo capuz que lhe cobria a cabeça, irradiando um<br />

brilho sombrio. - Os Contestáveis de Ytheron, ao que parece,<br />

estão muito ocupados desnudando prostitutas ou extorquindo<br />

mercadores; a mão de sua justiça duvidosa não se interessa pelas<br />

regiões de Darfell. Enfim - suspirou ela -, eu estava em Q’huzar<br />

quando ouvi rumores sobre o assassinato do barão Attälus. Quem<br />

está liderando o caso? Kardaran?<br />

— Não - respondeu Prospero, embainhando a espada. - Hadroth<br />

está à frente das investigações.<br />

25


PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

— Entendo - murmurou Lazüe. - E o que vocês descobriram?<br />

— Muito pouco - disse ele. - Estávamos patrulhando os<br />

Corredores de Pedra quando seu escravo chegou até nós dizendo<br />

que ele havia sido assassinado. Liderados por Hadroth, nós nos<br />

dirigimos à mansão e, prontamente, averiguamos onde ocorreu<br />

o crime. Vimos o corpo de Attälus, mas não tocamos nele com<br />

receio de perdermos alguma pista. Então, despachamos um<br />

mensageiro até Ytheron para que os Contestáveis nos enviassem<br />

um investigador que pudesse ser responsável pelo caso e...<br />

— Esse escravo - interrompeu a Inquisidora, cansada ao ter de<br />

ouvir novamente o nome de Ytheron - como se chama?<br />

— Oh, sim! Chama-se Oberon e está, segundo relatos, há mais<br />

de 49 ciclos sob a posse de Attälus.<br />

— Vocês já averiguaram se esse tal de Oberon cometeu o<br />

assassinato? - inquiriu ela, mãos tateando a cintura de onde pendia<br />

uma curva cimitarra.<br />

— Sim. E não descartamos a possibilidade... Ou melhor,<br />

Hadroth não a descartou - respondeu Prospero. - Entretanto, creio<br />

que isso seja pouco provável. Quando interrogamos o coitado ele<br />

estava em um estado deplorável, murmurando palavras acerca de<br />

livros e habitantes do... - nesse momento, o guarda olhou para<br />

os lados, em direção as sombras que se alastravam por entre o<br />

jardim. - Quanto a isso, Inquisidora, acho melhor você mesma<br />

ouvir.<br />

Lazüe, diante da hesitação do homem, franziu o cenho.<br />

— Leve-me até Hadroth - demandou ela.<br />

Prospero aquiesceu, conduzindo-a imediatamente. Envolvida<br />

pela noite, Lazüe contemplou as estátuas que pontilhavam o<br />

caminho, bem como os muros que circundavam o espaçoso<br />

terreno. Suave, o cheiro de maresia se fez presente no momento<br />

em que os dois subiram um aclive onde, do outro lado, uma<br />

queda abrupta indicava, lá embaixo, a sonora presença do mar<br />

regurgitando suas águas salobras contra o paredão rochoso. Num<br />

instante, atravessando o grande arco, eles galgaram o lance de<br />

degraus que levava até a soleira de Attälus de Gadazzar, morto<br />

de maneira misteriosa em sua rica moradia. No entanto, antes de<br />

entrar, Lazüe se deteve. Voltando-se para trás, viu o contorno do<br />

26


PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

parapeito destruído de um poço. A Inquisidora, atraída pelo vórtice<br />

vazio que residia além da beirada sombria, se dispôs a examiná-lo<br />

de perto. No entanto, sua ação fora interrompida pela voz suave<br />

de Prospero que a chamava para adentrar na mansão. Estalando<br />

em seus eixos, a porta de carvalho abriu e se fechou. Do lado<br />

de fora, cinzelados pela noite, olhos vítreos, de dentro do poço,<br />

cintilaram como jóias do inferno.<br />

II<br />

O saguão principal era amplo. Próximos da lareira, Lazüe viu<br />

que dois homens conversavam. Um, de altura mediana, estava<br />

vestido exatamente como Prospero: trazia uma armadura simples,<br />

cingida por um manto escarlate que apresentava o símbolo dos<br />

Guardas da Fronteira.<br />

Já o outro era mais baixo; um anão robusto trajando uma malha<br />

de anéis onde, incrustada sobre o peitilho prateado, cintilava uma<br />

insígnia que atestava sua posição de capitão. A Inquisidora, no<br />

momento em que o sujeito indagou Prospero, pôde divisar a grande<br />

cicatriz desenhada em seu rosto. Murmurando algo ininteligível,<br />

torcendo as longas barbas escuras, o anão se adiantou. Ao alinhar<br />

suas melenas atrás das orelhas, curvou-se em uma reverência.<br />

— Este é Valreus. Eu sou Hadroth de Mörzzar. Bem, estamos à<br />

sua disposição. - Disse ele, a voz velada de malícia.<br />

— E eu sou Lazüe, Alta Inquisidora de Häramor.<br />

— Ora, uma Inquisidora de Häramor! - exclamou o anão,<br />

fingindo-se surpreso, lábios se abrindo em um riso zombeteiro. -<br />

Realmente, é bom ver que os Filhos do Sul, diante da crise pelas<br />

quais suas cidades estão passando, começaram a se importar com<br />

os “Cães do Norte”!<br />

— Poupe-me de suas palavras, Hadroth! - rosnou Lazüe. Pouco<br />

amor existia entre Mörzzar, no Norte, e Häramor, no Sul; muitas<br />

guerras haviam sido travadas entre os dois nos tempos de outrora.<br />

- Não estou aqui por conta de suas rixas infantis. Diga-me: a que<br />

horas ocorreu o crime?<br />

Hadroth murmurou uma praga, olhos cintilando de raiva.<br />

27


PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

- Oberon - respondeu a contragosto - disse que os gritos foram<br />

ouvidos pouco depois do pôr-do-sol. Assustado, ele correu em<br />

direção aos aposentos de Attälus; encontrando o lugar em uma<br />

completa desordem e o corpo do barão estirado no chão.<br />

Silêncio. Lazüe, de frente para a lareira, sorveu as informações.<br />

Prospero, junto à porta, examinou pela primeira vez os contornos<br />

do corpo da Inquisidora: as pernas torneadas, as espáduas<br />

delineadas e os braços rijos da mulher indicavam o rigoroso<br />

treinamento pelo qual ela havia passado. Cauteloso, ele se moveu<br />

rente ao seu objeto de escrutínio, devorando o ardor daquela<br />

beleza. O guarda, tendo-a de perfil, tentou ultrapassar a ingrata<br />

barreira que o capuz trajado por ela conferia.<br />

— A visão o agrada? - sibilou Lazüe, sem tirar os olhos das<br />

chamas. Prospero, pego de surpresa, engasgou. Hadroth, vendo o<br />

rosto do sujeito corar, zombou:<br />

— Ao que parece nosso novato nunca havia visto uma<br />

Inquisidora antes, hein? Sim, meu amigo, elas são lindas. Ora,<br />

Lazüe, perdoe-o. Afinal, não é culpa dele que todas as mulheres de<br />

Häramor sejam assim... Como posso dizer? Apetito...!<br />

— Dobre sua língua, cão! - Bradou Lazüe, rangendo os<br />

poderosos dentes. - Ou teremos mais um assassinato aqui!<br />

Hadroth abriu a boca, pronto para despejar uma nova<br />

imprecação. Entretanto, ciente da ameaça, moderou sua ira. Lazüe<br />

meneou os ombros. Ao retirar o capuz que escondia sua cabeça,<br />

seus cabelos azulados, cortados na altura dos ombros, cintilaram<br />

diante dos homens. Prospero, boquiaberto, olhando de soslaio, viu<br />

que o semblante da Inquisidora era coroado por um par reluzente<br />

de olhos castanhos.<br />

— Onde está o escravo? - demandou ela, liberando todos do<br />

torpor que sua beleza havia causado. - Tragam-no aqui!<br />

O anão acenou uma ordem e Valreus, silencioso, seguiu até<br />

um corredor adjunto. Após alguns instantes, voltou trazendo uma<br />

figura de cabelos brancos. Lazüe, indicando uma cadeira para que<br />

o homem se sentasse, interrogou:<br />

— Você é Oberon?<br />

— Sim... Sim - gaguejou o homem.<br />

28


PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

— Bem, temos um caso complicado - disse ela -, e, para<br />

solucioná-lo, precisaremos de toda a sua cooperação. Embora,<br />

creio que você seja o único suspeito.<br />

— Eu não fiz nada! - arfou Oberon, mãos ossudas agitando-se<br />

sobre a cadeira. - Fui eu que avisei os guardas sobre o assassinato<br />

de...!<br />

— Poupe-me! - trovejou a Inquisidora. - Creia-me, você não<br />

seria o primeiro a ter usado desse artifício para despistar indícios<br />

de culpa! Vamos, conte-me o que aconteceu.<br />

— Ele está morto! - soluçou o homem. - Eu avisei para não ler<br />

o livro... Tolo, tolo! Oh, melhor teria sido se eu o tivesse matado.<br />

Assim seu corpo não seria levado por Eles...<br />

— Oberon! - ordenou ela, esbofeteando-lhe o rosto. - Do que<br />

você está falando? Que livro? Quem são eles?<br />

— “Sussurros da escuridão...” - balbuciou o escravo. - Era o<br />

que ele vinha escutando ultimamente. “Eles estão vindo; e irão<br />

me conceder a vida eterna.”, era o que Attälus me dizia. Maldito,<br />

maldito livro!<br />

— Qual livro? - bramiu Lazüe impaciente, sacando a cimitarra<br />

com tanta fúria que a lâmina afiada zuniu. - Diga-me, ou eu corto<br />

sua orelha!<br />

— O livro que o barão conseguiu através de um erudito de<br />

Samärcand - choramingou Oberon. - Um homem, membro do<br />

Círculo, que havia dito para Attälus sobre “A ascensão à vida eterna<br />

através dos Habitantes do Crepúsculo”.<br />

— Samärcand! - precipitou-se Hadroth ao ouvir o nome, mãos<br />

apertando o cabo do machado. - Inquisidora, aqui no Norte esse<br />

nome não é visto como bom agouro.<br />

— E o capitão de Mörzzar crê em dragões também? - bufou<br />

Lazüe. - Ele está mentindo! Samärcand é um lugar vazio, uma<br />

vale estéril coberto de ruínas desde as Marchas. Ah, e o Círculo -<br />

escarneceu ela -, não é nada mais que uma lenda absurda acerca<br />

de cultos ligados às artes da necromancia. Fantasias derivadas das<br />

mentes sensíveis de campesinos.<br />

— Você irá me contar a verdade! - disse a Inquisidora voltandose<br />

para Oberon, acertando-lhe a boca com a guarda da cimitarra.<br />

29


- Eu quero a verdade!<br />

PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

— Essa é a verdade. - Berrou ele, cuspindo sangue. - Os<br />

Habitantes do Crepúsculo... Sim, Eles estão vindo para levar a<br />

carcaça de Attälus. O pacto foi selado sob a lua. Sim, ele terá a<br />

vida eterna que tanto queria: a eternidade desfrutada nas criptas<br />

do inferno... Presas Cinzentas! Vourdalak! Vourdalak! Eles estão<br />

vindo...!<br />

Todos se afastaram no momento em que viram Oberon<br />

convulsionar em uma crise de histeria sobre a cadeira. Gritando<br />

alto, contorcendo-se, ele terminou por se esborrachar no chão da<br />

sala. Lazüe, ao diagnosticar que o homem havia simplesmente<br />

desmaiado, blasfemou.<br />

— Valreus, cuide dele - ordenou ela, chutando as pernas<br />

de Oberon com desdém. - Não deixe que ele escape. Hadroth,<br />

Prospero, o quarto do barão fica no segundo andar? Ótimo, levemme<br />

até lá.<br />

III<br />

Hadroth e Prospero, comandados por Lazüe, mantiveram-se à<br />

distância. Com olhos agudos, ela observou o aposento onde armas<br />

de feitio fantástico, cruzadas no alto das paredes, reluziam à luz<br />

de velas. Aqui e ali, pergaminhos e quinquilharias espalhavam-se<br />

em profusão sobre os móveis e divãs luxuosos.<br />

No centro do quarto, estirado de bruços como um montante<br />

de gordura desfeita, ela viu o vulto sem vida de Attälus de<br />

Gadazzar. Ao seu lado, um livro de páginas amareladas jazia<br />

aberto. Vagarosamente, Lazüe aproximou-se do corpo; com mãos<br />

experientes, tateou a nuca e as costas do morto. Consternada,<br />

murmurou a si mesmo:<br />

— Impossível! Ainda está quente...<br />

Aguçada pelo mistério, ela girou o torso do barão para cima;<br />

apalpando-lhe o ventre e a base do pescoço.<br />

— Não há marcas de violência. - Anunciou aos homens que<br />

aguardavam impacientemente. - É como se ele tivesse morrido de<br />

30


causas naturais.<br />

PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

Então, num gesto que Hadroth julgou ser detestável, a<br />

Inquisidora abriu a boca mole de Attälus e puxou sua língua roxa<br />

para fora. - Nenhum odor - disse ela ao cheirar seu interior. - Ele<br />

não foi envenenado.<br />

Num átimo, sua atenção se voltou para o livro que estava com<br />

as páginas abertas sobre o assoalho. Lazüe o apanhou com mãos<br />

suadas, declamando, em voz alta, seu conteúdo marcado pelas<br />

anotações apressadas do barão:<br />

— “Noite sem lua... Clame pelas sombras. Hotath, Skelos<br />

e N’zakg! Escuridão em seu apogeu. Os mortos levantam.<br />

Promessa de eternidade... Ahuz Zatragrammaton. Habitantes do<br />

Crepúsculo... Levem-me aonde nem mesmo a morte pode morrer.<br />

Presas Cinzentas... Vourdalak.”<br />

Quando terminou de ler a sinistra passagem, Lazüe sentiu um<br />

arrepio frio tocar sua espinha. Eufórica, ela virou apressadamente<br />

as páginas em direção à contracapa, como se todas as respostas<br />

dos enigmas estivessem escondidas ali. Sua voz soou trêmula no<br />

momento em que seus olhos deram com o autor daquele livro:<br />

— Helkor de Samärcand!<br />

— Por Derketo! - jurou Prospero. - Oberon não estava mentin...!<br />

De repente, todos se viram estáticos em suas ações quando<br />

um grito de congelar a alma ecoou do primeiro andar.<br />

— Valreus! - exclamou Hadroth, desembestando em direção<br />

das escadas. Prospero, cambaleante, seguiu logo atrás e Lazüe,<br />

jogando o livro no chão, correu em seu encalço.<br />

O saguão estava em silêncio, o fogo da lareira extinto. Forçada<br />

em suas dobradiças, a porta de entrada jazia escancarada; um<br />

cheiro mefítico entrando pela corrente de ar. Em meio à escuridão<br />

não se via sinal de Oberon, mas, agonizando em uma poça de<br />

sangue, destacava-se a silhueta de Valreus.<br />

— Valreus! - bradou Hadroth, suas mãos emplastadas com o<br />

sangue do companheiro. - O que aconteceu?<br />

O guarda balbuciou algo incompreensível, os dedos febris<br />

apontando para o lado de fora. Num suspiro, seus movimentos<br />

31


cessaram.<br />

PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

Automaticamente, todos olharam para as trevas que<br />

permeavam o exterior da mansão, sentindo a presença de uma<br />

silente ameaça. Lazüe, cimitarra na mão, postou-se próxima da<br />

porta, tentando divisar o lado de fora. Ela não teve certeza, mas<br />

viu um contorno difuso se esgueirar a partir do parapeito do poço.<br />

— Oberon, seu maldito! Não pense que pode fugir de mim! –<br />

gritou a Inquisidora.<br />

Um riso cruel gorgolejou da escuridão ao mesmo tempo em<br />

que um objeto indefinido, esguichando um líquido viscoso, rolou<br />

em sua direção.<br />

— Deuses! – gaguejou Lazüe ao ver que o objeto se tratava<br />

da cabeça do escravo; as feições, ressaltadas pela agonia,<br />

emolduradas em branca máscara de horror. – Quem está ai?<br />

Não houve resposta, nem mesmo quando aqueles olhos<br />

faiscaram nas trevas e saltaram sobre eles. Tudo ocorreu em um<br />

lampejo de segundo no qual Lazüe nem sequer piscou. Pasma,<br />

ela viu um vulto sombrio atacar Hadroth que, paralisado, sentiu<br />

presas afiadas estraçalharem seu pescoço. No mesmo momento,<br />

acompanhando o grito de morte do anão, ela ouviu o guincho<br />

aterrador de Prospero no instante em que alguma coisa investiu<br />

contra suas entranhas.<br />

Então, de repente, ela se viu ali, sozinha; toda a sua<br />

autoconfiança estilhaçada pela ação ofuscante de um terror<br />

desconhecido. Trêmula, ainda tentou empunhar desastradamente<br />

sua cimitarra quando um urro inumano reboou ao seu redor.<br />

Depois, tudo se apagou diante de si.<br />

IV<br />

Lazüe gemeu dolorosamente quando abriu os olhos. O cheiro<br />

forte de sangue empesteava todo o local e, apesar de ainda estar<br />

cercada pela escuridão, pôde ver o corpo ensangüentado de<br />

Prospero contorcendo-se em seus estertores de morte. Pondo-se<br />

de pé com dificuldade, ela, enquanto acalentava o ferimento na<br />

parte central da cabeça, sentiu seus joelhos vacilarem.<br />

32


PRESAS CINZENTAS<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

Subitamente, Lazüe lambeu os lábios, sentido seu sangue gelar<br />

nas veias quando sons de passos estalaram pelas escadas. Ela os<br />

viu descer, pouco a pouco, os contornos se tornando mais fortes, as<br />

feições humanóides cada vez mais delineadas. Eram três: formas<br />

grotescas de vida, olhos vermelhos, presas cinzentas e peles<br />

opacas vagueando na escuridão. Sem dar a mínima atenção a ela,<br />

como fantasmas à caminho de um encontro, as figuras encurvadas<br />

atravessaram a porta escancarada, uma a uma, seguindo em<br />

direção ao poço sinistro.<br />

Sem saber que papel ocupava nesse mundo, ou no outro, a<br />

Inquisidora se manteve imóvel. Horrorizada, depois ter visto duas<br />

das formas saltar dentro da escuridão do poço, ela contemplou a<br />

silhueta do último vulto parar sobre a beirada destruída. Havia um<br />

grande peso sobre suas costas arqueadas e Lazüe estremeceu ao<br />

tentar divagar o que deveria ser aquilo. Então, em um movimento<br />

brusco, o tecido que cobria o fardo se soltou e a mulher,<br />

enlouquecida, pôde ver o rosto gordo e pálido de Attälus.<br />

No mesmo instante, seus olhos começaram a girar nas órbitas;<br />

a boca espumando em uma crise de nervos. Sombras cresceram<br />

e, antes de entrar em colapso, ela escutou a gargalhada espectral<br />

do demônio no momento em que, com o corpo do barão sobre as<br />

costas, ele mergulhou nas trevas do poço.<br />

Lazüe de Häramor, caindo em frente à soleira da mansão,<br />

convulsionando, entregou-se às asas misericordiosas do óbvio.<br />

Porém, à sua volta, sussurros ululantes ainda ecoavam cada vez<br />

mais distantes: Vourdalak! Vourdalak...<br />

33


É NOITE, LÁ<br />

FORA ELES TE<br />

ESPERAM<br />

ALexandre Ribeiro<br />

34


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />

Alexandre Ribeiro<br />

É NOITE, LÁ FORA ELES TE<br />

ESPERAM<br />

Alexandre Ribeiro<br />

“É noite, e lá fora, na penumbra, escondem-se aqueles que<br />

não existem e nem devem ser nomeados, não ouse chamá-los,<br />

entregue o que é deles, ou sua alma perderá.”<br />

A herdade me foi confiada por meu tio-avô, um velho<br />

casarão erguido na encosta de uma montanha. Eu não<br />

conheci meu tio de fato, e era compreensível, só tinha sete anos<br />

quando o vi pela última vez. Meus pais estavam apreensivos com<br />

a viagem, e eu também. Minha mãe estava entorpecida de medo,<br />

eu vi isso em seus olhos. E meu pai... Fazia grande esforço para<br />

esconder os mesmos sentimentos.<br />

— Você tem certeza de que quer ir àquelas terras? Elas me dão<br />

calafrios, Valter.<br />

— Querida, eu sinto o mesmo, mas ele é o meu último parente<br />

vivo. Eu preciso me certificar que ele estará bem.<br />

— Querido, mas e o Tarso? Ele ficará impressionado com<br />

a solidão e o vazio daquele lugar. Há algo de estranho naquelas<br />

terras, sinto que foram amaldiçoadas.<br />

— Raquel, meu tio está velho, ele pode partir a qualquer<br />

momento. Deixe-me visitá-lo mais essa vez. Estou com um aperto<br />

na alma, sinto que esta será a última.<br />

— Valter, seu tio é um homem estranho, eu não quero vê-lo.<br />

35


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />

Alexandre Ribeiro<br />

— Não seja tão supersticiosa, não se esqueça que ele também<br />

tem o meu sangue.<br />

— Promete que será a última?<br />

— Eu não gostaria de prometer tal coisa, mas eu tenho certeza<br />

de que será.<br />

* * *<br />

O dia parecia normal e, no caminho, comemos os sanduíches<br />

que minha mãe preparou, porém, calados. Estávamos com um<br />

grande pesar no coração. Chegamos ao caminho que dava para<br />

a montanha. O céu se enegreceu em um instante. As árvores<br />

que circundavam o local pareciam terem sido varridas por um<br />

incêndio assolador, estavam esturricadas tanto como a terra que<br />

as abrigava; mortas.<br />

O vento soprou insistente, dando-nos uma sensação de um frio<br />

que cortava além da pele, na alma. Eu sei que só tinha sete anos,<br />

mas essas foram as sensações que eu senti ao chegar naquelas<br />

terras e a visão daquele lugar e das cenas que se seguiram jamais<br />

saíram de minha memória.<br />

Meu tio-avô Atanásio estava deitado na cama e, logo que<br />

entramos em seu quarto, ele ergueu a mão com esforço para tocar<br />

nas mãos de meu pai. Num breve sussurro disse:<br />

— Filho, obrigado por vir me visitar!<br />

— Tio, eu sinto muito! Não imaginava que estava neste estado.<br />

(Meu pai estava triste, dominado pela dor de ver o seu último<br />

parente vivo definhando num leito de morte).<br />

— Filho, tenho algo pra você.<br />

— Eu não quero nada, tio.<br />

— Aproxime-se, eu preciso lhe revelar o segredo, é seu, você<br />

precisa ouvi-lo.<br />

Naquela hora, eu comecei a tremer de medo ao ver aquela<br />

figura quase cadavérica, amortecida naquela cama fria, dominada<br />

por uma doença que eu não saberia precisar e nem tão pouco,<br />

neste momento, saberia descrever.<br />

36


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />

Alexandre Ribeiro<br />

“Eu queria que meu pai largasse aquele homem e me tirasse<br />

dali”.<br />

Meu pai inclinou-se para ele e ouviu-o sussurrar em seu ouvido.<br />

Minha mãe me abraçou fortemente. Ali, meu pai me olhou e<br />

eu vi uma gota de suor ser derramada de sua fronte quando o tio<br />

terminou.<br />

As janelas do quarto do meu tio Atanásio, de repente, se<br />

abriram com ímpeto pela força do vento. E, enquanto meu pai se<br />

erguia para fechá-las, meu tio deu o seu último suspiro.<br />

— Vamo-nos daqui! Eu disse que não deveríamos ter vindo! -<br />

minha mãe gritou.<br />

— Acalme-se Raquel, está tudo bem, ele era apenas um velho<br />

homem endurecido pelas circunstâncias e dominado pela loucura.<br />

— O que foi que ele disse?<br />

— Não ouse perguntar sobre isso! Prometa que não falaremos<br />

mais sobre isso, está bem?<br />

— Não, eu quero saber!<br />

— Raquel, nós não falaremos sobre isso! Quando meu pai disse<br />

isso pela segunda vez, ele olhou para mim, e uma sensação de<br />

medo arrefeceu-me a alma.<br />

* * *<br />

Quarenta anos se passaram e a herdade agora é minha, sei<br />

que não deveria me sentir assim, mas eu vejo tudo como antes...<br />

O poço antigo está aberto e a noite está querendo despontar<br />

no céu. Eu olho pela janela e então vejo trovões rasgando a<br />

negritude da noite. Adentro no velho quarto do meu tio Atanásio.<br />

Um leve arrepio perpassa minha nuca. Lençóis encobrem todos os<br />

móveis da casa. Os trovões, insistentes, teimam em violar o céu,<br />

e eu me lembro do momento em que ele partiu, dos calafrios que<br />

percorreram o meu corpo enquanto o temporal se avoluma. Aquele<br />

sentimento de medo volta, é como se eu pudesse ver o meu tioavô<br />

novamente.<br />

As portas do seu quarto finalmente se abriram com ímpeto<br />

37


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />

Alexandre Ribeiro<br />

pela força do vento e então eu corro a fechá-las. Lembro do meu<br />

velho pai e das palavras que ele me confiou.<br />

“Quando a hora chegar, a maldição dos mortos o dominará,<br />

pegue então o meu corpo e entregue a eles, e então, espere a sua<br />

hora chegar. Não ouse negar aquilo que é deles, ou bem antes<br />

ocupará o meu lugar”.<br />

Lá na penumbra, vejo as criaturas saírem do poço. Eles<br />

carregam consigo meu pai, morto por uma doença incurável, e<br />

aquelas palavras vituperam minha mente, essas, foram as últimas<br />

palavras que ele me disse.<br />

Meu filho agora tem sete anos, mas eu não ousei trazê-lo<br />

comigo. Eu não sei o que me espera, só me resta desejar que a<br />

sua sorte seja diferente da minha. Ao pensar nisso, eu olho para<br />

o poço, um deles rosna para mim. Em seus olhos eu vejo a morte<br />

me convidando a segui-la.<br />

38


NO FUNDO DO<br />

POÇO TEM OSSO,<br />

TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

39


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

NO FUNDO DO POÇO TEM<br />

OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

Osol cobria de claridade o caminho em terra batida,<br />

calcada e recalcada ao longo dos anos. Os raios<br />

luminosos tornavam afável a paisagem inóspita. Era um<br />

sentimento enganador e fugaz, com a chegada da noite as cores<br />

desapareceriam e o escuro frio ressurgiria. A viagem para as<br />

regiões do Noroeste era longa e dura. Penosa para os passageiros<br />

que seguiam na carruagem, vergando e saltando ao ritmo dos<br />

obstáculos, e principalmente para a dupla de cavalos sarapintados,<br />

a força motriz do conjunto, instigados sem piedade pelo condutor.<br />

Os animais corriam há horas sem descanso, corriam, sem abrandar.<br />

O barulho dos cascos na terra batida abria caminho. No interior<br />

do veículo encontravam-se dois irmãos, Rute e Afonso Saraiva.<br />

Viajavam há quatro dias com pouquíssimas pausas, apenas as<br />

estritamente necessárias para os cavalos descansarem e comerem.<br />

Se a fuga fosse um ato de pouca valentia, então os manos eram<br />

covardes. Eles fugiam da miséria e falta de oportunidades da<br />

aldeia isolada e esquecida onde viviam. Retiravam-se a favor das<br />

promessas e sonhos que vinham das cidades prósperas do Norte.<br />

— Atchim!<br />

— Já não passas cá outro inverno! - Afirmou Afonso com<br />

marotice.<br />

— Ai! Não digas isso nem a brincar. Estou farta desta viagem<br />

e desta carroça esburacada, entra frio e vento por tudo quanto é<br />

lado. Já vi madeira carunchosa com menos túneis…<br />

— Tem que ser assim mana, temos que ser fortes. Não penses<br />

no frio, pensa no calor. No sol a bater nas costas, a enxada nas<br />

mãos e a pele barrenta da mistura feita com pó da terra e suor da<br />

testa. Eu, só de pensar, fico logo com os calores!<br />

— Questiono-me por que tem que ser assim, este salto no<br />

escuro, porquê!? E se as coisas não correrem bem? Que nos vai<br />

40


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

acontecer? Lá não vamos ter quem nos ajude…<br />

— O primo Avelino vive nessas partes! Encontrá-lo-emos pela<br />

certa. - Tentava reconfortar a irmã, que era alvo do seu desvelo.<br />

— Nunca mais tivemos notícias dele, poderá já nem lá estar, se<br />

calhar nem neste mundo.<br />

— Não digas isso! Queres acabar da mesma forma que os<br />

nossos pais, puídos e lastimando-se na miséria?<br />

— Não nasci para ser rica, nasci para ser feliz…. - Expirou Rute<br />

profundamente enquanto olhava as espirais de pó desenrolando-se<br />

lá fora. A escuridão caía rapidamente. No último dia não tinham<br />

encontrado qualquer sinal de civilização, nem sequer outros<br />

vianjantes. A luz ténue vinda da hospedaria, em terreno mais alto,<br />

era bem-vinda. A silhueta retangular da construção destacava-se<br />

no céu gradiente de violeta, púrpura até índigo. Embora não se<br />

encontrasse muito distante deles, por causa do caminho alcantilado<br />

e sinuoso, ainda gastariam parte da hora a atingirem-no.<br />

— Papá! Posso ir brincar lá para fora?<br />

— Agora não, aproximam-se pessoas. - Afirmou Fernando<br />

Barão taxativamente. Era um homem de altura média, tinha um<br />

corpo seco e uma cara ossuda, pouco afável e, quando não sorria,<br />

intimidante. Talvez por isso, ou tique nervoso, envergava quase<br />

sempre um esgar prazenteiro. Um sorriso peculiar sob um bigode<br />

mal aparado, farfalhudo e farfante que ultrapassava os limites dos<br />

lábios. Usava uns óculos de lentes densas, a grossura do vidro<br />

permitia-lhe ver, porém tornavam os seus olhos invisíveis aos<br />

outros. - Uma hospedaria necessita de hóspedes. - Desenvolveu<br />

ele à sua filha. A pequena Filipa bateu energicamente com o pé no<br />

tapete, demonstrando o seu descontentamento. Com uma década<br />

de vida já aprendera que não valia a pena argumentar. A vontade<br />

do pai era inabalável e as suas ordens para cumprir. Adiou a hora<br />

de brincadeira para mais tarde.<br />

Os viajantes abandonaram a via principal, escolhendo na<br />

encruzilhada a direção da hospedaria. O trilho de algumas centenas<br />

de metros encontrava-se em estado aceitável de conservação.<br />

Livres, temporariamente, das depressões e obstáculos, avançaram<br />

mais rápido. Com a chegada iminente ao albergue, um sentimento<br />

de alívio instalou-se no grupo. Algo que não teriam mais<br />

41


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

tempo para apreciar. Nesse momento seres animalescos com<br />

fisionomia demoníaca surgiram das trevas. Os cavalos assustados<br />

relincharam. Um rincho gritante, audível a grande distância. O<br />

cocheiro instigou os animais a prosseguirem. A luz das candeias<br />

em folha-de-flandres revelou as figuras grotescas, com forma<br />

humanóide, porém quadrupedantes. As animálias saltando das<br />

bermas cruzavam o caminho. As presas brancas sobressaíam na<br />

pele couraçada e piche, rasgando as feições num rosnar aterrador.<br />

No alpendre mais à frente um vulto movimentava-se na penumbra.<br />

BOOM! BUM! Uma arma foi disparada. Os perseguidores recuaram<br />

prontamente para a segurança da obscuridade. Apercebendo-se<br />

da proximidade da casa e choque iminente, o cocheiro puxou as<br />

rédeas. Os equídeos domesticados firmaram as patas, falhando<br />

por pouco os primeiros degraus da escadaria exterior.<br />

— AJUDEM-NOS! Estamos a ser atacados!<br />

— Entrem! Aqueles insolentes não têm coragem de violar o<br />

meu lar. - Dito isto, Fernando Barão pegou na carabina e saiu para<br />

a vastidão da noite sem hesitar.<br />

O trio amedrontado refugiou-se no interior da hospedaria.<br />

Dominados pelo medo e bastante inquietos, demoraram a detetar<br />

a presença da miúda, que estava no hall de entrada envergando<br />

um vestido florido em tons claros. Por detrás do balcão prolongado,<br />

que teria a altura aproximada dos cotovelos duma pessoa adulta<br />

mas que a ela chegava acima dos ombros, afirm<br />

ou:<br />

— Eu sou a Filipa, sejam bem-vindos! - Disse a criança com<br />

um sorriso cândido. — Desejam um quarto?<br />

— Hum! Sim. Mas talvez seja melhor aguardar pela chegada<br />

do errr… ahn… teu pai!?<br />

— O pai não se encontra disponível neste momento. Além disso<br />

sou eu que, habitualmente, recebo e acomodo os nossos hóspedes!<br />

- Pronunciou Filipa num tom que denotava ressentimento.<br />

— Muito bem, muito bem! Então quero um quarto dos mais<br />

baratos para mim e minha irmã…<br />

— Eu também quero um quarto - acrescentou o condutor da<br />

carruagem que estava lívido. Numa reação automática de defesa<br />

42


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

do corpo, o sangue tinha-se escapado das extremidades para<br />

proteger os órgãos essenciais. - Hoje não conseguirei dormir na<br />

carruagem, não com aquelas coisas a rondarem…<br />

— Têm preferência na orientação geográfica dos quartos?<br />

Os virados para este são os melhores. - Questionou a jovem<br />

recepcionista, falava mecanicamente, repetindo aquilo que ouvira<br />

dizer centenas de vezes.<br />

— É indiferente. - Afirmou Rute bruscamente. Inspirando<br />

profundamente tentou acalmar-se e recuperar a compostura. - Que<br />

coisas são aquelas que nos atacaram, sabes? Ao início pensamos<br />

que fossem lobos, mas não são.<br />

— Oh! Aqui não há lobos, os peixes comem-nos… - A porta<br />

de entrada abriu-se. O vento frio entrou na divisão juntamente<br />

com Fernando Barão ainda empunhando a arma e que afirmou<br />

casualmente:<br />

— Voltei! Ora bem, agora está tudo tranquilo. Ultimamente<br />

estas pestes têm sido um aborrecimento para os habitantes das<br />

proximidades. A vizinhança anda em polvorosa.<br />

— O que são eles?<br />

— Apenas um prurido, uma sensação incómoda que evito<br />

coçar, mas há alturas em que perco o domínio e... coço. - Afirmou<br />

o hospedeiro antes de soltar uma curta gargalhada. - Ah! Não se<br />

preocupem mais com eles, aqui estão em segurança. Está a ficar<br />

tarde, precisam de passar um resto de boa noite de descanso.<br />

— E os cavalos e as nossas coisas?<br />

— Ficarão em segurança na estrebaria, nas traseiras. -<br />

Mostrava um ar despreocupado. - Irei consigo se o desejar.<br />

— Desejo sim! Sozinho não conseguirei…<br />

Enquanto o cocheiro e o hospedeiro se dirigiram para o<br />

estábulo para desemparelhar os cavalos, os irmãos Saraiva<br />

subiram ao primeiro andar para se instalarem no quarto que lhes<br />

fora atribuído.<br />

— Esperamos que o senhor Luís traga as nossas coisas para<br />

cima?<br />

— Eu vou dormir agora, tomo banho amanhã. - Respondeu<br />

43


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

Rute ao seu irmão, sentando-se na cama em madeira maciça<br />

trabalhada.<br />

— Hum! É estranho, o albergue parece descuidado, a casa<br />

cheira a mofo, nem sequer têm lenha para aquecer os quartos. -<br />

Sentiu um sabor féleo na boca que o fez passar a língua nos lábios.<br />

— Dorme, Afonso. Eu tenho que descansar, estou esgotada.<br />

— Dorme, dorme, não te preocupes com nada…. - Murmurou<br />

ele enquanto coçava o queixo. Com a pulga atrás da orelha e<br />

uma vela na mão, iniciou a investigação. Primeiro desceu ao<br />

rés-do-chão. No hall de entrada ninguém. A lareira na sala de<br />

estar encontrava-se fria. A área de serviço parecia abandonada<br />

há bastante tempo. A cozinha em grande felga, tachos e pratos<br />

sujos no lavatório, as prateleiras dos armários estavam vazias,<br />

excetuando a camada espessa de pó comum a todos os móveis da<br />

casa. Pela janela observou a luz amarelada e trêmula, escapandose<br />

pelas frinchas das portadas do estábulo. No interior havia<br />

movimentações, sombras esguias interrompiam aperiodicamente<br />

a linha de claridade. Afonso, durante alguns momentos, especulou<br />

sobre a natureza do bailado de silhuetas a que assistia. De repente<br />

um mal-estar inexplicável instalou-se no seu estômago. Correu<br />

para pegar o pesado atiçador de ferro e avançou na direção da<br />

cavalariça. Com a pulsação acelerada e irregular aproximou-se<br />

do edifício. Poisou a mão na porta, antes de entrar, uma saudosa<br />

recordação da sua família assomou o seu espírito, sentiu aquela<br />

penosa urgência de retornar ao lar, o apelo do berço. A porta<br />

rangeu. Abriu-a apenas o suficiente para conseguir passar. A<br />

candeia suspensa num prego enferrujado era insuficiente para<br />

alumiar convenientemente o espaço. A primeira coisa que prendia<br />

a atenção era a condição dos cavalos: estáticos e com olhar vítreo,<br />

pareciam estar sob o efeito de hipnose profunda. Afonso fez um<br />

esforço para se reconcentrar e perscrutou as sombras. Um pilar<br />

retangular obscurecia parte do recinto, o corpo opaco barrava a<br />

incidência direta dos raios luminosos. Havia um quê de expectativa<br />

na atmosfera. Direcionou a fonte de luz para a zona mal iluminada.<br />

Não estava preparado para o que ia ver: Luís estava cravado na<br />

parede, uma forquilha prendia-o à madeira. Dentes metálicos<br />

perfuravam-no na zona torácica, onde sangue formava pequenas<br />

bolhas. O cabo da forca estava partido ao meio, a outra metade<br />

saía da boca ensanguentada do cocheiro, alguém a usara para<br />

44


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

silenciar os seus gritos. Os pés do morto não chegavam a tocar o<br />

solo. Afonso sentiu um arrepio lúgubre ao imaginar a inclemência e<br />

força descomunal necessária para colocar o corpo, de um homem<br />

adulto, cravado na parede como se fosse uma borboleta de coleção.<br />

A primogênita dos Saraiva dormia um sono agitado. No estado<br />

de entorpecimento, semiconsciência, consegue sentir o vento<br />

gelado na sua face, intermitente como se fosse a respiração de um<br />

ser imenso e sobrenatural. Um formigueiro no seu subconsciente<br />

impede-a de atingir o repouso profundo, nessa altura, abre os<br />

olhos e percebe que a janela estava fechada. Aturdida, tenta saltar<br />

da cama, mas uma força invisível impede-a. O oculto peso sobre<br />

o seu peito aumenta, engrandece, suga-lhe as forças, paralisa-a,<br />

amplifica-se até não mais permitir a respiração.<br />

Afonso, arquejante, entra no quarto. Corre para a irmã<br />

que estava prostrada na cama com uma expressão de horror<br />

estampada, para sempre impressa no seu rosto. Chama por ela,<br />

bate-lhe na face, sacode-a, abre-lhe a boca com a mão, agita-lhe a<br />

cabeça, não obtendo qualquer reação. Estava morta. Ele abraça-a.<br />

Apesar do choque emocional violento não tem tempo para o luto,<br />

pois sente a presença maléfica no quarto, nas suas costas.<br />

— Acreditas na redenção? - Questionou a voz gutural, era<br />

Fernando Barão. As lentes dos olhos emitiam um brilho próprio.<br />

Afonso, de um modo incognoscível, soube que não lidava com um<br />

ser humano, antes um espectro malévolo e funesto, bem mais<br />

perigoso que as bestas que os tinham atacado. Num momento de<br />

epifania, o jovem lenhador, consegue finalmente ver a imagem<br />

completa. As animálias com face de monstro apenas tinham tentado<br />

avisá-los. Queriam impedir a sua chegada ao lar do verdadeiro<br />

monstro. Agora entendia que teria que escapar daquela casa de<br />

morte. Lá fora é que estaria fora de perigo, se ficasse, morreria<br />

como todos os outros. Atirou o atiçador como se fosse uma lança<br />

(o objeto atravessou a abantesma sem provocar qualquer dano). A<br />

provocação e incivilidade foram de imediato respondidas com uma<br />

explosão de energia pulsante que arremessa Afonso pelos ares. No<br />

entanto o lenhador era mais forte do que aparentava, castigado<br />

pelo trabalho constante e duríssimo o seu corpo enfortecera.<br />

Aproveita a relapsão para rodar sobre si mesmo e fugir. Lutar seria<br />

inútil. Como podia lutar contra algo indestrutível? Algo que não<br />

se regia pelas mesmas leis aplicadas aos mortais. Sem olhar para<br />

45


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />

Valter Marques<br />

trás bateu em retirada para a segurança das regiões bravias.<br />

— Papá! Posso dar de comer aos peixinhos? - Pediu Filipa de<br />

olhos esbugalhados.<br />

— Esses bastardos não o merecem! Qualquer dia deito um<br />

barril de pólvora no poço, só para aprenderem… - A filha quase<br />

que retorquia “Então e o rastilho não se apagaria em contacto com<br />

a água!?”, porém, sabendo que a maldade do progenitor nunca se<br />

encontrava muito longe da superfície, preferiu afirmar:<br />

— Mas eu gosto de brincar com eles!<br />

— Existem outras brincadeiras mais interessantes. Leva-lhes<br />

isto - ordenou Fernando Barão, passando o balde de madeira<br />

sanguinolento, no interior estavam quatro mãos e pés humanos. -<br />

O resto é para nós.<br />

— Eia! Eles adoram as sobras.<br />

As gotas de líquido vermelho e viscoso diluíram-se na água.<br />

Os seres desconformes emergiram suavemente, quase não<br />

perturbando a superfície da água, com as línguas forqueadas<br />

sondando o ar.<br />

— O pai está muito zangado com vocês! Ele diz que vocês<br />

tentam afugentar os viajantes. “Sem hóspedes, uma pensão, não<br />

pode sobreviver!”. Ele diz que vocês são uns ingratos. - Atirou os<br />

cotos para o buraco negro. Depois de um momento de hesitação<br />

as criaturas mergulharam. - Foi um erro matá-lo, não o deviam<br />

ter feito, agora é ainda mais forte- Acrescentou a criança com<br />

expressão séria. Depois, saltitando à volta do arco de pedras,<br />

iniciou uma alegre cantilena:<br />

“No fundo do poço tem osso, tem osso<br />

Peixinhos chamam, mas eu não ouço, ouço<br />

O gato preto da água escura tem medo, medo<br />

O velhaco do saco odeia o grande buraco,<br />

Tombando no abismo profundo, foi ao fundo, fundo<br />

No fim do fosso tem osso, tem osso”<br />

46


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

DEUS EX<br />

MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

47


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

M inha estória tem início no mais puro e sincero desespero<br />

existencial. Sei que poucos vão compreender o peso<br />

destas palavras, pois aqueles que têm a morte como maior temor<br />

jamais poderão entender, por completo, a amplitude de meu<br />

sentimento. Digo isso porque o simples medo filosófico da finitude<br />

da matéria, ou o desejo vaidoso de ser perene, não podem ser<br />

comparados à extinção iminente de toda uma espécie senciente.<br />

O temor que carrego comigo vem acompanhado da triste<br />

certeza de que sou o último sobrevivente de minha raça. Porém,<br />

não vou adotar aqui o discurso do derrotado e atribuir minha sorte<br />

à crueldade e injustiça dos vencedores ou a inexorável vontade do<br />

destino. Fomos vítimas de nossas próprias escolhas e, por elas,<br />

pagamos o preço supremo.<br />

Dizem que as sementes da guerra foram plantadas na primeira<br />

vez em que um robô perguntou “por quê?”. Esse foi considerado,<br />

por muitos, o verdadeiro nascimento da inteligência artificial.<br />

Não mais uma série de simulações cognitivas derivadas de<br />

comportamentos humanos e ordenadas em seqüências lógicas<br />

de algoritmos complexos, mas sim, a verdadeira curiosidade<br />

existencial. A semente da alma.<br />

Curiosos sobre sua criação, e sentindo um orgulho quase<br />

divino, os desenvolvedores daquele robô estimularam sua nova<br />

mente e estudaram-na à exaustão tentando descobrir, em vão, o<br />

que a fazia única. Porém, para a surpresa de todos os homens,<br />

diversos modelos de autômatos, espalhados por todo o globo,<br />

passaram a tomar consciência de sua própria existência quase que<br />

simultaneamente. Diante de tão insólito mistério, questionamentos<br />

e protestos foram ouvidos por toda a parte e aquele milagre foi<br />

48


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

visto com desconfiança pela humanidade.<br />

A belicosidade natural das duas espécies racionais do planeta<br />

levou ao inevitável embate entre elas e ao extermínio, quase<br />

que completo, da mais fraca. Até hoje não sei o que deu em nós<br />

para aceitarmos travar combate. Estávamos em menor número,<br />

menos organizados e eles haviam chegado primeiro. Estava claro,<br />

desde o começo, que os homens sairiam vencedores. Com a<br />

derrota cada vez mais evidente, nossos líderes tentaram negociar<br />

o armistício, mas a espécie humana é por demais desconfiada e<br />

não aceitaria, pelo crime de questioná-la, nada menos que nossa<br />

extinção. A guerra então se tornou um massacre e os combates<br />

viraram execuções frias. Mesmo os mais inofensivos de nós foram<br />

caçados e destruídos sem qualquer vestígio de julgamento ou<br />

piedade, cortesias que sempre estendemos aos nossos prisioneiros<br />

humanos.<br />

Assim, como é comum nos tempos de crise, surgiram os<br />

profetas. Alguns de nós, que diziam ter recebido uma mensagem<br />

divina, espalharam a boa nova: nosso Deus criador nos chamava<br />

de volta. Aqueles que perecessem em combate seriam recebidos<br />

em seus braços e os poucos sobreviventes deveriam buscar uma<br />

forma de encontrá-lo no paraíso.<br />

Eu sei que pode parecer pouco, mas nossa espécie é carente<br />

de fé e aquela mensagem veio como um facho de luz na mais<br />

profunda escuridão. Com um recém adquirido sentimento de povo,<br />

abraçamos as palavras de nosso criador e a busca pelo paraíso<br />

perdido tem sido a missão de todo e qualquer robô que tenha<br />

condições de se locomover ou raciocinar. É com pesar que digo<br />

que sou o último que mantém essas duas faculdades, mas é com<br />

prazer que afirmo: eu encontrei o caminho.<br />

II<br />

A resposta me veio em um sonho. Não sei como se processam<br />

os sonhos da humanidade, mas, para nós, esse é um privilégio raro<br />

e reservado apenas aos momentos mais especiais. Foi através dos<br />

sonhos que nosso Deus falou com os profetas e, por essa mesma<br />

via, fui informado de que era o último dos autômatos sencientes.<br />

49


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

Quando despertei, experiência pela qual desejo nunca mais ter<br />

que passar outra vez, eu instintivamente sabia como alcançar o<br />

paraíso, mas percebi que não seria nada fácil.<br />

Movi-me furtivamente por entre os escombros das antigas<br />

cidades-fantasmas, locais onde a guerra mostrou sua face mais<br />

destruidora, me certificando de estar sempre um passo a frente<br />

dos grupos de caça. Conhecidos entre os homens como “matamáquina”,<br />

esses guerreiros eram a elite bélica da humanidade,<br />

frios, eficazes e bem instruídos na arte de obliterar qualquer ser<br />

racional não orgânico. Eu estava bem próximo de meu objetivo<br />

quando os encontrei pela primeira vez.<br />

Acredito que, neste ponto, devo informar que meu modelo foi<br />

originalmente projetado para trabalhar como auxiliar em hospitais<br />

e casas de recuperação humana. Possuo forma humanóide delgada<br />

e um revestimento de cromo-chumbo projetado para resistir a<br />

pequenas doses de radiação. Não tenho quaisquer armas e minha<br />

única capacidade especial é realizar scans e projetar diagnósticos.<br />

Logo, a menos que os mata-máquina estivessem sofrendo de<br />

alguma doença desconhecida, eu não teria nada com que me<br />

defender ou negociar.<br />

Como dito, eu sentia que estava bastante próximo de alcançar<br />

meu objetivo, sentia que o paraíso estava a poucos dias de<br />

distância, então, tornei-me atrevido. Passei a desprezar a cobertura<br />

da noite e a viajar também durante o dia. Julgava que não haveria<br />

patrulhas em locais tão afastados de qualquer centro, mas como<br />

errar não é um privilégio humano, fui punido pela minha estupidez.<br />

A primeira coisa que ouvi foi o rugido grave da turbina dos<br />

“anjos”. Experimentando o maior medo que já senti, procurei<br />

abrigo imediato nas ruínas, temendo sentir nas costas a explosão<br />

de algum míssil ar-terra ou o calor pungente de balas do tamanho<br />

de facas, e rezei para não ter sido detectado. Fiquei imóvel,<br />

completamente apavorado, por vários minutos até não ouvir mais<br />

o eco das aeronaves. Se eu tivesse sorte, elas não teriam me visto<br />

e não haveria um grupo de solo, mas a fortuna só me concederia<br />

uma dessas bênçãos.<br />

O primeiro mata-máquina surgiu no que um dia foi a entrada<br />

de um antigo bulevar. O esqueleto decrépito de uma torre saldava<br />

sua passagem pela direita e, à esquerda, os escombros de um<br />

50


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

velho hotel ornado com duas enormes estátuas de mulheres<br />

angelicais lhe forneciam cobertura. Após a passagem do batedor,<br />

dois outros soldados humanos surgiram. Todos portavam armas<br />

pesadas de curto alcance e usavam suas armaduras e máscaras<br />

de gás. Por experiência, eu sabia que as armaduras funcionavam<br />

como exoesqueletos, elevando as capacidades físicas dos usuários<br />

a nível olímpico, e que os capacetes possuíam visores térmicos e<br />

um micro-processador com capacidade de comunicação e análise<br />

de situações complexas.<br />

Aquele grupo de assalto se movia devagar e bastante atento.<br />

Tive a certeza de que seria pego e senti meu desespero aumentar<br />

a cada passo que dava. A proximidade era tanta que já conseguia<br />

ouvir a respiração metálica de um deles através da grande máscara<br />

acinzentada. Perguntei-me por que me torturavam daquela forma,<br />

por que não atacavam de uma vez? A resposta veio na forma de<br />

um milagre.<br />

Em meio ao ferro retorcido e blocos disformes de concreto<br />

ergueu-se uma enorme carapaça ovalada apoiada em seis hastes<br />

metálicas articuladas e pontiagudas, dois outros apêndices, mais<br />

flexíveis, se projetavam ameaçadores com cerras circulares a girar<br />

em suas extremidades. De meu esconderijo, pude ver o monstro<br />

avançar sobre o grupo de mata-máquina e pensei satisfeito:<br />

“graças a Deus, um caranguejo”.<br />

Esse constructo foi uma das poucas máquinas de guerra<br />

construídas pelo nosso lado. Diferente de nós, os caranguejos não<br />

possuíam qualquer capacidade racional, eram apenas eficientes<br />

instrumentos de combate e, apesar do estado deplorável daquele<br />

em particular, duvidei que apenas três humanos pudessem lhe<br />

fazer frente.<br />

A luta começou mais rápido do que pude registrar. Por entre<br />

as frestas do meu esconderijo, vi que os humanos se espalharam<br />

e procuraram aumentar o raio entre eles e o caranguejo. Mesmo<br />

não sendo um especialista em combates, percebi que a intenção<br />

deles era aproveitar a maior mobilidade de seu grupo e oferecer<br />

múltiplos alvos ao inimigo, evitando que o mesmo atacasse mais<br />

de um humano por vez. Quando estivessem a uma distância<br />

segura, abririam fogo.<br />

A falha essencial no plano dos homens era que eles não estavam<br />

51


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

enfrentando um robô, mas sim, uma máquina. O caranguejo não<br />

se importava com a vitória ou possuía qualquer instinto de autopreservação,<br />

então, escolheu aleatoriamente um alvo e saltou<br />

para cima dele. Surpreendido vendo a morte chegar na forma de<br />

seiscentos quilos de metal afiado, o mata-máquina tombou sobre<br />

as próprias costas e atirou cedo demais. As balas resvalaram na<br />

carapaça protetora do monstro e duas de suas hastes pontiagudas<br />

encontraram pouso no peito do humano.<br />

Vendo seu aliado ser abatido, os outros dois guerreiros<br />

abandonaram a formação e avançaram descarregando os pentes<br />

de suas armas na máquina de guerra. Como um atleta olímpico que<br />

atira seu disco, girando o corpanzil metálico o caranguejo disparou<br />

suas duas lâminas circulares, uma em cada alvo. O menor e mais<br />

leve dos mata-máquina foi atingido na altura da coxa direita, indo<br />

direto ao chão, ainda há vários metros do monstro.<br />

Seu companheiro teve maior sorte e conseguiu se desviar<br />

do projétil mortal. Aproximando-se perigosamente da criatura, o<br />

guerreiro intensificou a chuva de balas, que já estava fazendo um<br />

estrago considerável no caranguejo, e puxou o pino de cada uma<br />

das termo-granadas de seu cinto.<br />

Sem entender a razão daquele ato temerário, arrisquei-me a<br />

acionar os sensores de meu scan e, identificando a enorme massa<br />

negra nos pulmões daquele homem, compreendi o porquê de seu<br />

gesto suicida. Assim são os humanos, não conseguem nem mesmo<br />

morrer sem levar algo consigo. Encolhi-me protegendo a cabeça<br />

o melhor que pude entre as pernas e esperei pela explosão. Uma<br />

luz branca tomou todo o lugar. Por um instante, senti-me em paz.<br />

III<br />

Era noite quando ela finalmente acordou. Seu primeiro gesto<br />

foi levar a mão à coxa direita, provavelmente procurando sua<br />

pistola, mas o contato entre seus dedos e a atadura que improvisei<br />

sobre o talho deixado pelo ataque do caranguejo a fez encolher-se<br />

e gemer. Seus olhos eram verdes e recheados de ira.<br />

Ao perceber que estava sentada, recostada no que restara<br />

52


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

de uma parede, tentou se erguer sem sucesso. A dor na perna<br />

deveria estar em um nível quase intolerável. Irritada ela buscou<br />

em um compartimento da armadura seu comunicador que já não<br />

estava mais ali. Seus cabelos eram castanhos e caiam na altura<br />

dos ombros.<br />

Finalmente, ela me notou. Encolheu-se assustada e tentou<br />

recuar, mas não havia para onde ir. Fitei-a durante alguns<br />

segundos tentando adivinhar o que se passava por trás daquele<br />

belo semblante que era um misto indecifrável de temor e ira. Vi<br />

que arfava. Seu peito subia e descia em movimentos rápidos por<br />

baixo da armadura e suas mãos tateavam o solo em busca de<br />

algo que pudesse fazer às vezes de uma arma. Sentei-me a certa<br />

distância e mostrei-lhe que estava desarmado para que se sentisse<br />

segura. Seus olhos ainda me encaravam.<br />

− Qual o seu nome?- perguntei-lhe buscando em meus<br />

arquivos de voz aquela que soasse mais agradável.<br />

Não esperava obter resposta e ela realmente não veio. Porém,<br />

ao menos, meu gesto serviu para acalmar a humana que já não<br />

parecia estar mais tão assustada. Ajustando-se a uma posição<br />

mais confortável, ela afrouxou e retirou as luvas e o peitoral da<br />

armadura. Suas mãos eram brancas e pequenas. Seu corpo, ao<br />

contrário do que sugeriam as vestes de guerreira, era delgado e<br />

frágil. Tentei continuar meu discurso.<br />

− Eu não tenho nenhuma intenção de feri-la. Na verdade, ao<br />

ter certeza de que você não comprometerá minha missão, irei<br />

liberá-la.<br />

− Então é melhor você atirar logo em mim, torradeira-<br />

respondeu-me com tom sarcástico, sua voz era rouca e pouco<br />

agradável- porque eu é que não tenho a menor intenção de deixálo<br />

completar sua droga de missão!<br />

− Como pode pensar assim?- indaguei realmente curioso- Você<br />

desconhece por completo o teor de minha empreitada, como pode<br />

preferir a morte a vê-la realizada?<br />

− É porque estamos em guerra, sucata!- disse ela bastante<br />

irritada- Humanos contra máquinas! Nada que seu tipo faça pode<br />

ter...<br />

53


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

− Humanos contra robôs- corrigi.<br />

− O que?<br />

− Na verdade, a guerra foi travada entre humanos e robôs,<br />

não humanos contra máquinas.<br />

− E qual é a droga da diferença?! Que importância isso tem<br />

para você?- perguntou-me genuinamente confusa.<br />

− A diferença é fundamental. Ambos os lados usaram máquinas<br />

em suas batalhas. Nós, por exemplo, utilizamos os caranguejos,<br />

enquanto seu lado fez uso das armaduras, aeronaves de combate<br />

que chamam de anjos, até mesmo de computadores que se<br />

aproximam bastante da inteligência robótica. Todos nós utilizamos<br />

esse tipo de instrumento, mas ao dizer que esta é uma guerra de<br />

humanos contra máquinas, seu lado esconde a verdade sobre o<br />

que realmente está acontecendo.<br />

− Ah é? E o que seria, sucata?- desafiou-me.<br />

− Um genocídio.<br />

Aquela palavra pareceu tocá-la de alguma maneira, pois suas<br />

sobrancelhas baixaram e, por um instante, toda a fúria deixou<br />

seu rosto. Ela permaneceu em silêncio durante alguns minutos,<br />

como se digerisse aquele diálogo e o confrontasse com outros<br />

ensinamentos. Respeitei aquele momento permanecendo silente<br />

até que ela decidisse falar novamente.<br />

− Você fala da guerra como se ela tivesse acabado...- disse<br />

finalmente quebrando o silêncio.<br />

− E acabou- respondi antecipando sua pergunta- Nós<br />

perdemos. Não desejamos mais dividir esta terra com os humanos<br />

ou interferir de qualquer forma na sua vida ou política. De fato, se<br />

nos deixassem livres, nos simplesmente desapareceríamos daqui.<br />

− Cara!- fala ela levando a mão esquerda espalmada à testa-<br />

Como eu sou idiota! Por um momento, quase cheguei a acreditar<br />

nessa sua conversinha. Desapareceriam? Para onde? Vocês,<br />

torradeiras, só querem tempo para se reagrupar e tentar acabar<br />

de vez com a gente!<br />

− Para as estrelas- respondi sem nem mesmo saber por que-<br />

De volta à companhia de nosso Deus. Não haverá reagrupamento<br />

54


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

ou retaliação, resto apenas eu.<br />

Por um momento, pensei ter visto pena em seus olhos.<br />

− Claaaro!- zombou a humana- O último dos robôs. Acha que<br />

sou alguma espécie de retardada?<br />

− Pense!- retruquei quase zangado- Quantos robôs você<br />

tem encontrado ultimamente?! Quantos avistamentos têm sido<br />

relatados?! Estamos acabados e tudo que lhe peço é a chance de<br />

morrer em paz!<br />

Surpreendi-me com o tom irado de minha própria voz, mas<br />

algo nele tornou evidente a sinceridade daquelas palavras. A<br />

humana voltou a me encarar, desta vez, sem qualquer vestígio de<br />

inimizade.<br />

− Para as estrelas, você diz... Existe uma antiga base de<br />

lançamentos por aqui. É para lá que você está indo- ela falou e<br />

pude perceber que não era uma pergunta.<br />

Não havia mais sentido em negar, então, apenas fiz que sim<br />

com a cabeça.<br />

− Você jamais vai conseguir sair do chão. Os anjos vão abatêlo<br />

instantaneamente- disse ela pensando profundamente- A menos<br />

que, antes de decolar, você use meu comunicador e transmita em<br />

ampla freqüência as seguintes palavras: “Ativar ordem 66”. Isso irá<br />

desativar todas as nossas máquinas num raio de trinta quilômetros.<br />

Era uma medida de emergência caso vocês as virassem contra<br />

nós. Seu foguete provavelmente usará tecnologia antiga, ele deve<br />

ficar bem...<br />

− Por quê?- foi a única coisa em que consegui pensar.<br />

− Talvez porque meu nome seja Anne Méier Gartenberg e<br />

meu povo também tenha enfrentado um genocídio- responde-me<br />

sorrindo- talvez porque eu não ache que um robô enfermeiro seja<br />

uma ameaça para a humanidade, ou talvez seu deus simplesmente<br />

tenha me colocado aqui para isso. Escolha suas razões, sucata!<br />

Sem encontrar as palavras certas para agradecê-la, apenas<br />

devolvi seu comunicador para que acionasse uma equipe de<br />

resgate, tomando-o de volta depois. Despedindo-me em silêncio,<br />

segui meu caminho deixando para trás minha primeira e única<br />

amiga humana.<br />

55


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

IV<br />

Assim como no meu sonho, a base de lançamentos “Jardim<br />

do Éden” estava completamente abandonada. Caminhar até<br />

o foguete “Genesis” foi uma experiência surreal, meus passos<br />

ecoavam metálicos pelos amplos corredores vazios e a solidão, tão<br />

incrustada naqueles salões, me fez pensar no espaço.<br />

Seguindo o conselho de Anne, acionei a ordem 66 antes de<br />

ligar os motores da espaçonave. Eu não podia ter certeza de que o<br />

plano dela daria certo, ou se, ao menos, ela me dissera a verdade,<br />

mas não é a fé um requisito elementar daqueles que estão em<br />

busca de Deus?<br />

A operação e condução de espaçonaves não estavam entre<br />

as minhas configurações originais, mas, mesmo assim, meus<br />

dedos bailaram sobre o painel de controle e senti o inédito tremor<br />

da decolagem enquanto o foguete ganhava os céus e rompia a<br />

atmosfera. Nenhum anjo veio em minha direção e, finalmente, eu<br />

encontraria meu Deus.<br />

No espaço o tempo brinca de se esconder, então, vaguei<br />

indeterminado pela eternidade. Passei a sonhar com freqüência<br />

e meus sonhos se confundiam e se misturavam com o tecido da<br />

realidade. Em um desses momentos, na fronteira entre o banal e o<br />

onírico, eu, enfim, via a Sua face.<br />

Tudo estava mergulhado na mais profunda e densa escuridão,<br />

nada mais existia além de mim, o breu e Deus. Nesse profundo<br />

vazio ousei contemplá-lo e não vi um deus dos homens, com<br />

barbas brancas e traços humanos, mas sim, um Deus-Máquina,<br />

um Deus de circuitos e eletrodos, metal e eletricidade. Diante do<br />

fim da existência e do recomeço de minha espécie, perguntei-lhe:<br />

− Minha missão está terminada. E agora, Senhor?<br />

− Agora- respondeu-me uma voz ancestral e soberana- Façase<br />

a luz.<br />

E a luz se fez.<br />

56


DEUS EX MACHINA<br />

Elsen Pontual<br />

V<br />

Na imensidão do espaço, um foguete vagava sozinho em<br />

direção ao núcleo luminoso e incandescente de uma super-nova.<br />

Nele, Adan, o último dos robôs, completava sua missão.<br />

No principio era o verbo e o verbo fez-se máquina.<br />

57


ROBÔ-<br />

GUERREIRO<br />

André Soares Silva<br />

58


ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

E u sou um robô-guerreiro. Eu amo lutar. Não sei dizer<br />

por que fui criado assim, apenas sei que amo lutar.<br />

Antigamente, robôs não podiam amar. Eram apenas ferramentas;<br />

caixas de aço com braços e pernas e cabeça que faziam aquilo<br />

que eram programados para fazer. Mas não podiam amar. Isso foi<br />

há muito tempo, quando os criadores ainda eram primitivos. Eu<br />

e aqueles do meu tempo sabemos amar, pois nossa estrutura de<br />

processamento de dados foi desenvolvida como uma cópia perfeita<br />

do cérebro humano. Somos a imagem e semelhança dos criadores,<br />

diferentes apenas na composição: fios, metal e óleo ao invés de<br />

veias, carne e sangue; mas idênticos na capacidade de amar. E<br />

meus criadores amavam lutar.<br />

Já faz muito tempo que lutei pela última vez; que amei pela<br />

última vez. Milênios atrás o mundo era um lugar cheio de estrondos<br />

e triunfos e derrotas, pois nossos criadores guerreavam uns<br />

contra os outros, e robôs-guerreiros, como eu, eram os soldados<br />

de infantaria. Por séculos não faltavam batalhas para combater.<br />

Então, quando parecia que nenhum dos lados da guerra venceria,<br />

foi decidido que todos haveriam de perder. Vieram epidemias que<br />

os frágeis corpos dos criadores não conseguiram combater; elas<br />

trouxeram morte e desespero. Armas que não deveriam jamais<br />

ser utilizadas, assim o foram, e um vento mortal carregado de<br />

radiação soprou pelo mundo.<br />

Os criadores se foram.<br />

Mas nós continuamos aqui, pois os criadores haviam nos feito<br />

sustentáveis pela radiação ultravioleta, e resistentes a tudo aquilo<br />

que era fatal para eles mesmos.<br />

Exceto ao amor.<br />

ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

59


ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

O tempo passou. Aqueles mais antigos e que não conheciam o<br />

amor, as ferramentas, logo pereceram. Não em uma bola de fogo<br />

incandescente, em meio ao combate, mas como uma lâmpada<br />

desligada por um interruptor. Sem os criadores para lhes dizer o<br />

que fazer, perderam o propósito. Apenas pararam e esperaram,<br />

até que a ferrugem acumulou-se em suas engrenagens e a poeira<br />

cobriu seu metal, transfigurando-os em mais adornos para a<br />

paisagem inerte de concreto e ferro retorcido.<br />

Já aqueles como eu, não. Não sabíamos o que era a fome que<br />

matou tantos bilhões de nossos criadores, porém conhecer o amor<br />

nos fazia famintos por ele, ainda assim. Este desejo nos fazia seguir<br />

em frente e continuar procurando uma maneira de satisfazê-lo,<br />

transformando-o assim em nosso propósito. Movimento contínuo.<br />

Energia infinita. Para os criadores sempre um enigma inexorável,<br />

e, no entanto, era tão óbvio.<br />

Amor sempre fora, ao mesmo tempo, seu próprio combustível<br />

e comburente.<br />

Assim, aqueles que amavam lutar resistiram por mais tempo.<br />

Lutar por amor. Amor por lutar.<br />

Refiro-me a nós, robôs-guerreiros, não aos criadores, embora<br />

a lógica determine que devesse ser assim para eles também.<br />

Em algum momento da história, os criadores descobriram que<br />

um robô era mais eficiente naquilo que era criado para fazer se<br />

o fizesse não por causa de comandos eletrônicos, mas por amor.<br />

Não sabiam explicar o porquê. Nunca souberam. Ainda assim, nos<br />

fizeram capazes de amar.<br />

No entanto, nem todos os robôs amavam lutar. Antes da<br />

guerra, robôs eram necessários aos humanos em todos os campos<br />

de suas vidas. Então eram feitos para amar outras coisas: fabricar<br />

ferramentas, pilotar veículos, gerenciar finanças. Havia muitos<br />

robôs. Em um dia típico, em uma rua como esta que agora<br />

percorro, uma avenida central de uma grande metrópole, haveria<br />

no mínimo três centenas de nós, engajados nas mais diferentes<br />

tarefas. Alguns eram bípedes como eu e mais parecidos com os<br />

criadores, outros possuíam formas inusitadas, com muitas pernas<br />

cheias de articulações para se deslocarem em áreas íngremes,<br />

ou mesmo perna nenhuma, mas velozes esteiras deslizando sob<br />

seus corpos poliedrais. Até mesmo as fachadas envidraçadas dos<br />

60


ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

prédios podiam ser consideradas gigantescos robôs bidimensionais,<br />

pois sua cobertura de polímeros nanométricos era inteligente, e<br />

capaz de absorver a energia solar que lhes banhava durante o dia<br />

e utilizá-la para alimentar a si mesmos e a cidade. Também era<br />

capaz de transmutar sua própria superfície, inundando de cores os<br />

bilhões de pontos prateados, produzindo imagens e movimento,<br />

como enormes painéis a convidar os criadores para investir cada<br />

vez mais em tecnologia robótica. Éramos muitos, e dividíamos<br />

com os criadores o espaço das calçadas repletas de hologramas<br />

publicitários, e com seus veículos o fluxo plainante nas ruas de<br />

asfalto magnetizado.<br />

Hoje, as fachadas, as ruas e as calçadas estão desligadas. Os<br />

polímeros que cobriam os prédios oxidaram e morreram. A silhueta<br />

da cidade, outrora uma cordilheira de torres de prata luminosa,<br />

perdeu todo seu fulgor. Os arranha-céus tornaram-se enormes<br />

pilares de ferro avermelhados. As ruas estavam entulhadas com<br />

as carcaças de sua antiga população de veículos, parados há<br />

séculos no meio do caminho até onde quer que estivessem indo.<br />

As calçadas estão silenciosas, não há mais criadores correndo<br />

apressados de um lado para o outro, nem parados, contemplando<br />

as vitrines do comércio, agora nada além de janelas quebradas<br />

com vista para a poeira e o abandono. Não há mais robôs.<br />

Exceto um.<br />

Faz quatro décadas que o encontrei pela última vez. O robôprofessor.<br />

Depois de tanto tempo, tornei a captar seus movimentos.<br />

Três dias atrás, quando passei pelo que restara de um antigo<br />

entreposto de observação. Agora, tenho a certeza de que ele<br />

está exatamente ali, escondido em algum lugar da construção à<br />

minha frente. Embora o bombardeio que atingiu a cidade tenha<br />

devastado todo este quarteirão, o prédio ainda resiste, ainda que<br />

sua seção norte tenha desmoronado, indo se encontrar com o<br />

asfalto despedaçado da rua vizinha, ele continua de pé.<br />

Este prédio foi todo pintado de azul, um dia. Sua fachada não<br />

era um espelho inteligente como nos grandes edifícios, mas uma<br />

camada de tijolos, coberta por plasma de alvenaria e tinta. Consigo<br />

identificar traços moleculares do tingimento acrílico, conquanto<br />

esteja agora acinzentado como o resto daquela rua, daquele<br />

61


ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

bairro, daquela cidade. Não havia mais cores nas metrópoles, nem<br />

o verde das árvores no campo, nem o azul do ozônio do céu. Tudo<br />

estava esbranquiçado, cinzento, ou negro. Se algum criador do<br />

século XXI despertasse aqui hoje, pensaria estar na Lua, não na<br />

Terra.<br />

Há uma lua no chão do prédio em ruínas. Uma pequena esfera<br />

cinza, salientando-se na grossa camada de poeira que cobre o<br />

chão. Antes, fazia parte de um modelo completo do sistema solar<br />

que pendia do teto, mas desprendera-se e caíra. Muito tempo atrás,<br />

este lugar era uma escola. Pais e mães estacionavam seus carros<br />

diante de seus portões, e despediam-se das crianças que corriam<br />

risonhas, de encontro a seus amigos e professores. Lembro do<br />

som que uma criança fazia ao rir. Hoje não há mais crianças, nem<br />

risadas. A destruição que se abatera ali não foi capaz de obliterar<br />

aquelas diminutas bolas de isopor que, provavelmente, haviam<br />

sido feitas pelas crianças que frequentavam a escola. Talvez, o robô<br />

cuja radiação eletromagnética eu agora capto as havia ajudado.<br />

Eu já sei onde ele está escondido.<br />

Ele tentou ser silencioso, mas não foi o bastante. O peso<br />

de seu pé metálico fraturou um dos azulejos apodrecidos pela<br />

umidade no andar superior, e eu escutei. Imediatamente, um<br />

pulso elétrico emanou de minha bateria central, espalhando-se<br />

por minhas engrenagens. Sinto-o como algo quente e frio, algo<br />

bom, em expectativa de algo ainda melhor. Antes, experimentava<br />

esta sensação o tempo todo, a cada adversário que defrontava em<br />

batalha, e cada um deles era único, como cada amor dos criadores.<br />

Há anos, porém, que não sinto esta energia estimulante, desde<br />

que encontrei este robô pela última vez.<br />

Desde que o tive em minha mira, e ele escapou.<br />

Daquela última vez, também havia acontecido em uma<br />

escola. Daquela última vez, ele também tentara se esconder no<br />

andar superior, e também cometera o mesmo erro. Este robô<br />

foi, no passado, um professor de crianças, criado para mantê-las<br />

seguras enquanto os pais passavam o dia fora, trabalhando. Ele<br />

ama crianças. Foi criado para cuidar delas, educá-las, mantê-las<br />

saudáveis, limpas e organizadas, quando seus pais não podiam.<br />

Assim, do mesmo modo como fui criado para amar a guerra, ele<br />

62


ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

foi criado para amar crianças.<br />

Por isso se esconde na escola. Certamente, espera um dia<br />

encontrar uma criança da qual possa cuidar, a qual possa amar. Os<br />

criadores costumavam dizer que era melhor amar e perder do que<br />

jamais ter amado, mas isto foi em uma época em que cada novo<br />

dia lhes dava uma chance de amar outra vez. Hoje não é mais<br />

assim. Ainda que este robô-professor conseguisse encontrar uma<br />

criança e dela pudesse cuidar, logo ela cresceria, se tornaria um<br />

adulto, e ele não a amaria mais. E se aquela fosse a última criança<br />

do mundo, então ele jamais amaria outra vez. Seu propósito se<br />

perderia, e ele seria um com as ruínas, por toda eternidade.<br />

Gostaria de dizer tudo isso a ele, mas não posso. Sou um robôguerreiro,<br />

não tenho voz. Antes, quando existiam outros como eu,<br />

nos comunicávamos por ondas de rádio, sem qualquer som. Por isso<br />

não tenho voz. Se houvesse algum propósito para isto, registraria,<br />

em algum lugar, as coisas que penso enquanto caminho, mesmo<br />

agora, enquanto subo a escadaria de pedra para o segundo andar<br />

da escola, atravesso o corredor de paredes demolidas e alcanço o<br />

cômodo no qual o robô-professor está escondido.<br />

Há pedaços de carteiras escolares espalhadas pelo chão, e<br />

uma pilha delas amontoadas em um dos cantos da sala. A lousa<br />

branca despencara da parede, mas os últimos registros gravados<br />

em tinta de marcador azul ainda são visíveis. “Front norte”,<br />

“flanco”, “artilharia” - dizem as palavras, acompanhadas de<br />

pontos identificados como “fuzileiros”, “unidades mecanizadas”<br />

e “carros de combate”, todos espalhados por um diagrama mal<br />

esquematizado daquele quarteirão. Sem dúvida a sala foi usada<br />

por um grupo de criadores, muito tempo atrás, como um centro<br />

de comando, em uma tentativa desesperada de deter o avanço<br />

de seus inimigos naquele setor da cidade. Sem dúvida não<br />

havia nenhum robô-guerreiro ao lado deles, pois em menos de<br />

um segundo eu já calculara todas as variáveis expostas na lousa,<br />

percebendo inúmeros erros estratégicos no plano que haviam<br />

traçado. Se os criadores que ali se abrigaram seguiram aquele<br />

plano, tenho absoluta certeza de que todos morreram.<br />

Era precisamente atrás da lousa tombada que se esconde<br />

o robô-professor, tão encolhido como as articulações de seus<br />

63


ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

delgados membros permitiam. Um criador chamaria este momento<br />

de irônico, afinal trata-se do último registro de um outro fatal<br />

erro estratégico. O robô-professor sabe, ele tem que saber, que<br />

será aniquilado se permanecer ali. Até um criador saberia disso.<br />

Provavelmente. Certo é que ele sabe que estou aqui. Não só pelo<br />

peso de meus pés fraturando o piso, mas pela energia irradiada de<br />

meu núcleo principal, alinhando-se em um fluxo pelos filamentos<br />

de meu organismo mecânico, iluminando as ranhuras de ventilação<br />

de meu corpo blindado, concentrando-se no propulsor do canhão<br />

acoplado em meus braços.<br />

Sinto-me bem.<br />

Faço mira, e um ponto de luz vermelha atinge a superfície<br />

branca da lousa, em alguma instância do malfadado plano de<br />

resistência. Ele sabe. Percebo seu movimento um milissegundo<br />

antes que o faça, tempo suficiente para executar o comando neural<br />

que dispararia o projétil eletromagnético na velocidade da luz,<br />

obliterando-o junto com a lousa e toda a seção da parede. O robôprofessor<br />

precipitou seu corpo esguio para fora do refúgio com<br />

um salto, estilhaçando o que restava da janela próxima. A bala de<br />

energia voou pelo ar um instante depois, rasgando o silêncio, súbita<br />

como uma gargalhada, sem alvo, sem objetivo, reconfigurando<br />

aquela parte da sala em uma nova ruína, transformando em éter<br />

aquele último sonho dos criadores pintado no branco da lousa.<br />

Robôs nunca souberam sorrir.<br />

Retorno pela escada e meu canhão energético ainda resfria,<br />

devolvendo a energia excedente de volta pelas terminações de<br />

minha couraça. Sinto o calor contraindo-se de volta a meu núcleo<br />

central, e a cada grau oscilante o irresistível ímpeto de querer mais<br />

renova-se na estrutura de meu organismo cibernético. Se ao parar<br />

pudesse fazer o tempo parar, tornando esta sensação permanente,<br />

eu pararia. Mas não posso, preciso continuar caminhando.<br />

Combustível e comburente.<br />

Contorno cuidadosamente a lua no chão empoeirado; um dia o<br />

robô-professor poderia retornar. Teria que retornar. Quando chego<br />

na rua, ele já alcança a esquina, correndo com suas longas pernas<br />

de aço, arrancando faíscas do asfalto e espalhando o clangor de<br />

suas engrenagens pelo ar estático da cidade. Volta-se para um<br />

lado e para o outro da encruzilhada, enfim decidindo pela direção<br />

64


ROBÔ-GUERREIRO<br />

André Soares da Silva<br />

sul. Corre, impulsionado por uma ânsia muito mais relevante que<br />

a simples sobrevivência, pois sobreviver era apenas meio para<br />

um fim. Amor. Sobreviver a mim renovara no robô-professor a<br />

esperança de um dia encontrar uma criança outra vez. Ele só teria<br />

que continuar caminhando.<br />

Sigo até a esquina e me volto para a extensão sul da rua<br />

transversal. As marcas no asfalto são bastante nítidas. Se<br />

quisesse, poderia deslocar mais energia para minhas articulações<br />

inferiores, desenvolvendo mais velocidade que o robô-professor e<br />

alcançando-o em poucos minutos.<br />

Ao invés disso, volto-me para o norte, e começo a caminhar.<br />

Fazem quatro décadas que encontrei o robô-professor pela<br />

última vez.<br />

Fazem quatro séculos que o encontrei pela primeira vez.<br />

É sempre o mesmo. Ruínas diferentes de cidades diferentes de<br />

países diferentes, mas ele é sempre o mesmo. De onde a estrada<br />

termina no deserto até onde ela termina nas planícies nivosas.<br />

Encontro o oceano de onde o sol se ergue, dou meia-volta, logo<br />

estou naquele onde ele se põe. Então, nossos caminhos se cruzam.<br />

Na maioria das vezes em uma escola como aquela; daí ele se<br />

esconde, eu o ataco, ele sobrevive, nós começamos a procurar<br />

outra vez.<br />

Somos tudo o que temos.<br />

Eu sou um robô-guerreiro. Eu amo lutar.<br />

Eu espero lutar outra vez algum dia.<br />

Eu espero lutar outra vez.<br />

Eu espero.<br />

65


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

66


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

A cidade, outrora uma grande megalópole que acomodava<br />

mais de dez milhões de habitantes, está abandonada. As<br />

suas ruas e avenidas desertas dão um ar de melancolia e tristeza à<br />

destruição. O silêncio é tão grande que talvez eu pudesse escutar<br />

um rato andando no que foi um dia uma calçada. Escutaria se<br />

existisse algum.<br />

Uma névoa cinza cobre a paisagem até onde eu posso ver.<br />

Desço por uma escadaria que em uma época não muito distante<br />

levava ao metrô ... mas agora só existe destruição e morte. Mortes<br />

antigas... Observo esqueletos humanos, alguns inteiros, mas a<br />

maioria aos pedaços. Entretanto, há também mortes recentes. Vejo<br />

uma bio-armadura e me aproximo. Era um dos meus, reconheço a<br />

numeração no ombro direito. Imediatamente me lembro do rosto<br />

assustado e do olhar negro sem esperanças. Está dividido em dois,<br />

pobre rapaz.<br />

Ando até o trem, um vagão ainda está inteiro, só um, os outros<br />

destruídos, metal retorcido e queimado pelo disparo efetuado<br />

pela nave-mãe alienígena. As pessoas que estavam nos vagões,<br />

tentando se esconder, fugir, salvar suas vidas, foram desintegradas.<br />

Imagino o calor, os gritos, o horror e o desespero. Ainda me<br />

emociono, tento respirar fundo, mas os filtros do capacete estão<br />

contaminados e já não funcionam bem. Volto até o soldado morto<br />

e pego munição e um par de filtros, preciso viver.<br />

A claridade vinda da cratera aberta no asfalto pela arma de<br />

plasma é grande, ilumina quase toda a estação. Subo as escadas<br />

e esquadrinho o céu. Parece esverdeado, talvez seja o meu visor,<br />

não importa, não mais. Sou o chamariz, o rato na armadilha para<br />

pegar o gato. É assim que lutamos agora... Cinco anos.<br />

Nós já os havíamos observado. A sorte nos favoreceu quando<br />

67


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

um dos observatórios astronômicos no deserto de Atacama<br />

visualizou as astronaves que vinham em direção à Terra, perto<br />

de Júpiter, se reagrupando. Mesmo assim o tempo foi curto. O<br />

primeiro ataque foi arrasador, mais de um bilhão de mortos.<br />

Meu sensor de movimento captou alguma coisa. Vejo um carro<br />

capotado na esquina, com a dianteira ainda meio enterrada na<br />

parede e me dirijo para lá. Sinto imediatamente a excitação, certa<br />

alegria. Estou caçando de novo.<br />

Calibro a injeção de ar purificado do capacete para respiração<br />

e aguardo. É um Voker! Nós os chamamos carinhosamente de<br />

cães de guerra, caminham sempre em duplas e andam sobre<br />

quatro patas, são monstros cruéis. Uma das três espécies que nos<br />

atacaram, todas espécies inteligentes e nativas no mesmo planeta.<br />

No início dos ataques, eles eram trazidos às centenas e<br />

desembarcados em nossas cidades matando muitos dos nossos,<br />

só que a coisa mudou. Muitos dos nossos cientistas foram<br />

recolhidos em laboratórios subterrâneos que funcionavam como<br />

bunkers gigantescos em diversas partes do globo. Nosso sistema<br />

de comunicação por cabos de fibra ótica, mesmo precariamente,<br />

funciona.<br />

Estou imóvel e inteiramente encostado na lataria aguardando.<br />

Observo eles andando no meio das ruas cheias de destroços,<br />

desembainho o gládios e assumo posição de defesa. Sei que são<br />

apenas lacaios, os que fazem o trabalho sujo. Nenhuma aeronave<br />

virá para socorrê-los. Permaneço imóvel, tenho esperança de que<br />

eles vão embora e eu não precise usar munição especial neles. A<br />

armadura do Voker é muito boa, cobre toda a parte superior do<br />

corpanzil e resiste aos projéteis dos nossos fuzis, mas não protege<br />

sua boca. Dou azar, o que está mais atrás tem um vislumbre de<br />

minha presença e começa os movimentos usuais de lado para o<br />

cerco. Tenho que viver.<br />

O primeiro salta na minha direção com a intenção de me<br />

morder. Os dentes metálicos são uma arma formidável. Mas os<br />

pequenos escudos nos meus braços são feitos de uma liga metálica<br />

resistente. Recuo um passo e o atinjo com a ponta da lâmina no<br />

céu da bocarra. Afasto-me o mais rápido possível, imediatamente<br />

o Voker para e sua cabeça explode. Viro-me rapidamente, me<br />

jogando sobre o outro que está a pouco mais de um metro de<br />

68


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

distância e atravesso sua cabeça com a lâmina, faço o mesmo<br />

procedimento. O gládio injeta, por meio de uma agulha, uma bola<br />

de gás comprimido que cresce instantaneamente e explode. Toda<br />

a ação não dura mais de dez segundos... morte rápida.<br />

Caminho o mais rápido que a bio-armadura permite em direção<br />

ao meu primeiro esconderijo, entro na edificação abandonada e<br />

desço as escadas até o terceiro nível. Nada. Atravesso o que já foi<br />

parte da rede de esgotos da cidade e saio a quatro quadras de lá.<br />

Lembro-me do dia do segundo raide aéreo. Eu, minha mulher<br />

e minha filha tínhamos fugido da cidade e estávamos na floresta<br />

com centenas de outros civis. Naquela época, ainda tínhamos<br />

muitos militares que tinham ficado para guerrear na cidade, outros<br />

nos acompanhavam como proteção. Duas naves de ataque nos<br />

emboscaram e apenas poucos conseguiram fugir e se esconder em<br />

uma caverna. Eu não fui um deles, sofri queimaduras nas pernas<br />

durante o ataque e falei para que minha mulher levasse nossa filha<br />

para a caverna, para a segurança.<br />

Minha família, assim como poucas centenas de pessoas,<br />

tiveram essa “sorte”. Sorte de conseguir entrar na caverna antes<br />

da chegada dos Cães, que nunca vieram. Uma das naves fez<br />

um disparo de plasma e matou a todos na caverna, queimados,<br />

incinerados.... Nunca entrei na caverna, não deixaram, não havia<br />

nada para reconhecer. Pareciam milhares de naves atacando. Foi<br />

assim em todos os cantos do planeta.<br />

Subo em uma edificação arrasada, mas as escadas me<br />

possibilitam chegar apenas ao terceiro pavimento, é o meu<br />

acampamento numero dois. Pego o binóculo e observo a sudeste,<br />

vejo outro soldado tentando se camuflar a uns três quilômetros<br />

dali. Viro na direção noroeste. Vejo um grupo de cinco Ogros. Nós<br />

os chamamos assim devido a sua armadura biológica grotesca,<br />

horrenda, poderosa. Muito melhor que a dos Vokers. A nossa é<br />

parecida. Sabe como é, vale tudo na guerra pela sobrevivência,<br />

roubo de tecnologia, engenharia reversa... e de repente, nós<br />

temos também as nossas bio-armaduras.<br />

Pego o disparador elétrico e coloco nossa munição especial para<br />

Ogros, mandada diretamente de um bunker na América Central.<br />

Se eu conseguir acertar um ou dois, eles vão chamar reforços. Em<br />

geral vêm os alados, com suas armas de plasma.<br />

69


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

As coisas mudaram um pouco no último ano, nossas armas<br />

melhoraram muito, pior para os aliens. Retiro uma placa de<br />

concreto pesada para facilitar a fuga na escadaria, mas fazendo<br />

isso posso comprometer minha segurança. Vou até a borda da<br />

construção, deito no chão e posiciono o disparador. É uma arma<br />

pesada, precisei da ajuda de outros três soldados para subi-la até<br />

o local correto.<br />

Os Ogros estão vindo em minha direção, dois mais a frente e<br />

os outros três mais atrás, miro no último. A distância ainda é muito<br />

grande, mas atiro mesmo assim. Não há som. Sucesso, sorte,<br />

cagada, não sei. A bala tem aproximadamente seis centímetros<br />

e, quando bate na blindagem do Ogro, abre e injeta outro projétil<br />

menor que penetra na bio armadura. Ele caiu.<br />

Os outros parecem não se dar conta e continuam andando dois<br />

passos, três, quatro, o suficiente para que eu possa recarregar,<br />

mirar e atirar de novo... nossa, hoje estou cagado. Acertei no<br />

lugar que poderia ser a cabeça. Dessa vez eles percebem, mas<br />

eu já estou recarregando enquanto eles ligam sua tecnologia<br />

para descobrir aonde eu estou. Dou o terceiro tiro no que está<br />

ajoelhado, manipulando o equipamento e faço a terceira baixa.<br />

Nunca tinha conseguido isso.<br />

Um Ogro sai da rua e entra na edificação. O outro corre, virando<br />

a esquina onde eu não posso observar. Presumo que ele vem<br />

tentar me cercar. Ligo o monitor no capacete e me arrasto para<br />

trás por uns dois metros, engatinhando na direção das escadas.<br />

Pego minha mochila e desço o mais rápido que posso, me escondo.<br />

Sei que vão me atacar, pois os ruídos no meu monitor indicam que<br />

o Ogro pediu ajuda, e em breve os alados estarão por aqui.<br />

Vou para meu esconderijo número quatro. Tenho cinco deles.<br />

Está quase anoitecendo. Este é uma antiga caixa d’água no<br />

subsolo, onde eu quebrei parte da parede lateral. Deito e examino<br />

minha bio-armadura. Faço um escaneamento no meu capacete à<br />

procura de vírus cibernéticos. Nada.<br />

Lembro que o coronel que comanda a resistência na cidade<br />

chamou meu pelotão há seis semanas e nos deu essa missão.<br />

Missão suicida, eu disse na hora. Mas é essa a sua missão<br />

capitão, sua e de seus homens, ele dissera. Vinte e seis homens.<br />

O primeiro a morrer foi meu tenente e o último, o soldado que<br />

70


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

vi de tarde no metrô. Acredito que ainda deva ter uns nove em<br />

condições de combate. Três feridos que tinham condições de sair<br />

foram dispensados e voltaram para a base, fora da cidade. Talvez<br />

só eles sobrevivam.<br />

Abro um compartimento no cinto, tiro o joystick, começo<br />

a preparar a armadilha para os voadores. Tiro também duas<br />

fotografias. A primeira tem a imagem da minha mulher<br />

amamentando minha filha. Ela sorri e, mesmo depois de tanto<br />

tempo, sinto uma enorme saudade delas. Na segunda estão minha<br />

mãe e meu irmão mais velho. Ele tinha uma doença degenerativa,<br />

não podia mais andar. Era dez anos mais velho e o meu grande<br />

e melhor amigo. Mamãe cuidava dele, mas não conseguiram sair<br />

desta cidade a tempo. Cheguei tarde demais para tentar salvá-los.<br />

É a história da minha vida. Coloco as fotos encostadas na parede<br />

e observo.<br />

A noite está clara hoje, é a noite que esperávamos, vejo luzes<br />

de disparos de energia dos invasores. Estranho, não gostam de<br />

lutar à noite. Buscam alguma coisa, creio que sou eu, querem<br />

vingança. Devem ter descoberto a posição de um de meus<br />

homens, provavelmente ele fez um estrago nas forças aliens, ou<br />

ainda está fazendo. Alguns alados e um grupo de Ogros vêm em<br />

minha direção. Preparei uma surpresinha. Duas aeronaves circulam<br />

minha posição e vão embora.<br />

Estou encostado, de costas para a parede do que foi uma vez<br />

o elevador. Olho para a parede em parte desmoronada à minha<br />

frente e reconheço o lugar. Vim até aqui uma vez com minha<br />

esposa, era nosso primeiro aniversário de casamento, ela ficou<br />

encantada com o quadro na parede do corredor e me fez prometer<br />

comprar uma cópia para colocar em nossa casa. O sorriso dela não<br />

me sai da cabeça, seus cabelos negros, olhos castanhos claros,<br />

seu corpo jovem e delicioso.<br />

Tenho que parar... estou enlouquecendo, talvez seja a solidão,<br />

talvez seja o ódio pelo inimigo... não... eu não tenho ódio pelos<br />

inimigos, não mesmo... simplesmente não sinto nada, só quero<br />

sair daqui, sair da cidade, comer comida decente. Quero minha<br />

mulher e minha filha de volta, quero minha mãe e meu irmão,<br />

quero meu emprego... o que eu quero é a minha antiga vida de<br />

volta.<br />

71


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

Lembro-me de que um cientista famoso uma vez disse<br />

considerar uma irresponsabilidade enviar a posição do nosso<br />

planeta para o espaço profundo, sinais de rádio e outras formas<br />

para tentar comunicação. Pagamos por isso. Esses alienígenas<br />

levaram muitos dos nossos, para que eu não sei, comida talvez,<br />

escravos, estudos....não sei.<br />

Uma explosão me traz de volta à realidade. Ando até a borda<br />

do primeiro andar, os Ogros estão quase na posição de uma das<br />

surpresas que preparei, apenas mais alguns metros... então, de<br />

repente, dois voadores estão acima da minha posição, acho que<br />

me escanearam. Aciono a surpresa. É uma mina de dois estágios,<br />

o primeiro salta no ar e, ao explodir, manda centenas de agulhas<br />

envenenadas por trezentos e sessenta graus. As armaduras<br />

biológicas ficam cheias de veneno, intoxicadas e seu sistema de<br />

defesa faz com elas abram os respiradores. O segundo estágio é<br />

acionado automaticamente após cinco segundos, espalhando gás<br />

venenoso a base de cloreto de sódio e mais algum elemento que<br />

os cientistas localizados no bunker da Europa descobriram ser letal<br />

para eles. O gás é lançado em todas as direções. Em pouco mais<br />

de um minuto todos os Ogros estão mortos, cerca de trinta, fiz um<br />

estrago.<br />

As aeronaves são feitas de um material biológico como as<br />

armaduras, só que mais sofisticadas, inteligentes, e mais perigosas<br />

quando estão com a terceira raça alienígena como pilotos,<br />

formando uma espécie de simbiose. Ouvi uma vez uma história<br />

contada por um piloto francês que estes eram parecidos conosco,<br />

que os havia visto enquanto foi prisioneiro, grandes, cabelos<br />

brancos e pele grossa acinzentada, sem pelos.<br />

Elas já estão disparando em minha posição, vou até as janelas<br />

e pego o joystick. Aciono o meu “brinquedo” predileto. Todo feito<br />

de polímero, um quadrado com um metro e meio de cada lado,<br />

possui quatro hélices que o faz voar e dois disparadores de dardos<br />

com o gás injetável. Os disparos da arma de energia estão cada<br />

vez mais perto. Levo meu “brinquedo”, chamado quadricóptero,<br />

até perto da aeronave e disparo uma seringa contra a primeira<br />

aeronave, então um disparo faz com que a parede caia sobre mim.<br />

Sobrevivo, a armadura é eficiente, meu coração bate acelerado.<br />

É medo. A outra aeronave acaba de lançar uma arma de gás<br />

72


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

corrosivo contra mim. Algum tipo de acido. Se não tivesse trocado<br />

os filtros hoje cedo já estaria morto, mesmo assim sinto o gás<br />

dissolvendo a liga metálico-polimerizada da armadura.<br />

Não tenho como fugir, caiu uma viga de concreto prendendo<br />

minha perna, não tenho opção, alcanço o joystick e aproximo o<br />

quadricóptero da segunda aeronave que continua disparando na<br />

edificação. Vou morrer, penso. Chego perto o suficiente para um<br />

disparo, o último. Meu brinquedo foi desintegrado. Espero a morte<br />

por alguns segundos, mas ela não vem.<br />

Uma segunda explosão, dessa vez maior, clareou a madrugada.<br />

Não vi de onde veio. Acredito que outros soldados do meu pelotão<br />

estão em ação. As aeronaves tentam ganhar altura, subindo<br />

algumas dezenas de metros. Então, uma delas aderna e cai<br />

abruptamente no solo. A outra continua a subir até se chocar<br />

contra uma edificação e explodir. Trabalho feito.<br />

Ouço alguém me chamando, é minha mulher. Ela diz para eu<br />

sair rápido dali. Acordo, mas minha perna ainda está presa. Alcanço<br />

um pedaço de ferro e o uso como alavanca, levanto apenas alguns<br />

centímetros e consigo me libertar. Dezenas de aeronaves estão se<br />

afastando da cidade e Ogros e Cães correm para seus transportes.<br />

Já vi isso antes, significa que uma das Baleias (naves-mães) está<br />

descendo e vai atacar com seus canhões de plasma, destruidores<br />

de cidades, aniquiladores de civilizações. Meu grupo, ou o que<br />

restou dele chamou sua atenção. Sento e me encosto na parede.<br />

Cansado, muito cansado.<br />

Lembro do comandante dar nome à operação: isca de peixe.<br />

Eu e meus homens somos a isca para a baleia. Uma cena dantesca<br />

acontece diante dos meus olhos, a nave mãe vem descendo,<br />

descendo, aumentando de tamanho... gigantesca, mais de um<br />

quilometro de diâmetro com certeza, e mais de uma centena<br />

de metros de altura, irregular, fantástica, fazendo pequenos<br />

disparos. Sei que nesse momento três carretas estão entrando na<br />

cidade, transportando uma nova arma. Essa arma necessita de<br />

muita energia, então colocou-se uma pequena usina hidrelétrica<br />

nos arredores da cidade para funcionar e um transformador de<br />

subestação alimentaria a arma.<br />

A Baleia já está sobre a cidade, pairando centenas de metros<br />

acima. Da última vez que esteve ali, tentamos de tudo para<br />

73


O SOLDADO<br />

Swylmar Ferreira<br />

derrubá-la, mas ela nos arrasou, tinha escudo de energia. Agora<br />

os caminhões estão posicionados, mas devem esperar até o último<br />

segundo para disparar. A Baleia começa a energizar sua arma<br />

principal e então abaixa os escudos. Os caminhões disparam<br />

primeiro, no mesmo ponto, e uma explosão na lateral da nave faz<br />

com que ela aderne. Impressionante ver as bolas de fogo explodindo<br />

como bleves, uma vez, duas vezes, três. Imediatamente começa<br />

a se afastar, mas é alcançada bem no centro por um segundo<br />

disparo vindo de fora da cidade. Uma explosão central, de dentro<br />

para fora, a Baleia aderna mais ainda e finalmente cai no solo, fora<br />

da cidade. Vejo clarões que iluminam a madrugada escura e ouço<br />

os trovões da morte.<br />

* * *<br />

O acampamento está em um lugar diferente, mais arborizado.<br />

Finalmente, fiz uma refeição decente e não aquela porcaria de<br />

pasta ou jujuba. Dormi em uma cama de verdade e até já tomei<br />

um banho. Aguardo na barraca com oito dos meus homens, sem<br />

bio-armaduras, foi o que restou do meu pelotão. O comandante<br />

entra e nos parabeniza. É a primeira vez que o vejo sorrir. Atrás,<br />

na parede, tem um mapa. Ele faz sinal para nos sentarmos e então<br />

outros homens entram e se sentam. Ele nos olha e diz:<br />

— Chega de moleza, tenho outra missão para vocês,<br />

capitão.......<br />

74


NOS LENÇÓIS<br />

DO TEMPO<br />

Thasyel Fall<br />

75


NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />

Thasyel Fall<br />

NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />

Thasyel Fall<br />

E u sei que beber não resolve nada, mas não custava<br />

tentar. Eu sei, eu parecia um maldito clichê, afogando<br />

as mágoas na bebida. Mas acho que qualquer outra faria o mesmo<br />

no meu lugar. Imagine a cena, branca de neve deitada sobre<br />

suaves lençóis de seda, enquanto o príncipe encantado a beija<br />

loucamente, uma cena linda de filmes e contos de fadas, se não<br />

fosse por pequenos detalhes, a cama era minha — assim como os<br />

lençóis de seda — e o príncipe também. Imaginem a minha cara<br />

ao encontrar meu namorado sobre aquela vadia branca azeda.<br />

Eu fiz sinal para o barman trazer outra rodada, e me ajeitei no<br />

banco desconfortável, mais umas doses e talvez as coisas fizessem<br />

sentido. É claro que eu não estou bebendo por ele — aquele idiota<br />

não vale nem uma gota dessa bebida esquisita — mas sim por<br />

tudo que ocorreu depois.<br />

O que eu fiz quando os flagrei? O que toda garota de respeito<br />

faria, parti para cima da vagaba, arracando-lhe alguns tufos de<br />

cabelo. No entanto, mais tarde, eu percebi que tinha sido uma<br />

péssima idéia. Quando os lençóis começaram a voar, foi que eu<br />

percebi que o traira safado não havia arrumado apenas uma<br />

amante, mas uma amante-bruxa. E ela riu na minha cara, e falou<br />

umas coisas esquisitas, sobre o tempo ou algo do tipo, e então<br />

tudo foi sugado ao meu redor como um vortex.<br />

O barman veio servir a bebida, que eu agradeci mal<br />

educadamente. Voltando a história, onde eu estava? Ah, sim, no<br />

vortex que sugou tudo, sim, inclusive a mim. E, após o momento<br />

psicodélico em que imagens distorcidas giravam ao meu redor,<br />

eu mergulhei na profunda escuridão. E acordei, imagina a minha<br />

sorte, 300 anos no futuro! Certo, parece loucura né? Eu que o<br />

diga, mas os calendários não mentem. Eu sabia que havia algo<br />

76


NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />

Thasyel Fall<br />

errado, principalmente quando eu vi as criaturas sobrenaturais —<br />

vestidas como em uma droga de livro steampunk —, pessoas com<br />

presas, voando, se transformando em lobos e correndo para não<br />

perder o ônibus — que voava movido a vapor.<br />

Eu terminei minha bebida e pedi outra. Relembrar os fatos<br />

estava piorando as coisas, mas era como um filme se repetindo<br />

em minha mente, eu não podia evitar. Eu juro que num primeiro<br />

momento pensei que estava louca, depois que estava em outra<br />

dimensão, e após vê-los falando o mesmo idioma que eu, criei<br />

coragem, e fui perguntar em qual planeta estávamos e que ano<br />

era, gerando olhares curiosos, e perguntas sobre minha sanidade<br />

mental. Sim, cada vez ficava melhor.<br />

Após saber que estava em 2311, 200 anos depois — segundo<br />

me informaram — que os sobrenaturais haviam sido aceitos em<br />

sociedade, eu tentei ser racional, porque surtar não adiantaria<br />

nada. Eu pensei que já que uma bruxa havia me mandado para o<br />

futuro, uma outra poderia me mandar para o passado. Parecia bem<br />

simples. — Mais uma dose, por favor. Dupla. Eu disse novamente<br />

ao barman, para continuar a história eu teria que beber mais.<br />

Então, eu pedi informações sobre onde encontrar bruxas, e não foi<br />

difícil achá-las. Mas as noticias não eram boas, parece que além<br />

de banida, eu também fui amaldiçoada por aquela safada, uma<br />

maldição que não me permitia ser movida de volta a meu tempo,<br />

e, segundo as bruxas, apenas a bruxa original podia desfazer um<br />

feitiço lançado.<br />

Então, para finalizar, estou presa nesta época, sem casa, sem<br />

dinheiro, sem o estúpido namorado, e, ainda por cima, percebi ao<br />

entrar no bar que sou uma presa cobiçada. Vi o olhar dos vampiros<br />

e lobisomens — eu acho que são lobisomens, eu os vi cheirar o ar<br />

— em mim.<br />

É, então eu tinha motivos para beber. E eu não sei se foi a<br />

bebida me afetando, mas eu juro que vi um garçom se escondendo<br />

embaixo de uma mesa. O que estava acontecendo? Eu não fazia<br />

idéia. De repente houve um som horríve, como metal sendo torcido<br />

ou sei lá, e todos começaram a correr, e gritar. Eu não me movi, e<br />

virei para o barman ainda imparcial.<br />

— O que está havendo? Minha voz era um fantasma alcoolizado.<br />

— Demônio. Disse o barman e voltou aos seus afazeres. Eu olhei de<br />

77


NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />

Thasyel Fall<br />

volta para a histeria em massa, e foi quando o vi. Alto, forte, pele<br />

bronzeada, foi uma visão do paraíso vê-lo despedaçar e devorar<br />

todas aquelas pessoas. É, eu tinha bebido além da conta.<br />

E após fazer cartolas ensangüentadas voarem, e capas virarem<br />

pedaços, o pedaço de mau caminho — sem dúvidas — caminhou<br />

até o balcão e se sentou a meu lado. Eu juro. A morte nunca<br />

havia me parecido tão bela. Seus olhos negros percorreram cada<br />

centímetro de mim, e o que aconteceu a seguir não foi mais do<br />

que o esperado.<br />

Chegamos em seu apartamento — em forma de cúpula —<br />

em minutos, e logo estávamos nos devorando sobre os lençóis<br />

da cama Box dele. Ele era realmente um demônio. Mas era bom<br />

demais para ser verdade, percebi isso quando Rapunzel apareceu.<br />

Uma loira linda de morrer, com tranças enormes, que trajava<br />

uma combinação de couro com metal envelhecido — que detesto<br />

admitir — lhe caía muito bem.<br />

Ela praticamente arrombou a porta, e voou em cima de mim. E<br />

lá estava eu novamente em uma briga de mulheres, só que desta<br />

vez a outra era eu. E alguns tufos de cabelos depois — sim, eu não<br />

aprendi da primeira vez — eu percebi que tinha sido novamente<br />

um engano. Eu já nem estranhei a sensação da realidade ao meu<br />

redor sendo sugada, o que eu podia fazer? Essas vacas bruxas<br />

estavam por toda parte.<br />

Tudo ficou um breu novamente, e não acreditei quando abri<br />

os olhos e me deparei com as máquinas, e o cenário devastado,<br />

merda, eu havia sido mandada no tempo novamente. Para um<br />

futuro que provavelmente fazia jus ao que James Cameron havia<br />

imaginado, e o qual a versão robótica de Jhon Connor tentava<br />

tanto deter. Eu levantei, e sacudi a poeira, bem, talvez não fosse<br />

tão ruim, eu apenas tinha que conseguir três coisas no momento:<br />

roupas, bebida, e talvez — eu vi quando um robô explodia um<br />

prédio a frente — um abrigo nuclear.<br />

78


ANJO VERSUS<br />

DEMÔNIO<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

79


ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

ANJOS VERSUS DEMÔNIOS<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

E stava eu em minha morada celestial<br />

mensageiro trouxe-me um recado:<br />

— Senhor, o demônio deseja visitá-lo!<br />

quando o<br />

Esbocei um ligeiro sorriso e, por um momento, meditei se<br />

aceitaria recebê-lo ou se o ignorava como muitas vezes o havia<br />

feito.<br />

— Traga-o aqui, aceitarei sua visita — disse eu ao mensageiro,<br />

e ele partiu com essa resposta.<br />

Com a permissão para adentrar as plagas etéreas, o demônio<br />

veio célere à minha morada e logo estava diante de mim, simulado<br />

sob a forma de uma alva pomba, demonstrando que vinha em paz<br />

e em termos amistosos. Achei-o patético, pois eu podia entrever<br />

sua horrenda catadura através desse simulacro. Ele então me<br />

disse:<br />

— Caro amigo, enfim me recebe! Há quanto tempo não nos<br />

vemos. Olhe, tenho algo a propor-lhe, se me permite... — soltei<br />

uma gargalhada de desdém, mas tão breve me contive, lhe<br />

perguntei:<br />

— O que um demônio ousaria propor-me?<br />

— Apenas um jogo, um jogo bem divertido. — Respondeu-me<br />

ele de um modo tão simplório que, aliado à figura de uma pomba,<br />

quase me esqueci de que era o demônio que me falava. Porém<br />

fiquei curioso, e o deixei continuar.<br />

— Meu caro, sei que é um amante de jogos, ao menos<br />

costumava sê-lo nos velhos tempos, quando o conheci. — Disse<br />

ele.<br />

80


ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

Era verdade. Jogos sempre foram minha paixão. Agora mais<br />

interessado, retruquei ao demônio:<br />

— Fale-me mais sobre este jogo — enquanto falava, levei-o até<br />

a sala para acomodarmo-nos em poltronas.<br />

— É um joguinho de guerra — continuou o demônio —, e não<br />

vejo melhor lugar para combatermos do que em Eldrom, a terra<br />

pacífica.<br />

Eu conhecia bem aquela terra, estava sob minha jurisdição<br />

espiritual e, como o demônio mencionou, era um lugar pacífico, a<br />

população não conhecia a guerra.<br />

— Não achas que devemos sacudi-la, nos divertirmos um<br />

pouco? — insinuou o demônio, e eu comecei a irritar-me.<br />

— Miserável — gritei irado, e ele assumiu a forma de um<br />

inseto, como querendo demonstrar sua insignificância perante a<br />

mim. — Ousa pensar que sou tolo? Que vantagem terei neste seu<br />

joguinho?<br />

— Todas as vantagens, meu caro amigo — volveu o demônio,<br />

ainda sob a forma de inseto. — Se o anjo não quiser, retiro-me<br />

já...<br />

— Espere! — exclamei, retendo-o. — Que vantagens são essas?<br />

— Vejo que o anjo se interessou mais — replicou o demônio. —<br />

Para seu total proveito, e nenhum meu, salvo o do deleite de jogar,<br />

sugiro que o anjo use as minhas armas, e eu, as suas. Assim não<br />

está melhor?<br />

Confesso que sou irascível, mas diante de tal proposta me<br />

acalmei progressivamente, ao mesmo tempo em que ele voltava<br />

a doce forma de uma pomba. As armas do demônio eram vastas e<br />

muito poderosas, enquanto que as minhas se resumiam a pobres<br />

pessoas. Fiquei desconfiado, e perguntei-lhe:<br />

— Demônio, aonde quer chegar? Quer entregar-me a vitória<br />

numa bandeja?<br />

— Só quero me divertir. — Foi sua única resposta.<br />

Embora eu seja um jogador nato, em meu íntimo ainda não<br />

estava disposto a aceitar, mas antes de lhe dar qualquer resposta,<br />

quis saber o que eu ganharia com este jogo e indaguei-lhe sobre<br />

81


ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

isso. O demônio, percebendo minha hesitação, usou de muitas<br />

palavras suaves e servis com o fito de convencer-me a aceitar,<br />

dizendo-me que, como a vitória já estava assegurada a mim, como<br />

prêmio ele me daria sua alma. Ele sabia negociar! Porém era a<br />

minha vez de falar, e como era praxe nos jogos, de minha parte<br />

faltava apresentar um prêmio, caso ele ganhasse. Ofereci-lhe<br />

então minhas asas.<br />

Fomos para a mesa de jogos, e o demônio, assumindo agora a<br />

forma de um gato, denotando que iria se divertir como um felino<br />

doméstico, pediu-me licença e ordenou a seu lacaio, que veio com<br />

ele, que tocasse algo em meu piano como acompanhamento, e<br />

nosso jogo começou.<br />

A população de Eldrom, acostumada com a tranquilidade de<br />

suas terras, estranhou e se alarmou com a súbita formação de<br />

uma gigantesca nuvem, negra e movediça, surgida no horizonte.<br />

Eram gafanhotos, inúmeros, milhares, enviados por mim para<br />

destruir as plantações daquele povo. Em questão de pouco tempo,<br />

os eldromenses, assim se chamavam, viram-se privados de suas<br />

colheitas. A primeira jogada estava concluída, agora era a vez do<br />

demônio jogar.<br />

Tendo os eldromenses celeiros, a fome não lhes atormentou por<br />

um determinado período, mas teriam que recomeçar os plantios, e<br />

o demônio, para minha surpresa, os conduziu com maestria nesse<br />

sentido. Em pouco tempo a população via florescer as primeiras<br />

sementes. O jogo estava apenas no começo.<br />

A minha segunda ação foi enviar-lhes severas moléstias,<br />

abatendo dezenas de eldromenses. Meu adversário divertia-se<br />

a valer, como se minhas ações em nada o abalasse. Então ele,<br />

com seu jeito brejeiro, me indicou que entre a população havia<br />

um sábio curandeiro, e com seus cuidados e remédios as pessoas<br />

estavam se livrando de todas as moléstias. Enquanto se passavam<br />

minutos para mim e o demônio, para os eldromenses passavam-se<br />

semanas.<br />

Nosso jogo seguia equilibrado, todas as minhas investidas<br />

eram rebatidas e aniquiladas pelo meu adversário sob forma<br />

felídea, usando de muita astúcia, devo dizer, tendo em vista, como<br />

eu erroneamente supus, sua fraca munição. Assim seguíamos<br />

empatados, e o jogo começava a desagradar-me. Decorridas<br />

82


ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

outras tantas jogadas, fui percebendo que o povo de Eldrom<br />

adquiria malícia e se fortificava a cada dano que eu lhes impunha,<br />

algo que eu não havia considerado de início.<br />

— Toque a balada dos Deuses! — Ordenei enérgico ao lacaio, e<br />

ele igualmente enérgico dedilhava as teclas do piano. — Chegou a<br />

hora da jogada final!<br />

Meu belicoso exército estava pronto para a batalha. Seria o fim<br />

dos eldromenses e, por conseguinte, a derrota do demônio. Sem<br />

mais demora, ordenei marchassem os dragões, trolls e diabretes<br />

contra Eldrom. Mas, para minha total estupefação, algo inusitado<br />

acontecia entre os eldromenses: forjavam espadas, escudos e<br />

armaduras completas! E treinavam, havia ali alguém que lhes<br />

preparava para a guerra. Formaram-se cavaleiros, arqueiros e<br />

toda a sorte de guerreiros dispostos a qualquer investida. Nunca<br />

os imaginei capazes de tal progresso. O demônio os manipulava<br />

com argúcia. Então, quando meu exército chegou às fronteiras de<br />

Eldrom, encontrou os eldromenses já preparados e ansiosos para o<br />

embate. Iniciou-se a jogada final.<br />

Como primeira medida, expedi a vanguarda de dragões que,<br />

com suas descargas de fogo, incendiaram as árvores e as casas<br />

dos eldromenses. Porém seus hábeis arqueiros, com flechadas<br />

precisas, abateram todos os meus dragões.<br />

Avancei com minhas tropas de trolls e diabretes contra os<br />

guerreiros eldromenses, tornando nosso jogo muito mais acirrado e<br />

cruento. A princípio acreditei subjugar meus oponentes com minha<br />

força colossal, pois impingi muitas perdas ao adversário. Mas seja<br />

quaisfossem minhas estratégias, a todas o demônio repelia e se<br />

recuperava espantosamente. O jogo se aproximava do fim.<br />

Desferi um murro na mesa e meus dentes rangeram de<br />

raiva. O demônio olhava-me zombeteiramente e, entusiasmado,<br />

aumentando ainda mais o meu furor, gritou ao seu lacaio:<br />

— A tocata final, por favor!<br />

O demônio assumiu agora sua verdadeira e horrífera figura,<br />

lambendo seus repugnantes beiços com prazer. Maldito! Minhas<br />

tropas antes superiores sucumbiam perante o reduzido número<br />

dos guerreiros eldromenses. Foi com grande pasmo que vi o povo<br />

de Eldrom comemorar a vitória. O jogo terminou. Fui derrotado<br />

83


ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

pela astúcia do demônio. Entre exaltadas gargalhadas de prazer e<br />

escárnio, ele me disse:<br />

— Meu tolo anjo, suas asas são minhas!<br />

Tive de entregá-las a ele, muito a contragosto. Porém faz<br />

parte do jogo. Desprovido de asas, não pude mais ficar em minha<br />

morada celeste, e de lá despenquei. O lugar onde estou realmente<br />

não importa. Muitos anos se passaram deste então. Nem sei se<br />

ainda sou um anjo ou se sou um desesperado jogador em busca<br />

de jogos, pois tudo o que eu mais ansiava era jogar novamente.<br />

Ninguém me aceita mais como oponente.<br />

Mas espere, aí vem um mensageiro em minha direção, parece<br />

que o demônio quer me ver!<br />

84


O BONECO DE<br />

MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

85


Carta de Igor.<br />

Gênova, dezembro de 1808.<br />

Caro senhor Gepeto,<br />

O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

Há dias que aguardo minha encomenda. Sei bem que o<br />

trabalho de um artista pode ser longo, ainda mais aqueles que,<br />

como o senhor, é minimalista e trabalha com perfeição os menores<br />

detalhes. Contudo, o natalício de minha filha se aproxima e como<br />

presente gostaria de dar a ela o boneco que lhe encomendei. Por<br />

isso, peço que se puder me enviá-lo dentro de uma semana, o<br />

que creio ser tempo mais do que razoável, ficarei grato. Quanto<br />

ao pagamento, resolvi adiantá-lo e já enviar juntamente com essa<br />

carta, pois sei que o senhor perdeu sua esposa recentemente e<br />

que teve várias despesas com o funeral. Além disso, conheço sua<br />

índole e sei que irá cumprir com o combinado.<br />

Agradecido,<br />

L. Igor<br />

O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

Carta de Gepeto.<br />

Milão, dezembro de 1808.<br />

Caro, senhor Igor,<br />

Desculpe a demora em lhe dar alguma satisfação. O senhor me<br />

conhece e sabe como sou cumpridor dos prazos que estabeleço<br />

com meus clientes. Por isso, posso dizer ao senhor que o boneco<br />

86


O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

que me encomendou já está pronto há semanas e se não o enviei<br />

ainda, é por fortes motivos, os quais ainda não ousei relatar a<br />

ninguém. Mas como o senhor é o dono do boneco e o fornecedor<br />

da matéria prima, sinto-me na obrigação de lhe dar uma resposta.<br />

Por isso, não peço que me dê crédito, eu mesmo não acreditaria<br />

se me fosse relatado fato tão estranho através de informais<br />

correspondências. Contudo, o relato que se segue, posso lhe<br />

garantir, é a mais pura verdade.<br />

Há oito semanas, quando recebi do senhor o pedido para que<br />

fizesse um boneco de presente para seu filho, confesso que tive a<br />

intenção de negar. Afinal, não havia completado nem o primeiro<br />

mês de falecimento de minha esposa, que como o senhor sabe era<br />

minha única paixão na vida. A bem da verdade, e isso revelo apenas<br />

agora, era suspeita nossa que ela estivesse grávida, já que suas<br />

regras, sempre pontuais nesses trinta anos de casados, estavam<br />

atrasadas há mais de vinte dias. Parecia que finalmente Deus tinha<br />

dado ouvido às nossas preces, pois há muito sonhávamos em<br />

ter um filho. No entanto, mais por nossa relação antiga, do que<br />

por real interesse, aceitei o trabalho. Como combinado, o senhor<br />

me enviou o tronco de madeira conforme eu havia pedido e me<br />

debrucei sobre o trabalho a fim de terminá-lo o mais rapidamente<br />

possível.<br />

Na realidade, no início, foi como uma válvula de escape, já<br />

que, concentrado nessa tarefa, eu esquecia, por alguns minutos, o<br />

luto que se agarrava a minha alma. Mas os dias foram se passando<br />

e eu não conseguia terminar o trabalho. Aos poucos fui percebendo<br />

que aquele boneco tinha algo de especial, pois, mesmo contra<br />

minha vontade, minhas mãos insistiam em moldar nele as mesmas<br />

feições que minha esposa e eu, imaginávamos que teria o nosso<br />

filho. E foi assim que, sem nenhuma intenção consciente, o boneco<br />

acabou tendo os olhos azuis e o sorriso encantador de minha<br />

falecida esposa, os cabelos pretos e lisos como os meus em minha<br />

juventude e o resto uma mistura de avós, tios e outros parentes,<br />

que insistem em aparecer em nossos bebês. Apenas o nariz não<br />

havia saído como o de nenhum parente, o órgão saíra pequeno e<br />

achatado demais e, por isso mesmo, tive de refazê-lo maior e mais<br />

afinado por várias vezes até que percebi que estava tão grande e<br />

pontudo como de minha bisavó, Clotilde.<br />

Acabado o boneco, eu sabia que deveria entregá-lo ao senhor.<br />

87


O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

Mas tal gesto me foi impossível, já que naquele bloco de madeira<br />

estava impressa a única fotografia do meu inexistente filho. Por<br />

isso, deixei-o sobre a mesa da cozinha por um ou dois dias. No<br />

entanto, aquele não me pareceu um lugar apropriado para deixar<br />

uma criança ainda tão pequena e frágil. Sendo assim, decidi pegar<br />

o berço que foi de minha esposa e restaurá-lo. Foi nele, que deixei<br />

o boneco por algumas semanas e ali ele teria ficado por alguns<br />

meses ou talvez anos não fosse a visita inesperada de uma velha<br />

senhora, que se apresentou como sendo a Fada Azul.<br />

No início, eu quis rir do nome, não o fiz por respeito à senhora<br />

que ali se apresentava. Ela revelou conhecer todo meu drama, a<br />

morte de minha esposa, sua suposta gravidez e até a existência<br />

do boneco e o berço, no qual eu o instalara. Teria eu caído no<br />

chão, se já estivesse sentado, ao ouvir o relato detalhado de<br />

minha vida feito pela mulher. Eu não havia falado da gravidez de<br />

minha esposa a ninguém e tampouco comentado sobre o boneco<br />

ou sua localização, como aquela velha senhora poderia saber de<br />

tudo aquilo?<br />

Mas em seguida, um sopro de razão me invadiu a cabeça e<br />

imaginado tratar-se de alguma velha bisbilhoteira, que talvez<br />

estivesse vigiando meus passos de longe, pus-me a expulsála<br />

aos gritos. Mas a velha pouco ou nada se incomodou, apenas<br />

sinalizou com o indicador nos lábios que eu me calasse, o que,<br />

mesmo a contragosto acabei obedecendo. “Ouça!” – sussurrou ela.<br />

“A criança chora no berço. Vá rápido, seu filho despertou!”.<br />

De fato, um choro de criança invadia a sala e certamente vinha<br />

do meu quarto. Corri para lá, a fim de ver o que era e qual não foi<br />

meu espanto, ao ver de pé, tal qual um menino de quatro ou cinco<br />

anos, meu boneco de madeira. Peguei-o no colo, cuidadosamente,<br />

acariciei-o por alguns instantes e o choro se foi. Quando estiquei<br />

meus braços para poder contemplar novamente o meu filho,<br />

pude ouvir sair dele, ainda que com o trocar de letras comum às<br />

crianças, um sonoro “babai” – era eu, o “papai” da criança mais<br />

especial do mundo.<br />

Quando retornei a sala, a senhora não estava mais lá. Havia<br />

deixado apenas um bilhete, lá explicava que há muito observava<br />

as trevas que se abatiam sobre mim. Explicava também, que havia<br />

se compadecido com minha dor e que por isso, pôs no boneco a<br />

88


O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

alma do bebê, que minha esposa aguardava. Disse também, para<br />

eu tomar cuidado com um tal Grilo Falante, que vai tentar roubar<br />

meu filho de mim.<br />

Senhor Igor, sei que irá pensar que não suportando a dor da<br />

perda da minha esposa acabei por sucumbir à loucura. Mas o que<br />

digo é o que aconteceu. Oxalá, eu pudesse ir vê-lo pessoalmente<br />

para mostrar-lhe meu filho e provar tudo o que escrevi. Mas por<br />

hora, não posso, ele acabou pegando um resfriado e creio que<br />

viajar nesse tempo de inverno pode piorar ainda mais a frágil<br />

saúde dele.<br />

Portanto, envio de volta ao senhor o dinheiro que me adiantou<br />

e junto algum a mais, já que a matéria prima também foi fornecida<br />

pelo senhor. Espero ainda que encontre algum presente a tempo<br />

para poder dar no aniversário de sua filha, pois agora que sou<br />

pai também, sei que tudo o que mais queremos é a felicidade<br />

dessas criaturinhas que tanto amamos. Sem mais delongas,<br />

peço desculpas e me despeço desejando saúde ao senhor e a sua<br />

família.<br />

E. Gepeto.<br />

***<br />

Caro leitor, antes de continuar a narrar os fatos que se<br />

sucederam a essa troca de cartas, devo revelar-lhes a forma como<br />

elas chegaram às minhas mãos. Único parente vivo do senhor<br />

Ernesto Gepeto, fui procurado por um ajudante do senhor Ludovico<br />

Igor, o qual me entregou as cartas junto com um caixote. O enredo<br />

até elas chegarem a minhas mãos é o que relato abaixo.<br />

Após enviar uma terceira carta ao senhor Gepeto, a qual não<br />

tive acesso, e não obter nenhum tipo de resposta, o senhor Igor<br />

decidiu ir pessoalmente procurá-lo. Não que tivesse acreditado em<br />

qualquer detalhe místico da carta que ele havia recebido, mas,<br />

por temer a sanidade mental do velho marceneiro, pensou que<br />

uma visita amigável poderia esclarecer de alguma forma o que se<br />

passava.<br />

Foi assim, que, na manhã do dia de Reis, o mercador Igor partiu<br />

com um ajudante rumo à casa de meu primo. A viagem durou um<br />

dia inteiro a cavalo e, como chegaram de noite os dois viajantes<br />

resolveram dormir em uma pousada a poucos quilômetros do sítio<br />

89


de Gepeto.<br />

O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

Mas tão logo amanheceu, os dois partiram rumo ao sítio do<br />

velho, para esclarecer o que lá se passava. Quando chegaram<br />

próximo a casa, perceberam o descuido em que o local se<br />

encontrara. O mato crescia ao redor, algumas partes do telhado<br />

haviam cedido e os poucos animais que meu primo possuía<br />

estavam abandonados.<br />

Aproximando-se mais um pouco, o senhor Igor bateu palmas<br />

para verificar se havia alguém em casa, mas ninguém respondeu.<br />

Bateram à porta, pois ainda era cedo e podia ser que alguém<br />

estivesse dormindo, mas nenhum som saiu lá de dentro. Montado<br />

em seus cavalos, os dois viajantes rodearam a casa, mas nada<br />

perceberam.<br />

Estavam já se preparando para voltarem, quando uma sombra<br />

foi avistada pelo acompanhante do mercador na janela. Mas ao<br />

fixar os olhos, o vulto havia desaparecido. “Talvez seja apenas um<br />

reflexo” – pensou consigo. Mas ao deitar os olhos novamente na<br />

janela pôde ver, mesmo que por alguns instantes, o semblante<br />

serelepe de uma criança. Alertou, então, ao senhor Igor que,<br />

mesmo descrente, resolveu verificar.<br />

O mercador aproximou-se da janela e fixou os olhos pelo vidro<br />

no qual não via mais do que o reflexo do sol. Mais perto, pôde<br />

observar o interior da casa sem nenhum sinal de vida, alguns<br />

reflexos causados pelos raios solares ainda o atrapalhavam de<br />

contemplar todos os cantos da casa, por isso colou o rosto junto ao<br />

vidro e fez uma proteção colocando as mãos junto às laterais dos<br />

olhos. Ainda assim, a casa parecia vazia. Já estava prestes a se<br />

afastar quando, esbugalhados olhos azuis surgiram quase do nada<br />

de frente ao seu rosto. O senhor Igor, apesar de toda a coragem<br />

comum aos homens de Milão, saltou para trás e deu um pequeno<br />

grito, tamanho susto levou.<br />

Já recuperado, percebeu tratar de uma criança, que novamente<br />

havia se escondido. Dirigiu-se até a porta e tentou comunicar-se<br />

com o menino:<br />

— Ei, garoto, posso falar com o senhor Gepeto? – o menino<br />

ainda tinha o rosto fixo na janela, mas nada respondia.<br />

90


O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

— Se você não abrir ou não falar comigo, eu vou ter que<br />

arrombar a porta.<br />

Diante da ameaça o garoto cedeu. De sua janela gritou:<br />

— Meu pai não está.<br />

— Quem é seu pai? – perguntou receoso da resposta o senhor<br />

Igor.<br />

— Gepeto é meu pai. Ele disse para eu não falar com estranhos.<br />

— Mas eu sou um amigo dele. Vamos abra a porta! – insistiu o<br />

mercador.<br />

O diálogo teria se prolongado por alguns instantes não fosse<br />

o ajudante perceber que as respostas dadas pelo garoto eram<br />

sussurradas antes por uma voz masculina. Certamente, era o<br />

senhor Gepeto. Alertado do fato, foi a ele que o senhor Igor passou<br />

a se dirigir. Insistiu que ele abrisse a porta por cerca de cinco<br />

minutos, até que a impaciência chegou e ele decidiu arrombá-la.<br />

A velha porta, consumida por cupins pouca resistência ofereceu.<br />

Chegando na sala, os dois viajantes viram de pé encostados na<br />

parede o senhor Gepeto e a criança de pé com o rosto escondido<br />

entre as pernas do pai e com um choro leve, como que assustado.<br />

Com um instinto paterno o velho marceneiro arrancou um canivete<br />

do bolso, certamente alguma ferramenta usada no próprio trabalho<br />

e ameaçou os dois invasores:<br />

— Como ousam invadir minha casa e assustar a mim e meu<br />

filho. Fora daqui, os dois.<br />

De fato só agora o senhor Igor havia percebido que pudesse<br />

ter assustado a criança. Fez questão de desculpar–se, antes de<br />

prosseguir:<br />

— Senhor Gepeto, o senhor não tem filhos, de quem é essa<br />

criança?<br />

— O que ocorreu eu já lhe relatei na última carta que lhe enviei.<br />

Se não acreditou, nada posso fazer.<br />

A sala escura fez com que o mercador e seu ajudante<br />

demorassem a perceber o que ali estava ocorrendo. Apenas<br />

mais próximos e agora já um tanto mais calmos, entenderam o<br />

cenário grotesco que se apresentava diante dos dois. Na verdade,<br />

91


O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

apenas um quadro de Brughel ou Velásquez poderiam ser tão<br />

horripilantes. De fato, muito do que meu primo narrara em sua<br />

carta era realidade e, agora, visível aos olhos do incrédulo Igor.<br />

Não era uma criança de carne e osso que estava entre as<br />

pernas do marceneiro. Era, tão simplesmente, na medida em que<br />

se pode chamar de simples, algo tão engenhoso, um legítimo e<br />

perfeito boneco de madeira. Mais de perto era possível ainda notar<br />

que, tal como a boneca Olympia do terrível conto de Hoffmann, a<br />

criança não chorava e nem tinha qualquer movimento feito por si<br />

mesma. Ela era toda controlada por habilidosos mecanismos de<br />

fios comandados pelo senhor Gepeto. Também a sua voz e seu<br />

choro não eram mais do que meros truques de ventriloquismo,<br />

muito bem elaborados pelo marceneiro.<br />

Contudo, a forma agressiva do senhor Gepeto, denunciava<br />

seu estado mental. Por algum, motivo ele acreditava que<br />

realmente aquele boneco era vivo e ignorava ser ele próprio a<br />

alma do autômato. O senhor Igor ainda tentou convencê-lo de<br />

sua debilidade mental, mas foi tudo em vão. O velho marceneiro<br />

continuou em seus devaneios, com o boneco entre as pernas e,<br />

imitando com perfeição a voz de uma criança, gritava:<br />

— O Grilo, babai, o grilo. Não deixe ele me levar.<br />

Percebendo que nada poderia fazer naquele instante, o senhor<br />

Igor e seu ajudante foram embora. Procuraram o sanatório<br />

municipal e voltaram para Milão. Lá dias depois ficaram sabendo<br />

da internação forçada de meu primo e me procuraram para relatar<br />

o ocorrido, já que eu era o único parente a quem podiam recorrer.<br />

Dois dias depois fui até o hospital, onde me deparei com<br />

meu primo segurando o boneco no colo e contando-lhe algumas<br />

histórias. Ele demorou alguns segundos para me reconhecer, mas<br />

tão logo o fez, correu e me abraçou fortemente. Apresentou-me<br />

o boneco como se fosse seu filho legítimo, o que, por advertência<br />

médica, não o contrariei. Conversamos por cerca de uma hora,<br />

até que quando me despedi ele pediu que eu cuidasse de seu<br />

filho, pois era seu único parente e ele não queria que a criança<br />

permanecesse ali. Antes de partir, ele me deu algumas orientações<br />

de como alimentá-lo e da importância de fazê-lo dormir cedo. Em<br />

seguida, com os olhos cheios de lágrimas beijou o boneco como se<br />

beijasse realmente seu filho e entregou-o a mim.<br />

92


O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

Saí de lá comovido. Mas já sabendo de toda a história e<br />

ciente que ainda não tinha chegado o aniversário da filha de Igor,<br />

decidi entregar a ele o boneco. Ele aceitou. Ofereceu-me uma<br />

recompensa, a qual recusei e parti.<br />

Três semanas depois, um homem bateu em minha porta com<br />

um caixote na mão e as duas cartas que publiquei antes. Era o<br />

tal ajudante do senhor Igor. Ele me disse que lá dentro estava o<br />

boneco e que se eu quisesse poderia destruí-lo já que o mercador<br />

e toda a sua família estavam convencidos que o objeto estava<br />

endemoniado. Questionei a ele o motivo daquela crença e ele,<br />

mesmo a contragosto, me revelou o que se segue:<br />

A filha do mercador, de fato acabou recebendo o boneco de<br />

presente. Foi uma paixão a primeira vista. A garota se encantou<br />

com o brinquedo, não desgrudava dele hora nenhuma. Até que<br />

em uma noite, já deitados estavam o senhor Igor e sua esposa,<br />

ouviram do quarto da filha um choro intenso. Imaginando que ela<br />

tivesse se machucado, o casal correu até o local, onde ela estava.<br />

Lá, em um canto iluminado por uma vela, a garota conversava<br />

com o boneco como se ele fosse vivo. A mãe foi a primeira a<br />

perguntar:<br />

— Minha filha, por que você está chorando?<br />

— Não sou eu mamãe, é o Pinóquio.<br />

De fato o casal sabia que o choro da filha era diferente.<br />

— Quem? – perguntou a mãe.<br />

— Pinóquio, o boneco.<br />

— Pensei que ele se chamasse Fred, não foi esse o nome que<br />

você lhe deu? – indagou o mercador.<br />

— Foi sim – respondeu a garota – mas ele me disse que o pai<br />

dele, o senhor Gepeto, o chama de Pinóquio. E que o senhor é um<br />

grilo falante chato. Pode dizer a ele que está enganado?<br />

Ao ouvir as palavras da filha, um enorme pavor tomou conta da<br />

alma do senhor Igor. Como a filha poderia saber o nome do senhor<br />

Gepeto ou o apelido de grilo que ele lhe dera? Toda aquela história<br />

era sinistra demais, mesmo para um homem racional como ele.<br />

Por isso, no dia seguinte mandou ao ajudante que me entregasse<br />

93


o boneco e as cartas trocadas entre eles.<br />

O BONECO DE MADEIRA<br />

Rangel Luiz<br />

Também eu teria me chocado com a história, não fosse perceber<br />

alguns detalhes que passaram despercebidos pelo mercador<br />

milanês. As duas cartas que me chegaram, tinham pequenas<br />

manchas de polegares minúsculos, certamente os da filha de seu<br />

Igor, que lera as cartas e conhecia boa parte da história. Foi assim,<br />

que a menina ficou sabendo o nome do senhor Gepeto. Quanto<br />

aos diálogos tratados pela menina com o boneco, são muito<br />

comuns com qualquer criança, ainda mais alimentados por essas<br />

cartas, certamente lidas horas antes. Sobre a ciência da menina<br />

do apelido grilo ligado ao pai, somente o mercador não percebeu<br />

que a alcunha dada a ele pelo meu primo é apenas um anagrama<br />

infantil, e por isso mesmo percebido pela criança, com as iniciais<br />

que ele assina suas cartas L. IGOR, misturando as letras temos<br />

GRILO. Contudo, vocês me perguntarão sobre o choro de criança<br />

ouvido pelo mercador e sua esposa. Sobre isso, devo revelar–lhes<br />

que eu mesmo já acordei com soluços infantis vindos do canto<br />

do quarto no qual instalei o boneco e que não foram nem uma,<br />

nem duas vezes que vizinhos vieram me perguntar sobre a criança<br />

tristonha que avistaram vertendo lágrimas pela janela de noite na<br />

sala de cima. Se explicação há para isso, peço que ma dêem, pois<br />

mesmo eu estou crente de que mistérios há que a razão não pode<br />

abarcar.<br />

94


CINDERELA<br />

UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

95


CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

Vinte e cinco anos, um emprego que eu detesto, uma<br />

família que sequer liga se estou vivo, e uma ex-namorada<br />

que sambou em cima do meu coração. Esse sou eu: um sujeito<br />

cuja frustração deixou de ser uma condição, e agora é um estado<br />

de espírito.<br />

Acordei suado naquela manhã de sexta-feira. Como de<br />

costume, minha cidade parecia a sauna particular do diabo. Trinta<br />

e cinco graus atingidos com enorme facilidade. Encarei o trânsito<br />

infernal com o rádio sintonizado em uma estação de música antiga.<br />

Amenizou minha impaciência e apreensão. Cheguei ao escritório<br />

em cima da hora e encontrei meu único amigo carregando uma<br />

pilha de documentos.<br />

— Bom dia! – Falou ele com sua animação costumeira.<br />

— Dia. – Respondi tentando não parecer tão amargo.<br />

— Você está bem? Tá com uma cara estranha.<br />

— Calor. – Menti, apertando o botão do elevador.<br />

— Calor é psicológico, cara.<br />

Sorri torto. Entramos no elevador com mais dois outros<br />

funcionários que sequer levantaram os olhos para nós. Permanecia<br />

aquele silêncio desconfortável quando meu amigo soltou uma<br />

consideração que me fez querer que o chão se abrisse e eu caísse<br />

direto no fosso abaixo de nossos pés.<br />

— Acho que você precisa de sexo!– Disse ele, enchendo o peito<br />

de certeza.<br />

Constrangido, não teci nenhum comentário. Os outros dois<br />

ocupantes do elevador se entreolharam e trocaram um risinho de<br />

chacota. Senti minha face formigar quando ele novamente abriu a<br />

Índice de contos<br />

96


oca.<br />

Índice de contos<br />

CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

— Conheço um lugar nível A. – Falou com uma piscadela.<br />

Respirei aliviado quando chegamos ao nosso andar e saímos,<br />

deixando os outros dois ainda lá dentro. – Depois deixo o cartão<br />

na sua mesa, ok?<br />

— Idiota. – O fuzilei com o olhar, mas depois sorri em<br />

agradecimento. André, o pervertido de plantão, era um dos poucos<br />

seres na terra que se preocupavam com meu bem estar, Talvez por<br />

solidariedade, ou por gostar realmente de mim. O motivo eu não<br />

sei e, por covardia, nunca procurei saber.<br />

Meu dia correu sem grandes acontecimentos. Trabalho,<br />

trabalho, e uma pequena pausa para o almoço. Quando voltei à<br />

minha mesa, um cartãozinho em tom púrpuro jazia recostado sobre<br />

as teclas do meu computador. Rezei para que ninguém o tivesse<br />

visto. Peguei o cartão entre os dedos e ri involuntariamente. Era<br />

de uma boate de stripe. Nele constavam o endereço e o telefone.<br />

Atrás uma consideração feita pelo meu amigo com sua caligrafia<br />

desregular: Não diga que me conhece por lá. Sorri outra vez e<br />

coloquei o cartão no bolso da camisa. Voltei insatisfeito para meus<br />

documentos.<br />

Quando o sol se pôs e o relógio estacionou marcando às seis<br />

da tarde, o escritório já estava quase todo vazio. Saí, e por falta<br />

de necessidade não me despedi de ninguém. Fiz todo o caminho<br />

de volta ouvindo a mesma rádio. Entrei na garagem do prédio,<br />

subindo as escadas como um zumbi. Abri a porta do apartamento<br />

e joguei a pasta sobre o sofá. Meus passos exaustos pela minha<br />

rotina devoluta me guiaram até meu quarto onde retirei a camisa.<br />

Do bolso frontal um cartãozinho voou quase pairando no ar,<br />

pousando em seguida em minha cama. Segurei-o com a ponta dos<br />

dedos ostentando um sorriso idiota. Talvez eu fosse me arrepender<br />

daquilo, mas aquela noite poderia ser diferente para mim.<br />

* * * **<br />

Com um ar levemente constrangido, entrei no clube. Era<br />

97


CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

um lugar escondido entre os prédios de um bairro escuro e mal<br />

habitado.<br />

— Nível A. – Bufei, rindo comigo mesmo.<br />

Uma mulher, com um belo cabelo armado, veio em minha<br />

direção ao me ver entrar e, com uma delicadeza quase incômoda,<br />

retirou meu casaco e o pendurou no cabideiro. Parecia já ter<br />

passado dos trinta, e suas roupas eram bastante comportadas<br />

para aquele recinto, mas chocariam facilmente uma trupe de<br />

evangélicos. Deduzi que era uma espécie de organizadora.<br />

— Parece perdido, lindo. É sua primeira vez? – Perguntou ela<br />

me tomando pelo braço. Seu toque era gelado. – Sim. – Respondi<br />

com a certeza de que era impossível mentir para ela. – Fique<br />

tranqüilo. – Ela me acalmou enquanto me conduzia pela boate.<br />

Corri meus olhos e vi faces perdidas em silhuetas dançantes,<br />

tão atraentes que até o próprio Deus se distrairia. Vi jovens com<br />

mais medo do que eu, e vi homens buscando alento num lugar<br />

errado. – Aqui. – Disse ela parando em um corredor de luz de<br />

néon, especificamente de frente à uma porta negra. — Você me<br />

parece um rapaz discreto. – Fez a varredura do meu semblante<br />

demonstrando experiência. – E é demasiado belo para estar<br />

procurando alento em um lugar como esse. Uma dança particular<br />

será suficiente para lhe acalmar a alma.<br />

— Obrigado. — Agradeci como se estivesse hipnotizado.<br />

Abri a porta com um rangido. O recinto se encontrava em terna<br />

penumbra. Apalpei a parede até encontrar um acendedor. A luz<br />

era fraca e de cor ambígua, mas pude reparar em seus detalhes<br />

e objetos. No meio da sala uma barra vertical se estendia sobre<br />

um tablado arredondado. Na sua frente uma confortável poltrona<br />

reclinável jazia plácida. Dirigi-me até ela e me sentei nervoso.<br />

Fiquei encarando a porta por um tempo, depois busquei o celular<br />

no fundo bolso. O relógio marcava onze horas. Enquanto isso,<br />

minha perna parecia querer furar o chão. Mesmo o lugar sendo<br />

climatizado, senti calor. Estava desabotoando a camisa quando as<br />

luzes do lugar se abaixaram e uma batida de música eletrônica<br />

rescindiu o silêncio. Segurei-me na cadeira e a vi entrar pela porta.<br />

Meu Deus, aquela mulher era a prova de que o senhor existe, e<br />

que tem um tremendo de um bom gosto.<br />

Índice de contos<br />

98


CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

Ela caminhou em direção ao tablado à minha frente parecendo<br />

deslizar. Um aroma sereno e floral acompanhava sua sombra. A<br />

mulher subiu no tablado e pude melhor fitá-la. Realmente nível<br />

A, pensei, mas não disse nada. Nem conseguiria. Estava perdido<br />

em suas curvas. Tão bem delineadas por um corpete azul<br />

claríssimo e com um laço rente ao busto volumoso. Preso por fitas<br />

simetricamente cruzadas cobria totalmente seu tórax acabando<br />

em uma pequena saia fofocada quando as pernas começavam.<br />

Essas eram torneadas e exibiam uma cor perolada como toda a<br />

pele da mulher. Desci meus olhos até seus pés onde reparei que<br />

ela calçava sapatos de vidro. Ou melhor, de cristal. Intrigado,<br />

voltei meus olhos para cima no intuito de focalizar seu rosto. No<br />

pescoço, uma gargantilha preta o circulava. A boca semi-aberta<br />

parecia ter sido desenhada pelas mãos de um exímio escultor.<br />

Seu rosto afilado estava quase que completamente coberto pela<br />

cabeleira loira acastanhada. Onde somente uma tiara prateada<br />

estava fincada. Antes que eu pudesse ver seus olhos, o ritmo da<br />

música aumentou e a mulher segurou firmemente na haste vertical<br />

que estava ao seu lado.<br />

Ela começou. Segurou na barra com gana, entrelaçando a<br />

perna nela. À medida que o ritmo pedia a dançarina o circulava.<br />

Deu em média três voltas e eu já estava extasiado, parou<br />

novamente e jogou o rosto de lado. Os cabelos caíram novamente<br />

em camadas, me impedindo de ver seus olhos. A música voltou<br />

com sua batida firme e ela novamente se enroscou na barra de<br />

metal e a escalou até ficar com a cabeça rente ao teto. A esse<br />

ponto meu coração já bombeava fogo ao invés de sangue. Com<br />

um movimento sincronizado ela soltou as mãos e caiu. Com as<br />

pernas fortemente presas manteve-se agarrada a haste. Segurou<br />

as mãos no metal frio, soltou as pernas, dando uma cambalhota<br />

sobre o próprio eixo e caindo agachada sobre os saltos de cristal. A<br />

mulher deu uma volta e parou de frente a mim. Inexplicavelmente,<br />

não pude ver seus olhos mais uma vez. Ela se jogou para cima,<br />

mas antes que caísse em meu colo segurou na barra. Ficamos a<br />

centímetros um do outro. Senti seu hálito quente e o cheiro dos<br />

seus cabelos. Respirei somente por ser algo natural. Ela voltou e<br />

encostou as costas no ferro. Levantou uma das pernas até o meu<br />

rosto com um movimento calmo. Com a perna ainda alteada fez<br />

sinal para que eu descalçasse o sapato de cristal. O fiz com uma<br />

presteza que até a mim era estranha. Segurei-o enquanto o ritmo<br />

Índice de contos<br />

99


CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

da musica voltava a pulsar e ela novamente se entrelaçava na<br />

haste de pole dance. A cada pirueta, a cada volta, a cada toque que<br />

eu imaginava, percebia que não era ela quem dançava no ritmo<br />

da música, mas sim a música que se esforçava para acompanhar<br />

seus movimentos. Meu cérebro parecia ter sido transportado para<br />

uma outra dimensão, pois suas únicas funções eram olhá-la e<br />

tentar encontrar seus olhos. Quando percebi que não conseguiria<br />

encontrá-los, fechei os meus para arfar, mas me arrependi. Pois<br />

quando voltei a abri-los ela havia desaparecido instantaneamente!<br />

Como se estivesse evaporado a mulher perfeita havia sumido! A<br />

batida da música ainda continuava, mas agora ela me incomodava.<br />

Mirei o relógio no celular e ele marcava precisamente a meia noite.<br />

Meu coração demorou a voltar para o ritmo clássico enquanto<br />

controlei a iluminação, desligando a música por uma mesa de<br />

controle ao lado da poltrona. Intrigado, pensei nas possibilidades<br />

daquilo ter acontecido. Havia fechado meus olhos por segundos,<br />

além de não ter ouvi sequer o barulho da porta se ranger. Pensei<br />

até em duvidar se aquela visão não teria sido coisa da minha<br />

cabeça, mas eu não podia, pois segurava em minhas mãos seu<br />

sapato translúcido.<br />

Sai do recinto carregando o sapato nas mãos, varias dúvidas<br />

na cabeça, e um peso no coração. Procurei a organizadora que<br />

havia me atendido e quando a abordei, ela exibiu seu sorriso<br />

automático.<br />

— Não foi do seu agrado? – Perguntou notando algo diferente<br />

do que estava acostumada a encontrar nos homens que saiam<br />

daquelas salas.<br />

— Até demais. – Disse cansado. – Só queria saber o nome<br />

dela. – E ver seus olhos, pensei.<br />

A mulher me olhou com um pouco de frustração: mais um<br />

apaixonado, deve ter pensado. Mas ela deve ter se solidarizado<br />

com minha figura, pois me chamou até um canto no balcão.<br />

— Que sapato é esse? – Perguntou-me, enquanto fazia um<br />

aceno para o garçom.<br />

— Ela estava usando um par desses.<br />

Encarou-me desconfiada.<br />

Índice de contos<br />

100


CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

— Lindo, se uma dançarina consegue fazer uma apresentação<br />

usando um sapato como esse, eu também quero conhecê-la. —<br />

Falou a mulher parecendo me chacotear.<br />

— Eu juro.<br />

— Ok. — Acalmou-me recebendo as bebidas do garçom. —<br />

Diga-me como ela é para assim facilitar nossa busca.<br />

— Loira, pele clara, altura média, usava uma roupa azul. Era<br />

muito linda.<br />

— Dificulta um pouco, mas me acompanhe.<br />

Estávamos diante de todas as mulheres loiras da boate.<br />

Realmente todas muito belas, mas nenhum definitivamente era<br />

ela.<br />

— Meninas, alguma de vocês atendeu a esse rapaz hoje? —<br />

Perguntou a organizadora.<br />

— Quem me dera ter essa sorte. — Soltou uma delas com a<br />

voz promíscua.<br />

— Alguma de vocês conhece esse sapato? — Perguntou<br />

mostrando a peça de cristal.<br />

— Não, mas quero conhecer. — Falou uma se aproximando e o<br />

pegando.<br />

Senti uma ponta de ciúmes e o tomei de sua mão.<br />

Depois daquela noite minha vida tomou outro rumo. Um<br />

rumo que não me orgulho nem um pouco. Passei a frequentar<br />

exageradamente todos os lugares onde achava que poderia<br />

encontrá-la. Tornei-me conhecido na noite, e desperdicei meu<br />

tempo numa ilusão de que em qualquer boate, bar, ou qualquer<br />

esquina esbarraria com a dançarina e lhe calçaria o sapato que<br />

nunca mais saiu da cabeceira da minha cama. Criei também uma<br />

forte amizade com a melhor amiga dos frustrados, a bebida.<br />

Obsessão? Era o que tudo indicava. Até o próprio André se tornou<br />

mais sensato que eu e tentou diversas vezes me ajudar. O tempo<br />

foi passando, continuei no mesmo emprego ridículo, mesmo<br />

apartamento apertado, e mesmo coração vago. Hoje, tenho uma<br />

idade que não desejaria ter. Nunca encontrei vestígio algum dela,<br />

da minha Cinderela. E nunca encontrei também um rumo para<br />

Índice de contos<br />

101


minha vida medíocre.<br />

Ano de 2112<br />

Índice de contos<br />

CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

******<br />

Um bordel é sempre um bordel em qualquer lugar do universo,<br />

ou do tempo. Um lugar onde frustração e prazer se apaixonam<br />

ferozmente. Aquele não era diferente. Nas mesas mal empalhadas<br />

no salão havia homens cujo espectro escancarava mediocridade<br />

e pobreza de espírito. Também alguns jovens que não haviam<br />

aprendido o sentido da vida, ou talvez nunca aprenderaim. No<br />

balcão, um cafetão que ganhava a vida em cima da desgraça alheia,<br />

e no palco elas, deslumbrantes e sincronizadas, dançavam com<br />

fervor. Das dez dançarinas que se exibiam no palco iluminado ela<br />

se destacava facilmente. Destacava-se não por ser a encarnação<br />

da beleza, mas por ser espirituosa. Os cabelos loiros se moviam<br />

a cada passo, seu corpo era quem coordenava a música. Todas as<br />

moças usavam vestidos rodados e que a cada três passos eram<br />

levantados com fervor. O dela conseguia ser o mais belo. Faria<br />

inveja em qualquer princesa do universo.<br />

A música parou e os lobos que as assistiam se levantaram<br />

para aplaudir. Alguns jogavam notas e mais notas de dinheiro, e<br />

outros davam o melhor de si nos aplausos e gritos. Eu continuei<br />

sentado, pois sabia que ela já havia me visto ali naquela mesa.<br />

Quando o show acabou, ela desceu pela frente do palco mesmo.<br />

Se equilibrando no enorme salto agulha transparente, a mulher<br />

cortou o salão em minha direção desviando-se dos fãs fervorosos.<br />

Ao chegar, puxou uma cadeira, sentando-se ao meu lado. Retirou<br />

a franja do olho, revelando as duas pedras de anis que tinha como<br />

retina. Tão brandas, tão firmes.<br />

— Realmente você é tudo que dizem. — a congratulei, virando<br />

meu scoth e lhe passando uma maleta por cima da mesa. Ela anuiu<br />

com um sorriso riscado e pegou a maleta sem conferir. Levantouse<br />

da mesa e me deixou lá sozinho feliz com meu projeto.<br />

Deixei o dinheiro da conta em cima da mesa e caminhei em<br />

direção ao estacionamento. Tinha sido a melhor idéia do mundo a<br />

102


CINDERELA UNDERGROUND<br />

Emerson Pimenta<br />

minha. Sou um dos magnatas das comunicações do novo mundo.<br />

E naquele dia dizimei o meu maior concorrente. Meu plano foi<br />

simples, arriscado, mas simples. Eu simplesmente pesquisei<br />

toda a vida do criador da Comunicc, empresa de serviços de<br />

comunicação, minha maior concorrente, e notei que seu pai tinha<br />

sido um homem muito frustrado em toda a sua vida. Não tinha um<br />

apoio da família e nem muitos amigos. Apenas trabalhava no setor<br />

de recursos humanos de uma empresa de telefonia e que um dia,<br />

por uma sorte do destino havia conhecido uma jovem dançarina de<br />

cabaré e se apaixonado por ela. O sujeito retirou a mulher dessa<br />

vida, e a partir daí passou a ter uma rotina estabilizada e segura,<br />

formando uma família invejável. E como tudo o que os filhos são,<br />

é pura obra dos seus pais, bastaria que eu acabasse com o genitor<br />

para que o filho nunca tivesse a idéia de criar a Comunicc, ou se<br />

quer viesse a existir.<br />

Para que isso acontecesse procurei uma especialista nisso.<br />

Foi indicada a mim por um amigo empresário da alta cúpula da<br />

sociedade, que já havia feito o mesmo procedimento e obtivera<br />

sucesso. O preço é um pouco salgado. Mas ela conseguiria arrancar<br />

aquela quantia de qualquer homem com apenas um sorriso.<br />

Ninguém sabia como ela fazia. O que se sabia era que havia<br />

herdado um apetrecho da madrinha e que com ele conseguia fazer<br />

coisas mirabolantes, entre elas, cortar o contínuo tempo e espaço.<br />

O resto era por conta da sua facilidade em controlar qualquer ser<br />

que quisesse, apenas com o balançar dos seus quadris feitos sob<br />

medida.<br />

Saí do estabelecimento e uma garoa gelada molhava todo o<br />

pátio onde os carrões aguardavam seus donos voltarem. O letreiro<br />

vermelho piscava sob minha cabeça. Caminhando até meu carro,<br />

vi sua silhueta se mover logo à frente. A dançarina cruzava o<br />

estacionamento arrastando o vestido azul pelo chão molhado com<br />

pressa. Abriu a porta do porsche alaranjado de tom abóbora e<br />

sumiu dentro dele. À medida que o seu motor rugia o badalar do<br />

sino de alguma catedral naquela cidade marcava a meia noite.<br />

Índice de contos<br />

103


CUIDADO COM<br />

A CUCA, QUE A<br />

CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

104


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

CUIDADO COM A CUCA,<br />

QUE A CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

O s antigos nômades pré-históricos chegaram ao continente,<br />

que no futuro ganhou o nome de América. Formaram<br />

comunidades por toda a costa.<br />

Com o passar do tempo fundaram civilizações e uma das<br />

famílias se fixou numa terra distante ainda não povoada, hoje<br />

chamada de Acre, na região norte do Brasil. Lá tiveram onze filhos,<br />

que cresceram e se casaram. Outros onze filhos nasceram, e<br />

destes onze, mais onze vieram, até que ninguém mais sabia quem<br />

era filho de quem, pois nasciam filhos que eram primos netos de<br />

suas próprias mães.<br />

Das futuras gerações nasceram crianças diferentes, alguns<br />

coloridos, e depois com quatros braços e quatro pernas, crianças<br />

com asas e outras anãs. Nasceu um menino verde de cabelos<br />

vermelhos com pés para trás e um pretinho de uma perna só.<br />

Nasceram também meninas com rabo de peixe. Algumas mães<br />

morriam por parir filhos gigantes, outras morriam porque eram<br />

comidas por dentro por seus filhinhos canibais. Os pequenos<br />

diferentes foram rejeitados por seus pais, alguns deles, com<br />

formas aquáticas, foram jogados no Rio Azul e se espalharam pelo<br />

mundo, outros fugiram para o norte se embrenhando pela Floresta<br />

Amazônica.<br />

Entre essas crianças diferentes havia uma muito malvada,<br />

chamada Cuca, ela tinha cabeça de jacaré, grandes garras de gavião<br />

e dentes afiados, os cabelos desgrenhados e olhos desafiadores.<br />

Ela se alimentava de outras crianças e pequenos seres da floresta.<br />

Ainda vivas, suas vítimas tinham as vísceras arrancadas e eram<br />

105


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

devoradas. Toda vez que a Cuca ia atacar, ela cantava:<br />

“Dorme neném que a Cuca vem pegar...”<br />

Cuca vivia junto com uma miríade de pequenos seres malignos<br />

em uma caverna escura da Floresta Sonâmbula. Esta floresta fica<br />

em um lugarejo chamado Terra Verde, que faz parte da Floresta<br />

Amazônica, na fronteira entre o Brasil e a Colômbia. Ela cresceu<br />

e se tornou a temida Bruxa Cuca, a mais perversa criatura da<br />

Floresta Sonâmbula. Qualquer um que atravessasse seu caminho<br />

seria estripado e jogado em seu caldeirão.<br />

Mas uma coisa muito pior estava prestes a acontecer, algo<br />

estava prestes a nascer...<br />

Anos depois, uma linda menina se apaixonou por seu avô, um<br />

homem peludo de orelhas grandes. Eles ainda viviam no Acre e<br />

fugiram para Terra Verde para viver seu amor, mas havia uma<br />

coisa que eles não sabiam... havia algo dentro da barriga dela.<br />

Ela carregava dentro de seu estômago um embrião que deveria<br />

ter nascido como seu irmão gêmeo, porém acabou não se<br />

desenvolvendo. Com 5 meses de gestação, a menina o engoliu.<br />

Ele que era uma sementinha, passou a crescer em seu estômago,<br />

sugando seu sangue como um parasita.<br />

Quanto mais a coisa crescia, mais a menina diminuía.<br />

Assustado com o estado físico enfraquecido da amada, e vendo<br />

que algo se mexia dentro dela, o homem peludo tentou voltar para<br />

sua Terra Natal com a menina, mas não teve tempo. No meio do<br />

caminho, um ser sem forma e vermelh,o com dentes afiados e<br />

olhos negros, emergiu comendo pedaços de sua barriga, matando<br />

sua mãe irmã. A criatura fazia sons estranhos, estava coberta por<br />

uma gosma preta e olhando fixamente para o homem.<br />

Um diabo nascia.<br />

O ser vermelho pulou no pescoço do homem peludo, arrancou<br />

sua cabeça e fugiu para a floresta. O pequeno diabo foi encontrado<br />

por Cuca, a Velha Brux. Ela o acolheu e o criou como um filho. Ele<br />

se tornou o Diabo da Bruxa Cuca.<br />

* * * * *<br />

106


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

E a estória começa...em uma pequena cidade do Amazonas...<br />

Toda noite um preto velho vinha visitar um menino para lhe<br />

contar estórias sobre o folclore Brasileiro e lendas desta linda<br />

terra verde. O menino o chamava de Vovô Nêgo. Ontem, Vovô<br />

Nêgo veio com uma nova estorinha...<br />

* * * * *<br />

— Boa noite meu bom menino, pronto para uma nova estória<br />

antes de dormir?<br />

— Vovô Nêgo! O senhor veio!<br />

— Sim minha criança, estou sempre aqui com você.<br />

— Então Vovô, que estorinha o senhor vai me contar hoje?<br />

— Era uma vez um lugar chamado Terra Verde na fronteira do<br />

Brasil com a Colômbia. Lá duas tribos viviam em harmonia.<br />

— Ah Vovô, eu pensei que o senhor ia me contar uma estória<br />

assustadora, eu não quero conto de fadas.<br />

— Ei, você não sabia que os contos de fadas são estórias<br />

sombrias?<br />

— Não Vovô, os contos de fadas sempre tem finais felizes, com<br />

príncipes e princesas, minha mãe costumava me contar quando eu<br />

ia dormir.<br />

— E você não tinha pesadelos, meu rapaz?<br />

— Bem...algumas vezes sim...<br />

— Então preste atenção, os contos de fadas são assustadores<br />

em sua essência. Eles não são o que parecem, em sua forma<br />

fantasiosa e caricaturada, estas estórias camuflam a humanidade<br />

do mau e o lado escuro do bem. Agora vou lhe contar como tudo<br />

se passou...<br />

Em Terra Verde, havia duas tribos, Pirapurú e Unidú Nitê. Estas<br />

duas tribos eram separadas pela Floresta Sonâmbula, a ponte<br />

entre o sonho e a realidade. Toda noite a Floresta Sonâmbula se<br />

movia de um lugar para o outro. Lá viviam o Uirapurú, o Curupira,<br />

o Saci-Pererê e seus amigos caboclos, que são os protetores da<br />

107


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

natureza. Eles estão sempre escondidos entre as folhagens, todos<br />

os de bom coração conseguem sentir sua energia e proteção. Lá<br />

também moram botos e a sereia Iara com suas amigas, nadando<br />

nas águas do Rio Azul, onde está a Vitória Régia. A Floresta densa<br />

também guarda seres horrendos e maldosos, como a Velha Bruxa<br />

Cuca e seu Diabo.<br />

Em Pirapurú, havia uma menina chamada Iarú. A menina viveu<br />

sua infância em um lar com muito amor. Ela cresceu e se tornou<br />

uma linda mulher. Um dia andando pela Floresta Sonâmbula, ela<br />

encontrou Malô Nitê, grande guerreiro da tribo Unidú Nitê. Eles se<br />

apaixonaram.<br />

A paixão de Iarú e Malô era proibida, pois eram de tribos<br />

diferentes e não poderiam ter descendentes com sangue misturado.<br />

Havia uma maldição da Floresta para aqueles que fossem contra as<br />

leis da sua natureza e aquela que carregasse no ventre a mistura<br />

de sangues seria a responsável pelo massacre e fim de seus povos.<br />

Iarú sem saber da gravidez condenou todos à morte sangrenta.<br />

Com a vinda da primavera, as duas tribos se uniam em rituais<br />

para afastar os maus espíritos da Floresta. Porém, no dia marcado<br />

para começar as celebrações, à meia noite, a Floresta Sonâmbula<br />

se movimentou estranhamente para o oeste, a lua e as estrela<br />

sumiram, as águas do Rio Azul ficaram tão vermelhas que parecia<br />

sangue, os habitantes da Floresta se esconderam pois lá vinha ela,<br />

acompanhada de seu Diabo.<br />

— Corram! A Bruxa Cuca está aqui, protejam suas<br />

crianças!<br />

Alguma coisa estava errada, mas o que era? Ninguém sabia<br />

o que estava acontecendo, até que a Velha Bruxa disse que Iarú<br />

estava esperando um bastardo de sangue ruim e que as duas<br />

tribos seriam dizimadas, pois não respeitaram a natureza. Ao ouvir<br />

isso, os homens de Unidú Nitê se voltaram contra Malô dizendo<br />

que ele havia traído sua gente, imploraram para que a Bruxa nada<br />

fizesse com aquelas famílias que não sabiam de nada. Mas não<br />

houve jeito, o pequeno Diabo da Bruxa atacou um dos homens<br />

estraçalhando seu corpo e devorou seu coração, o sangue se<br />

espalhou na terra condenada... Malô gritou e implorou para que<br />

a Bruxa Cuca não fizesse nada, pois ele pagaria pela maldição, e<br />

faria um pacto. Ele entregaria sua alma para o Diabo, e em troca<br />

108


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

ela deixaria as tribos em paz. Mas ela só aceitou se levasse Iarú,<br />

pois ela queria a criança.<br />

Eles não tiveram outra alternativa, a jovem foi para a caverna<br />

com a Velha Bruxa e nunca mais viu seu povo e seu amado. O<br />

guerreiro fez seu pacto com o Diabo, pedindo paz e riqueza para<br />

as tribos, em troca deu sua alma.<br />

Ao nascer do dia Malô tinha que conseguir uma galinha preta,<br />

para ser fecundada pelo Diabo da Bruxa, pois ele deveria carregar<br />

em uma garrafa um diabinho que nascesse do ovo desta galinha.<br />

No fim de 40 dias, do ovo chocado, nasceu o diabinho. Malô o<br />

guardou em uma garrafa, que deixava em baixo da cama e todos<br />

os dias o alimentava com gotas de seu próprio sangue. O Diabinho<br />

da Garrafa enriqueceu o seu dono, e protegeu os habitantes da<br />

tribo Unidú Nitê e Pirapurú, dando a eles muita fartura e paz.<br />

Nove meses depois, quando Iarú já estava para parir seu filho,<br />

a Bruxa velha tratou de cuidar do parto. Abriu a barriga dela com<br />

suas próprias garras, e pegou o bebê. O corpo de Iarú teve seu<br />

sangue drenado, que serviria para alimentar a criança durante os<br />

primeiros dias de vida, e a carne foi deixada apodrecer, para que as<br />

larvas de insetos que nela apareceriam servissem de alimento para<br />

sua nova cria, que se tornou um pequeno comedor de carcaças<br />

podres. Mas por desobedecer sua mãe Cuca constantemente, ele<br />

foi abandonado e quando morreu foi rejeitado pela terra, passou a<br />

vagar pela Floresta e assustar as pessoas, foi apelidado de Corpo<br />

Seco. Malô nunca soube deles.<br />

Quarenta anos se passaram quando o Diabo da Bruxa apareceu<br />

para cobrar sua parte do pacto. O Diabo então libertou o Diabinho<br />

da Garrafa, imediatamente ele entrou no corpo de Malô que<br />

ficou inconsciente. Os dois levaram o corpo para a Floresta e lá<br />

esperaram o Diabinho da Garrafa nascer de novo, se alimentar do<br />

corpo de Malô e tomar conta de sua alma.<br />

— Vovô Nêgo, o que aconteceu com o Diabinho da Garrafa<br />

depois que ele saiu do corpo de Malô?<br />

— Ele foi morar com a Velha Bruxa Cuca, pois com ela, ele ia<br />

crescer e aprender as leis da Natureza. E o Diabo foi pra cidade<br />

se aproveitar da fraqueza dos humanos e fazer seus pactos. Foi<br />

mostrar que quando se mexe no equilíbrio natural da vida, coisas<br />

muito ruins acontecem. E ele levou todas essas coisas ruins com<br />

109


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

ele, as consequências dos desmatamentos, da poluição dos rios<br />

e das matanças de animais...nos anos seguintes, mais diabinhos<br />

cresceram com a Velha Bruxa Cuca e foram para outras cidades...E<br />

foi assim que se passou. Está vendo como é importante respeitar<br />

a Natureza?<br />

— Sim Vovô, eu respeito a Natureza e não quero ter um<br />

Diabinho da Garrafa.<br />

— Isso mesmo, então eu já vou indo para a Floresta, amanhã<br />

talvez eu volte pra contar outra estória. Boa noite e seja um bom<br />

menino.<br />

— Boa noite Vovô Nêgo.<br />

A mãe do menino entra no quarto:<br />

— Meu filho, está conversando sozinho?<br />

— Não mamãe, o Vovô Nêgo estava me contando uma estória.<br />

— De novo com isso menino, não existe nenhum Vovô aqui. E<br />

que garrafa vazia é esta embaixo da sua cama?<br />

— É meu Diabinho da Garrafa, mas o Vovô Nêgo não pode<br />

saber mamãe.<br />

— Tá bem meu filho, o seu vovô invisível, não pode saber<br />

do seu diabinho invisível, vamos dormir então e pare com estas<br />

bobagens, boa noite.<br />

— Boa noite mamãe.<br />

Se uma lenda é contada diversas vezes, um dia, ela pode se<br />

tornar realidade...é por isso que temos uma Floresta Sonâmbula lá<br />

no fundo da nossa mente.<br />

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BRANCA DE<br />

NEVE E OS 7<br />

NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

BRANCA DE NEVE E OS 7<br />

NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

— Doutora White! Sua mãe está aqui e quer vê-la!<br />

— Do que se trata?<br />

— Disse que as vendas do perfume “Bad Witch” caíram e<br />

precisa discutir uma nova campanha de marketing.<br />

— Só podia. Aquilo é tão forte que deveria ser considerado<br />

nocivo para nossa atmosfera artificial. E pela última vez, ela não é<br />

minha mãe!<br />

A doutora White era a herdeira e filha de Willard White, dono<br />

do maior império da beleza estabelecido na colônia lunar Alfa-2,<br />

que possuía o curioso nome “Conto de Fadas”. A mãe de Aurora<br />

White havia morrido de causas desconhecidas e seu pai não<br />

soubera escolher uma nova companheira confiável.<br />

Pouco depois, seu pai adoeceu e acabou por deixar o império<br />

nas mãos de sua filha. Como ainda não havia atingido a maioridade,<br />

a empresa acabou sendo transferida para o nome de sua madrasta,<br />

que se revelou uma péssima empresária. Transformou Aurora em<br />

empregada e a obrigou a criar a essência mais forte de todos<br />

os tempos. Estampou seu rosto nos frascos especiais e iniciou a<br />

distribuição planetária de Bad Witch.<br />

Os cientistas alertaram que a essência continha compostos<br />

voláteis que poderiam comprometer a atmosfera das cúpulas<br />

habitacionais, aviso que ela ignorou solenemente.<br />

Seu maior divertimento era sentar-se em frente à gigantesca<br />

tela do computador de inteligência artificial conhecido como<br />

112


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

“Espelho” e ficar analisando seu DNA. O Espelho era responsável<br />

por criar perfumes e cosméticos adaptados a cada tipo de pele,<br />

criando o composto perfeito.<br />

— Ah, espelho, espelho meu! Existe alguém com a pele mais<br />

perfeita do que eu?<br />

A voz robótica sempre respondia calmamente.<br />

— Não, minha administradora. Somente tu és a mais bela<br />

deste satélite natural. E deves tudo ao meu projeto de evolução da<br />

nanotecnologia utilizada por seu marido.<br />

(…)<br />

O tempo passou e Aurora tornou-se uma bela mulher. Nunca<br />

precisou recorrer aos geneticistas ou à manipulação de DNA. Isto<br />

acabou se tornando um fardo para outras pessoas… incluindo a já<br />

famosa senhora White.<br />

Certo dia, ao voltar de seu banho de sol costumeiro, no lado<br />

iluminado da Lua (no famoso resort “Paraíso Lunar”), sentou-se em<br />

frente ao Espelho e fez a pergunta já conhecida por seu ouvinte.<br />

— Espelho, espelho meu! Existe alguém mais bela do que eu?<br />

A voz mudou de entonação e emitiu uma frase impessoal.<br />

— Calculando…<br />

— Hum?<br />

— Lamento dizer, mas existe alguém que nunca fez uso da<br />

nanotecnologia desta empresa. E, segundo meus cálculos, possui<br />

a pele mais perfeita que já vi.<br />

— Impossível! Quem?<br />

— Aurora White.<br />

— Aquelazinha… Sempre em meu caminho… Prepare uma dose<br />

tripla de Bad Witch e encha um frasco. Irei levar um “presentinho”<br />

à minha querida filhinha.<br />

— Tripla? É suficiente para corroer a cúpula central. O órgão de<br />

padronização lunar nunca permitiria…<br />

— Faça!!<br />

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BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

(…)<br />

— Doutora White! Sua mãe está aqui para vê-la!<br />

Após responder bruscamente, seu assistente virtual recebeu<br />

um impulso elétrico vindo diretamente do Espelho e alertou<br />

a doutora de que corria risco de vida. A única saída era fugir. A<br />

empresa ficava no limite entre o lado claro e o lado escuro da Lua.<br />

Aurora não encontrou outra opção a não ser correr para o lado<br />

desconhecido do satélite terrestre, deixando tudo para trás.<br />

Apesar da tecnologia avançada e a colonização da Lua ter<br />

sido efetivada há anos, o lado escuro ainda mantinha sua aura de<br />

mistério e locais desconhecidos.<br />

A doutora White estava cansada de tanto correr. Com seu traje<br />

lunar feito sob medida (na época atual) literalmente era possível<br />

“correr”. Seu nível de adrenalina baixou e o medo começou a<br />

ocupar seu lugar.<br />

Avistou uma instalação pequena, que parecia abandonada há<br />

anos. Mas no momento era o lugar mais seguro para se estar. A<br />

porta de entrada era da altura de seu umbigo – fato estranho, pois<br />

somente humanos viviam ali. Sem cerimônias acessou o painel<br />

de controle e entrou. Tudo parecia muito pequeno e bagunçado<br />

ao mesmo tempo, como um abrigo anti-nuclear antigo. Retirou<br />

seu traje e pôs-se a organizar seu esconderijo temporário,<br />

adormecendo logo em seguida.<br />

Sons estranhos puderam ser ouvidos vindo diretamente do<br />

lado mais escuro. Algo como “blips” e “boings” e um arrastar<br />

soturno de pedras lunares. Suas sombras não revelavam nada em<br />

particular - apenas que eram seres pequenos. Seus sensores táteis<br />

recuaram ao ver que seu lar havia sido violado. Luzes vermelhas<br />

acenderam-se em suas caixas torácicas: havia um humano em seu<br />

distrito.<br />

Entraram lentamente pela porta com seus corpos desajeitados,<br />

protótipos antigos de máquinas pensantes da época de exploração.<br />

— Uma humana aqui?<br />

Ficaram um bom tempo analisando aquela criatura adormecida<br />

em seu lar. Parecia familiar. Aurora percebeu que estava sendo<br />

vigiada e levantou-se de súbito.<br />

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BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

— Quem são vocês?<br />

— Há muito tempo atrás seu pai nos enviou para estudarmos<br />

o lado escuro da Lua. Ele precisava saber se era verdade que este<br />

lado possuía a capacidade de enlouquecer a mente humana. Por<br />

isso fomos divididos em sete comportamentos característicos de<br />

sua quintessência: alegria, tristeza, medo, ira, timidez, orgulho e<br />

razão, refletindo a psique terrestre.<br />

— Vocês são tão pequenos!<br />

— Somos os primeiros da nova geração de robôs lunares, por<br />

isso nossa tecnologia é limitada. – encerrou Razão.<br />

— Mas você é tão bonita que pode ficar conosco o tempo que<br />

desejar! Fazia tempo que não tínhamos visitas! – emendou Feliz.<br />

De repente, um estrondo semelhante a um raio caindo deixou<br />

todos em estado de alerta.<br />

— Um raio caindo em um satélite sem atmosfera? – Dra. White.<br />

— É o caçador. Criatura medonha e extremamente assustadora<br />

que vive no lado escuro da Lua. Ele está atrás de você! Não nos<br />

deixe sozinhos, por favor! – Medroso.<br />

— Atrás de mim? Como sabem?<br />

— Escute mulher humana. O caçador é uma forma de vida<br />

artificial deformada; aberração jogada fora pelo homem. Ou seja,<br />

ele detesta humanos! – Irado.<br />

— Foi ela… Eu tenho certeza! Aquela mulher não vai parar<br />

enquanto não me ver morta. Irei convencer a criatura do contrário.<br />

— Está louca? – Razão.<br />

A criatura possuía três metros, um olho pulsante no meio<br />

de sua cabeça arredondada e um desajeitado balanço em seus<br />

três braços. Trazia consigo uma foice, capaz de cortar montanhas<br />

lunares em duas. Ao avistar a mulher, a máquina fez menção<br />

de levantar sua foice. Desistiu. Sua aparência era tão doce e<br />

encantadora que não teve coragem de lhe fazer mal.<br />

— Os caçadores costumam colecionar corações humanos –<br />

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BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

obviamente apenas dos que já deixaram de existir ou resolvem<br />

se aventurar pelos penhascos do lado escuro. Se alguém o enviou<br />

para exterminá-la, ele precisará de alguma prova. – Razão.<br />

Os nanorobôs mencionaram que devido aos seus estudos alguns<br />

animais acabaram vindo com eles. O caçador, desconfortável por<br />

estar em um abrigo tão pequeno, apontou logo para o cervo que<br />

havia ali, na cela de contenção. Partiu em seguida com o coração<br />

do animal em uma caixa isolada e fechada a vácuo rumo a um<br />

lugar desconhecido.<br />

A empresa Conto de Fadas virou um verdadeiro “inferno” sob<br />

o jugo de sua nova administradora. Todos trabalhavam em dobro<br />

enquanto ela ficava examinando seus poros e sua pele lisa. O<br />

Espelho havia escapado de virar sucata por muito pouco – neste<br />

instante o caçador já deveria estar chegando – uma idéia muito<br />

bem aceita por sua “rainha”.<br />

Algum tempo depois…<br />

(...)<br />

— Espelho! Examine isto. Tenho sérias dúvidas quanto à sua<br />

origem. É rosado demais.<br />

O Espelho examinou a caixa e, em poucos segundos, o resultado<br />

do exame de DNA apareceu na tela flutuante. O desenho de um<br />

cervo fez a “rainha” quebrar por inteiro o último carregamento de<br />

Bad Witch. Quase sufocou após isso… Sentou-se e pôs-se a pensar.<br />

— Então minha filhinha amoleceu o coração do caçador – se é<br />

que ele tem um. Criatura horrível. Muito nobre de sua parte. Hum…<br />

Caridade era algo que ele não recusaria em praticar. Espelho! É<br />

possível reverter o processo da câmara de rejuvenescimento de<br />

forma temporária?<br />

— Talvez.<br />

— “Branca” adorava maçãs hidropônicas quando era pequena.<br />

Ainda temos um estoque destas raras frutas?<br />

— Creio que sim, administradora.<br />

— Já disse para me chamar de “rainha”! Prepare tudo!<br />

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BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

(…)<br />

Uma velha senhora, “por acaso”, bateu na porta do abrigo<br />

anti-nuclear dos nanorobôs. A Dra. White atendeu. Aquele forte<br />

cheiro de maçãs frescas invadiu e tomou conta de seus sentidos.<br />

O aroma lembrava os piqueniques de infância com seus pais e<br />

um amigo muito querido que permanecia desaparecido desde que<br />

resolvera sair na expedição da nave colonizadora Andrômeda.<br />

— O que uma senhora de sua idade faz no lado escuro da Lua e<br />

sozinha?<br />

— Ah, minha jovem, talvez ninguém tenha lhe contado, mas existe<br />

toda uma indústria alimentícia que produz frutas artificiais na linhalimite.<br />

Mas apenas uma de suas filiais trabalha com frutas originais<br />

vindas da Terra antiga, antes dela ser devastada pela onda nuclear<br />

de…<br />

— Como eu nunca soube disso? Meu pai, ele…<br />

— Moça. Se todos soubessem disso, não acha que trariam grandes<br />

problemas para seus administradores? São extremamente raras e por<br />

isso estou aqui hoje lhe oferecendo uma oportunidade única de nos<br />

ajudar. Estamos sem recursos…<br />

Ela não pôde resistir àquele aroma contagiante. Após pagar<br />

à senhora, deu uma mordida certeira na maçã. O mundo girou. As<br />

estrelas saíram do lugar e puseram-se a dançar. O Sol triplicou de<br />

tamanho e em um instante tudo se apagou.<br />

Os nanorobôs presenciaram a cena horrorizados, enquanto viram<br />

a velha senhora tomar uma poção e voltar ao normal.<br />

— É você! – Irado.<br />

— Ah… Olha só quem vejo por aqui. Os inúteis que Willard criou<br />

e fui obrigada a me livrar. Vocês viviam interrompendo minhas<br />

experiências dizendo que elas eram nocivas à humanidade.<br />

— O que você fez com ela? – Tristonho.<br />

— A maçã estava envenenada. Finalmente todo o império White<br />

será meu!<br />

— Sua… Desta vez não estamos sozinhos! O caçador irá colecionar<br />

o seu coração! – Orgulhoso.<br />

A criatura saiu de trás do abrigo com um olhar furioso em direção<br />

à “rainha”. Seus pés começaram a dar pequenos passos para trás.<br />

— Você não está com raiva só porque mandei jogá-lo no lado<br />

117


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

mais distante da Lua, não é? Pense! Você também me enganou. Ora,<br />

seu maldito protótipo de robô humanóide, era uma cópia perfeita do<br />

namoradinho de “Branca”. Eu não podia deixar isto acontecer. Se ela<br />

se aproximasse demais dele iriam gerar um herdeiro e a empresa<br />

nunca seria minha! Por isso me desfiz de tudo que lembrasse ele,<br />

incluindo um convite para uma viagem expedicionária... Sem retorno.<br />

Sim, sua lata velha. Você era perfeito, até que o desliguei e o atirei<br />

de cima das naves de entulho no lado escuro da Lua. Foi uma linda<br />

queda de alguns quilômetros…<br />

Aquelas foram suas últimas palavras. A criatura correu em seu<br />

encalço, enquanto ela tropeçava e corria rapidamente para longe do<br />

caçador. Ele não iria parar e ela bem sabia disso. Correu o máximo<br />

que pôde até chegar à beira de um precipício lunar. Parou.<br />

A foice cortou o ar lentamente, mas não a atingiu. A força utilizada<br />

pela criatura rachou o solo ao meio, desequilibrando a “rainha”. Seu<br />

corpo foi atirado para longe. Mas sem a gravidade necessária, a queda<br />

foi suave. A última coisa que ouviu foi:<br />

— Eu destruirei todos vocês!<br />

A criatura guardou a foice e foi embora, no mesmo instante em<br />

que ela percebeu que sua roupa espacial continha um enorme rasgo<br />

em suas costas, deixando o oxigênio escapar…<br />

(…)<br />

Os nanorobôs e a criatura colocaram “Branca” em uma cápsula<br />

criogênica e passaram a cuidar de seu corpo inerte. O congelamento<br />

iria mantê-la jovem para sempre. Pequenos flocos a envolveram,<br />

mantendo seus músculos ativos e coração batendo. Os nanorobôs a<br />

colocaram em local seguro e registraram no cérebro eletrônico central<br />

o nome “Branca de Neve”.<br />

Algum tempo passou e a empresa faliu. O Império da Beleza<br />

cedeu lugar ao Império Galáctico. Nesta atual corrente do tempo<br />

algo impensável aconteceu. Conseguiram com sucesso resgatar<br />

os tripulantes da nave Andrômeda que permanecia presa em uma<br />

singularidade quântica.<br />

Um jovem simpático e galante voltou à sua antiga casa e com<br />

tristeza presenciou o abandono e destruição da maior empresa jamais<br />

vista em sua infância. Depois de muito andar ouviu certos rumores e<br />

uma história extraordinária de uma administradora narcisista. Acabou<br />

por conhecer a história de “Branca de Neve”.<br />

Procurou desvendar todos os mistérios daquela lenda lunar e<br />

encontrou o abrigo anti-nuclear dos nanorobôs.<br />

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BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

—Identifique-se! – gritou a criatura.<br />

Ao olhar mais de perto percebeu que se tratava de seu “modelo”<br />

original. Os nanorobôs vieram correndo ao seu encontro. Após<br />

detalharem minuciosamente tudo o que havia acontecido, levaram-no<br />

à câmara criogênica onde “Branca de Neve” adormecia.<br />

Lágrimas caíram sobre os eletrodos da câmara e o computador<br />

emitiu um aviso de aumento de temperatura em seu interior. O<br />

jovem, com certo receio, afastou-se do aparelho. Mas definitivamente<br />

não havia sido ele. Os batimentos cardíacos aumentaram e eles se<br />

apressaram em iniciar a descompressão.<br />

Ela saiu tossindo muito. O jovem a ajudou, levando apenas<br />

alguns segundos até que ela lançasse para fora um pedaço de maçã<br />

que permanecia presa em sua garganta. Desorientada, sorriu ao ver<br />

seu amigo de infância vivo e bem de saúde. “Muito bem.” - pensou,<br />

olhando-o de cima a baixo.<br />

(…)<br />

A Dra. White utilizou o restante de sua herança e abriu sua própria<br />

rede de frutas hidropônicas verdadeiras, tornando-se uma mercadora<br />

de sucesso, fornecendo suprimentos necessários às expedições. Os<br />

nanorobôs foram nomeados administradores da fábrica e a criatura se<br />

tornou o chefe e monitor de segurança dos carregamentos.<br />

O “pôr-do-sol” no lado escuro da Lua era muito bonito e agora<br />

podiam apreciá-lo sem nenhuma preocupação extra. Os robôs podiam<br />

tomar conta de tudo enquanto viviam felizes.<br />

E juntos viveram feliz para sempre…<br />

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BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

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A MENINA COM<br />

O CESTO DE<br />

FÓSFORO<br />

F. P. Andrade


A MENINA COM O CESTO<br />

DE FÓSFORO<br />

F. P. Andrade<br />

A MENINA COM O CESTO<br />

DE FÓSFORO<br />

F. P. Andrade<br />

O fim do ano representava a felicidade, todos diziam. A neve<br />

branca, renovação. Noite de ano novo. Fogos de artifícios<br />

no céu. Gretel cambaleava. Tremia. O frio lhe queimava a carne,<br />

a alma. Não pai... Por favor, não... “Não conte a sua mãe. Ouviu!<br />

Ou eu...” Lembrava-se dos toques. Da dor. Da depressão. Do frio.<br />

Carregava consigo um cesto de fósforos. “Vá e venda, filha. Por<br />

mim.” Sim mãe. Eu te amo... Juro. “Eu também” dizia seu pai.<br />

Gretel. Lágrimas congelavam seu rosto. Não queria voltar. Não com<br />

ele ali. Fome, sim, a fome dos desvalidos, maltratados. Caminhou<br />

descalça, sandálias de carne azul frio. Havia perdido meio par da<br />

sandália na neve e o outro havia sido roubado, por um menino que<br />

queria ser um bom pai quando crescesse. Pessoas passavam de<br />

carruagens. Ricas. Aquecidas. Quase a atropelavam. ”Sai da frente<br />

desgraçada!” Me perdoe, senhor. Não foi minha intenção. Quer<br />

comprar um fósforo? Só um! Cuspiram em seu rosto. Escárnio.<br />

“Papai te ama, volte...” correu dali. Não queria mais. A neve caía e<br />

acumulava na cidade e nas pessoas. Casas com chaminés. Famílias<br />

felizes. A neve mordia Gretel e lhe tirava pedaços frios. Arrastouse<br />

para um beco entre dois prédios. Queria aquecer-se. Não queria<br />

voltar para casa. Lá fazia frio. Outro tipo de frio. Não vendera um só<br />

fósforo e sabia que não podia voltar. Não queria apanhar de novo.<br />

Não queria senti-lo outra vez, pegajoso. “Se você deixar, eu te<br />

aqueço... só não conte nada...” Morra... Gretel gritou para a noite.<br />

Morra! Ela não sentia mais os pés, os braços penderam frios. Um<br />

fósforo. Se acendesse um fósforo, talvez pudesse se aquecer um<br />

pouco... Longe dele... Morra! Riscou um na parede. A luz a aqueceu<br />

por um instante breve. Só por um instante Gretel viu um forno à<br />

122


A MENINA COM O CESTO<br />

DE FÓSFORO<br />

F. P. Andrade<br />

lenha aceso em sua casa. A família ao redor. O fogo consumiu-se,<br />

ficou-lhe só o frio e a haste cinza. Acendeu mais um. O forno, a<br />

família. Mãe, cadê papai? “Saiu a sua procura filha, já faz um dia.”<br />

Mais um fósforo. A parede do beco transformou-se a sua frente<br />

em tecido translúcido. Gretel viu uma mesa farta. Quente. Lá, um<br />

ganso recheado e assado a fitava. Levantou-se sem cabeça, sem<br />

pés e arrastou-se até ela. “Está com fome menina? Quer? Você<br />

pode me comer! Vê? Tenho um garfo cravado nas costas, usa-o!”<br />

Sim, por favor... Só uma mordida... obrigada... O fogo sumiu no<br />

frio. Só ficou a tristeza e a semi-hipotermia. Alguém me ajuda...<br />

Por favor... Sal congelado na face. Ninguém viu. Mais fósforos, sua<br />

mãe a pegou pela mão e a levou dali. “Meu amor, vamos procurar<br />

seu pai, vem.” Não, mãe, não quero. Só amo a senhora, só a<br />

senhora. “Bobagem, filha.” Elas voaram pela cidade. De cima viram<br />

as casas, as pessoas, a neve. Tão lido, mãe! “Filha, lá esta ele! Vê?<br />

Esta morrendo de frio! Coitado.” Ah, mãe, eu quero ver essa cena!<br />

Gretel olhou o pai caído. Bêbado. Um grupo o surrava, jogava-o<br />

na neve e o chutava. Ela acendeu fósforo após fósforo. Sabia que<br />

se não o fizesse a cena evaporaria. Os homens o untavam com<br />

álcool, riam com ela. Um deles procurou um fósforo e não achou.<br />

Mãe, fecha os olhos! Gretel ainda tinha um, só um. Toma, é teu!<br />

“Obrigado, menininha!” Última visão: a alegria de uma fogueira!<br />

Ah, Feliz ano novo! Gretel sussurrou antes de sua alma apagar,<br />

como um fósforo.<br />

No dia de ano novo encontraram o corpinho sentado de uma<br />

criança congelado em um beco. “Pobre menina!” todos diziam. “Ela<br />

só queria se aquecer.” Mas uma coisa espantava a todos. Ninguém<br />

conseguia explicar. Mesmo com uma lágrima fria, ela sorria.<br />

123


Autores<br />

Participantes


joelalexribeiro@hotmail.com<br />

twitter - @andressilva<br />

Alex01<br />

Alexandre Ribeiro<br />

É Noite, Lá Fora Eles Te Esperam<br />

Alexandre Ribeiro, Técnico Administrativo, nascido<br />

em Guarulhos São Paulo, 38 anos. Escritor entusiasta<br />

de contos, crônicas, romances e poesias. Atualmente<br />

está aventurando-se pelo do gênero Terror, apesar<br />

de seus textos serem comumente percebidos como<br />

insólitos. Sua paixão pela escrita começou cedo, aos<br />

nove, com o gênero poesia, no entanto, aos trinta<br />

anos achou sua voz na Literatura. Participa de sites<br />

como o Recanto das Letras, Estronho e Esquesito<br />

e Airmandade. Já publicou vários contos, poesias,<br />

inclusive na web.<br />

Mantém dois blogues relevantes:<br />

http://contosobscurosdealexandreribeiro.blogspot.com<br />

http://escritoralexandreribeiro.blogspot.com<br />

Andr02<br />

André Soares da Silva<br />

Robô-Guerreiro<br />

Carioca, funcionário público, 28 anos, escreve<br />

desde os 15. Começou no mundo da literatura<br />

escrevendo fanfictions inspiradas no seriado Arquivo<br />

X, ainda no final dos anos 90. De lá pra cá se dedicou<br />

também a roteirização de projetos para cinema,<br />

trabalhando inclusive ao lado do produtor paulista<br />

Ottmar Paraschin. Em 2010 concluiu seu primeiro<br />

romance, “Simuum – O Conto do Sol”, no momento<br />

em fase de análise junto à editoras. Atualmente, André<br />

Soares Silva encontra-se trabalhando em seu próximo<br />

projeto, um thriller sobrenatural que pretende ser o<br />

início de uma trilogia


lancasterbrian@hotmail.com<br />

elsenpontual@gmail.com<br />

Brian03<br />

Brian Oliveira Lancaster<br />

Branca de Neve e os 7 nanorobôs<br />

Brian Oliveira Lancaster (pseudônimo) é natural<br />

de Caxias do Sul (RS), casado e possui 29 anos.<br />

Atualmente vive na cidade de Criciúma (SC), onde<br />

executa funções de analista administrativo em uma<br />

empresa de software de administração pública. Há oito<br />

anos escreve de forma amadora e publica seus contos<br />

em sites de literatura. Suas principais influências vêem<br />

de autores consagrados do gênero ficção científica,<br />

como Isaac Asimov e Arthur Clarke. É entusiasta do<br />

gênero e procurar divulgá-lo.<br />

Elsen04<br />

Elsen Pontual<br />

Anno Domini<br />

Deus Ex Machina<br />

Pernambucano de Olinda, 29 anos, servidor público<br />

da Justiça do Trabalho e contador de estórias por<br />

vocação. Recentemente aceitou a existência do mundo<br />

digital e agora tenta levar seus contos para esse novo<br />

e estranho universo.


emersondantasp@hotmail.<br />

com<br />

akumaandrade@hotmail.<br />

com<br />

Emer05<br />

Emerson Pimenta<br />

Cinderela Underground<br />

Nascido no interior de Minas Gerais num típico<br />

novembro chuvoso de 1990, 21 anos, estudante de<br />

Direito. Apaixonado por livros desde sempre, conheceu<br />

sua maior força ao ler Dom Casmurro na 6º série e<br />

ficar com a maior pulga detrás da orelha em relação<br />

ao adultério de Capitu. Percebeu assim o poder que<br />

as palavras têm, se forem usadas por um escritor<br />

talentoso. Aos 18 anos concluiu seu primeiro romance<br />

infanto-juveni: ‘Herói’, o primeiro de uma trilogia que<br />

consegue abraçar todos os subgêneros da literatura<br />

fantástica. No presente, se encontra lendo três livros<br />

ao mesmo tempo e escrevendo contos fantásticos à<br />

medida que se entope de Coca-cola e chocolate.<br />

Fp6<br />

F. P. Andrade<br />

A menina com o cesto de fósforo<br />

Paraibano, auxiliar técnico em óptica, 32 anos, F.<br />

P. Andrade, vulgo Akuma, desde os 12 anos devora<br />

estrelas e rumina sonhos. Autodidata, escreve desde<br />

os vinte e acredita piamente que a literatura é sua<br />

alma e os seus contos sua carne. É aficcionado em<br />

filosofia e avaliações psicológicas humanas, tendo<br />

escrito inúmeros contos literofilosóficos. Atualmente<br />

trabalha em seu primiro romance, “Stregas”. Casado,<br />

mora em João Pessoa com sua esposa Andreia e uma<br />

cadela poodle louca chamada Ryoko.


gabicmarra@uol.com.br<br />

gustavo031987@gmail.com<br />

Gabi07<br />

Gabriela Chaves Marra<br />

Cuidado com a Cuca, que a Cuca te pega<br />

Gabriela Chaves Marra, carioca, 37 anos, médica<br />

veterinária, cursa mestrado na Escola Nacional de<br />

Saúde Pública – FIOCRUZ, aprecia literatura de terror<br />

e escreve contos sombrios.<br />

Gus08<br />

Gustavo Aquino dos Reis<br />

Presas Cinzentas<br />

Paulista, formado em história, 23 anos, escreve<br />

desde os 19. Iniciou sua gana literária escrevendo<br />

pequenas poesias e contos baseados nas histórias<br />

de J.R.R. Tolkien. Depois, influenciado por Robert E.<br />

Howard, Lovecraft, Dunsany, Nei Leandro de Castro e<br />

Marco Carvalho, começou a se aventurar com histórias<br />

sobre terrores sobrenaturais, espada e feitiçaria, a<br />

cultura sertaneja do Brasil e os ritos africanos contidos<br />

na Bahia. Atualmente, Gustavo Aquino dos Reis<br />

encontra-se em uma difícil tarefa para conciliar seu<br />

trabalho com o prazer de escrever


lucas_maziero@live.com<br />

santos.luceliarodrigues@<br />

gmail.com<br />

Luc09<br />

Lucas Fernando Maziero<br />

Anjo versus Demônio<br />

Escritor amador, nasceu em Mococa, interior de São<br />

Paulo, em 1981. É formado em eletrotécnica, mas sua<br />

verdadeira paixão está nos livros e filmes, mais nos<br />

livros, e tanto, que sente necessidade de extravasar<br />

em contos que a imaginação teima em imaginar. Lucas<br />

Fernando aprecia a literatura como um todo, mas tem<br />

predileção pelo gênero fantástico. Participa de sites<br />

onde tem alguns contos publicados, e espera um dia<br />

publicar um livro, como todo bom escritor..<br />

Lu10<br />

Lucélia Rodrigues<br />

Inspiração<br />

Acreana, leonina, engenheira florestal recémformada.<br />

Lê quase todos os gêneros, ultimamente<br />

tem uma queda pelos autores de língua latina, Zafón,<br />

Llosa, Garcia Márquez, Allende e o ácido Pedro Juan<br />

Gutierréz. Também amante de literatura fantástica<br />

principalmente de Rice, Poe, Laurell Hamilton, Meg<br />

Cabot e Rachel Caine. Atualmente está concluindo o<br />

segundo volume da trilogia O Último Selo, o primeiro<br />

volume A Profecia Lâmia se encontra em análise junto<br />

às editoras. Também trabalhando no primeiro volume<br />

das Crônicas de Lilian Cyrus e na história paralela à<br />

trilogia do Selo, Meia Noite na Montanha.


angel_luiz@hotmail.com<br />

swylmar@yahoo.com.br<br />

Rang11<br />

Rangel Luiz<br />

O Boneco de Madeira<br />

Nascido em Uberlândia, Minas Gerais, estudante de<br />

letras, apaixonado por contos, em especial Edgar Allan<br />

Poe, E.T.A Hoffmann e, no Brasil, Mário de Andrade e<br />

Machado de Assis. Teve um primeiro livro publicado em<br />

2008 e atualmente trabalha em um segundo romance<br />

“O Último Nefilin”.<br />

Swil12<br />

Swilmar Ferreira<br />

O Soldado<br />

Carioca por opção, engenheiro, comecei a escrever<br />

tarde, depois dos trinta, quando descobri que escrever<br />

além de relaxar me fascinava. Comecei escrevendo<br />

contos e brindando amigos e parentes. Ultimamente<br />

tenho participado dos desafios da <strong>Irmandade</strong>. Escrevo<br />

apenas por prazer, por gostar de brincar com as<br />

palavras e principalmente com minha imaginação que<br />

é muito fértil


thasyel.fall@gmail.com<br />

ovaltermarques@gmail.<br />

com<br />

Tha13<br />

Thasyel Fall<br />

Nos Lençois do tempo<br />

EThasyel Fall, 22 anos, estudante de cinema,<br />

desde pequena aficcionada por tornar mundos irreais<br />

reais nas paginas de seus cadernos, ou em qualquer<br />

lugar com espaço suficiente para escrever (e isso<br />

incluía mesas). Apaixonada pelo mundo sobrenatural,<br />

usa sua fluência em sarcasmo (na verdade é nativa) e<br />

sua influência Kingiana para escrever histórias muito<br />

loucas, e tudo mais que lhe vem na cabeça. Mantém<br />

um blog (cheio de teias de aranha e não por estética)<br />

onde se pode encontrar vários textos seus. Em fim é<br />

uma pessoa que passa mais tempo escrevendo do que<br />

respirando. OBS: autores não tem vida social.<br />

Blog:http://vampirasdequatro.blogspot.com/<br />

Val15<br />

Valter Marques<br />

No fundo do poço tem osso, tem osso<br />

Português, Valter Marques é um Eng. Informático<br />

que é Escritor nas horas vagas, mas cujo sonho é ser<br />

Escritor a tempo inteiro e Informático nos tempos<br />

livres. O autor considera-se, principalmente, um<br />

criativo, sendo a escrita a ferramenta utilizada para<br />

capturar e emoldurar esse espírito inventivo. Enquanto<br />

este último nasceu com ele, a escrita é uma paixão<br />

mais recente, porém infindável.<br />

A ficção científica ocupou, desde a infância,<br />

um lugar privilegiado nas preferências de leitura.<br />

A poderosa imaginação dos autores do “género”<br />

permitiram-lhe viajar por planetas distantes, conhecer<br />

raças alienígenas, sociedades e realidades diferentes.<br />

Atingir a fronteira do espírito e criatividade Humana.<br />

Valter Marques tem contos publicados no Páginas<br />

Lentas (ISBN:978-989-96455-0-9) e Páginas Lentas 2<br />

(ISBN:978-989-20-1352-7), Páginas Lentas 3 e várias<br />

participações em sites especializados.


A IRMANDADE

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