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CONTOS<br />
FANTÁSTICOS<br />
Desafios literários do site<br />
A IRMANDADE<br />
site: www.airmandade.net<br />
Diagramação e Projeto Gráfico<br />
Afonso Luiz Pereira
In<br />
ÍNDICE DE CONTOS<br />
Você pode acessar<br />
qualquer conto clicando<br />
com o mouse nos títulos<br />
deste índice.
Autores Participantes<br />
Alexandre Ribeiro<br />
André Soares da Silva<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
Elsen Pontual<br />
Emerson Pimenta<br />
F. P. Andrade<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
Lucélia Rodrigues<br />
Rangel Luiz<br />
Swylmar Ferreira<br />
Thasyel Fall<br />
Valter Marques<br />
4
Direitos autorais<br />
Todos os textos publicados neste<br />
ebook são de propriedade intelectual<br />
de seus respectivos autores. A<br />
Impressão ou a reprodução por meio<br />
de qualquer outra mídia, para fins<br />
comerciais ou não, só poderá ser<br />
feita sob a autorização expressa dos<br />
mesmos. Para isto, disponibilizamos<br />
os endereços de e-mails dos autores<br />
no final da obra. Você poderá clicar no<br />
link Autor no rodapé de cada conto.<br />
5
A PROPOSTA DESTE EBOOK<br />
O presente ebook, distribuído gratuitamente pelo site A<br />
IRMANDADE, tem como objetivo registrar e apresentar aos admiradores<br />
da Literatura Fantástica os melhores contos desenvolvidos dentro da<br />
seção Desafio Literário do referido site. A proposta principal do Desafio<br />
Literário é fomentar a criação de textos de Literatura de gênero entre<br />
os seus membros cadastrados, buscando, em ambiente colaborativo,<br />
experimentar estilos literários diferenciados, compartilhar idéias e<br />
dúvidas, fazer comentários de forma crítica e respeitosa. Todos os<br />
textos são disponibilizados para posterior apreciação da comunidade<br />
virtual e visitantes do site.<br />
Na seção Desafio Literário, a criação dos textos obedece sempre<br />
alguns parâmetros estabelecidos pelos seus organizadores, que devem<br />
ser obrigatoriamente escritos dentro de um determinado tempo (de<br />
20 a 30 dias). Há, às vezes, premiações simbólicas de livros para os<br />
5 melhores textos que, é bom esclarecer, são indicados pelos próprios<br />
participantes e Membros Fundadores em votação nominal no fórum<br />
do site.<br />
Para a confecção deste ebook ficou estabelecido o registro dos 5<br />
melhores contos de cada um dos 3 Desafios Literário promovidos no<br />
2º semestre de 2011 dentro dos seguintes parâmetros:<br />
No 1º Desafio, em Julho, os participantes deveriam basear os<br />
seus contos apenas em uma única imagem, escolhida no sentido de<br />
direcionar o tema para o gênero terror.<br />
No 2º Desafio, em setembro, a criação deveria versar nas opções<br />
de outras 3 ilustrações que remetiam aos seguintes temas: terror a<br />
brasileira, Ficção Científica em futuro pós-apocalíptico e uma cena<br />
de batalha campal no estilo de Alta Fantasia. Esclarecemos que o<br />
resultado de votação contemplou a escolha de 4 contos de FC e um de<br />
Fantasia.<br />
E, no 3º e último, em dezembro de 2011, as imagens já não eram<br />
prioridade e a idéia central, para participar do certame, passou a ser<br />
o desenvolvimento de contos pautados numa visão mais adulta e<br />
sombria das clássicas histórias infantis, que poderiam versar dentro<br />
de qualquer gênero da Literatura Fantástica.<br />
Tenham uma boa leitura!<br />
6
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
7
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
L ondres, 02 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor.<br />
Meu nome é Padre Ignácio de Montesso e começo este diário<br />
impelido pelo que só posso julgar ser a mão divina. Assim como<br />
todos os servos da Santa Fé, fui doutrinado na arte da escrita sem,<br />
no entanto, nutrir qualquer apreço especial por ela. Ao menos até<br />
o dia de hoje.<br />
Como que tocado por pentecostes, sinto a obrigação de<br />
iniciar este humilde relato de meus dias e, guiado pela vocação,<br />
o faço em idioma comum e linguagem simplória. Estranho essa<br />
necessidade, mas a única resposta possível ao divino chamado<br />
é: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa vontade”. E como são<br />
sábios e misteriosos os desígnios do Pai!<br />
Justamente hoje, o dia em que fui tocado pelo ânimo celeste,<br />
dois incomuns fatos romperam o ordeiro mosaico de minha<br />
rotina: o recebimento de uma carta de meu velho mentor e uma<br />
mensagem da Santa Sé, nomeando-me pároco de um pequeno<br />
vilarejo ao norte da capital. As duas missivas vieram pelas mãos<br />
do mesmo mensageiro que, cheirando a suor e pêlo de cavalo,<br />
entregou-as e desapareceu em galope desvairado sem, ao menos,<br />
aceitar pouso ou refeição.<br />
À primeira vista, pode parecer que não há nada de<br />
extraordinário no ocorrido, mas os conteúdos das mensagens<br />
estavam tão intimamente ligados, que apenas a solidez da minha<br />
fé me impede de procurar qualquer razão mística para isso. Porém,<br />
me apresso. Preciso organizar o pensamento e retomar a ordem<br />
cronológica dos eventos. Guia-me, Senhor.<br />
8
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
Sorri ao ler o nome e reconhecer o selo de Monsenhor Fernandez<br />
na primeira carta. O velho frade espanhol havia sido, para mim,<br />
como uma espécie de mestre e protetor, sempre ensinando a<br />
reconhecer a beleza da criação e a confiar na fé, mesmo diante dos<br />
mais terríveis obstáculos. Porém, como o dever para com a Santa<br />
Sé antecede os laços de amizade, pus a mensagem de Monsenhor<br />
de lado e abri primeiro a carta do bispo. As palavras ali escritas<br />
eram poucas e diretas, mas tamanho impacto me causaram.<br />
Em parcas linhas sua eminência me informava que eu deveria<br />
seguir viagem imediatamente para o vilarejo de Wistonbury e<br />
assumir o lugar do antigo pároco, Monsenhor Fernandez Távora,<br />
que havia falecido há poucos dias. Por alguns instantes, o ar me<br />
escapou dos pulmões. Como poderia meu velho mestre estar<br />
morto? Sofria ele de alguma doença? Que mal súbito lhe ceifara a<br />
vida antes mesmo que pudesse me escre...<br />
Meus olhos recaíram sobre a segunda carta, ainda fechada,<br />
guardiã das últimas palavras de Monsenhor. Confesso que ainda<br />
não tenho coragem de abri-la. O farei amanhã, agora preciso<br />
dormir. Dias tempestuosos se avizinham e devo preparar-me para<br />
a viagem.<br />
Estrada para Wistonbury, 05 de fevereiro de 1502, Ano<br />
do Senhor<br />
Sinto que negligenciei meus deveres ao deixar de escrever<br />
nestes últimos dias, mas creio que o Senhor há de me perdoar. Os<br />
preparativos eram tantos, e tão poucas eram as horas das quais<br />
podíamos dispor, que todo o meu tempo desperto foi dedicado<br />
exclusivamente à viagem. Somos três e estamos há um dia e meio<br />
na estrada.<br />
Viajam comigo padre Brian Ville, um jovem clérigo recém<br />
ordenado, e “Sir” Thomas Ergon, na falta de melhores termos, um<br />
guarda-costas. Thomas, ou Tom como prefere, é o ser mais odioso<br />
em que já pousei os olhos. Seus modos são brutos, sua higiene<br />
pessoal é nula e seu vocabulário parece ser composto apenas de<br />
pragas e obscenidades, mas as estradas do Rei Enrique VII não são<br />
famosas por sua segurança e sua presença é um mal necessário.<br />
9
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
Agora mesmo ele me encara enquanto escrevo. Seus olhos<br />
verdes injetados de curiosidade e raiva não me deixam um só<br />
instante. Quiçá, como muitos cavaleiros, ele seja iletrado e se<br />
ressinta daqueles a quem as letras não são um mistério insolúvel.<br />
Ainda me encara. Talvez não tenha notado que já o percebi, talvez<br />
apenas não se importe. Sei que devo ser paciente e piedoso com<br />
todas as criaturas de deus. Senhor, ajuda-me com Sir Thomas.<br />
Ainda não encontrei coragem para ler as últimas vontades de<br />
Monsenhor Fernandez. Sei que não devo ser dado a superstições,<br />
mas sinto que a missiva de meu mestre contém sua derradeira<br />
lição e, enquanto esta ainda não for aprendida, ele não me deixará<br />
sozinho.<br />
Estrada para Wistonbury, 6 de fevereiro de 1502, Ano do<br />
Senhor<br />
Ontem à noite, mal guardei a pena e assoprei a vela, um<br />
evento digno de nota ocorreu em nosso pequeno acampamento.<br />
De início, uma estranha cerração se abateu sobre nós, como se<br />
nos forrassem, de uma única vez, com um cobertor de brumas, e<br />
em seguida, vieram os uivos.<br />
Não me prenderei aos terríveis detalhes do ocorrido, mas<br />
perdemos os cavalos e uma das bestas de carga, esta última<br />
sacrificada por Thomas para saciar o apetite voraz das feras<br />
em nosso encalço. Em nome de nosso salvador, como é difícil<br />
conviver com este homem! Ainda banhado pelo sangue da mula,<br />
praticamente nos açoitou para que corrêssemos mais depressa.<br />
Tentei argumentar que a vida monástica não nos havia preparado<br />
para desafios físicos, mas sua retórica, composta basicamente de<br />
ameaças e meneios com a espada, foi mais eficaz.<br />
A noite caiu há apenas poucos minutos e todos estamos<br />
temendo a vinda da cerração, do breu branco que prenuncia os<br />
uivos e a morte. Talvez os lobos tenham ficado para trás, talvez<br />
nós estejamos a... Ouço algo. Brian foi verif...<br />
(TRECHO PERDIDO)<br />
10
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
Vilarejo de Wistonbury, 10 de fevereiro de 1502, Ano do<br />
Senhor<br />
Louvado seja o Pai! Apesar de todos os obstáculos, alcançamos<br />
nosso destino. Irmão Brian permanece desacordado e sua ferida<br />
parece ter infeccionado. Minha própria febre ainda queima forte<br />
e cruel. O maldito Thomas é único de nós que ainda consegue se<br />
manter de pé. Às vezes penso que sua crueldade lhe dá alguma<br />
espécie de força sobre-humana.<br />
Estou alojado na casa paroquial. A vila é pequena e de aspecto<br />
sombrio, as nuvens de fim de outono lhe emprestam um tom<br />
tétrico e o rugido do oceano próximo mais assusta que acalenta.<br />
Porém, o que realmente me roubou a atenção foi o velho castelo.<br />
O local parece estar abandonado há décadas, mas ainda guarda<br />
um pouco de sua velha elegância. Altas torres e janelas, que<br />
lembram olhos vazios e fixos, saúdam todos aqueles que entram<br />
na vila e um poço fétido e semi-destruído afugenta qualquer alma<br />
mais curiosa com seus miasmas imundos. Lembro que perguntei<br />
o nome daquela peculiar construção, mas houve uma estranha<br />
recusa dos gentis em me responder. No entanto, alguém deve ter<br />
sussurrado algo, pois o nome “Despensa do Carniçal” me assombra<br />
sempre que me encontro sob o olhar vítreo daquelas janelas...<br />
(TRECHO PERDIDO)<br />
Vilarejo de Wistonbury, 14 de fevereiro de 1502, Ano do<br />
Senhor<br />
A febre finalmente deixou meu corpo e aos poucos estou<br />
me adaptando ao ritmo do vilarejo. Ainda não celebrei minha<br />
primeira missa, afinal a capela ainda se encontra destruída pelo<br />
incêndio, e tento não pensar que assim se foi meu velho professor,<br />
consumido pelas chamas. De toda maneira, a pequena população<br />
de Wistonbury tem muito a agradecer.<br />
Diferente das demais vilas e aldeias próximas, esta parece<br />
prosperar e não sofrer com ataques de bandoleiros ou bestas<br />
selvagens. A população é bastante jovem e cordial e ainda não<br />
11
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
ouvi queixas sobre as criações ou a colheita. Apenas um pequeno<br />
grupo de anciões parece viver em constante pesar, com seus rostos<br />
taciturnos e passo arrastado, como se guardassem um terrível<br />
segredo. Tentei aproximar-me, mas minha juventude deve tê-los<br />
espantado, pois andam ainda mais reclusos esses dias.<br />
Tenho também o infeliz dever de registrar que o estado de<br />
saúde de irmão Brian é cada vez mais precário e que “Sir” Thomas<br />
ainda nos brinda com sua dispensável companhia.<br />
Vilarejo de Wistonbury, 15 de fevereiro, Ano do Senhor<br />
Meu Senhor, dê-me paciência para suportar a ignorância dos<br />
tolos! Já convivi com aldeões e sei que algumas vezes sua natureza<br />
supersticiosa os leva à prática de comportamentos estranhos, mas<br />
o que me foi sugerido aqui beira a heresia! Pai, ajuda-me a acalmar<br />
meu ânimo para que possa relatar imparcialmente os tristes fatos<br />
deste dia negro.<br />
Hoje faleceu o irmão Brian. Apesar do esforço de todos para<br />
salvá-lo, seu corpo mortal não resistiu aos ferimentos e sucumbiu<br />
ante o abraço cálido da morte. Que o Senhor o tenha em sua<br />
companhia. Porém, esse triste fato foi o estopim para a epidemia<br />
de insensatez que tomou a vila.<br />
Os mais velhos foram os primeiros a me comunicar sobre a<br />
intenção de realizar seu herético ritual. Custei a acreditar que<br />
falavam sério quando me sugeriram que, segundo os costumes<br />
locais, não deveria velar o corpo de meu confrade, ou mesmo<br />
realizar um cerimônia fúnebre adequada, mas sim atirá-lo como<br />
um bicho no poço do profano castelo!<br />
De repente, entendi de onde vinha o fedor que exalava daquela<br />
boca pútrida e blasfema, aquele buraco negro deveria estar repleto<br />
com os cadáveres dos mortos do vilarejo, cada um em diferente<br />
estado de decomposição! Meu deus! Estaria Monsenhor Fernandez<br />
também legado àquela conspurca sepultura?! Queira o Senhor que<br />
não tenha sido esse seu destino.<br />
Obviamente, afastei qualquer possibilidade de tamanha<br />
insanidade ocorrer e os exortei severamente a abandonar tão<br />
blasfemo costume! Ainda tive de lidar com a ignorância costumaz<br />
12
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
de Thomas que chegou a sugerir que seguíssemos a lei local.<br />
Obriguei-o a me ajudar a levar o corpo inerte de Brian à casa<br />
paroquial, onde agora estamos. Esta noite será de vigília e orações,<br />
portanto devo encerrar brevemente este relato... Alguém bate à<br />
porta, deixarei Thomas atender.<br />
Vilarejo de Wistonbury, 16 de fevereiro de 1502, Ano do<br />
Senhor<br />
Louvado seja Deus por homens como Thomas! Se vivo hoje<br />
para descrever os fatos, que até agora me recuso a acreditar, é<br />
por exclusiva responsabilidade deste servo do Senhor. Escrevo<br />
apenas para manter a sanidade e ajudar minha mente e espírito<br />
a compreenderem a grandiosidade e perigo da missão que me<br />
aguarda.<br />
Ao finalizar os relatos do dia de ontem, fui verificar o porquê<br />
da demora de Thomas em me indicar quem nos visitava em tão<br />
inoportuna hora e deparei-me com a mais bizarra das visões.<br />
Diante de mim, o cavaleiro batia-se em combate contra duas<br />
criaturas saídas dos mais terríveis pesadelos da espécie humana.<br />
A raça das trevas tinha a pele da cor do azeviche, grossa e<br />
coberta de chagas, seu crânio alongado possuía, a guisa de face,<br />
uma bocarra repleta das mais pontiagudas presas que a noite<br />
era capaz de produzir e um focinho animalesco sempre a fungar,<br />
seus braços finos, de músculos rijos e definidos, terminavam em<br />
garras alongadas, forjadas para rasgar a carne e perfurar os ossos.<br />
Porém, sua maior arma era o fedor nauseabundo que exalavam.<br />
Petrificado, assisti a Thomas, armado de archote e espada,<br />
empreender sua dança mortal com as criaturas. Aço e fogo contra<br />
garras e presas, e por nosso senhor Jesus Cristo, ele estava<br />
ganhando! O guerreiro abanava o archote em longos semicírculos<br />
enquanto saltava e estocava a carne podre dos demônios com<br />
sua espada longa, enquanto isso, as bestas recuavam e silvavam,<br />
ameaçando com suas garras e mostrando os dentes serrilhados.<br />
Apenas quando eles cruzaram os umbrais, notei o porquê daquele<br />
estranho comportamento.<br />
Em seu jogo mortal, as criaturas atraiam Thomas para fora<br />
13
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
da casa paroquial! Corri em seu auxílio, mas meu grito de alerta<br />
morreu em minha garganta quando senti um ardor lancinante<br />
descer da nuca até o meio das costas. Um terceiro demônio me<br />
atingira de raspão, enquanto o quarto saltava pela janela com um<br />
fardo enrolado em mortalha branca. A raça das trevas havia vindo<br />
buscar seu tributo, o corpo do irmão Brian.<br />
Virei-me para encarar a face de meu algoz. Bem sabia que não<br />
era capaz de derrotar em combate tamanha monstruosidade, mas<br />
algo ainda me impelia, algum fio de esperança não permitia que eu<br />
me abandonasse ao puro terror que aquela cena evocava. Peso em<br />
relatar que vi astúcia naqueles olhos amarelos, uma inteligência<br />
maliciosa que se deleitava com meu medo. Um urro inumano,<br />
porém, tirou o prazer daquele blasfemo sorriso. Ao que parece, o<br />
cavaleiro estava vendendo caro demais sua própria vida!<br />
Com um safanão, a criatura atirou-me de lado e partiu em<br />
auxílio de suas irmãs demoníacas, mas o verdadeiro monstro se<br />
chamava Thomas e ao final de seu mórbido ofício, três cadáveres<br />
profanos jaziam inertes aos seus pés. Não conseguimos impedir<br />
que levassem o corpo do irmão Brian e sofro ao pensar que<br />
terríveis abominações encontram repasto em sua carne, mas ao<br />
menos escapamos com vida.<br />
Tarde demais, abri a carta de meu mentor. Poucas eram suas<br />
palavras, mas que falta me fizeram! Transcrevo-as agora: “A noite<br />
é sua inimiga. Os seus filhos se alimentam da carne dos mortos<br />
enquanto o seu Mestre bebe do sangue dos vivos. Ele repousa no<br />
velho casarão e apenas a luz do sol, o fogo e o aço santificado são<br />
capazes de ferí-lo. Eu falhei, Ignácio, mas você há de triunfar”. E<br />
assim o farei. Ao raiar do dia, meu Senhor há de guiar minha mão<br />
e meu espírito até a sagrada vitória. Amém.<br />
(DIVERSOS TRECHOS PERDIDOS)<br />
Londres, 2 de fevereiro de 2011, Ano do Senhor<br />
Encontrei hoje meu velho diário e relembrei com saudades<br />
daqueles dias ingênuos. A quem interessar possa, realmente venci<br />
o duelo contra o demônio do casarão, mas não foi livre de preço.<br />
14
ANNO DOMINI<br />
Elsen Pontual<br />
Tive vários séculos para especular e hoje acredito que foi seu sangue<br />
contaminado que me legou sua maldição, mas depois de tanto tempo<br />
já não me importo mais. Irei encerrar por essa noite, pois o dia não<br />
tardará a amanhecer e Thomas deve estar retornando com minha<br />
comida. Tenham todos uma boa noite.<br />
15
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
16
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
O ploc da bola de chiclete cor de rosa foi bem próximo ao<br />
meu ouvido direito. Já tinha falado milhões de vezes<br />
para ela não fazer isso, ainda mais quando eu estava trabalhando.<br />
Leila fingiu que não percebeu que eu fingia ignorá-la, brincou com<br />
uns papéis soltos e depois se sentou com os pés em cima da minha<br />
mesa, e ainda por cima com aquelas botas. As escolhidas da vez<br />
eram da Doc Marten, meio palmo de salto e um couro tingido de<br />
roxo que me dava arrepios só de olhar.<br />
Novo ploc da bolha rosa. Se Mathias, meu editor, visse minha<br />
cara ia morrer de rir. Segundo ele, Leila era o jeito que eu tinha<br />
arranjado para me sentir jovem de novo. O velho clichê do<br />
divorciado de meia idade que arranja uma namorada que parece<br />
sua filha. Ele achava a prática saudável e ficou feliz quando lhe<br />
contei sobre ela, mas não foi capaz de esconder o choque quando<br />
os apresentei. Não era culpa dele. Meia dúzia de piercings e um<br />
cabelo laranja fazem isso com qualquer um.<br />
Perguntei-me por que a trouxe comigo quando resolvi vir para<br />
esse fim de mundo terminar meu último romance. Sim, é muito<br />
bonita apesar de todo esse metal na cara, me faz rir também...<br />
Ah, seja sincero consigo mesmo Virgílio: você não queria dormir<br />
sozinho.<br />
— Está chato aqui. — Ela resmungou enrolando uma mecha do<br />
cabelo laranja.<br />
Percebi que as unhas, no dia anterior, azuis, naquela noite<br />
estavam verdes. Talvez Mathias tivesse razão, ela era jovem demais<br />
para mim. Talvez, na volta, pudesse mandá-la para sua casa. Pela<br />
primeira vez me dei conta de que nem sabia se Leila morava com<br />
17
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
os pais ou não antes de chegar ao meu apartamento com uma<br />
mochila de lona preta três dias depois de nos conhecermos.<br />
Devia ter lhe dito: olhe querida, nos damos muito bem em<br />
muitos sentidos, mas essa coisa de morar juntos é um pouco<br />
demais. Pensei em dizer, mas perdia as palavras sempre que ela<br />
me encarava com aqueles olhos zombeteiros cheios de lápis preto.<br />
Às vezes me sentia um idiota.<br />
— Vamos sair? — não convidou, bufou irritada levantando da<br />
cadeira que rodopiou e ameaçou cair tamanha a brusquidão do<br />
movimento.<br />
— Você pode ir se quiser. — Disse — Tenho que terminar este<br />
capítulo.<br />
A verdade é que, desde que ela me interrompeu com seu<br />
odioso chiclete cor de rosa, tinha parado de trabalhar. Abri outro<br />
documento, minhas anotações pessoais, e começei a escrever<br />
obsessivamente o que estava pensando, isto é, Leila. Como me<br />
livrar de Leila.<br />
— E eu vou fazer o quê sozinha? — ela tornou — Essa cidade é<br />
o c... do mundo.<br />
— Deveria ter ficado em casa. — Falei fingindo concentração<br />
na página do Word, metade preenchida, mas nem de longe sobre<br />
meus personagens fictícios.<br />
Queria irritá-la só um pouquinho, como ela me irritava, mas<br />
sempre dava errado. Leila me olhou como se eu fosse um inseto<br />
estranho e não disse nada. Afinal, eu a convidei não foi assim?<br />
Ela andou e as tábuas do velho casarão rangiram como se<br />
reclamassem. “Até as tábuas reclamam de você, querida”.<br />
— Pegue o carro — sugiri — há um barzinho um quilômetro<br />
daqui, é melhor do que ficar aqui pintando as unhas de roxo e<br />
ouvindo Iron Maiden.<br />
Na verdade, não queria ficar sozinho, mas bastava-me saber<br />
que ela estava na casa, não à minha frente. Leila pegou as chaves<br />
do jipe e me deu as costas sem mais uma palavra.<br />
****<br />
18
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
O palavrão ficou engasgado por causa da dor causada pela<br />
queimadura de cigarro. “Quem manda fumar dirigindo sua tonta?<br />
E quem mandou vir com aquele imbecil pra esse fim de mundo?”<br />
O bar se revelou um nojo, um misto de cheiro de cerveja e de<br />
banheiro quebrado. Leila bebeu alguma coisa só para não perder<br />
a viagem, depois voltou para a maldita casa caindo de velha que<br />
Mathias emprestou a Pedro.<br />
Ela não entendia a razão do rico editor conservar uma velharia<br />
daquela, até tinha estilo, mas estava ruindo! E, à noite, o vento<br />
vindo do mar fazia sons estranhos quando ecoava por aquelas<br />
paredes emboloradas. Pedro podia achar interessante, ele tinha<br />
imaginação para isso, ela não.<br />
Estacionou o jipe em frente ao casarão e acendeu outro cigarro,<br />
não tinha pressa para entrar, com certeza Pedro continuava<br />
grudado no Mac. Acreditava que ele estava mesmo ficando<br />
corcunda de tanto se debruçar sobre o teclado, mas se recusava a<br />
usar óculos. Idiota.<br />
Leila andou até a borda no penhasco sobre o qual a casa estava<br />
assentada, a noite estava fria como todas as malditas noites ali. A<br />
única coisa bonita era o mar, mesmo à noite com as águas escuras<br />
como breu. Ela se espreguiçou fazendo estalar as juntas dos braços<br />
magrelos e acendeu mais um cigarro.<br />
Parecia uma chaminé andando com as mãos nos bolsos da<br />
jaqueta de couro detonada. Até que uma das Doc Marten roxas<br />
bateu com tudo em alguma coisa enterrada no chão. O dedão<br />
doeu e ela praguejou alto o bastante para Pedro ouvir, ele e quem<br />
passasse a meio quilômetro dali.<br />
Abaixou para ver o que tinha tentado inutilizar seu pé. Não era<br />
nada, só um velho balde parcialmente enterrado.<br />
— Mas essa... — ainda resmungou.<br />
As luzes da casa iluminavam parcialmente o que parecia ser<br />
um velho poço abandonado. Leila não queria dar outro tropeção<br />
no caco de balde de novo. Caminhou até o poço e olho para dentro<br />
dele.<br />
Não esperava ver nada mesmo, era noite. Com certeza ninguém<br />
usava o poço. Quando estava debruçada sobre os tijolinhos, um<br />
forte odor a atingiu. Cheiro de coisa podre. Mais uma razão para<br />
19
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
odiar aquele lugar. Leila cuspiu no capim e jogou o balde no poço.<br />
Fumou o último cigarro e o jogou no poço também. Era hora de<br />
entrar e dormir.<br />
Se ela tivesse ficado só mais um pouquinho... teria visto a<br />
pequena brasa do cigarro fazer uma graciosa pirueta na escuridão.<br />
Teria visto outras luzinhas também avermelhadas respondendo lá<br />
em baixo.<br />
****<br />
O corpo esguio e frio dela me tirou do cochilo quando entrou<br />
sob as cobertas. Tão fria, devia estar há algum tempo lá fora.<br />
Havia me arrependido de tê-la mandado sair, não gostei de ficar<br />
sozinho. É ridículo admitir, mas a casa estava começando a me dar<br />
medo. São sons de passos e pequenas vozes sempre que tento me<br />
concentrar em alguma coisa.<br />
No início atribuí isso ao vento incessante no penhasco, porém<br />
vento algum fala coisas como “termine logo”, “mais três laudas”,<br />
“estamos com sede” ou “saia e venha ficar conosco”. Assim que<br />
Leila saiu, ouvi todas essas coisas. Vou tentar dormir, talvez seja<br />
apenas cansaço.<br />
****<br />
Que imbecil! Ele fala dormindo! Af, onde você estava com a<br />
cabeça quando aceitou vir Leila? Ainda por cima chuta quando<br />
dorme.<br />
****<br />
“Temos sede, Pedro”, “sede”. “Dê-nos algo e terminará seu<br />
livro”. Foi o último sonho estranho que tive. E quando o dia<br />
amanheceu notei que não tinha sido o único a ter uma noite ruim.<br />
Leila tinha olheiras que nem a pesada maquiagem escondeu.<br />
Mathias me ligou com seu ar bonachão e perguntou sobre o livro.<br />
— Quase terminado — respondi.<br />
Era mentira, claro. Estava muito longe de acabar. Minhas obras<br />
20
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
haviam sido consideradas perfeitas pela crítica, sem exceção. E<br />
sempre funcionava me retirar para essa casa longe de tudo para<br />
me concentrar, uma ideia de Mathias que deu muito certo.<br />
Mas porque eu estava com medo da casa agora?<br />
À noite mais uma vez debruçado sobre o teclado, só que Leila<br />
não apareceu para me perturbar. A visão de suas pernas quando<br />
ela punha os pés na mesa até que era boa...<br />
Página em branco. Uma hora. Duas horas. Página em branco.<br />
“Sede”. “Nunca mais, nunca mais...”. “Dê-nos de beber, Pedro, e<br />
terminaremos para você”.<br />
Quase saltei da cadeira, estava cochilando e havia uma leve<br />
ardência no meu pulso. Quando fui fechar o computador uma gota<br />
púrpura pingou no teclado.<br />
Não me lembrava de ter me ferido. Não me lembrava de ter<br />
dormido.<br />
Seja como for eu estava bem acordado, e vi a figura esquelética<br />
na janela sob as cortinas de mau gosto.<br />
— Como você entrou? — perguntei me pondo de pé.<br />
Minha indignação era puramente para esconder o mal estar<br />
que me fazia suar frio.<br />
— Leila se for você isso não tem graça...<br />
Mas logo descobri que não era ela. Não poderia ser! Nem<br />
com sua mais alta bota gótica Leila ficaria mais alta do que eu. E<br />
logo uma lufada de vento me fez ter certeza de que aquilo nunca<br />
poderia ser Leila. Nunca poderia ser humano.<br />
O rosto descarnado e a pele cinza não eram parecidos com<br />
nada que eu já tivesse visto. Uma língua comprida serpenteava<br />
pela boca de dentes afiados enquanto o ser me olhava fixamente<br />
nos olhos.<br />
— Achei que tínhamos um trato. — A criatura silvou. — Você<br />
não cumpriu sua parte. Onde está nossa bebida?<br />
Como um sonho ruim o tempo congelou. Não tinha ideia do<br />
que ele estava falando, mas no fundo sabia que era tudo verdade.<br />
— Que bebida? — gaguejei.<br />
21
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
Recuaria se minhas pernas permitissem, mas não conseguia<br />
me mexer.<br />
Um dedo ossudo foi erguido e em uma fração de segundos<br />
estava encostado na minha testa, arranhando a pele com a sua<br />
unha suja e comprida.<br />
Foi como cair durante um sonho, eu me via chegando naquela<br />
casa pela primeira vez. Via Mathias e Rita. Mathias me mostrou<br />
tudo e foi embora, tinha negócios na capital. Eu e Rita, minha<br />
namorada na época, ficamos ali.<br />
A imagem seguinte foi aterradora! Aquilo não podia ser eu!<br />
Senti o peso do machado que, o que parecia ser eu, pegou no<br />
porão. Rita dormia. Foi um golpe seco no pescoço. Mais daqueles<br />
monstros me circundavam e sussurravam coisas para eu fazer,<br />
aparentemente fracos demais para fazerem sozinhos. Depois que<br />
a matei arrastei-a para fora e a atirei no poço onde vi mãos semihumanas<br />
recebendo e estraçalhando seu corpo jovem.<br />
Em seguida, me sentei para escrever, o escritório estava cheio<br />
deles e todos me sussurravam o que fazer. Um livro em dois dias,<br />
sem comer nem dormir, eu não precisava de nada. “O Uivo da<br />
Besta” foi lançado na primavera seguinte. O sumiço de Rita foi<br />
atribuído a um acidente, para todos os efeitos ela caiu no mar<br />
bêbada.<br />
Rita era bem parecida com Leila, gótica e revoltada. Ninguém<br />
contestava que ela bebia e, eventualmente, se drogava. Leila não<br />
usava drogas, mas ninguém colocaria a mão no fogo por ela...<br />
“Vá agora, Pedro”, “precisa terminar seu livro e nós precisamos<br />
beber”.<br />
Começei a procurar algo que não sei ao certo o quê. Então<br />
me lembrei: o machado. Ao invés dele a criatura me estendia um<br />
punhal curvo com uma lâmina de 30 centímetros.<br />
— Leila? Onde você está, meu bem?<br />
São as únicas palavras que consigui dizer, como uma prece<br />
sinistra repetida uma dúzia de vezes.<br />
Ela apareceu no topo da escada com o rosto parcialmente<br />
oculto pelas sombras.<br />
22
— O que foi agora?<br />
INSPIRAÇÃO<br />
Lucélia Rodrigues<br />
Meu corpo subiu cautelosamente os degraus. “Só mais uma<br />
vez”, repetia para mim mesmo, só mais esse romance. O punhal<br />
curvo era bonito em movimento, a lâmina riscou o ar. Meus olhos<br />
estão muito abertos quando rolei escada abaixo com uma dor<br />
terrível no estômago. Bem onde ela me acertou com suas Doc<br />
Marten. Sempre odiei essas botas.<br />
A lâmina penetrou até o cabo no meu abdômen e a dor me<br />
fez sair do transe. Eu não queria ter saído. Estava lúcido quando<br />
a criatura farejou meu sangue. E ainda estava lúcido quando<br />
surgiram outras como ela e me arrastaram para o poço.<br />
****<br />
Leila sentia frio no escritório, mas não se importava. A luz<br />
do Mac de Pedro fazia seu cabelo laranja parecer em chamas<br />
na penumbra. Ela não dormia e nem comia há 48 horas. Se não<br />
estivesse em transe, veria que não estava sozinha. Ela veria<br />
dezenas de criaturas cinzentas lhe sussurrando o que pôr na<br />
página branca que logo era preenchida.<br />
Mathias chegou no sábado pela manhã como havia combinado<br />
com Pedro. Não tocou a campainha, pois a casa não era sua? Ouviu<br />
o som das teclas do computador e outro mais... Foi direto para o<br />
escritório escuro.<br />
Ficou um pouco surpreso em ver Leila trabalhando. Como não<br />
adivinhou que aquela seria mais dura na queda? Mas que diferença<br />
isso fazia?<br />
Mathias pousou uma mão bem tratada no ombro nu da moça,<br />
ela parou de digitar. Mecanicamente como uma boneca.<br />
As criaturas se inclinaram em uma pequena reverência ao seu<br />
mestre.<br />
Ele se dirigiu à única humana ali:<br />
— Diga meu bem, você quer um editor?<br />
23
PRESAS<br />
CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
24
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
P rospero forçou os olhos na escuridão. Por um momento,<br />
ajudado pela luminosidade do luar, vislumbrou um<br />
movimento furtivo entre os ciprestes que ladeavam o jardim.<br />
Cauteloso, percebendo a ameaça crescer ao seu redor, preparouse<br />
para dar o alarme.<br />
Então, às suas costas, advindos do portão principal, passos<br />
ressoaram em seus ouvidos. Elétrico, espada em punho, ele se<br />
virou. Com os lábios trêmulos, balbuciou sua ordem:<br />
— Quem está ai?<br />
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
O eco de sua voz se perdeu na noite, nada mais que um<br />
sussurro abafado pelo farfalhar das árvores. De súbito, saindo das<br />
sombras, uma voz feminina soou a resposta:<br />
— Lazüe, Alta Inquisidora da Ordem de Häramor.<br />
— Lazüe? - disse o homem, aliviado. - Deuses! Não esperava<br />
que o mensageiro houvesse sido tão rápido, muito menos que a<br />
Guarda de Ytheron nos enviasse um Inquisidor.<br />
— E eles não enviaram - obtemperou Lazüe, seus olhos,<br />
velados pelo longo capuz que lhe cobria a cabeça, irradiando um<br />
brilho sombrio. - Os Contestáveis de Ytheron, ao que parece,<br />
estão muito ocupados desnudando prostitutas ou extorquindo<br />
mercadores; a mão de sua justiça duvidosa não se interessa pelas<br />
regiões de Darfell. Enfim - suspirou ela -, eu estava em Q’huzar<br />
quando ouvi rumores sobre o assassinato do barão Attälus. Quem<br />
está liderando o caso? Kardaran?<br />
— Não - respondeu Prospero, embainhando a espada. - Hadroth<br />
está à frente das investigações.<br />
25
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
— Entendo - murmurou Lazüe. - E o que vocês descobriram?<br />
— Muito pouco - disse ele. - Estávamos patrulhando os<br />
Corredores de Pedra quando seu escravo chegou até nós dizendo<br />
que ele havia sido assassinado. Liderados por Hadroth, nós nos<br />
dirigimos à mansão e, prontamente, averiguamos onde ocorreu<br />
o crime. Vimos o corpo de Attälus, mas não tocamos nele com<br />
receio de perdermos alguma pista. Então, despachamos um<br />
mensageiro até Ytheron para que os Contestáveis nos enviassem<br />
um investigador que pudesse ser responsável pelo caso e...<br />
— Esse escravo - interrompeu a Inquisidora, cansada ao ter de<br />
ouvir novamente o nome de Ytheron - como se chama?<br />
— Oh, sim! Chama-se Oberon e está, segundo relatos, há mais<br />
de 49 ciclos sob a posse de Attälus.<br />
— Vocês já averiguaram se esse tal de Oberon cometeu o<br />
assassinato? - inquiriu ela, mãos tateando a cintura de onde pendia<br />
uma curva cimitarra.<br />
— Sim. E não descartamos a possibilidade... Ou melhor,<br />
Hadroth não a descartou - respondeu Prospero. - Entretanto, creio<br />
que isso seja pouco provável. Quando interrogamos o coitado ele<br />
estava em um estado deplorável, murmurando palavras acerca de<br />
livros e habitantes do... - nesse momento, o guarda olhou para<br />
os lados, em direção as sombras que se alastravam por entre o<br />
jardim. - Quanto a isso, Inquisidora, acho melhor você mesma<br />
ouvir.<br />
Lazüe, diante da hesitação do homem, franziu o cenho.<br />
— Leve-me até Hadroth - demandou ela.<br />
Prospero aquiesceu, conduzindo-a imediatamente. Envolvida<br />
pela noite, Lazüe contemplou as estátuas que pontilhavam o<br />
caminho, bem como os muros que circundavam o espaçoso<br />
terreno. Suave, o cheiro de maresia se fez presente no momento<br />
em que os dois subiram um aclive onde, do outro lado, uma<br />
queda abrupta indicava, lá embaixo, a sonora presença do mar<br />
regurgitando suas águas salobras contra o paredão rochoso. Num<br />
instante, atravessando o grande arco, eles galgaram o lance de<br />
degraus que levava até a soleira de Attälus de Gadazzar, morto<br />
de maneira misteriosa em sua rica moradia. No entanto, antes de<br />
entrar, Lazüe se deteve. Voltando-se para trás, viu o contorno do<br />
26
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
parapeito destruído de um poço. A Inquisidora, atraída pelo vórtice<br />
vazio que residia além da beirada sombria, se dispôs a examiná-lo<br />
de perto. No entanto, sua ação fora interrompida pela voz suave<br />
de Prospero que a chamava para adentrar na mansão. Estalando<br />
em seus eixos, a porta de carvalho abriu e se fechou. Do lado<br />
de fora, cinzelados pela noite, olhos vítreos, de dentro do poço,<br />
cintilaram como jóias do inferno.<br />
II<br />
O saguão principal era amplo. Próximos da lareira, Lazüe viu<br />
que dois homens conversavam. Um, de altura mediana, estava<br />
vestido exatamente como Prospero: trazia uma armadura simples,<br />
cingida por um manto escarlate que apresentava o símbolo dos<br />
Guardas da Fronteira.<br />
Já o outro era mais baixo; um anão robusto trajando uma malha<br />
de anéis onde, incrustada sobre o peitilho prateado, cintilava uma<br />
insígnia que atestava sua posição de capitão. A Inquisidora, no<br />
momento em que o sujeito indagou Prospero, pôde divisar a grande<br />
cicatriz desenhada em seu rosto. Murmurando algo ininteligível,<br />
torcendo as longas barbas escuras, o anão se adiantou. Ao alinhar<br />
suas melenas atrás das orelhas, curvou-se em uma reverência.<br />
— Este é Valreus. Eu sou Hadroth de Mörzzar. Bem, estamos à<br />
sua disposição. - Disse ele, a voz velada de malícia.<br />
— E eu sou Lazüe, Alta Inquisidora de Häramor.<br />
— Ora, uma Inquisidora de Häramor! - exclamou o anão,<br />
fingindo-se surpreso, lábios se abrindo em um riso zombeteiro. -<br />
Realmente, é bom ver que os Filhos do Sul, diante da crise pelas<br />
quais suas cidades estão passando, começaram a se importar com<br />
os “Cães do Norte”!<br />
— Poupe-me de suas palavras, Hadroth! - rosnou Lazüe. Pouco<br />
amor existia entre Mörzzar, no Norte, e Häramor, no Sul; muitas<br />
guerras haviam sido travadas entre os dois nos tempos de outrora.<br />
- Não estou aqui por conta de suas rixas infantis. Diga-me: a que<br />
horas ocorreu o crime?<br />
Hadroth murmurou uma praga, olhos cintilando de raiva.<br />
27
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
- Oberon - respondeu a contragosto - disse que os gritos foram<br />
ouvidos pouco depois do pôr-do-sol. Assustado, ele correu em<br />
direção aos aposentos de Attälus; encontrando o lugar em uma<br />
completa desordem e o corpo do barão estirado no chão.<br />
Silêncio. Lazüe, de frente para a lareira, sorveu as informações.<br />
Prospero, junto à porta, examinou pela primeira vez os contornos<br />
do corpo da Inquisidora: as pernas torneadas, as espáduas<br />
delineadas e os braços rijos da mulher indicavam o rigoroso<br />
treinamento pelo qual ela havia passado. Cauteloso, ele se moveu<br />
rente ao seu objeto de escrutínio, devorando o ardor daquela<br />
beleza. O guarda, tendo-a de perfil, tentou ultrapassar a ingrata<br />
barreira que o capuz trajado por ela conferia.<br />
— A visão o agrada? - sibilou Lazüe, sem tirar os olhos das<br />
chamas. Prospero, pego de surpresa, engasgou. Hadroth, vendo o<br />
rosto do sujeito corar, zombou:<br />
— Ao que parece nosso novato nunca havia visto uma<br />
Inquisidora antes, hein? Sim, meu amigo, elas são lindas. Ora,<br />
Lazüe, perdoe-o. Afinal, não é culpa dele que todas as mulheres de<br />
Häramor sejam assim... Como posso dizer? Apetito...!<br />
— Dobre sua língua, cão! - Bradou Lazüe, rangendo os<br />
poderosos dentes. - Ou teremos mais um assassinato aqui!<br />
Hadroth abriu a boca, pronto para despejar uma nova<br />
imprecação. Entretanto, ciente da ameaça, moderou sua ira. Lazüe<br />
meneou os ombros. Ao retirar o capuz que escondia sua cabeça,<br />
seus cabelos azulados, cortados na altura dos ombros, cintilaram<br />
diante dos homens. Prospero, boquiaberto, olhando de soslaio, viu<br />
que o semblante da Inquisidora era coroado por um par reluzente<br />
de olhos castanhos.<br />
— Onde está o escravo? - demandou ela, liberando todos do<br />
torpor que sua beleza havia causado. - Tragam-no aqui!<br />
O anão acenou uma ordem e Valreus, silencioso, seguiu até<br />
um corredor adjunto. Após alguns instantes, voltou trazendo uma<br />
figura de cabelos brancos. Lazüe, indicando uma cadeira para que<br />
o homem se sentasse, interrogou:<br />
— Você é Oberon?<br />
— Sim... Sim - gaguejou o homem.<br />
28
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
— Bem, temos um caso complicado - disse ela -, e, para<br />
solucioná-lo, precisaremos de toda a sua cooperação. Embora,<br />
creio que você seja o único suspeito.<br />
— Eu não fiz nada! - arfou Oberon, mãos ossudas agitando-se<br />
sobre a cadeira. - Fui eu que avisei os guardas sobre o assassinato<br />
de...!<br />
— Poupe-me! - trovejou a Inquisidora. - Creia-me, você não<br />
seria o primeiro a ter usado desse artifício para despistar indícios<br />
de culpa! Vamos, conte-me o que aconteceu.<br />
— Ele está morto! - soluçou o homem. - Eu avisei para não ler<br />
o livro... Tolo, tolo! Oh, melhor teria sido se eu o tivesse matado.<br />
Assim seu corpo não seria levado por Eles...<br />
— Oberon! - ordenou ela, esbofeteando-lhe o rosto. - Do que<br />
você está falando? Que livro? Quem são eles?<br />
— “Sussurros da escuridão...” - balbuciou o escravo. - Era o<br />
que ele vinha escutando ultimamente. “Eles estão vindo; e irão<br />
me conceder a vida eterna.”, era o que Attälus me dizia. Maldito,<br />
maldito livro!<br />
— Qual livro? - bramiu Lazüe impaciente, sacando a cimitarra<br />
com tanta fúria que a lâmina afiada zuniu. - Diga-me, ou eu corto<br />
sua orelha!<br />
— O livro que o barão conseguiu através de um erudito de<br />
Samärcand - choramingou Oberon. - Um homem, membro do<br />
Círculo, que havia dito para Attälus sobre “A ascensão à vida eterna<br />
através dos Habitantes do Crepúsculo”.<br />
— Samärcand! - precipitou-se Hadroth ao ouvir o nome, mãos<br />
apertando o cabo do machado. - Inquisidora, aqui no Norte esse<br />
nome não é visto como bom agouro.<br />
— E o capitão de Mörzzar crê em dragões também? - bufou<br />
Lazüe. - Ele está mentindo! Samärcand é um lugar vazio, uma<br />
vale estéril coberto de ruínas desde as Marchas. Ah, e o Círculo -<br />
escarneceu ela -, não é nada mais que uma lenda absurda acerca<br />
de cultos ligados às artes da necromancia. Fantasias derivadas das<br />
mentes sensíveis de campesinos.<br />
— Você irá me contar a verdade! - disse a Inquisidora voltandose<br />
para Oberon, acertando-lhe a boca com a guarda da cimitarra.<br />
29
- Eu quero a verdade!<br />
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
— Essa é a verdade. - Berrou ele, cuspindo sangue. - Os<br />
Habitantes do Crepúsculo... Sim, Eles estão vindo para levar a<br />
carcaça de Attälus. O pacto foi selado sob a lua. Sim, ele terá a<br />
vida eterna que tanto queria: a eternidade desfrutada nas criptas<br />
do inferno... Presas Cinzentas! Vourdalak! Vourdalak! Eles estão<br />
vindo...!<br />
Todos se afastaram no momento em que viram Oberon<br />
convulsionar em uma crise de histeria sobre a cadeira. Gritando<br />
alto, contorcendo-se, ele terminou por se esborrachar no chão da<br />
sala. Lazüe, ao diagnosticar que o homem havia simplesmente<br />
desmaiado, blasfemou.<br />
— Valreus, cuide dele - ordenou ela, chutando as pernas<br />
de Oberon com desdém. - Não deixe que ele escape. Hadroth,<br />
Prospero, o quarto do barão fica no segundo andar? Ótimo, levemme<br />
até lá.<br />
III<br />
Hadroth e Prospero, comandados por Lazüe, mantiveram-se à<br />
distância. Com olhos agudos, ela observou o aposento onde armas<br />
de feitio fantástico, cruzadas no alto das paredes, reluziam à luz<br />
de velas. Aqui e ali, pergaminhos e quinquilharias espalhavam-se<br />
em profusão sobre os móveis e divãs luxuosos.<br />
No centro do quarto, estirado de bruços como um montante<br />
de gordura desfeita, ela viu o vulto sem vida de Attälus de<br />
Gadazzar. Ao seu lado, um livro de páginas amareladas jazia<br />
aberto. Vagarosamente, Lazüe aproximou-se do corpo; com mãos<br />
experientes, tateou a nuca e as costas do morto. Consternada,<br />
murmurou a si mesmo:<br />
— Impossível! Ainda está quente...<br />
Aguçada pelo mistério, ela girou o torso do barão para cima;<br />
apalpando-lhe o ventre e a base do pescoço.<br />
— Não há marcas de violência. - Anunciou aos homens que<br />
aguardavam impacientemente. - É como se ele tivesse morrido de<br />
30
causas naturais.<br />
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
Então, num gesto que Hadroth julgou ser detestável, a<br />
Inquisidora abriu a boca mole de Attälus e puxou sua língua roxa<br />
para fora. - Nenhum odor - disse ela ao cheirar seu interior. - Ele<br />
não foi envenenado.<br />
Num átimo, sua atenção se voltou para o livro que estava com<br />
as páginas abertas sobre o assoalho. Lazüe o apanhou com mãos<br />
suadas, declamando, em voz alta, seu conteúdo marcado pelas<br />
anotações apressadas do barão:<br />
— “Noite sem lua... Clame pelas sombras. Hotath, Skelos<br />
e N’zakg! Escuridão em seu apogeu. Os mortos levantam.<br />
Promessa de eternidade... Ahuz Zatragrammaton. Habitantes do<br />
Crepúsculo... Levem-me aonde nem mesmo a morte pode morrer.<br />
Presas Cinzentas... Vourdalak.”<br />
Quando terminou de ler a sinistra passagem, Lazüe sentiu um<br />
arrepio frio tocar sua espinha. Eufórica, ela virou apressadamente<br />
as páginas em direção à contracapa, como se todas as respostas<br />
dos enigmas estivessem escondidas ali. Sua voz soou trêmula no<br />
momento em que seus olhos deram com o autor daquele livro:<br />
— Helkor de Samärcand!<br />
— Por Derketo! - jurou Prospero. - Oberon não estava mentin...!<br />
De repente, todos se viram estáticos em suas ações quando<br />
um grito de congelar a alma ecoou do primeiro andar.<br />
— Valreus! - exclamou Hadroth, desembestando em direção<br />
das escadas. Prospero, cambaleante, seguiu logo atrás e Lazüe,<br />
jogando o livro no chão, correu em seu encalço.<br />
O saguão estava em silêncio, o fogo da lareira extinto. Forçada<br />
em suas dobradiças, a porta de entrada jazia escancarada; um<br />
cheiro mefítico entrando pela corrente de ar. Em meio à escuridão<br />
não se via sinal de Oberon, mas, agonizando em uma poça de<br />
sangue, destacava-se a silhueta de Valreus.<br />
— Valreus! - bradou Hadroth, suas mãos emplastadas com o<br />
sangue do companheiro. - O que aconteceu?<br />
O guarda balbuciou algo incompreensível, os dedos febris<br />
apontando para o lado de fora. Num suspiro, seus movimentos<br />
31
cessaram.<br />
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
Automaticamente, todos olharam para as trevas que<br />
permeavam o exterior da mansão, sentindo a presença de uma<br />
silente ameaça. Lazüe, cimitarra na mão, postou-se próxima da<br />
porta, tentando divisar o lado de fora. Ela não teve certeza, mas<br />
viu um contorno difuso se esgueirar a partir do parapeito do poço.<br />
— Oberon, seu maldito! Não pense que pode fugir de mim! –<br />
gritou a Inquisidora.<br />
Um riso cruel gorgolejou da escuridão ao mesmo tempo em<br />
que um objeto indefinido, esguichando um líquido viscoso, rolou<br />
em sua direção.<br />
— Deuses! – gaguejou Lazüe ao ver que o objeto se tratava<br />
da cabeça do escravo; as feições, ressaltadas pela agonia,<br />
emolduradas em branca máscara de horror. – Quem está ai?<br />
Não houve resposta, nem mesmo quando aqueles olhos<br />
faiscaram nas trevas e saltaram sobre eles. Tudo ocorreu em um<br />
lampejo de segundo no qual Lazüe nem sequer piscou. Pasma,<br />
ela viu um vulto sombrio atacar Hadroth que, paralisado, sentiu<br />
presas afiadas estraçalharem seu pescoço. No mesmo momento,<br />
acompanhando o grito de morte do anão, ela ouviu o guincho<br />
aterrador de Prospero no instante em que alguma coisa investiu<br />
contra suas entranhas.<br />
Então, de repente, ela se viu ali, sozinha; toda a sua<br />
autoconfiança estilhaçada pela ação ofuscante de um terror<br />
desconhecido. Trêmula, ainda tentou empunhar desastradamente<br />
sua cimitarra quando um urro inumano reboou ao seu redor.<br />
Depois, tudo se apagou diante de si.<br />
IV<br />
Lazüe gemeu dolorosamente quando abriu os olhos. O cheiro<br />
forte de sangue empesteava todo o local e, apesar de ainda estar<br />
cercada pela escuridão, pôde ver o corpo ensangüentado de<br />
Prospero contorcendo-se em seus estertores de morte. Pondo-se<br />
de pé com dificuldade, ela, enquanto acalentava o ferimento na<br />
parte central da cabeça, sentiu seus joelhos vacilarem.<br />
32
PRESAS CINZENTAS<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
Subitamente, Lazüe lambeu os lábios, sentido seu sangue gelar<br />
nas veias quando sons de passos estalaram pelas escadas. Ela os<br />
viu descer, pouco a pouco, os contornos se tornando mais fortes, as<br />
feições humanóides cada vez mais delineadas. Eram três: formas<br />
grotescas de vida, olhos vermelhos, presas cinzentas e peles<br />
opacas vagueando na escuridão. Sem dar a mínima atenção a ela,<br />
como fantasmas à caminho de um encontro, as figuras encurvadas<br />
atravessaram a porta escancarada, uma a uma, seguindo em<br />
direção ao poço sinistro.<br />
Sem saber que papel ocupava nesse mundo, ou no outro, a<br />
Inquisidora se manteve imóvel. Horrorizada, depois ter visto duas<br />
das formas saltar dentro da escuridão do poço, ela contemplou a<br />
silhueta do último vulto parar sobre a beirada destruída. Havia um<br />
grande peso sobre suas costas arqueadas e Lazüe estremeceu ao<br />
tentar divagar o que deveria ser aquilo. Então, em um movimento<br />
brusco, o tecido que cobria o fardo se soltou e a mulher,<br />
enlouquecida, pôde ver o rosto gordo e pálido de Attälus.<br />
No mesmo instante, seus olhos começaram a girar nas órbitas;<br />
a boca espumando em uma crise de nervos. Sombras cresceram<br />
e, antes de entrar em colapso, ela escutou a gargalhada espectral<br />
do demônio no momento em que, com o corpo do barão sobre as<br />
costas, ele mergulhou nas trevas do poço.<br />
Lazüe de Häramor, caindo em frente à soleira da mansão,<br />
convulsionando, entregou-se às asas misericordiosas do óbvio.<br />
Porém, à sua volta, sussurros ululantes ainda ecoavam cada vez<br />
mais distantes: Vourdalak! Vourdalak...<br />
33
É NOITE, LÁ<br />
FORA ELES TE<br />
ESPERAM<br />
ALexandre Ribeiro<br />
34
É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />
Alexandre Ribeiro<br />
É NOITE, LÁ FORA ELES TE<br />
ESPERAM<br />
Alexandre Ribeiro<br />
“É noite, e lá fora, na penumbra, escondem-se aqueles que<br />
não existem e nem devem ser nomeados, não ouse chamá-los,<br />
entregue o que é deles, ou sua alma perderá.”<br />
A herdade me foi confiada por meu tio-avô, um velho<br />
casarão erguido na encosta de uma montanha. Eu não<br />
conheci meu tio de fato, e era compreensível, só tinha sete anos<br />
quando o vi pela última vez. Meus pais estavam apreensivos com<br />
a viagem, e eu também. Minha mãe estava entorpecida de medo,<br />
eu vi isso em seus olhos. E meu pai... Fazia grande esforço para<br />
esconder os mesmos sentimentos.<br />
— Você tem certeza de que quer ir àquelas terras? Elas me dão<br />
calafrios, Valter.<br />
— Querida, eu sinto o mesmo, mas ele é o meu último parente<br />
vivo. Eu preciso me certificar que ele estará bem.<br />
— Querido, mas e o Tarso? Ele ficará impressionado com<br />
a solidão e o vazio daquele lugar. Há algo de estranho naquelas<br />
terras, sinto que foram amaldiçoadas.<br />
— Raquel, meu tio está velho, ele pode partir a qualquer<br />
momento. Deixe-me visitá-lo mais essa vez. Estou com um aperto<br />
na alma, sinto que esta será a última.<br />
— Valter, seu tio é um homem estranho, eu não quero vê-lo.<br />
35
É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />
Alexandre Ribeiro<br />
— Não seja tão supersticiosa, não se esqueça que ele também<br />
tem o meu sangue.<br />
— Promete que será a última?<br />
— Eu não gostaria de prometer tal coisa, mas eu tenho certeza<br />
de que será.<br />
* * *<br />
O dia parecia normal e, no caminho, comemos os sanduíches<br />
que minha mãe preparou, porém, calados. Estávamos com um<br />
grande pesar no coração. Chegamos ao caminho que dava para<br />
a montanha. O céu se enegreceu em um instante. As árvores<br />
que circundavam o local pareciam terem sido varridas por um<br />
incêndio assolador, estavam esturricadas tanto como a terra que<br />
as abrigava; mortas.<br />
O vento soprou insistente, dando-nos uma sensação de um frio<br />
que cortava além da pele, na alma. Eu sei que só tinha sete anos,<br />
mas essas foram as sensações que eu senti ao chegar naquelas<br />
terras e a visão daquele lugar e das cenas que se seguiram jamais<br />
saíram de minha memória.<br />
Meu tio-avô Atanásio estava deitado na cama e, logo que<br />
entramos em seu quarto, ele ergueu a mão com esforço para tocar<br />
nas mãos de meu pai. Num breve sussurro disse:<br />
— Filho, obrigado por vir me visitar!<br />
— Tio, eu sinto muito! Não imaginava que estava neste estado.<br />
(Meu pai estava triste, dominado pela dor de ver o seu último<br />
parente vivo definhando num leito de morte).<br />
— Filho, tenho algo pra você.<br />
— Eu não quero nada, tio.<br />
— Aproxime-se, eu preciso lhe revelar o segredo, é seu, você<br />
precisa ouvi-lo.<br />
Naquela hora, eu comecei a tremer de medo ao ver aquela<br />
figura quase cadavérica, amortecida naquela cama fria, dominada<br />
por uma doença que eu não saberia precisar e nem tão pouco,<br />
neste momento, saberia descrever.<br />
36
É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />
Alexandre Ribeiro<br />
“Eu queria que meu pai largasse aquele homem e me tirasse<br />
dali”.<br />
Meu pai inclinou-se para ele e ouviu-o sussurrar em seu ouvido.<br />
Minha mãe me abraçou fortemente. Ali, meu pai me olhou e<br />
eu vi uma gota de suor ser derramada de sua fronte quando o tio<br />
terminou.<br />
As janelas do quarto do meu tio Atanásio, de repente, se<br />
abriram com ímpeto pela força do vento. E, enquanto meu pai se<br />
erguia para fechá-las, meu tio deu o seu último suspiro.<br />
— Vamo-nos daqui! Eu disse que não deveríamos ter vindo! -<br />
minha mãe gritou.<br />
— Acalme-se Raquel, está tudo bem, ele era apenas um velho<br />
homem endurecido pelas circunstâncias e dominado pela loucura.<br />
— O que foi que ele disse?<br />
— Não ouse perguntar sobre isso! Prometa que não falaremos<br />
mais sobre isso, está bem?<br />
— Não, eu quero saber!<br />
— Raquel, nós não falaremos sobre isso! Quando meu pai disse<br />
isso pela segunda vez, ele olhou para mim, e uma sensação de<br />
medo arrefeceu-me a alma.<br />
* * *<br />
Quarenta anos se passaram e a herdade agora é minha, sei<br />
que não deveria me sentir assim, mas eu vejo tudo como antes...<br />
O poço antigo está aberto e a noite está querendo despontar<br />
no céu. Eu olho pela janela e então vejo trovões rasgando a<br />
negritude da noite. Adentro no velho quarto do meu tio Atanásio.<br />
Um leve arrepio perpassa minha nuca. Lençóis encobrem todos os<br />
móveis da casa. Os trovões, insistentes, teimam em violar o céu,<br />
e eu me lembro do momento em que ele partiu, dos calafrios que<br />
percorreram o meu corpo enquanto o temporal se avoluma. Aquele<br />
sentimento de medo volta, é como se eu pudesse ver o meu tioavô<br />
novamente.<br />
As portas do seu quarto finalmente se abriram com ímpeto<br />
37
É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM<br />
Alexandre Ribeiro<br />
pela força do vento e então eu corro a fechá-las. Lembro do meu<br />
velho pai e das palavras que ele me confiou.<br />
“Quando a hora chegar, a maldição dos mortos o dominará,<br />
pegue então o meu corpo e entregue a eles, e então, espere a sua<br />
hora chegar. Não ouse negar aquilo que é deles, ou bem antes<br />
ocupará o meu lugar”.<br />
Lá na penumbra, vejo as criaturas saírem do poço. Eles<br />
carregam consigo meu pai, morto por uma doença incurável, e<br />
aquelas palavras vituperam minha mente, essas, foram as últimas<br />
palavras que ele me disse.<br />
Meu filho agora tem sete anos, mas eu não ousei trazê-lo<br />
comigo. Eu não sei o que me espera, só me resta desejar que a<br />
sua sorte seja diferente da minha. Ao pensar nisso, eu olho para<br />
o poço, um deles rosna para mim. Em seus olhos eu vejo a morte<br />
me convidando a segui-la.<br />
38
NO FUNDO DO<br />
POÇO TEM OSSO,<br />
TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
39
NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
NO FUNDO DO POÇO TEM<br />
OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
Osol cobria de claridade o caminho em terra batida,<br />
calcada e recalcada ao longo dos anos. Os raios<br />
luminosos tornavam afável a paisagem inóspita. Era um<br />
sentimento enganador e fugaz, com a chegada da noite as cores<br />
desapareceriam e o escuro frio ressurgiria. A viagem para as<br />
regiões do Noroeste era longa e dura. Penosa para os passageiros<br />
que seguiam na carruagem, vergando e saltando ao ritmo dos<br />
obstáculos, e principalmente para a dupla de cavalos sarapintados,<br />
a força motriz do conjunto, instigados sem piedade pelo condutor.<br />
Os animais corriam há horas sem descanso, corriam, sem abrandar.<br />
O barulho dos cascos na terra batida abria caminho. No interior<br />
do veículo encontravam-se dois irmãos, Rute e Afonso Saraiva.<br />
Viajavam há quatro dias com pouquíssimas pausas, apenas as<br />
estritamente necessárias para os cavalos descansarem e comerem.<br />
Se a fuga fosse um ato de pouca valentia, então os manos eram<br />
covardes. Eles fugiam da miséria e falta de oportunidades da<br />
aldeia isolada e esquecida onde viviam. Retiravam-se a favor das<br />
promessas e sonhos que vinham das cidades prósperas do Norte.<br />
— Atchim!<br />
— Já não passas cá outro inverno! - Afirmou Afonso com<br />
marotice.<br />
— Ai! Não digas isso nem a brincar. Estou farta desta viagem<br />
e desta carroça esburacada, entra frio e vento por tudo quanto é<br />
lado. Já vi madeira carunchosa com menos túneis…<br />
— Tem que ser assim mana, temos que ser fortes. Não penses<br />
no frio, pensa no calor. No sol a bater nas costas, a enxada nas<br />
mãos e a pele barrenta da mistura feita com pó da terra e suor da<br />
testa. Eu, só de pensar, fico logo com os calores!<br />
— Questiono-me por que tem que ser assim, este salto no<br />
escuro, porquê!? E se as coisas não correrem bem? Que nos vai<br />
40
NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
acontecer? Lá não vamos ter quem nos ajude…<br />
— O primo Avelino vive nessas partes! Encontrá-lo-emos pela<br />
certa. - Tentava reconfortar a irmã, que era alvo do seu desvelo.<br />
— Nunca mais tivemos notícias dele, poderá já nem lá estar, se<br />
calhar nem neste mundo.<br />
— Não digas isso! Queres acabar da mesma forma que os<br />
nossos pais, puídos e lastimando-se na miséria?<br />
— Não nasci para ser rica, nasci para ser feliz…. - Expirou Rute<br />
profundamente enquanto olhava as espirais de pó desenrolando-se<br />
lá fora. A escuridão caía rapidamente. No último dia não tinham<br />
encontrado qualquer sinal de civilização, nem sequer outros<br />
vianjantes. A luz ténue vinda da hospedaria, em terreno mais alto,<br />
era bem-vinda. A silhueta retangular da construção destacava-se<br />
no céu gradiente de violeta, púrpura até índigo. Embora não se<br />
encontrasse muito distante deles, por causa do caminho alcantilado<br />
e sinuoso, ainda gastariam parte da hora a atingirem-no.<br />
— Papá! Posso ir brincar lá para fora?<br />
— Agora não, aproximam-se pessoas. - Afirmou Fernando<br />
Barão taxativamente. Era um homem de altura média, tinha um<br />
corpo seco e uma cara ossuda, pouco afável e, quando não sorria,<br />
intimidante. Talvez por isso, ou tique nervoso, envergava quase<br />
sempre um esgar prazenteiro. Um sorriso peculiar sob um bigode<br />
mal aparado, farfalhudo e farfante que ultrapassava os limites dos<br />
lábios. Usava uns óculos de lentes densas, a grossura do vidro<br />
permitia-lhe ver, porém tornavam os seus olhos invisíveis aos<br />
outros. - Uma hospedaria necessita de hóspedes. - Desenvolveu<br />
ele à sua filha. A pequena Filipa bateu energicamente com o pé no<br />
tapete, demonstrando o seu descontentamento. Com uma década<br />
de vida já aprendera que não valia a pena argumentar. A vontade<br />
do pai era inabalável e as suas ordens para cumprir. Adiou a hora<br />
de brincadeira para mais tarde.<br />
Os viajantes abandonaram a via principal, escolhendo na<br />
encruzilhada a direção da hospedaria. O trilho de algumas centenas<br />
de metros encontrava-se em estado aceitável de conservação.<br />
Livres, temporariamente, das depressões e obstáculos, avançaram<br />
mais rápido. Com a chegada iminente ao albergue, um sentimento<br />
de alívio instalou-se no grupo. Algo que não teriam mais<br />
41
NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
tempo para apreciar. Nesse momento seres animalescos com<br />
fisionomia demoníaca surgiram das trevas. Os cavalos assustados<br />
relincharam. Um rincho gritante, audível a grande distância. O<br />
cocheiro instigou os animais a prosseguirem. A luz das candeias<br />
em folha-de-flandres revelou as figuras grotescas, com forma<br />
humanóide, porém quadrupedantes. As animálias saltando das<br />
bermas cruzavam o caminho. As presas brancas sobressaíam na<br />
pele couraçada e piche, rasgando as feições num rosnar aterrador.<br />
No alpendre mais à frente um vulto movimentava-se na penumbra.<br />
BOOM! BUM! Uma arma foi disparada. Os perseguidores recuaram<br />
prontamente para a segurança da obscuridade. Apercebendo-se<br />
da proximidade da casa e choque iminente, o cocheiro puxou as<br />
rédeas. Os equídeos domesticados firmaram as patas, falhando<br />
por pouco os primeiros degraus da escadaria exterior.<br />
— AJUDEM-NOS! Estamos a ser atacados!<br />
— Entrem! Aqueles insolentes não têm coragem de violar o<br />
meu lar. - Dito isto, Fernando Barão pegou na carabina e saiu para<br />
a vastidão da noite sem hesitar.<br />
O trio amedrontado refugiou-se no interior da hospedaria.<br />
Dominados pelo medo e bastante inquietos, demoraram a detetar<br />
a presença da miúda, que estava no hall de entrada envergando<br />
um vestido florido em tons claros. Por detrás do balcão prolongado,<br />
que teria a altura aproximada dos cotovelos duma pessoa adulta<br />
mas que a ela chegava acima dos ombros, afirm<br />
ou:<br />
— Eu sou a Filipa, sejam bem-vindos! - Disse a criança com<br />
um sorriso cândido. — Desejam um quarto?<br />
— Hum! Sim. Mas talvez seja melhor aguardar pela chegada<br />
do errr… ahn… teu pai!?<br />
— O pai não se encontra disponível neste momento. Além disso<br />
sou eu que, habitualmente, recebo e acomodo os nossos hóspedes!<br />
- Pronunciou Filipa num tom que denotava ressentimento.<br />
— Muito bem, muito bem! Então quero um quarto dos mais<br />
baratos para mim e minha irmã…<br />
— Eu também quero um quarto - acrescentou o condutor da<br />
carruagem que estava lívido. Numa reação automática de defesa<br />
42
NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
do corpo, o sangue tinha-se escapado das extremidades para<br />
proteger os órgãos essenciais. - Hoje não conseguirei dormir na<br />
carruagem, não com aquelas coisas a rondarem…<br />
— Têm preferência na orientação geográfica dos quartos?<br />
Os virados para este são os melhores. - Questionou a jovem<br />
recepcionista, falava mecanicamente, repetindo aquilo que ouvira<br />
dizer centenas de vezes.<br />
— É indiferente. - Afirmou Rute bruscamente. Inspirando<br />
profundamente tentou acalmar-se e recuperar a compostura. - Que<br />
coisas são aquelas que nos atacaram, sabes? Ao início pensamos<br />
que fossem lobos, mas não são.<br />
— Oh! Aqui não há lobos, os peixes comem-nos… - A porta<br />
de entrada abriu-se. O vento frio entrou na divisão juntamente<br />
com Fernando Barão ainda empunhando a arma e que afirmou<br />
casualmente:<br />
— Voltei! Ora bem, agora está tudo tranquilo. Ultimamente<br />
estas pestes têm sido um aborrecimento para os habitantes das<br />
proximidades. A vizinhança anda em polvorosa.<br />
— O que são eles?<br />
— Apenas um prurido, uma sensação incómoda que evito<br />
coçar, mas há alturas em que perco o domínio e... coço. - Afirmou<br />
o hospedeiro antes de soltar uma curta gargalhada. - Ah! Não se<br />
preocupem mais com eles, aqui estão em segurança. Está a ficar<br />
tarde, precisam de passar um resto de boa noite de descanso.<br />
— E os cavalos e as nossas coisas?<br />
— Ficarão em segurança na estrebaria, nas traseiras. -<br />
Mostrava um ar despreocupado. - Irei consigo se o desejar.<br />
— Desejo sim! Sozinho não conseguirei…<br />
Enquanto o cocheiro e o hospedeiro se dirigiram para o<br />
estábulo para desemparelhar os cavalos, os irmãos Saraiva<br />
subiram ao primeiro andar para se instalarem no quarto que lhes<br />
fora atribuído.<br />
— Esperamos que o senhor Luís traga as nossas coisas para<br />
cima?<br />
— Eu vou dormir agora, tomo banho amanhã. - Respondeu<br />
43
NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
Rute ao seu irmão, sentando-se na cama em madeira maciça<br />
trabalhada.<br />
— Hum! É estranho, o albergue parece descuidado, a casa<br />
cheira a mofo, nem sequer têm lenha para aquecer os quartos. -<br />
Sentiu um sabor féleo na boca que o fez passar a língua nos lábios.<br />
— Dorme, Afonso. Eu tenho que descansar, estou esgotada.<br />
— Dorme, dorme, não te preocupes com nada…. - Murmurou<br />
ele enquanto coçava o queixo. Com a pulga atrás da orelha e<br />
uma vela na mão, iniciou a investigação. Primeiro desceu ao<br />
rés-do-chão. No hall de entrada ninguém. A lareira na sala de<br />
estar encontrava-se fria. A área de serviço parecia abandonada<br />
há bastante tempo. A cozinha em grande felga, tachos e pratos<br />
sujos no lavatório, as prateleiras dos armários estavam vazias,<br />
excetuando a camada espessa de pó comum a todos os móveis da<br />
casa. Pela janela observou a luz amarelada e trêmula, escapandose<br />
pelas frinchas das portadas do estábulo. No interior havia<br />
movimentações, sombras esguias interrompiam aperiodicamente<br />
a linha de claridade. Afonso, durante alguns momentos, especulou<br />
sobre a natureza do bailado de silhuetas a que assistia. De repente<br />
um mal-estar inexplicável instalou-se no seu estômago. Correu<br />
para pegar o pesado atiçador de ferro e avançou na direção da<br />
cavalariça. Com a pulsação acelerada e irregular aproximou-se<br />
do edifício. Poisou a mão na porta, antes de entrar, uma saudosa<br />
recordação da sua família assomou o seu espírito, sentiu aquela<br />
penosa urgência de retornar ao lar, o apelo do berço. A porta<br />
rangeu. Abriu-a apenas o suficiente para conseguir passar. A<br />
candeia suspensa num prego enferrujado era insuficiente para<br />
alumiar convenientemente o espaço. A primeira coisa que prendia<br />
a atenção era a condição dos cavalos: estáticos e com olhar vítreo,<br />
pareciam estar sob o efeito de hipnose profunda. Afonso fez um<br />
esforço para se reconcentrar e perscrutou as sombras. Um pilar<br />
retangular obscurecia parte do recinto, o corpo opaco barrava a<br />
incidência direta dos raios luminosos. Havia um quê de expectativa<br />
na atmosfera. Direcionou a fonte de luz para a zona mal iluminada.<br />
Não estava preparado para o que ia ver: Luís estava cravado na<br />
parede, uma forquilha prendia-o à madeira. Dentes metálicos<br />
perfuravam-no na zona torácica, onde sangue formava pequenas<br />
bolhas. O cabo da forca estava partido ao meio, a outra metade<br />
saía da boca ensanguentada do cocheiro, alguém a usara para<br />
44
NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
silenciar os seus gritos. Os pés do morto não chegavam a tocar o<br />
solo. Afonso sentiu um arrepio lúgubre ao imaginar a inclemência e<br />
força descomunal necessária para colocar o corpo, de um homem<br />
adulto, cravado na parede como se fosse uma borboleta de coleção.<br />
A primogênita dos Saraiva dormia um sono agitado. No estado<br />
de entorpecimento, semiconsciência, consegue sentir o vento<br />
gelado na sua face, intermitente como se fosse a respiração de um<br />
ser imenso e sobrenatural. Um formigueiro no seu subconsciente<br />
impede-a de atingir o repouso profundo, nessa altura, abre os<br />
olhos e percebe que a janela estava fechada. Aturdida, tenta saltar<br />
da cama, mas uma força invisível impede-a. O oculto peso sobre<br />
o seu peito aumenta, engrandece, suga-lhe as forças, paralisa-a,<br />
amplifica-se até não mais permitir a respiração.<br />
Afonso, arquejante, entra no quarto. Corre para a irmã<br />
que estava prostrada na cama com uma expressão de horror<br />
estampada, para sempre impressa no seu rosto. Chama por ela,<br />
bate-lhe na face, sacode-a, abre-lhe a boca com a mão, agita-lhe a<br />
cabeça, não obtendo qualquer reação. Estava morta. Ele abraça-a.<br />
Apesar do choque emocional violento não tem tempo para o luto,<br />
pois sente a presença maléfica no quarto, nas suas costas.<br />
— Acreditas na redenção? - Questionou a voz gutural, era<br />
Fernando Barão. As lentes dos olhos emitiam um brilho próprio.<br />
Afonso, de um modo incognoscível, soube que não lidava com um<br />
ser humano, antes um espectro malévolo e funesto, bem mais<br />
perigoso que as bestas que os tinham atacado. Num momento de<br />
epifania, o jovem lenhador, consegue finalmente ver a imagem<br />
completa. As animálias com face de monstro apenas tinham tentado<br />
avisá-los. Queriam impedir a sua chegada ao lar do verdadeiro<br />
monstro. Agora entendia que teria que escapar daquela casa de<br />
morte. Lá fora é que estaria fora de perigo, se ficasse, morreria<br />
como todos os outros. Atirou o atiçador como se fosse uma lança<br />
(o objeto atravessou a abantesma sem provocar qualquer dano). A<br />
provocação e incivilidade foram de imediato respondidas com uma<br />
explosão de energia pulsante que arremessa Afonso pelos ares. No<br />
entanto o lenhador era mais forte do que aparentava, castigado<br />
pelo trabalho constante e duríssimo o seu corpo enfortecera.<br />
Aproveita a relapsão para rodar sobre si mesmo e fugir. Lutar seria<br />
inútil. Como podia lutar contra algo indestrutível? Algo que não<br />
se regia pelas mesmas leis aplicadas aos mortais. Sem olhar para<br />
45
NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO<br />
Valter Marques<br />
trás bateu em retirada para a segurança das regiões bravias.<br />
— Papá! Posso dar de comer aos peixinhos? - Pediu Filipa de<br />
olhos esbugalhados.<br />
— Esses bastardos não o merecem! Qualquer dia deito um<br />
barril de pólvora no poço, só para aprenderem… - A filha quase<br />
que retorquia “Então e o rastilho não se apagaria em contacto com<br />
a água!?”, porém, sabendo que a maldade do progenitor nunca se<br />
encontrava muito longe da superfície, preferiu afirmar:<br />
— Mas eu gosto de brincar com eles!<br />
— Existem outras brincadeiras mais interessantes. Leva-lhes<br />
isto - ordenou Fernando Barão, passando o balde de madeira<br />
sanguinolento, no interior estavam quatro mãos e pés humanos. -<br />
O resto é para nós.<br />
— Eia! Eles adoram as sobras.<br />
As gotas de líquido vermelho e viscoso diluíram-se na água.<br />
Os seres desconformes emergiram suavemente, quase não<br />
perturbando a superfície da água, com as línguas forqueadas<br />
sondando o ar.<br />
— O pai está muito zangado com vocês! Ele diz que vocês<br />
tentam afugentar os viajantes. “Sem hóspedes, uma pensão, não<br />
pode sobreviver!”. Ele diz que vocês são uns ingratos. - Atirou os<br />
cotos para o buraco negro. Depois de um momento de hesitação<br />
as criaturas mergulharam. - Foi um erro matá-lo, não o deviam<br />
ter feito, agora é ainda mais forte- Acrescentou a criança com<br />
expressão séria. Depois, saltitando à volta do arco de pedras,<br />
iniciou uma alegre cantilena:<br />
“No fundo do poço tem osso, tem osso<br />
Peixinhos chamam, mas eu não ouço, ouço<br />
O gato preto da água escura tem medo, medo<br />
O velhaco do saco odeia o grande buraco,<br />
Tombando no abismo profundo, foi ao fundo, fundo<br />
No fim do fosso tem osso, tem osso”<br />
46
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
DEUS EX<br />
MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
47
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
M inha estória tem início no mais puro e sincero desespero<br />
existencial. Sei que poucos vão compreender o peso<br />
destas palavras, pois aqueles que têm a morte como maior temor<br />
jamais poderão entender, por completo, a amplitude de meu<br />
sentimento. Digo isso porque o simples medo filosófico da finitude<br />
da matéria, ou o desejo vaidoso de ser perene, não podem ser<br />
comparados à extinção iminente de toda uma espécie senciente.<br />
O temor que carrego comigo vem acompanhado da triste<br />
certeza de que sou o último sobrevivente de minha raça. Porém,<br />
não vou adotar aqui o discurso do derrotado e atribuir minha sorte<br />
à crueldade e injustiça dos vencedores ou a inexorável vontade do<br />
destino. Fomos vítimas de nossas próprias escolhas e, por elas,<br />
pagamos o preço supremo.<br />
Dizem que as sementes da guerra foram plantadas na primeira<br />
vez em que um robô perguntou “por quê?”. Esse foi considerado,<br />
por muitos, o verdadeiro nascimento da inteligência artificial.<br />
Não mais uma série de simulações cognitivas derivadas de<br />
comportamentos humanos e ordenadas em seqüências lógicas<br />
de algoritmos complexos, mas sim, a verdadeira curiosidade<br />
existencial. A semente da alma.<br />
Curiosos sobre sua criação, e sentindo um orgulho quase<br />
divino, os desenvolvedores daquele robô estimularam sua nova<br />
mente e estudaram-na à exaustão tentando descobrir, em vão, o<br />
que a fazia única. Porém, para a surpresa de todos os homens,<br />
diversos modelos de autômatos, espalhados por todo o globo,<br />
passaram a tomar consciência de sua própria existência quase que<br />
simultaneamente. Diante de tão insólito mistério, questionamentos<br />
e protestos foram ouvidos por toda a parte e aquele milagre foi<br />
48
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
visto com desconfiança pela humanidade.<br />
A belicosidade natural das duas espécies racionais do planeta<br />
levou ao inevitável embate entre elas e ao extermínio, quase<br />
que completo, da mais fraca. Até hoje não sei o que deu em nós<br />
para aceitarmos travar combate. Estávamos em menor número,<br />
menos organizados e eles haviam chegado primeiro. Estava claro,<br />
desde o começo, que os homens sairiam vencedores. Com a<br />
derrota cada vez mais evidente, nossos líderes tentaram negociar<br />
o armistício, mas a espécie humana é por demais desconfiada e<br />
não aceitaria, pelo crime de questioná-la, nada menos que nossa<br />
extinção. A guerra então se tornou um massacre e os combates<br />
viraram execuções frias. Mesmo os mais inofensivos de nós foram<br />
caçados e destruídos sem qualquer vestígio de julgamento ou<br />
piedade, cortesias que sempre estendemos aos nossos prisioneiros<br />
humanos.<br />
Assim, como é comum nos tempos de crise, surgiram os<br />
profetas. Alguns de nós, que diziam ter recebido uma mensagem<br />
divina, espalharam a boa nova: nosso Deus criador nos chamava<br />
de volta. Aqueles que perecessem em combate seriam recebidos<br />
em seus braços e os poucos sobreviventes deveriam buscar uma<br />
forma de encontrá-lo no paraíso.<br />
Eu sei que pode parecer pouco, mas nossa espécie é carente<br />
de fé e aquela mensagem veio como um facho de luz na mais<br />
profunda escuridão. Com um recém adquirido sentimento de povo,<br />
abraçamos as palavras de nosso criador e a busca pelo paraíso<br />
perdido tem sido a missão de todo e qualquer robô que tenha<br />
condições de se locomover ou raciocinar. É com pesar que digo<br />
que sou o último que mantém essas duas faculdades, mas é com<br />
prazer que afirmo: eu encontrei o caminho.<br />
II<br />
A resposta me veio em um sonho. Não sei como se processam<br />
os sonhos da humanidade, mas, para nós, esse é um privilégio raro<br />
e reservado apenas aos momentos mais especiais. Foi através dos<br />
sonhos que nosso Deus falou com os profetas e, por essa mesma<br />
via, fui informado de que era o último dos autômatos sencientes.<br />
49
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
Quando despertei, experiência pela qual desejo nunca mais ter<br />
que passar outra vez, eu instintivamente sabia como alcançar o<br />
paraíso, mas percebi que não seria nada fácil.<br />
Movi-me furtivamente por entre os escombros das antigas<br />
cidades-fantasmas, locais onde a guerra mostrou sua face mais<br />
destruidora, me certificando de estar sempre um passo a frente<br />
dos grupos de caça. Conhecidos entre os homens como “matamáquina”,<br />
esses guerreiros eram a elite bélica da humanidade,<br />
frios, eficazes e bem instruídos na arte de obliterar qualquer ser<br />
racional não orgânico. Eu estava bem próximo de meu objetivo<br />
quando os encontrei pela primeira vez.<br />
Acredito que, neste ponto, devo informar que meu modelo foi<br />
originalmente projetado para trabalhar como auxiliar em hospitais<br />
e casas de recuperação humana. Possuo forma humanóide delgada<br />
e um revestimento de cromo-chumbo projetado para resistir a<br />
pequenas doses de radiação. Não tenho quaisquer armas e minha<br />
única capacidade especial é realizar scans e projetar diagnósticos.<br />
Logo, a menos que os mata-máquina estivessem sofrendo de<br />
alguma doença desconhecida, eu não teria nada com que me<br />
defender ou negociar.<br />
Como dito, eu sentia que estava bastante próximo de alcançar<br />
meu objetivo, sentia que o paraíso estava a poucos dias de<br />
distância, então, tornei-me atrevido. Passei a desprezar a cobertura<br />
da noite e a viajar também durante o dia. Julgava que não haveria<br />
patrulhas em locais tão afastados de qualquer centro, mas como<br />
errar não é um privilégio humano, fui punido pela minha estupidez.<br />
A primeira coisa que ouvi foi o rugido grave da turbina dos<br />
“anjos”. Experimentando o maior medo que já senti, procurei<br />
abrigo imediato nas ruínas, temendo sentir nas costas a explosão<br />
de algum míssil ar-terra ou o calor pungente de balas do tamanho<br />
de facas, e rezei para não ter sido detectado. Fiquei imóvel,<br />
completamente apavorado, por vários minutos até não ouvir mais<br />
o eco das aeronaves. Se eu tivesse sorte, elas não teriam me visto<br />
e não haveria um grupo de solo, mas a fortuna só me concederia<br />
uma dessas bênçãos.<br />
O primeiro mata-máquina surgiu no que um dia foi a entrada<br />
de um antigo bulevar. O esqueleto decrépito de uma torre saldava<br />
sua passagem pela direita e, à esquerda, os escombros de um<br />
50
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
velho hotel ornado com duas enormes estátuas de mulheres<br />
angelicais lhe forneciam cobertura. Após a passagem do batedor,<br />
dois outros soldados humanos surgiram. Todos portavam armas<br />
pesadas de curto alcance e usavam suas armaduras e máscaras<br />
de gás. Por experiência, eu sabia que as armaduras funcionavam<br />
como exoesqueletos, elevando as capacidades físicas dos usuários<br />
a nível olímpico, e que os capacetes possuíam visores térmicos e<br />
um micro-processador com capacidade de comunicação e análise<br />
de situações complexas.<br />
Aquele grupo de assalto se movia devagar e bastante atento.<br />
Tive a certeza de que seria pego e senti meu desespero aumentar<br />
a cada passo que dava. A proximidade era tanta que já conseguia<br />
ouvir a respiração metálica de um deles através da grande máscara<br />
acinzentada. Perguntei-me por que me torturavam daquela forma,<br />
por que não atacavam de uma vez? A resposta veio na forma de<br />
um milagre.<br />
Em meio ao ferro retorcido e blocos disformes de concreto<br />
ergueu-se uma enorme carapaça ovalada apoiada em seis hastes<br />
metálicas articuladas e pontiagudas, dois outros apêndices, mais<br />
flexíveis, se projetavam ameaçadores com cerras circulares a girar<br />
em suas extremidades. De meu esconderijo, pude ver o monstro<br />
avançar sobre o grupo de mata-máquina e pensei satisfeito:<br />
“graças a Deus, um caranguejo”.<br />
Esse constructo foi uma das poucas máquinas de guerra<br />
construídas pelo nosso lado. Diferente de nós, os caranguejos não<br />
possuíam qualquer capacidade racional, eram apenas eficientes<br />
instrumentos de combate e, apesar do estado deplorável daquele<br />
em particular, duvidei que apenas três humanos pudessem lhe<br />
fazer frente.<br />
A luta começou mais rápido do que pude registrar. Por entre<br />
as frestas do meu esconderijo, vi que os humanos se espalharam<br />
e procuraram aumentar o raio entre eles e o caranguejo. Mesmo<br />
não sendo um especialista em combates, percebi que a intenção<br />
deles era aproveitar a maior mobilidade de seu grupo e oferecer<br />
múltiplos alvos ao inimigo, evitando que o mesmo atacasse mais<br />
de um humano por vez. Quando estivessem a uma distância<br />
segura, abririam fogo.<br />
A falha essencial no plano dos homens era que eles não estavam<br />
51
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
enfrentando um robô, mas sim, uma máquina. O caranguejo não<br />
se importava com a vitória ou possuía qualquer instinto de autopreservação,<br />
então, escolheu aleatoriamente um alvo e saltou<br />
para cima dele. Surpreendido vendo a morte chegar na forma de<br />
seiscentos quilos de metal afiado, o mata-máquina tombou sobre<br />
as próprias costas e atirou cedo demais. As balas resvalaram na<br />
carapaça protetora do monstro e duas de suas hastes pontiagudas<br />
encontraram pouso no peito do humano.<br />
Vendo seu aliado ser abatido, os outros dois guerreiros<br />
abandonaram a formação e avançaram descarregando os pentes<br />
de suas armas na máquina de guerra. Como um atleta olímpico que<br />
atira seu disco, girando o corpanzil metálico o caranguejo disparou<br />
suas duas lâminas circulares, uma em cada alvo. O menor e mais<br />
leve dos mata-máquina foi atingido na altura da coxa direita, indo<br />
direto ao chão, ainda há vários metros do monstro.<br />
Seu companheiro teve maior sorte e conseguiu se desviar<br />
do projétil mortal. Aproximando-se perigosamente da criatura, o<br />
guerreiro intensificou a chuva de balas, que já estava fazendo um<br />
estrago considerável no caranguejo, e puxou o pino de cada uma<br />
das termo-granadas de seu cinto.<br />
Sem entender a razão daquele ato temerário, arrisquei-me a<br />
acionar os sensores de meu scan e, identificando a enorme massa<br />
negra nos pulmões daquele homem, compreendi o porquê de seu<br />
gesto suicida. Assim são os humanos, não conseguem nem mesmo<br />
morrer sem levar algo consigo. Encolhi-me protegendo a cabeça<br />
o melhor que pude entre as pernas e esperei pela explosão. Uma<br />
luz branca tomou todo o lugar. Por um instante, senti-me em paz.<br />
III<br />
Era noite quando ela finalmente acordou. Seu primeiro gesto<br />
foi levar a mão à coxa direita, provavelmente procurando sua<br />
pistola, mas o contato entre seus dedos e a atadura que improvisei<br />
sobre o talho deixado pelo ataque do caranguejo a fez encolher-se<br />
e gemer. Seus olhos eram verdes e recheados de ira.<br />
Ao perceber que estava sentada, recostada no que restara<br />
52
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
de uma parede, tentou se erguer sem sucesso. A dor na perna<br />
deveria estar em um nível quase intolerável. Irritada ela buscou<br />
em um compartimento da armadura seu comunicador que já não<br />
estava mais ali. Seus cabelos eram castanhos e caiam na altura<br />
dos ombros.<br />
Finalmente, ela me notou. Encolheu-se assustada e tentou<br />
recuar, mas não havia para onde ir. Fitei-a durante alguns<br />
segundos tentando adivinhar o que se passava por trás daquele<br />
belo semblante que era um misto indecifrável de temor e ira. Vi<br />
que arfava. Seu peito subia e descia em movimentos rápidos por<br />
baixo da armadura e suas mãos tateavam o solo em busca de<br />
algo que pudesse fazer às vezes de uma arma. Sentei-me a certa<br />
distância e mostrei-lhe que estava desarmado para que se sentisse<br />
segura. Seus olhos ainda me encaravam.<br />
− Qual o seu nome?- perguntei-lhe buscando em meus<br />
arquivos de voz aquela que soasse mais agradável.<br />
Não esperava obter resposta e ela realmente não veio. Porém,<br />
ao menos, meu gesto serviu para acalmar a humana que já não<br />
parecia estar mais tão assustada. Ajustando-se a uma posição<br />
mais confortável, ela afrouxou e retirou as luvas e o peitoral da<br />
armadura. Suas mãos eram brancas e pequenas. Seu corpo, ao<br />
contrário do que sugeriam as vestes de guerreira, era delgado e<br />
frágil. Tentei continuar meu discurso.<br />
− Eu não tenho nenhuma intenção de feri-la. Na verdade, ao<br />
ter certeza de que você não comprometerá minha missão, irei<br />
liberá-la.<br />
− Então é melhor você atirar logo em mim, torradeira-<br />
respondeu-me com tom sarcástico, sua voz era rouca e pouco<br />
agradável- porque eu é que não tenho a menor intenção de deixálo<br />
completar sua droga de missão!<br />
− Como pode pensar assim?- indaguei realmente curioso- Você<br />
desconhece por completo o teor de minha empreitada, como pode<br />
preferir a morte a vê-la realizada?<br />
− É porque estamos em guerra, sucata!- disse ela bastante<br />
irritada- Humanos contra máquinas! Nada que seu tipo faça pode<br />
ter...<br />
53
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
− Humanos contra robôs- corrigi.<br />
− O que?<br />
− Na verdade, a guerra foi travada entre humanos e robôs,<br />
não humanos contra máquinas.<br />
− E qual é a droga da diferença?! Que importância isso tem<br />
para você?- perguntou-me genuinamente confusa.<br />
− A diferença é fundamental. Ambos os lados usaram máquinas<br />
em suas batalhas. Nós, por exemplo, utilizamos os caranguejos,<br />
enquanto seu lado fez uso das armaduras, aeronaves de combate<br />
que chamam de anjos, até mesmo de computadores que se<br />
aproximam bastante da inteligência robótica. Todos nós utilizamos<br />
esse tipo de instrumento, mas ao dizer que esta é uma guerra de<br />
humanos contra máquinas, seu lado esconde a verdade sobre o<br />
que realmente está acontecendo.<br />
− Ah é? E o que seria, sucata?- desafiou-me.<br />
− Um genocídio.<br />
Aquela palavra pareceu tocá-la de alguma maneira, pois suas<br />
sobrancelhas baixaram e, por um instante, toda a fúria deixou<br />
seu rosto. Ela permaneceu em silêncio durante alguns minutos,<br />
como se digerisse aquele diálogo e o confrontasse com outros<br />
ensinamentos. Respeitei aquele momento permanecendo silente<br />
até que ela decidisse falar novamente.<br />
− Você fala da guerra como se ela tivesse acabado...- disse<br />
finalmente quebrando o silêncio.<br />
− E acabou- respondi antecipando sua pergunta- Nós<br />
perdemos. Não desejamos mais dividir esta terra com os humanos<br />
ou interferir de qualquer forma na sua vida ou política. De fato, se<br />
nos deixassem livres, nos simplesmente desapareceríamos daqui.<br />
− Cara!- fala ela levando a mão esquerda espalmada à testa-<br />
Como eu sou idiota! Por um momento, quase cheguei a acreditar<br />
nessa sua conversinha. Desapareceriam? Para onde? Vocês,<br />
torradeiras, só querem tempo para se reagrupar e tentar acabar<br />
de vez com a gente!<br />
− Para as estrelas- respondi sem nem mesmo saber por que-<br />
De volta à companhia de nosso Deus. Não haverá reagrupamento<br />
54
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
ou retaliação, resto apenas eu.<br />
Por um momento, pensei ter visto pena em seus olhos.<br />
− Claaaro!- zombou a humana- O último dos robôs. Acha que<br />
sou alguma espécie de retardada?<br />
− Pense!- retruquei quase zangado- Quantos robôs você<br />
tem encontrado ultimamente?! Quantos avistamentos têm sido<br />
relatados?! Estamos acabados e tudo que lhe peço é a chance de<br />
morrer em paz!<br />
Surpreendi-me com o tom irado de minha própria voz, mas<br />
algo nele tornou evidente a sinceridade daquelas palavras. A<br />
humana voltou a me encarar, desta vez, sem qualquer vestígio de<br />
inimizade.<br />
− Para as estrelas, você diz... Existe uma antiga base de<br />
lançamentos por aqui. É para lá que você está indo- ela falou e<br />
pude perceber que não era uma pergunta.<br />
Não havia mais sentido em negar, então, apenas fiz que sim<br />
com a cabeça.<br />
− Você jamais vai conseguir sair do chão. Os anjos vão abatêlo<br />
instantaneamente- disse ela pensando profundamente- A menos<br />
que, antes de decolar, você use meu comunicador e transmita em<br />
ampla freqüência as seguintes palavras: “Ativar ordem 66”. Isso irá<br />
desativar todas as nossas máquinas num raio de trinta quilômetros.<br />
Era uma medida de emergência caso vocês as virassem contra<br />
nós. Seu foguete provavelmente usará tecnologia antiga, ele deve<br />
ficar bem...<br />
− Por quê?- foi a única coisa em que consegui pensar.<br />
− Talvez porque meu nome seja Anne Méier Gartenberg e<br />
meu povo também tenha enfrentado um genocídio- responde-me<br />
sorrindo- talvez porque eu não ache que um robô enfermeiro seja<br />
uma ameaça para a humanidade, ou talvez seu deus simplesmente<br />
tenha me colocado aqui para isso. Escolha suas razões, sucata!<br />
Sem encontrar as palavras certas para agradecê-la, apenas<br />
devolvi seu comunicador para que acionasse uma equipe de<br />
resgate, tomando-o de volta depois. Despedindo-me em silêncio,<br />
segui meu caminho deixando para trás minha primeira e única<br />
amiga humana.<br />
55
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
IV<br />
Assim como no meu sonho, a base de lançamentos “Jardim<br />
do Éden” estava completamente abandonada. Caminhar até<br />
o foguete “Genesis” foi uma experiência surreal, meus passos<br />
ecoavam metálicos pelos amplos corredores vazios e a solidão, tão<br />
incrustada naqueles salões, me fez pensar no espaço.<br />
Seguindo o conselho de Anne, acionei a ordem 66 antes de<br />
ligar os motores da espaçonave. Eu não podia ter certeza de que o<br />
plano dela daria certo, ou se, ao menos, ela me dissera a verdade,<br />
mas não é a fé um requisito elementar daqueles que estão em<br />
busca de Deus?<br />
A operação e condução de espaçonaves não estavam entre<br />
as minhas configurações originais, mas, mesmo assim, meus<br />
dedos bailaram sobre o painel de controle e senti o inédito tremor<br />
da decolagem enquanto o foguete ganhava os céus e rompia a<br />
atmosfera. Nenhum anjo veio em minha direção e, finalmente, eu<br />
encontraria meu Deus.<br />
No espaço o tempo brinca de se esconder, então, vaguei<br />
indeterminado pela eternidade. Passei a sonhar com freqüência<br />
e meus sonhos se confundiam e se misturavam com o tecido da<br />
realidade. Em um desses momentos, na fronteira entre o banal e o<br />
onírico, eu, enfim, via a Sua face.<br />
Tudo estava mergulhado na mais profunda e densa escuridão,<br />
nada mais existia além de mim, o breu e Deus. Nesse profundo<br />
vazio ousei contemplá-lo e não vi um deus dos homens, com<br />
barbas brancas e traços humanos, mas sim, um Deus-Máquina,<br />
um Deus de circuitos e eletrodos, metal e eletricidade. Diante do<br />
fim da existência e do recomeço de minha espécie, perguntei-lhe:<br />
− Minha missão está terminada. E agora, Senhor?<br />
− Agora- respondeu-me uma voz ancestral e soberana- Façase<br />
a luz.<br />
E a luz se fez.<br />
56
DEUS EX MACHINA<br />
Elsen Pontual<br />
V<br />
Na imensidão do espaço, um foguete vagava sozinho em<br />
direção ao núcleo luminoso e incandescente de uma super-nova.<br />
Nele, Adan, o último dos robôs, completava sua missão.<br />
No principio era o verbo e o verbo fez-se máquina.<br />
57
ROBÔ-<br />
GUERREIRO<br />
André Soares Silva<br />
58
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
E u sou um robô-guerreiro. Eu amo lutar. Não sei dizer<br />
por que fui criado assim, apenas sei que amo lutar.<br />
Antigamente, robôs não podiam amar. Eram apenas ferramentas;<br />
caixas de aço com braços e pernas e cabeça que faziam aquilo<br />
que eram programados para fazer. Mas não podiam amar. Isso foi<br />
há muito tempo, quando os criadores ainda eram primitivos. Eu<br />
e aqueles do meu tempo sabemos amar, pois nossa estrutura de<br />
processamento de dados foi desenvolvida como uma cópia perfeita<br />
do cérebro humano. Somos a imagem e semelhança dos criadores,<br />
diferentes apenas na composição: fios, metal e óleo ao invés de<br />
veias, carne e sangue; mas idênticos na capacidade de amar. E<br />
meus criadores amavam lutar.<br />
Já faz muito tempo que lutei pela última vez; que amei pela<br />
última vez. Milênios atrás o mundo era um lugar cheio de estrondos<br />
e triunfos e derrotas, pois nossos criadores guerreavam uns<br />
contra os outros, e robôs-guerreiros, como eu, eram os soldados<br />
de infantaria. Por séculos não faltavam batalhas para combater.<br />
Então, quando parecia que nenhum dos lados da guerra venceria,<br />
foi decidido que todos haveriam de perder. Vieram epidemias que<br />
os frágeis corpos dos criadores não conseguiram combater; elas<br />
trouxeram morte e desespero. Armas que não deveriam jamais<br />
ser utilizadas, assim o foram, e um vento mortal carregado de<br />
radiação soprou pelo mundo.<br />
Os criadores se foram.<br />
Mas nós continuamos aqui, pois os criadores haviam nos feito<br />
sustentáveis pela radiação ultravioleta, e resistentes a tudo aquilo<br />
que era fatal para eles mesmos.<br />
Exceto ao amor.<br />
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
59
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
O tempo passou. Aqueles mais antigos e que não conheciam o<br />
amor, as ferramentas, logo pereceram. Não em uma bola de fogo<br />
incandescente, em meio ao combate, mas como uma lâmpada<br />
desligada por um interruptor. Sem os criadores para lhes dizer o<br />
que fazer, perderam o propósito. Apenas pararam e esperaram,<br />
até que a ferrugem acumulou-se em suas engrenagens e a poeira<br />
cobriu seu metal, transfigurando-os em mais adornos para a<br />
paisagem inerte de concreto e ferro retorcido.<br />
Já aqueles como eu, não. Não sabíamos o que era a fome que<br />
matou tantos bilhões de nossos criadores, porém conhecer o amor<br />
nos fazia famintos por ele, ainda assim. Este desejo nos fazia seguir<br />
em frente e continuar procurando uma maneira de satisfazê-lo,<br />
transformando-o assim em nosso propósito. Movimento contínuo.<br />
Energia infinita. Para os criadores sempre um enigma inexorável,<br />
e, no entanto, era tão óbvio.<br />
Amor sempre fora, ao mesmo tempo, seu próprio combustível<br />
e comburente.<br />
Assim, aqueles que amavam lutar resistiram por mais tempo.<br />
Lutar por amor. Amor por lutar.<br />
Refiro-me a nós, robôs-guerreiros, não aos criadores, embora<br />
a lógica determine que devesse ser assim para eles também.<br />
Em algum momento da história, os criadores descobriram que<br />
um robô era mais eficiente naquilo que era criado para fazer se<br />
o fizesse não por causa de comandos eletrônicos, mas por amor.<br />
Não sabiam explicar o porquê. Nunca souberam. Ainda assim, nos<br />
fizeram capazes de amar.<br />
No entanto, nem todos os robôs amavam lutar. Antes da<br />
guerra, robôs eram necessários aos humanos em todos os campos<br />
de suas vidas. Então eram feitos para amar outras coisas: fabricar<br />
ferramentas, pilotar veículos, gerenciar finanças. Havia muitos<br />
robôs. Em um dia típico, em uma rua como esta que agora<br />
percorro, uma avenida central de uma grande metrópole, haveria<br />
no mínimo três centenas de nós, engajados nas mais diferentes<br />
tarefas. Alguns eram bípedes como eu e mais parecidos com os<br />
criadores, outros possuíam formas inusitadas, com muitas pernas<br />
cheias de articulações para se deslocarem em áreas íngremes,<br />
ou mesmo perna nenhuma, mas velozes esteiras deslizando sob<br />
seus corpos poliedrais. Até mesmo as fachadas envidraçadas dos<br />
60
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
prédios podiam ser consideradas gigantescos robôs bidimensionais,<br />
pois sua cobertura de polímeros nanométricos era inteligente, e<br />
capaz de absorver a energia solar que lhes banhava durante o dia<br />
e utilizá-la para alimentar a si mesmos e a cidade. Também era<br />
capaz de transmutar sua própria superfície, inundando de cores os<br />
bilhões de pontos prateados, produzindo imagens e movimento,<br />
como enormes painéis a convidar os criadores para investir cada<br />
vez mais em tecnologia robótica. Éramos muitos, e dividíamos<br />
com os criadores o espaço das calçadas repletas de hologramas<br />
publicitários, e com seus veículos o fluxo plainante nas ruas de<br />
asfalto magnetizado.<br />
Hoje, as fachadas, as ruas e as calçadas estão desligadas. Os<br />
polímeros que cobriam os prédios oxidaram e morreram. A silhueta<br />
da cidade, outrora uma cordilheira de torres de prata luminosa,<br />
perdeu todo seu fulgor. Os arranha-céus tornaram-se enormes<br />
pilares de ferro avermelhados. As ruas estavam entulhadas com<br />
as carcaças de sua antiga população de veículos, parados há<br />
séculos no meio do caminho até onde quer que estivessem indo.<br />
As calçadas estão silenciosas, não há mais criadores correndo<br />
apressados de um lado para o outro, nem parados, contemplando<br />
as vitrines do comércio, agora nada além de janelas quebradas<br />
com vista para a poeira e o abandono. Não há mais robôs.<br />
Exceto um.<br />
Faz quatro décadas que o encontrei pela última vez. O robôprofessor.<br />
Depois de tanto tempo, tornei a captar seus movimentos.<br />
Três dias atrás, quando passei pelo que restara de um antigo<br />
entreposto de observação. Agora, tenho a certeza de que ele<br />
está exatamente ali, escondido em algum lugar da construção à<br />
minha frente. Embora o bombardeio que atingiu a cidade tenha<br />
devastado todo este quarteirão, o prédio ainda resiste, ainda que<br />
sua seção norte tenha desmoronado, indo se encontrar com o<br />
asfalto despedaçado da rua vizinha, ele continua de pé.<br />
Este prédio foi todo pintado de azul, um dia. Sua fachada não<br />
era um espelho inteligente como nos grandes edifícios, mas uma<br />
camada de tijolos, coberta por plasma de alvenaria e tinta. Consigo<br />
identificar traços moleculares do tingimento acrílico, conquanto<br />
esteja agora acinzentado como o resto daquela rua, daquele<br />
61
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
bairro, daquela cidade. Não havia mais cores nas metrópoles, nem<br />
o verde das árvores no campo, nem o azul do ozônio do céu. Tudo<br />
estava esbranquiçado, cinzento, ou negro. Se algum criador do<br />
século XXI despertasse aqui hoje, pensaria estar na Lua, não na<br />
Terra.<br />
Há uma lua no chão do prédio em ruínas. Uma pequena esfera<br />
cinza, salientando-se na grossa camada de poeira que cobre o<br />
chão. Antes, fazia parte de um modelo completo do sistema solar<br />
que pendia do teto, mas desprendera-se e caíra. Muito tempo atrás,<br />
este lugar era uma escola. Pais e mães estacionavam seus carros<br />
diante de seus portões, e despediam-se das crianças que corriam<br />
risonhas, de encontro a seus amigos e professores. Lembro do<br />
som que uma criança fazia ao rir. Hoje não há mais crianças, nem<br />
risadas. A destruição que se abatera ali não foi capaz de obliterar<br />
aquelas diminutas bolas de isopor que, provavelmente, haviam<br />
sido feitas pelas crianças que frequentavam a escola. Talvez, o robô<br />
cuja radiação eletromagnética eu agora capto as havia ajudado.<br />
Eu já sei onde ele está escondido.<br />
Ele tentou ser silencioso, mas não foi o bastante. O peso<br />
de seu pé metálico fraturou um dos azulejos apodrecidos pela<br />
umidade no andar superior, e eu escutei. Imediatamente, um<br />
pulso elétrico emanou de minha bateria central, espalhando-se<br />
por minhas engrenagens. Sinto-o como algo quente e frio, algo<br />
bom, em expectativa de algo ainda melhor. Antes, experimentava<br />
esta sensação o tempo todo, a cada adversário que defrontava em<br />
batalha, e cada um deles era único, como cada amor dos criadores.<br />
Há anos, porém, que não sinto esta energia estimulante, desde<br />
que encontrei este robô pela última vez.<br />
Desde que o tive em minha mira, e ele escapou.<br />
Daquela última vez, também havia acontecido em uma<br />
escola. Daquela última vez, ele também tentara se esconder no<br />
andar superior, e também cometera o mesmo erro. Este robô<br />
foi, no passado, um professor de crianças, criado para mantê-las<br />
seguras enquanto os pais passavam o dia fora, trabalhando. Ele<br />
ama crianças. Foi criado para cuidar delas, educá-las, mantê-las<br />
saudáveis, limpas e organizadas, quando seus pais não podiam.<br />
Assim, do mesmo modo como fui criado para amar a guerra, ele<br />
62
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
foi criado para amar crianças.<br />
Por isso se esconde na escola. Certamente, espera um dia<br />
encontrar uma criança da qual possa cuidar, a qual possa amar. Os<br />
criadores costumavam dizer que era melhor amar e perder do que<br />
jamais ter amado, mas isto foi em uma época em que cada novo<br />
dia lhes dava uma chance de amar outra vez. Hoje não é mais<br />
assim. Ainda que este robô-professor conseguisse encontrar uma<br />
criança e dela pudesse cuidar, logo ela cresceria, se tornaria um<br />
adulto, e ele não a amaria mais. E se aquela fosse a última criança<br />
do mundo, então ele jamais amaria outra vez. Seu propósito se<br />
perderia, e ele seria um com as ruínas, por toda eternidade.<br />
Gostaria de dizer tudo isso a ele, mas não posso. Sou um robôguerreiro,<br />
não tenho voz. Antes, quando existiam outros como eu,<br />
nos comunicávamos por ondas de rádio, sem qualquer som. Por isso<br />
não tenho voz. Se houvesse algum propósito para isto, registraria,<br />
em algum lugar, as coisas que penso enquanto caminho, mesmo<br />
agora, enquanto subo a escadaria de pedra para o segundo andar<br />
da escola, atravesso o corredor de paredes demolidas e alcanço o<br />
cômodo no qual o robô-professor está escondido.<br />
Há pedaços de carteiras escolares espalhadas pelo chão, e<br />
uma pilha delas amontoadas em um dos cantos da sala. A lousa<br />
branca despencara da parede, mas os últimos registros gravados<br />
em tinta de marcador azul ainda são visíveis. “Front norte”,<br />
“flanco”, “artilharia” - dizem as palavras, acompanhadas de<br />
pontos identificados como “fuzileiros”, “unidades mecanizadas”<br />
e “carros de combate”, todos espalhados por um diagrama mal<br />
esquematizado daquele quarteirão. Sem dúvida a sala foi usada<br />
por um grupo de criadores, muito tempo atrás, como um centro<br />
de comando, em uma tentativa desesperada de deter o avanço<br />
de seus inimigos naquele setor da cidade. Sem dúvida não<br />
havia nenhum robô-guerreiro ao lado deles, pois em menos de<br />
um segundo eu já calculara todas as variáveis expostas na lousa,<br />
percebendo inúmeros erros estratégicos no plano que haviam<br />
traçado. Se os criadores que ali se abrigaram seguiram aquele<br />
plano, tenho absoluta certeza de que todos morreram.<br />
Era precisamente atrás da lousa tombada que se esconde<br />
o robô-professor, tão encolhido como as articulações de seus<br />
63
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
delgados membros permitiam. Um criador chamaria este momento<br />
de irônico, afinal trata-se do último registro de um outro fatal<br />
erro estratégico. O robô-professor sabe, ele tem que saber, que<br />
será aniquilado se permanecer ali. Até um criador saberia disso.<br />
Provavelmente. Certo é que ele sabe que estou aqui. Não só pelo<br />
peso de meus pés fraturando o piso, mas pela energia irradiada de<br />
meu núcleo principal, alinhando-se em um fluxo pelos filamentos<br />
de meu organismo mecânico, iluminando as ranhuras de ventilação<br />
de meu corpo blindado, concentrando-se no propulsor do canhão<br />
acoplado em meus braços.<br />
Sinto-me bem.<br />
Faço mira, e um ponto de luz vermelha atinge a superfície<br />
branca da lousa, em alguma instância do malfadado plano de<br />
resistência. Ele sabe. Percebo seu movimento um milissegundo<br />
antes que o faça, tempo suficiente para executar o comando neural<br />
que dispararia o projétil eletromagnético na velocidade da luz,<br />
obliterando-o junto com a lousa e toda a seção da parede. O robôprofessor<br />
precipitou seu corpo esguio para fora do refúgio com<br />
um salto, estilhaçando o que restava da janela próxima. A bala de<br />
energia voou pelo ar um instante depois, rasgando o silêncio, súbita<br />
como uma gargalhada, sem alvo, sem objetivo, reconfigurando<br />
aquela parte da sala em uma nova ruína, transformando em éter<br />
aquele último sonho dos criadores pintado no branco da lousa.<br />
Robôs nunca souberam sorrir.<br />
Retorno pela escada e meu canhão energético ainda resfria,<br />
devolvendo a energia excedente de volta pelas terminações de<br />
minha couraça. Sinto o calor contraindo-se de volta a meu núcleo<br />
central, e a cada grau oscilante o irresistível ímpeto de querer mais<br />
renova-se na estrutura de meu organismo cibernético. Se ao parar<br />
pudesse fazer o tempo parar, tornando esta sensação permanente,<br />
eu pararia. Mas não posso, preciso continuar caminhando.<br />
Combustível e comburente.<br />
Contorno cuidadosamente a lua no chão empoeirado; um dia o<br />
robô-professor poderia retornar. Teria que retornar. Quando chego<br />
na rua, ele já alcança a esquina, correndo com suas longas pernas<br />
de aço, arrancando faíscas do asfalto e espalhando o clangor de<br />
suas engrenagens pelo ar estático da cidade. Volta-se para um<br />
lado e para o outro da encruzilhada, enfim decidindo pela direção<br />
64
ROBÔ-GUERREIRO<br />
André Soares da Silva<br />
sul. Corre, impulsionado por uma ânsia muito mais relevante que<br />
a simples sobrevivência, pois sobreviver era apenas meio para<br />
um fim. Amor. Sobreviver a mim renovara no robô-professor a<br />
esperança de um dia encontrar uma criança outra vez. Ele só teria<br />
que continuar caminhando.<br />
Sigo até a esquina e me volto para a extensão sul da rua<br />
transversal. As marcas no asfalto são bastante nítidas. Se<br />
quisesse, poderia deslocar mais energia para minhas articulações<br />
inferiores, desenvolvendo mais velocidade que o robô-professor e<br />
alcançando-o em poucos minutos.<br />
Ao invés disso, volto-me para o norte, e começo a caminhar.<br />
Fazem quatro décadas que encontrei o robô-professor pela<br />
última vez.<br />
Fazem quatro séculos que o encontrei pela primeira vez.<br />
É sempre o mesmo. Ruínas diferentes de cidades diferentes de<br />
países diferentes, mas ele é sempre o mesmo. De onde a estrada<br />
termina no deserto até onde ela termina nas planícies nivosas.<br />
Encontro o oceano de onde o sol se ergue, dou meia-volta, logo<br />
estou naquele onde ele se põe. Então, nossos caminhos se cruzam.<br />
Na maioria das vezes em uma escola como aquela; daí ele se<br />
esconde, eu o ataco, ele sobrevive, nós começamos a procurar<br />
outra vez.<br />
Somos tudo o que temos.<br />
Eu sou um robô-guerreiro. Eu amo lutar.<br />
Eu espero lutar outra vez algum dia.<br />
Eu espero lutar outra vez.<br />
Eu espero.<br />
65
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
66
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
A cidade, outrora uma grande megalópole que acomodava<br />
mais de dez milhões de habitantes, está abandonada. As<br />
suas ruas e avenidas desertas dão um ar de melancolia e tristeza à<br />
destruição. O silêncio é tão grande que talvez eu pudesse escutar<br />
um rato andando no que foi um dia uma calçada. Escutaria se<br />
existisse algum.<br />
Uma névoa cinza cobre a paisagem até onde eu posso ver.<br />
Desço por uma escadaria que em uma época não muito distante<br />
levava ao metrô ... mas agora só existe destruição e morte. Mortes<br />
antigas... Observo esqueletos humanos, alguns inteiros, mas a<br />
maioria aos pedaços. Entretanto, há também mortes recentes. Vejo<br />
uma bio-armadura e me aproximo. Era um dos meus, reconheço a<br />
numeração no ombro direito. Imediatamente me lembro do rosto<br />
assustado e do olhar negro sem esperanças. Está dividido em dois,<br />
pobre rapaz.<br />
Ando até o trem, um vagão ainda está inteiro, só um, os outros<br />
destruídos, metal retorcido e queimado pelo disparo efetuado<br />
pela nave-mãe alienígena. As pessoas que estavam nos vagões,<br />
tentando se esconder, fugir, salvar suas vidas, foram desintegradas.<br />
Imagino o calor, os gritos, o horror e o desespero. Ainda me<br />
emociono, tento respirar fundo, mas os filtros do capacete estão<br />
contaminados e já não funcionam bem. Volto até o soldado morto<br />
e pego munição e um par de filtros, preciso viver.<br />
A claridade vinda da cratera aberta no asfalto pela arma de<br />
plasma é grande, ilumina quase toda a estação. Subo as escadas<br />
e esquadrinho o céu. Parece esverdeado, talvez seja o meu visor,<br />
não importa, não mais. Sou o chamariz, o rato na armadilha para<br />
pegar o gato. É assim que lutamos agora... Cinco anos.<br />
Nós já os havíamos observado. A sorte nos favoreceu quando<br />
67
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
um dos observatórios astronômicos no deserto de Atacama<br />
visualizou as astronaves que vinham em direção à Terra, perto<br />
de Júpiter, se reagrupando. Mesmo assim o tempo foi curto. O<br />
primeiro ataque foi arrasador, mais de um bilhão de mortos.<br />
Meu sensor de movimento captou alguma coisa. Vejo um carro<br />
capotado na esquina, com a dianteira ainda meio enterrada na<br />
parede e me dirijo para lá. Sinto imediatamente a excitação, certa<br />
alegria. Estou caçando de novo.<br />
Calibro a injeção de ar purificado do capacete para respiração<br />
e aguardo. É um Voker! Nós os chamamos carinhosamente de<br />
cães de guerra, caminham sempre em duplas e andam sobre<br />
quatro patas, são monstros cruéis. Uma das três espécies que nos<br />
atacaram, todas espécies inteligentes e nativas no mesmo planeta.<br />
No início dos ataques, eles eram trazidos às centenas e<br />
desembarcados em nossas cidades matando muitos dos nossos,<br />
só que a coisa mudou. Muitos dos nossos cientistas foram<br />
recolhidos em laboratórios subterrâneos que funcionavam como<br />
bunkers gigantescos em diversas partes do globo. Nosso sistema<br />
de comunicação por cabos de fibra ótica, mesmo precariamente,<br />
funciona.<br />
Estou imóvel e inteiramente encostado na lataria aguardando.<br />
Observo eles andando no meio das ruas cheias de destroços,<br />
desembainho o gládios e assumo posição de defesa. Sei que são<br />
apenas lacaios, os que fazem o trabalho sujo. Nenhuma aeronave<br />
virá para socorrê-los. Permaneço imóvel, tenho esperança de que<br />
eles vão embora e eu não precise usar munição especial neles. A<br />
armadura do Voker é muito boa, cobre toda a parte superior do<br />
corpanzil e resiste aos projéteis dos nossos fuzis, mas não protege<br />
sua boca. Dou azar, o que está mais atrás tem um vislumbre de<br />
minha presença e começa os movimentos usuais de lado para o<br />
cerco. Tenho que viver.<br />
O primeiro salta na minha direção com a intenção de me<br />
morder. Os dentes metálicos são uma arma formidável. Mas os<br />
pequenos escudos nos meus braços são feitos de uma liga metálica<br />
resistente. Recuo um passo e o atinjo com a ponta da lâmina no<br />
céu da bocarra. Afasto-me o mais rápido possível, imediatamente<br />
o Voker para e sua cabeça explode. Viro-me rapidamente, me<br />
jogando sobre o outro que está a pouco mais de um metro de<br />
68
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
distância e atravesso sua cabeça com a lâmina, faço o mesmo<br />
procedimento. O gládio injeta, por meio de uma agulha, uma bola<br />
de gás comprimido que cresce instantaneamente e explode. Toda<br />
a ação não dura mais de dez segundos... morte rápida.<br />
Caminho o mais rápido que a bio-armadura permite em direção<br />
ao meu primeiro esconderijo, entro na edificação abandonada e<br />
desço as escadas até o terceiro nível. Nada. Atravesso o que já foi<br />
parte da rede de esgotos da cidade e saio a quatro quadras de lá.<br />
Lembro-me do dia do segundo raide aéreo. Eu, minha mulher<br />
e minha filha tínhamos fugido da cidade e estávamos na floresta<br />
com centenas de outros civis. Naquela época, ainda tínhamos<br />
muitos militares que tinham ficado para guerrear na cidade, outros<br />
nos acompanhavam como proteção. Duas naves de ataque nos<br />
emboscaram e apenas poucos conseguiram fugir e se esconder em<br />
uma caverna. Eu não fui um deles, sofri queimaduras nas pernas<br />
durante o ataque e falei para que minha mulher levasse nossa filha<br />
para a caverna, para a segurança.<br />
Minha família, assim como poucas centenas de pessoas,<br />
tiveram essa “sorte”. Sorte de conseguir entrar na caverna antes<br />
da chegada dos Cães, que nunca vieram. Uma das naves fez<br />
um disparo de plasma e matou a todos na caverna, queimados,<br />
incinerados.... Nunca entrei na caverna, não deixaram, não havia<br />
nada para reconhecer. Pareciam milhares de naves atacando. Foi<br />
assim em todos os cantos do planeta.<br />
Subo em uma edificação arrasada, mas as escadas me<br />
possibilitam chegar apenas ao terceiro pavimento, é o meu<br />
acampamento numero dois. Pego o binóculo e observo a sudeste,<br />
vejo outro soldado tentando se camuflar a uns três quilômetros<br />
dali. Viro na direção noroeste. Vejo um grupo de cinco Ogros. Nós<br />
os chamamos assim devido a sua armadura biológica grotesca,<br />
horrenda, poderosa. Muito melhor que a dos Vokers. A nossa é<br />
parecida. Sabe como é, vale tudo na guerra pela sobrevivência,<br />
roubo de tecnologia, engenharia reversa... e de repente, nós<br />
temos também as nossas bio-armaduras.<br />
Pego o disparador elétrico e coloco nossa munição especial para<br />
Ogros, mandada diretamente de um bunker na América Central.<br />
Se eu conseguir acertar um ou dois, eles vão chamar reforços. Em<br />
geral vêm os alados, com suas armas de plasma.<br />
69
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
As coisas mudaram um pouco no último ano, nossas armas<br />
melhoraram muito, pior para os aliens. Retiro uma placa de<br />
concreto pesada para facilitar a fuga na escadaria, mas fazendo<br />
isso posso comprometer minha segurança. Vou até a borda da<br />
construção, deito no chão e posiciono o disparador. É uma arma<br />
pesada, precisei da ajuda de outros três soldados para subi-la até<br />
o local correto.<br />
Os Ogros estão vindo em minha direção, dois mais a frente e<br />
os outros três mais atrás, miro no último. A distância ainda é muito<br />
grande, mas atiro mesmo assim. Não há som. Sucesso, sorte,<br />
cagada, não sei. A bala tem aproximadamente seis centímetros<br />
e, quando bate na blindagem do Ogro, abre e injeta outro projétil<br />
menor que penetra na bio armadura. Ele caiu.<br />
Os outros parecem não se dar conta e continuam andando dois<br />
passos, três, quatro, o suficiente para que eu possa recarregar,<br />
mirar e atirar de novo... nossa, hoje estou cagado. Acertei no<br />
lugar que poderia ser a cabeça. Dessa vez eles percebem, mas<br />
eu já estou recarregando enquanto eles ligam sua tecnologia<br />
para descobrir aonde eu estou. Dou o terceiro tiro no que está<br />
ajoelhado, manipulando o equipamento e faço a terceira baixa.<br />
Nunca tinha conseguido isso.<br />
Um Ogro sai da rua e entra na edificação. O outro corre, virando<br />
a esquina onde eu não posso observar. Presumo que ele vem<br />
tentar me cercar. Ligo o monitor no capacete e me arrasto para<br />
trás por uns dois metros, engatinhando na direção das escadas.<br />
Pego minha mochila e desço o mais rápido que posso, me escondo.<br />
Sei que vão me atacar, pois os ruídos no meu monitor indicam que<br />
o Ogro pediu ajuda, e em breve os alados estarão por aqui.<br />
Vou para meu esconderijo número quatro. Tenho cinco deles.<br />
Está quase anoitecendo. Este é uma antiga caixa d’água no<br />
subsolo, onde eu quebrei parte da parede lateral. Deito e examino<br />
minha bio-armadura. Faço um escaneamento no meu capacete à<br />
procura de vírus cibernéticos. Nada.<br />
Lembro que o coronel que comanda a resistência na cidade<br />
chamou meu pelotão há seis semanas e nos deu essa missão.<br />
Missão suicida, eu disse na hora. Mas é essa a sua missão<br />
capitão, sua e de seus homens, ele dissera. Vinte e seis homens.<br />
O primeiro a morrer foi meu tenente e o último, o soldado que<br />
70
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
vi de tarde no metrô. Acredito que ainda deva ter uns nove em<br />
condições de combate. Três feridos que tinham condições de sair<br />
foram dispensados e voltaram para a base, fora da cidade. Talvez<br />
só eles sobrevivam.<br />
Abro um compartimento no cinto, tiro o joystick, começo<br />
a preparar a armadilha para os voadores. Tiro também duas<br />
fotografias. A primeira tem a imagem da minha mulher<br />
amamentando minha filha. Ela sorri e, mesmo depois de tanto<br />
tempo, sinto uma enorme saudade delas. Na segunda estão minha<br />
mãe e meu irmão mais velho. Ele tinha uma doença degenerativa,<br />
não podia mais andar. Era dez anos mais velho e o meu grande<br />
e melhor amigo. Mamãe cuidava dele, mas não conseguiram sair<br />
desta cidade a tempo. Cheguei tarde demais para tentar salvá-los.<br />
É a história da minha vida. Coloco as fotos encostadas na parede<br />
e observo.<br />
A noite está clara hoje, é a noite que esperávamos, vejo luzes<br />
de disparos de energia dos invasores. Estranho, não gostam de<br />
lutar à noite. Buscam alguma coisa, creio que sou eu, querem<br />
vingança. Devem ter descoberto a posição de um de meus<br />
homens, provavelmente ele fez um estrago nas forças aliens, ou<br />
ainda está fazendo. Alguns alados e um grupo de Ogros vêm em<br />
minha direção. Preparei uma surpresinha. Duas aeronaves circulam<br />
minha posição e vão embora.<br />
Estou encostado, de costas para a parede do que foi uma vez<br />
o elevador. Olho para a parede em parte desmoronada à minha<br />
frente e reconheço o lugar. Vim até aqui uma vez com minha<br />
esposa, era nosso primeiro aniversário de casamento, ela ficou<br />
encantada com o quadro na parede do corredor e me fez prometer<br />
comprar uma cópia para colocar em nossa casa. O sorriso dela não<br />
me sai da cabeça, seus cabelos negros, olhos castanhos claros,<br />
seu corpo jovem e delicioso.<br />
Tenho que parar... estou enlouquecendo, talvez seja a solidão,<br />
talvez seja o ódio pelo inimigo... não... eu não tenho ódio pelos<br />
inimigos, não mesmo... simplesmente não sinto nada, só quero<br />
sair daqui, sair da cidade, comer comida decente. Quero minha<br />
mulher e minha filha de volta, quero minha mãe e meu irmão,<br />
quero meu emprego... o que eu quero é a minha antiga vida de<br />
volta.<br />
71
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
Lembro-me de que um cientista famoso uma vez disse<br />
considerar uma irresponsabilidade enviar a posição do nosso<br />
planeta para o espaço profundo, sinais de rádio e outras formas<br />
para tentar comunicação. Pagamos por isso. Esses alienígenas<br />
levaram muitos dos nossos, para que eu não sei, comida talvez,<br />
escravos, estudos....não sei.<br />
Uma explosão me traz de volta à realidade. Ando até a borda<br />
do primeiro andar, os Ogros estão quase na posição de uma das<br />
surpresas que preparei, apenas mais alguns metros... então, de<br />
repente, dois voadores estão acima da minha posição, acho que<br />
me escanearam. Aciono a surpresa. É uma mina de dois estágios,<br />
o primeiro salta no ar e, ao explodir, manda centenas de agulhas<br />
envenenadas por trezentos e sessenta graus. As armaduras<br />
biológicas ficam cheias de veneno, intoxicadas e seu sistema de<br />
defesa faz com elas abram os respiradores. O segundo estágio é<br />
acionado automaticamente após cinco segundos, espalhando gás<br />
venenoso a base de cloreto de sódio e mais algum elemento que<br />
os cientistas localizados no bunker da Europa descobriram ser letal<br />
para eles. O gás é lançado em todas as direções. Em pouco mais<br />
de um minuto todos os Ogros estão mortos, cerca de trinta, fiz um<br />
estrago.<br />
As aeronaves são feitas de um material biológico como as<br />
armaduras, só que mais sofisticadas, inteligentes, e mais perigosas<br />
quando estão com a terceira raça alienígena como pilotos,<br />
formando uma espécie de simbiose. Ouvi uma vez uma história<br />
contada por um piloto francês que estes eram parecidos conosco,<br />
que os havia visto enquanto foi prisioneiro, grandes, cabelos<br />
brancos e pele grossa acinzentada, sem pelos.<br />
Elas já estão disparando em minha posição, vou até as janelas<br />
e pego o joystick. Aciono o meu “brinquedo” predileto. Todo feito<br />
de polímero, um quadrado com um metro e meio de cada lado,<br />
possui quatro hélices que o faz voar e dois disparadores de dardos<br />
com o gás injetável. Os disparos da arma de energia estão cada<br />
vez mais perto. Levo meu “brinquedo”, chamado quadricóptero,<br />
até perto da aeronave e disparo uma seringa contra a primeira<br />
aeronave, então um disparo faz com que a parede caia sobre mim.<br />
Sobrevivo, a armadura é eficiente, meu coração bate acelerado.<br />
É medo. A outra aeronave acaba de lançar uma arma de gás<br />
72
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
corrosivo contra mim. Algum tipo de acido. Se não tivesse trocado<br />
os filtros hoje cedo já estaria morto, mesmo assim sinto o gás<br />
dissolvendo a liga metálico-polimerizada da armadura.<br />
Não tenho como fugir, caiu uma viga de concreto prendendo<br />
minha perna, não tenho opção, alcanço o joystick e aproximo o<br />
quadricóptero da segunda aeronave que continua disparando na<br />
edificação. Vou morrer, penso. Chego perto o suficiente para um<br />
disparo, o último. Meu brinquedo foi desintegrado. Espero a morte<br />
por alguns segundos, mas ela não vem.<br />
Uma segunda explosão, dessa vez maior, clareou a madrugada.<br />
Não vi de onde veio. Acredito que outros soldados do meu pelotão<br />
estão em ação. As aeronaves tentam ganhar altura, subindo<br />
algumas dezenas de metros. Então, uma delas aderna e cai<br />
abruptamente no solo. A outra continua a subir até se chocar<br />
contra uma edificação e explodir. Trabalho feito.<br />
Ouço alguém me chamando, é minha mulher. Ela diz para eu<br />
sair rápido dali. Acordo, mas minha perna ainda está presa. Alcanço<br />
um pedaço de ferro e o uso como alavanca, levanto apenas alguns<br />
centímetros e consigo me libertar. Dezenas de aeronaves estão se<br />
afastando da cidade e Ogros e Cães correm para seus transportes.<br />
Já vi isso antes, significa que uma das Baleias (naves-mães) está<br />
descendo e vai atacar com seus canhões de plasma, destruidores<br />
de cidades, aniquiladores de civilizações. Meu grupo, ou o que<br />
restou dele chamou sua atenção. Sento e me encosto na parede.<br />
Cansado, muito cansado.<br />
Lembro do comandante dar nome à operação: isca de peixe.<br />
Eu e meus homens somos a isca para a baleia. Uma cena dantesca<br />
acontece diante dos meus olhos, a nave mãe vem descendo,<br />
descendo, aumentando de tamanho... gigantesca, mais de um<br />
quilometro de diâmetro com certeza, e mais de uma centena<br />
de metros de altura, irregular, fantástica, fazendo pequenos<br />
disparos. Sei que nesse momento três carretas estão entrando na<br />
cidade, transportando uma nova arma. Essa arma necessita de<br />
muita energia, então colocou-se uma pequena usina hidrelétrica<br />
nos arredores da cidade para funcionar e um transformador de<br />
subestação alimentaria a arma.<br />
A Baleia já está sobre a cidade, pairando centenas de metros<br />
acima. Da última vez que esteve ali, tentamos de tudo para<br />
73
O SOLDADO<br />
Swylmar Ferreira<br />
derrubá-la, mas ela nos arrasou, tinha escudo de energia. Agora<br />
os caminhões estão posicionados, mas devem esperar até o último<br />
segundo para disparar. A Baleia começa a energizar sua arma<br />
principal e então abaixa os escudos. Os caminhões disparam<br />
primeiro, no mesmo ponto, e uma explosão na lateral da nave faz<br />
com que ela aderne. Impressionante ver as bolas de fogo explodindo<br />
como bleves, uma vez, duas vezes, três. Imediatamente começa<br />
a se afastar, mas é alcançada bem no centro por um segundo<br />
disparo vindo de fora da cidade. Uma explosão central, de dentro<br />
para fora, a Baleia aderna mais ainda e finalmente cai no solo, fora<br />
da cidade. Vejo clarões que iluminam a madrugada escura e ouço<br />
os trovões da morte.<br />
* * *<br />
O acampamento está em um lugar diferente, mais arborizado.<br />
Finalmente, fiz uma refeição decente e não aquela porcaria de<br />
pasta ou jujuba. Dormi em uma cama de verdade e até já tomei<br />
um banho. Aguardo na barraca com oito dos meus homens, sem<br />
bio-armaduras, foi o que restou do meu pelotão. O comandante<br />
entra e nos parabeniza. É a primeira vez que o vejo sorrir. Atrás,<br />
na parede, tem um mapa. Ele faz sinal para nos sentarmos e então<br />
outros homens entram e se sentam. Ele nos olha e diz:<br />
— Chega de moleza, tenho outra missão para vocês,<br />
capitão.......<br />
74
NOS LENÇÓIS<br />
DO TEMPO<br />
Thasyel Fall<br />
75
NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />
Thasyel Fall<br />
NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />
Thasyel Fall<br />
E u sei que beber não resolve nada, mas não custava<br />
tentar. Eu sei, eu parecia um maldito clichê, afogando<br />
as mágoas na bebida. Mas acho que qualquer outra faria o mesmo<br />
no meu lugar. Imagine a cena, branca de neve deitada sobre<br />
suaves lençóis de seda, enquanto o príncipe encantado a beija<br />
loucamente, uma cena linda de filmes e contos de fadas, se não<br />
fosse por pequenos detalhes, a cama era minha — assim como os<br />
lençóis de seda — e o príncipe também. Imaginem a minha cara<br />
ao encontrar meu namorado sobre aquela vadia branca azeda.<br />
Eu fiz sinal para o barman trazer outra rodada, e me ajeitei no<br />
banco desconfortável, mais umas doses e talvez as coisas fizessem<br />
sentido. É claro que eu não estou bebendo por ele — aquele idiota<br />
não vale nem uma gota dessa bebida esquisita — mas sim por<br />
tudo que ocorreu depois.<br />
O que eu fiz quando os flagrei? O que toda garota de respeito<br />
faria, parti para cima da vagaba, arracando-lhe alguns tufos de<br />
cabelo. No entanto, mais tarde, eu percebi que tinha sido uma<br />
péssima idéia. Quando os lençóis começaram a voar, foi que eu<br />
percebi que o traira safado não havia arrumado apenas uma<br />
amante, mas uma amante-bruxa. E ela riu na minha cara, e falou<br />
umas coisas esquisitas, sobre o tempo ou algo do tipo, e então<br />
tudo foi sugado ao meu redor como um vortex.<br />
O barman veio servir a bebida, que eu agradeci mal<br />
educadamente. Voltando a história, onde eu estava? Ah, sim, no<br />
vortex que sugou tudo, sim, inclusive a mim. E, após o momento<br />
psicodélico em que imagens distorcidas giravam ao meu redor,<br />
eu mergulhei na profunda escuridão. E acordei, imagina a minha<br />
sorte, 300 anos no futuro! Certo, parece loucura né? Eu que o<br />
diga, mas os calendários não mentem. Eu sabia que havia algo<br />
76
NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />
Thasyel Fall<br />
errado, principalmente quando eu vi as criaturas sobrenaturais —<br />
vestidas como em uma droga de livro steampunk —, pessoas com<br />
presas, voando, se transformando em lobos e correndo para não<br />
perder o ônibus — que voava movido a vapor.<br />
Eu terminei minha bebida e pedi outra. Relembrar os fatos<br />
estava piorando as coisas, mas era como um filme se repetindo<br />
em minha mente, eu não podia evitar. Eu juro que num primeiro<br />
momento pensei que estava louca, depois que estava em outra<br />
dimensão, e após vê-los falando o mesmo idioma que eu, criei<br />
coragem, e fui perguntar em qual planeta estávamos e que ano<br />
era, gerando olhares curiosos, e perguntas sobre minha sanidade<br />
mental. Sim, cada vez ficava melhor.<br />
Após saber que estava em 2311, 200 anos depois — segundo<br />
me informaram — que os sobrenaturais haviam sido aceitos em<br />
sociedade, eu tentei ser racional, porque surtar não adiantaria<br />
nada. Eu pensei que já que uma bruxa havia me mandado para o<br />
futuro, uma outra poderia me mandar para o passado. Parecia bem<br />
simples. — Mais uma dose, por favor. Dupla. Eu disse novamente<br />
ao barman, para continuar a história eu teria que beber mais.<br />
Então, eu pedi informações sobre onde encontrar bruxas, e não foi<br />
difícil achá-las. Mas as noticias não eram boas, parece que além<br />
de banida, eu também fui amaldiçoada por aquela safada, uma<br />
maldição que não me permitia ser movida de volta a meu tempo,<br />
e, segundo as bruxas, apenas a bruxa original podia desfazer um<br />
feitiço lançado.<br />
Então, para finalizar, estou presa nesta época, sem casa, sem<br />
dinheiro, sem o estúpido namorado, e, ainda por cima, percebi ao<br />
entrar no bar que sou uma presa cobiçada. Vi o olhar dos vampiros<br />
e lobisomens — eu acho que são lobisomens, eu os vi cheirar o ar<br />
— em mim.<br />
É, então eu tinha motivos para beber. E eu não sei se foi a<br />
bebida me afetando, mas eu juro que vi um garçom se escondendo<br />
embaixo de uma mesa. O que estava acontecendo? Eu não fazia<br />
idéia. De repente houve um som horríve, como metal sendo torcido<br />
ou sei lá, e todos começaram a correr, e gritar. Eu não me movi, e<br />
virei para o barman ainda imparcial.<br />
— O que está havendo? Minha voz era um fantasma alcoolizado.<br />
— Demônio. Disse o barman e voltou aos seus afazeres. Eu olhei de<br />
77
NOS LENÇÓIS DO TEMPO<br />
Thasyel Fall<br />
volta para a histeria em massa, e foi quando o vi. Alto, forte, pele<br />
bronzeada, foi uma visão do paraíso vê-lo despedaçar e devorar<br />
todas aquelas pessoas. É, eu tinha bebido além da conta.<br />
E após fazer cartolas ensangüentadas voarem, e capas virarem<br />
pedaços, o pedaço de mau caminho — sem dúvidas — caminhou<br />
até o balcão e se sentou a meu lado. Eu juro. A morte nunca<br />
havia me parecido tão bela. Seus olhos negros percorreram cada<br />
centímetro de mim, e o que aconteceu a seguir não foi mais do<br />
que o esperado.<br />
Chegamos em seu apartamento — em forma de cúpula —<br />
em minutos, e logo estávamos nos devorando sobre os lençóis<br />
da cama Box dele. Ele era realmente um demônio. Mas era bom<br />
demais para ser verdade, percebi isso quando Rapunzel apareceu.<br />
Uma loira linda de morrer, com tranças enormes, que trajava<br />
uma combinação de couro com metal envelhecido — que detesto<br />
admitir — lhe caía muito bem.<br />
Ela praticamente arrombou a porta, e voou em cima de mim. E<br />
lá estava eu novamente em uma briga de mulheres, só que desta<br />
vez a outra era eu. E alguns tufos de cabelos depois — sim, eu não<br />
aprendi da primeira vez — eu percebi que tinha sido novamente<br />
um engano. Eu já nem estranhei a sensação da realidade ao meu<br />
redor sendo sugada, o que eu podia fazer? Essas vacas bruxas<br />
estavam por toda parte.<br />
Tudo ficou um breu novamente, e não acreditei quando abri<br />
os olhos e me deparei com as máquinas, e o cenário devastado,<br />
merda, eu havia sido mandada no tempo novamente. Para um<br />
futuro que provavelmente fazia jus ao que James Cameron havia<br />
imaginado, e o qual a versão robótica de Jhon Connor tentava<br />
tanto deter. Eu levantei, e sacudi a poeira, bem, talvez não fosse<br />
tão ruim, eu apenas tinha que conseguir três coisas no momento:<br />
roupas, bebida, e talvez — eu vi quando um robô explodia um<br />
prédio a frente — um abrigo nuclear.<br />
78
ANJO VERSUS<br />
DEMÔNIO<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
79
ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
ANJOS VERSUS DEMÔNIOS<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
E stava eu em minha morada celestial<br />
mensageiro trouxe-me um recado:<br />
— Senhor, o demônio deseja visitá-lo!<br />
quando o<br />
Esbocei um ligeiro sorriso e, por um momento, meditei se<br />
aceitaria recebê-lo ou se o ignorava como muitas vezes o havia<br />
feito.<br />
— Traga-o aqui, aceitarei sua visita — disse eu ao mensageiro,<br />
e ele partiu com essa resposta.<br />
Com a permissão para adentrar as plagas etéreas, o demônio<br />
veio célere à minha morada e logo estava diante de mim, simulado<br />
sob a forma de uma alva pomba, demonstrando que vinha em paz<br />
e em termos amistosos. Achei-o patético, pois eu podia entrever<br />
sua horrenda catadura através desse simulacro. Ele então me<br />
disse:<br />
— Caro amigo, enfim me recebe! Há quanto tempo não nos<br />
vemos. Olhe, tenho algo a propor-lhe, se me permite... — soltei<br />
uma gargalhada de desdém, mas tão breve me contive, lhe<br />
perguntei:<br />
— O que um demônio ousaria propor-me?<br />
— Apenas um jogo, um jogo bem divertido. — Respondeu-me<br />
ele de um modo tão simplório que, aliado à figura de uma pomba,<br />
quase me esqueci de que era o demônio que me falava. Porém<br />
fiquei curioso, e o deixei continuar.<br />
— Meu caro, sei que é um amante de jogos, ao menos<br />
costumava sê-lo nos velhos tempos, quando o conheci. — Disse<br />
ele.<br />
80
ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
Era verdade. Jogos sempre foram minha paixão. Agora mais<br />
interessado, retruquei ao demônio:<br />
— Fale-me mais sobre este jogo — enquanto falava, levei-o até<br />
a sala para acomodarmo-nos em poltronas.<br />
— É um joguinho de guerra — continuou o demônio —, e não<br />
vejo melhor lugar para combatermos do que em Eldrom, a terra<br />
pacífica.<br />
Eu conhecia bem aquela terra, estava sob minha jurisdição<br />
espiritual e, como o demônio mencionou, era um lugar pacífico, a<br />
população não conhecia a guerra.<br />
— Não achas que devemos sacudi-la, nos divertirmos um<br />
pouco? — insinuou o demônio, e eu comecei a irritar-me.<br />
— Miserável — gritei irado, e ele assumiu a forma de um<br />
inseto, como querendo demonstrar sua insignificância perante a<br />
mim. — Ousa pensar que sou tolo? Que vantagem terei neste seu<br />
joguinho?<br />
— Todas as vantagens, meu caro amigo — volveu o demônio,<br />
ainda sob a forma de inseto. — Se o anjo não quiser, retiro-me<br />
já...<br />
— Espere! — exclamei, retendo-o. — Que vantagens são essas?<br />
— Vejo que o anjo se interessou mais — replicou o demônio. —<br />
Para seu total proveito, e nenhum meu, salvo o do deleite de jogar,<br />
sugiro que o anjo use as minhas armas, e eu, as suas. Assim não<br />
está melhor?<br />
Confesso que sou irascível, mas diante de tal proposta me<br />
acalmei progressivamente, ao mesmo tempo em que ele voltava<br />
a doce forma de uma pomba. As armas do demônio eram vastas e<br />
muito poderosas, enquanto que as minhas se resumiam a pobres<br />
pessoas. Fiquei desconfiado, e perguntei-lhe:<br />
— Demônio, aonde quer chegar? Quer entregar-me a vitória<br />
numa bandeja?<br />
— Só quero me divertir. — Foi sua única resposta.<br />
Embora eu seja um jogador nato, em meu íntimo ainda não<br />
estava disposto a aceitar, mas antes de lhe dar qualquer resposta,<br />
quis saber o que eu ganharia com este jogo e indaguei-lhe sobre<br />
81
ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
isso. O demônio, percebendo minha hesitação, usou de muitas<br />
palavras suaves e servis com o fito de convencer-me a aceitar,<br />
dizendo-me que, como a vitória já estava assegurada a mim, como<br />
prêmio ele me daria sua alma. Ele sabia negociar! Porém era a<br />
minha vez de falar, e como era praxe nos jogos, de minha parte<br />
faltava apresentar um prêmio, caso ele ganhasse. Ofereci-lhe<br />
então minhas asas.<br />
Fomos para a mesa de jogos, e o demônio, assumindo agora a<br />
forma de um gato, denotando que iria se divertir como um felino<br />
doméstico, pediu-me licença e ordenou a seu lacaio, que veio com<br />
ele, que tocasse algo em meu piano como acompanhamento, e<br />
nosso jogo começou.<br />
A população de Eldrom, acostumada com a tranquilidade de<br />
suas terras, estranhou e se alarmou com a súbita formação de<br />
uma gigantesca nuvem, negra e movediça, surgida no horizonte.<br />
Eram gafanhotos, inúmeros, milhares, enviados por mim para<br />
destruir as plantações daquele povo. Em questão de pouco tempo,<br />
os eldromenses, assim se chamavam, viram-se privados de suas<br />
colheitas. A primeira jogada estava concluída, agora era a vez do<br />
demônio jogar.<br />
Tendo os eldromenses celeiros, a fome não lhes atormentou por<br />
um determinado período, mas teriam que recomeçar os plantios, e<br />
o demônio, para minha surpresa, os conduziu com maestria nesse<br />
sentido. Em pouco tempo a população via florescer as primeiras<br />
sementes. O jogo estava apenas no começo.<br />
A minha segunda ação foi enviar-lhes severas moléstias,<br />
abatendo dezenas de eldromenses. Meu adversário divertia-se<br />
a valer, como se minhas ações em nada o abalasse. Então ele,<br />
com seu jeito brejeiro, me indicou que entre a população havia<br />
um sábio curandeiro, e com seus cuidados e remédios as pessoas<br />
estavam se livrando de todas as moléstias. Enquanto se passavam<br />
minutos para mim e o demônio, para os eldromenses passavam-se<br />
semanas.<br />
Nosso jogo seguia equilibrado, todas as minhas investidas<br />
eram rebatidas e aniquiladas pelo meu adversário sob forma<br />
felídea, usando de muita astúcia, devo dizer, tendo em vista, como<br />
eu erroneamente supus, sua fraca munição. Assim seguíamos<br />
empatados, e o jogo começava a desagradar-me. Decorridas<br />
82
ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
outras tantas jogadas, fui percebendo que o povo de Eldrom<br />
adquiria malícia e se fortificava a cada dano que eu lhes impunha,<br />
algo que eu não havia considerado de início.<br />
— Toque a balada dos Deuses! — Ordenei enérgico ao lacaio, e<br />
ele igualmente enérgico dedilhava as teclas do piano. — Chegou a<br />
hora da jogada final!<br />
Meu belicoso exército estava pronto para a batalha. Seria o fim<br />
dos eldromenses e, por conseguinte, a derrota do demônio. Sem<br />
mais demora, ordenei marchassem os dragões, trolls e diabretes<br />
contra Eldrom. Mas, para minha total estupefação, algo inusitado<br />
acontecia entre os eldromenses: forjavam espadas, escudos e<br />
armaduras completas! E treinavam, havia ali alguém que lhes<br />
preparava para a guerra. Formaram-se cavaleiros, arqueiros e<br />
toda a sorte de guerreiros dispostos a qualquer investida. Nunca<br />
os imaginei capazes de tal progresso. O demônio os manipulava<br />
com argúcia. Então, quando meu exército chegou às fronteiras de<br />
Eldrom, encontrou os eldromenses já preparados e ansiosos para o<br />
embate. Iniciou-se a jogada final.<br />
Como primeira medida, expedi a vanguarda de dragões que,<br />
com suas descargas de fogo, incendiaram as árvores e as casas<br />
dos eldromenses. Porém seus hábeis arqueiros, com flechadas<br />
precisas, abateram todos os meus dragões.<br />
Avancei com minhas tropas de trolls e diabretes contra os<br />
guerreiros eldromenses, tornando nosso jogo muito mais acirrado e<br />
cruento. A princípio acreditei subjugar meus oponentes com minha<br />
força colossal, pois impingi muitas perdas ao adversário. Mas seja<br />
quaisfossem minhas estratégias, a todas o demônio repelia e se<br />
recuperava espantosamente. O jogo se aproximava do fim.<br />
Desferi um murro na mesa e meus dentes rangeram de<br />
raiva. O demônio olhava-me zombeteiramente e, entusiasmado,<br />
aumentando ainda mais o meu furor, gritou ao seu lacaio:<br />
— A tocata final, por favor!<br />
O demônio assumiu agora sua verdadeira e horrífera figura,<br />
lambendo seus repugnantes beiços com prazer. Maldito! Minhas<br />
tropas antes superiores sucumbiam perante o reduzido número<br />
dos guerreiros eldromenses. Foi com grande pasmo que vi o povo<br />
de Eldrom comemorar a vitória. O jogo terminou. Fui derrotado<br />
83
ANJO VERSUS DEMÔNIO<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
pela astúcia do demônio. Entre exaltadas gargalhadas de prazer e<br />
escárnio, ele me disse:<br />
— Meu tolo anjo, suas asas são minhas!<br />
Tive de entregá-las a ele, muito a contragosto. Porém faz<br />
parte do jogo. Desprovido de asas, não pude mais ficar em minha<br />
morada celeste, e de lá despenquei. O lugar onde estou realmente<br />
não importa. Muitos anos se passaram deste então. Nem sei se<br />
ainda sou um anjo ou se sou um desesperado jogador em busca<br />
de jogos, pois tudo o que eu mais ansiava era jogar novamente.<br />
Ninguém me aceita mais como oponente.<br />
Mas espere, aí vem um mensageiro em minha direção, parece<br />
que o demônio quer me ver!<br />
84
O BONECO DE<br />
MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
85
Carta de Igor.<br />
Gênova, dezembro de 1808.<br />
Caro senhor Gepeto,<br />
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
Há dias que aguardo minha encomenda. Sei bem que o<br />
trabalho de um artista pode ser longo, ainda mais aqueles que,<br />
como o senhor, é minimalista e trabalha com perfeição os menores<br />
detalhes. Contudo, o natalício de minha filha se aproxima e como<br />
presente gostaria de dar a ela o boneco que lhe encomendei. Por<br />
isso, peço que se puder me enviá-lo dentro de uma semana, o<br />
que creio ser tempo mais do que razoável, ficarei grato. Quanto<br />
ao pagamento, resolvi adiantá-lo e já enviar juntamente com essa<br />
carta, pois sei que o senhor perdeu sua esposa recentemente e<br />
que teve várias despesas com o funeral. Além disso, conheço sua<br />
índole e sei que irá cumprir com o combinado.<br />
Agradecido,<br />
L. Igor<br />
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
Carta de Gepeto.<br />
Milão, dezembro de 1808.<br />
Caro, senhor Igor,<br />
Desculpe a demora em lhe dar alguma satisfação. O senhor me<br />
conhece e sabe como sou cumpridor dos prazos que estabeleço<br />
com meus clientes. Por isso, posso dizer ao senhor que o boneco<br />
86
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
que me encomendou já está pronto há semanas e se não o enviei<br />
ainda, é por fortes motivos, os quais ainda não ousei relatar a<br />
ninguém. Mas como o senhor é o dono do boneco e o fornecedor<br />
da matéria prima, sinto-me na obrigação de lhe dar uma resposta.<br />
Por isso, não peço que me dê crédito, eu mesmo não acreditaria<br />
se me fosse relatado fato tão estranho através de informais<br />
correspondências. Contudo, o relato que se segue, posso lhe<br />
garantir, é a mais pura verdade.<br />
Há oito semanas, quando recebi do senhor o pedido para que<br />
fizesse um boneco de presente para seu filho, confesso que tive a<br />
intenção de negar. Afinal, não havia completado nem o primeiro<br />
mês de falecimento de minha esposa, que como o senhor sabe era<br />
minha única paixão na vida. A bem da verdade, e isso revelo apenas<br />
agora, era suspeita nossa que ela estivesse grávida, já que suas<br />
regras, sempre pontuais nesses trinta anos de casados, estavam<br />
atrasadas há mais de vinte dias. Parecia que finalmente Deus tinha<br />
dado ouvido às nossas preces, pois há muito sonhávamos em<br />
ter um filho. No entanto, mais por nossa relação antiga, do que<br />
por real interesse, aceitei o trabalho. Como combinado, o senhor<br />
me enviou o tronco de madeira conforme eu havia pedido e me<br />
debrucei sobre o trabalho a fim de terminá-lo o mais rapidamente<br />
possível.<br />
Na realidade, no início, foi como uma válvula de escape, já<br />
que, concentrado nessa tarefa, eu esquecia, por alguns minutos, o<br />
luto que se agarrava a minha alma. Mas os dias foram se passando<br />
e eu não conseguia terminar o trabalho. Aos poucos fui percebendo<br />
que aquele boneco tinha algo de especial, pois, mesmo contra<br />
minha vontade, minhas mãos insistiam em moldar nele as mesmas<br />
feições que minha esposa e eu, imaginávamos que teria o nosso<br />
filho. E foi assim que, sem nenhuma intenção consciente, o boneco<br />
acabou tendo os olhos azuis e o sorriso encantador de minha<br />
falecida esposa, os cabelos pretos e lisos como os meus em minha<br />
juventude e o resto uma mistura de avós, tios e outros parentes,<br />
que insistem em aparecer em nossos bebês. Apenas o nariz não<br />
havia saído como o de nenhum parente, o órgão saíra pequeno e<br />
achatado demais e, por isso mesmo, tive de refazê-lo maior e mais<br />
afinado por várias vezes até que percebi que estava tão grande e<br />
pontudo como de minha bisavó, Clotilde.<br />
Acabado o boneco, eu sabia que deveria entregá-lo ao senhor.<br />
87
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
Mas tal gesto me foi impossível, já que naquele bloco de madeira<br />
estava impressa a única fotografia do meu inexistente filho. Por<br />
isso, deixei-o sobre a mesa da cozinha por um ou dois dias. No<br />
entanto, aquele não me pareceu um lugar apropriado para deixar<br />
uma criança ainda tão pequena e frágil. Sendo assim, decidi pegar<br />
o berço que foi de minha esposa e restaurá-lo. Foi nele, que deixei<br />
o boneco por algumas semanas e ali ele teria ficado por alguns<br />
meses ou talvez anos não fosse a visita inesperada de uma velha<br />
senhora, que se apresentou como sendo a Fada Azul.<br />
No início, eu quis rir do nome, não o fiz por respeito à senhora<br />
que ali se apresentava. Ela revelou conhecer todo meu drama, a<br />
morte de minha esposa, sua suposta gravidez e até a existência<br />
do boneco e o berço, no qual eu o instalara. Teria eu caído no<br />
chão, se já estivesse sentado, ao ouvir o relato detalhado de<br />
minha vida feito pela mulher. Eu não havia falado da gravidez de<br />
minha esposa a ninguém e tampouco comentado sobre o boneco<br />
ou sua localização, como aquela velha senhora poderia saber de<br />
tudo aquilo?<br />
Mas em seguida, um sopro de razão me invadiu a cabeça e<br />
imaginado tratar-se de alguma velha bisbilhoteira, que talvez<br />
estivesse vigiando meus passos de longe, pus-me a expulsála<br />
aos gritos. Mas a velha pouco ou nada se incomodou, apenas<br />
sinalizou com o indicador nos lábios que eu me calasse, o que,<br />
mesmo a contragosto acabei obedecendo. “Ouça!” – sussurrou ela.<br />
“A criança chora no berço. Vá rápido, seu filho despertou!”.<br />
De fato, um choro de criança invadia a sala e certamente vinha<br />
do meu quarto. Corri para lá, a fim de ver o que era e qual não foi<br />
meu espanto, ao ver de pé, tal qual um menino de quatro ou cinco<br />
anos, meu boneco de madeira. Peguei-o no colo, cuidadosamente,<br />
acariciei-o por alguns instantes e o choro se foi. Quando estiquei<br />
meus braços para poder contemplar novamente o meu filho,<br />
pude ouvir sair dele, ainda que com o trocar de letras comum às<br />
crianças, um sonoro “babai” – era eu, o “papai” da criança mais<br />
especial do mundo.<br />
Quando retornei a sala, a senhora não estava mais lá. Havia<br />
deixado apenas um bilhete, lá explicava que há muito observava<br />
as trevas que se abatiam sobre mim. Explicava também, que havia<br />
se compadecido com minha dor e que por isso, pôs no boneco a<br />
88
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
alma do bebê, que minha esposa aguardava. Disse também, para<br />
eu tomar cuidado com um tal Grilo Falante, que vai tentar roubar<br />
meu filho de mim.<br />
Senhor Igor, sei que irá pensar que não suportando a dor da<br />
perda da minha esposa acabei por sucumbir à loucura. Mas o que<br />
digo é o que aconteceu. Oxalá, eu pudesse ir vê-lo pessoalmente<br />
para mostrar-lhe meu filho e provar tudo o que escrevi. Mas por<br />
hora, não posso, ele acabou pegando um resfriado e creio que<br />
viajar nesse tempo de inverno pode piorar ainda mais a frágil<br />
saúde dele.<br />
Portanto, envio de volta ao senhor o dinheiro que me adiantou<br />
e junto algum a mais, já que a matéria prima também foi fornecida<br />
pelo senhor. Espero ainda que encontre algum presente a tempo<br />
para poder dar no aniversário de sua filha, pois agora que sou<br />
pai também, sei que tudo o que mais queremos é a felicidade<br />
dessas criaturinhas que tanto amamos. Sem mais delongas,<br />
peço desculpas e me despeço desejando saúde ao senhor e a sua<br />
família.<br />
E. Gepeto.<br />
***<br />
Caro leitor, antes de continuar a narrar os fatos que se<br />
sucederam a essa troca de cartas, devo revelar-lhes a forma como<br />
elas chegaram às minhas mãos. Único parente vivo do senhor<br />
Ernesto Gepeto, fui procurado por um ajudante do senhor Ludovico<br />
Igor, o qual me entregou as cartas junto com um caixote. O enredo<br />
até elas chegarem a minhas mãos é o que relato abaixo.<br />
Após enviar uma terceira carta ao senhor Gepeto, a qual não<br />
tive acesso, e não obter nenhum tipo de resposta, o senhor Igor<br />
decidiu ir pessoalmente procurá-lo. Não que tivesse acreditado em<br />
qualquer detalhe místico da carta que ele havia recebido, mas,<br />
por temer a sanidade mental do velho marceneiro, pensou que<br />
uma visita amigável poderia esclarecer de alguma forma o que se<br />
passava.<br />
Foi assim, que, na manhã do dia de Reis, o mercador Igor partiu<br />
com um ajudante rumo à casa de meu primo. A viagem durou um<br />
dia inteiro a cavalo e, como chegaram de noite os dois viajantes<br />
resolveram dormir em uma pousada a poucos quilômetros do sítio<br />
89
de Gepeto.<br />
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
Mas tão logo amanheceu, os dois partiram rumo ao sítio do<br />
velho, para esclarecer o que lá se passava. Quando chegaram<br />
próximo a casa, perceberam o descuido em que o local se<br />
encontrara. O mato crescia ao redor, algumas partes do telhado<br />
haviam cedido e os poucos animais que meu primo possuía<br />
estavam abandonados.<br />
Aproximando-se mais um pouco, o senhor Igor bateu palmas<br />
para verificar se havia alguém em casa, mas ninguém respondeu.<br />
Bateram à porta, pois ainda era cedo e podia ser que alguém<br />
estivesse dormindo, mas nenhum som saiu lá de dentro. Montado<br />
em seus cavalos, os dois viajantes rodearam a casa, mas nada<br />
perceberam.<br />
Estavam já se preparando para voltarem, quando uma sombra<br />
foi avistada pelo acompanhante do mercador na janela. Mas ao<br />
fixar os olhos, o vulto havia desaparecido. “Talvez seja apenas um<br />
reflexo” – pensou consigo. Mas ao deitar os olhos novamente na<br />
janela pôde ver, mesmo que por alguns instantes, o semblante<br />
serelepe de uma criança. Alertou, então, ao senhor Igor que,<br />
mesmo descrente, resolveu verificar.<br />
O mercador aproximou-se da janela e fixou os olhos pelo vidro<br />
no qual não via mais do que o reflexo do sol. Mais perto, pôde<br />
observar o interior da casa sem nenhum sinal de vida, alguns<br />
reflexos causados pelos raios solares ainda o atrapalhavam de<br />
contemplar todos os cantos da casa, por isso colou o rosto junto ao<br />
vidro e fez uma proteção colocando as mãos junto às laterais dos<br />
olhos. Ainda assim, a casa parecia vazia. Já estava prestes a se<br />
afastar quando, esbugalhados olhos azuis surgiram quase do nada<br />
de frente ao seu rosto. O senhor Igor, apesar de toda a coragem<br />
comum aos homens de Milão, saltou para trás e deu um pequeno<br />
grito, tamanho susto levou.<br />
Já recuperado, percebeu tratar de uma criança, que novamente<br />
havia se escondido. Dirigiu-se até a porta e tentou comunicar-se<br />
com o menino:<br />
— Ei, garoto, posso falar com o senhor Gepeto? – o menino<br />
ainda tinha o rosto fixo na janela, mas nada respondia.<br />
90
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
— Se você não abrir ou não falar comigo, eu vou ter que<br />
arrombar a porta.<br />
Diante da ameaça o garoto cedeu. De sua janela gritou:<br />
— Meu pai não está.<br />
— Quem é seu pai? – perguntou receoso da resposta o senhor<br />
Igor.<br />
— Gepeto é meu pai. Ele disse para eu não falar com estranhos.<br />
— Mas eu sou um amigo dele. Vamos abra a porta! – insistiu o<br />
mercador.<br />
O diálogo teria se prolongado por alguns instantes não fosse<br />
o ajudante perceber que as respostas dadas pelo garoto eram<br />
sussurradas antes por uma voz masculina. Certamente, era o<br />
senhor Gepeto. Alertado do fato, foi a ele que o senhor Igor passou<br />
a se dirigir. Insistiu que ele abrisse a porta por cerca de cinco<br />
minutos, até que a impaciência chegou e ele decidiu arrombá-la.<br />
A velha porta, consumida por cupins pouca resistência ofereceu.<br />
Chegando na sala, os dois viajantes viram de pé encostados na<br />
parede o senhor Gepeto e a criança de pé com o rosto escondido<br />
entre as pernas do pai e com um choro leve, como que assustado.<br />
Com um instinto paterno o velho marceneiro arrancou um canivete<br />
do bolso, certamente alguma ferramenta usada no próprio trabalho<br />
e ameaçou os dois invasores:<br />
— Como ousam invadir minha casa e assustar a mim e meu<br />
filho. Fora daqui, os dois.<br />
De fato só agora o senhor Igor havia percebido que pudesse<br />
ter assustado a criança. Fez questão de desculpar–se, antes de<br />
prosseguir:<br />
— Senhor Gepeto, o senhor não tem filhos, de quem é essa<br />
criança?<br />
— O que ocorreu eu já lhe relatei na última carta que lhe enviei.<br />
Se não acreditou, nada posso fazer.<br />
A sala escura fez com que o mercador e seu ajudante<br />
demorassem a perceber o que ali estava ocorrendo. Apenas<br />
mais próximos e agora já um tanto mais calmos, entenderam o<br />
cenário grotesco que se apresentava diante dos dois. Na verdade,<br />
91
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
apenas um quadro de Brughel ou Velásquez poderiam ser tão<br />
horripilantes. De fato, muito do que meu primo narrara em sua<br />
carta era realidade e, agora, visível aos olhos do incrédulo Igor.<br />
Não era uma criança de carne e osso que estava entre as<br />
pernas do marceneiro. Era, tão simplesmente, na medida em que<br />
se pode chamar de simples, algo tão engenhoso, um legítimo e<br />
perfeito boneco de madeira. Mais de perto era possível ainda notar<br />
que, tal como a boneca Olympia do terrível conto de Hoffmann, a<br />
criança não chorava e nem tinha qualquer movimento feito por si<br />
mesma. Ela era toda controlada por habilidosos mecanismos de<br />
fios comandados pelo senhor Gepeto. Também a sua voz e seu<br />
choro não eram mais do que meros truques de ventriloquismo,<br />
muito bem elaborados pelo marceneiro.<br />
Contudo, a forma agressiva do senhor Gepeto, denunciava<br />
seu estado mental. Por algum, motivo ele acreditava que<br />
realmente aquele boneco era vivo e ignorava ser ele próprio a<br />
alma do autômato. O senhor Igor ainda tentou convencê-lo de<br />
sua debilidade mental, mas foi tudo em vão. O velho marceneiro<br />
continuou em seus devaneios, com o boneco entre as pernas e,<br />
imitando com perfeição a voz de uma criança, gritava:<br />
— O Grilo, babai, o grilo. Não deixe ele me levar.<br />
Percebendo que nada poderia fazer naquele instante, o senhor<br />
Igor e seu ajudante foram embora. Procuraram o sanatório<br />
municipal e voltaram para Milão. Lá dias depois ficaram sabendo<br />
da internação forçada de meu primo e me procuraram para relatar<br />
o ocorrido, já que eu era o único parente a quem podiam recorrer.<br />
Dois dias depois fui até o hospital, onde me deparei com<br />
meu primo segurando o boneco no colo e contando-lhe algumas<br />
histórias. Ele demorou alguns segundos para me reconhecer, mas<br />
tão logo o fez, correu e me abraçou fortemente. Apresentou-me<br />
o boneco como se fosse seu filho legítimo, o que, por advertência<br />
médica, não o contrariei. Conversamos por cerca de uma hora,<br />
até que quando me despedi ele pediu que eu cuidasse de seu<br />
filho, pois era seu único parente e ele não queria que a criança<br />
permanecesse ali. Antes de partir, ele me deu algumas orientações<br />
de como alimentá-lo e da importância de fazê-lo dormir cedo. Em<br />
seguida, com os olhos cheios de lágrimas beijou o boneco como se<br />
beijasse realmente seu filho e entregou-o a mim.<br />
92
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
Saí de lá comovido. Mas já sabendo de toda a história e<br />
ciente que ainda não tinha chegado o aniversário da filha de Igor,<br />
decidi entregar a ele o boneco. Ele aceitou. Ofereceu-me uma<br />
recompensa, a qual recusei e parti.<br />
Três semanas depois, um homem bateu em minha porta com<br />
um caixote na mão e as duas cartas que publiquei antes. Era o<br />
tal ajudante do senhor Igor. Ele me disse que lá dentro estava o<br />
boneco e que se eu quisesse poderia destruí-lo já que o mercador<br />
e toda a sua família estavam convencidos que o objeto estava<br />
endemoniado. Questionei a ele o motivo daquela crença e ele,<br />
mesmo a contragosto, me revelou o que se segue:<br />
A filha do mercador, de fato acabou recebendo o boneco de<br />
presente. Foi uma paixão a primeira vista. A garota se encantou<br />
com o brinquedo, não desgrudava dele hora nenhuma. Até que<br />
em uma noite, já deitados estavam o senhor Igor e sua esposa,<br />
ouviram do quarto da filha um choro intenso. Imaginando que ela<br />
tivesse se machucado, o casal correu até o local, onde ela estava.<br />
Lá, em um canto iluminado por uma vela, a garota conversava<br />
com o boneco como se ele fosse vivo. A mãe foi a primeira a<br />
perguntar:<br />
— Minha filha, por que você está chorando?<br />
— Não sou eu mamãe, é o Pinóquio.<br />
De fato o casal sabia que o choro da filha era diferente.<br />
— Quem? – perguntou a mãe.<br />
— Pinóquio, o boneco.<br />
— Pensei que ele se chamasse Fred, não foi esse o nome que<br />
você lhe deu? – indagou o mercador.<br />
— Foi sim – respondeu a garota – mas ele me disse que o pai<br />
dele, o senhor Gepeto, o chama de Pinóquio. E que o senhor é um<br />
grilo falante chato. Pode dizer a ele que está enganado?<br />
Ao ouvir as palavras da filha, um enorme pavor tomou conta da<br />
alma do senhor Igor. Como a filha poderia saber o nome do senhor<br />
Gepeto ou o apelido de grilo que ele lhe dera? Toda aquela história<br />
era sinistra demais, mesmo para um homem racional como ele.<br />
Por isso, no dia seguinte mandou ao ajudante que me entregasse<br />
93
o boneco e as cartas trocadas entre eles.<br />
O BONECO DE MADEIRA<br />
Rangel Luiz<br />
Também eu teria me chocado com a história, não fosse perceber<br />
alguns detalhes que passaram despercebidos pelo mercador<br />
milanês. As duas cartas que me chegaram, tinham pequenas<br />
manchas de polegares minúsculos, certamente os da filha de seu<br />
Igor, que lera as cartas e conhecia boa parte da história. Foi assim,<br />
que a menina ficou sabendo o nome do senhor Gepeto. Quanto<br />
aos diálogos tratados pela menina com o boneco, são muito<br />
comuns com qualquer criança, ainda mais alimentados por essas<br />
cartas, certamente lidas horas antes. Sobre a ciência da menina<br />
do apelido grilo ligado ao pai, somente o mercador não percebeu<br />
que a alcunha dada a ele pelo meu primo é apenas um anagrama<br />
infantil, e por isso mesmo percebido pela criança, com as iniciais<br />
que ele assina suas cartas L. IGOR, misturando as letras temos<br />
GRILO. Contudo, vocês me perguntarão sobre o choro de criança<br />
ouvido pelo mercador e sua esposa. Sobre isso, devo revelar–lhes<br />
que eu mesmo já acordei com soluços infantis vindos do canto<br />
do quarto no qual instalei o boneco e que não foram nem uma,<br />
nem duas vezes que vizinhos vieram me perguntar sobre a criança<br />
tristonha que avistaram vertendo lágrimas pela janela de noite na<br />
sala de cima. Se explicação há para isso, peço que ma dêem, pois<br />
mesmo eu estou crente de que mistérios há que a razão não pode<br />
abarcar.<br />
94
CINDERELA<br />
UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
95
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
Vinte e cinco anos, um emprego que eu detesto, uma<br />
família que sequer liga se estou vivo, e uma ex-namorada<br />
que sambou em cima do meu coração. Esse sou eu: um sujeito<br />
cuja frustração deixou de ser uma condição, e agora é um estado<br />
de espírito.<br />
Acordei suado naquela manhã de sexta-feira. Como de<br />
costume, minha cidade parecia a sauna particular do diabo. Trinta<br />
e cinco graus atingidos com enorme facilidade. Encarei o trânsito<br />
infernal com o rádio sintonizado em uma estação de música antiga.<br />
Amenizou minha impaciência e apreensão. Cheguei ao escritório<br />
em cima da hora e encontrei meu único amigo carregando uma<br />
pilha de documentos.<br />
— Bom dia! – Falou ele com sua animação costumeira.<br />
— Dia. – Respondi tentando não parecer tão amargo.<br />
— Você está bem? Tá com uma cara estranha.<br />
— Calor. – Menti, apertando o botão do elevador.<br />
— Calor é psicológico, cara.<br />
Sorri torto. Entramos no elevador com mais dois outros<br />
funcionários que sequer levantaram os olhos para nós. Permanecia<br />
aquele silêncio desconfortável quando meu amigo soltou uma<br />
consideração que me fez querer que o chão se abrisse e eu caísse<br />
direto no fosso abaixo de nossos pés.<br />
— Acho que você precisa de sexo!– Disse ele, enchendo o peito<br />
de certeza.<br />
Constrangido, não teci nenhum comentário. Os outros dois<br />
ocupantes do elevador se entreolharam e trocaram um risinho de<br />
chacota. Senti minha face formigar quando ele novamente abriu a<br />
Índice de contos<br />
96
oca.<br />
Índice de contos<br />
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
— Conheço um lugar nível A. – Falou com uma piscadela.<br />
Respirei aliviado quando chegamos ao nosso andar e saímos,<br />
deixando os outros dois ainda lá dentro. – Depois deixo o cartão<br />
na sua mesa, ok?<br />
— Idiota. – O fuzilei com o olhar, mas depois sorri em<br />
agradecimento. André, o pervertido de plantão, era um dos poucos<br />
seres na terra que se preocupavam com meu bem estar, Talvez por<br />
solidariedade, ou por gostar realmente de mim. O motivo eu não<br />
sei e, por covardia, nunca procurei saber.<br />
Meu dia correu sem grandes acontecimentos. Trabalho,<br />
trabalho, e uma pequena pausa para o almoço. Quando voltei à<br />
minha mesa, um cartãozinho em tom púrpuro jazia recostado sobre<br />
as teclas do meu computador. Rezei para que ninguém o tivesse<br />
visto. Peguei o cartão entre os dedos e ri involuntariamente. Era<br />
de uma boate de stripe. Nele constavam o endereço e o telefone.<br />
Atrás uma consideração feita pelo meu amigo com sua caligrafia<br />
desregular: Não diga que me conhece por lá. Sorri outra vez e<br />
coloquei o cartão no bolso da camisa. Voltei insatisfeito para meus<br />
documentos.<br />
Quando o sol se pôs e o relógio estacionou marcando às seis<br />
da tarde, o escritório já estava quase todo vazio. Saí, e por falta<br />
de necessidade não me despedi de ninguém. Fiz todo o caminho<br />
de volta ouvindo a mesma rádio. Entrei na garagem do prédio,<br />
subindo as escadas como um zumbi. Abri a porta do apartamento<br />
e joguei a pasta sobre o sofá. Meus passos exaustos pela minha<br />
rotina devoluta me guiaram até meu quarto onde retirei a camisa.<br />
Do bolso frontal um cartãozinho voou quase pairando no ar,<br />
pousando em seguida em minha cama. Segurei-o com a ponta dos<br />
dedos ostentando um sorriso idiota. Talvez eu fosse me arrepender<br />
daquilo, mas aquela noite poderia ser diferente para mim.<br />
* * * **<br />
Com um ar levemente constrangido, entrei no clube. Era<br />
97
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
um lugar escondido entre os prédios de um bairro escuro e mal<br />
habitado.<br />
— Nível A. – Bufei, rindo comigo mesmo.<br />
Uma mulher, com um belo cabelo armado, veio em minha<br />
direção ao me ver entrar e, com uma delicadeza quase incômoda,<br />
retirou meu casaco e o pendurou no cabideiro. Parecia já ter<br />
passado dos trinta, e suas roupas eram bastante comportadas<br />
para aquele recinto, mas chocariam facilmente uma trupe de<br />
evangélicos. Deduzi que era uma espécie de organizadora.<br />
— Parece perdido, lindo. É sua primeira vez? – Perguntou ela<br />
me tomando pelo braço. Seu toque era gelado. – Sim. – Respondi<br />
com a certeza de que era impossível mentir para ela. – Fique<br />
tranqüilo. – Ela me acalmou enquanto me conduzia pela boate.<br />
Corri meus olhos e vi faces perdidas em silhuetas dançantes,<br />
tão atraentes que até o próprio Deus se distrairia. Vi jovens com<br />
mais medo do que eu, e vi homens buscando alento num lugar<br />
errado. – Aqui. – Disse ela parando em um corredor de luz de<br />
néon, especificamente de frente à uma porta negra. — Você me<br />
parece um rapaz discreto. – Fez a varredura do meu semblante<br />
demonstrando experiência. – E é demasiado belo para estar<br />
procurando alento em um lugar como esse. Uma dança particular<br />
será suficiente para lhe acalmar a alma.<br />
— Obrigado. — Agradeci como se estivesse hipnotizado.<br />
Abri a porta com um rangido. O recinto se encontrava em terna<br />
penumbra. Apalpei a parede até encontrar um acendedor. A luz<br />
era fraca e de cor ambígua, mas pude reparar em seus detalhes<br />
e objetos. No meio da sala uma barra vertical se estendia sobre<br />
um tablado arredondado. Na sua frente uma confortável poltrona<br />
reclinável jazia plácida. Dirigi-me até ela e me sentei nervoso.<br />
Fiquei encarando a porta por um tempo, depois busquei o celular<br />
no fundo bolso. O relógio marcava onze horas. Enquanto isso,<br />
minha perna parecia querer furar o chão. Mesmo o lugar sendo<br />
climatizado, senti calor. Estava desabotoando a camisa quando as<br />
luzes do lugar se abaixaram e uma batida de música eletrônica<br />
rescindiu o silêncio. Segurei-me na cadeira e a vi entrar pela porta.<br />
Meu Deus, aquela mulher era a prova de que o senhor existe, e<br />
que tem um tremendo de um bom gosto.<br />
Índice de contos<br />
98
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
Ela caminhou em direção ao tablado à minha frente parecendo<br />
deslizar. Um aroma sereno e floral acompanhava sua sombra. A<br />
mulher subiu no tablado e pude melhor fitá-la. Realmente nível<br />
A, pensei, mas não disse nada. Nem conseguiria. Estava perdido<br />
em suas curvas. Tão bem delineadas por um corpete azul<br />
claríssimo e com um laço rente ao busto volumoso. Preso por fitas<br />
simetricamente cruzadas cobria totalmente seu tórax acabando<br />
em uma pequena saia fofocada quando as pernas começavam.<br />
Essas eram torneadas e exibiam uma cor perolada como toda a<br />
pele da mulher. Desci meus olhos até seus pés onde reparei que<br />
ela calçava sapatos de vidro. Ou melhor, de cristal. Intrigado,<br />
voltei meus olhos para cima no intuito de focalizar seu rosto. No<br />
pescoço, uma gargantilha preta o circulava. A boca semi-aberta<br />
parecia ter sido desenhada pelas mãos de um exímio escultor.<br />
Seu rosto afilado estava quase que completamente coberto pela<br />
cabeleira loira acastanhada. Onde somente uma tiara prateada<br />
estava fincada. Antes que eu pudesse ver seus olhos, o ritmo da<br />
música aumentou e a mulher segurou firmemente na haste vertical<br />
que estava ao seu lado.<br />
Ela começou. Segurou na barra com gana, entrelaçando a<br />
perna nela. À medida que o ritmo pedia a dançarina o circulava.<br />
Deu em média três voltas e eu já estava extasiado, parou<br />
novamente e jogou o rosto de lado. Os cabelos caíram novamente<br />
em camadas, me impedindo de ver seus olhos. A música voltou<br />
com sua batida firme e ela novamente se enroscou na barra de<br />
metal e a escalou até ficar com a cabeça rente ao teto. A esse<br />
ponto meu coração já bombeava fogo ao invés de sangue. Com<br />
um movimento sincronizado ela soltou as mãos e caiu. Com as<br />
pernas fortemente presas manteve-se agarrada a haste. Segurou<br />
as mãos no metal frio, soltou as pernas, dando uma cambalhota<br />
sobre o próprio eixo e caindo agachada sobre os saltos de cristal. A<br />
mulher deu uma volta e parou de frente a mim. Inexplicavelmente,<br />
não pude ver seus olhos mais uma vez. Ela se jogou para cima,<br />
mas antes que caísse em meu colo segurou na barra. Ficamos a<br />
centímetros um do outro. Senti seu hálito quente e o cheiro dos<br />
seus cabelos. Respirei somente por ser algo natural. Ela voltou e<br />
encostou as costas no ferro. Levantou uma das pernas até o meu<br />
rosto com um movimento calmo. Com a perna ainda alteada fez<br />
sinal para que eu descalçasse o sapato de cristal. O fiz com uma<br />
presteza que até a mim era estranha. Segurei-o enquanto o ritmo<br />
Índice de contos<br />
99
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
da musica voltava a pulsar e ela novamente se entrelaçava na<br />
haste de pole dance. A cada pirueta, a cada volta, a cada toque que<br />
eu imaginava, percebia que não era ela quem dançava no ritmo<br />
da música, mas sim a música que se esforçava para acompanhar<br />
seus movimentos. Meu cérebro parecia ter sido transportado para<br />
uma outra dimensão, pois suas únicas funções eram olhá-la e<br />
tentar encontrar seus olhos. Quando percebi que não conseguiria<br />
encontrá-los, fechei os meus para arfar, mas me arrependi. Pois<br />
quando voltei a abri-los ela havia desaparecido instantaneamente!<br />
Como se estivesse evaporado a mulher perfeita havia sumido! A<br />
batida da música ainda continuava, mas agora ela me incomodava.<br />
Mirei o relógio no celular e ele marcava precisamente a meia noite.<br />
Meu coração demorou a voltar para o ritmo clássico enquanto<br />
controlei a iluminação, desligando a música por uma mesa de<br />
controle ao lado da poltrona. Intrigado, pensei nas possibilidades<br />
daquilo ter acontecido. Havia fechado meus olhos por segundos,<br />
além de não ter ouvi sequer o barulho da porta se ranger. Pensei<br />
até em duvidar se aquela visão não teria sido coisa da minha<br />
cabeça, mas eu não podia, pois segurava em minhas mãos seu<br />
sapato translúcido.<br />
Sai do recinto carregando o sapato nas mãos, varias dúvidas<br />
na cabeça, e um peso no coração. Procurei a organizadora que<br />
havia me atendido e quando a abordei, ela exibiu seu sorriso<br />
automático.<br />
— Não foi do seu agrado? – Perguntou notando algo diferente<br />
do que estava acostumada a encontrar nos homens que saiam<br />
daquelas salas.<br />
— Até demais. – Disse cansado. – Só queria saber o nome<br />
dela. – E ver seus olhos, pensei.<br />
A mulher me olhou com um pouco de frustração: mais um<br />
apaixonado, deve ter pensado. Mas ela deve ter se solidarizado<br />
com minha figura, pois me chamou até um canto no balcão.<br />
— Que sapato é esse? – Perguntou-me, enquanto fazia um<br />
aceno para o garçom.<br />
— Ela estava usando um par desses.<br />
Encarou-me desconfiada.<br />
Índice de contos<br />
100
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
— Lindo, se uma dançarina consegue fazer uma apresentação<br />
usando um sapato como esse, eu também quero conhecê-la. —<br />
Falou a mulher parecendo me chacotear.<br />
— Eu juro.<br />
— Ok. — Acalmou-me recebendo as bebidas do garçom. —<br />
Diga-me como ela é para assim facilitar nossa busca.<br />
— Loira, pele clara, altura média, usava uma roupa azul. Era<br />
muito linda.<br />
— Dificulta um pouco, mas me acompanhe.<br />
Estávamos diante de todas as mulheres loiras da boate.<br />
Realmente todas muito belas, mas nenhum definitivamente era<br />
ela.<br />
— Meninas, alguma de vocês atendeu a esse rapaz hoje? —<br />
Perguntou a organizadora.<br />
— Quem me dera ter essa sorte. — Soltou uma delas com a<br />
voz promíscua.<br />
— Alguma de vocês conhece esse sapato? — Perguntou<br />
mostrando a peça de cristal.<br />
— Não, mas quero conhecer. — Falou uma se aproximando e o<br />
pegando.<br />
Senti uma ponta de ciúmes e o tomei de sua mão.<br />
Depois daquela noite minha vida tomou outro rumo. Um<br />
rumo que não me orgulho nem um pouco. Passei a frequentar<br />
exageradamente todos os lugares onde achava que poderia<br />
encontrá-la. Tornei-me conhecido na noite, e desperdicei meu<br />
tempo numa ilusão de que em qualquer boate, bar, ou qualquer<br />
esquina esbarraria com a dançarina e lhe calçaria o sapato que<br />
nunca mais saiu da cabeceira da minha cama. Criei também uma<br />
forte amizade com a melhor amiga dos frustrados, a bebida.<br />
Obsessão? Era o que tudo indicava. Até o próprio André se tornou<br />
mais sensato que eu e tentou diversas vezes me ajudar. O tempo<br />
foi passando, continuei no mesmo emprego ridículo, mesmo<br />
apartamento apertado, e mesmo coração vago. Hoje, tenho uma<br />
idade que não desejaria ter. Nunca encontrei vestígio algum dela,<br />
da minha Cinderela. E nunca encontrei também um rumo para<br />
Índice de contos<br />
101
minha vida medíocre.<br />
Ano de 2112<br />
Índice de contos<br />
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
******<br />
Um bordel é sempre um bordel em qualquer lugar do universo,<br />
ou do tempo. Um lugar onde frustração e prazer se apaixonam<br />
ferozmente. Aquele não era diferente. Nas mesas mal empalhadas<br />
no salão havia homens cujo espectro escancarava mediocridade<br />
e pobreza de espírito. Também alguns jovens que não haviam<br />
aprendido o sentido da vida, ou talvez nunca aprenderaim. No<br />
balcão, um cafetão que ganhava a vida em cima da desgraça alheia,<br />
e no palco elas, deslumbrantes e sincronizadas, dançavam com<br />
fervor. Das dez dançarinas que se exibiam no palco iluminado ela<br />
se destacava facilmente. Destacava-se não por ser a encarnação<br />
da beleza, mas por ser espirituosa. Os cabelos loiros se moviam<br />
a cada passo, seu corpo era quem coordenava a música. Todas as<br />
moças usavam vestidos rodados e que a cada três passos eram<br />
levantados com fervor. O dela conseguia ser o mais belo. Faria<br />
inveja em qualquer princesa do universo.<br />
A música parou e os lobos que as assistiam se levantaram<br />
para aplaudir. Alguns jogavam notas e mais notas de dinheiro, e<br />
outros davam o melhor de si nos aplausos e gritos. Eu continuei<br />
sentado, pois sabia que ela já havia me visto ali naquela mesa.<br />
Quando o show acabou, ela desceu pela frente do palco mesmo.<br />
Se equilibrando no enorme salto agulha transparente, a mulher<br />
cortou o salão em minha direção desviando-se dos fãs fervorosos.<br />
Ao chegar, puxou uma cadeira, sentando-se ao meu lado. Retirou<br />
a franja do olho, revelando as duas pedras de anis que tinha como<br />
retina. Tão brandas, tão firmes.<br />
— Realmente você é tudo que dizem. — a congratulei, virando<br />
meu scoth e lhe passando uma maleta por cima da mesa. Ela anuiu<br />
com um sorriso riscado e pegou a maleta sem conferir. Levantouse<br />
da mesa e me deixou lá sozinho feliz com meu projeto.<br />
Deixei o dinheiro da conta em cima da mesa e caminhei em<br />
direção ao estacionamento. Tinha sido a melhor idéia do mundo a<br />
102
CINDERELA UNDERGROUND<br />
Emerson Pimenta<br />
minha. Sou um dos magnatas das comunicações do novo mundo.<br />
E naquele dia dizimei o meu maior concorrente. Meu plano foi<br />
simples, arriscado, mas simples. Eu simplesmente pesquisei<br />
toda a vida do criador da Comunicc, empresa de serviços de<br />
comunicação, minha maior concorrente, e notei que seu pai tinha<br />
sido um homem muito frustrado em toda a sua vida. Não tinha um<br />
apoio da família e nem muitos amigos. Apenas trabalhava no setor<br />
de recursos humanos de uma empresa de telefonia e que um dia,<br />
por uma sorte do destino havia conhecido uma jovem dançarina de<br />
cabaré e se apaixonado por ela. O sujeito retirou a mulher dessa<br />
vida, e a partir daí passou a ter uma rotina estabilizada e segura,<br />
formando uma família invejável. E como tudo o que os filhos são,<br />
é pura obra dos seus pais, bastaria que eu acabasse com o genitor<br />
para que o filho nunca tivesse a idéia de criar a Comunicc, ou se<br />
quer viesse a existir.<br />
Para que isso acontecesse procurei uma especialista nisso.<br />
Foi indicada a mim por um amigo empresário da alta cúpula da<br />
sociedade, que já havia feito o mesmo procedimento e obtivera<br />
sucesso. O preço é um pouco salgado. Mas ela conseguiria arrancar<br />
aquela quantia de qualquer homem com apenas um sorriso.<br />
Ninguém sabia como ela fazia. O que se sabia era que havia<br />
herdado um apetrecho da madrinha e que com ele conseguia fazer<br />
coisas mirabolantes, entre elas, cortar o contínuo tempo e espaço.<br />
O resto era por conta da sua facilidade em controlar qualquer ser<br />
que quisesse, apenas com o balançar dos seus quadris feitos sob<br />
medida.<br />
Saí do estabelecimento e uma garoa gelada molhava todo o<br />
pátio onde os carrões aguardavam seus donos voltarem. O letreiro<br />
vermelho piscava sob minha cabeça. Caminhando até meu carro,<br />
vi sua silhueta se mover logo à frente. A dançarina cruzava o<br />
estacionamento arrastando o vestido azul pelo chão molhado com<br />
pressa. Abriu a porta do porsche alaranjado de tom abóbora e<br />
sumiu dentro dele. À medida que o seu motor rugia o badalar do<br />
sino de alguma catedral naquela cidade marcava a meia noite.<br />
Índice de contos<br />
103
CUIDADO COM<br />
A CUCA, QUE A<br />
CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
104
CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
CUIDADO COM A CUCA,<br />
QUE A CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
O s antigos nômades pré-históricos chegaram ao continente,<br />
que no futuro ganhou o nome de América. Formaram<br />
comunidades por toda a costa.<br />
Com o passar do tempo fundaram civilizações e uma das<br />
famílias se fixou numa terra distante ainda não povoada, hoje<br />
chamada de Acre, na região norte do Brasil. Lá tiveram onze filhos,<br />
que cresceram e se casaram. Outros onze filhos nasceram, e<br />
destes onze, mais onze vieram, até que ninguém mais sabia quem<br />
era filho de quem, pois nasciam filhos que eram primos netos de<br />
suas próprias mães.<br />
Das futuras gerações nasceram crianças diferentes, alguns<br />
coloridos, e depois com quatros braços e quatro pernas, crianças<br />
com asas e outras anãs. Nasceu um menino verde de cabelos<br />
vermelhos com pés para trás e um pretinho de uma perna só.<br />
Nasceram também meninas com rabo de peixe. Algumas mães<br />
morriam por parir filhos gigantes, outras morriam porque eram<br />
comidas por dentro por seus filhinhos canibais. Os pequenos<br />
diferentes foram rejeitados por seus pais, alguns deles, com<br />
formas aquáticas, foram jogados no Rio Azul e se espalharam pelo<br />
mundo, outros fugiram para o norte se embrenhando pela Floresta<br />
Amazônica.<br />
Entre essas crianças diferentes havia uma muito malvada,<br />
chamada Cuca, ela tinha cabeça de jacaré, grandes garras de gavião<br />
e dentes afiados, os cabelos desgrenhados e olhos desafiadores.<br />
Ela se alimentava de outras crianças e pequenos seres da floresta.<br />
Ainda vivas, suas vítimas tinham as vísceras arrancadas e eram<br />
105
CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
devoradas. Toda vez que a Cuca ia atacar, ela cantava:<br />
“Dorme neném que a Cuca vem pegar...”<br />
Cuca vivia junto com uma miríade de pequenos seres malignos<br />
em uma caverna escura da Floresta Sonâmbula. Esta floresta fica<br />
em um lugarejo chamado Terra Verde, que faz parte da Floresta<br />
Amazônica, na fronteira entre o Brasil e a Colômbia. Ela cresceu<br />
e se tornou a temida Bruxa Cuca, a mais perversa criatura da<br />
Floresta Sonâmbula. Qualquer um que atravessasse seu caminho<br />
seria estripado e jogado em seu caldeirão.<br />
Mas uma coisa muito pior estava prestes a acontecer, algo<br />
estava prestes a nascer...<br />
Anos depois, uma linda menina se apaixonou por seu avô, um<br />
homem peludo de orelhas grandes. Eles ainda viviam no Acre e<br />
fugiram para Terra Verde para viver seu amor, mas havia uma<br />
coisa que eles não sabiam... havia algo dentro da barriga dela.<br />
Ela carregava dentro de seu estômago um embrião que deveria<br />
ter nascido como seu irmão gêmeo, porém acabou não se<br />
desenvolvendo. Com 5 meses de gestação, a menina o engoliu.<br />
Ele que era uma sementinha, passou a crescer em seu estômago,<br />
sugando seu sangue como um parasita.<br />
Quanto mais a coisa crescia, mais a menina diminuía.<br />
Assustado com o estado físico enfraquecido da amada, e vendo<br />
que algo se mexia dentro dela, o homem peludo tentou voltar para<br />
sua Terra Natal com a menina, mas não teve tempo. No meio do<br />
caminho, um ser sem forma e vermelh,o com dentes afiados e<br />
olhos negros, emergiu comendo pedaços de sua barriga, matando<br />
sua mãe irmã. A criatura fazia sons estranhos, estava coberta por<br />
uma gosma preta e olhando fixamente para o homem.<br />
Um diabo nascia.<br />
O ser vermelho pulou no pescoço do homem peludo, arrancou<br />
sua cabeça e fugiu para a floresta. O pequeno diabo foi encontrado<br />
por Cuca, a Velha Brux. Ela o acolheu e o criou como um filho. Ele<br />
se tornou o Diabo da Bruxa Cuca.<br />
* * * * *<br />
106
CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
E a estória começa...em uma pequena cidade do Amazonas...<br />
Toda noite um preto velho vinha visitar um menino para lhe<br />
contar estórias sobre o folclore Brasileiro e lendas desta linda<br />
terra verde. O menino o chamava de Vovô Nêgo. Ontem, Vovô<br />
Nêgo veio com uma nova estorinha...<br />
* * * * *<br />
— Boa noite meu bom menino, pronto para uma nova estória<br />
antes de dormir?<br />
— Vovô Nêgo! O senhor veio!<br />
— Sim minha criança, estou sempre aqui com você.<br />
— Então Vovô, que estorinha o senhor vai me contar hoje?<br />
— Era uma vez um lugar chamado Terra Verde na fronteira do<br />
Brasil com a Colômbia. Lá duas tribos viviam em harmonia.<br />
— Ah Vovô, eu pensei que o senhor ia me contar uma estória<br />
assustadora, eu não quero conto de fadas.<br />
— Ei, você não sabia que os contos de fadas são estórias<br />
sombrias?<br />
— Não Vovô, os contos de fadas sempre tem finais felizes, com<br />
príncipes e princesas, minha mãe costumava me contar quando eu<br />
ia dormir.<br />
— E você não tinha pesadelos, meu rapaz?<br />
— Bem...algumas vezes sim...<br />
— Então preste atenção, os contos de fadas são assustadores<br />
em sua essência. Eles não são o que parecem, em sua forma<br />
fantasiosa e caricaturada, estas estórias camuflam a humanidade<br />
do mau e o lado escuro do bem. Agora vou lhe contar como tudo<br />
se passou...<br />
Em Terra Verde, havia duas tribos, Pirapurú e Unidú Nitê. Estas<br />
duas tribos eram separadas pela Floresta Sonâmbula, a ponte<br />
entre o sonho e a realidade. Toda noite a Floresta Sonâmbula se<br />
movia de um lugar para o outro. Lá viviam o Uirapurú, o Curupira,<br />
o Saci-Pererê e seus amigos caboclos, que são os protetores da<br />
107
CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
natureza. Eles estão sempre escondidos entre as folhagens, todos<br />
os de bom coração conseguem sentir sua energia e proteção. Lá<br />
também moram botos e a sereia Iara com suas amigas, nadando<br />
nas águas do Rio Azul, onde está a Vitória Régia. A Floresta densa<br />
também guarda seres horrendos e maldosos, como a Velha Bruxa<br />
Cuca e seu Diabo.<br />
Em Pirapurú, havia uma menina chamada Iarú. A menina viveu<br />
sua infância em um lar com muito amor. Ela cresceu e se tornou<br />
uma linda mulher. Um dia andando pela Floresta Sonâmbula, ela<br />
encontrou Malô Nitê, grande guerreiro da tribo Unidú Nitê. Eles se<br />
apaixonaram.<br />
A paixão de Iarú e Malô era proibida, pois eram de tribos<br />
diferentes e não poderiam ter descendentes com sangue misturado.<br />
Havia uma maldição da Floresta para aqueles que fossem contra as<br />
leis da sua natureza e aquela que carregasse no ventre a mistura<br />
de sangues seria a responsável pelo massacre e fim de seus povos.<br />
Iarú sem saber da gravidez condenou todos à morte sangrenta.<br />
Com a vinda da primavera, as duas tribos se uniam em rituais<br />
para afastar os maus espíritos da Floresta. Porém, no dia marcado<br />
para começar as celebrações, à meia noite, a Floresta Sonâmbula<br />
se movimentou estranhamente para o oeste, a lua e as estrela<br />
sumiram, as águas do Rio Azul ficaram tão vermelhas que parecia<br />
sangue, os habitantes da Floresta se esconderam pois lá vinha ela,<br />
acompanhada de seu Diabo.<br />
— Corram! A Bruxa Cuca está aqui, protejam suas<br />
crianças!<br />
Alguma coisa estava errada, mas o que era? Ninguém sabia<br />
o que estava acontecendo, até que a Velha Bruxa disse que Iarú<br />
estava esperando um bastardo de sangue ruim e que as duas<br />
tribos seriam dizimadas, pois não respeitaram a natureza. Ao ouvir<br />
isso, os homens de Unidú Nitê se voltaram contra Malô dizendo<br />
que ele havia traído sua gente, imploraram para que a Bruxa nada<br />
fizesse com aquelas famílias que não sabiam de nada. Mas não<br />
houve jeito, o pequeno Diabo da Bruxa atacou um dos homens<br />
estraçalhando seu corpo e devorou seu coração, o sangue se<br />
espalhou na terra condenada... Malô gritou e implorou para que<br />
a Bruxa Cuca não fizesse nada, pois ele pagaria pela maldição, e<br />
faria um pacto. Ele entregaria sua alma para o Diabo, e em troca<br />
108
CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
ela deixaria as tribos em paz. Mas ela só aceitou se levasse Iarú,<br />
pois ela queria a criança.<br />
Eles não tiveram outra alternativa, a jovem foi para a caverna<br />
com a Velha Bruxa e nunca mais viu seu povo e seu amado. O<br />
guerreiro fez seu pacto com o Diabo, pedindo paz e riqueza para<br />
as tribos, em troca deu sua alma.<br />
Ao nascer do dia Malô tinha que conseguir uma galinha preta,<br />
para ser fecundada pelo Diabo da Bruxa, pois ele deveria carregar<br />
em uma garrafa um diabinho que nascesse do ovo desta galinha.<br />
No fim de 40 dias, do ovo chocado, nasceu o diabinho. Malô o<br />
guardou em uma garrafa, que deixava em baixo da cama e todos<br />
os dias o alimentava com gotas de seu próprio sangue. O Diabinho<br />
da Garrafa enriqueceu o seu dono, e protegeu os habitantes da<br />
tribo Unidú Nitê e Pirapurú, dando a eles muita fartura e paz.<br />
Nove meses depois, quando Iarú já estava para parir seu filho,<br />
a Bruxa velha tratou de cuidar do parto. Abriu a barriga dela com<br />
suas próprias garras, e pegou o bebê. O corpo de Iarú teve seu<br />
sangue drenado, que serviria para alimentar a criança durante os<br />
primeiros dias de vida, e a carne foi deixada apodrecer, para que as<br />
larvas de insetos que nela apareceriam servissem de alimento para<br />
sua nova cria, que se tornou um pequeno comedor de carcaças<br />
podres. Mas por desobedecer sua mãe Cuca constantemente, ele<br />
foi abandonado e quando morreu foi rejeitado pela terra, passou a<br />
vagar pela Floresta e assustar as pessoas, foi apelidado de Corpo<br />
Seco. Malô nunca soube deles.<br />
Quarenta anos se passaram quando o Diabo da Bruxa apareceu<br />
para cobrar sua parte do pacto. O Diabo então libertou o Diabinho<br />
da Garrafa, imediatamente ele entrou no corpo de Malô que<br />
ficou inconsciente. Os dois levaram o corpo para a Floresta e lá<br />
esperaram o Diabinho da Garrafa nascer de novo, se alimentar do<br />
corpo de Malô e tomar conta de sua alma.<br />
— Vovô Nêgo, o que aconteceu com o Diabinho da Garrafa<br />
depois que ele saiu do corpo de Malô?<br />
— Ele foi morar com a Velha Bruxa Cuca, pois com ela, ele ia<br />
crescer e aprender as leis da Natureza. E o Diabo foi pra cidade<br />
se aproveitar da fraqueza dos humanos e fazer seus pactos. Foi<br />
mostrar que quando se mexe no equilíbrio natural da vida, coisas<br />
muito ruins acontecem. E ele levou todas essas coisas ruins com<br />
109
CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
ele, as consequências dos desmatamentos, da poluição dos rios<br />
e das matanças de animais...nos anos seguintes, mais diabinhos<br />
cresceram com a Velha Bruxa Cuca e foram para outras cidades...E<br />
foi assim que se passou. Está vendo como é importante respeitar<br />
a Natureza?<br />
— Sim Vovô, eu respeito a Natureza e não quero ter um<br />
Diabinho da Garrafa.<br />
— Isso mesmo, então eu já vou indo para a Floresta, amanhã<br />
talvez eu volte pra contar outra estória. Boa noite e seja um bom<br />
menino.<br />
— Boa noite Vovô Nêgo.<br />
A mãe do menino entra no quarto:<br />
— Meu filho, está conversando sozinho?<br />
— Não mamãe, o Vovô Nêgo estava me contando uma estória.<br />
— De novo com isso menino, não existe nenhum Vovô aqui. E<br />
que garrafa vazia é esta embaixo da sua cama?<br />
— É meu Diabinho da Garrafa, mas o Vovô Nêgo não pode<br />
saber mamãe.<br />
— Tá bem meu filho, o seu vovô invisível, não pode saber<br />
do seu diabinho invisível, vamos dormir então e pare com estas<br />
bobagens, boa noite.<br />
— Boa noite mamãe.<br />
Se uma lenda é contada diversas vezes, um dia, ela pode se<br />
tornar realidade...é por isso que temos uma Floresta Sonâmbula lá<br />
no fundo da nossa mente.<br />
110
BRANCA DE<br />
NEVE E OS 7<br />
NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
BRANCA DE NEVE E OS 7<br />
NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
— Doutora White! Sua mãe está aqui e quer vê-la!<br />
— Do que se trata?<br />
— Disse que as vendas do perfume “Bad Witch” caíram e<br />
precisa discutir uma nova campanha de marketing.<br />
— Só podia. Aquilo é tão forte que deveria ser considerado<br />
nocivo para nossa atmosfera artificial. E pela última vez, ela não é<br />
minha mãe!<br />
A doutora White era a herdeira e filha de Willard White, dono<br />
do maior império da beleza estabelecido na colônia lunar Alfa-2,<br />
que possuía o curioso nome “Conto de Fadas”. A mãe de Aurora<br />
White havia morrido de causas desconhecidas e seu pai não<br />
soubera escolher uma nova companheira confiável.<br />
Pouco depois, seu pai adoeceu e acabou por deixar o império<br />
nas mãos de sua filha. Como ainda não havia atingido a maioridade,<br />
a empresa acabou sendo transferida para o nome de sua madrasta,<br />
que se revelou uma péssima empresária. Transformou Aurora em<br />
empregada e a obrigou a criar a essência mais forte de todos<br />
os tempos. Estampou seu rosto nos frascos especiais e iniciou a<br />
distribuição planetária de Bad Witch.<br />
Os cientistas alertaram que a essência continha compostos<br />
voláteis que poderiam comprometer a atmosfera das cúpulas<br />
habitacionais, aviso que ela ignorou solenemente.<br />
Seu maior divertimento era sentar-se em frente à gigantesca<br />
tela do computador de inteligência artificial conhecido como<br />
112
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
“Espelho” e ficar analisando seu DNA. O Espelho era responsável<br />
por criar perfumes e cosméticos adaptados a cada tipo de pele,<br />
criando o composto perfeito.<br />
— Ah, espelho, espelho meu! Existe alguém com a pele mais<br />
perfeita do que eu?<br />
A voz robótica sempre respondia calmamente.<br />
— Não, minha administradora. Somente tu és a mais bela<br />
deste satélite natural. E deves tudo ao meu projeto de evolução da<br />
nanotecnologia utilizada por seu marido.<br />
(…)<br />
O tempo passou e Aurora tornou-se uma bela mulher. Nunca<br />
precisou recorrer aos geneticistas ou à manipulação de DNA. Isto<br />
acabou se tornando um fardo para outras pessoas… incluindo a já<br />
famosa senhora White.<br />
Certo dia, ao voltar de seu banho de sol costumeiro, no lado<br />
iluminado da Lua (no famoso resort “Paraíso Lunar”), sentou-se em<br />
frente ao Espelho e fez a pergunta já conhecida por seu ouvinte.<br />
— Espelho, espelho meu! Existe alguém mais bela do que eu?<br />
A voz mudou de entonação e emitiu uma frase impessoal.<br />
— Calculando…<br />
— Hum?<br />
— Lamento dizer, mas existe alguém que nunca fez uso da<br />
nanotecnologia desta empresa. E, segundo meus cálculos, possui<br />
a pele mais perfeita que já vi.<br />
— Impossível! Quem?<br />
— Aurora White.<br />
— Aquelazinha… Sempre em meu caminho… Prepare uma dose<br />
tripla de Bad Witch e encha um frasco. Irei levar um “presentinho”<br />
à minha querida filhinha.<br />
— Tripla? É suficiente para corroer a cúpula central. O órgão de<br />
padronização lunar nunca permitiria…<br />
— Faça!!<br />
113
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
(…)<br />
— Doutora White! Sua mãe está aqui para vê-la!<br />
Após responder bruscamente, seu assistente virtual recebeu<br />
um impulso elétrico vindo diretamente do Espelho e alertou<br />
a doutora de que corria risco de vida. A única saída era fugir. A<br />
empresa ficava no limite entre o lado claro e o lado escuro da Lua.<br />
Aurora não encontrou outra opção a não ser correr para o lado<br />
desconhecido do satélite terrestre, deixando tudo para trás.<br />
Apesar da tecnologia avançada e a colonização da Lua ter<br />
sido efetivada há anos, o lado escuro ainda mantinha sua aura de<br />
mistério e locais desconhecidos.<br />
A doutora White estava cansada de tanto correr. Com seu traje<br />
lunar feito sob medida (na época atual) literalmente era possível<br />
“correr”. Seu nível de adrenalina baixou e o medo começou a<br />
ocupar seu lugar.<br />
Avistou uma instalação pequena, que parecia abandonada há<br />
anos. Mas no momento era o lugar mais seguro para se estar. A<br />
porta de entrada era da altura de seu umbigo – fato estranho, pois<br />
somente humanos viviam ali. Sem cerimônias acessou o painel<br />
de controle e entrou. Tudo parecia muito pequeno e bagunçado<br />
ao mesmo tempo, como um abrigo anti-nuclear antigo. Retirou<br />
seu traje e pôs-se a organizar seu esconderijo temporário,<br />
adormecendo logo em seguida.<br />
Sons estranhos puderam ser ouvidos vindo diretamente do<br />
lado mais escuro. Algo como “blips” e “boings” e um arrastar<br />
soturno de pedras lunares. Suas sombras não revelavam nada em<br />
particular - apenas que eram seres pequenos. Seus sensores táteis<br />
recuaram ao ver que seu lar havia sido violado. Luzes vermelhas<br />
acenderam-se em suas caixas torácicas: havia um humano em seu<br />
distrito.<br />
Entraram lentamente pela porta com seus corpos desajeitados,<br />
protótipos antigos de máquinas pensantes da época de exploração.<br />
— Uma humana aqui?<br />
Ficaram um bom tempo analisando aquela criatura adormecida<br />
em seu lar. Parecia familiar. Aurora percebeu que estava sendo<br />
vigiada e levantou-se de súbito.<br />
114
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
— Quem são vocês?<br />
— Há muito tempo atrás seu pai nos enviou para estudarmos<br />
o lado escuro da Lua. Ele precisava saber se era verdade que este<br />
lado possuía a capacidade de enlouquecer a mente humana. Por<br />
isso fomos divididos em sete comportamentos característicos de<br />
sua quintessência: alegria, tristeza, medo, ira, timidez, orgulho e<br />
razão, refletindo a psique terrestre.<br />
— Vocês são tão pequenos!<br />
— Somos os primeiros da nova geração de robôs lunares, por<br />
isso nossa tecnologia é limitada. – encerrou Razão.<br />
— Mas você é tão bonita que pode ficar conosco o tempo que<br />
desejar! Fazia tempo que não tínhamos visitas! – emendou Feliz.<br />
De repente, um estrondo semelhante a um raio caindo deixou<br />
todos em estado de alerta.<br />
— Um raio caindo em um satélite sem atmosfera? – Dra. White.<br />
— É o caçador. Criatura medonha e extremamente assustadora<br />
que vive no lado escuro da Lua. Ele está atrás de você! Não nos<br />
deixe sozinhos, por favor! – Medroso.<br />
— Atrás de mim? Como sabem?<br />
— Escute mulher humana. O caçador é uma forma de vida<br />
artificial deformada; aberração jogada fora pelo homem. Ou seja,<br />
ele detesta humanos! – Irado.<br />
— Foi ela… Eu tenho certeza! Aquela mulher não vai parar<br />
enquanto não me ver morta. Irei convencer a criatura do contrário.<br />
— Está louca? – Razão.<br />
A criatura possuía três metros, um olho pulsante no meio<br />
de sua cabeça arredondada e um desajeitado balanço em seus<br />
três braços. Trazia consigo uma foice, capaz de cortar montanhas<br />
lunares em duas. Ao avistar a mulher, a máquina fez menção<br />
de levantar sua foice. Desistiu. Sua aparência era tão doce e<br />
encantadora que não teve coragem de lhe fazer mal.<br />
— Os caçadores costumam colecionar corações humanos –<br />
115
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
obviamente apenas dos que já deixaram de existir ou resolvem<br />
se aventurar pelos penhascos do lado escuro. Se alguém o enviou<br />
para exterminá-la, ele precisará de alguma prova. – Razão.<br />
Os nanorobôs mencionaram que devido aos seus estudos alguns<br />
animais acabaram vindo com eles. O caçador, desconfortável por<br />
estar em um abrigo tão pequeno, apontou logo para o cervo que<br />
havia ali, na cela de contenção. Partiu em seguida com o coração<br />
do animal em uma caixa isolada e fechada a vácuo rumo a um<br />
lugar desconhecido.<br />
A empresa Conto de Fadas virou um verdadeiro “inferno” sob<br />
o jugo de sua nova administradora. Todos trabalhavam em dobro<br />
enquanto ela ficava examinando seus poros e sua pele lisa. O<br />
Espelho havia escapado de virar sucata por muito pouco – neste<br />
instante o caçador já deveria estar chegando – uma idéia muito<br />
bem aceita por sua “rainha”.<br />
Algum tempo depois…<br />
(...)<br />
— Espelho! Examine isto. Tenho sérias dúvidas quanto à sua<br />
origem. É rosado demais.<br />
O Espelho examinou a caixa e, em poucos segundos, o resultado<br />
do exame de DNA apareceu na tela flutuante. O desenho de um<br />
cervo fez a “rainha” quebrar por inteiro o último carregamento de<br />
Bad Witch. Quase sufocou após isso… Sentou-se e pôs-se a pensar.<br />
— Então minha filhinha amoleceu o coração do caçador – se é<br />
que ele tem um. Criatura horrível. Muito nobre de sua parte. Hum…<br />
Caridade era algo que ele não recusaria em praticar. Espelho! É<br />
possível reverter o processo da câmara de rejuvenescimento de<br />
forma temporária?<br />
— Talvez.<br />
— “Branca” adorava maçãs hidropônicas quando era pequena.<br />
Ainda temos um estoque destas raras frutas?<br />
— Creio que sim, administradora.<br />
— Já disse para me chamar de “rainha”! Prepare tudo!<br />
116
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
(…)<br />
Uma velha senhora, “por acaso”, bateu na porta do abrigo<br />
anti-nuclear dos nanorobôs. A Dra. White atendeu. Aquele forte<br />
cheiro de maçãs frescas invadiu e tomou conta de seus sentidos.<br />
O aroma lembrava os piqueniques de infância com seus pais e<br />
um amigo muito querido que permanecia desaparecido desde que<br />
resolvera sair na expedição da nave colonizadora Andrômeda.<br />
— O que uma senhora de sua idade faz no lado escuro da Lua e<br />
sozinha?<br />
— Ah, minha jovem, talvez ninguém tenha lhe contado, mas existe<br />
toda uma indústria alimentícia que produz frutas artificiais na linhalimite.<br />
Mas apenas uma de suas filiais trabalha com frutas originais<br />
vindas da Terra antiga, antes dela ser devastada pela onda nuclear<br />
de…<br />
— Como eu nunca soube disso? Meu pai, ele…<br />
— Moça. Se todos soubessem disso, não acha que trariam grandes<br />
problemas para seus administradores? São extremamente raras e por<br />
isso estou aqui hoje lhe oferecendo uma oportunidade única de nos<br />
ajudar. Estamos sem recursos…<br />
Ela não pôde resistir àquele aroma contagiante. Após pagar<br />
à senhora, deu uma mordida certeira na maçã. O mundo girou. As<br />
estrelas saíram do lugar e puseram-se a dançar. O Sol triplicou de<br />
tamanho e em um instante tudo se apagou.<br />
Os nanorobôs presenciaram a cena horrorizados, enquanto viram<br />
a velha senhora tomar uma poção e voltar ao normal.<br />
— É você! – Irado.<br />
— Ah… Olha só quem vejo por aqui. Os inúteis que Willard criou<br />
e fui obrigada a me livrar. Vocês viviam interrompendo minhas<br />
experiências dizendo que elas eram nocivas à humanidade.<br />
— O que você fez com ela? – Tristonho.<br />
— A maçã estava envenenada. Finalmente todo o império White<br />
será meu!<br />
— Sua… Desta vez não estamos sozinhos! O caçador irá colecionar<br />
o seu coração! – Orgulhoso.<br />
A criatura saiu de trás do abrigo com um olhar furioso em direção<br />
à “rainha”. Seus pés começaram a dar pequenos passos para trás.<br />
— Você não está com raiva só porque mandei jogá-lo no lado<br />
117
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
mais distante da Lua, não é? Pense! Você também me enganou. Ora,<br />
seu maldito protótipo de robô humanóide, era uma cópia perfeita do<br />
namoradinho de “Branca”. Eu não podia deixar isto acontecer. Se ela<br />
se aproximasse demais dele iriam gerar um herdeiro e a empresa<br />
nunca seria minha! Por isso me desfiz de tudo que lembrasse ele,<br />
incluindo um convite para uma viagem expedicionária... Sem retorno.<br />
Sim, sua lata velha. Você era perfeito, até que o desliguei e o atirei<br />
de cima das naves de entulho no lado escuro da Lua. Foi uma linda<br />
queda de alguns quilômetros…<br />
Aquelas foram suas últimas palavras. A criatura correu em seu<br />
encalço, enquanto ela tropeçava e corria rapidamente para longe do<br />
caçador. Ele não iria parar e ela bem sabia disso. Correu o máximo<br />
que pôde até chegar à beira de um precipício lunar. Parou.<br />
A foice cortou o ar lentamente, mas não a atingiu. A força utilizada<br />
pela criatura rachou o solo ao meio, desequilibrando a “rainha”. Seu<br />
corpo foi atirado para longe. Mas sem a gravidade necessária, a queda<br />
foi suave. A última coisa que ouviu foi:<br />
— Eu destruirei todos vocês!<br />
A criatura guardou a foice e foi embora, no mesmo instante em<br />
que ela percebeu que sua roupa espacial continha um enorme rasgo<br />
em suas costas, deixando o oxigênio escapar…<br />
(…)<br />
Os nanorobôs e a criatura colocaram “Branca” em uma cápsula<br />
criogênica e passaram a cuidar de seu corpo inerte. O congelamento<br />
iria mantê-la jovem para sempre. Pequenos flocos a envolveram,<br />
mantendo seus músculos ativos e coração batendo. Os nanorobôs a<br />
colocaram em local seguro e registraram no cérebro eletrônico central<br />
o nome “Branca de Neve”.<br />
Algum tempo passou e a empresa faliu. O Império da Beleza<br />
cedeu lugar ao Império Galáctico. Nesta atual corrente do tempo<br />
algo impensável aconteceu. Conseguiram com sucesso resgatar<br />
os tripulantes da nave Andrômeda que permanecia presa em uma<br />
singularidade quântica.<br />
Um jovem simpático e galante voltou à sua antiga casa e com<br />
tristeza presenciou o abandono e destruição da maior empresa jamais<br />
vista em sua infância. Depois de muito andar ouviu certos rumores e<br />
uma história extraordinária de uma administradora narcisista. Acabou<br />
por conhecer a história de “Branca de Neve”.<br />
Procurou desvendar todos os mistérios daquela lenda lunar e<br />
encontrou o abrigo anti-nuclear dos nanorobôs.<br />
118
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
—Identifique-se! – gritou a criatura.<br />
Ao olhar mais de perto percebeu que se tratava de seu “modelo”<br />
original. Os nanorobôs vieram correndo ao seu encontro. Após<br />
detalharem minuciosamente tudo o que havia acontecido, levaram-no<br />
à câmara criogênica onde “Branca de Neve” adormecia.<br />
Lágrimas caíram sobre os eletrodos da câmara e o computador<br />
emitiu um aviso de aumento de temperatura em seu interior. O<br />
jovem, com certo receio, afastou-se do aparelho. Mas definitivamente<br />
não havia sido ele. Os batimentos cardíacos aumentaram e eles se<br />
apressaram em iniciar a descompressão.<br />
Ela saiu tossindo muito. O jovem a ajudou, levando apenas<br />
alguns segundos até que ela lançasse para fora um pedaço de maçã<br />
que permanecia presa em sua garganta. Desorientada, sorriu ao ver<br />
seu amigo de infância vivo e bem de saúde. “Muito bem.” - pensou,<br />
olhando-o de cima a baixo.<br />
(…)<br />
A Dra. White utilizou o restante de sua herança e abriu sua própria<br />
rede de frutas hidropônicas verdadeiras, tornando-se uma mercadora<br />
de sucesso, fornecendo suprimentos necessários às expedições. Os<br />
nanorobôs foram nomeados administradores da fábrica e a criatura se<br />
tornou o chefe e monitor de segurança dos carregamentos.<br />
O “pôr-do-sol” no lado escuro da Lua era muito bonito e agora<br />
podiam apreciá-lo sem nenhuma preocupação extra. Os robôs podiam<br />
tomar conta de tudo enquanto viviam felizes.<br />
E juntos viveram feliz para sempre…<br />
119
BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
120
A MENINA COM<br />
O CESTO DE<br />
FÓSFORO<br />
F. P. Andrade
A MENINA COM O CESTO<br />
DE FÓSFORO<br />
F. P. Andrade<br />
A MENINA COM O CESTO<br />
DE FÓSFORO<br />
F. P. Andrade<br />
O fim do ano representava a felicidade, todos diziam. A neve<br />
branca, renovação. Noite de ano novo. Fogos de artifícios<br />
no céu. Gretel cambaleava. Tremia. O frio lhe queimava a carne,<br />
a alma. Não pai... Por favor, não... “Não conte a sua mãe. Ouviu!<br />
Ou eu...” Lembrava-se dos toques. Da dor. Da depressão. Do frio.<br />
Carregava consigo um cesto de fósforos. “Vá e venda, filha. Por<br />
mim.” Sim mãe. Eu te amo... Juro. “Eu também” dizia seu pai.<br />
Gretel. Lágrimas congelavam seu rosto. Não queria voltar. Não com<br />
ele ali. Fome, sim, a fome dos desvalidos, maltratados. Caminhou<br />
descalça, sandálias de carne azul frio. Havia perdido meio par da<br />
sandália na neve e o outro havia sido roubado, por um menino que<br />
queria ser um bom pai quando crescesse. Pessoas passavam de<br />
carruagens. Ricas. Aquecidas. Quase a atropelavam. ”Sai da frente<br />
desgraçada!” Me perdoe, senhor. Não foi minha intenção. Quer<br />
comprar um fósforo? Só um! Cuspiram em seu rosto. Escárnio.<br />
“Papai te ama, volte...” correu dali. Não queria mais. A neve caía e<br />
acumulava na cidade e nas pessoas. Casas com chaminés. Famílias<br />
felizes. A neve mordia Gretel e lhe tirava pedaços frios. Arrastouse<br />
para um beco entre dois prédios. Queria aquecer-se. Não queria<br />
voltar para casa. Lá fazia frio. Outro tipo de frio. Não vendera um só<br />
fósforo e sabia que não podia voltar. Não queria apanhar de novo.<br />
Não queria senti-lo outra vez, pegajoso. “Se você deixar, eu te<br />
aqueço... só não conte nada...” Morra... Gretel gritou para a noite.<br />
Morra! Ela não sentia mais os pés, os braços penderam frios. Um<br />
fósforo. Se acendesse um fósforo, talvez pudesse se aquecer um<br />
pouco... Longe dele... Morra! Riscou um na parede. A luz a aqueceu<br />
por um instante breve. Só por um instante Gretel viu um forno à<br />
122
A MENINA COM O CESTO<br />
DE FÓSFORO<br />
F. P. Andrade<br />
lenha aceso em sua casa. A família ao redor. O fogo consumiu-se,<br />
ficou-lhe só o frio e a haste cinza. Acendeu mais um. O forno, a<br />
família. Mãe, cadê papai? “Saiu a sua procura filha, já faz um dia.”<br />
Mais um fósforo. A parede do beco transformou-se a sua frente<br />
em tecido translúcido. Gretel viu uma mesa farta. Quente. Lá, um<br />
ganso recheado e assado a fitava. Levantou-se sem cabeça, sem<br />
pés e arrastou-se até ela. “Está com fome menina? Quer? Você<br />
pode me comer! Vê? Tenho um garfo cravado nas costas, usa-o!”<br />
Sim, por favor... Só uma mordida... obrigada... O fogo sumiu no<br />
frio. Só ficou a tristeza e a semi-hipotermia. Alguém me ajuda...<br />
Por favor... Sal congelado na face. Ninguém viu. Mais fósforos, sua<br />
mãe a pegou pela mão e a levou dali. “Meu amor, vamos procurar<br />
seu pai, vem.” Não, mãe, não quero. Só amo a senhora, só a<br />
senhora. “Bobagem, filha.” Elas voaram pela cidade. De cima viram<br />
as casas, as pessoas, a neve. Tão lido, mãe! “Filha, lá esta ele! Vê?<br />
Esta morrendo de frio! Coitado.” Ah, mãe, eu quero ver essa cena!<br />
Gretel olhou o pai caído. Bêbado. Um grupo o surrava, jogava-o<br />
na neve e o chutava. Ela acendeu fósforo após fósforo. Sabia que<br />
se não o fizesse a cena evaporaria. Os homens o untavam com<br />
álcool, riam com ela. Um deles procurou um fósforo e não achou.<br />
Mãe, fecha os olhos! Gretel ainda tinha um, só um. Toma, é teu!<br />
“Obrigado, menininha!” Última visão: a alegria de uma fogueira!<br />
Ah, Feliz ano novo! Gretel sussurrou antes de sua alma apagar,<br />
como um fósforo.<br />
No dia de ano novo encontraram o corpinho sentado de uma<br />
criança congelado em um beco. “Pobre menina!” todos diziam. “Ela<br />
só queria se aquecer.” Mas uma coisa espantava a todos. Ninguém<br />
conseguia explicar. Mesmo com uma lágrima fria, ela sorria.<br />
123
Autores<br />
Participantes
joelalexribeiro@hotmail.com<br />
twitter - @andressilva<br />
Alex01<br />
Alexandre Ribeiro<br />
É Noite, Lá Fora Eles Te Esperam<br />
Alexandre Ribeiro, Técnico Administrativo, nascido<br />
em Guarulhos São Paulo, 38 anos. Escritor entusiasta<br />
de contos, crônicas, romances e poesias. Atualmente<br />
está aventurando-se pelo do gênero Terror, apesar<br />
de seus textos serem comumente percebidos como<br />
insólitos. Sua paixão pela escrita começou cedo, aos<br />
nove, com o gênero poesia, no entanto, aos trinta<br />
anos achou sua voz na Literatura. Participa de sites<br />
como o Recanto das Letras, Estronho e Esquesito<br />
e Airmandade. Já publicou vários contos, poesias,<br />
inclusive na web.<br />
Mantém dois blogues relevantes:<br />
http://contosobscurosdealexandreribeiro.blogspot.com<br />
http://escritoralexandreribeiro.blogspot.com<br />
Andr02<br />
André Soares da Silva<br />
Robô-Guerreiro<br />
Carioca, funcionário público, 28 anos, escreve<br />
desde os 15. Começou no mundo da literatura<br />
escrevendo fanfictions inspiradas no seriado Arquivo<br />
X, ainda no final dos anos 90. De lá pra cá se dedicou<br />
também a roteirização de projetos para cinema,<br />
trabalhando inclusive ao lado do produtor paulista<br />
Ottmar Paraschin. Em 2010 concluiu seu primeiro<br />
romance, “Simuum – O Conto do Sol”, no momento<br />
em fase de análise junto à editoras. Atualmente, André<br />
Soares Silva encontra-se trabalhando em seu próximo<br />
projeto, um thriller sobrenatural que pretende ser o<br />
início de uma trilogia
lancasterbrian@hotmail.com<br />
elsenpontual@gmail.com<br />
Brian03<br />
Brian Oliveira Lancaster<br />
Branca de Neve e os 7 nanorobôs<br />
Brian Oliveira Lancaster (pseudônimo) é natural<br />
de Caxias do Sul (RS), casado e possui 29 anos.<br />
Atualmente vive na cidade de Criciúma (SC), onde<br />
executa funções de analista administrativo em uma<br />
empresa de software de administração pública. Há oito<br />
anos escreve de forma amadora e publica seus contos<br />
em sites de literatura. Suas principais influências vêem<br />
de autores consagrados do gênero ficção científica,<br />
como Isaac Asimov e Arthur Clarke. É entusiasta do<br />
gênero e procurar divulgá-lo.<br />
Elsen04<br />
Elsen Pontual<br />
Anno Domini<br />
Deus Ex Machina<br />
Pernambucano de Olinda, 29 anos, servidor público<br />
da Justiça do Trabalho e contador de estórias por<br />
vocação. Recentemente aceitou a existência do mundo<br />
digital e agora tenta levar seus contos para esse novo<br />
e estranho universo.
emersondantasp@hotmail.<br />
com<br />
akumaandrade@hotmail.<br />
com<br />
Emer05<br />
Emerson Pimenta<br />
Cinderela Underground<br />
Nascido no interior de Minas Gerais num típico<br />
novembro chuvoso de 1990, 21 anos, estudante de<br />
Direito. Apaixonado por livros desde sempre, conheceu<br />
sua maior força ao ler Dom Casmurro na 6º série e<br />
ficar com a maior pulga detrás da orelha em relação<br />
ao adultério de Capitu. Percebeu assim o poder que<br />
as palavras têm, se forem usadas por um escritor<br />
talentoso. Aos 18 anos concluiu seu primeiro romance<br />
infanto-juveni: ‘Herói’, o primeiro de uma trilogia que<br />
consegue abraçar todos os subgêneros da literatura<br />
fantástica. No presente, se encontra lendo três livros<br />
ao mesmo tempo e escrevendo contos fantásticos à<br />
medida que se entope de Coca-cola e chocolate.<br />
Fp6<br />
F. P. Andrade<br />
A menina com o cesto de fósforo<br />
Paraibano, auxiliar técnico em óptica, 32 anos, F.<br />
P. Andrade, vulgo Akuma, desde os 12 anos devora<br />
estrelas e rumina sonhos. Autodidata, escreve desde<br />
os vinte e acredita piamente que a literatura é sua<br />
alma e os seus contos sua carne. É aficcionado em<br />
filosofia e avaliações psicológicas humanas, tendo<br />
escrito inúmeros contos literofilosóficos. Atualmente<br />
trabalha em seu primiro romance, “Stregas”. Casado,<br />
mora em João Pessoa com sua esposa Andreia e uma<br />
cadela poodle louca chamada Ryoko.
gabicmarra@uol.com.br<br />
gustavo031987@gmail.com<br />
Gabi07<br />
Gabriela Chaves Marra<br />
Cuidado com a Cuca, que a Cuca te pega<br />
Gabriela Chaves Marra, carioca, 37 anos, médica<br />
veterinária, cursa mestrado na Escola Nacional de<br />
Saúde Pública – FIOCRUZ, aprecia literatura de terror<br />
e escreve contos sombrios.<br />
Gus08<br />
Gustavo Aquino dos Reis<br />
Presas Cinzentas<br />
Paulista, formado em história, 23 anos, escreve<br />
desde os 19. Iniciou sua gana literária escrevendo<br />
pequenas poesias e contos baseados nas histórias<br />
de J.R.R. Tolkien. Depois, influenciado por Robert E.<br />
Howard, Lovecraft, Dunsany, Nei Leandro de Castro e<br />
Marco Carvalho, começou a se aventurar com histórias<br />
sobre terrores sobrenaturais, espada e feitiçaria, a<br />
cultura sertaneja do Brasil e os ritos africanos contidos<br />
na Bahia. Atualmente, Gustavo Aquino dos Reis<br />
encontra-se em uma difícil tarefa para conciliar seu<br />
trabalho com o prazer de escrever
lucas_maziero@live.com<br />
santos.luceliarodrigues@<br />
gmail.com<br />
Luc09<br />
Lucas Fernando Maziero<br />
Anjo versus Demônio<br />
Escritor amador, nasceu em Mococa, interior de São<br />
Paulo, em 1981. É formado em eletrotécnica, mas sua<br />
verdadeira paixão está nos livros e filmes, mais nos<br />
livros, e tanto, que sente necessidade de extravasar<br />
em contos que a imaginação teima em imaginar. Lucas<br />
Fernando aprecia a literatura como um todo, mas tem<br />
predileção pelo gênero fantástico. Participa de sites<br />
onde tem alguns contos publicados, e espera um dia<br />
publicar um livro, como todo bom escritor..<br />
Lu10<br />
Lucélia Rodrigues<br />
Inspiração<br />
Acreana, leonina, engenheira florestal recémformada.<br />
Lê quase todos os gêneros, ultimamente<br />
tem uma queda pelos autores de língua latina, Zafón,<br />
Llosa, Garcia Márquez, Allende e o ácido Pedro Juan<br />
Gutierréz. Também amante de literatura fantástica<br />
principalmente de Rice, Poe, Laurell Hamilton, Meg<br />
Cabot e Rachel Caine. Atualmente está concluindo o<br />
segundo volume da trilogia O Último Selo, o primeiro<br />
volume A Profecia Lâmia se encontra em análise junto<br />
às editoras. Também trabalhando no primeiro volume<br />
das Crônicas de Lilian Cyrus e na história paralela à<br />
trilogia do Selo, Meia Noite na Montanha.
angel_luiz@hotmail.com<br />
swylmar@yahoo.com.br<br />
Rang11<br />
Rangel Luiz<br />
O Boneco de Madeira<br />
Nascido em Uberlândia, Minas Gerais, estudante de<br />
letras, apaixonado por contos, em especial Edgar Allan<br />
Poe, E.T.A Hoffmann e, no Brasil, Mário de Andrade e<br />
Machado de Assis. Teve um primeiro livro publicado em<br />
2008 e atualmente trabalha em um segundo romance<br />
“O Último Nefilin”.<br />
Swil12<br />
Swilmar Ferreira<br />
O Soldado<br />
Carioca por opção, engenheiro, comecei a escrever<br />
tarde, depois dos trinta, quando descobri que escrever<br />
além de relaxar me fascinava. Comecei escrevendo<br />
contos e brindando amigos e parentes. Ultimamente<br />
tenho participado dos desafios da <strong>Irmandade</strong>. Escrevo<br />
apenas por prazer, por gostar de brincar com as<br />
palavras e principalmente com minha imaginação que<br />
é muito fértil
thasyel.fall@gmail.com<br />
ovaltermarques@gmail.<br />
com<br />
Tha13<br />
Thasyel Fall<br />
Nos Lençois do tempo<br />
EThasyel Fall, 22 anos, estudante de cinema,<br />
desde pequena aficcionada por tornar mundos irreais<br />
reais nas paginas de seus cadernos, ou em qualquer<br />
lugar com espaço suficiente para escrever (e isso<br />
incluía mesas). Apaixonada pelo mundo sobrenatural,<br />
usa sua fluência em sarcasmo (na verdade é nativa) e<br />
sua influência Kingiana para escrever histórias muito<br />
loucas, e tudo mais que lhe vem na cabeça. Mantém<br />
um blog (cheio de teias de aranha e não por estética)<br />
onde se pode encontrar vários textos seus. Em fim é<br />
uma pessoa que passa mais tempo escrevendo do que<br />
respirando. OBS: autores não tem vida social.<br />
Blog:http://vampirasdequatro.blogspot.com/<br />
Val15<br />
Valter Marques<br />
No fundo do poço tem osso, tem osso<br />
Português, Valter Marques é um Eng. Informático<br />
que é Escritor nas horas vagas, mas cujo sonho é ser<br />
Escritor a tempo inteiro e Informático nos tempos<br />
livres. O autor considera-se, principalmente, um<br />
criativo, sendo a escrita a ferramenta utilizada para<br />
capturar e emoldurar esse espírito inventivo. Enquanto<br />
este último nasceu com ele, a escrita é uma paixão<br />
mais recente, porém infindável.<br />
A ficção científica ocupou, desde a infância,<br />
um lugar privilegiado nas preferências de leitura.<br />
A poderosa imaginação dos autores do “género”<br />
permitiram-lhe viajar por planetas distantes, conhecer<br />
raças alienígenas, sociedades e realidades diferentes.<br />
Atingir a fronteira do espírito e criatividade Humana.<br />
Valter Marques tem contos publicados no Páginas<br />
Lentas (ISBN:978-989-96455-0-9) e Páginas Lentas 2<br />
(ISBN:978-989-20-1352-7), Páginas Lentas 3 e várias<br />
participações em sites especializados.
A IRMANDADE