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e-book: diga adeus, messina - Corrosiva

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©Foto Capa<br />

Jesse Therrien


Para Larissa, que recriou o escritor morto em mim


DIGA ADEUS, MESSINA<br />

Se eu soubesse a porcaria em que iria me meter, teria dado um fim nessa história antes que ela co-<br />

meçasse a ser escrita.<br />

Ali, bem ali, um semblante de mau. Um pouco à direita, um olhar curioso. Mais ao fundo, um pou-<br />

co mais ao fundo, uma expressão abobada. Restos juvenis. Tão-somente, restos juvenis. Vidas per-<br />

didas. Breves brisas. Ali se posicionam e permanecem, estáticos – estátuas disformes. Sentados,<br />

cada qual em sua carteira, lendo e escrevendo. Não há sedução nas entrelinhas. Apenas mistério e<br />

pó. Eles continuam ali com seus rostos de vazio inexpugnável. São eles. Sempre eles. Estão sufoca-<br />

dos... como eu. E na ânsia sôfrega de respirar, eles roubam a minha fração. Fico como eles, sufoca-<br />

do como eles, vazio como eles. Talvez, um pouco pior. Por isso, não faço movimentos. Apenas ob-<br />

servo-os. Vidas perdidas e sufocadas. Mas, tento me concentrar: com um pouco de esforço, vencerei<br />

os últimos cinco minutos das minhas aulas. Odeio os cinco minutos finais das minhas aulas. Para<br />

ser sincero, odeio os cinco minutos finais de qualquer coisa.<br />

Levanto-me. Dou uma risadinha com o canto esquerdo da boca (costumo ser detalhista nos<br />

momentos mais inadequados). E, sem mais nem menos, arremato:<br />

- Se acham que se provarão fortes guardando segredos, receio informar-vos: sois ilustres sú-<br />

ditos da Estupidez.<br />

Deixo a sala e vinte confusos alunos para trás.<br />

Olho para o meu relógio.<br />

Ainda faltavam três minutos para o fim da aula.<br />

Eu subo a Lauro Werneck, curvado sob o peso da derrota em meus ombros, sentindo os golpes furi-<br />

osos do sol causticante em minha nuca. Sinto. Sinto algo. Sol causticante ou brisa suave – pouco<br />

importa. Sinto, e basta. Também sinto a companhia dela. Muito prazer, senhora Derrota! Será que<br />

me permitiria fazer-lhe companhia? Ela sempre sorri gentilmente quando a confronto com essa<br />

questão. Então, começo a rir com escarninho – não sei rir de outro jeito, principalmente quando<br />

contemplo minha história. Não sou mesmo a melhor companhia da nobre senhora supracitada? Aos<br />

dez anos, queria ser cantor de rock. Aos quinze, escritor. E agora, aos vinte e oito, leciono... e con-<br />

verso sozinho pelos corredores. Grande Messina! O louco Messina! Sou tão inatingível quanto a to-<br />

talidade dos meus sonhos.<br />

Nesse momento, alguém emparelha comigo, enquanto caminho. Não olho de lado para ver<br />

quem é. Ainda não. Cansaço, preguiça. Uma combinação das duas coisas.<br />

- Frase maluca a sua, hein, professor? Quê quis dizer com aquilo?


que sim.<br />

da boca.<br />

A voz é feminina. Uma voz suave. Ainda há remanescente suavidade no mundo??? Parece<br />

Com muito esforço, viro a cabeça em sua direção. E sorrio – dessa vez, com o canto direito<br />

- Isso é segredo.<br />

Ela ri. Parece que entendeu a piada. Sou bom com piadas. Vivo uma há vinte e oito anos.<br />

- Você é o professor mais doidão que eu tenho.<br />

- Considerando que vivemos num hospício chamado Terra, então, acho que já estou perfeita-<br />

mente enturmado.<br />

nhas costas?<br />

Ela ri, novamente.<br />

- Falou – diz ela, batendo em minhas costas. Eu já mencionei que odeio que batam em mi-<br />

Ela se vai. A garota de voz suave se vai. Comigo, ficam minhas inúmeras questões. De todas<br />

elas, uma mais me incomoda.<br />

Seria a Derrota, senhora ou senhorita?<br />

“A medusa existe, e se chama dona Madalena”.<br />

Foi essa a primeira frase que ouvi assim que me mudei para o pensionato da dona Madalena,<br />

o local onde moro, na Quintino Bocaiúva. A segunda conseguiu ser tão enigmática quanto a primei-<br />

ra: “Jamais olhe nos seus olhos. Ela pode petrificá-lo”.<br />

O responsável pelas frases foi um cambaleante jovem bêbado, sem camisa. Não sei explicar<br />

minhas razões (e quem é que sabe?), mas jamais ignorei jovens bêbados, sem camisa. De alguma<br />

forma, eles exercem um poder filosofal sobre mim, como se fosse possível extrair alguma sabedoria<br />

e precaução dos seus olhos fundos, expressão abobada e voz lânguida. Por isso, protegi aquelas fra-<br />

ses no canto mais seguro de minha memória. Eu sabia que elas me seriam tão úteis quanto a poesia<br />

de Marcelo Camelo.<br />

Seja bem-vindo. Este é o meu casulo, digo, o pensionato.<br />

Moramos em quatro no pensionato, excluindo a proprietária. Dos três jovens, dois fazem<br />

cursinho e o outro, Lucas, ser desprovido de qualquer sanidade, cursa Letras. Já varamos madruga-<br />

das filosofando sobre Shakespeare e Renato Russo, sobre Fante e Paulo Lucká. Em madrugadas<br />

como essa, achei que a vida valia a pena. Em que momento perdi o elo com o equilíbrio? Quando<br />

foi que as densas nuvens resolveram fazer moradia em minha vida? Já cantaria Mick Jagger: “Perca<br />

seus sonhos, e perderá o juízo”. Talvez eu tenha assassinado meus sonhos, prematuramente. Ou, tal-<br />

vez, eu nem tenha dado chance de eles nascerem. De qualquer maneira, vejo meus sonhos estirados


sobre o nada, sem vida, sem nenhuma contemplação.<br />

Alguém aí se sente como eu?<br />

Meu caminhar é lento. É difícil sermos mais rápidos do que nossas próprias vidas. Por isso,<br />

caminho tão devagar. Para ser honesto, eu rastejo. Se encontrarem pedaços aí atrás, guardem cuida-<br />

dosamente, por favor. São os meus restos. Se juntarem, talvez consigam montar um bom e eficiente<br />

cachorro.<br />

Nesse momento, do fundo do corredor, vem uma estranha criatura de olhos fundos, expres-<br />

são abobada e voz lânguida. É o Lucas. Ele abre os braços, ridículo:<br />

– Grande Messina! O poeta que dá nó nas rimas, que incendeia os botecos. Pisa na contra-<br />

cultura, Messina. Pisa.<br />

Levo o dedo indicador aos lábios, pedindo silêncio. Ou, pelo menos, que ele não seja tão es-<br />

candaloso. E em voz baixa, digo:<br />

– No dia em que Humberto Gessinger for aceito como poeta, não precisarei sequer ter pés.<br />

Quanto menos, pisar.<br />

– Mas pisa, Messina – implora. – Pisa mesmo assim, meu velho, que eu quero ouvir os ossos<br />

da imbecilidade, estalar. Tô cansado desse atraso mental.<br />

É um bom garoto, sem dúvida. Tem amor pelas letras. À nossa maneira, mas ama as letras<br />

como a própria vida.<br />

Não estou me sentindo muito bem (e quando é que estive?). Estou precisando dar umas vol-<br />

tas. Contemplar momentos. Parar o relógio e ditar as regras. Respirar um pouco de ar, senão puro,<br />

pelo menos que não seja tão pesado quanto o ar estagnado do pensionato. Motivos vários, agrega-<br />

dos; por isso, sugiro:<br />

– Façamos o seguinte: vamos convocar a Cris para uma discussão na Padoka, hoje a noite. –<br />

Olho ao redor como se estivesse dentro dum sepulcro. – Aqui não é o lugar apropriado para esse<br />

tipo de discussão.<br />

– Eis as ordens do mestre Messina. – Ele se curva em reverência. – E eis aqui o seu humilde<br />

escravo para executá-las.<br />

É um bom garoto. Com umas atitudes bastante idiotas, mas é um bom garoto.<br />

Ele se vai, falando alguma coisa sobre “reunião”, “movimento”, “Mestre Messina” e outras<br />

baboseiras. Ele poderia mudar toda a cultura (ou parte dela), mas o mundo nunca daria ouvido a um<br />

jovem bêbado, e sem camisa.<br />

Suspiro. Penso em ir para meu quarto. Mas não abandono a fase “pensamento” para adentrar<br />

a fase “ação”. E se não o faço, é devido àquela voz lúgubre me chamando:<br />

– Senhor Messina!<br />

Um filete gélido percorre minha espinha. Para ser sincero, percorre todo o meu corpo. É um


filme de terror. E sou apenas um coadjuvante. E tremo ao me dar conta de que todos os coadjuvan-<br />

tes morrem, nos filmes de terror.<br />

me chama.<br />

ela.<br />

Lentamente, e temeroso como um rato, me volto na direção da áspera e autoritária voz que<br />

E, diante de sua cabeça repleta de venenosas serpentes, criatura gorgônea, me deparo com<br />

A Medusa.<br />

Já teve o seu pesadelo hoje? Eu, sim. Para ser mais exato, soturnamente exato, estou tendo um pesa-<br />

delo nesse preciso momento.<br />

Meu corpo treme. Suor. Pânico. Sombras que vêm e vão. O alvorecer tão distante quanto<br />

meus sonhos de criança. E diante dos meus olhos, vejo tronco e membros. O tronco e os membros<br />

de dona Madalena. Nada de cabeça. Não mesmo. Não olharei nos olhos dessa mulher por nada nes-<br />

sa vida. Querer escapar de uma sentença, como esse meu vazio, é uma coisa; ficar petrificado no<br />

meio do corredor desse pardieiro, é outra bem diferente. Estou fora do páreo, mas ainda remanesce<br />

uma partícula ígnea de bom juízo dentro desse corpo apagado e esquecido pela humanidade.<br />

Ela faz silêncio. E no seu silêncio, ouço o sibilar das serpentes em sua cabeça. Suor. Pânico.<br />

Sombras que vêm e vão.<br />

– Qual o seu problema, senhor Messina? Seu aluguel está atrasado, mais uma vez. Sabia<br />

que é o único a atrasar os pagamentos? Eu esperava mais dignidade de um professor, no cumpri-<br />

mento dos seus deveres. Será que estou exagerando, senhor Messina?<br />

– Eu... eu pago a... a senhora em minutos.<br />

Ela dá um passo em minha direção. O silvar serpentífero se torna mais intenso.<br />

– “Minutos” é muito tempo, senhor Messina. O senhor tem apenas um minuto.<br />

Ela carrega sua frase da forma mais ameaçadora possível. Eu sei do que ela é capaz. Trans-<br />

formar-me em pedra. Ou coisas piores. Ouço lobos à noite, durante minhas horas de insônia. Ela<br />

cria lobos em seu quarto. E se ela me arrastar até lá, onde seus famintos lobos de estimação me fra-<br />

cionarão em pedacinhos comestíveis? Me vê quinhentos gramas de peito de Messina, por favor. Lo-<br />

bos vorazes. Lobos famintos de professores que esmolam um sentido na vida.<br />

Sem mais uma palavra sequer, giro sobre meus calcanhares e corro para o quarto. Ela me<br />

deu um minuto? Nunca minha vida dependeu de tão pouco tempo.<br />

Noite de quarta-feira.<br />

Em uma mesa, cinco figuras que se entendem muito bem. Eu, Lucas, Cris e duas cervas.


Lucas e Cris discutem J. D. Salinger. Eu e as duas garrafas acompanhamos a conversa, em silêncio.<br />

Na verdade, eu não acompanho nada. Não estou conseguindo me concentrar, ultimamente. Ando<br />

tendo pesadelos. Muitas questões em minha mente. Estou atrofiando. Meu semblante denuncia o<br />

meu fim.<br />

– E o que você acha sobre isso, Mestre? – Sou tirado do meu devaneio.<br />

Por que o Lucas insiste em me chamar de “Mestre”? Às vezes, tenho vontade de mandá-lo<br />

pro inferno. Às vezes, acho que só estou vivo por causa dele. Mas, na maioria das vezes, eu não<br />

acho porcaria nenhuma de coisa alguma.<br />

Tomo um gole da cerveja. Encaro meus observadores. As garrafas em silêncio. Lucas e seu<br />

olhar idólatra. Cris e sua feição ingênua de Amelié Poulain.<br />

– “Sossego, não nego / Enxergo quando puder / Só vejo o obscuro objeto / Desejo indireto /<br />

Será que você me entende?”<br />

solta rojões.<br />

– Toca Betão, Messina. Toca Betão. – Lucas, o entusiasmado. Se eu arrotar, ele aplaude e<br />

– Messina, presta atenção no que estou falando. – Cris, a incompreensível de olhar meigo.<br />

Solto o copo. Inclino-me. Os quatro se encolhem. Respeitam-me como a um pai. Calam-se<br />

diante do prenúncio de minhas palavras.<br />

– Se lhe fugirem as respostas certas de uma pergunta inexata, declame um poema. Um poe-<br />

ma responde a todas as perguntas, inclusive, as erradas.<br />

Cris dá uma risadinha um tanto quanto esnobe.<br />

– Não vejo qualquer relação entre poemas e Engenheiros do Hawaii.<br />

– Talvez por isso seja incapaz de arrumar um namorado, como qualquer garota da sua idade.<br />

– Eu consigo ser bastante cruel quando quero.<br />

Ela parece abatida com a minha declaração. Mas logo se recompõe.<br />

– Vejam só. Falou o grande femeeiro.<br />

Rio com os dois cantos da boca. Gostei do “femeeiro”.<br />

– Meu caso é diferente, Cris. Eu já desisti de viver há muito tempo. Ou a vida desistiu de<br />

mim, tanto faz. Minhas veias enferrujaram enquanto uma canção de ninar ainda te fazia dormir. O<br />

fim da linha, o meu fim da linha, está lá atrás. Bem atrás. Porque quanto mais eu crescia, mais me<br />

convencia de que menor ficava o meu universo. Mas o que você está fazendo com sua vida, garota?<br />

O que vai conseguir bebendo cerveja com um idiota nessa podre noite maringaense? Vai querer ter-


minar como eu? Sua vida não precisa ser mais um clichê hollywoodiano, garota. Reescreva o seu<br />

roteiro. Surpreenda a plateia. Faça algo por você, Cris.<br />

– É o que estou tentando fazer.<br />

– Mas não vai conseguir enquanto se prender ao óbvio e aos ditames da moda.<br />

– Ei... Eu não sou escrava da moda.<br />

– Você é escrava da sua consciência fraca e desorientada.<br />

– Eu não sou desorientada.<br />

– Todos são, mas nem todos permanecem. De que lado você vai estar?<br />

– Então me <strong>diga</strong>, sabichão: onde se esconde essa elucidação?<br />

Alguns segundos em silêncio, para dramatizar o momento.<br />

– Cris, me responda, sinceramente: o que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger?<br />

Ela ri.<br />

– Eu sei lá. O quê?<br />

– Um ponto de interrogação. E todo ponto de interrogação exige uma resposta... De ponto<br />

de interrogação em ponto de interrogação você encontrará todas as respostas de que precisa.<br />

Ela absorve o que digo, sem piscar. Cris e o silêncio.<br />

Não sei porque falei essas coisas para ela. Talvez por sentir que o final da minha história se<br />

aproxima e que passa da hora de fazer uma “boa ação”. Ou talvez por achar que ainda há esperança<br />

para a humanidade. Uma combinação das duas coisas, ou uma subtração das mesmas.<br />

Mas, agora, olhando para aquele rostinho que luta em assimilar minhas palavras, me pergun-<br />

to o que seria da minha vida se eu resolvesse acatar meus próprios conselhos. E se eu resolvesse<br />

substituir todos os meus pontos de interrogação por pontos finais? Teria eu em minhas mãos o poder<br />

da decisão? Será que assim eu romperia falsos destinos, decifraria códigos, ditaria ordens ao ama-<br />

nhã?<br />

O Lucas está falando alguma coisa, dizendo que sou porrada no último, mas nem presto<br />

atenção. Estou em outra dimensão. Vejo vários pontos de interrogação, de joelhos, implorando res-<br />

postas.<br />

E então, no meio dessa dimensão interrogativa, chego à minha primeira solução: o silêncio<br />

se calará quando eu combinar meus sonhos com a realidade.<br />

E entre sonhos e realidade, me proponho o desafio de esclarecer, de uma vez por todas, a


questão:<br />

“O QUE HÁ ENTRE RIMBAUD E HUMBERTO GESSINGER?”<br />

Se tudo o que chega ao fim tem um princípio, então, preciso dar início à minha vida antes que ela se<br />

acabe.<br />

Penso nisso várias vezes enquanto dou minha aula, enleado com meus pontos de interroga-<br />

ção, inclusive o existente entre Rimbaud e Humberto Gessinger. Fito meus alunos. Tudo me parece<br />

repetitivo ali. Um filme em preto-e-branco, reprisado assiduamente durante as madrugadas. Eles,<br />

estáticos. Como eu. E parecem em dúvida. Como eu. Concluo que já passa da hora deles nascerem.<br />

Estão vinte, vinte e cinco, alguns até trinta anos atrasados. O registro de cada um diz que nasceram,<br />

mas isso é apenas mais um engano do sistema burocrático. Eu e eles – somos embriões. Conseguire-<br />

mos nascer? Eis a causticante interrogação.<br />

Chego, enfim, aos últimos cinco minutos de aula – os piores. Debruço-me sobre um livro de<br />

não sei quem. Não presto atenção no que leio, apenas no que penso. Espero os cinco minutos passar.<br />

Os alunos não ficam impacientes com meu silêncio – eles já me conhecem o bastante. Silêncio, eis<br />

teu súdito aos teus pés. Então, os cinco minutos se vão, procumbentes. E meus alunos começam a<br />

se levantar. Já passa da hora de todos nós nascermos!<br />

Levanto-me. Vou até o quadro-negro, e escrevo:<br />

“SE TEM PESADELOS A NOITE, MAS ACHA QUE PODE SALVAR O MUNDO, PER-<br />

MANEÇA EM SEU LUGAR”<br />

Então, volto à minha cadeira e ao livro de não sei quem. Mantenho a cabeça baixa. Ouço ruí-<br />

dos. Cochichos. Uma ou outra risada. Alunos e mais alunos deixando a sala. Confusão em minha<br />

mente. Minha pele desprendendo-se, suavemente, do meu corpo. E assim, vou diminuindo. Cada<br />

vez menor. Menor... Vários minutos se passam. Não sei quantos. Talvez cinco. Talvez trinta. Talvez<br />

eu esteja voltando no tempo, como um McFly.<br />

Não vejo nada. Minha visão periférica não alcança nada além de minha mesa e de minha<br />

pele desprendida. Acho que estou sozinho, em minha sala. Todos foram embora, provavelmente. Fi-<br />

camos eu e meus restos. Então, lentamente ergo a cabeça.<br />

E, para minha surpresa, vejo dez alunos, estáticos, em seus lugares. Eles me encaram. Espe-<br />

ram. Querem nascer. Por isso, esperam. Não sorrio com nenhum canto de minha boca. Há demasia-<br />

da seriedade no momento para isso. A vida de dez jovens e um professor lunático está em jogo. Não<br />

sorrio. Não mesmo.<br />

Vou novamente ao quadro-negro e escrevo:<br />

“PIANO BAR. QUARTA-FEIRA. 21H00”<br />

Saio da sala.


Para todos os efeitos, a aula está acabada.<br />

Arthur Rimbaud (1854-1891) – Poeta francês da escola simbolista, movimento literário e das artes<br />

plásticas do final do século XIX. A maior parte da obra de Rimbaud foi criada antes dos seus vinte<br />

anos.<br />

“Passo a passo<br />

Pégasus, pegadas<br />

Pelo espaço a conquistar<br />

Bola de neve, morro abaixo<br />

Sempre em frente<br />

Pra cima, pro alto<br />

...<br />

Há muito já não somos<br />

Como já fomos – todos iguais<br />

Iguais a poucos que ainda andam<br />

Iguais a todos que andam loucos<br />

Iguais a loucos que ainda andam”<br />

- Humberto Gessinger<br />

Chego ao pensionato. Não cruzo com a Medusa até o meu quarto. Escapo, incólume. Por quanto<br />

tempo, estranho cabisbaixo?<br />

Meu quarto: não sei quantos metros quadrados ou qualquer porcaria dessa natureza tem<br />

aqui. Sou péssimo em matemática. Mas, sei que é pequeno pra burro. Quando entro nele, vejo aqui<br />

todo meu universo. Muito pequeno. Talvez aumente se eu encontrar as respostas para minhas per-<br />

guntas. A reunião de amanhã, no Piano Bar, faz parte disso. Antes, porém, para que meu apequena-<br />

do universo esteja seguro, tranco a porta. Tenho medo da Medusa ou de algum dos seus esfomeados<br />

lobos invadirem meu quarto, durante a noite. Me vê uma porçãozinha de pernil de Messina, por fa-<br />

vor.<br />

Olho ao redor. E nesse olhar, percebo que falta algo em meu quarto, excetuando-se a minha<br />

substância, obviamente. Recapitulo:<br />

• Uma cama com um colchão fino e rasgado fedendo a mofo;


• Uma cômoda onde guardo minhas roupas e meus CDs;<br />

• Uma cadeira;<br />

• Um computador.<br />

Algo está faltando. Seria um espelho na parede? De forma alguma. Odeio espelhos. Não me<br />

olho num espelho há anos. O que falta em meu quarto é importante, vital. Mas não consigo identifi-<br />

car exatamente o que é. Paro. Penso. Olho ao redor. Ouço passos do lado de fora. Passos que se<br />

aproximam. Meu coração acelera – deve ser ELA, a razão dos meus pesadelos. Fico em silêncio<br />

para não chamar sua atenção. E em silêncio, examino o quarto, novamente. Paro. Penso. Falta algo.<br />

Mas o quê? De repente, ele aparece e eu me lembro. Sai de trás da cômoda, parecendo feliz com mi-<br />

nha chegada. É ele: RAUL. Meu rato, meu mascote. Inicialmente um visitante ocasional atrás de<br />

comida. Hoje, um companheiro de quarto. Mas não divide comigo as despesas. Grande Raul!<br />

Ele realmente parece feliz com minha chegada. Corre dum lado para o outro. Fico satisfeito<br />

em saber que alguém se alegra com minha presença. Mas o bicho faz muito barulho. Levo o dedo<br />

aos lábios.<br />

- Quieto, Raul. Você não quer atrair a atenção da Medusa, quer?<br />

Raul é um rato esperto. Ele para no mesmo instante. Encara-me, assustado com a perspecti-<br />

va que acabo de lhe trazer à atenção. Que rato não se assustaria com ignominiosa probabilidade?<br />

Então, ele volta para trás da cômoda na ponta dos pés. Grande Raul!<br />

Ouço os passos novamente. Mais próximos. Bem próximos. Fico estático. Olho para a porta.<br />

Tenho a impressão de que um monstro vai entrar quarto adentro. A porta vindo ao chão e eu, vulne-<br />

rável como Raul. Estou morto. Definitivamente morto.<br />

Mas ao invés da porta ser arrombada, percebo um papel deslizando por debaixo desta, para o<br />

interior do quarto. Fico imóvel. O papel também. Cena medonha. Os passos se fazem ouvir, nova-<br />

mente, desta feita se afastando. Lentamente, como num filme de terror (minha vida é um filme de<br />

terror, e eu sou um ator coadjuvante – acho que já falei sobre isso), vou até a porta e pego o papel. É<br />

um bilhete, um pedaço de uma folha de caderno Tilibra. E nele está escrito:<br />

“DEIXA TEUS ALUNOS EM PAZ, LUNÁTICO, OU JAMAIS ENCONTRARÁS A SAÍDA DES-<br />

TE HOSPÍCIO”<br />

Sou o intimidado. O autorretrato da Apreensão. Carrego, em meu bolso, um bilhete escrito à mão.<br />

Uma única frase. Múltiplos sentidos. Como ela soube?, me pergunto. Como a dona Madalena sou-<br />

be dos meus planos com meus alunos?<br />

Mas, afinal de contas, quais são meus planos com eles? Eu não sei. Deveria ter algo planeja-<br />

do. Deveria ter algo, mesmo que não fosse planejado. Mas, nem isso tenho. O que vou dizer para


aqueles jovens ansiosos de respostas, sedentos de objetivo? O que eles esperam que eu <strong>diga</strong>? Eles<br />

confiam em mim. Respeitam-me. Eu sei que sim. Mas o que tenho a oferecer àquelas mentes ansio-<br />

sas de produzir LUZ?<br />

Mão no bolso. Seguro o bilhete. Ele queima como fogo. Bilhete ignescente. Tremo. Nessas<br />

horas, sempre tremo. Foi ela. Dona Madalena. Ela me ameaça. Usa de alusões, não é objetiva. Tal-<br />

vez acredite que assim me torturará ainda mais. E está certa. Não sei exatamente do que ela é capaz,<br />

mas sei que é perfeitamente capaz. Um milhão de coisas maquiavélicas devem passar por aquela<br />

mente doentia. Não quero fazer parte de sua estatuaria, nem servir de refeição para seus lobos. Me-<br />

dusa e meu fim – parentes em primeiro grau.<br />

Saio mais cedo do pensionato. O sol ainda não nasceu – eu, tampouco. O céu ainda é cinza –<br />

sorrio para ele diante de sua cor inóspita e familiar. Obrigado por homenagear minha vida!<br />

“Deixa teus alunos em paz”.<br />

Procuro afastar de minha mente, mesmo que por uma fração dos meus vagos instantes, o in-<br />

timidativo gesto meduseu. Concentre-se no seu compromisso de logo mais, repito. Concentre-se...<br />

Mas a concentração sucumbe quando alguém que se aproxima por trás.<br />

- Deu de madrugar agora, meu velho?<br />

É o Lucas. Deve ter me visto saindo do pensionato, e veio atrás.<br />

Satisfazendo sua curiosidade, digo para o Lucas que estou envolvido com meus pensamen-<br />

tos. Explico, resumidamente, sobre a reunião de logo mais, mas não falo nada sobre o bilhete – “ou<br />

jamais encontrarás a saída deste hospício”. Ele fica excitadíssimo com a notícia do encontro no Pi-<br />

ano Bar. Fica gesticulando, falando que agora sim a contracultura vai ser esfolada até o osso, que<br />

Maringá pariu a salvação da cultura mundial, que o mestre Messina isso, que o mestre Messina<br />

aquilo.<br />

Fico olhando para o garoto enquanto ele gesticula. Ele é sorvido para um universo imperado<br />

pelo seu ânimo; ele movimenta as mãos como um maestro, ignorando tudo ao seu redor. Lucas tem<br />

poder de decisão. Lucas tem paixão. Um entusiasta. Arrebatado por suas crenças, ele é o Senhor da<br />

Exaltação. Sinto uma pontada de inveja. Queria ser como ele. Queria ser uma fração de Lucas. Ape-<br />

nas uma fração me bastaria. Gostaria de deixar de ser o covardão que sou e, pelo menos por um dia,<br />

ser Lucas, o entusiasta.<br />

- Que bicho te mordeu, Messina?<br />

- Ahn? Não... não é nada. Seguinte: apareça hoje no Piano Bar. Se quiser, avise a Cris. Acho<br />

que ela vai gostar de participar.<br />

te, reserva.<br />

Participar do quê, meu Deus?, me pergunto, ainda sem saber o que o encontro de hoje a noi-<br />

Lucas dá uma gargalhada.


- Sei não, Messina. Acho que não vai dar pra Cris ir, não.<br />

- Por quê?<br />

- Ela entrou pro Greenpeace. Disse que quer salvar a natureza e ai de quem cruzar o caminho<br />

dela. Grande Cris! A essa altura, já deve estar caindo no mundo.<br />

minha vida.<br />

Sorrio com a parte superior do canto direito da boca. A satisfação, nesse momento, invade<br />

E a razão é que, pelo menos a Cris conseguiu exterminar os seus pontos de interrogação.<br />

Piano Bar. Três mesas adjacentes. Doze pessoas. E alguns abalos sísmicos.<br />

Andrade.<br />

- Um movimento não pode ser planejado, gente. Ele tem de acontecer, naturalmente.<br />

- Quem disse?<br />

- É a lógica.<br />

- Eu acho que ele pode ser induzido, sim.<br />

- Eu também.<br />

- Eu também.<br />

- Nem. Doze pessoas não vão conseguir mudar a cultura.<br />

- E quem falou em “mudar a cultura”? Vamos contribuir para ela.<br />

- Dá na mesma.<br />

- Quem disse?<br />

- Isso é muita responsabilidade, moçada. Olha pra nós. Nós não somos um Bandeira ou um<br />

- Nada a ver...<br />

- E daí? Somos Silva, Albuquerque, Mendes. E isso é o que importa.<br />

- Vão rir da nossa cara. Nós não temos preparo. E nem bagagem.<br />

- Ficou sabendo que o Syd Barrett morreu, mano? Mas que droga!<br />

- Pô, Marcão, presta atenção na conversa. Isso é sério.<br />

- Foi mal.<br />

- Eu acho que precisamos convocar pessoas com nossos mesmos ideais.<br />

- Isso mesmo. Propomos uma reformulação da literatura, da pintura, do cinema, enfim...<br />

- De todas as artes.<br />

- Isso. De todas.<br />

- Até das novelas?<br />

- Novela não é arte.<br />

- Quem disse?<br />

- Mas precisamos pôr tudo no papel.


nhado geral.<br />

- Deixa que eu escrevo.<br />

- Nem... Eu escrevo.<br />

- Todos escrevem. Cada um coloca suas ideias sobre o movimento. Depois fazemos um apa-<br />

- Eu já tenho várias ideias.<br />

- Eu também.<br />

- Sei não...<br />

- Pô, coitado do Syd. Cego, doidão e recluso. Se não bastasse, agora, morto.<br />

- E depois, o que vamos fazer? Como vamos convocar o povo?<br />

- Espalhar cartazes na universidade...?<br />

- Internet, moçada. Internet.<br />

- Sem chance. Convidar quem a gente nem conhece? Precisamos olhar nos olhos das pesso-<br />

as. Convocar desconhecidos estranhos anônimos está fora de cogitação.<br />

- Isso não vai dar certo. Olha só pra nós. A gente vai virar piada.<br />

- Outdoor.<br />

- Outdoor? Tá louco? O negócio é propaganda boca-a-boca. Mais confiança. Maior controle.<br />

- Falando em boca, porque vocês não calam a boca e deixam o Mestre falar. Afinal, a ideia<br />

veio dele. Diz aí, Messina, que que tu acha?<br />

lado de lá”.<br />

- “Novos horizontes / Se não for isso, o que será? / Quem constrói a ponte / Não conhece o<br />

- Não tô falando que esse cara é porrada no último???<br />

- Com o professor estaremos bem representados.<br />

- E como!<br />

- Quem aí falou em “bagagem”? O professor tem toda a bagagem de que precisamos.<br />

- Acho que devemos tentar. Acho que vai dar certo.<br />

- Eu também.<br />

- Eu também.<br />

- Não sei, não.<br />

- Se não der certo, pelo menos, vamos crescer como pessoa. Vamos acabar amadurecendo,<br />

de um jeito ou de outro. Como disse o professor, de ponto de interrogação em ponto de interroga-<br />

ção, encontraremos todas as respostas de que precisamos.<br />

- E de resposta em resposta, nós nos sentiremos cada dia mais completos.<br />

- Pô, o Pink Floyd sem o Syd nunca mais foi o mesmo.<br />

- Quem disse?


“Ociosa juventude<br />

De tudo pervertida<br />

Por minha virtude<br />

Eu perdi a vida.<br />

Ah! Que venha a hora<br />

Que a alma enamora”<br />

– Arthur Rimbaud<br />

“Não adianta reclamar do pouco tempo que nos resta<br />

Nos resta aproveitar antes que seja tarde<br />

Só temos uma escolha:<br />

Um momento apenas<br />

Ou a vida inteira pra se arrepender”<br />

– Humberto Gessinger<br />

Caminho. Logo vai amanhecer. Quero raios de sol ou ainda me encanto com céus cinzentos? Falta-<br />

me ousadia para responder.<br />

Mais uma vez deixei uma madrugada se descarregar sobre a mesa de um bar. Conversas filo-<br />

sofais. Discussões acaloradas. “Invidas” querendo ser vidas. Estamos cansados desse ritmo, desse<br />

“desvidar”. Vida, por que insistes em fugir de mim?<br />

Caminho de volta ao pensionato, ao lado de Lucas que gesticula e se esgoela – ele poderia<br />

acordar a vizinhança. Mas, dessa vez, não sinto meus restos ficando para trás. É estranho e, ao mes-<br />

mo tempo, magnífico. Sabe o que significa caminhar e não sentir as sobras de toscas frações ficando<br />

para trás? Respeitem-me: sou Messina. O Inteiro Messina.<br />

A reunião de horas atrás foi boa enquanto apenas uma informal discussão. Não sei aonde<br />

tudo isso vai dar. Não sei coisa alguma. Mas senti satisfação em ver atmosferas cinzentas ganharem<br />

cor. Atmosferas coloridas. Jovens discutindo seus projetos com paixão. Não eram máquinas progra-<br />

madas para construírem Nadas. Havia ar em seus pulmões. Não os vi como restos juvenis, vidas<br />

perdidas, breves brisas. Dessa vez, eram homens elucidativos, senhores de toda situação. Por isso,<br />

mantive-me aquém durante toda a noite. Lancei a ideia, nada mais. Um observador interessado. Um<br />

observador diante de múltiplas mentes grandiosas criando, mentalizando, concentrando-se no ama-<br />

nhã. Eles se sentiram vivos. Sentiram-se essência vívida de um universo de criatividade, paixão<br />

contida e incontida.


E eu – apenas um observador interessado.<br />

Chegamos enfim ao pensionato. Todos ainda dormem. Se Lucas não calar a boca, em cinco segun-<br />

dos todos estarão acordados. Não gostaria de ver dona Madalena sendo acordada tão cedo. Seu mau<br />

humor matutino somado ao seu mau humor clássico diário deflagraria tamanho ímpeto de furor que<br />

seria capaz de gerar a Terceira Guerra Mundial.<br />

Lucas vai para o seu quarto ainda com sua conversa animada sobre o “movimento cultural”.<br />

Quanto a mim, preciso voltar ao meu quarto e, em três horas, à minha rotina indomada do inalterá-<br />

vel professor de literatura. Ou será que estou me enganando? Será que dessa vez acenarei <strong>adeus</strong><br />

para a senhora (ou senhorita?) Derrota? SERÁ???<br />

Estou em frente ao quarto dela, dona Madalena. A impiedosa e cruel Medusa. Ela deve dor-<br />

mir. Ela dorme. Um sono profundo. Ronco. Ouço o som cavernoso vibrando porta e paredes. Levo a<br />

mão à maçaneta. Hesito. O que estou querendo fazer? Conhecer o templo sombrio da senhora des-<br />

truição? Eu nunca vi esse quarto. Ela sempre mantém a porta fechada. Sempre. O que ela guarda<br />

ali? Suas vítimas estatuárias? Objetos medievais de tortura? Não sei e não quero saber. Temo ver ta-<br />

manho horror ali, horror marcante e traumatizante. Ouço um uivo. Seus lobos. Suas feras. Afasto<br />

minha mão da maçaneta como se fosse possível pegar uma doença contagiosa. E quem há de negar<br />

que nisso tenho toda a razão?<br />

Vou rapidamente para o meu quarto. Quando acendo a luz, deparo-me com um assustado<br />

Raul. Ele me olha como quem tem uma péssima notícia.<br />

- O que houve, amigo? – pergunto.<br />

Ele inclina a cabeça na direção dos meus pés. E então vejo um papel dobrado, no chão. É um<br />

bilhete. E nele está escrito:<br />

“TUA REBELDIA SERÁ TUA SENTENÇA, AMIGO. TEU SONHO DE UM SENTIDO NA<br />

VIDA É PURA TOLICE. OU ME ESCUTA AGORA, OU, ENTÃO, DIGA ADEUS, MESSINA”<br />

É nesse momento que me convenço de que minha vida corre perigo.<br />

Três horas depois. Ou seriam três anos? Pouco importa. No causticante momento da morte, perco a<br />

noção do tempo.<br />

Estou sentado em minha cama, olhos bem abertos, dois bilhetes em mãos. Raul, a princípio,<br />

ficou parado me observando; achei que era por preocupação, mas me enganei. Ele provavelmente<br />

esperava um pedaço de pão. Às vezes, dou-lhe um pedaço do miolo – do pão, obviamente. Em dia<br />

de pagamento, até presenteio meu camarada com um pedaço de queijo. Mas quando não dou nada,<br />

Raul fica indignado... como hoje. Em protesto, ele foi para trás da cômoda e começou a roê-la numa<br />

barulheira infernal. Se Raul fosse humano, ele provavelmente seria um ativista.


Em mãos, ainda, os bilhetes. Bela e familiar caligrafia a dela. Por que digo “familiar”? Não<br />

sei. Só sei que me parece familiar. Por que digo “dela”? Porque não consigo conceber outro respon-<br />

sável pelo crime de me ameaçar senão aquela que carrega em si todos os malefícios universais: a<br />

Medusa. Mas me questiono também: será que uma mulher com serpentes na cabeça teria uma escri-<br />

ta tão bem cuidada, uniforme e elegante, como aquela? Difícil responder – não seria tão difícil se eu<br />

me correspondesse com Esteno ou Euríale.<br />

Como ela soube que estou tentando respirar e dar um pouco de ar àqueles jovens? Será que<br />

fui delatado por algum dos meus alunos? Ou será que ela pode ouvir meus pensamentos?<br />

- Malditos pontos de interrogação – vocifero.<br />

Raul, assustado, põe a cabecinha para fora para conferir meu estado. Ele não está acostuma-<br />

do com essas reações.<br />

Enfio os bilhetes no bolso. Extravase, Messina. Mas extravase na hora e presença certas.<br />

Por que não extravasar diante dela? Não estou inteiro, afinal? Por que não aproveito o momento ím-<br />

par e enfrento essa mulher? A propósito, por que não paro com essa angustiante mania de fazer per-<br />

guntas?<br />

Levanto-me com destemor. Messina com destemor – até parece piada.<br />

Olho para Raul. Ele parece perceber que algo grandioso está para acontecer e, por isso, as-<br />

siste tudo com vívido interesse.<br />

- Se eu não voltar em vinte e quatro horas, pode roer toda a cômoda, amigo.<br />

Ele não parece disposto a esperar o desaparecimento oficial do inquilino do quarto. De ime-<br />

diato, volta para trás do móvel e recomeça a roedura.<br />

Quanto a mim, o homem das interrogações, saio do meu quarto, confiante diante do meu ob-<br />

jetivo. Estou mudado. Pareço mudado, realmente. Vou até o quarto dela – novamente estou lá, dian-<br />

te daquela porta. Não ouço o ronco – a porta e a parede não vibram. Não ouço uivos. Ela está aí<br />

dentro? Só há uma maneira de saber. Levo a mão à porta. E bato com vigor. Eu não acredito que es-<br />

tou fazendo isso. Mas estou.<br />

E não pretendo pagar o aluguel.<br />

Lentamente, a porta se abre. Uma brisa impetuosa sai de dentro do quarto. Sinto um cheiro<br />

estranho, parecido com mofo. Mofo lembra sepulcro. Sepulcro lembra o lugar para onde ela preten-<br />

de me mandar diante do meu arrostar.<br />

Quando a figura gorgônea emerge do quarto, olho para baixo, súbita e mecanicamente.<br />

- Senhor Messina? Espero que tenha um bom motivo para me incomodar.<br />

Engulo em seco.<br />

- Eu... eu... eu... – Paro na busca desesperada pelo ar, agora, rarefeito.<br />

- Estou esperando. E quanto mais espero, mais me indisponho. – Nunca havia reparado que


ela parece ser uma mulher culta.<br />

O universo nesse instante sofre um cataclismo. Convulsão universal. Passos fora da estrada.<br />

Abalos. Nada em seu lugar. E a razão é que eu, o rei dos covardes, resolvo responder. Acreditem: eu<br />

RESPONDO.<br />

- Se a senhora tem colocado bilhetes debaixo da minha porta, acho melhor parar.<br />

Vejo seus pés. Ela dá um passo em minha direção, ameaçadora.<br />

- Do que está falando, seu moleque?<br />

- Se voltar a fazer isso, eu...<br />

Não <strong>diga</strong> ainda, Messina. Ainda não. Conclua sua frase, mas conclua olhando nos olhos<br />

dela. É a única maneira dessa mulher te respeitar. Olhe nos olhos dela, Messina, e profira sua derra-<br />

deira e maledicente ameaça.<br />

Sem pensar nas consequências, começo a erguer a cabeça. Olho para as pernas dela, seu qua-<br />

dril, contemplo todo seu tronco, vejo seu pescoço, seu queixo, sua boca, seu nariz, e...<br />

Alguém aparece do meu lado, agarra meu braço e me arrasta, de forma violenta.<br />

É Lucas. Ele me puxa para fora do pensionato como se este estivesse em chamas.<br />

- Tá maluco, mano? O que você pensa que tá fazendo?<br />

- Estava enfrentando aquela criatura, até que a porcaria dum intempestivo surgiu do meu<br />

lado e atrapalhou tudo.<br />

- Intempestivo? Eu? Acha que está preparado para enfrentar a Medusa?<br />

- Eu não sei. O que sei é que preciso de respostas.<br />

- Que tipo de respostas?<br />

- Acho que essa mulher está me ameaçando.<br />

Lucas agarra meu braço, novamente, e me arrasta, dessa vez para mais longe – quanto mais<br />

longe, mais seguro.<br />

- Diz aí. O que te aflige, Messina?<br />

Hesito – eu vivo hesitando. Quando não estou fazendo perguntas, estou hesitando. Não pas-<br />

so de um hesitante indagador.<br />

Enfio a mão no bolso e pego os dois bilhetes.<br />

- Encontrei isso em meu quarto. Colocaram por debaixo da porta. Quero saber quem está fa-<br />

zendo essa brincadeira comigo. Acho que a dona Madalena tem algo a ver com isso.<br />

- Quando achou?<br />

- O primeiro, terça passada. Esse outro, agora a pouco, quando voltamos do Piano Bar.<br />

Lucas fica me olhando. Sério. Examina-me. Após alguns instantes, começa a rir. Ri muito.<br />

“Gargalha”, para ser mais exato.<br />

- Posso saber a razão da graça?


ir.<br />

- Você é o maluco mais doidão que eu conheço, Messina. – Ele mal consegue falar de tanto<br />

- Do que está falando?<br />

- Ora, você sabe muito bem quem colocou esse bilhete debaixo da sua porta.<br />

- Sei?<br />

- Claro que sabe.<br />

- Não, eu não sei.<br />

- Claro que sabe, maluco. – Ele para de rir. – Ora, mestre, você colocou.<br />

Agora sou eu quem ri.<br />

- Eu? Qual é, Lucas? É a ressaca de ontem?<br />

- Eu bem que achei estranho. A gente chega do Piano Bar, eu vou para o meu quarto, você<br />

para o seu. De repente, me lembro de te falar algo sobre o movimento. Vou até o seu quarto. Então o<br />

que vejo? Meu amigo Messina, ajoelhado no chão, escrevendo alguma coisa num papel. Logo em<br />

seguida, meu amigo dobra o papelzinho e enfia debaixo de sua porta. E depois, simplesmente, entra<br />

no quarto, sem mais nem menos.<br />

- Você enlouqueceu.<br />

- Eu? Tem certeza?<br />

O que está acontecendo? Ele só pode estar brincando comigo. Então, por que estou apavora-<br />

do? Sua declaração é absurda, mas estou terrivelmente assustado. Parece existir alguma razão re-<br />

côndita no encalço de suas palavras. Ele recomeça a rir. Ri sem parar.<br />

Eu não escrevi esses bilhetes.. eu não escrevi... A caligrafia. A bela e familiar caligrafia. Por<br />

que “familiar”? Por quê? Porque a caligrafia no bilhete é mi... Não! Não! Por Deus, não!<br />

Feche os olhos. Concentre-se, Messina. Concentre-se.<br />

E recapitule.<br />

Onde você estava?<br />

Eu estava ali, parado diante da porta do quarto da dona Madalena. Eu me afastei. Fui para o meu<br />

quarto, abri minha porta. Só isso? Não, estou me esquecendo de algo. Concentre-se, imbecil. Eu não<br />

abri a porta, de imediato. O que eu fiz antes? Eu enfiei a mão no bolso e peguei... e peguei... um pe-<br />

daço de papel e uma caneta. E escrevi algo... O que eu escrevi? O quê? Eu escrevi... eu escrevi:<br />

“TUA REBELDIA SERÁ TUA SENTENÇA, AMIGO. TEU SONHO DE UM SENTIDO NA<br />

VIDA É PURA TOLICE. OU ME ESCUTA AGORA, OU, ENTÃO, DIGA ADEUS, MESSINA”...<br />

E, então, dobrei o papel e enfiei debaixo da porta. Entrei no quarto. Acendi a luz. E o Raul me<br />

olhou, assustado.<br />

Por Deus, não! Não pode ser verdade.


Volto a abrir meus olhos. Lucas está vermelho de tanto rir.<br />

- Tu é doidão, mano. Doidão no último.<br />

Eis a minha retratação: dessa vez, dona Madalena é inocente.<br />

E, por favor, um último ponto de interrogação.<br />

Que porcaria está acontecendo comigo?<br />

Há confusão. Tênue linha entre o caos e os meus sapatos. Um oceano de profundidade mínima, um<br />

afogamento irreversível. Com quantos atos insanos se faz um louco? A resposta está no olhar absur-<br />

do com que encaro o mundo ao meu redor.<br />

Estou sendo perseguido. Alguém no meu encalço. Alguém em ameaça. Tento me esquivar,<br />

encontrar um refúgio, um lugar seguro. Mas, definitivamente, não há como fugir, Messina.<br />

O perseguidor é você mesmo.<br />

Vultos. Diversos vultos. Olham-me. Cercam-me. Sussurram frases desconexas em meus ouvidos.<br />

Na maioria das vezes, ouço apenas murmúrios. Queria dar-lhes atenção. Queria sorrir-lhes. Mentes<br />

geniais. Todos eles, poetas entre leituras e estudo. Mas um louco como eu não deveria sequer estar<br />

aqui, ocupando essa estimada posição – professor destes jovens que respiram. Ainda não estou sali-<br />

vando, mas alguém aí saberia me dizer até quando?<br />

Meus alunos se curvam no altar do Entusiasmo. Estão crescendo. Os dias se esforçam, mas<br />

não conseguem acompanhá-los. São efetivos, manifestam-se através de efeitos reais. Alguns deles<br />

publicam crônicas e poemas em jornais, outros já estão escrevendo romances e peças de teatro; e há<br />

quem se arrisque em esboçar novelas. Um aluno chamou colegas de outros cursos e montaram uma<br />

banda. Segundo eles, uma banda que une Renato Russo a Fernando Pessoa, Humberto Gessinger a<br />

Paulo Leminski. Quase lhes disse que querer ser genial é uma coisa, blasfemar é outra, mas acabei<br />

ficando quieto. Afinal, sou apenas um observador interessado.<br />

Mas sinto orgulho deles. Não estou em condições de sentir coisa alguma, devido minha alie-<br />

nação. Mas sei que eles querem ser ouvidos. E sei que serão. Tolos os que acham que estou exage-<br />

rando.<br />

São guerreiros, e não vão desistir tão fácil assim.<br />

Depois daquele dia, nunca mais vi a dona Madalena. Fujo dela. Às vezes, acho que ela foge de<br />

mim. Será que a impressionei com minha atitude firme, confrontadora? Pouco importa. Poderia me<br />

regozijar com essas lembranças, mas não consigo. Sou um louco. Um maluco doidão, como diria o<br />

pleonástico Lucas.<br />

Além disso, estou envergonhado das falsas acusações que levantei contra ela. Talvez eu de-


vesse pedir desculpas. Ou talvez eu devesse ir para trás da cômoda roer um pouco o meu móvel.<br />

Acho que ali eu teria um pouco de tranquilidade. Acho que o Raul é mil vezes mais esperto do que<br />

eu. Acho que o Humberto é o poeta mais genial dos últimos tempos.<br />

cio.<br />

Mas, ultimamente, tenho achado, com bastante frequência, que eu deveria estar num hospí-<br />

Em meu quarto, um louco treme. Toda a estrutura também. Não temo mais as pessoas ao meu redor.<br />

Temo apenas o outro que se esconde em mim. O outro mais ensandecido do que eu, e que parece<br />

disposto a tudo para assumir o controle da situação. Sou a flecha e, ao mesmo tempo, sou o alvo.<br />

Raul não apareceu hoje. Talvez esteja assustado com meu comportamento. Melhor assim.<br />

Quanto mais longe de mim ele ficar, mais seguro estará. Quanto a mim, o que tenho de fazer para<br />

me manter longe de mim mesmo?<br />

Olho sobre a cômoda. Livros e mais livros. Entre eles, um estilete. Ele reluz para mim. Nem<br />

tudo o que reluz é mortal – é isso o que diz o ditado? Odeio ditados. O melhor é se precaver. Pego o<br />

estilete e abro a última gaveta da cômoda. Desisto. Tem um buraco imenso ali – resultado direto das<br />

crises depressivas e protestos veementes do meu camarada. Abro a penúltima gaveta, então. Escon-<br />

do o estilete debaixo de algumas cuecas furadas. Fecho a gaveta. Afasto-me e encaro a parede. Anti-<br />

gamente fazia isso por achar a parede tão parecida com minha vida. Hoje, não acho mais. Será?<br />

Pra variar, questões invadem minha mente.<br />

Será que ele, o outro Messina, sabe tudo o que sei? Digo, tudo? Será que posso enganá-lo,<br />

fazer algo que só minha personalidade menos maluca esteja a par? Sei que ele sabe o que sei, mas<br />

não estou certo se sabe realmente tudo. Isso tudo é loucura.<br />

“Somos quem podemos ser”, diria o Gênio. Mas quem eu posso ser, amigo? Que porcaria eu<br />

posso ser? Realmente, desconheço a resposta. Talvez por isso não tenho coragem de me encarar<br />

num espelho. Não sou indivisível. Não sou autêntico. Não sou sequer a cópia de mim mesmo. Sou a<br />

dubiedade dum lastro vacilante. Sou o opróbrio de faces confusas, latentes. E nesse vai e vem, me<br />

desconcerto em peças pouco observáveis.<br />

entender?<br />

É por isso, amigo, que não sou quem posso ser. Se pudesses me ouvir, serias capaz de me<br />

Volto-me para a cômoda, casual.<br />

Mas a eventualidade do momento perde a força quando vejo um objeto repousado, reluzente,<br />

sobre o móvel.<br />

É o estilete recolocado cuidadosa e ameaçadoramente sobre a cômoda. Debaixo dele, mais<br />

um singelo bilhete, minha caligrafia:<br />

“NEM TENTE ME TAPEAR”


"Rimbaud é inteligente até não poder mais; mas acabará muito mal” - Perrete, o velho e rabugento<br />

professor de Arthur.<br />

Contemplo a discórdia. A imprecisão dos movimentos. O reflexo distorcido. Dois homens em um<br />

só. Duas mentes, dois objetivos, dois inimigos. Cada louco com seus fantasmas de estimação. Os<br />

meus respondem pela minha trêmula sombra.<br />

Não podemos coexistir. Isso é mais do que evidente. Mas também não posso atacá-lo, direta-<br />

mente. Atracar-me a mim mesmo me rebaixaria ao mesmo nível dele. Preciso agir de uma forma<br />

mais conspícua. Apenas a inteligência poderá subjugar este insano. Percepção versus intimidações.<br />

Os ingressos já estão à venda. Quem vencerá o grande confronto final?<br />

Não posso deixar-me desalentar. Se eu entrar em desespero, ele assume o controle. Preciso<br />

de calma. Paz. Preciso convocar todo o equilíbrio ao meu redor. Como encontrar paz a fim de medi-<br />

tar no que fazer para derrotar minha insana e trêmula sombra? A resposta, bastante simples, vem me<br />

acarear, um sorriso estampado no rosto: LEMBRE-SE DE RIMBAUD.<br />

Um importante concurso. Rimbaud é escolhido para representar o colégio. Poetize, Rimbaud. Poet-<br />

ize. São estas as ordens. Eis a sua grande chance. Mas, contrário ao que se espera, as ordens não o<br />

movem. Tampouco a grande chance o faz. Ao invés de escrever, Rimbaud mantém-se estagnado, a<br />

cabeça fincada sobre o Nada, viajando no seu mundo particular. Após nada produzir em horas, seu<br />

professor lhe cobra uma atitude. O poeta encara-o e arremata:<br />

- Estou com muita fome.<br />

De barriga cheia, Rimbaud escreveria um poema de tamanha sublimidade e primor que arre-<br />

bataria o primeiro lugar no concurso.<br />

Eis a única forma de me acalmar e pensar no que fazer para derrotar o insano: satisfaça sua fome,<br />

Messina. E então poderás ser invencível.<br />

Levanto-me, estufo o peito e clamo:<br />

- Preparem o banquete. O imperador saciará sua fome.<br />

Bastou falar a palavra mágica “banquete”, e o Raul aparece do nada, todo faceiro.<br />

Lucas ouviu toda minha história, mergulhado num estranho silêncio. Depois desatou a rir como um<br />

imbecil. Às vezes, acho que o Lucas deriva algum prazer em me apoquentar. Ele tem um certo dom<br />

para isso. Mesmo assim, invejo o fulgor juvenil do garoto.<br />

Estamos num restaurante self-service, perto da universidade. O almoço é por minha conta –


lá se vai o sobejo do meu salário.<br />

Após recuperar o fôlego, mas ainda rubro, Lucas fala:<br />

- Meu velho, se os caras da faculdade souberem da tua história, te dão a conta na lata.<br />

- Se souberem de minha história, me colocam numa camisa de força e me jogam num cala-<br />

bouço, para nunca mais ver a luz do dia.<br />

- Hehe... Pode crer. E jogam aquela ratazana do Raul junto pra te fazer companhia.<br />

Ele recomeça a rir, mas dessa vez não me irrito. E se não me irrito é devido à minha surpresa<br />

ante suas palavras. O que ele disse? Como ele...? Como...?<br />

Lucas continua.<br />

- Eu vou te dizer qual é o seu problema, Messina. O seu problema é esse medo que você tem<br />

de encarar o seu passado. Vai me dizer que estou errado? Você é um covardão, meu velho. Não tem<br />

coragem de assumir o que já fez na vida e, por isso, fica com essas distorções da realidade. Se liga,<br />

Messinão. No dia em que você tiver peito, mano, peito mesmo, para assumir a tranqueira que você<br />

já foi e as besteiras que já fez nessa sua porcaria de vida, você sai dessa. Pode apostar.<br />

Mal presto atenção no que ele fala. Não consigo me concentrar, não depois do que ele disse.<br />

“E jogam aquela ratazana do Raul junto pra te fazer companhia.”<br />

bre a mesa.<br />

Como permaneço em gélido silêncio, Lucas pega uma caneta e o guardanapo de papel de so-<br />

- Cara, você tá em outra dimensão. Não tá ouvindo uma palavra do que tô falando. Isso dá<br />

até medo, sabia? Vou te escrever um troço. Quando resolver voltar para o planeta Terra, vê se dá<br />

uma lida nisso e medita pra valer, combinado? – Ele escreve e me passa o papel. – Vou nessa, malu-<br />

co. Toma jeito, ou vai acabar na tal camisa de força, mesmo.<br />

Ele se vai. Deixa comigo o papel onde está escrito: “E um vagabundo esmola pela rua / Ves-<br />

tindo a mesma roupa que foi sua”.<br />

Mas ignoro a citação de Negro Amor. Minha mente é âmbito acelerado. Minha mente é “in-<br />

mente”. A silhueta da Desconfiança ocupa o lugar à minha frente – outrora ocupado por Lucas.<br />

Como...?<br />

Ao meu redor há confusão, enleio, descrença – tudo vindo à tona depois da frase casual de<br />

Lucas. Até meu apetite de imperador esquivou-se do meu ser. Em meu universo particular, remanes-<br />

cem apenas duas frases.<br />

Eu jamais falei sobre o rato do meu quarto com qualquer pessoa.<br />

Então, como ele sabe que tenho um rato, e que ele se chama Raul?<br />

Pode ver este homem cambaleante pela rua? Muito prazer, este sou eu! Bela maneira de se iniciar<br />

uma tarde em que ainda tenho três aulas! Mas não estou embriagado. Estou apenas confuso... Pior


que o álcool.<br />

Caminho sem uma direção definida. As ruas me parecem pouco distintas. Na verdade, acho<br />

que estou atrás de Lucas, como se fosse possível encontrá-lo mergulhado nessa multidão de estu-<br />

dantes, nos arredores da universidade. Quem é Lucas?, me pergunto. De onde o conheço? Sei que<br />

ele mora no pensionato. Mas eu o conheci ali? Tenho a impressão de que conheço Lucas desde mi-<br />

nha infância. Uma tênue, porém, pungente impressão. Então por que não me lembro? O passado fi-<br />

gura-se confuso neste momento. Meu universo é intensa caotização. Eis a razão de eu não conseguir<br />

deixar de ser quem eu sou. E isso me tortura. E isso me corrói.<br />

Começo a correr. Corro o mais rápido que posso. Cruzo as ruas, ensandecido. Tropeço. Caio.<br />

Mas aqui estou eu, de pé novamente. Continue correndo, Messina. Ele está por aí, camuflado no<br />

meio da multidão. Ou será a multidão que insiste em se camuflar atrás da figura informal de Lucas?<br />

De repente, acho que devo parar. E paro. Nem mais um passo, entendeu? Ofegante. Inspire, expire.<br />

Pode ver este louco ofegante na rua? Muito prazer, este sou eu!<br />

Sem mais nem menos, sou invadido por uma certeza: ele está atrás de mim. Eu sei que está.<br />

Olhe para trás, Messina, e esclareça de uma vez por todas essa história. Então me volto. E me depa-<br />

ro com ele, Lucas. Para variar, ele ri até não poder mais.<br />

- Tu corre feito um maluco, mano. Achei que não ia te alcançar.<br />

- Quem é você? – Sou bastante direto.<br />

Ele continua rindo. Aos poucos, silencia. Fica sério. Dá de ombros.<br />

- Tá com amnésia, doido? Sou Lucas, seu melhor amigo.<br />

- Você está me escondendo algo. Eu sei que está. Responda de uma vez: quem é você?<br />

- Quem eu sou? Ora, você deveria saber muito bem. Afinal, foi você quem me criou.<br />

Então, como num passe de mágica, minhas lembranças são desenhadas na inóspita prancheta<br />

de minha memória.<br />

12 de Junho de 1990.<br />

Um garoto assustado, sozinho, acuado no canto da sala. Ele não tem amigos. Nunca teve. Tem um<br />

sério problema em se relacionar com outros. Algo crônico. Os outros garotos não gostam dele. E ele<br />

não gosta dos outros garotos. Eles costumam zombar dele: “O Sérgio é doido... Conversa sozinho<br />

pelos cantos”. E caem na risada. Zombarias, fantasmas, seus traumas repetidos numa existência des-<br />

cartável.<br />

de Lucas.<br />

O garoto acuado tem muitos apelidos, mas apenas um nome: Sérgio Messina.<br />

Quanto ao seu amigo imaginário, com quem conversa todo o tempo, este atende pelo nome


- Como? – pergunto, sobressaltado após o confronto com minhas lembranças.<br />

- Não me pergunte como, mano. A resposta tá aí nessa sua cabecinha.<br />

- Mas você... você não existe.<br />

- Que bom que chegou a essa conclusão! Talvez escape da camisa de força. Eu estava come-<br />

çando a ficar preocupado.<br />

- Eu criei você porque... porque...<br />

- Porque você se sentia sozinho.<br />

- É isso. Sozinho, muito sozinho. Eu precisava de amigos. Ao menos, um.<br />

- Mas era pedir demais não era, maluco? Eu sou exatamente tudo aquilo que você sempre<br />

quis ser. Um cara extrovertido, despreocupado, confiante. Tá certo que sua mente me mudou com o<br />

passar dos tempos. Eu não bebia antigamente, por exemplo.<br />

- Como pude me esquecer disso? Quero dizer, como pude achar que você era real?<br />

- Você foi longe demais na sua imaginação, Messina. Entrou com os chifres nesse seu mun-<br />

do particular. Quando deu por si, já não sabia mais diferenciar o real do imaginário.<br />

- Você não é real.<br />

- Sinto te informar, mano, mas a essa altura do campeonato, nem você é mais.<br />

- Isso precisa acabar. Isso é loucura. Estou sendo ameaçado por mim mesmo, e tenho um<br />

amigo imaginário.<br />

- Isso não vai acabar enquanto você fugir de si mesmo e do seu passado. Mas agora posso<br />

perceber que as coisas estão mudando. Esse lance de liderar seus alunos num movimento cultural te<br />

deu um novo fôlego.<br />

- Liderar? Mas eu só observo os garotos.<br />

Lucas dá uma risada.<br />

- Como só observa? Não me venha com aquela história de “apenas um observador interessa-<br />

do”. Você não fica um segundo sequer calado nas reuniões do grupo. Lembre-se de que muito do<br />

que eu falei nessas reuniões, na verdade, era você quem estava falando.<br />

- Isso é loucura.<br />

- Mas precisa acabar. E a hora é agora.<br />

- E o que eu faço?<br />

- Encare seus medos, Messina. Deixe de ser o moleque covardão, antissocial, que me criou<br />

há dezesseis anos atrás.<br />

- E por onde eu começo?<br />

- Pelo maior dos seus traumas... ELA.<br />

- A dona Madalena?<br />

- Não poderia ser outra, não é mesmo?


ar de tudo.<br />

- Quem é ela, Lucas? Por que eu tenho tanto medo dessa mulher? O que ela fez comigo?<br />

- Isso eu não posso te dizer, meu velho. Você precisa olhar nos olhos dela se quiser se lem-<br />

- Ela fez algo contra mim no passado, mas não consigo me lembrar. Algum trauma está blo-<br />

queando minhas lembranças.<br />

- Vença seu medo, covardão. Ela não pode mais te atingir. Você é o Mestre Messina, o líder<br />

dum movimento cultural que começa a se espalhar para fora das fronteiras do estado. O que aquela<br />

velha rabugenta pode fazer contra você?<br />

- Mas ela pode... ela pode...<br />

- Petrificá-lo? Quem te disse isso? Algum jovem bêbado e sem camisa? Jamais deveria dar<br />

ouvidos a essa gente. Eles nunca dizem nada que preste... Vou nessa.<br />

Lucas começa a ir embora. De repente, volta-se:<br />

- Mestre, o que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger?<br />

- Eu ainda não descobri. Tenho tentado, mas... eu não sei.<br />

- Você está no caminho certo, mano. Continua nessa que a resposta te encontra. Adeus.<br />

Dizendo isso Lucas se vai para algum canto inacessível do meu cérebro.<br />

Não sei porque ele disse “<strong>adeus</strong>”. Será que estou, finalmente, agindo como Lucas, sem pen-<br />

sar nas consequências e, por isso, não preciso mais dele?<br />

Acho que sim. Não sinto mais a necessidade dele. Isso porque estou confiante. Sei o que<br />

devo fazer e vou fazer exatamente assim.<br />

- Dona Madalena, farei com que peça desculpas de joelho pelo que me fez, seja lá o que for.<br />

Se vou sair vivo dessa ou não, eu não sei. A única coisa que sei é que estou para ter o mais<br />

importante encontro desde que essa história insana teve início.<br />

Quando era uma criança eu achava que poderia ser eterno. E agora, minha canção favorita, em qual<br />

canto do mundo foste esconder-te? Se estivesses aqui, eu sei que poderias me acalentar. Tuas cha-<br />

mas poderiam me aquecer. Teu sussurro seria minha melhor companhia.<br />

Mas já que não estás aqui, posso me virar muito bem sozinho.<br />

E se não te importas, me dê licença – pois quem fica parado é estanque.<br />

Estou em meu quarto. Tudo está em seu lugar. Meticulosamente em seu lugar. O estilete repousa so-<br />

bre o último bilhete, incólumes. Familiares ruídos atrás da cômoda. Qual a novidade? Olho ao redor<br />

– meu pequeno cubículo com cheiro de <strong>adeus</strong>. Agora é tarde para lamentar. Mesmo que não fosse,<br />

eu não lamentaria. Eu sou o que sempre quis ser. Sou o que minha mente projetou nos últimos anos.<br />

E não há nada neste momento que possa me impedir.


A senhora ou senhorita Derrota? Bem, acabo de mandá-la para a rua, sem dar-lhe sequer um<br />

cobertor. Considero-me suficientemente generoso.<br />

Um lapso. Um instante vago. Sinto minhas mãos arderem. Olho para elas. Estão sangrando.<br />

Muito sangue. Instintivamente olho ao redor a procura do bilhete. Acho-o no chão, também man-<br />

chado de vermelho. Está escrito:<br />

“ÚLTIMO AVISO, LOSER”<br />

Sorrio diante de minha ameaça. Eu não tomo jeito mesmo.<br />

- Pro inferno, Messina. Você já teve a sua vez.<br />

Limpo rapidamente meu sangue e vou para o quarto de dona Madalena.<br />

É o encontro final.<br />

O filme de terror está chegando ao fim. E o coadjuvante está diante da porta do terrível e impiedoso<br />

monstro. Alguém tem dúvida de como essa cena termina?<br />

A última vez em que estive aqui, bati na porta. O Lucas nunca faria isso, concluo. Então,<br />

sem pensar nas consequências – e por que deveria? –, eu simplesmente abro a porta. Para ser hones-<br />

to, até uso uma certa dose de violência.<br />

Estou com a cabeça erguida. Não tremo, não hesito. Adeus covarde hesitante.<br />

Eis a última sequência do filme de terror.<br />

Eu dou um passo e estou dentro do quarto da Medusa.<br />

Mas, por mais preparado que estivesse, jamais imaginaria me deparar com o que vejo dentro<br />

do quarto dessa mulher.<br />

Se alguém pudesse ver meu semblante, acredito que apontaria um dedo para mim e exclamaria:<br />

“Vejam, é o Assombro!!!”.<br />

Assombro. Angústia. Tormenta. É difícil encontrar uma palavra para me classificar, neste<br />

momento. Sou indefinível. Deformações de sentimentos e pensamentos numa conjugação inespera-<br />

da. Sou as migalhas desprezadas pela realidade. E a razão de tudo isso é o interior do quarto da<br />

dona Madalena.<br />

Confesso que me preparei para ver esquifes, morcegos, restos mortais, e a mais aberrante de<br />

todas as visões, a própria Medusa. Eu não me surpreenderia se me deparasse com jovens universitá-<br />

rios petrificados após, inadvertidamente, olharem para os olhos dela. Mas o que vejo aqui dentro<br />

consegue me desestruturar. Ao invés de visões assustadoras, tenho diante de meus olhos um quarto<br />

comum, e figuras de Rimbaud e Humberto Gessinger, respectivamente, coladas nas extremidades da


parede.<br />

Entro. Cuidado. Olho ao redor. Que quarto é esse? Onde ela está? Algo está fora do lugar.<br />

Ou melhor, tudo está. Nada do que há entre essas quatro paredes deveria estar aqui. Rimbaud? Ges-<br />

singer? Ela tem me investigado. Sabe dos meus passos. Copia meus projetos, mergulha nas minhas<br />

pesquisas. Uma espécie de idolatria. Uma idolatria insana. O que essa mulher quer de mim? Por que<br />

me persegue?<br />

Ouço um barulho atrás da cama. Meu coração torna-se célere – mais ainda. Deve ser ela.<br />

Prepare-se, Messina. Mas não é. De trás da cama, sai um cão que vem para cima de mim, o rabo<br />

abanando. Ele começa a me lamber.<br />

- Ei, garoto, como vai? Então é você que tem uivado todas essas noites?<br />

Parece que ele gostou de mim. Não sabia que dona Madalena tinha um cachorro. E eu que<br />

pensei que fossem lobos! Na coleira do cachorro há uma inscrição, um nome. O nome dele. Por<br />

Deus, o nome do cachorro é... RAUL!!!<br />

Alguém bate na porta. Olho assustado. É um dos jovens que mora no pensionato.<br />

- E aí, Messina. Vim pagar o aluguel.<br />

Ele me estende um dinheiro. Olho para ele, para o dinheiro, para ele novamente.<br />

- Por que está me dando isso?<br />

Ele faz uma cara estranha. Não mais estranha que a minha, imagino.<br />

- Ora, porque eu honro meus compromissos. – Ele soou cômico, como se quisesse fazer uma<br />

piada. Mas não rio. Deveria?<br />

Ele mantém a mão estendida. Situação embaraçosa. Raul, o cachorro, nos observa, curioso.<br />

Não apanho o dinheiro. Por fim, ele desiste e acaba colocando o dinheiro sobre a cama. Não me<br />

pergunta nada. Apenas me diz antes de sair:<br />

- Depois me dá o recibo, hein maluco. Vou cobrar.<br />

O tal Raul recomeça a me lamber. O dinheiro continua imóvel sobre a cama. Até parece pis-<br />

car para mim. O que está acontecendo? Alguém, por favor, me <strong>diga</strong> o que está acontecendo.<br />

Olho ao redor novamente. Então vejo. Um espelho ao lado do guarda-roupa. Não sei porque<br />

numa situação confusa como essa resolvo me olhar num espelho. Mas faz tanto tempo! Lentamente<br />

vou até ele. Um passo após outro. O Raul me segue, me lambendo. Depois de tanto tempo, vou me<br />

olhar num espelho. Será que isso poderá esclarecer alguma coisa ou será que ficarei ainda mais con-<br />

fuso?<br />

Quando meu olhar se choca com meus olhos no reflexo, sou instantaneamente petrificado.<br />

Meu organismo para. Coração, pulmão, o sangue em minhas veias. Não consigo me mover. Uma es-<br />

tátua no quarto de dona Madalena. Respire Messina, respire. Não consigo. Tente respirar, miserável.<br />

Eu não consigo. Se não respirar vai morrer. Não posso. Tento, mas não consigo. Vejo suor brotando


em meu rosto – a única coisa que se move em mim é este humor aquoso que desce pelo meu rosto.<br />

vida.<br />

Sou uma estátua que sua. Uma estátua apavorada diante da mais assustadora visão de sua<br />

No reflexo do espelho me vejo – o mesmo rosto de Lucas – e sobre minha cabeça, o horror...<br />

Sobre minha cabeça, há bem mais de uma dezena de serpentes furiosas.<br />

E a aterrorizadora verdade se estampa no meu rosto congelado, à medida que o elixir de mi-<br />

nha vida deixa o meu corpo.<br />

Eu sou a Medusa.<br />

Eu poderia estar num túmulo – cheguei bem perto disso após a parada cardíaca. Eu deveria estar<br />

num hospício – depois de tudo o que passei, me parece bastante justo. Mas, contrário a qualquer<br />

uma de minhas incisivas expectativas, estou na página de cultura do jornal de maior circulação no<br />

país. Está lá:<br />

“Sérgio Madalena Messina – o visionário da nova poesia brasileira”<br />

Com minha caneta BIC, apago o “Madalena”. Nominho ridículo esse!<br />

As visões de um poeta podem parecer bastante confusas. Quando o poeta é completamente<br />

louco – a Insanidade simiiforme –, bem mais. Mas a próxima canção soará bem melhor que a ante-<br />

rior. Um pouco mais de suavidade. Um pouco mais de elevação. Encarregar-me-ei pessoalmente<br />

disto.<br />

E a próxima canção há de narrar meus feitos heroicos. Eu encarei meu passado – houve um<br />

baque profundo –, mas as cortinas de meus traumas vieram ao chão.<br />

Suavidade. Sublime. E as cortinas dos meus traumas no chão.<br />

Uma infância difícil pode transformar uma personalidade. Pergunte-me. A resposta está nos meus<br />

olhos.<br />

Tornei-me um jovem agressivo. Pagar a todos com a mesma moeda ainda me parecia pouco.<br />

Quando cresci e me tornei professor de literatura e dono dum pensionato, isso se tornou ainda mais<br />

evidente. Eu oprimia os jovens, especialmente os que moravam no pensionato (e que me davam<br />

maior trabalho), porque via neles os mesmos zombadores de minha infância conturbada. Eles se<br />

vingavam de mim, à maneira deles. Chamavam-me de “dona Madalena” pelas costas. E por causa<br />

de minha índole agressiva – e meus cabelos longos –, me apelidaram de Medusa. Lembro-me muito<br />

bem de ouvi-los dizer, sem notarem minha presença:<br />

- A Medusa existe. E se chama dona Madalena.<br />

E caíam na risada.<br />

Por volta dessa época, houve um grande confronto no universo. EU SOU versus EU POSSO


SER. O que eu estava me tornando? O que havia me tornado? Meu desprezo gerava desprezo. Meu<br />

ódio produzia culpa. Envergonhei-me diante do que havia me tornado, contrariando todos os princí-<br />

pios que ouvira em algum lugar e isolara nos cantos mais recônditos de minha memória. Eu deveria<br />

lamentar profundamente o que havia me tornado. Eu deveria, e lamentei.<br />

eu mudei.<br />

MUDAR. Nada pode ser mais complexo para um poeta louco e agressivo. Mas eu tentei. E<br />

O processo de mudança, porém, gerou estranhos efeitos colaterais. De alguma forma, minha<br />

mente bloqueou o ser vil que eu fora e, do qual, nunca mais gostaria de me lembrar.<br />

Mudei-me para o quarto do fundo, por muito tempo abandonado. Reescrevi toda minha his-<br />

tória. Tornei-me outro. Um homem sem passado, sem memória... e sem culpa. Apenas flashes de<br />

uma infância conturbada. Tornei-me apenas o deprimente professor de literatura que sonhava em ser<br />

livre, e conquistar a paz. O que fui no passado se tornou dona Madalena; o que eu ainda gostaria de<br />

ser era Lucas. Minha mente confusa dividiu meu passado, meu presente e aquilo que eu almejava<br />

ser em três personalidades distintas. E eu acreditei nela.<br />

A partir de então, consegui conquistar a amizade e o respeito dos jovens do pensionato e dos<br />

meus alunos, apesar de minha visão pessimista do universo ao meu redor.<br />

A partir de então, dei os primeiros passos para estar na página de cultura do jornal de maior<br />

circulação no país.<br />

Colada num canto da parede, a figura de Rimbaud; abaixo, alguns de seus poemas. No outro canto,<br />

a figura de Humberto Gessinger e algumas de suas letras geniais. E no centro da parede, colei meus<br />

poemas, além de poemas e crônicas dos meus alunos.<br />

O que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger? A resposta é óbvia. Entre eles há um imen-<br />

so espaço a ser ocupado por mentes geniais, mas que, pela imbecilidade da contracultura, podem<br />

acabar sendo soterradas pelo impiedoso anonimato.<br />

O que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger???<br />

EU e VOCÊ!!!<br />

Estou diante do meu computador. Escrevo com bastante frequência ultimamente.<br />

Raul, o meu cachorro, está deitado ao meu lado. Ele não estava esfomeado quando o encon-<br />

trei. Isso significa que o alimentei; não me lembro disso, mas obviamente o alimentei em algumas<br />

de minhas recaídas meduseias.<br />

Tentei trazer o outro Raul, o rato, para esse quarto, mas não deu certo. O Raul tentou comer<br />

o Raul. Por pouco não vi meu camarada sendo massacrado pelos dentes afiados do meu cachorro.<br />

Melhor manter os dois separados. Há personalidades que sobrevivem apenas se mantidas a boa dis-


tância, como dona Madalena e Lucas. Mas eu ainda levo pão e queijo para meu camarada. Ele salti-<br />

ta e dá gritinhos de alegria quando me vê chegar. Só falta falar. Grande Raul!<br />

Mas eu falava sobre escrever. Enquanto escrevo sou tomado por algumas ideias. Como, por<br />

exemplo: e se eu resolvesse escrever a minha história, tudo o que passei, especialmente nos últimos<br />

meses? Valendo-me da liberdade de criação, eu exacerbaria alguns eventos, e ocultaria outros. In-<br />

ventaria um nome fictício. Enfeitaria, dissimularia. Uma ficção verdadeira, uma verdade fictícia.<br />

Mas não penso em escrever um livro. Minha história não encheria mais do que trinta páginas. Penso<br />

em algo menor. Talvez... um conto. E escreveria a história de tal forma que todos pensassem ser fic-<br />

tícia. Não seria tão difícil assim.<br />

Até pensei numa frase – a primeira frase. Seria algo como:<br />

“Se eu soubesse a porcaria em que iria me meter, teria dado um fim nessa história antes que<br />

ela começasse a ser escrita”.<br />

Parece-me bastante bom. Parece-me o suficiente. Mas até publicar esse conto, porém, farei<br />

segredo de todos esses acontecimentos. Segredo inviolável. Um segredo compartilhado apenas por<br />

mim, pelo Raul e pelo Raul.<br />

Para todos os efeitos, a aula está acabada.<br />

Dedicado à Cristiane Lima que, neste exato instante, está em algum lugar do planeta tentando sal-<br />

var os golfinhos.


LAMBORGHINI<br />

Enquanto despencava do 32º andar, Lamborghini se perguntava quem teria sido o miserável que o<br />

empurrara, covardemente, edifício abaixo. Pela fração de um instante, pensou em Helena. Mas ela<br />

não faria isso. É verdade que ele simplesmente a usara. Mas Helena tinha uma dívida com ele – ele<br />

salvara sua vida. Essa foi a conclusão a que ele chegou no vigésimo primeiro. No décimo sexto,<br />

lembrou-se de Samantha. Mas Samantha ainda era uma mulher sensível, e mulheres sensíveis não<br />

empurram homens do 32º andar, mesmo o tal homem sendo o dissimulado Lamborghini. Quando<br />

faltava menos de um andar para Lamborghini se encontrar com o chão, ele achou que o melhor a<br />

fazer era fechar os olhos, e pela primeira vez em sua vida, se resignar.<br />

Abriu a boca para se despedir do mundo que o acolhera e que alimentara sua ganância de<br />

um dia dominá-lo; e teria feito, se o seu rosto não tivesse se chocado (e se dilacerado) violenta-<br />

mente contra o concreto da rua Augusta.<br />

Três horas depois.<br />

- Tem certeza do que acaba de me dizer?<br />

- Como não teria?<br />

- Não consigo entender porque ele faria isso.<br />

- Você me perguntou o que aconteceu.<br />

- Por que seu noivo se jogaria do 32º andar?<br />

- Ele não era meu noivo.<br />

- Por que seu noivo se jogou daquele prédio?<br />

- Eu não sei.<br />

- Não está ajudando.<br />

- O que quer que eu <strong>diga</strong>?<br />

- A verdade.<br />

- Mas...<br />

- Temos uma garota na outra sala, e ela diz que ele foi empurrado.<br />

- Empurrado por quem? Não havia ninguém no apartamento, além de nós dois.<br />

- Algo me diz que está mentindo.<br />

- Mas, por que infernos eu mentiria?<br />

- Porque acho que você empurrou o miserável.<br />

Quinze minutos antes.


- Ele foi empurrado.<br />

- Quem o empurrou?<br />

- Eu não sei. Estava escuro.<br />

- O que você viu?<br />

- Eu já disse... inferno.<br />

- Tente se acalmar. Preciso saber detalhes do que viu.<br />

- Eu havia acabado de chegar. Entrei no apartamento. Não vi Lamborghini. Chamei por ele,<br />

mas não houve resposta. Imaginei que ele estivesse na cobertura. Ele costumava passar horas lá<br />

em cima. Então...<br />

- Então...?<br />

- Então...<br />

- O que viu, Samantha?<br />

- Então, eu subi. E vi tudo. Estava com uma capa preta... estava com uma capa preta e o<br />

empurrou... Ele não teve chance.<br />

- Quem empurrou? Era homem ou mulher?<br />

- Difícil definir. Acho que nem uma coisa nem outra.<br />

- Como assim?<br />

- Um anjo.<br />

- Um anjo?<br />

- Sim. Um anjo empurrou Lamborghini.


31º ANDAR<br />

A boca da safada fedia a esgoto. E se não fosse minha prática em beijar bocas tumulais de garotas<br />

vazias buscando um sentido na vida, confesso, teria vomitado tudo o que comera naquela noite.<br />

Essa foi minha primeira lembrança, em minha queda inevitável, meu fôlego a poucos segun-<br />

dos de cessar, fim previsto. Qualquer coisa pode ser prevista numa vida monótona. Mas não a mi-<br />

nha. Pelo menos, penso que não. Tento recobrar toda minha memória, entender as entrelinhas, cap-<br />

turar alguns sentidos para que a equação me ajude a entender porque estou caindo desse prédio, se-<br />

gundos após sentir duas mãos em minhas costas, me empurrando. Ah, a queda inevitável. O fim ine-<br />

vitável.<br />

Não deve ser fácil narrar a própria história menos de dez segundos antes de morrer. Para ser<br />

honesto, não sei quanto tempo tenho até me arrebentar lá embaixo. Mas tentarei descobrir, no pouco<br />

tempo que me resta, porque estou aqui. Não digo que o farei, porque nunca fiz isso em minha vida –<br />

afinal, nunca fui covardemente empurrado do alto de um prédio de 32 andares.<br />

30º ANDAR<br />

Vamos, portanto, aos fatos. Não tenho muito tempo.<br />

Fato um: meu nome é Lamborghini.<br />

Fato dois: a boca da safada fedia a esgoto.<br />

Onde eu estava? Lembre-se.<br />

Respiro fundo. É bom ser quem eu sou. É bom estar onde estou. Não necessariamente na co-<br />

bertura do meu prédio, mas em minha posição de vantagem sobre os vermes que me rodeiam. Uns 7<br />

bilhões. 7 bilhões de vermes com suas vidinhas insuportáveis, tentando sorrir. As pessoas sempre<br />

procuram motivos. Motivos para tudo. E para o nada. Nadam em falso. Falsificam suas experiênci-<br />

as, como se pudessem reescrever a cada dia, uma nova história. As pessoas não buscam mais a feli-<br />

cidade. Desistiram dela. Ou será que a felicidade desistiu das pessoas? Tanto faz. O fato: pessoas<br />

buscam apenas sensações. Um novo motivo para continuar. Não almejam mais viver pra sempre.<br />

Querem motivos para chegarem vivas até amanhã. São inseguras. Desesperadas por uma mão que<br />

as conduza, enquanto assistem o noticiário da televisão. E se mascaram atrás de gargalhadas, e das<br />

sensações que constroem como castelos de areia a beira do mar. Vivem em estado vegetativo. Esta-<br />

fados e inativos. Querem apenas curtir.<br />

Então, curtam-me agora, canalhas. Chegou a minha vez.<br />

De repente, um baque em minhas costas. Sem ruídos, sem precedência qualquer. Apenas<br />

aquele baque. Percebo: duas mãos. Mãos assassinas. Certeiras. Rápidas. Mãos rápidas de alguém rá-<br />

pido. Sou precipitado a frente. Droga. Agora ferrou. Tento me agarrar a alguma coisa. Mas não há<br />

nada. A não ser... ar. Será que dá pra impedir a queda dum corpo de 75 quilos agarrando o ar? Tarde


demais. Daqui pro chão são alguns andares. Alguns segundos para descobrir quem resolveu ferrar<br />

com minha vida.<br />

28º ANDAR<br />

Sou o arremessado. O vazio que você sempre evitou.<br />

Fato um: acabo de ser empurrado da cobertura do prédio onde moro.<br />

Fato dois: tenho menos de 10 segundos para descobrir quem fez isso.<br />

Algo me diz que a resposta à questão não está aqui, nos últimos minutos, ou na última hora que pas-<br />

sei em meu apartamento. Recapitular do final pode parecer inteligente. Mas às vezes, pode ser exa-<br />

tamente contraproducente. A ordem correta das coisas nos faz fluir melhor os detalhes. E é nos deta-<br />

lhes que a maioria das questões se resolve. Potências são derrubadas, nomes são louvados, amores<br />

são rompidos – tudo por detalhes. Assim, melhor escolher uma sequência melhor. Primeiro, aperto o<br />

stop. Depois o play. A resposta deve estar lá, pouco depois de toda essa porcaria começar. Depois<br />

que dei os primeiros passos para conquistar o mundo. E não preciso voltar tanto tempo assim. Na<br />

verdade, o que me difere de humanidade é justamente isso: faço o que tem de ser feito antes que<br />

você conceba ser isso possível.<br />

Melhor voltar ao começo.<br />

Então, volte...<br />

Volte...<br />

Volte.<br />

26º ANDAR<br />

Na tela do computador, ela parece perfeita. As pessoas costumam ter essa aura enganosa quando<br />

apenas construção “byteana”. Seu sorriso transmite plenitude, alvor juvenil. Não é possível sentir a<br />

propagação fétida do seu hálito podre. Sem defeitos. Sem danos. Sem poluição. Abaixo da foto, os<br />

dizeres: “Eu, sorrindo”.<br />

- Gosto do seu sorriso – sussurro.<br />

- O que disse? – pergunta a voz lúgubre da mesa ao lado.<br />

Minimizo a janela do meu navegador. Olho para ela. Minha subalterna. Os cabelos carrega-<br />

dos de tufos brancos, as narinas protuberantes parecendo dois fornos, um buço hitleriano, e uma his-<br />

tória de falta de amor.<br />

Saco meu sorriso mais arrebatador e disparo, lenta e apaixonadamente:<br />

- Gosto do seu sorriso.<br />

Ela mostra as dentarias (não posso chamar aquele arreganhamento dos infernos de<br />

“sorriso”). Fica vermelha. Vergonha? Excitamento? Pobre... pobre... Esqueci seu nome. Pobre mu-


lher, inamável. Ela volta ao seu trabalho. Eu, não. Não faço porcaria nenhuma durante a maior parte<br />

do dia. Afinal, qual seria a razão de eu deter o título de chefe do departamento? Por isso, maximizo<br />

a tela do computador. Novamente, o sorriso. Quem diria?, bafo tumulário!!! Alguns cliques e saio<br />

do seu álbum. Agora, resolvo olhar o nome dela – numa lista de importância, o nome sempre fica<br />

em último lugar. Junto com sua história e interesses pessoais.<br />

24º ANDAR<br />

Fato primeiro: ela é filha do presidente da companhia.<br />

Fato último: seu nome é Helena Boaventura.<br />

Se você me perguntar quem eu sou, tenho a resposta pronta: sou o cara que vai te ferrar. Não uso ar-<br />

mas de fogo, jamais dei um soco em minha vida, e tampouco sei qual o gosto do sangue. Mas tenho<br />

as duas únicas armas que preciso para derrotar o que se postar diante de mim: lábia e inteligência.<br />

Conquistar o mundo pode parecer uma louca pretensão. Mas sou louco e pretensioso. Por-<br />

tanto, cale a boca, e aprenda. Esse mundo está cheio de vermes. Rastejantes ou não, não passam de<br />

vermes. E eu costumo dividi-los em dois tipos. Nada mais do que isso. Os resistentes e os subordi-<br />

nados. Os últimos trocariam suas almas por um prato de comida. E tenho mais do que um prato de<br />

comida a lhes oferecer. O outro grupo compõe-se dos resistentes; ao menos, nominalmente. Digo<br />

“nominalmente” porque são fracos ao extremo. Pessoas que confiam todo seu universo à tecnologia,<br />

fazendo transações comerciais e bancárias, preenchendo cadastros, expondo suas preferências –<br />

tudo ali, na internet. Rendem-se diante da oportunidade de mostrarem quem são, onde estão e por-<br />

quê estão. Para mim, tolos vulneráveis. Conheço seu ponto fraco, e posso derrotá-los de mãos vazi-<br />

as. Seria até deprimente se eu, da forma como só eu sei, não pudesse tirar proveito dessa ignorância<br />

enraizada.<br />

É por isso que digo: sou o cara que vai te ferrar.<br />

Sou um programador. Correção: sou O Programador. Qualquer imbecil me julgaria conven-<br />

cido, megalomaníaco, o narcisista da hora. Mas, não se conquista o mundo com megalomania. Por<br />

isso, não perco meu tempo com espelhos, diários, ou plantações de árvores. Estou pouco me lixando<br />

para consciência, ou agrados pessoais. Tenho um objetivo, e não permito que sentimentos deturpem<br />

minha concentração. Tudo o que faço, sei, concluo, planejo pode ser colocado em algumas linhas no<br />

computador. Por isso, me apego apenas a fatos.<br />

Sou O Programador. Não sei se o melhor do mundo. Para ser sincero, não o melhor. Mas o<br />

mais esperto. E isso significa tudo, meu caro. Enquanto as pessoas tentam colocar em prática tudo o<br />

que aprenderam na escola, perpetuando a ignorância, eu sempre tentei provar que estavam errados.<br />

E o que aprendi? Programas recebem dados, e dados, e dados, e dados. E o que eles fazem com es-<br />

ses dados? Eu te digo: me dão o poder que necessito para dominar o mundo.


23º ANDAR<br />

Fato primeiro: eu sei como conquistar o mundo.<br />

Fatos consecutivos: ninguém jamais concebeu ser isso possível.<br />

Trabalho em uma das maiores fabricantes de componentes eletrônicos do mundo. Chipsets. Chips.<br />

Cada chip, um programa, um firmware. Eu desenvolvo firmwares. Os componentes eletrônicos da<br />

empresa onde trabalho estão em computadores, monitores, scanners, impressoras, telefones. Os<br />

componentes estão lá. E eu também. Prestou atenção? E EU também. Isso resume tudo. Foi ali que<br />

consegui instalar meu vírus, meu primogênito. Do firmware pro software. A vantagem: firmwares<br />

são menores que softwares. Eficientes, e pequenos. Assim nasceu meu filho: pequeno e infernal de<br />

eficiente. A maneira do vírus trabalhar, recolhendo e transferindo dados sem intervenção do usuário,<br />

não foi capturada como ameaçadora pelos antivírus, no princípio. Ele fazia também o caminho in-<br />

verso. Do computador, o vírus infectava chips de monitores, impressoras, webcams, TVs e celula-<br />

res. Recolhimento de informações. E transferência. Nos meus servidores, outros vírus, os irmãos,<br />

começaram a montar os dossiês. Desde o momento em que o computador é ligado, ele captura tudo.<br />

E montam dossiês de pessoas, empresas, governos. Interpretação de cada tecla digitada. Posts, co-<br />

mentários, avaliações. Códigos, senhas, contas bancárias, lugares favoritos, bebida favorita, o próxi-<br />

mo encontro. Em resumo, tudo. Um filho da mãe genial. Através dos dossiês, eu poderia saber o que<br />

quisesse sobre qualquer pessoa que tivesse uma vida virtual. O número dos seus documentos, suas<br />

senhas, suas últimas férias, o nome do seu cachorro.<br />

21º ANDAR<br />

Em uma semana, milhões de casa infectadas. Ao final de dois meses, bilhões.<br />

Um filho da mãe genial.<br />

Quando conheci Helena percebi que ela tentava esconder a morbidez de sua vida atrás daquele sor-<br />

riso. Qualquer otário se enganaria – todos se enganavam – mas não eu. Lábia e INTELIGÊNCIA,<br />

lembra? A mim não enganam. A linha do sorriso denuncia tudo. Aposto que a vaca já havia se entu-<br />

pido de comprimidos e vodka depois de esgotar-se na busca de um sentido na vida. E depois vinha<br />

com aquela porcaria de sorriso mascarando toda a angústia dos infernos que mastigava cada órgão<br />

seu.<br />

- Prazer, sou Helena Boaventura. – Ênfase no sobrenome. Filha do dono da empresa. Faz<br />

questão de deixar isso claro. Um sorriso falso e um sobrenome – seu escudo é só esse.<br />

Beijo sua mão. Pele delicada. Alva. Tênue como o véu do horizonte. Branca como o mármo-<br />

re de um mausoléu. Vontade morder. Um miserável como eu tem tempo pra tudo. Até pra pensar<br />

coisas como essas. Mas acho que ela ia gostar. Ela tem cara de quem ia gostar. Pra quem já deve ter


tentado se matar uma dúzia de vezes, uma mordidinha na mão poderia até lhe parecer excitante. Ou<br />

talvez não. Nesse caso, seria um tapa na cara, alguns xingamentos, e uma carta de demissão na mi-<br />

nha mesa, no dia seguinte. Melhor deixar a mordidela pra lá.<br />

- É um prazer conhecê-la! – Prazer o cacete! – Me chamo Lamborghini. – Na verdade, me<br />

chamo Pedro Lamborghini. Mas meus pais haviam comido estrume no dia em que escolheram esse<br />

nome. Melhor me esconder atrás do sobrenome, como a Srta. Adeus Mundo Cruel me ensinou.<br />

Estamos numa festa na empresa. Odeio festas. Não há sinceridades em festas. Ali, tudo é<br />

obrigatório. Obrigatoriedade. Você é obrigado a um milhão de coisas numa festa. Obrigado a cum-<br />

primentar e conversar com pessoas que odeia. Obrigado a comer comida com gosto de podre. Obri-<br />

gado a sorrir, e sorrir e sorrir. Festa é ditadura.<br />

Nessa, só zumbis. Zumbizaiada pra tudo quanto é lado. Velhos acionistas da empresa. Por<br />

Deus, como conseguem caminhar? Deve ser alguma injeção. Essas múmias mal conseguem respi-<br />

rar. A pele ressequida e flácida pende ao sabor do vento. Sensibilidade zero, no mínimo. Os corpús-<br />

culos de Vater-Pacini, de Meissner, de Krause já se aposentaram há décadas. Ninguém se surpreen-<br />

deria com algum infarto durante aqueles momentos lânguidos da festa sem graça. E bota sem graça<br />

nisso. Zumbis por todos os lados; eles e seus descendentes, além de meia dúzia de puxa-sacos. Trin-<br />

ta e sete, no total. Trinta e sete lacaios se atirando sobre comida pobre. Hoje, em especial, lagosta.<br />

Nessas horas, perdem a classe. Perdem a classe, mas mantém a classe. Deu pra entender? Pelo me-<br />

nos, eles tentam. Avançam sobre as carcaças como selvagens, mas ainda mantém aquele ar de supe-<br />

rioridade. O que seria um zumbi com ar de superioridade? Venha até essa festa, e eu te mostro.<br />

Helena olha ao redor. Quer se certificar de que é notada. Quem não a notaria? Bonita até<br />

cansar. Mas ela é insegura. Como todas as de sua laia. Precisam da reafirmação de que são amadas e<br />

invejadas a cada minuto. Sempre assim. Se a regra é quebrada, se por um instante, a idolatria desa-<br />

parece, elas se desesperam. Acham que perderam toda a supremacia. Aí uma infeliz dessas se atira<br />

sobre cartelas de duloxetina, citalopram, reboxetina e uma garrafa de uísque ou vodka pra ajudar<br />

toda essa porcaria a descer. Até alguém da família encontrar a infeliz desmaiada numa poça de vô-<br />

mito, decorados com restos da lagosta e com manchas de um sangue quase preto, e acionar uma am-<br />

bulância. Os médicos de plantão adoram atender casos assim. Recebem uma fortuna para calarem a<br />

boca, e não divulgarem que o filho ou filha do magnata bom do pedaço, tentou dissolver o estôma-<br />

go com um coquetel capaz de derrubar um elefante. Um atendimento desses, e o cara garante férias<br />

de um mês na Europa para toda a família.<br />

- Esse ar me sufoca – Sou eu quem fala. – Preciso de ar. Me acompanha?<br />

Ela entende. Quero dar uma volta lá fora, perto da piscina, longe das múmias. Não sei você,<br />

mas odeio paquerar uma garota cercado por zumbis.<br />

Ela pensa antes de aceitar. E diz um “tá” ocasional, bem banal. Besteira! Aceitou logo de


cara, de primeira, e fica fazendo ceninha pra parecer difícil. Como se fosse uma garota segura. Sei.<br />

Segura. Tá bom. As doxepinas e maprotilinas no banheiro dela que o <strong>diga</strong>m. Está nos olhos dela.<br />

Anormalidade dos neurotransmissores monoaminérgicos. E ainda dá aquela balançada nos cabelos,<br />

finge pensar, e diz: um “Tá”, com aquela languidez toda. Vontade socar o estômago.<br />

Lá fora. Eu e ela. Sós. Todos estão lá dentro. Lógico. A comida foi servida. Os setritívoros e<br />

necrófagos se posicionam. Aqui fora, o vento bate em seus cabelos. Os cabelos de Helena dançam<br />

ao ritmo da brisa. Revelam seu pescoço branco. Penso em morder. De novo. É que o negócio é con-<br />

vidativo pra burro.<br />

E então começa o jogo. Aquela porcaria toda que você só aprende na prática, embora alguns<br />

teimem em dizer que é possível estabelecer regras e procedimentos. Só pra arrancar grana dos trou-<br />

xas. Estou falando sobre conquistar uma mulher. É difícil definir isso. Mas resumindo, passe segu-<br />

rança, e ela estará no papo. Mas precisa ser sincero. Se você for um cara inseguro, então vá morar<br />

sozinho e cuidar de porcos. Ou qualquer porcaria do tipo. Você é seguro ou não é. Isso aí não se<br />

aprende. Você pode aprender como revelar sua segurança. Mas aprender a ser seguro não dá. Se<br />

você é um cagão, se feche em seu quarto e vá feder sozinho. É o melhor que pode fazer, pode acre-<br />

ditar.<br />

Onde eu estava? O jogo. Ah, o jogo. É uma amolação do cacete. Cheio de etapas. Odeio eta-<br />

pas. As pessoas devem se achar eternas. Sempre achando que podem adiar o que querem agora.<br />

Tudo pela causa do que chamam de “clima”. Por que não ser mais direto? Realmente, não entendo.<br />

Mas, enfim, a porcaria do jogo funciona assim:<br />

Você tem que fazer perguntas para ela e sobre ela. Para ela se sentir importante. Faça isso,<br />

ou a infeliz vai se entupir de inibidores de monoaminoxidase. Quando ela responder, finja estar inte-<br />

ressado. Use e abuse do “sério?”. Levante as sobrancelhas sempre. “Sério?” sem sobrancelhas er-<br />

guidas, não é sério. E bote ela pra falar. Incentive a cidadã a falar. Elas gostam disso. Falam até pelo<br />

rabo. Coloque-a no lugar que ela quer estar: no topo, mesmo que você a deseje no chão enquanto<br />

limpa seus pés empoeirados nas costas dela. Depois, revele algo a seu respeito. Algumas de suas<br />

consecuções. Mas não deixe ela perceber que você faz isso de propósito. Só perdedores tem essa ne-<br />

cessidade. E mulheres fogem de perdedores como eu fujo de idiotas como você. Entendeu?<br />

Eu passei por todas essas etapas com Helena. Deu um sono do cacete. Mas acabou. Ela me<br />

enlaça com seus braços. Sinto o perfume dela. É almíscar. Ela passou demais. Garotas como Helena<br />

sempre exageram no perfume. Tem medo de errar na dosagem. Aí socam meio litro, pra garantir.<br />

Mesmo porque elas gostam de deixar um corredor odorífero pra cambada de idiotas se lembrarem<br />

delas meia hora depois de deixar o aposento. Cítricos, florais aldeídos, chipres florais, aromáticos<br />

secos e frutados. O carimbo mais sedutor que encontraram para se gravar na mente dos seus obser-<br />

vadores. Como se Helena precisasse disso! Helena entalha-se na memória de qualquer um só com


aquele rosto. E aquele pescoço. Ah, que pescoço! Um dia ainda pego uma faca e passo bem rente,<br />

um ou dois pedacinhos, com limão. Deve ser o inferno de bom!<br />

- O que disse? – Ela pergunta. Eu não disse nada, e ela manda um “o que disse?” pra fazer<br />

charme antes de eu beijá-la. Estamos com os lábios quase em contato. As mulheres sempre esperam<br />

uma frase de efeito antes do beijo. É por causa do tal “clima”.<br />

meus.<br />

18º ANDAR<br />

Adivinha o que solto?<br />

- Disse que sou um cara de muita sorte em ter os lábios mais quentes desse mundo sobre os<br />

Ela se derrete. Quem não se derreteria?<br />

Nessa noite, ela vai deixar as doxepinas em paz.<br />

Ah, a porcaria do médico que adie as férias pra Europa.<br />

Vamos aos fatos.<br />

Quando Helena me perguntou “O que disse?”, aquela proximidade de fazer inveja a qual-<br />

quer marmanjo, tive a impressão de ter acabado de abrir um túmulo. Algo assim, simples e direto.<br />

Chego num cemitério, escolho um túmulo vedado há uma semana, abro e respiro fundo. Deu pra<br />

entender? A língua dela devia ser um cadáver. Ou o estômago, sabe-se lá. Em suma: decomposição.<br />

O meio litro de almíscar no corpo dela já não fazia mais efeito algum. Só aquele fedor cadavérico<br />

no ar. E aquele gosto na minha boca. Enquanto a beijava, tive impressão que os vermes saltavam da<br />

língua dela para a minha. Já se perguntou qual é o gosto de vermes vivos? Eu te digo: é azedo.<br />

- O que você deseja? – Ela pergunta, momentos depois, eu atrás dela, contemplando a pisci-<br />

na. Vira essa privada que você chama de boca pra lá, dona.<br />

- Agora, amanhã ou no futuro? – Eu.<br />

- E amanhã não é futuro? – Me encurrala, sorridente.<br />

- Hum. Garota esperta. Ponto pra você. – Ela se remexe. É só elogiar, e elas se remexem.<br />

Anote isso. Se deu uma remexida, tá no papo. Do contrário, caia fora. – Bom, então preciso ser mais<br />

objetivo. Agora eu quero aproveitar esse momento sublime com uma garota linda, interessante e es-<br />

perta que acabo de conhecer – ela se remexe –, amanhã meus planos envolverão apenas o objetivo<br />

de dar a essa garota a noite mais linda com que já foi presenteada – ela se remexe de novo –, e no<br />

futuro, beeeem futuro... quero conquistar o mundo.<br />

Acabei soltando essa. Bastante desproporcional à conversa. Mas fazer o que? Quando vi, já<br />

tinha falado. Embora pudesse soar como uma frase imbecil, era, no final das contas, a pura verdade.<br />

Mas ela entenderia de uma de duas formas: ou acharia que eu estava fazendo graça, ou que usava de<br />

algum simbolismo. Acho que ela entendeu a segunda opção, afinal, arrematou:


- Ah, eu quero conquistar a Lua. – Ela se vira para trás para me encarar. Tranco a respiração.<br />

– Se me trouxer a Lua, eu sou sua. – De onde ela tirou essa pérola?<br />

Sorrio. Respiração trancada. Concordo com a cabeça, um sorrisinho maroto que só eu sei fa-<br />

zer. Ela se arrepia, e volta a olhar pra piscina. Fuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu... Santo ar!<br />

Daqui pra frente, é só descida. E não estou falando da queda que estou tendo. Me refiro ao<br />

jogo da conquista: a parte mais difícil já passei. Agora é só administrar. Como se administra uma re-<br />

lação? Deixo essa pra próxima, embora não haverá próxima. A armadilha estava posta. Eu tinha a<br />

filha do presidente da companhia em minhas mãos. E com a minha promoção, eu estaria lá dentro,<br />

bem lá, na cripta dos deuses, para disseminar o vírus que colocaria todos os idiotas do mundo aos<br />

meus pés.<br />

16º ANDAR<br />

Tive acesso ao banco de dados da empresa, dois dias antes de conhecer a mansão de Helena. Eu era<br />

o chefe do departamento. Mas isso não significa que eu pudesse fazer o que bem entendesse a hora<br />

que bem quisesse. Um dia eu ainda chegaria a isso. Faria o que bem quisesse com qualquer coisa. O<br />

dono do mundo. Mas ainda não. Não ainda. Havia horários. Estatutos. Regras. E regras sempre que-<br />

bram a genialidade de qualquer um. Eu não podia estar ali, naquele horário. Ainda mais sozinho, al-<br />

tas horas. Alguém me viu. Alguém me vê. Quem é o alguém? Já o vi antes, mas não sei o seu nome.<br />

O nome é o último item numa lista de importância, lembra-se? Mas é alguém de autoridade lá den-<br />

tro. Se não fosse, não me questionaria. Alguém de autoridade. Mas um puxa-saco. Esse mundo está<br />

cheio dessa raça maldita. Pessoas que não conseguem nada por esforço próprio. Pessoas assim em-<br />

brulham o meu estômago. E isso não é força de expressão.<br />

Ele para ao meu lado. Eu, sentado em frente ao computador. Coloca a mão na cintura. Postu-<br />

ra feminina. Usa um terno que custa metade do meu salário. Pelo visto andou puxando muitos sa-<br />

cos. Sacos enrugados de zumbis com 80 anos de idade. Vida inútil! Se eu tivesse uma vida dessas,<br />

cortava os pulsos. E deixaria um bilhete: “Não se preocupem. Não farei falta alguma”. Mas esse aí<br />

ainda não deu uma boa olhada no espelho. Se o tivesse feito, já teria virado comida de verme. Por<br />

isso, tem a imponência em cada célula do corpo, enquanto fica com aquela mãozinha na cintura es-<br />

perando a resposta à sua pergunta: “Que faz aqui?”. Adivinha se fico tenso. Um homem com a mi-<br />

nha capacidade, tenso? Tá bom. Lido com gente dessa laia com a mesma facilidade que bocejo.<br />

Veja como funciona.<br />

Não olho para ele. Se alguém tenta se impor sobre você, basta não olhar pro miserável. Isso<br />

é o suficiente para desarmar alguém: ignorá-lo. Mas tem vida curta. Não se pode ficar ignorando a<br />

pessoa, tão simplesmente. Se demorar mais do que alguns segundos, ela reage. Então é preciso uma<br />

segunda atitude. Faça o que faço:


- Que inferno – grito. – Olha a que aprontaram nessa merda.<br />

Intempestividade, amigo. Isso desarma qualquer um. Mas é preciso dizer em voz bem alta.<br />

Nada de resmungos. Aposto que se um cara tiver uma arma apontada pra sua cabeça, vai pensar<br />

duas vezes antes de puxar o gatilho. Exasperar em momentos inesperados, quando ninguém age as-<br />

sim, deixa qualquer um paralisado. Percebo pelo canto dos olhos o engomadinho engolindo em<br />

seco. Chega ser engraçado. Mas não rio. Senão, o rito se perde.<br />

Levanto-me e olho pra ele. Ergo um dedo.<br />

- Essa porcaria vai feder, amigo. E quando isso acontecer, o meu estará fora da reta. Isso eu<br />

garanto. – Começo a sair. Ainda paro e me volto para ele. – A propósito, Samantha citou o seu<br />

nome.<br />

- O quê?<br />

Não respondo. Apenas saio.<br />

Se você conhecesse Samantha, e eu te dissesse que ela citou seu nome, você também teria<br />

um súbito aceleramento do coração e diria um “O quê?” boçal, como o escroto ali. Coloque Helena<br />

e Samantha lado a lado, e me peça para escolher. A senhora de uma dúvida.<br />

Com essa frase, me elimino da memória do idiota. Ele nem vai se lembrar que eu existo.<br />

Pelo menos por algumas horas. Samantha citou o nome dele. Bem, na verdade, Samantha nem sabe<br />

que esse ser um dia foi cuspido junto com placenta por uma infeliz mulher. Mas a frase vai deixar o<br />

idiota pensando no que a principesca Samantha teria dito a seu respeito. E logo logo vai começar a<br />

dar asas à sua imaginação, alimentando desejos secretos. Até a madrugada, já vai se imaginar acari-<br />

ciando os cabelos daquele monumento de mulher, enquanto trocam juras de amor. Aquele é exata-<br />

mente o tipo de cara que só consegue mulher enquanto sonha ou delira. Mulheres bonitas não deve-<br />

riam sequer olhar para caras assim. Um “oi” e os idiotas já acham que a garota está apaixonada.<br />

Saio, sem dizer mais nada. Escapei. É assim que um vencedor age. É assim que alguém que<br />

quer dominar o mundo deveria agir. Qualquer perdedor ficaria urdindo desculpas, tecendo argumen-<br />

tos, propondo subornos. Bobagem! Um homem que deseja conquistar o mundo não se perde com<br />

coisas assim. Prefiro gastar meu tempo matando uma mosca do que ficar barganhando com um en-<br />

gomadinho daquele.<br />

13º ANDAR<br />

Por falar nisto, naquele hora vi uma mosca sentada sobre a parede branca. Eba!!!<br />

Samantha mordeu os lábios. Que inveja!<br />

Almoçávamos num restaurante próximo a empresa. Ela e eu. Eu e ela. Não era exatamente<br />

um almoço pra saciar a fome. Estava mais para um almoço de negócios. Encher a barriga era só o<br />

pano de fundo. Samantha cuidava do dinheiro da empresa. O que entrava, o que saía. Logo, era a


máquina da empresa. E uma senhora de uma máquina!<br />

- Desenvolver um sistema de transferência de informações entre chips a esse custo, me pare-<br />

ce bastante excessivo. – Se você pedir um centavo pra Samantha, ela vai chiar. Faz parte do jogo.<br />

Ela precisa reclamar. É paga pra isso.<br />

- Eu pensaria o mesmo se não recuperássemos esse valor em dois meses.<br />

- Você me parece otimista demais.<br />

- Não sou emotivo, Samantha. – Era a verdade. – Nem sou um cara ganancioso – uma se-<br />

nhora duma grande mentira. – O que estou te dizendo é com base no estudo minucioso que nós rea-<br />

lizamos do mercado. Um novo firmware para gerenciar as informações relevantes e irrelevantes da<br />

BIOS, é tudo o que os equipamentos estão precisando. Fizemos pesquisas junto às grandes corpora-<br />

ções, e posso te garantir: vai vender como água.<br />

Ela morde o lábio de novo. Podia deixar um pedaço pra mim, gulosa egoísta.<br />

Pensa. Ela concorda comigo. Mas isso não é suficiente. Ela pensa em argumentos porque<br />

precisa argumentar com os acionistas da empresa. Por isso, fica ali, olhando para o nada. Então dá<br />

uma garfada. As pessoas precisam comer para pensar. Eu sei disso. O ponto fraco de 100% da hu-<br />

manidade: estômago. Ela mastiga como se estivesse sendo filmada. Cada mastigada é cinematográ-<br />

fica. Daria para tirar uma foto, emoldurar, e colocar na estante da sala. E todos a olham com admi-<br />

ração. Eu também, como não? Mas não me apaixono. Nem por ela, nem por Helena, nem por nin-<br />

guém. Nunca estive apaixonado. Isso é para perdedores que precisam preencher vazios no interior.<br />

Aposto que Samantha não caga com tanto estilo quanto mastiga.<br />

Depois de outra sessão de garfadas e mastigadas sublimes, ela arremata:<br />

- OK. Vou apresentar essa decisão ao conselho.<br />

- Será que eles vão arrumar algum problema?<br />

- Não. – Ela sorri. Com aquele sorriso, ela conquistaria o título de miss-qualquer-porcaria<br />

em qualquer canto desse mundo. – A linha dura do conselho, sou eu.<br />

9º ANDAR<br />

Conheci o velho dela na velha mansão da velha capital. Tive essa impressão ao entrar: cheiro de<br />

mofo. Podia ser só impressão. Entrar em um lugar escuro que você sabe que tem mais de 100 anos,<br />

não causa uma impressão muito boa. Meu nariz ardeu com o cheiro. Vontade espirrar, adentrando<br />

aquele mausoléu.<br />

E o presidente da companhia se aproximou. Um passo. Outro. Mais um. Apoiava-se. Adivi-<br />

nha a cara que o velho fez ao me olhar de cima até embaixo. Te dou 10 horas pra pensar. Se tem<br />

uma coisa que odeio é ser examinado por alguém que entorpecidamente acredita estar acima de<br />

mim. Aquele corpo embalsamado que colocara Helena no mundo não era maior do que eu. Nem a


pau. Ele tinha apenas algo de que eu precisava. Mas isso não o faz melhor do que eu. Você não acha<br />

que o padeiro é superior a você apenas porque quer algo dele. A gente sempre precisa algo de al-<br />

guém. E o que eu precisava daquele velho era um comunicado à empresa: “Deixe ele entrar”. Sim-<br />

ples assim: entrar. Para que o plano desse certo, para que eu colocasse cada centelha no seu devido<br />

lugar, eu precisava ter acesso a todos os cantos da empresa. Especialmente, à área de testes. Eu pre-<br />

cisava mandar naquela porcaria, ou não chegaria a lugar algum.<br />

Enfim, o velho me encarou como se eu fosse um bom pedaço de carne pendurado no açou-<br />

gue da esquina. Olhos assustadores. Pode acreditar. Dava pra tirar uma foto, em close, e colocar no<br />

cartaz de algum filme de terror. Olhos empapados em sangue. Era algo assim. A tênue e cansada tú-<br />

nica conjuntiva revelava um sangue vivo louco pra romper as fronteiras e correr pelo seu rosto. A<br />

esclera era um mapa de vasos sanguíneos. E a íris era de um verde musgo aterrador. Não sei você,<br />

mas para mim, olhos verdes são olhos amedrontadores. Se eu fosse diretor de filmes de terror, colo-<br />

caria olhos verdes em todos os monstros. Ia ser um realismo dos infernos.<br />

Quando ele chegou aos meus pés com aqueles olhos canibais, voltou pelo mesmo caminho,<br />

subindo pelas pernas, até o tronco, e por fim, chegou aos meus olhos. Me encarou. Se apagarem a<br />

luz, eu saio correndo.<br />

- Quem é você, rapaz?<br />

Só pra zoar com o atrófico, comecei a examiná-lo, de cima até embaixo. Confesso que o que<br />

vi não justifica nem uma explanação. Se não fosse aquele terno de cinco mil dólares (o cara usava<br />

terno em casa?), não sei o que sobraria. Apenas uma pele desgastada e alvacenta (ou alvadia, ou al-<br />

bescente, ou albicante, ou qualquer outra porcaria que preferir). Sei que quando voltei a encarar os<br />

olhos aberrantes da monstruosidade, eles me fulminavam. Parece que ele não gostou da primeira<br />

impressão que teve do namorado da filhinha bafo-de-búfalo dele.<br />

Helena se apressou em me apresentar:<br />

- Papai, esse é o meu namorado, que lhe falei. Pedro Lamborghini.<br />

Que “Pedro”, sua maluca?<br />

- Ora, ora. – Ele suspirou umas cinquenta vezes antes do “ora, ora”, recuperando o controle.<br />

Acho que só não voou no meu pescoço porque não conseguia sequer ficar de pé. – Não me lembro<br />

de tê-lo visto na empresa. Qual o seu departamento?<br />

- Programação.<br />

- Hum. O chefe?<br />

- Em pessoa. – Tentei sorrir, mas ele não devolveu nada.<br />

- Pois bem, Pedro, sente-se.<br />

Ergui um dedo enquanto o velho se sentava. Acho que ele não conseguia ficar dez minutos<br />

de pé. Foi o que imaginei.


- Meu nome é Lamborghini.<br />

- Pedro Lamborghini?<br />

- Pode me chamar só de Lamborghini. – Sorrindo.<br />

- Pois bem, Pedro, quais são suas intenções com minha filha?<br />

Quase ri. Só podia ser provocação. Um velho que faz uma pergunta dessas tá pedindo uma<br />

gargalhada pra ecoar naquela catacumba por duas horas. Seja honesto: quem seria sincero ao res-<br />

ponder a uma pergunta dessas? O que ele queria que eu dissesse? Que minha intenção ao namorar<br />

Helena é conquistar a confiança dele, um cargo de chefia do departamento de testes, produção e ex-<br />

pedição, e, se sobrar tempo, tentar arrancar um pedacinho da orelha da garota com uma dentada?<br />

“Quais são suas intenções com minha filha?” As pessoas gostam de perder tempo com bobagens.<br />

Essa é a verdade. O que acha que respondi pro velho? Abri um baú na minha cabeça que guardo<br />

com muito carinho, e que tem um rótulo escrito: “Insinceridades”. E desfilei uma idiotice atrás de<br />

outra, sobre amar a garota, cuidar dela, respeitá-la, noivar, casar, e todas outras baboseiras que os<br />

devoradores de garotas ingênuas estão acostumados a dizer.<br />

Ele não pareceu acreditar. A linha do sorriso denunciou isso. Os pais nunca acreditam na boa<br />

intenção de caras que colocam as mãos em suas filhinhas. Para eles, o pretendente é apenas um pér-<br />

fido sacana que só quer se aproveitar da garota, e usá-la como troféu enquanto desfila, exibindo-a<br />

sob o rótulo: “Cacei, e levei”. E não é que os filhos da mãe estão cobertos de razão?!?<br />

Uma hora depois, e ele já havia me desgastado com milhares de perguntas. Assim que a mú-<br />

mia saiu da sala, se amparando em cada móvel, Helena disse:<br />

7º ANDAR<br />

- Papai gostou de você.<br />

Se aquilo é gostar, quero que o velho me odeie com ódio mortal.<br />

“Quais são suas intenções com minha filha?”<br />

- Do que está rindo, Lamborghini?<br />

O departamento de testes possui um chefe. O departamento de produção possui um chefe. O depar-<br />

tamento de expedição possui um chefe. E eu sou o chefe de todos eles. Na verdade, esse cargo não<br />

existia. Mas depois de usar minha lábia (e isso eu tenho de sobra) pra cima do velho “sogro” conse-<br />

gui convencê-lo, e consequentemente aos acionistas, de que essa seria uma atitude inteligente se de-<br />

sejassem aumentar os lucros. Fale em aumentar os lucros, e consiga qualquer prova de que está em-<br />

basado, e terá o que quiser de qualquer imbecil.<br />

Você sente o poder, quando tem o poder. Não é explicável. Apenas é o que é. Uma profusão<br />

de sentimentos e sensações. Não é explicável. E foi o poder que me invadiu quando assumi o con-<br />

trole dos departamentos. Eu havia criado o vírus. Implantei-o nos sistemas. E Samantha conseguiu a


aprovação para a produção e distribuição do novo firmware. Uma coisa era certa: o vírus faria o ser-<br />

viço dele. Mas ele precisava sair da companhia direto para os computadores dos meus futuros escra-<br />

vos. E da programação até o usuário final, havia barreiras e mais barreiras. Por isso, eu precisava<br />

daquele controle. Você sente o poder quando tem o poder. Um vírus seria detectado na área de tes-<br />

tes. E um material com vírus jamais seria produzido e despachado. Eu tinha de me certificar de que<br />

meu filho não encontrasse alguém que o denunciasse. Por isso, eu precisava daquele cargo, daquele<br />

controle. Você sente o poder quando tem o poder. Para isso, precisei me aproximar do velho e ga-<br />

nhar sua confiança. Para isso, eu precisei de Helena Boaventura. Lábia e inteligência. Não brinque<br />

comigo, amigo.<br />

Sempre mantive meus pés no chão. Se eu fosse pego, passaria alguns anos na cadeia, e apo-<br />

dreceria o resto numa vida monótona, e vazia. Pensei em um milhão de coisas, possíveis problemas,<br />

e vias de escape. Até o vírus se espalhar por todo o mundo, eu não poderia fazer nada. Meu golpe só<br />

teria início, quando eu tivesse a maioria dos computadores (e demais aparelhos eletrônicos) do pla-<br />

neta sob meu controle. Antes disso, não poderia fazer absolutamente nada. Somente esperar. Isso<br />

daria uma agonia dos infernos. Durante esse período, eu não poderia ser descoberto. Mas essa era<br />

uma possibilidade real. Alguém no planeta, consultores, hackers, ou qualquer outro poderia desco-<br />

brir o vírus e espalhar a notícia pela internet. Eles chegariam a mim, antes que eu tivesse tempo de<br />

praguejar. Eu precisava de um plano para escapar, caso o fato viesse a tona. Poderia fugir, me es-<br />

conder. Talvez, forjar minha morte. Escapar dos olhos da humanidade, enquanto meu filho se dissi-<br />

pava pela internet. Eu só tinha de me manter livre durante esse período.<br />

4º ANDAR<br />

Eu calculei 3 meses para o vírus se espalhar.<br />

Dois meses depois, a coisa desandou.<br />

Você sabe que alguma coisa está errada quando aquele alarme que carrega junto à sua velha consci-<br />

ência começa a berrar. Foi essa a sensação que tive quando atendi ao telefone em meu apartamento.<br />

Naquela hora, eu ainda não havia entrado em ação. Faltava muito pouco. Acho que poucos<br />

dias. Era um momento de tamanha excitação que bloqueava atitudes. Eu apenas curtia o momento.<br />

Pense no que isso significa. Dentre alguns dias, eu poderia iniciar a terceira guerra mundial, se as-<br />

sim o quisesse. A internet seria toda minha. Os celulares do mundo todos meus. E também qualquer<br />

dispositivo que se conectasse a internet ou a um computador.<br />

O mundo aos meus pés.<br />

Curvem-se, canalhas.<br />

Mas, ao invés disso, o telefone tocou.<br />

Atendo.


Do outro lado da linha, a voz apavorada.<br />

- O que está havendo? Seu nome está em cada canto da internet. E também na TV. Estão<br />

indo atrás de você.<br />

Paralisei. Paralisado. Eles me descobriram. Logo agora? Eu estou tão perto. Tão perto.<br />

Desligo instintivamente o telefone quando percebo a aproximação de alguém. É Helena. Es-<br />

tou em meu apartamento. Ela não tem a chave. Como entrou?, eu pergunto. A porta estava aberta,<br />

responde. Fiquei preocupada, acrescenta. Porta aberta. “Estão indo atrás de você”. O alarme, enten-<br />

de? Acusação de que algo pode sair errado. Não, não agora. O que posso fazer? Talvez o vírus ainda<br />

leve duas ou três semanas para cumprir sua tarefa. Depois disso, estarei no controle. Mas... Até lá,<br />

não posso ser encontrado. Será que consigo me esconder por três semanas. E se me acharem? Pen-<br />

se. Pense. O que posso fazer? Volta-me a ideia de forjar minha morte. Poderia funcionar. Mas como<br />

eu faria isso? E que infernos Helena está fazendo aqui, agora?<br />

Helena mal entrou e ouço um barulho. Na cobertura, lá em cima. Um telefonema tenebroso,<br />

a porta aberta, e um barulho lá em cima. Isso não cheira nada bem. Subo. No instinto, subo. Aonde<br />

você vai?, me pergunta Helena. Não respondo. Deveria ter saído correndo. Agora sei. Deveria ter<br />

dado o pé da porcaria do apartamento naquela hora. Ido para um hotel, uma ponte, um beco. Pensar<br />

no que fazer. Mas, simplesmente cometi a burrice de subir. Lá em cima não tinha nada. Olhei aqui e<br />

ali, e nada. Ouço Helena gritando lá embaixo. Não é nada, grito em resposta. Deve ter sido o vento.<br />

E venta. Vou até a beirada. Olho a profusão de luzes se misturando sob a névoa da poluição, se refa-<br />

zendo, novas formas. Novas estruturas.<br />

2º ANDAR<br />

Respiro fundo. É bom ser quem eu sou.<br />

É bom ser o governante da humanidade.<br />

E então o baque em minhas costas.<br />

Duas mãos.<br />

E aqui estou, despencando.<br />

Última chance. Onde errei? Já posso divisar o rosto de algumas pessoas. Não olham para cima. Não<br />

grito na queda. Um homem, em minha posição, gritar? Tá bom. Vai esperando. Isso é para os fracos.<br />

Não grito. Apenas me concentro. É o que faço. Mas eu sabia, desde 4, 5 ou 6 segundos atrás, quan-<br />

do a inevitável queda teve início, que quando eu visse o rosto de alguém, não conseguiria mais me<br />

concentrar. E estava certo. A proximidade da morte, agora, me acena. Não é mais uma perspectiva<br />

para os próximos segundos. É a realidade. Face a face com ela. Rostos na multidão são os rostos do<br />

meu fim anunciado.<br />

1º ANDAR


Talvez não tenha havido nenhum plano secreto. Talvez eu não tenha sido traído. Talvez te-<br />

nha sido apenas um assalto. Alguém se livrou de mim, antes de fazer uma limpa no apartamento.<br />

Pode ser assim? Está satisfeito? Será que pode morrer em paz sem se atormentar com questões so-<br />

bre os quês e por quês? Ao menos, uma vez.<br />

Feche os olhos.<br />

Inspire.<br />

1/2 ANDAR<br />

É sua vez, Lamborghini.<br />

Minha vez.<br />

Esta é minha história.<br />

Daqui pra frente, será minha herança.<br />

Feche os olhos.<br />

Inspire.<br />

E <strong>diga</strong>: “Adeus, mundo cruel”.<br />

- Ad...<br />

Um gemido. Outro. Acompanhamento. Um ou outro soluçar. Almas seladas. Abraços. Lenços. Cho-<br />

ro. Soluço. Alguém se aproxima. Parece assustado. Fala com um. Com outro. Ouviu uma notícia.<br />

Notícias. É outra. Pior que a primeira. Cada qual mais assustadora que sua predecessora. Elas se<br />

espalham. O mundo enlouqueceu, alguém diz. É o fim dos tempos, diz outro. Aos poucos, o grupo<br />

se dissipa. Todos os grupos, em todos os cantos do mundo, estão se dissipando. Apavorados. Tran-<br />

cafiados em suas casas. Apavorados com o rumo que está tomando a humanidade. Apavorados.<br />

Mas, nem todos.<br />

Tranquilamente, ali permanecem as duas figuras.<br />

- Está feito!<br />

- E agora, qual o próximo passo?<br />

- Daqui pra frente, é só descida, Samantha. Em 2 ou 3 dias, 7 bilhões de canalhas vão se<br />

curvar diante de nós.<br />

- Então talvez seja a hora de mostrar seu rosto ao mundo. – Sorriso.<br />

Ele ergue a taça.<br />

- Um brinde a nós e a... – Ele para, e fita seu pescoço.<br />

- O que foi?<br />

– Alguém já te disse que seu pescoço parece ser o inferno de bom?


12h00 – 12h59<br />

VEDDER<br />

Acordo. Abro os olhos com dificuldade. Visão torpe. Nebulosa. Nubilosa. Meus olhos. Sinto que<br />

eles queimam. Uma grande coisa, afinal: sinto algo. Ultimamente não tenho sentido muitas coisas<br />

em meu corpo. É uma espécie de estado letárgico. Ele está aqui. Sei que sim. Mas por vezes, me<br />

pergunto: será que está mesmo? Me toco. Me sinto. Sou eu mesmo, concluo. Mas não exatamente<br />

“o mesmo”.<br />

Deixo de lado banalidades como essas. Algumas apenas. Não posso me dar ao luxo de igno-<br />

rar todas as banalidades. Afinal, se o fizesse, teria de ignorar metade da minha porcaria de vida. Não<br />

é tão fácil definir o que se é quando não se é.<br />

Levanto-me e penso em tomar banho, mas acabo desistindo. Esse deve ser o terceiro ou<br />

quarto dia sem banho. Digo “deve” porque não sei ao certo. Poucas coisas me são certas nesse mo-<br />

mento. Uma delas é que enchi a cara na última madrugada. A outra é que vomitei até o estômago.<br />

Disso não me lembro, mas acabo de me deparar com a enorme poça viscosa e fétida no chão da<br />

sala.<br />

- Que droga! – praguejo.<br />

A cabeça dói. Dói pra burro, se quer saber. Nem penso em limpar aquela sujeira. Imagino<br />

que se largar lá, quem sabe?, quando eu estiver de volta, na manhã seguinte, tudo tenha evaporado.<br />

Falar é fácil. Vômito não evapora com tanta facilidade. Minha essência sim. Evaporou há muito<br />

tempo. Meu elixir, minha vida, meu calor. Nem sei como estou de pé ainda. Posso ser honesto? Para<br />

mim tanto faz estar de pé nessa sala escura olhando para a viscosidade das minhas entranhas, ou es-<br />

tar inerte, debaixo de toneladas de terra. Estou tentando ser honesto. Para mim, realmente, tanto faz.<br />

Penso em comer alguma coisa. Qualquer coisa. Não sei se meu estômago aceita. Estou meio<br />

enjoado. Mesmo assim preparo um café amargo. E torradas. Nada de manteiga. Mastigo a torrada<br />

até que derreta na boca. Só depois engulo. Melhor não arriscar. O infeliz do meu estômago está sen-<br />

sível, rebelde. Pode querer botar tudo pra fora de novo. Nunca brinque com o estômago. Aprendi<br />

cedo essa lição.<br />

Então a porcaria do telefone toca. O barulho parece o de uma implosão na minha cabeça<br />

que lateja, lateja e lateja. Maldito uísque!<br />

O telefone toca um milhão de vezes. Antes que meu cérebro comece a vazar pelos orifícios,<br />

atendo. Na verdade, tiro do gancho e levo ao ouvido. Nunca digo nada. Nunca. Uma mania que me<br />

acompanha desde não sei quando.<br />

- Você está aí? – A voz do outro lado é estranha. Se bem que no meu estado, até se fosse mi-<br />

nha mãe, eu não a reconheceria.


- Quem é? – Surpreendo-me com a languidez de minha voz.<br />

- Sou eu. A Rita.<br />

Rita? Rita?<br />

Não me lembro. Mas finjo que sim.<br />

- Oi Rita.<br />

- O Juan viu a gente.<br />

Juan? Juan?<br />

Finjo de novo:<br />

- Sério? Eu não vi ele. – A torrada começa a revolver no meu estômago. Devia ter ficado só<br />

no café, afinal. Porcaria!<br />

- Pelo amor de Deus, acorde. Ele vai nos matar.<br />

- Quem?<br />

- O Juan, caramba.<br />

- Por quê? – Pergunto. Respire fundo e o enjoo passa. Respire fundo. Outra vez.<br />

- Porque ele é um assassino e eu sou a noiva dele.<br />

Criminoso. Enjoo Noiva. Vômito. Ah sim. Agora me lembro! Maldita ressaca. Parece colo-<br />

car barreiras entre os neurônios. Onde eu estava?<br />

Rita é a linda noiva de Juan Aranda, o maior criminoso, estelionatário, assassino, traficante,<br />

extorsionário, corrupto e sequestrador da cidade. Por acaso, Juan é meu amigo de infância. De<br />

infância, reafirmo. Hoje, ou pelo menos até a última madrugada, a relação entre nós dois foi de<br />

uma, <strong>diga</strong>mos, respeitabilidade contida.<br />

Mas parece que um bêbado nunca soube distinguir o céu do inferno, como diria uma canção<br />

dos Stones. Ou seria do Pink Floyd? Ou na verdade, acabo de inventar essa frase? O que isso im-<br />

porta? O que vem ao caso é que acabei me encontrando com Rita, noiva do meu amigo de infância,<br />

numa badalada boate na madrugada passada. Conversamos, bebemos, dançamos. Na hora da dança<br />

acabamos nos beijando. Ela é uma mulher e tanto. Uma beleza estonteante. Rara entre rostos femi-<br />

ninos. Olhos grandes, escuros. Lábios convidativos. Às vezes, olho para ela e, de relance, penso ter<br />

visto um anjo. Mas não é um anjo. É quase isso. É somente Rita.<br />

Mas foi um beijo apenas. Um não. Dois. Talvez, com um pouco de esforço, chego a conclu-<br />

são de que foram três. E obviamente fomos vistos. Daí até os ouvidos de Juan o caminho deve ter<br />

sido bem curto. E ter a noiva beijada em público não pega bem para um cara na sua posição.<br />

Uma atitude estúpida a minha, confesso. Mas o que esperar de um cérebro depois de uma<br />

garrafa de... o que bebi mesmo?<br />

Rita está desesperada ao telefone.<br />

- Eu estou caindo fora. Se você fosse, faria o mesmo. O Juan não vai deixar isso barato.


- Você... Para onde vai?<br />

- Uma amiga vai me arrumar um lugar... Ei, espere. Quem é você? – Ela fala com outra pes-<br />

soa do outro lado da linha. – Não, o que você quer? Não, por favor. NÃÃÃÃÃÃOOOO!!!!<br />

Após o grito, ouço um estampido do outro lado.<br />

Depois silêncio. Silêncio. Daqueles que cortam a alma. Um ruído no fone. E então ouço uma<br />

respiração. Mais que isso. É uma bufada. Não é mais ela. Sei que não. Ela deve estar estirada ao<br />

chão. E um rinoceronte está no telefone. Melhor desligar.<br />

Fatos estabelecidos. Juan mandou matar sua noiva. Ex-noiva, agora. Ele lavou sua honra. Ou<br />

metade dela. Porque a outra metade quem sujou fui eu. Se não bastasse a sujeira na sala, ainda fui<br />

inventar de cagar em cima da honra de Juan Aranda.<br />

O curioso é que não estou preocupado. Deveria? Talvez. Mas não consigo enxergar a pericu-<br />

losidade da situação. Pelo menos, por enquanto. Por isso, esqueço o telefonema e volto a respirar<br />

fundo – minhas entranhas estão numa discussão ferrenha com as torradas. Será que vai dar despejo?<br />

Nisso, alguém bate na porta.<br />

É hoje!<br />

Penso em não atender. Mas a pessoa insiste. Odeio pessoas que insistem em bater quando<br />

ninguém atende. Há coisas que não fazem sentido. Essa é uma delas. Enfim, melhor atender.<br />

Quando abro a porta, me deparo com um baixinho com feições idiotas, de rosto familiar.<br />

Quem é ele?, me pergunto. Ele está acompanhado. Um grandalhão. Mas nem ligo para o granda-<br />

lhão. Fico olhando para o baixinho de rosto familiar. Essa cicatriz. Já vi essa cicatriz em algum lu-<br />

gar.<br />

- Olá, amigo – diz o baixinho.<br />

Sei que o conheço, mas realmente, não me lembro quem ele é.<br />

Então, finjo mais uma vez.<br />

- Olá. Como vai? – Tento sorrir. Não sei se consegui.<br />

- Como vou? Tocante sua preocupação. Nem posso imaginar que esteja na defensiva.<br />

Não entendo o que ele quer dizer. É besteira querer ser enigmático com um bêbado.<br />

Ele sorri e mostra o dente de ouro.<br />

Dente de ouro? Dente de ouro!... Era o que me faltava. Agora reconheço essa coisinha esqui-<br />

sita sorrindo pra mim.<br />

O homem na porta de minha casa é o próprio Juan Aranda.


13h00 – 13h59<br />

O que fazer quando se sabe que vai morrer e o algoz está postado logo à frente? Detalhe: ele tem<br />

um sorriso malévolo, maligno, que faz arrepiar a espinha. Principalmente, devido àquele famigera-<br />

do dente de ouro. É cinematográfico. E está acompanhado de um homem que mede dois de um idio-<br />

ta como eu. É inevitável perguntar-se: o que fazer agora?<br />

Se minha vida fosse um mar de rosas, eu teria avançado para cima deles – uma reação inútil,<br />

<strong>diga</strong>-se de passagem. Ou talvez tentasse bater-lhes a porta na cara. Mas sei que isso também de nada<br />

adiantaria. Ninguém consegue fugir de Juan Aranda, quanto menos um bêbado com um cérebro dis-<br />

solvido e cheirando a vômito.<br />

Então, tomo a decisão menos passional possível: devolvo o sorriso – um sorriso meio besta<br />

de quem mal consegue parar de pé.<br />

- Juan! Que honra receber você em minha casa! – Minha voz ainda está engrolada. Abro os<br />

braços, teatral, como todo bêbado que se preze costuma fazer.<br />

- Eu posso entrar?<br />

Como se fizesse alguma diferença eu dizer “não”.<br />

- Opa!<br />

Vou à frente. Mas vou devagar, receando que minhas pernas vacilem – dar três passos em li-<br />

nha reta parece mais difícil que trazer paz ao Oriente Médio. Os dois entram logo atrás de mim.<br />

da mãe.<br />

- O que aconteceu aqui? – pergunta ele, olhando o vômito.<br />

- Isso é... – tento explicar. – Bem, isso aí...é o que a gente ganha por não ouvir os conselhos<br />

Ele dá uma gargalhada. Olha pro vômito. E depois me olha com descrença.<br />

– Isso tudo saiu de você?<br />

Fico meio embaraçado. Bêbado e embaraçado. Era o que faltava!<br />

- É. Parece que sim. Mas não lembro. Talvez já estivesse aí quando cheguei.<br />

Eu sei. Até parece conversa de bêbado numa mesa de bar: o maior criminoso da cidade e o<br />

bolinador da sua falecida ex-noiva conversando sobre centímetros cúbicos daquela regurgitação al-<br />

coólica? Mas o que posso fazer? Não fui eu quem começou aquela conversa.<br />

- Quer beber alguma coisa? – ofereço, tentando mudar de assunto.<br />

- Não, não. Por favor, não quero nada que venha de você ou dessa casa.<br />

- Então, a que devo tal honra?<br />

Ele fica em silêncio. O grandalhão me olha com olhar assassino. Juan me olha com outro<br />

tipo de olhar. Não é assassino. Mas não consigo decifrar se é pior ou melhor do que isso. Mas afi-<br />

nal, o que seria pior (ou melhor) do que o assassinato? Não sei. Conhecendo Juan como o conheço,<br />

não sei mesmo.


Ele se aproxima. Coloca a mão esquerda em meu ombro. Fico esperando, meio arqueado, a<br />

direita dele estocar-me com uma adaga, um punhal, ou qualquer coisa do gênero. Não, por enquan-<br />

to. Ele ainda tem um discurso para fazer.<br />

- Meu grande amigo! Há quanto tempo nos conhecemos, não é verdade?<br />

- É.<br />

- Nós sempre sentávamos juntos na escola, lembra?<br />

- Era?<br />

- Pois é. Naquela época, eu achava que as amizades duravam para sempre. Você sabe, coisa<br />

de criança. Tudo é bom e eterno, quando a gente é criança. – Ele fica sério. – Mas a realidade é bem<br />

diferente.<br />

É agora. Será que chegarei a ver meus intestinos antes de morrer? Qual a cor de intestinos<br />

recém-derramados em assoalho marrom-claro?<br />

- Amigo – continua ele. Eu suspiro. Não foi dessa vez. – Você se lembra daquele dia em que<br />

você me defendeu daquele grandalhão do segundo ano?<br />

- Foi?<br />

Faço força. Gemo. Ah, lembrei. E que grandalhão! Ele acabou desistindo de bater em Juan.<br />

Mas no dia seguinte, juntou-se a um amigo seu e me pegaram de jeito quando eu voltava para casa.<br />

- Eles te pegaram depois, não foi?<br />

Ainda bem que o baixote se lembra. É o mínimo que posso esperar.<br />

- É. Mas parece que eu sobrevivi.<br />

- Um sobrevivente! – Sorri. E me chacoalha. Odeio que me chacoalhem.<br />

Ficamos em silêncio novamente. Qualquer um que esteve face a face com a morte, deve en-<br />

tender o que significa alguns segundos de silêncio mergulhados em profunda tensão. A gente chega<br />

a torcer pro cara fazer o serviço logo de uma vez.<br />

Mas Juan parece que quer me torturar. Ele fica com aquela mão no meu ombro e nada diz,<br />

nada faz. Há um silêncio regendo em minha casa. Três homens e um mórbido silêncio precedendo<br />

um ajuste de contas.<br />

Juan respira fundo.<br />

É agora. De agora não passa.<br />

Chego fechar os olhos. Vai intestino. Cai firme. Me mostra tua cor.<br />

- Você se lembra, Davi, do dia em que a gente trocou de prova na quinta série...?<br />

Deus do céu!<br />

Dessa vez, deixo escapar um suspiro de impaciência. Por que ele não mete fogo em mim de<br />

uma vez por todas? Nostalgia insuportável.<br />

Dali, vamos nos sentar a mesa da cozinha. E a criaturinha fica relembrando um milhão de


coisas que fizemos juntos. A maioria, eu nem sequer me recordo. Se houvesse uma garrafa a menos<br />

de uísque em minha cabeça, talvez recordasse. Ou talvez o baixote está de brincadeira pra cima de<br />

mim, e resolveu inventar essas baboseiras.<br />

Em determinado momento da conversa, quase uma hora depois, Juan fica em silêncio. Mas<br />

nem ligo. Acho que ele está tentando se lembrar de outro momento hilariante que atravessamos na<br />

escola. Fico brincando com uma caixa de fósforos, distraído.<br />

- Você sabe que eu te respeito, não sabe?<br />

Ergo os olhos e me deparo com seu semblante gélido. E penso no que responder. Mas, não<br />

respondo. Não é por rebeldia. Não respondo simplesmente porque não sei a resposta.<br />

Então, ele continua:<br />

- Você deve saber que sim. Afinal, se eu não te respeitasse, já teria decorado seu chão de ver-<br />

melho. Você está respirando ainda, Davi? Está? Hein, me <strong>diga</strong>: está? Ah, acho que sim. E se está<br />

respirando, é porque Juan Aranda te respeita.<br />

Eu poderia aproveitar e dizer alguma coisa em minha defesa: eu estava bêbado, ela também,<br />

a música estava boa e a dança nem se fala. Nos empolgamos e demos alguns beijinhos, só isso. Pen-<br />

so em argumentar. Mas não argumento por dois motivos: primeiro, estou cansado pra cacete! E se-<br />

gundo, mafiosos como Juan não gostam de ser interrompidos. Quando eles dão uma pausa, é para<br />

torturar a vítima. Assim, melhor ficar de boca fechada.<br />

- Escute com muita atenção. O que vou lhe dizer agora, eu jamais disse a alguém. E você<br />

será a última pessoa a ouvir isso. – Ele dá uma pausa. – Se sair da minha cidade, eu te deixo viver.<br />

Simples assim. Sem complicações. Estou te dando uma chance porque te respeito. É só você sumir,<br />

e viverá. Sem truques, sem conversa fiada. Suma, e viva. Entendeu?<br />

- Uhum. – Entendi merda nenhuma. Suma e viva? O que ele quer dizer?<br />

- Mas... para tudo, um prazo. Você sabe que as coisas funcionam assim, não é? Para tudo,<br />

um prazo. E este é o prazo: se ainda estiver na minha cidade até às nove horas da noite de hoje, eu<br />

mesmo, pessoalmente, me encarrego de dar um fim nessa sua porcaria de vida. Você entendeu? E<br />

digo mais: não quero que você volte a por seus pés aqui, nunca mais. Entendeu? Nunca mais. En-<br />

quanto eu viver, você não entra na minha cidade. Porque se voltar para cá, eu irei atrás de você. –<br />

Ele se aproxima e dá com o dedo na minha cara. – Nem pense em tentar me tapear, seu miserável.<br />

Dizendo isso, ele se levanta, se vira e vai embora.<br />

Então, instintivamente, olho para o meu relógio.<br />

São 13h59.<br />

Isso significa apenas uma coisa.<br />

Eu tenho apenas sete horas de vida.


14h00 – 14h59<br />

Acho que ainda não me apresentei: me chamo Davi Guedes. Mas o que isso realmente importa? No-<br />

mes são apenas rótulos. Não definem nada, exatamente. Há quem carregue nomes como uma hierar-<br />

quia. Nomes e sobrenomes. Seu status social. Para mim, o que define as pessoas são suas ações. En-<br />

tão, no meu caso, minha definição é das piores possíveis. Posso até ter um nome simpático, mas ele<br />

se perde no meio do lamaçal de atitudes idiotas que tenho tomado ao longo dos anos. Por isso, pou-<br />

co importa se meu nome é Davi, ou João, ou Cristóvão. No final das contas, sou a mesma porcaria<br />

de homem. Lembra-se do meu nome? Já deveria ter esquecido.<br />

Juan acaba de deixar minha casa. Largou comigo suas palavras frias, além de um punhado<br />

de lembranças hilárias – e dispensáveis – de nossa infância. Mas eu conheço aquele filho da mãe, e<br />

digo que ele não pode ser resumido apenas a um homem de ameaças. Na sua posição, se fosse não<br />

mais que um homem de ameaças, não estaria vivo. Se ele disse que tenho até as nove da noite, acre-<br />

dito no miserável. Ele não falha.<br />

E tampouco se atrasa.<br />

Continuo aqui, sentado. Apenas pensando. Não muito, porque não consigo. A cabeça não<br />

está ajudando. Aliás, nunca fui bom em usar a cabeça. Muito menos agora, com doses e mais doses<br />

de uísque correndo nas veias. Um lerdo mental, pra ser sincero. Mas o que sei não é tão difícil de<br />

concluir: Rita está morta, e também estarei se não desaparecer dessa cidade para nunca mais voltar.<br />

O que posso fazer? Tomar mais uma??? Não, deixe isso pra lá. Preciso considerar minhas possibili-<br />

dades. Considere. Reconsidere. Em caso de pane, reinicie o procedimento. Cuidado para não enlou-<br />

quecer.<br />

Acatar o conselho de Juan e sumir – considere. Reconsidere. Aí me vem a pergunta: sumir<br />

para onde? Com que dinheiro? Onde vou ficar? O que vou comer? Como vou pagar meus porres?<br />

Algumas dessas dificuldades, eu enfrento aqui também. Mas numa cidade estranha, a coisa fica<br />

pior. Deve ficar, por certo. O que farei em território estranho e, para mim, terrivelmente complexo?<br />

E me vem à mente o fato de que estou a sete horas da minha morte. No entanto, isso não tem<br />

me afetado em nada. Eu deveria estar desesperado? Vamos romper as regras mais uma vez, então.<br />

Estou habituado a isso desde minha infância conturbada. No fim, minha vida é somente descartável.<br />

Nada além disso. Use e jogue no lixo. Separe o reciclável. Os vermes vão reciclar, acredite. Aos<br />

poucos, consumido e reciclado. Não deve ser tão ruim assim.<br />

Pensando nisso, me deu fome. Meu estômago parece que sossegou. Pelo menos, por enquan-<br />

to. Passa das duas horas da tarde. Estou decidido a almoçar fora. Mesmo porque não tenho nada<br />

além de torradas em minha casa.<br />

Pego o dinheiro que me resta, e saio para um restaurante próximo de minha casa. À medida<br />

que caminho até lá, eu começo a observar pelo caminho cada fachada, cada outdoor, cada linha de


árvores, cada poste. Talvez seja a última vez que esteja passando por aqui. Por isso, procuro apro-<br />

veitar esse momento, como uma pessoa que come lentamente para saborear melhor a sua última re-<br />

feição. Até logo, seu poste. Foi um prazer conhecê-lo!<br />

Torpe sensação que me invade em cada vulto, rosto, sombra, desenho. Neles, a forma do<br />

<strong>adeus</strong>. Estou passando por essas ruas carregando a estranha sensação de que estou me despedindo.<br />

E não estou, realmente?<br />

Olho para meu relógio: 14h44.<br />

Estou diante do restaurante Caravela. Sempre venho aqui. A comida é boa. O atendimento<br />

também. Tem uma garçonete chamada Margarete. Ela conversa bastante – a típica mulher animada.<br />

Mas não gosta de mim. Ninguém gosta de mim, para dizer a verdade. Sou um tipo complicado. Di-<br />

fícil de lidar. Quanto ao dono do restaurante, ele se chama Boris. Um velho viúvo. Ou velho e viú-<br />

vo. Acho que dá na mesma. Mas é simpático. Eu, não. Sou muito carrancudo. Acho que por isso<br />

Margarete não me suporta. Para ser honesto, nem eu mesmo me suporto. Por que Juan não meteu<br />

uma bala em mim de uma vez?<br />

Entro e espero ser atendido. Ela, Margarete, vem me atender. Me olha torto.<br />

- O que houve com você, Davi?<br />

- Do que está falando?<br />

- Nem parece que tem sangue nas veias.<br />

Suspiro, a cara fechada.<br />

- Não foi uma boa noite.<br />

- Já sei. Uísque, cerveja, vinho, licor, o que mais?<br />

- Margarete, você é paga para me dar sermão? Estou faminto.<br />

- Está estressado hoje, hein? Se bem que isso não é novidade. – Ela pega sua caderneta de<br />

anotações. – O que vai querer, hoje? O de sempre? – O “de sempre” a que ela se refere é arroz, fei-<br />

jão, bife e salada.<br />

pecial.<br />

Fico pensando. Último almoço. Talvez, última refeição. Corredor da morte. Por ora, algo es-<br />

- O que você tem de mais caro?<br />

- Como assim?<br />

- Qual a refeição mais cara do cardápio, cacete? – Como não ser estúpido? Um grande mis-<br />

tério para mim. Preciso me esforçar mais.<br />

assim:<br />

Ela sorri ao ouvir minha pergunta. Deve achar que estou brincando. Mas responde mesmo<br />

- Salmão defumado e mariscos ao molho.<br />

Mariscos ao molho??? Que porcaria é essa?


- Isso é bom? – pergunto.<br />

- Dizem que sim.<br />

Quem “dizem”? Nunca confie em sujeitos indeterminados.<br />

- Você nunca comeu?<br />

- Não.<br />

- Gostaria de um dia comer essa coisa?<br />

- Por que não? Cheira muito bem.<br />

- Que horas você sai pro almoço?<br />

- Que?<br />

- Você sai para almoçar às 15h00, não é? Você sempre almoça as 15h00.<br />

- Que enrolação é essa, Davi? O que vai querer?<br />

- Isso é hora de se almoçar? Mas eu pensei uma coisa: sabe por que aquela múmia do Boris<br />

só te libera depois das 15h00? Porque o safado sabe que você é a melhor garçonete num raio de um<br />

quilômetros. Se ele te liberar exatamente no horário em que a maioria dos clientes está aqui, e colo-<br />

car outra em seu lugar, ele perderá muitos clientes. Enfim, sabe como é... – Dou uma pausa. – Ele<br />

me perderia.<br />

Ela fica me olhando com uma cara estranha. O defunto que só abre a boca para cuspir bes-<br />

teiras foi gentil pela primeira vez na história da humanidade. Quem não estranharia?<br />

Depois de um tempo, ela acaba me perguntando, calmamente:<br />

- Davi, o que vai querer?<br />

Olho para o relógio.<br />

- Salmão defumado com... com... aquela coisa ao molho.<br />

- Ótimo – diz, parecendo aliviada por eu ter feito o pedido, enfim.<br />

Ela anota o pedido e dá as costas para mim.<br />

- Eu ainda não terminei.<br />

- Ah sim. O que mais deseja?<br />

- Meu pedido é para duas pessoas.<br />

- Está com tanta fome assim?<br />

- Não. Você vai almoçar comigo...


15h00 – 15h59<br />

Considero-me um homem com grandes habilidades de persuasão. Na verdade, acabo de descobrir<br />

isso. E posso fazer essa afirmação excêntrica porque consegui realizar o impossível: convencer<br />

Margarete a almoçar comigo. E precisei de apenas alguns minutos para isso. Tá bom. Alguns não.<br />

Vários. Mas consegui. Se eu estivesse no lugar dela, não teria aceitado. Não almoçaria com um su-<br />

jeito mal-humorado, de ressaca, pálido como um defunto, fedendo como um porco, e que vai ser as-<br />

sassinado em seis horas. Se bem que essa última parte não tem como ela saber.<br />

O salmão está delicioso, e o tal marisco também. Vale o que custa. Uma pena, no passado,<br />

eu não ter reservado, pelo menos, um dia por mês para apreciar uma refeição especial. Uma pena?!?<br />

Eu disse “uma pena”? Isso parece um lamento. Isso é um lamento. Estranho.<br />

- Está muito bom – digo para a muda Margarete.<br />

Ela continua comendo sem nada dizer. Parece um pouco envergonhada. Algumas pessoas –<br />

duas ou três – nos observam. Sou famoso. Já dei alguns escândalos do alto – ou seria debaixo? – do<br />

meu alcoolismo inveterado. Já fui preso. Confusões que aqueles que trocam o dia pela noite costu-<br />

mam criar. Acostumei-me com a escuridão, como um Dennis “Spider” Cleg. Às vezes, acho que sou<br />

esse lacaio.<br />

Mas, enfim, agora são pouco mais de três horas da tarde. O sol brilha. Então, deixemos de<br />

lado a escuridão. Estou tendo meu último almoço. E meu último – e também primeiro – diálogo<br />

com Margarete, já que as palavras que trocamos até o dia de hoje não podem ser chamadas apropri-<br />

adamente de “diálogo”. Abra a boca. Perguntas. Comentários. Aham, sério?, interessante. Não é tão<br />

difícil assim. Vá em frente.<br />

Do nada, solto um:<br />

- Sabe qual é a diferença entre os seres humanos e os animais, Margarete?<br />

Ela me olha com aquele olhar esquisito de novo. Se bem que a pergunta inteligentemente<br />

tola, obrigatoriamente, leva qualquer um a expressar um olhar assim.<br />

- Não. – Ela não parece nem um pouco interessada.<br />

- A consciência é uma delas. É a consciência que nos faz planejar... e nos arrepender.<br />

- É?<br />

- Mas preciso te confessar uma coisa. – Inclino-me sobre a mesa e sussurro num tom confi-<br />

dencial: – Eu nunca me arrependi de coisa alguma que fiz em minha vida.<br />

- Isso não me surpreende. – Sorriso sarcástico.<br />

- Consegue imaginar o que é uma pessoa errar e não se arrepender? Consegue perceber as<br />

consequências disso? Margarete, eu nunca soube o que é o arrependimento... Pelo menos, não até<br />

agora.<br />

- Por que “até agora”? Está arrependido de ter me convidado para almoçar?


- Não, não é nada disso. É estranho. Estou começando a me arrepender de algumas coisas.<br />

Entre elas, de nunca ter vivido. De nunca ter sentido o sangue correr em minhas veias. De nunca ter<br />

respirado ar puro ao invés dessa... dessa maldita poluição. Sinta isso. – Ergo o nariz e começo a fun-<br />

gar. – Tá sentindo?<br />

- Não.<br />

- Poluição, Margarete. A poluição da minha tosca existência.<br />

- Você não me parece bem, Davi. Você está bêbado, não está?<br />

Para ser sincero, a impressão que tenho é que estive bêbado durante toda minha vida. E ago-<br />

ra, por causa dum baixinho psicopata com dente de ouro, estou começando a olhar as coisas a mi-<br />

nha volta, sóbrio. Pela primeira vez, sóbrio. Mas não comento isso com Margarete. Pelo contrário, e<br />

para minha surpresa, começo a falar de algo que nunca comentei com ninguém.<br />

- E esse arrependimento ressuscita pensamentos que estavam mortos... tão tarde. Quando eu<br />

era jovem, me apaixonei por uma garota. Uma garota especial. Se a natureza pudesse ser limitada a<br />

uma cabeça, corpo e membros, seria ela. Ela era tão meiga, tão... verdadeira. Nessa época, eu estava<br />

começando a me infiltrar no meu particular mundo sombrio. Trevas, a fumaça de cigarros queiman-<br />

do meus olhos, fogs alcoólicos, rebeldia, destruição, meu corpo em decomposição. – Dou uma pau-<br />

sa e olho bem dentro dos seus olhos. – Autodestruição, Margarete.<br />

- Estou entendendo, Davi. Mas e a garota? Onde ela entra?<br />

- Essa garota... Ela teria dado um jeito nesse sujeito carrancudo que está sentado em sua<br />

frente. Ela teria me salvado das trevas, desse mundo obscuro, do meu frenesi mortal. Ela teria me<br />

salvado antes que eu me perdesse. Teria me salvado de mim mesmo.<br />

- E o que aconteceu?<br />

- Eu gostava dela, acredite. E ela... Cara, ela era doida por mim. Ela era garota de família. O<br />

tipo que só namora para casar. Entende o que quero dizer? A coisa tinha de ser séria ou não ser<br />

nada. Entende isso? Ou vai ou não vai. Sem meio termo. Isso para mim era o fim do mundo. Eu não<br />

queria levar uma pacata vida de marido, entende? O que eu queria era me divertir, festejar, conquis-<br />

tar o mundo. Eu me sentia imortal, Margarete. O fim jamais me alcançaria, muito menos a decadên-<br />

cia. Por isso, eu acabei sumindo sem dar explicações. Não tive coragem de olhar nos olhos dela. E<br />

foi assim. Nem sequer disse um “até mais”.<br />

- E agora está arrependido, não é?<br />

- Não estava até duas horas atrás. Mas aconteceu algo hoje que me fez pensar em algumas<br />

coisas. Como estaria minha vida se eu tivesse me casado com ela? – Recosto-me na cadeira e olho<br />

para cima, num gesto imperceptível, em busca de inspiração criativa para minha imaginação. – Eu<br />

acordaria todos os dias ao lado de alguém que amava. Eu faria questão de dizer isso para ela, todos<br />

os dias. Para que ela se sentisse segura. Mulher tem dessas coisas. Ela me devolveria um sorriso tí-


mido, as faces rosadas. Tomaríamos café da manhã, juntos. Sempre juntos. Daí, cada um iria para o<br />

seu trabalho. E quando a noite chegasse, eu poderia levá-la para jantar fora. Não sempre, para não<br />

se tornar uma rotina. Outros dias, jantaríamos em casa, beberíamos um vinho, assistiríamos um bom<br />

filme, e a sequência romântica estaria completa. Sem complicações. Acho que coisas assim tem<br />

mais valor.<br />

Margarete está pensativa. Parece visualizar a cena que criei e está compenetrada nela.<br />

- Eu e meu marido nunca passamos por essas etapas. – Ela dá uma risadinha. Parece que co-<br />

meça a ficar mais à vontade comigo. – Acho que vou citar isso para ele. Apenas como uma discreta<br />

sugestão.<br />

- Ele é bem diferente de mim?<br />

- Completamente – responde ela, enfática.<br />

- Então tenho certeza de que ele vai gostar da sugestão.<br />

Margarete sorri novamente. Um sorriso encabulado.<br />

Após alguns instantes, ela me pergunta:<br />

– Como era o nome dela?<br />

- Ela? Luciana – respondo como se estivesse pronunciando a palavra mais doce do mundo. E<br />

não estou realmente?<br />

- Que fim ela levou?<br />

- Ela se casou. Parece que teve um filho. Mas o marido a largou. Algo assim.<br />

- Um outro idiota como você!<br />

- Provável. Mas talvez tenha sido melhor. Ou não. Quem pode dizer? Ela foi morar com a<br />

mãe, pelo que estou sabendo.<br />

- Nunca pensou em dizer para ela o que disse para mim?<br />

- Não.<br />

pagar por eles.<br />

- Por que não?<br />

- Ora, “por quê?”. De que adiantaria? Meus crimes já foram cometidos. Agora é tempo de<br />

- Mas foi você quem falou sobre o peso do arrependimento. Se dissesse para ela o que acaba<br />

de me dizer, talvez se sentisse melhor.<br />

- Você acha?<br />

- Claro! Talvez isso até fizesse bem para ela.<br />

- Isso é muito estranho. Depois de tanto tempo... Acho que não daria certo.<br />

Margarete me dá com os ombros.<br />

- Não é para dar certo. É simplesmente para ser fazer a coisa certa. Ao menos uma vez na<br />

vida, Davi, tente fazer a coisa certa.


Poucas horas. Tenho malditas poucas horas. Ainda assim, com meu tempo de respirar che-<br />

gando ao fim, reflito em sua sugestão – e olha que nunca fui de acatar sugestões de ninguém.<br />

Depois do nosso almoço, Margarete volta ao seu serviço. Quanto a mim, fico sentado no<br />

mesmo lugar, durante muito tempo, apenas a refletir na conversa que tive com ela. Isso mesmo, o<br />

zumbi está refletindo. Pelo menos, estou tentando.<br />

ma apressada.<br />

Em determinado momento, levanto-me, abruptamente, pago a conta e começo a sair, de for-<br />

- Aonde vai com tanta pressa? – me pergunta, Margarete.<br />

- Fazer a coisa certa.


16h00 – 16h59<br />

A coisa certa. Quero fazê-la. Construí-la. Moldá-la a partir do barro. Mas receio que ela não queira<br />

ser feita. Espero que a coisa não se esquive de ser acertada.<br />

Caminho pelas ruas. Seria mais rápido se fosse até a casa de Luciana de ônibus, mas não se-<br />

ria tão emocionante. A pé, sinto a brisa, a suavidade dos raios de sol. Nos últimos anos, a vida foi<br />

sucessivos mergulhos na escuridão da noite. Sempre que vejo um morcego lembro de mim mesmo.<br />

Davi, o homem das sombras. Não um Batman; ainda assim, o homem morcego.<br />

E as madrugadas tiveram grande peso sobre sim. A última madrugada, por exemplo, mudou<br />

minha vida, por completo. Não só pelo fato de me fazer ter, nesse momento, apenas cinco horas de<br />

vida, mas por me fazer apreciar os raios de sol aquecendo minha pele branca como a neve. Há quan-<br />

to tempo não tenho essa sensação?<br />

Com a cabeça não mais pesando cinquenta quilos – e com o cérebro pegando no tranco –,<br />

penso em minha sentença. Sei que qualquer idiota se perguntaria: “Mas se eram amigos de infância,<br />

como o tal Juan pôde fazer uma coisa dessas?”. Mas é preciso entender que Juan pertence a um<br />

mundo cheio de regras. Um cara como ele vive de pagamentos: o que não se paga em dinheiro, se<br />

paga com a vida. É bem assim. No seu mundo – e para falar a verdade, também no meu – não exis-<br />

tem amizades. Posso até considerar a proposta que ele me fez como sendo uma gritante exceção.<br />

Sinceramente, até me espantei. Posso garantir que quem suja a honra de Juan Aranda deixa o mundo<br />

dos vivos, mas não sem antes passar por uma sessão de tortura que pode levar horas ou dias. É por<br />

isso que digo que me surpreendi com a chance que ele me deu. Chance esta que, devido ao meu<br />

descontentamento completo com minha vida vazia e destrutiva, decidi descartar.<br />

A única coisa à qual Juan se agarrou foi ao fato de eu tê-lo protegido, quando éramos garo-<br />

tos. Não consigo me lembrar de quantas vezes o ajudei. A cabeça não ajuda muito, mas devem ter<br />

sido duas ou três. Ele sempre foi um alvo fácil na escola. Eu só achei injusto alguns grandalhões ti-<br />

rarem uma onda com ele apenas porque o moleque era pequeno e gordo. Nunca simpatizei com<br />

Juan, exatamente. Que fique claro, nunca foi algo pessoal. Mas não dava pra ver o moleque levar<br />

uns tapas e ficar inerte. Não sou assim. Nunca fui. E por isso, Juan vivia atrás de mim. Esse era o<br />

meu senso de justiça. Nesse caso, porém, desvirtuado.<br />

Nessa época, não poderia imaginar que Juan se tornaria o que é hoje. Se eu soubesse, acho<br />

que teria afogado ele num rio. Ou talvez não tivesse feito nada. É difícil pensar em coisas assim. Se<br />

você pudesse voltar no tempo, e encontrasse o bebê Adolf Hitler, teria coragem de matá-lo? Acho<br />

melhor não pensar em coisas assim. Existem perguntas que nunca deveriam ser feitas. Essa é uma<br />

delas.<br />

Prefiro fatos. E estes são eles. Juan mudou. Cresceu – não muito –, e se tornou o que há de<br />

pior sobre a face da terra. Um homem sem sentimentos, vingativo e cruel. Não importa se é sua noi-


va ou seu amigo, se alguém lhe faz mal, Juan põe em prática seus métodos. E não queira conhecê-<br />

los.<br />

O baixinho indefeso da escola não existe mais.<br />

Os pensamentos envolvendo Juan e minha sentença, de repente, saem em disparada. Não é<br />

para menos. Estou diante da casa de Luciana. Casa que me cala. Uma imponência esperada. Impo-<br />

nência gera impotência. Meu coração à boca. Uma sensação que nem a ameaça de morte pronuncia-<br />

da por Juan conseguiu provocar. Mas as paredes que abrigam Luciana, sim.<br />

Inspire. Expire. Expire mais lentamente, porém. Difícil controlar. O que vou dizer? Devia ter<br />

pensado isso. Devia ter feito um milhão de coisas, menos as que fiz. Uma delas, pensar no que di-<br />

zer. Penso em desistir. Talvez preparar um discurso e voltar amanhã. Amanhã? Amanhã não posso.<br />

Já estarei morto. E então, o que faço? Tento equacionar tudo numa resolução matemática. Mas o re-<br />

sultado nunca é o mesmo. Inspire. Expire. Inspire. Expire.<br />

Antes que possa me definir, ouço uma voz atrás de mim.<br />

- Davi?<br />

Olho para trás e meu coração falha uma batida ao ver quem me chama.<br />

É Luciana.


17h00 – 17h59<br />

A sensação de morte iminente gera reações estranhas. É misteriosamente impossível ignorar deta-<br />

lhes. Na verdade, parece que os detalhes só ganham vida quando estamos próximos do fim. Como<br />

agora, diante de Luciana. Do nada, os cabelos dela me chamam a atenção. Seus cabelos, somente.<br />

Eles chamam mais atenção que qualquer outra coisa. Sou invadido pela lembrança da sensação do<br />

que significa estar com o rosto mergulhado nos seus cabelos. Seu cheiro. Sua cor. Seu desenho on-<br />

dulado contornando o pescoço alvo. Eles parecem dançar. Uma dança sensual, como se eles se es-<br />

forçassem em ter toda minha atenção. E conseguem. Por alguns momentos, não consigo pensar em<br />

outra coisa senão em seus cabelos. Essa plenitude. Essa espontaneidade. Não me recordo de ter<br />

prestado atenção neles quando éramos namorados. Acho que nunca prestei realmente atenção nela.<br />

Se o tivesse feito, nunca a teria abandonado.<br />

Olho para ela. Para Luciana toda, digo. Abro minha boca. Mas não digo nada. Isso porque<br />

meu cérebro não manda nenhum sinal que me ajude a pronunciar a palavra certa. Não sei o que di-<br />

zer. E fico com aquela cara esquisita. A boca aberta. Vez por outra fazendo algum movimento ten-<br />

tando achar a sílaba certa. Mas nada. Boquiaberto. Literalmente.<br />

- Puxa. Há quanto tempo! – ela exclama. Sua voz soa como poesia lírica nos meus ouvidos.<br />

Eu nunca tinha reparado que Luciana não fala. Ela entoa as palavras.<br />

Fecho a minha boca e umedeço-a. Ela está seca. Falta água nesse deserto. Ainda de cabeça<br />

baixa, tento me concentrar em algo para dizer.<br />

Busque inspiração. Busquei. Inspirado, levanto a cabeça e digo:<br />

- Olá. – Tanto esforço para dizer apenas “olá”? Minha inspiração em pó solúvel.<br />

- Que faz por aqui?<br />

Ela parece realmente surpresa. E realmente deve estar. Nosso último encontro foi há muitos<br />

anos. Antes da minha fuga. Antes de eu dar meia-volta e fazer o caminho inverso da maioria da hu-<br />

manidade sã. Ao invés de crescer, voltei ao estado de estagnação. Só faltei salivar. Não acho que fi-<br />

quei muito longe disso. Não mesmo.<br />

- Me lembrei de seu rosto hoje, e resolvi aparecer.<br />

Queria dizer algo melhor. Não algo bonito, ou profundo. Mas algo que pudesse expressar<br />

melhor essa angústia. Por que as palavras nos fogem quando mais precisamos delas?<br />

Ela nem sorri, nem fica séria. Fica no meio do caminho entre uma expressão e outra, e o re-<br />

sultado é uma careta.<br />

- Quer entrar? – ela pergunta, meio hesitante.


Sorrio. Um sorriso que vale por um “sim, eu gostaria”. Ela, séria. Depois, sorri. Dessa vez<br />

não fica no meio do caminho.<br />

Entramos. No interior da casa, há calor. Mas de outro tipo. É o calor das lembranças em mi-<br />

nha alma. Sobre a estante da sala, fotos e mais fotos de Luciana. Como um registro de cada fase de<br />

sua vida. Tudo ali. Obviamente, apenas registros dignos de serem lembrados. Por essa razão, não es-<br />

tou em nenhuma delas.<br />

Eu sou a porcaria dum sujeitinho egoísta. É o que penso enquanto as lembranças socam a<br />

boca do meu estômago. Estou arqueado. Arfando. Ar, eu preciso de ar. Não é fácil respirar. Não é<br />

nada fácil se preocupar com alguém quando se é a pessoa mais egoísta do mundo.<br />

- Você está bem? – Ela.<br />

Quase sussurro: “Preciso de ar”. Mas na verdade, preciso de vergonha.<br />

- Estou sim. Na verdade, estou... – Paro. Comece a conversa direito. – E sua mãe?<br />

- Ela está bem. Deve estar no quarto. Com o Erik.<br />

- Erik? – Por um momento, penso na possibilidade dela ter se casado novamente.<br />

- Meu filho – ela esclarece.<br />

- Ah. – Não sei porquê, mas me sinto mais aliviado. Como se fizesse alguma diferença. Se<br />

alguma coisa ainda pode fazer diferença em minha vida, é preciso apertar o reset. Recomece. Não<br />

adie. Com licença, preciso voltar ao útero de minha mãe! – Qual a idade dele?<br />

- Três.<br />

- É ele? – Pergunto, apontando uma foto, dentre outras dezenas.<br />

- Sim. É o meu bebê.<br />

- Tem seus olhos. – Não tem, não. O calor dos olhos de Luciana não pode ser copiado, nem<br />

capturado por alguma lente. Qualquer miserável diria o mesmo, se estivesse aqui.<br />

Faço algumas perguntas diplomáticas para Luciana. Perguntas assim não costumam ter mais<br />

do que cinco palavras. E as respostas, geralmente, também não. É a típica conversa de tímidos apai-<br />

xonados nos primeiros encontros. No meu caso, a típica conversa de alguém que será alvejado em<br />

poucas horas.<br />

Nesse jogo de perguntas e respostas, esse interrogatório ameno, ela acaba me contando mui-<br />

tas coisas. Nada que <strong>diga</strong> respeito ao seu ex-marido. Também pouco me interessa. Tenho medo da<br />

descrição do cara ser exatamente a minha. Ela fala sobre o Erik, sobre a faculdade de nutrição, so-<br />

bre os planos de se formar e mudar com a mãe para a capital, a fim de dar uma melhor educação


para o filho, e todas essas coisas que pessoas normais costumam pensar.<br />

Quanto a mim, não conto muita coisa. O que deveria contar? Que sou um alcoólatra? Que<br />

passo minhas madrugadas em péssimas companhias? Que tenho tomado banho com pouquíssima<br />

frequência? Que perdi a vontade de viver? Que sofro de “daviismo”?<br />

Não tenho realmente muito a dizer. Por isso, fico no seguro campo das perguntas. Sem me<br />

expor. Perguntas nos deixam na defensiva. Está vendo esse escudo em minhas mãos? Ele se chama<br />

Perguntas. Mas estou gostando dessa parte. Nunca fui de fazer perguntas. Digo, nunca me interessei<br />

pelas pessoas a esse ponto. No meu mundo, sempre existiu somente três pessoas: Davi, eu e aquele<br />

sujeito mal-encarado que vejo todo dia no espelho.<br />

Olho para o relógio: 17h56. Pouco tempo, homem-morcego. Poupe os detalhes. Fuja do su-<br />

perficial. Hora de romper o bloqueio da diplomacia, e deslizar sobre o gelo fino. É preciso coragem.<br />

Mas seja direto, zumbi.<br />

- Luciana – Meu tom de voz é carregado. Tons se voz assim sempre anunciam o ponto prin-<br />

cipal. E ela percebe isso.<br />

- O que foi?<br />

- De alguma forma, eu sempre soube. Sempre...<br />

- Soube o quê?<br />

- Eu sempre soube que você era a mulher da minha vida.<br />

Ela arregala os olhos. Não tanto. Talvez soubesse que eu ia falar algo assim. Eu não ia che-<br />

gar na casa dela com essa cara de cachorro perdido, se não fosse por isso. Mas ela fica em silêncio.<br />

Melhor assim. Uma interrupção e posso me perder. Então continuo:<br />

- O que eu quero dizer é que você teria feito de mim, o cara mais feliz desse mundo porco e<br />

podre. Só um idiota estúpido para não perceber isso. Eu sempre percebi que você era especial. Mas<br />

não passei disso. O problema estava comigo. Isso soa como um clichê, eu sei, mas é a verdade. Eu<br />

me achava imortal, e queria me presentear com liberdade e independência. Mas eu estava errado.<br />

Enganei a mim mesmo. Me esqueci de que tudo o que eu precisava era ter alguém como você ao<br />

meu lado.<br />

nas surpresa?<br />

- Mas o que você está querendo... ? – A voz dela é fraca. Será um sinal de emoção? Ou ape-<br />

- É aí que entra a parte mais surpreendente: eu não estou querendo nada. Já não me lembrava<br />

qual foi a última vez que fiz alguma coisa sem esperar algo em troca. Não há como voltar atrás.<br />

Apenas quero que saiba que você é especial. Que o erro foi meu. Que eu fui um idiota quando não


te pedi em casamento. Que você é a melhor pessoa que eu poderia ter conhecido. Que sem você, a<br />

humanidade não seria a mesma. – Dou uma longa pausa. Falo tudo isso do meu coração. Se é que<br />

ainda tenho isso. E, nesse momento, percebo que tenho vontade de chorar. Mas não choro. Não con-<br />

sigo. A emoção é grande, mas a minha fria dureza interior parece inabalável. Ainda reina, soberano,<br />

dentro de mim o insensível Davi de Pedra.<br />

- Eu não sei o que dizer... eu, realmente... – Ela ri, fica séria, e quase chora, ao mesmo tem-<br />

po. Dessa feita, a careta é mais estranha.<br />

Seguro as mãos dela. Pedras de gelo, em contato.<br />

- Não <strong>diga</strong> nada. Apenas acredite em mim. Por Deus, eu só te peço isso: acredite em mim. –<br />

Beijo suas mãos, suavemente. – Adeus. E seja feliz.<br />

Me levanto, rapidamente. Antes que ela me <strong>diga</strong> algo. Antes que pronuncie qualquer som.<br />

Saia daí, depressa. O gelo fino está para romper. Depressa. Vou para a porta. Deixo a casa. Alcanço<br />

o portão. E lá, bem lá, no ranger das grades em contato, ouço o som da voz dela surgir por trás de<br />

mim:<br />

- Davi, eu nunca deixei de te amar!<br />

Nessa hora, o insensível Davi de Pedra se rende.<br />

E eu me entrego às lágrimas.


18h00 – 18h59<br />

Eu poderia ter me voltado para Luciana, ter cedido aos meus impulsos, e até ter tomado o rosto dela<br />

entre minhas mãos geladas, e a beijado. Mas sei que seria tolice. Três horas me separam do meu<br />

fim. O que um cara com três horas de vida pode dar a uma garota? Não vou dar a ela uma esperança<br />

que nunca irá se concretizar. Eis uma verdade irrefutável: defuntos não são de confiança!<br />

Por isso, vou embora sem olhar para trás. Se olho para trás, ou não avanço, ou tropeço. Trô-<br />

pego vagante sem destino. Enxugo minhas lágrimas. Com uma mão. Depois com a outra. Com o<br />

braço, o antebraço. Não venço. Batalha perdida. O que está acontecendo comigo? Eu não choro des-<br />

de meus doze anos. Tinha até esquecido qual era a sensação de chorar. Uma sensação que nasce de<br />

algo ruim, mas que parece diminuir a intensidade do algo ruim. Como o vômito. Sábia comparação.<br />

Isso vai parar? Ou Juan vai se deparar com um chorão às nove da noite?<br />

Saio pelas ruas, cambaleante, chorando. Soluçando, talvez seja uma palavra mais apropriada.<br />

Há espasmos. Algo incontrolável. Paro, e me apoio num muro. Algumas pessoas me olham. Outras<br />

ficam me olhando.<br />

Uma velhinha puxando um carrinho de compras se aproxima de mim:<br />

- Meu filho! Que foi que aconteceu?<br />

- Na-da... não. – Mal consigo pronunciar uma palavra.<br />

- Não fique assim, meu filho. – Ela toca meu braço. – Você está sentindo alguma coisa? –<br />

Ah, se eu resolvesse explicar o que estou sentindo!<br />

Do meio da nuvem lacrimal, olho ao redor. Uma criança perdida num mundo mau e perigo-<br />

so. Há outra pessoa, além dela, parada próxima a mim. Fico envergonhado. Acho que a vergonha<br />

me ajuda a me controlar. Aos poucos, o soluço passa. Minha cabeça dói demais. Dessa vez, não é<br />

pela ressaca. Mas por ter dado vazão a todas as minhas emoções que escondi durante minha vida.<br />

Tanto guardei o que senti ao longo dos anos que agora, de uma única e súbita vez, tudo me veio à<br />

tona num pranto escandaloso que chamou a atenção de meio quarteirão.<br />

- Eu estou bem – minto.<br />

- Quer que a gente ligue para alguém? – A outra pessoa.<br />

Oferecer ajuda a um estranho – eis algo que nunca fiz. A última pessoa a quem ajudei – olha<br />

quem – foi Juan. Depois dele, nunca mais fiz nada por ninguém. Nem sequer ajudei uma velhinha<br />

ou um cego a atravessar uma rua. Que porcaria de homem eu sou?<br />

- É só um problema com... com uma garota. Nada mais. – Uma resposta verdadeira. Mas não<br />

exatamente toda a verdade.


- Ah, meu filho – disse a velhinha. – Isso passa, pode ter certeza. Vocês vão acabar se enten-<br />

dendo. Ih, meu filho, eu já passei por muito disso na minha vida. Mas nada que o tempo não dê jei-<br />

to, tá?<br />

O tempo, o tempo, o tempo. Vontade chutar o rabo do tempo.<br />

O tempo dará um jeito, eu sei. Três horas para ser mais exato.<br />

- Obrigado.<br />

Os dois transeuntes e bons samaritanos se afastam.<br />

Há poucos metros, vejo a velhinha caminhando lentamente, puxando o carrinho de compras,<br />

com alguma dificuldade. Olho para o relógio – acho que nunca olhei para o relógio tantas vezes em<br />

minha vida. E ele tem 4 ponteiros: um marca as horas, outro os minutos, ainda outro os segundos, e<br />

um quarto que sempre aponta pra mim e diz: “Seu tempo está acabando”. Ainda tenho uma pessoa<br />

para visitar antes de minha execução, mas nessa hora, percebo que talvez eu me sentiria melhor se<br />

fizesse uma boa ação.<br />

Então, corro até a velhinha.<br />

- Senhora, me deixe te ajudar?<br />

- Ah, não precisa, meu filho. Não tá pesado, não.<br />

- Eu insisto – digo, com o rosto ainda úmido pelas lágrimas, e o nariz remelento.<br />

Ela aceita minha ajuda, por fim.<br />

Caminhamos lentamente pelas ruas enquanto a velhinha me conta toda a história de sua<br />

vida: a infância na roça, os poucos meses que estudou, o primeiro namorado, o primeiro baile, a do-<br />

ença da mãe, a morte do pai, o nascimento dos filhos. Por volta da história da formatura do seu filho<br />

mais velho, chegamos em sua casa.<br />

- Entre e tome uma xícara de chá comigo. – Me convidar para entrar? Há pessoas que ainda<br />

não se deram conta do mundo perigoso em que vivem.<br />

- Não, obrigado. Ainda preciso visitar alguém.<br />

- Não vai demorar. Um rapaz tão bom como você merece ao menos um chá.<br />

Se ela ouvisse apenas alguns segundos da minha história, não cometeria a blasfêmia de me<br />

chamar de “bom”.<br />

- Não estou bem certo se terei tempo...<br />

- Vamos, entre. Enquanto isso, vou lhe contar como conheci meu falecido marido.


E isso significa mais meia hora ouvindo a coitada da velha falar. Confesso que as histórias<br />

dela são um saco. Mas, ainda assim, me sinto bem. Vejo que ela está contente em ter alguém para<br />

ouvir suas histórias. Por isso, fico ouvindo. Não pelo chá. Mesmo porque não me recordo de ter to-<br />

mado algo tão ruim em toda minha vida. Tenho a impressão de que a velha mijou no bule e me ser-<br />

viu.<br />

Volto a olhar para o relógio. Ela percebe que estou impaciente. Como eu gostaria de ter, pelo<br />

menos, um dia a mais para fazer as coisas que desejo, e não ter de fazer tudo apressadamente como<br />

agora.<br />

lícia.<br />

- Acho que você tá com pressa, não é meu filho?<br />

- Um pouco. Obrigado pelo chá. Estava maravilhoso – A privada diria o mesmo.<br />

Ela me agradece. E saio em disparada. Como nas muitas vezes em que ouvia a sirene da po-<br />

Me sinto um pouco melhor. Mas ainda, uma gota num deserto. Ainda tenho em mente a ima-<br />

gem de Luciana. Posso dizer que estou feliz em tê-la procurado e dito o que sempre pensei a seu<br />

respeito. Mas carrego a dor de tê-la perdido, e de ser tão tarde para corrigir todos os meus erros. Re-<br />

lógio com quatro malditos ponteiros. Como seria maravilhoso se eu tivesse uma máquina do tempo<br />

e pudesse voltar atrás e mudar toda minha vida! Daria um trabalho dos infernos, mas eu tentaria.<br />

Mas não tenho tal máquina. Então tenho de me concentrar no que ainda me resta: pouco<br />

mais de duas horas de vida.<br />

Assim, caminho apressadamente. Há mais uma pessoa que preciso encontrar de qualquer<br />

maneira, antes de tudo se acabar.<br />

Mas antes que consiga alcançar a próxima esquina, percebo a aproximação dum vulto por<br />

trás. Ao mesmo tempo, em minha frente, surge um homem corpulento que para exatamente no meu<br />

caminho, me impedindo de avançar. Sem opção, eu paro. O vulto que vem por trás de mim avança<br />

sobre meu corpo e me acerta um soco violento na região do rim. Solto um grito sufocado de dor, e<br />

caio de joelhos. A dor é tão violenta que mal consigo respirar. O grandalhão me agarra pelas orelhas<br />

com tanta força que imagino que ele vai arrancá-las. Só faltava essa: ser velado sem orelhas.<br />

- Você acha que o Juan está de brincadeira? – vocifera ele. – Ele te faz um favor te dando<br />

tempo para fugir e você fica por aí ajudando velhinhas nas ruas?<br />

zer, afinal?<br />

Eu não consigo responder, por falta de ar. E se não estivesse com falta de ar, o que eu iria di-<br />

- Seu tempo está acabando, cara. Nós estamos atrás de você. Se não sair da cidade até as


nove, vai levar fogo.<br />

Dizendo isso, ele puxa minha cabeça contra seu joelho. Por sorte, não acerta o nariz. Acerta<br />

a boca. Não chega a quebrar os dentes, mas faz um estrago dos grandes. Sinto o impacto, a dor se<br />

espalhar por todo o rosto, o gosto do sangue. Sangue amargo. Vida caótica e amarga. A proximidade<br />

do meu fim.<br />

Fico caído no chão, atordoado. Meus olhos estão fechados. Quando consigo abri-los, nova-<br />

mente, os dois homens já desapareceram.<br />

Quanto a mim, ainda zonzo, nem penso muito na dor. Apenas na pessoa que eu preciso en-<br />

contrar antes do meu fim.<br />

Meu pai.


19h00 – 19h59<br />

Na última vez em que estive com ele falamos as piores coisas que um filho pode dizer para um pai,<br />

e vice-versa. Desde que eu era pequeno, nunca nos entendemos. Meu pai me achava um irresponsá-<br />

vel. E eu o achava um opressor. Eu fazia as coisas para contrariá-lo, propositalmente. E ele me pu-<br />

nia. Ainda posso ouvir o barulho da cinta de couro estalando em minhas pernas finas. Aquilo ecoava<br />

como o inferno nos meus ouvidos. Ele deixou de me bater quando minha mãe faleceu. Acho que ele<br />

perdeu a força depois disso e nunca mais me atingiu com a cinta de couro, nem com coisa alguma.<br />

Mas as discussões continuaram.<br />

Algumas lembranças povoam minha mente agora, enquanto caminho até sua casa, com a<br />

boca sangrando. Lembro-me dum dia em que, após uma surra, risquei o carro novo que ele havia<br />

comprado com tanta labuta. Ter um carro era o sonho dele. Não precisar mais ir trabalhar de ônibus,<br />

esse tipo de coisa. Mas naquele dia, eu estava furioso com ele por ter apanhado. E sem ele saber, pe-<br />

guei uma porcaria qualquer de ferro, e risquei todo o carro do velho. Na ocasião, não senti<br />

remorso algum. Mesmo depois de ver o rosto entristecido do meu pai olhando para o carro coberto<br />

de riscos, achando ser obra de algum vândalo da vizinhança.<br />

Que espécie de filho eu fui? Que espécie de filho eu sou?<br />

Agora, sinto remorso. Lembro-me do seu olhar, e me sinto mal. Por que eu tinha de fazer<br />

aquilo? Eu não fazia – e nem faço – ideia do que é levar uma família nas costas. Eu não sabia – e<br />

também não sei – o que é ter de levantar todos os dias quatro e meia da manhã e voltar depois das<br />

oito da noite, tudo para alimentar a porcaria dum filho insensível e ingrato. E o que eu fazia em tro-<br />

ca? Riscava todo o carro do velho. Cinta de couro?!? Ele devia ter me batido com um pedaço de pau<br />

na cabeça.<br />

Talvez, nesse momento, a pessoa mais justa nesse planeta seja Juan Aranda. Digo isso por-<br />

que ele é o homem que vai me fazer pagar pelos crimes que cometi. Passei impune enquanto des-<br />

prezava todos ao meu redor, fazendo mal aos que me amavam e aos que só queriam o meu bem.<br />

Passei impune enquanto desprezava a pobre Margarete que sempre serve as mesas dos outros com<br />

um sorriso. Passei impune ao ignorar os sentimentos de Luciana, deixando-a de lado apenas para<br />

“usufruir” os prazeres passageiros da vida. Passei impune ao magoar o coração do homem que me<br />

criou e me protegeu.<br />

Talvez seja hora de parar de causar sofrimento aos outros. Juan Aranda fará o que outro já<br />

devia ter feito há muito tempo. Uma salva de palmas para o baixote!<br />

Chego diante da casa do meu pai. As luzes estão acesas. Ele mora sozinho desde que saí de<br />

casa. Nunca mais se casou. Nem arrumou alguém para morar com ele. Não que eu saiba. Eu real-


mente não sei coisa alguma.<br />

Bato palmas. Um homem grisalho sai da casa e me olha, curioso. Não o reconheço – além<br />

disso já está escurecendo. Será um amigo do meu pai? Quando ele se aproxima, percebo que há<br />

uma possibilidade de meu pai não morar mais ali. E como tenho pouco tempo, receio não conseguir<br />

encontrá-lo antes da minha hora.<br />

- Pois não – diz o homem.<br />

- Por favor, eu gostaria de falar com o seu Aderbal. Ele ainda mora aqui?<br />

- O seu Aderbal?<br />

- Sim.<br />

- Não, senhor. O seu Aderbal faleceu.<br />

O frio. O caos. O medo. Insegurança e vazio andando de mãos dadas. Sou invadido por uma<br />

lufada fria no meu íntimo. E, por alguns instantes, não consigo organizar minhas ideias Preciso fa-<br />

zer uma pergunta para aquele homem, mas não sei ao certo o que perguntar.<br />

Fantasmas me rondam. Gritam em meus ouvidos: “Ingrato, ingrato, ingrato”. A vontade cho-<br />

rar volta. E a falta de ar também. Ingrato, ingrato, ingrato.<br />

Tento me acalmar. Tudo tão inútil. Vida vã.<br />

- Faleceu? Como?<br />

- Ele estava muito doente.<br />

- Como sabe? – No meu íntimo, me agarro à esperança de que aquele homem esteja mal in-<br />

formado. Será que ele pode estar falando de outra pessoa? É provável. Como eu não saberia?<br />

- Eu trabalhei com o seu Aderbal muito tempo, na fábrica. Ele se aposentou. Depois desco-<br />

briu que estava doente.<br />

- Doente?<br />

para essa casa.<br />

- É. O senhor sabe, câncer. Vai fazer seis meses do falecimento. Depois acabei me mudando<br />

Levo as mãos ao meu rosto. Há um desespero interior. Sentimentos confusos que mal consi-<br />

go definir. Sinto frio também. De repente, começo a tremer. Cruzo meus braços, uma vã tentativa de<br />

me aquecer. Os punhos estão rigidamente fechados.<br />

- O senhor quem é? – pergunta o homem, insistindo em me chamar de “senhor” mesmo ten-<br />

do aproximadamente o dobro de minha idade.


- Um amigo.<br />

Dizendo isso, me afasto. Vou caminhando lentamente, mergulhando na escuridão, mas per-<br />

cebendo que os olhos daquele homem me perseguem.<br />

O que posso dizer agora? Não há nada para dizer. O arrependimento e o remorso são tão in-<br />

tensos no meu íntimo que chego sentir dores físicas. Parece-me que o remorso é um objeto duro,<br />

frio, e com pontas afiadas, e parece se mover dentro do meu peito. À medida que se move, vai ras-<br />

gando os tecidos dentro do meu peito, perfurando as paredes dos meus pulmões, penetrando nos tê-<br />

nues revestimentos do meu coração. Um lixo a beira de um ataque cardíaco.<br />

Agora é tarde para lamentar. Mas lamento. E lamento muito. Tornei a vida do meu pai mais<br />

difícil. Dei-lhe diversas preocupações. Quantas vezes ele não foi à delegacia me tirar da cadeia por<br />

causa de uma confusão em que eu tinha me metido? E quando percebo a burrada que fiz, e vou até<br />

sua casa pedir perdão, descubro que ele está morto há seis meses e eu, seu filho, nem estava saben-<br />

do.<br />

Como pode um ser humano acabar com sua vida de tal maneira como eu? Por que não per-<br />

cebi a essência da vida, antes? Por que precisei de uma sentença de morte para acordar para as coi-<br />

sas verdadeiras e permanentes que a vida oferece?<br />

Estou indo para minha casa. Cambaleando. Estar diante da realidade de que meu pai está<br />

morto me leva a pensar em outra realidade. Me desperta outras questões. Fico pensando no que sig-<br />

nificaria minha vida se eu tivesse mais uma chance. Eu não poderia corrigir o que fiz de errado em<br />

relação ao meu pai. Mas poderia corrigir outras coisas. Tive até uma conversa agradável com Mar-<br />

garete na tarde de hoje. Em um único almoço eu consegui isso. E se eu tivesse à minha disposição<br />

dias, semanas, meses ou anos? Quanto eu não conseguiria?<br />

Além disso, em minha mente ecoam as palavras de Luciana: “Eu nunca deixei de te amar!”<br />

Foi a verdade mais profunda? Ou algo dito na ápice da emoção? Não sei. Mas acredite: estou dis-<br />

posto a descobrir.<br />

Então, começo a pensar na possibilidade que Juan me ofereceu: fugir. Olho para o relógio.<br />

Se me decidisse pela fuga, eu teria menos de duas horas. Eu só teria tempo de passar em casa, pegar<br />

algumas roupas, e sair. Precisaria arrumar um lugar para ficar em outra cidade. Mas com que di-<br />

nheiro? Eu não tenho ninguém para pedir emprestado. Nas pessoas com quem saio durante as ma-<br />

drugadas, nem posso pensar. Elas não me ajudariam. E ainda me pediriam pra pagar um trago.<br />

Não! Afasto a ideia da fuga. Não há como. Eu precisaria de tempo e de dinheiro. E no mo-<br />

mento, não tenho nenhum dos dois. Juan fez isso exatamente como punição. Para que eu saísse hu-<br />

milhado da cidade, sem saber o que fazer e onde ficar. Miserável!


O que fazer? Eu poderia me esconder. Tolice! Ninguém se esconde de Juan Aranda. As coi-<br />

sas são mais simples quando ditas. Mas na prática, dão um trabalho infernal. Começo a perceber<br />

que realmente não tenho alternativa.<br />

De repente, me deparo com uma possibilidade. Não sei o que aconteceria depois, mas pode-<br />

ria ser uma chance. Lembro-me de uma frase que Juan me disse no nosso encontro de hoje: “Se ain-<br />

da estiver na minha cidade até às nove horas da noite de hoje, eu mesmo, pessoalmente, me encar-<br />

regarei de dar um fim nessa sua porcaria de vida.”<br />

Ele disse que faria isso “pessoalmente”. Lembro-me bem disso. Suas palavras ecoam com a<br />

perfeição de uma gravação original. O cérebro voltou a funcionar, enfim. E conheço-o suficiente-<br />

mente para saber que Juan costuma levar as coisas ao pé da letra. Vem-me a certeza de que, se ele<br />

disse que tiraria minha vida, ele me procurará pessoalmente para fazer o “serviço”.<br />

aprontei.<br />

E isso me leva à última possibilidade que tenho para escapar de toda essa bagunça que<br />

Eu vou matar Juan Aranda.


20h00 – 20h59<br />

De volta ao meu lar. Pela última vez. Será um <strong>adeus</strong>? Talvez não. Isso é loucura. Ter uma hora certa<br />

para morrer. Qualquer idiota fica completamente confuso numa hora dessas. Se bem que já estou<br />

acostumado com isso: vivi em confusão toda a vida.<br />

No silêncio do meu lar, reinam minhas dúvidas: Será que vou conseguir matar Juan antes<br />

dele meter bala em mim? Será que conseguirei escapar?<br />

Será que ao menos vale a pena tentar?<br />

Mas quem se importa se eu não conseguir? Fico pensando em se alguém irá ao meu enterro,<br />

se tudo der errado. Talvez Luciana vá. É, eu acho que ela irá. Mas acho que ela não vai levar o Erik.<br />

O garotinho vai ficar com a avó.<br />

Quem mais? Fico pensando em alguns daqueles que se dizem meus “amigos”. Tenho certeza<br />

de que eles não irão ao meu enterro – a não ser que tenha bebida de graça. Eu mesmo não iria ao en-<br />

terro deles. Nunca foram meus amigos. Apenas uns caras com quem eu enchia a cara. Nem Marga-<br />

rete vai aparecer, com certeza. Boris, muito menos.<br />

Alguém mais, por favor? Continuo pensando. Mas não consigo me lembrar de mais nin-<br />

guém. Se eu falhar essa noite, no meu enterro estarão presentes: Luciana, o coveiro e... eu. Nada<br />

mal, eu diria, irônico.<br />

A primeira coisa que faço ao voltar para casa é limpar toda aquela sujeira que fiz na madru-<br />

gada anterior. Nada evaporou, conforme eu previra. Depois que limpo a sala, aproveito e dou um<br />

jeito na louça que emporcalha minha pia. Depois o fogão, a mesa e também o chão.<br />

Há outras limpezas importantes a se fazer: vou até a geladeira, abro todas minhas latas de<br />

cerveja e despejo tudo no vaso sanitário. Faço o mesmo com uma garrafa de vodka e outra de um<br />

vinho barato – a bebida perfeita para uma dor de cabeça dos infernos. Confesso que não é fácil dar<br />

fim em tudo isso. Essas foram minhas companhias mais íntimas nos últimos anos. Mas se eu morrer<br />

daqui a pouco, não vou querer que Juan e seus capangas brindem a minha morte com minhas pró-<br />

prias bebidas.<br />

Depois, aproveitando o embalo, dou um jeito em todo meu quarto. Sei que posso estar morto<br />

em menos de uma hora. É bem provável que esteja. Mas algo que eu não gostaria de ver – muito<br />

embora eu não estarei vivo para ver de qualquer maneira –, é de ser encontrado morto ao lado duma<br />

poça de vômito dentro duma casa que compete pau a pau com um chiqueiro. Não gostaria que Luci-<br />

ana visse minha foto na página policial, baleado, numa casa como aquela.<br />

Por isso, faço uma limpeza geral no pouco tempo que me resta.


E como não poderia deixar de ser, pego meu revólver na última gaveta do guarda-roupa e<br />

dou uma polida nele. E vejo que nele só há três balas. Nunca imaginei que minha vida, um dia, de-<br />

penderia do bom uso de três balas de revólver.<br />

Olho para o relógio... outra vez: 20h40.<br />

Ainda tenho vinte minutos antes do pontual Juan aparecer. Corro para o banheiro, faço a bar-<br />

ba e tomo um bom banho – acho que morrer fedendo não é nada digno para um cara. Já basta ter de<br />

apodrecer debaixo da terra.<br />

Dez minutos depois, saio do banheiro e escolho minha melhor roupa. Na verdade, só tenho<br />

uma que se enquadre nesse quesito. Penteio meticulosamente meu cabelo. E também chego a passar<br />

um perfume que nunca usei em minha vida e que, por acaso, encontrei na hora da limpeza – acho<br />

que devem ser raras as pessoas que passam perfume em preparação para a morte! Mesmo porque<br />

essa porcaria mais fede do que cheira. Por último, pego meu revólver e coloco-o na cintura, escon-<br />

dido sob minha camisa.<br />

Menos de cinco minutos.<br />

Qual a melhor maneira de se enfrentar a morte? Descubro-me pensando nisso. Descubro-me<br />

olhando para cada canto da casa como que estudando as mil e uma possibilidades que Juan usará<br />

para entrar ali e, consequentemente, qual a maneira para matá-lo. Por onde e como ele entrará? Será<br />

que usará a janela? Será que vai bater na porta? Ou será que vai entrar arrombando e atirando?<br />

Quando ele entrar, devo atirar sem pestanejar? Talvez não. Ele não estará sozinho. Tenho três balas<br />

no revólver, apenas. Se estiverem em dois, ainda tenho uma bala para errar. Se estiverem em três,<br />

não posso errar nenhuma.<br />

Durante todo o tempo desde que cheguei, eu fiquei pensando na possibilidade dos meus pla-<br />

nos darem errado. Mas agora me vem a pergunta: e se eu conseguir matar Juan Aranda, o que farei<br />

depois? Juan e seus capangas talvez tenham algum dinheiro consigo. Posso pegar o dinheiro que ti-<br />

verem e ir para alguma cidade distante. Como Juan tem muitos inimigos, ficará difícil encontrar um<br />

culpado. Os suspeitos ascenderão às dezenas. Está certo que ele será encontrado morto na minha<br />

casa. Mas será mais fácil desconfiar de algum grupo rival do que de um bêbado anônimo e, ainda<br />

por cima, desaparecido. Talvez até alguns “amigos” de Juan lucrem com sua morte e me deixem em<br />

paz.<br />

Decido ficar sentado à mesa, na cozinha. Meu coração está acelerado. Eu tenho uma chance.<br />

Apenas uma. E se falhar... bem, então a humanidade se livrará dum ser que jamais serviu a alguma<br />

utilidade.<br />

Estou esperando. Já nem olho para o relógio. Mas sei que o quarto ponteiro nem me aponta.


A tensão me toma. Incrível como possa parecer, estou valorizando minha vida. Temo por ela.<br />

Temo e tremo.<br />

Alguns segundos se passam, e então eu ouço as batidas violentas na porta.<br />

Enfim, o gran finale.


21h00<br />

Não abro a porta. Simplesmente grito da cozinha.<br />

- Está aberta.<br />

Lentamente, a porta se abre.<br />

Fico atento aos que entrarão. Torço para que Juan entre sozinho. Mas isso é quase impossí-<br />

vel. Então torço para que entre ele e mais um, no máximo. Balear dois homens – talvez eu consiga.<br />

Só assim terei uma chance.<br />

Meus executores passam a entrar em minha casa. Entram sorrateiros. Lenta e morbidamente.<br />

Como fantasmas. Primeiro um, o capanga de hoje cedo. Depois quem entra é Juan envergando uma<br />

capa preta. Roupa de assassino. Meu coração bate acelerado. Meus punhos estão cerrados com tanta<br />

força sobre a mesa que os nós dos meus dedos estão brancos, quase saltando para fora da pele fina.<br />

Mas, para minha total desolação, atrás de Juan entra mais um homem. O terceiro.<br />

Fico desolado. Muito provavelmente haverá mais um homem, esperando no carro, para a<br />

fuga rápida. Eles estão em quatro. A não ser que eu consiga atirar nos três e sair correndo pelos fun-<br />

dos, não terei chances.<br />

Balanço a cabeça. Minha expressão denuncia meu desconsolo. Não vai dar certo. Sei que<br />

não. Sacar uma arma e balear três criminosos – eu precisaria de muita habilidade. Como não tenho<br />

habilidade no uso de armas, sei que não vou conseguir.<br />

Então desisto. Desisto de tentar sobreviver, de recomeçar minha vida. Mas não desisto de le-<br />

var Juan comigo. Acredito que a humanidade viverá melhor sem eu e ele. Por isso, estou decidido a<br />

matar Juan e depois morrer às mãos dos dois capangas. Ou talvez, quem sabe?, eu consiga levar um<br />

desses grandalhões idiotas, junto comigo. Por isso, espero a hora certa para agir.<br />

- O que houve aqui? – pergunta Juan, olhando ao redor.<br />

- Resolvi dar um jeito na casa.<br />

- “Dar um jeito na casa”? Que besteira é essa? Eu te dou tempo para fugir e você fica lim-<br />

pando sua casa? Não quer aparecer na coluna policial baleado num chão imundo? – Como ele sabe?<br />

– Sem contar que ficou o dia inteiro passeando, comendo salmão, ajudando velhinhas e visitando<br />

ex-namoradas.<br />

Sinto o ódio ferver dentro de mim. Juan me acompanhou a tarde inteira. Sabe de todos os<br />

meus passos. E parece saber tudo sobre as pessoas com quem tive contato. Esse é o poder que ele<br />

tem: Juan tem acesso a todas as informações de que precisa.


Fico em silêncio. Olho para ele com frieza. Traidor maldito. Devia ter deixado os granda-<br />

lhões na escola aleijarem esse lacaio. Assim, talvez ele tivesse desaparecido. Mudado de colégio, de<br />

cidade, de país, de planeta. Arrependo-me de muitas coisas nessa vida, e uma delas foi de ter prote-<br />

gido esse miserável.<br />

consequências<br />

- O que passou pela sua cabeça, Davi? Afinal de contas, que porcaria você está achando?<br />

- Não estou achando nada, meu velho. Se estou aqui é porque estou disposto a enfrentar as<br />

- Consequências duras, devo dizer. – Ele suspira. – Eu amava aquela garota. Por que você ti-<br />

nha que mexer com ela?<br />

- Eu estava bêbado, Juan – grito.<br />

- Você vive bêbado, miserável – ele grita ainda mais alto. Seu rosto fica vermelho. A cicatriz<br />

em sua face torna-se protuberante. Ali está a fúria de Juan Aranda. Nada de amizades. Apenas um<br />

homem furioso e vingativo. – Você tocou em minha honra. Não vou permitir que me ofenda diante<br />

dos meus amigos.<br />

- Você não tem amigos – digo eu, e uma risada zombeteira. Tento fazer a careta de Luciana,<br />

ficando entre a seriedade e o sorriso, mas acho que não consigo. – Você nunca teve. Na verdade,<br />

teve um: eu. Fui seu único amigo. Hoje, as pessoas só estão do seu lado por interesse.<br />

- Ao menos elas me respeitam.<br />

Eu estou cansado. Cansado de toda essa besteira. Acabo de perder meu pai, muito embora<br />

ele já esteja morto há seis meses. Carrego comigo o arrependimento de todas as coisas erradas que<br />

fiz, das mágoas que causei àqueles que me amavam. E sei que nunca poderei reparar meus erros.<br />

Por um momento, até a pouco, eu ainda pensava na possibilidade de escapar e recomeçar minha<br />

vida. Mas agora que percebo que não tenho chances, estou resignado.<br />

Por isso, digo a Juan, de modo sarcástico:<br />

- O que veio fazer aqui? Só conversar? Você não é o temível Juan Aranda? Você diz que eu<br />

te desonrei. Então, não faça o mesmo. Não desonre a si mesmo. Honre o nome que tem e me mate<br />

de uma vez.<br />

Eu levo a mão à arma que carrego na cintura, disfarçadamente. Quando ele for sacar, eu saco<br />

antes e meto fogo nessa porcaria de homem.<br />

Juan me olha nos meus olhos. Vejo um brilho nesses olhos. Olhos que sabem tudo. Vejo<br />

como que chamas bruxuleantes ali. Eles queimam. E parecem confiantes. Ele sabe. Não sei o quê,<br />

mas Juan sabe algo que penso ser segredo.


Ele olha para seu capanga que se aproxima de mim e coloca a arma na minha cabeça. Vou<br />

sacar a arma. Chego a iniciar o movimento, mas o grandalhão, com a outra mão, a arranca de mim,<br />

num gesto rápido e... consciente. Não foi um reflexo. Tenho certeza. Foi algo consciente. Depois de<br />

pegar a arma de minha mão, o capanga guarda o seu revólver e volta para sua posição original.<br />

de morrer.<br />

para mim.<br />

Juan sorri. Revela, mais uma vez, seu dente de ouro.<br />

- Eu não ia deixar você com esse brinquedinho. Poderia se machucar.<br />

O maldito sabia que eu estava armado.<br />

Suspiro. Minha respiração está ofegante. Não de medo. Mas de raiva. Esse homem... Vonta-<br />

- Me deixem sozinho com ele – ordena, em alta voz.<br />

Os dois homens acatam a ordem de Juan e saem da casa.<br />

Juan pega uma arma que carrega junto ao peito, debaixo da capa preta de assassino, e aponta<br />

- Como lhe disse, eu mesmo farei o serviço. Mas vou te dar uma honra: não vou fazer nada<br />

na frente dos meus homens. Ficará apenas entre eu e você.<br />

E sorri novamente. Aquele sorriso sarcástico. Aquele dente de ouro.<br />

- Então faça o que tem para fazer.<br />

- Farei. Mas não antes de lhe contar uma história. – Ele se ajeita na cadeira. – Já ouviu a his-<br />

tória do rei Vedder?<br />

Uma história? Outra? Era o que faltava. Esse homem devia se tornar um menestrel.<br />

- Não – respondo, secamente.<br />

- Nas aulas de história, eu nunca ouvi falar dele também. Mas meu pai costumava falar sobre<br />

este rei. Uma espécie de lenda, entende? Meu pai contava histórias sobre Vedder para me fazer dor-<br />

mir. – Ele dá uma pausa. O miserável parece tranquilo Calmo como se estivesse jogando conversa<br />

fora com amigos numa mesa de bar. – Ele dizia que esse rei, que viveu há muito, muito tempo atrás,<br />

era um homem cruel. Impiedoso, violento. Conquistou muitas terras, muitos territórios, muitos paí-<br />

ses. E não costumava fazer dos homens conquistados, escravos. Não, Vedder matava a todos eles.<br />

Dou uma risada sarcástica.<br />

- Seu pai lhe contava histórias assim? Com esse tipo de educação, qualquer um se tornaria o<br />

monstro que você é.


Ele não parece irritado com meu comentário. É o que percebo. E continua falando como se<br />

eu não tivesse dito nada.<br />

- Certa vez, esse rei, ao ficar velho, percebeu que sua fama sempre seria a de um homem im-<br />

piedoso, cruel, sanguinário. Mas ele não queria ser lembrado assim. Ele queria ser lembrado como<br />

um homem sábio. E então... sabe o que ele fez, Davi?<br />

Não respondo. Então, ele continua:<br />

- Passou a poupar os homens conquistados. E como prova do seu perdão, dava-lhes uma es-<br />

pada. A mesma que seria usada para executá-los. E, ao entregar a espada, sempre dizia a cada um<br />

dos libertados: “Rendo minhas armas pela nossa união”. Mas, o melhor da história vem agora. Sabe<br />

o que aconteceu em seguida?<br />

- Não tenho a mínima ideia<br />

Ele sorri.<br />

- Quando os homens conquistados e poupados ascenderam ao número de dez mil, eles orga-<br />

nizaram uma revolta e derrotaram o exército de Vedder e o próprio rei... com dez mil espadas.<br />

As dez mil espadas que o próprio rei lhes havia presenteado.<br />

Depois disso, Juan desata a gargalhar, uma gargalhada que ecoa por toda a casa, e tenho cer-<br />

teza, pode ser ouvida do lado de fora também.<br />

- Entende porque sou assim, Davi? Seja, sincero. Você consegue me entender? Aqueles que<br />

perdoam, acabam sendo traídos. É um mundo louco. Não se pode confiar em ninguém. Por isso, eu<br />

sou assim. Minha sobrevivência depende disso. Vedder sempre foi para mim a essência da estupi-<br />

dez. O exemplo perfeito a ser evitado. Cresci com isso dentro de mim. Foi por isso que venci. É por<br />

isso que estou vivo até hoje: por desprezar as atitudes do velho, senil e estúpido Vedder. Quando fi-<br />

quei sabendo o que você tinha feito com a minha Rita, aos olhos de todos, eu pensei: “Esse salafrá-<br />

rio vai sofrer”. Mas... mesmo assim...<br />

Ele interrompe sua frase. Fica sério. Suspira. Olha-me intensamente. Mas dessa vez, percebo<br />

algo diferente. Ele não me olha com ódio.<br />

a mesa.<br />

O revólver ainda está apontado para mim. Lentamente, ele estende a arma e repousa-a sobre<br />

- Rendo minhas armas pela nossa união.<br />

Dizendo isso, observo Juan Aranda levantar-se e sair lentamente de minha casa. Permaneço<br />

sentado enquanto ouço o carro dele cantar pneus na noite silenciosa, e o roncar do seu motor sumir


nas distâncias.<br />

Ainda estou paralisado, custando a acreditar no que acaba de acontecer. Será que os últimos<br />

minutos realmente aconteceram ou são apenas produtos de uma mente traspassada por álcool e arre-<br />

pendimentos? Fico paralisado. Espero. Esperando. Não sei o que. Mas espero. E nada acontece.<br />

Fico aqui, acho que por uns quinze minutos, e não vejo e nem ouço mais nada. No mundo, neste<br />

momento, existem apenas eu e aquela arma que continua no mesmo lugar. Ela olha para mim. Mas<br />

não me parece ameaçadora. Pelo menos, não agora.<br />

intenso alívio.<br />

Cautelosamente, estendo minha mão e a apanho. Trago-a para junto de mim.<br />

- Eu não acredito. O miserável me poupou – digo, palavras misturadas com um suspiro de<br />

Quanto ao porquê de sua atitude, ainda não consegui chegar a uma conclusão. Ele pode ter<br />

feito isso porque não quer mais ser conhecido como um sanguinário, assim como aconteceu com o<br />

tal Vedder. Ou talvez, nesse momento, a amizade que houve em nossa infância tenha falado mais<br />

alto. Ou ainda, ele pode ter descoberto, naquela tarde, que tem uma doença terminal e resolveu, as-<br />

sim como eu, consertar todos os erros do seu passado. Eu realmente não sei. E acredito que morrerei<br />

sem saber quais foram as verdadeiras razões de Juan Aranda. Mas, sinceramente, para mim, elas<br />

não fazem a menor diferença.<br />

Quanto a mim, não sei o que farei de minha vida, a partir de amanhã – “amanhã”, é bom<br />

pronunciar essa palavra. Mas na verdade, estou muito confuso. A bem dizer, acabo de nascer. Tenho<br />

muitos planos, é verdade. Com certeza, vou procurar Luciana. E acho que vou convidar Margarete<br />

para um outro almoço. Talvez aproveite a oportunidade e convide Boris para uma pescaria ou qual-<br />

quer coisa do tipo. Sim, muitas coisas para fazer. Mas, dessa vez, com uma notável diferença: tenho<br />

bastante tempo.<br />

Mas o meu amanhã é uma outra história. Ainda vivo o meu hoje. Vivo, enfim!!! E ainda vivencio<br />

uma grande lição, e que, neste momento, talvez seja a mais importante de toda minha vida.<br />

A de que todos, inclusive notórias tranqueiras como eu, merecem uma segunda chance.<br />

F I M

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