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Deforete<br />

As voltas que a vida dá<br />

Um folhetim de<br />

Oswaldo Pullen


I – O lugar da desgraceira<br />

Para começar, eu n<strong>em</strong> sabia o que era deforete. Isso não é<br />

privilégio só meu, como você há de concordar. Só fui saber<br />

quando li A Safra de Tatus do Graciliano Ramos.<br />

Mas, como vai se ver, deforete é um descanso que a gente<br />

faz na hora do trabalho. Pra saber das fofocas, tomar um<br />

cafezinho ou até mesmo para pitar um cigarrinho de palha, que<br />

é o que está mais ligado à velhicice dessa palavra.<br />

Pois veja só.<br />

Deu-se lá pelos idos do século passado, lá pelos mil e<br />

novecentos e poucos, um ocorrido <strong>em</strong> São João do Mato<br />

Dentro que ficou na história da cidade, e até do estado, que não<br />

sei b<strong>em</strong> se era a Bahia ou o Piauí.<br />

Eu explico a minha confusão.<br />

É que São João do Mato Dentro ora estava de um lado,<br />

ora do outro. É isto mesmo! São João do Mato Dentro, ou São<br />

João, para ficar menorzinho, costumava trocar de lugar.<br />

Tinha épocas <strong>em</strong> que estava no Piauí, na região entre<br />

Bom Jesus do Gurguéia e a Serra de Tabatinga. Mas havia<br />

outras nas quais a cidade, junto com as redondezas, junto com<br />

as fazendas mais próximas, com a igreja e os puteiros,<br />

escorregava para o outro lado da serra, para os lados da Bahia,<br />

e ficava ali entre Campos de Lourdes e o São Francisco.<br />

Depois, fizeram a barrag<strong>em</strong> de Sobradinho, e daí o rio<br />

engordou, inchou de engolir aquele tantão de terra, de árvore,<br />

de bicho.<br />

Hoje, São João do Mato Dentro, se desse de escapulir<br />

para aqueles fundões da Bahia, coitado, viraria São João dos<br />

Afogados, e a gente não ia ouvir mais n<strong>em</strong> da cidade, n<strong>em</strong> das


suas gentes.<br />

Mas como a nossa estória é antes disso, os viajantes<br />

tinham que perguntar aos vaqueiros da região o rumo que<br />

deveriam tomar:<br />

— Pra que lados anda São João?<br />

Se o cabra fosse engraçadinho, poderia até responder:<br />

— Pra esquerda e pra direita. Pra frente e pra trás...<br />

Pior, podia até dizer:<br />

— Não anda, pula.<br />

Mas era arriscado. Vai que o perguntante fosse alguém<br />

mais nervosinho, e o abestado talvez não pudesse repetir a<br />

gracinha nunca mais, né?<br />

A verdade é que não nos interessa se São João andava<br />

muito ou não, se pulava ou saltava, se arrastava dum lado para<br />

o outro, fucinhava ou chacoalhava, porque a nossa estória se<br />

deu só lá dentro mesmo, e podia ser que até a cidade tivesse<br />

andado mil vezes, porque a desdita durou mais t<strong>em</strong>po que as<br />

secas do Piauí.


II – O desgraçado faz a desgraceira<br />

Aconteceu que num dia desses pacatos, fresquinhos, dia<br />

de s<strong>em</strong>ana, o Coronel Firmino de Souza Santos, autoridade<br />

máxima e xodó do povo de São João, acordou na hora de<br />

s<strong>em</strong>pre, conferiu o sol já b<strong>em</strong> colocado, apesar de saído há<br />

pouco, e decidiu que já se fazia hora:<br />

— No<strong>em</strong>i, vou tirar um deforete!<br />

Como s<strong>em</strong>pre fazia, desceu a rua principal de São João,<br />

que também era a única que uma charrete podia atravessar de<br />

ponta a ponta, e veio tomar um cafezinho na venda do Patrício.<br />

O Patrício não era patrício coisa nenhuma. Era um galego<br />

dos bons, que veio cair de Portugal b<strong>em</strong> no meio desta terra<br />

andante e que tinha mania de saudar os fregueses com um belo<br />

“Patrício!”. Daí para o apelido pegar foi logo, e ele virou o<br />

Patrício, já patrimônio imaterial da cidade, t<strong>em</strong> tanto t<strong>em</strong>po<br />

que ninguém sabia o quanto.<br />

Aconteceu também que, no cantinho da venda, ali, b<strong>em</strong><br />

no cantinho, um vaqueiro de nome Severino Assunção estava<br />

limpando a garrucha que recém comprara. Só de eu falar isso<br />

já dá até aflição!<br />

Completando a obra, derrubou pólvora pelo cano da<br />

arma, depois uma bucha de jornal b<strong>em</strong> socada, e, por cima,<br />

uma bola de ferro, comprada a quilo ali mesmo no Patrício.<br />

Meteu mais uma bucha e, para finalizar, colocou a<br />

espoleta, indispensável para fazer a sua joinha funcionar.<br />

B<strong>em</strong>, como nenhum de nós é bobo, então já se sabe que<br />

Severino estava ali na hora errada — ou então fora o Coronel —<br />

e fazia a coisa mais errada do mundo para a ocasião. Conta é<br />

que lascou tudo e a pistola disparou virada b<strong>em</strong> para o costado<br />

de Firmino, que, a partir daquele instante, virou o finado


Coronel Firmino de Souza Santos.<br />

Foi aquele estouro e um fumacê danado, enquanto o<br />

Coronel, ainda meio vivo, se virava tentando um gesto<br />

frustrado de sacar o seu trinta e oito e o tibum da queda, já<br />

mortinho da silva.<br />

Ficou um silêncio que durou um t<strong>em</strong>pão. Severino e o<br />

Patrício não abriam a boca.<br />

Pois o portuga estava pasmo. Estava pra lá de pasmo:<br />

estava paralítico de terror. Havia se borrado só com o<br />

tamanhão do estouro, com o pinicado dos pedaços de jornal e<br />

dos grãos de carvão que estavam misturados com a pólvora e<br />

que voaram <strong>em</strong> sua cara.<br />

Porque o Coronel Firmino, no momento do tiro, estava<br />

lhe contando da amante b<strong>em</strong> ao pé do ouvido, e a garrucha que<br />

o vaqueiro tinha comprado era a maior de São João,<br />

alimentada ainda com uma carga do tamanho de seu<br />

entusiasmo juvenil.<br />

Assim, o petardo atravessou o Coronel e foi se alojar na<br />

parede, onde ficou até a polícia o retirar, e as brasinhas todas<br />

que vieram junto se espalharam, salpicando no caminho as<br />

fuças do Patrício apavorado.<br />

Quando o povo chegou, não dava para ver nada por baixo<br />

da fumaça e do cheiro de enxofre. O portuga ainda não dava<br />

um pio, no acalanto da derrama quentinha pelas pernas e do<br />

cheiro de bosta que começava a disputar espaço no ambiente.<br />

Severino, também mudo e paralítico, estava acocorado do<br />

mesmo jeitinho e ainda com a pistola na mão. A bicha parecia<br />

ter dobrado de tamanho. Sua boca parecia um trombone e o<br />

arauto de t<strong>em</strong>pos infernais. Não para o Coronel, que não<br />

sab<strong>em</strong>os quantas contas tinha a contar, e que já não eram por<br />

lá, mas para o pobre do rapaz que iria ter que prestar as suas<br />

ali mesmo.


Ao esmaecer da fumaça, aparece o defunto Coronel. De<br />

terno branco, como gostava, mas com uma mancha de um<br />

vermelho quase preto e um carnegão no peito, rastros do<br />

petardo que não lhe respeitara n<strong>em</strong> pedira benção para<br />

atravessar.<br />

Mais um pouco, e dá para ver o Severino. Do mesmo<br />

jeito.<br />

Todo mundo olha, ainda s<strong>em</strong> encaixar causa e efeito, s<strong>em</strong><br />

entender o cenário óbvio à sua frente.<br />

O cristal do espanto se parte com o grito da criança:<br />

— Cheiro de bosta!<br />

Outra criança ri, como uma deixa para a gritaria que se<br />

instala.<br />

— Traz o Doutor Theóphilo!<br />

— Chama o delegado!<br />

— Mata o assassino!<br />

Existe um momento <strong>em</strong> que a multidão ou é controlada,<br />

ou age com seus impulsos típicos de euforia ou, no nosso caso,<br />

de ódio feito água de açude rebentado.<br />

Para sorte não só do Severino, mas de todos, já que a<br />

história da cidade estava sendo escrita ali, o Padre Eulálio,<br />

pequeno e velhinho, maior autoridade espiritual <strong>em</strong> São João,<br />

acabara de chegar e, com um entendimento imediato da<br />

situação, comandou:<br />

— Ninguém toca no rapaz! Quanto ao Coronel, o rombo é<br />

tão grande que não acho que seja caso para o Doutor. Mas,<br />

para desencargo ou para atestado de óbito, cham<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong>!<br />

E continuou:<br />

— Fulano, chama o delegado. E, Beltrano, me traz uma<br />

cadeira que eu estou abafado. Ajoelha todo mundo que nós


vamos rezar!<br />

E, assim, o sábio padre conseguiu transformar uma<br />

situação de potencial tumulto <strong>em</strong> uma rezação tranquilizadora<br />

e d<strong>em</strong>onstração da fé religiosa do povo de São João do Mato<br />

Dentro, ou mato-dentrense, ou joãosence-do-mato-dentrense,<br />

ou seja lá que diabo fosse, até porque havia, dentre os mais<br />

inovadores, qu<strong>em</strong> defendesse mudar o nome para São João do<br />

Mato Dentro do Norte, pois havia uma do Mato Dentro<br />

também <strong>em</strong> Minas, mas é que o tr<strong>em</strong> do nome se tornava tão<br />

grande que ninguém ficou com muito ânimo.<br />

O delegado, que curtia uma máquina de retrato daquelas<br />

antigonas, de fole e filme de rolo, que n<strong>em</strong> exist<strong>em</strong> mais,<br />

chegou todo espevitado.<br />

— A cena do crime! A cena do crime!<br />

Fulano se virou para Beltrano:<br />

— Esse safardana não está n<strong>em</strong> se importando com o<br />

Coronel. Só quer mesmo é aparecer!<br />

Beltrano fez apenas um muxoxo.<br />

— É...<br />

Cabe informar que este negócio de Fulano e Beltrano não<br />

é boniteza minha não. O nome deles era esse mesmo.<br />

É que a mãe tinha acabado de parir os gêmeos e o pai,<br />

todo apressadinho, queria logo registrar:<br />

— Que nome eu boto? Que nome eu boto?<br />

— Mathias, você está doido? Eu tô aqui me acabando de<br />

dor nas minhas coisas e você está querendo saber de nome?<br />

— Mas eu estou querendo registrar logo. Os nomes, os<br />

nomes!<br />

— Sei lá! Qualquer nome, Fulano, Beltrano, Sicrano,<br />

qualquer coisa serve!


B<strong>em</strong>, se tivess<strong>em</strong> sido trigêmeos a cidade também teria<br />

um Ciclano, mas, como eram só gêmeos, só dois tiveram que<br />

aguentar a desdita.<br />

A mãe se desesperou e o pai ficou de procurar o juiz para<br />

consertar o estrago. Mas a vaca pariu, e depois deu aquele<br />

besourinho no canavial, e depois veio aquela chuvarada, e teve<br />

o batizado, e após vinte e um anos a situação ainda não tinha<br />

sido resolvida.<br />

Chega de derivação. O fato é que o delegado chegou,<br />

muito airoso <strong>em</strong> sua roupa de montaria e chique que n<strong>em</strong> só<br />

ele.<br />

Era o “Seu” Delegado Doutor Francisco, que, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos<br />

idos, tinha tentado uma banca de advocacia <strong>em</strong> Terezinha, e<br />

quase morrido de fome. Quis a sua sorte que lhe surgisse uma<br />

nomeação, e assim ganhou o cargo <strong>em</strong> São João.<br />

O funcionário público depois das dez virava o Chiquinho<br />

das Candongas, o que não nos interessa neste momento, mas<br />

vai interessar depois.<br />

Gastou logo dois rolos, cada um com doze chapas. Só <strong>em</strong><br />

duas, no final, deu para ver alguma coisa, mas era o essencial.<br />

Numa estava o coronel – e que, devidamente retocada, virou<br />

até santinho.<br />

Na outra, estava o ex-sanfoneiro, ex-boiadeiro, ex-bomde-cama,<br />

o desventurado Severino Oliveira de Assunção. A<br />

partir dali, o meliante, o facínora, o el<strong>em</strong>ento, o malsinado<br />

Severino, e mais nada.<br />

As duas fotos serviram perfeitamente para que o Juiz,<br />

apoiado na decisão unânime do Júri, condenasse Severino a<br />

vinte anos de prisão. Não deu para ser menos, pois o jov<strong>em</strong><br />

havia matado o xodozinho da cidade, o Coronel Firmino,<br />

aquele hom<strong>em</strong> santo, tão santo que já havia até procissão para<br />

visitar o seu túmulo.


Só não foi mais porque todo mundo sabia que aquilo tudo<br />

tinha sido a droga de um acidente e porque a chorosa mãe<br />

estava ali, junto com a carrada de filhos, tudo ainda por criar,<br />

pranteando a perda de seu único arrimo, já que o seu marido já<br />

há muito a tinha deixado.<br />

Foi condenado e preso. O Juiz mandou cumprir a pena na<br />

própria cidade, o que deixou o delegado surpreso e feliz. Na<br />

pequena e b<strong>em</strong> cuidada prisão – além de um único<br />

funcionário, que se autointitulava subdelegado, mas cuja<br />

função principal era manter o chão de cimento queimado<br />

muito b<strong>em</strong> lavado e cheirando a creolina – não havia ainda um<br />

só prisioneiro que fosse.<br />

Agora, a força policial de São João mostrava a sua<br />

necessidade, e, enfim, justificava os gastos da prefeitura com a<br />

segurança municipal.<br />

Esqueci de falar que o Coronel Firmino era o prefeito da<br />

cidade? Pois é, esqueci. O fato é que assumiu logo o José<br />

Agripino, o Gripa, como era chamado, e que começou logo a<br />

fazer reinação. O povo começou a contar estórias, as fofocas<br />

rolaram, o t<strong>em</strong>po passou, e logo todo mundo se esqueceu de<br />

Severino.


III – Severino dá um passo na vida<br />

A vida na prisão passa devagar e Severino, que era<br />

hom<strong>em</strong> dos horizontes largos, da corrida atrás do boi fugido,<br />

desesperava-se com a modorra e o tédio dentro daquela cela,<br />

que só era quebrado quando o Genivaldo, subdelegado<br />

autointitulado, vinha lhe trazer uma das três refeições, n<strong>em</strong><br />

ruins n<strong>em</strong> boas, que lhe compunham o cardápio invariável.<br />

Aí a conversa rolava, e Severino estendia aqueles<br />

momentos até que Genivaldo se enfastiava e ia rolar o mundo.<br />

A delegacia ficava entregue às moscas e ao tédio do prisioneiro.<br />

A cela ficava nos fundos da Cadeia Municipal, e o<br />

Delegado Chico das Candongas ficava lá do outro lado, onde<br />

durante o dia funcionava a sua sala de trabalho. Às vezes, já<br />

pela madrugada, Severino ouvia barulhos e conversas<br />

mostrando que o recinto também era usado para fins mais<br />

nobres.<br />

— Ai, Chiquinho, ai, que eu morro!<br />

— Te aquieta, crioula! Vai que o prisioneiro ouve, olha a<br />

desmoralização!<br />

E a função continuava, com a crioula das coxas grossas<br />

n<strong>em</strong> aí.<br />

— Ai, Chiquinho, vai cavalinho, vai cavalinho!<br />

— Cala boca, nega doida!<br />

Severino torcia para que não, pois aquilo era uma alegria<br />

no silêncio da madrugada.<br />

Com o t<strong>em</strong>po, o prisioneiro foi virando íntimo.<br />

Sabe como é que é, né? A preguiça fica maior do que a<br />

noção de perigo, e Genivaldo deu de botar o Severino para<br />

trabalhar.


O delegado viu e veio assuntar.<br />

— Mas, doutor Chiquinho...<br />

— Não sou Chiquinho! Ou me chama direito, ou vai<br />

perder o <strong>em</strong>prego!<br />

— Desculpa, doutor Francisco. É que não aguento ver o<br />

prisioneiro engordando enquanto me esfalfo na limpeza das<br />

instalações!<br />

Falava “instalações” com a boca cheia. Para ele,<br />

instalações quase que transformava a delegacia num quartel, o<br />

que não só a valorizava, mas o deixava também tão importante<br />

quanto.<br />

O delegado meio que torceu o nariz, mas achou que, de<br />

certa forma e já que Severino não representava perigo algum,<br />

era melhor contar com a disposição do vaqueiro, aquisição<br />

valiosa <strong>em</strong> sua força de trabalho.<br />

Aos poucos, Severino passou a fazer mais e mais coisas.<br />

Começou a cumprir funções fora e a cidade logo se acostumou<br />

com suas andanças para lá e para cá trazendo e levando coisas<br />

para o delegado e o subordinado, que se deliciava com o fato de<br />

não ser mais o último na hierarquia da “instalação”.<br />

A vida continuou. O prefeito e o delegado, aprontando.<br />

Os dois, Gripa e Chiquinho, eram homens de boa pinta,<br />

elegantes, insidiosos. Promoviam festas formidáveis na<br />

fazenda do prefeito, para onde eram levadas as mulheres mais<br />

gostosas da cidade, profissionais ou não. Dentre as últimas,<br />

várias eram casadas, o que criou uma legião de cornos<br />

insatisfeitos que passaram a se reunir e a conspirar pelos<br />

cantos da cidade.<br />

Um dia, chega um mensageiro na delegacia.<br />

— Bilhete para o doutor Francisco!<br />

Era de Hermínia, mulata casada de novo, de qu<strong>em</strong>


Chiquinho havia tirado os tampos e que agora andava<br />

comendo de novo, pouco se importando com o que achasse o<br />

marido.<br />

A mulata avisava que o marido ia passar o dia<br />

vaquejando, e que Chiquinho lá fosse para arreliar.<br />

— Genivaldo, toma conta que eu vou tirar um deforete.<br />

Mentira, viu logo o funcionário. Deforete a gente vai e<br />

volta, e esse marombento está é com cara de qu<strong>em</strong> vai<br />

aprontar!<br />

— Faz mal não. O Severino também saiu, foi fazer não sei<br />

o quê e eu vou mais é tirar uma soneca.<br />

Sentou na cadeira do delegado e, numa pose de caubói,<br />

com os pés sobre a mesa, jogou o chapéu por cima dos olhos e<br />

se preparou para cochilar.<br />

Não deu. Logo ouviu uns estouros, e era de tiro. E o<br />

delegado não estava lá!<br />

— Sobrou! Será que vou ser eu qu<strong>em</strong> vai ter que ir? E se<br />

me acertar<strong>em</strong>?<br />

Falava alto, como se tivesse audiência. O probl<strong>em</strong>a era<br />

sério. Ele s<strong>em</strong>pre tinha tido para consigo mesmo que era o<br />

subdelegado, e não sabia o que fazer agora.<br />

— Mataram o delegado! Mataram o prefeito e o delegado!<br />

Era Severino, esbaforido, que chegava s<strong>em</strong> ar, de tanto<br />

correr.<br />

— Você vai ter que ir lá!<br />

— Eu? Eu não! Não tenho n<strong>em</strong> arma para ir lá! – Era<br />

Genivaldo encagaçado de ter que ir lá.<br />

— Agora você é o delegado! E t<strong>em</strong> aquela minha garrucha<br />

aí <strong>em</strong> algum lugar!<br />

— Está maluco? Aquela antiguidade só serve mesmo é


para mostrar quando alguém quer contar a sua desgraça!<br />

Severino fez que não ouviu:<br />

— O delegado levou o trinta-e-oito?<br />

— Não sei, sei lá!<br />

Severino, s<strong>em</strong> cerimônia, abriu as gavetas da mesa e na<br />

última achou a arma e uma caixa de munição.<br />

— Está aqui, leva!<br />

— Eu não! Só se você for comigo!<br />

O prisioneiro, já gente da casa e já meio liberto, olhou<br />

b<strong>em</strong> o outro nos olhos e, meio que rindo, aceitou, enquanto<br />

pensava: “Além de metido, cagão!”.<br />

- Está b<strong>em</strong>, eu vou. Mas só se você deixar o revólver<br />

comigo.<br />

— Ficou foi doido!<br />

Mas o olhar decidido de Severino não deixou dúvidas, e o<br />

subdelegado, sentindo a súbita perda de poder, deixou-o com a<br />

arma, e se foram.<br />

Num instante tinham chegado ao local do atentado. Os<br />

defuntos estavam quase que abraçados no meio da rua. O velho<br />

padre, ainda vigoroso, já tinha chegado e comandava<br />

novamente, tal como um maestro, a plateia que lhe atendia,<br />

enquanto olhava abestada para o duplo homicídio.<br />

— Foi cilada!<br />

— Foi armação!<br />

Severino foi se aprochegando e viu que tinha sido coisa de<br />

tocaia, de tiro nas costas mesmo. Nenhum dos dois não tinha<br />

n<strong>em</strong> ameaçado reação, até porque não estavam armados.<br />

Alguém da audiência comentou:<br />

— Qu<strong>em</strong> mandou fazer tanto corno assim!


Severino retrucou.<br />

— Por quê? Você é um deles?<br />

A pergunta fez o engraçadinho se escafeder e gerou<br />

algumas risadas na audiência, que começava a aumentar.<br />

Como ninguém gostava mesmo dos dois, o respeito não<br />

era muito e foi a custo que o padre Eulálio conteve a<br />

esculhambação que a coisa estava virando.<br />

lá!<br />

Severino propôs logo providências:<br />

— Prepara o velório! Arruma a Câmara Municipal! Vai ser<br />

— Mas, e a cena do crime? Genivaldo já queria mostrar<br />

serviço. Qu<strong>em</strong> sabe botavam ele de delegado, né?<br />

— Não adianta cena do crime se não t<strong>em</strong> n<strong>em</strong> culpado.<br />

Além do mais, t<strong>em</strong> tanto corno que ninguém vai descobrir<br />

nunca qu<strong>em</strong> foi o responsável...<br />

Padre Eulálio estava escutando a conversa entre o<br />

subdelegado e o prisioneiro, enquanto cofiava o queixo com a<br />

barba de três dias.<br />

O Patrício, notando o ar pensativo do religioso, chegou<br />

pertinho:<br />

— O que é que o padre está a assuntar?<br />

— Nada não, Patrício. Só vou ter é que dar uns<br />

telefon<strong>em</strong>as para resolver o caso do futuro delegado. No caso<br />

do prefeito, assume o presidente da Ass<strong>em</strong>bleia, e assunto<br />

resolvido. Mas, no caso da delegacia, sei não…<br />

IV – Genivaldo vira autoridade<br />

Em uma s<strong>em</strong>ana já tinham sido os defuntos devidamente<br />

saudados e enterrados, os herdeiros iniciado a briga pelo<br />

espólio, e a cidade começava a se acalmar.


O presidente da Ass<strong>em</strong>bleia tinha assumido como<br />

prefeito numa cerimônia chocha, mas faltava resolver o<br />

probl<strong>em</strong>a da delegacia. O Genivaldo era, na opinião do padre,<br />

um parvo. Mas qu<strong>em</strong> nomear?<br />

Numa noite de insônia veio a solução. No dia seguinte,<br />

b<strong>em</strong> cedinho, o governador já estava sendo acordado.<br />

— Governador, é o Padre Eulálio.<br />

— Bença, Padre! Mas o que é que o está obrigando a me<br />

acordar numa hora desgraçada desta?<br />

— Governador, preciso de um indulto para o Severino!<br />

— Mas que estória é essa?<br />

— É a delegacia. Precisamos resolver logo este assunto.<br />

— O Padre <strong>em</strong>birutou? Quer fazer o Severino de<br />

delegado? Um preso cumprindo pena?<br />

— Não. O delegado vai ter de ser mesmo o mequetrefe do<br />

Genivaldo. Só que qu<strong>em</strong> resolve ali é o Severino, e não dá para<br />

um preso ficar dando uma de conselheiro do delegado, né?<br />

— E daí?<br />

— Daí, Governador, o senhor anistia o preso; nomeia o<br />

Genivaldo, e bota o Severino de subdelegado!<br />

— Mas, Padre, logo o Severino! E a l<strong>em</strong>brança do Coronel<br />

Firmino, como é que fica?<br />

— Governador, ninguém se l<strong>em</strong>bra mais. Vai por mim e<br />

faz isto, porque a cidade só t<strong>em</strong> lerdo das ideias mesmo!<br />

O Governador fez. E se houve algum espanto, foi mesmo<br />

da nomeação do Genivaldo como delegado. Pois, com o<br />

Severino, o povo achou até justo, já que ele trabalhava por todo<br />

mundo na delegacia.


V – É o sexo, estúpido!<br />

O t<strong>em</strong>po t<strong>em</strong> a característica de envolver o passado <strong>em</strong><br />

névoas. As coisas vão passando e tudo o que parece estranho<br />

torna-se esmaecido e perde a agudeza e importância no meio<br />

do tanto de coisa que aconteceu também.<br />

Com novo prefeito, delegado e subdelegado, com novo<br />

presidente da Ass<strong>em</strong>bleia, a cidade se acostumava com t<strong>em</strong>pos<br />

mais fáceis, apesar do Delegado Genivaldo.<br />

Porque o novo delegado não era bom das ideias:<br />

Mandou comprar um espelho de corpo inteiro e o<br />

dependurou b<strong>em</strong> de frente a sua mesa.<br />

Comprou, com seus novos proventos, roupa e bota de<br />

montaria, rebenque de prata e cinturão com fivela prateada, na<br />

qual vivia dando brilho. Usava uma Colt 45 niquelada e com<br />

cabo de madrepérola.<br />

Em frente ao espelho ensaiava voz de prisão, declaração a<br />

donzelas apaixonadas e discursos políticos às suas imaginárias<br />

multidões.<br />

Adorava humilhar. Não se metia com Severino porque<br />

todos os probl<strong>em</strong>as eram resolvidos por ele, e, se pintasse<br />

alguma confusão que fosse arriscosa para sua pele, botava o<br />

ex-prisioneiro como boi de piranha e deixava o pau quebrar.<br />

Este hom<strong>em</strong> de fala mansa, mas corajoso e dest<strong>em</strong>ido,<br />

resolvia tudo e já era respeitado por toda a cidade.<br />

O Vigário é que se perguntava se não tinha feito as coisas<br />

ao contrário, mas, como Genivaldo tinha ao menos a sabedoria<br />

de deixar os assuntos de importância nas mãos de Severino, e<br />

este não reclamava, deixou as coisas correr<strong>em</strong>.<br />

Severino já tinha mais ou menos descoberto os autores do


duplo assassinato, e teve uma conversa com eles lá no baixio,<br />

lá pros limites do município.<br />

O pau comeu. O relho queimou o costado dos culpados<br />

que, quietos, aguentaram o castigo brabo. A coisa ficou só<br />

nisso porque Severino cismou que o caso era de legítima defesa<br />

do patrimônio, e deu a conversa como encerrada.<br />

Se alguém mais soube, quieto resolveu ficar. Afinal, para<br />

que mexer com assunto desagradável desses, ainda mais<br />

envolvendo pai de família, gente pacata, que tinha por uma vez<br />

perdido as estribeiras?<br />

A coisa só não estava boa mesmo porque Genivaldo tinha<br />

aquela mania de atazanar os mais humildes, obrigando-os a<br />

tratá-lo como se fosse um grande coronel.<br />

Sendo pobre, qualquer um corria o risco de ser parado<br />

pelo delegado e atazanado por questões bestas, inexistentes. Às<br />

vezes, dava para notar que o interesse era outro, malvado, e<br />

tinha a ver com a irmã ou a filha do desinfeliz que estava sendo<br />

maltratado.<br />

Pois é. Uma vez dessas, Genivaldo viu chegando no lombo<br />

de uma mula o Ananias, pai de duas meninas lá pelos<br />

dezessete, dezoito anos, e tesouro aos olhos do pai.<br />

“Nossa! É o Ananias! Só de pensar na Marieta e na<br />

Santinha fico todo arreliado!”.<br />

Estava na porta da delegacia, enquanto Severino se<br />

ocupava com papéis, arrumando e ordenando o arquivo da<br />

delegacia, coisa contábil, coisa de prestação de contas para o<br />

Prefeito. Satisfeito de si, e se preparando para atazanar o<br />

coitado do roceiro, o delegado falou para o subordinado:<br />

— Vou tomar um deforete...<br />

— Tudo b<strong>em</strong>, delegado. Deixa que eu tomo conta do<br />

xilindró.


Isso dito, Severino voltou-se novamente para os papéis e<br />

se esqueceu de Genivaldo.<br />

O delegado atravessou a rua de chão batido e, já adonado,<br />

com sua pose de senhor do destino de todos os humildes da<br />

cidade, espetou o rebenque no peito do lavrador, que tinha<br />

acabado de saltar da montaria.<br />

— Documentos!<br />

— H<strong>em</strong>?<br />

— Pedi seus documentos!<br />

— Pra quê?<br />

— Identidade!<br />

— Mas o senhor me conhece desde menino, seu<br />

Genivaldo!<br />

— Doutor Genivaldo!<br />

— Desculpe, doutor Genivaldo...<br />

— Está desculpado. Mas se não mostrar os seus<br />

documentos, vou ser obrigado a prendê-lo.<br />

O lavrador ficou olhando para o delegado. Um hom<strong>em</strong><br />

simples, mas observador da terra e dos homens, Ananias viu<br />

crescer lá no fundo de seu bestunto uma suspeita vaga, uma<br />

nuvenzinha preta no meio daquele céu todo azul que estava<br />

sendo o seu dia.<br />

— Se o senhor me prender, não vou conseguir voltar para<br />

minha roça, não vou poder trabalhar!<br />

Genivaldo já estava vendo as coisas se encaminhando<br />

para o lado daqueles corpinhos ainda com cheiro de banho de<br />

rio e começou até a ficar sorridente.<br />

— T<strong>em</strong> um jeito...<br />

O lavrador não falou nadinha. A nuv<strong>em</strong> começou a


crescer, já querendo tomar quase que o céu todo.<br />

O delegado viu o olhar de medo de Ananias e deu o<br />

paraíso como certo. Só não sabia qual das duas.<br />

— Mande uma das meninas me servir o jantar hoje à<br />

noite. Vou avisar ao Severino que qu<strong>em</strong> dá o plantão sou eu, e<br />

ninguém vai ficar sabendo de nada!<br />

Não sei o nome que você dá a esta faca, se é peixeira,<br />

facão ou, se for mais pontudo, punhal. Mas o fato é que, no<br />

Nordeste, é comum andar com uma destas facas, que t<strong>em</strong> uns<br />

cinquenta a sessenta centímetros. Ela é usada para todo o fim,<br />

de um jeito até casual.<br />

E foi deste jeito que Ananias torou o gasganete do<br />

delegado, que, se soube que estava morrendo, soube só um<br />

pouquinho, e já tombou como defunto pronto e terminado.<br />

Não teve treco n<strong>em</strong> baba. Só o baque e um tiquinho de poeira<br />

levantada.<br />

O barulho, mesmo que pouco, fez Severino olhar, e, ainda<br />

s<strong>em</strong> entender, se perguntar:<br />

— O que é que o delegado está fazendo? E o Ananias, está<br />

olhando o quê?<br />

Saiu, até devagar, e foi para perto da cena desconjuntada.<br />

O que encaixou peça com peça foi o facão ainda na mão de<br />

Ananias, casado com o jeitão largado do delegado, com a<br />

bunda meio para cima e fuçando a terra dura.<br />

Viu a sangueira, e entendeu.<br />

— Ananias, que desgraça!<br />

— Ele queria comer as minhas meninas, Delegado!<br />

O vocativo transtornou Severino — Delegado?<br />

— Ele queria se espojar nas minhas crianças!<br />

Se Genivaldo tinha morrido, pelo menos até nomear<strong>em</strong>


outro delegado, ele teria que assumir suas funções. Já fazia<br />

tudo informalmente, mas o nome era pesado.<br />

— Fica calmo, Ananias. V<strong>em</strong> comigo.<br />

Na cabeça do novo delegado a vítima era o roceiro, e não<br />

o basbaque enruçado no chão.<br />

Conhecia-o desde menino e sabia que o lavrador era<br />

hom<strong>em</strong> bom e que vivia para a sua família. De certa forma já<br />

sabia que nalgum dia o louco do Genival iria responder pelo<br />

que aprontava, mas era doloroso ver o Ananias pagar por ter<br />

livrado a cidade do biltre ali estatelado.


VI – A hora e a vez de Severino Assunção<br />

O julgamento aconteceu logo e foi a coisa mais triste da<br />

cidade.<br />

Ninguém sabia o que fazer com Ananias que, ao longo de<br />

sua vida, só tinha feito amigos e era querido do padre, do<br />

médico, do prefeito e também pelos lavradores mais<br />

desfavorecidos do que ele mesmo, que lhe tinham como o<br />

camarada de todas as horas.<br />

O juiz não sabia o que fazer. Não seria fácil penalizar<br />

qu<strong>em</strong> tinha resolvido o maior probl<strong>em</strong>a da cidade!<br />

Sabiamente evitou o júri, porque iriam absolver o réu e<br />

isto daria início a uma praga de assassinatos justos e injustos,<br />

transformando a cidade numa bagunça.<br />

Durou dez minutos. E a sentença foi curta:<br />

— Dois anos de prisão, a ser cumprida aqui mesmo <strong>em</strong><br />

São João.<br />

Tinha sido branda a pena, mas mesmo assim Ananias<br />

ficou arrasado:<br />

— Como é que vou cuidar da minha plantação, e minhas<br />

cabras, e minhas filhas? Ai,ai, meu Deus!<br />

Em seu lamento, quase que perde o restante da sentença:<br />

— O regime será de prisão s<strong>em</strong>i-aberta, estando o preso<br />

livre durante o dia, mas devendo, no entanto, vir dormir na<br />

prisão.<br />

Melhor não podia ser, Ananias viu logo. Não tinha jeito.<br />

Pensando do que tinha livrado as meninas, mas também nas<br />

medidas que tinham que ser tomadas, pediu:<br />

— Seu Juiz?


— Fale o réu!<br />

— O senhor me dá dois dias para arrumar minhas coisas e<br />

ver onde é que eu vou deixar as meninas?<br />

O juiz o olhou, com um misto de piedade e desconforto, e<br />

encerrou a sentença:<br />

— Assim sendo, deve o réu se apresentar <strong>em</strong> quarenta e<br />

oito horas, para o cumprimento da sentença!<br />

A saída do tribunal, que <strong>em</strong> verdade era a escola das<br />

crianças, mas que, <strong>em</strong> não havendo outro lugar, funciona nas<br />

necessidades como tal, parecia saída de missa de sétimo dia.<br />

Todos os habitantes da pequena São João abraçaram o<br />

lavrador, que seguiu para arrumar a sua vida.<br />

Para Severino, a mudança foi quase um alívio. Ser<br />

delegado não estava sendo tão diferente, a não ser pelo salário<br />

maior, pelo auxiliar que tinha arranjado e pelo final das<br />

confusões que Genivaldo s<strong>em</strong>pre criava.<br />

Só lhe tinha sobrado um probl<strong>em</strong>a:<br />

— L<strong>em</strong>bra daqueles caras <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> Severino tinha dado<br />

uma surra pelo assassinato do delegado Chiquinho das<br />

Candongas? Pois é, dois deles não tinham ficado satisfeitos e<br />

haviam escondido os seus ressentimentos para ser<strong>em</strong> aliviados<br />

<strong>em</strong> algum momento melhor.<br />

Aquilo vinha fervendo que n<strong>em</strong> leite <strong>em</strong> panela de<br />

pressão entupida, e só não dava pra ver qu<strong>em</strong> não quisesse ver<br />

mesmo...<br />

Pois não é que Severino não queria?<br />

— Doutor, chegaram uns três caras esquisitos que eu<br />

nunca vi aqui na cidade!<br />

Era Beltrano, que tinha assumido como subdelegado. E<br />

continuou:


— E parece que não vieram para coisa boa não. Eles<br />

estavam com aqueles dois caras que eu soube que o senhor deu<br />

um couro e receberam um dinheiro, que coisa pouca não era!<br />

Está com cara de que é coisa ruim para os lados do senhor!<br />

— Besteira, Beltrano! Toma conta do estabelecimento,<br />

que eu vou ali tomar um deforete...<br />

*** FIM ***

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