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senar instituto - Canal do Produtor

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SENAR<br />

Nº 1 - junho 2010<br />

INSTITUTO


(...)<br />

Somos muitos Severinos<br />

iguais em tu<strong>do</strong> na vida:<br />

na mesma cabeça grande<br />

que a custo é que se equilibra,<br />

no mesmo ventre cresci<strong>do</strong><br />

sobre as mesmas pernas finas,<br />

e iguais também porque o sangue<br />

que usamos tem pouca tinta.<br />

E se somos Severinos<br />

Iguais em tu<strong>do</strong> na vida<br />

Morremos de morte igual,<br />

mesma morte severina:<br />

que é a morte de que se morre<br />

de velhice antes <strong>do</strong>s trinta,<br />

de emboscada antes <strong>do</strong>s vinte,<br />

de fome um pouco por dia<br />

(de fraqueza e de <strong>do</strong>ença<br />

é que a morte Severina<br />

ataca em qualquer idade,<br />

e até gente não nascida).<br />

Somos muitos Severinos<br />

Iguais em tu<strong>do</strong> na sina:<br />

a de abrandar essas pedras<br />

suan<strong>do</strong>-se muito em cima,<br />

a de tentar despertar<br />

terra sempre mais extinta,<br />

a de querer arrancar<br />

algum roça<strong>do</strong> da cinza.<br />

Mas, para que me conheçam<br />

melhor Vossas Senhorias<br />

E melhor possam seguir<br />

A história de minha vida,<br />

Passo a ser o Severino<br />

que em vossa presença emigra.<br />

João Cabral de Melo Neto - Morte e Vida Severina


SENAR INSTITUTO


Apresentação<br />

Como foi feito esse trabalho<br />

Comunidade Heliópolis - SP<br />

Angenor de Andrade Cordeiro<br />

Francisco Joaquim de Oliveira<br />

Geronino Barbosa de Souza<br />

Zenil<strong>do</strong> Ribeiro da Silva<br />

Comunidade Mangueira - RJ<br />

Antonio Souza Martim<br />

Maria da Gloria Silva<br />

Maria Sabino<br />

Comunidade Paraisópolis - SP<br />

Ana e suas filhas<br />

Antonio Edinal<strong>do</strong> da Silva<br />

Dinalva Marinalva de Almeida<br />

Jackson André Nunes da Silva<br />

Maria <strong>do</strong> Desterro Ribeiro da Paz<br />

Comunidade Rocinha - RJ<br />

Francisco Pereira Gomes<br />

Margarida Mozim de Pontes<br />

5<br />

7<br />

8<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

26<br />

28<br />

32<br />

36<br />

40<br />

42<br />

46<br />

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54<br />

58<br />

62<br />

64<br />

68


APRESENTAÇÃO<br />

O Sistema CNA/SENAR lança a Coleção Desproteções Sociais no Campo. A<br />

Coleção vai contar a história de pessoas que viveram ou vivem as<br />

dificuldades de morar, estudar e trabalhar nas áreas rurais <strong>do</strong> Brasil.<br />

A base desse trabalho são os da<strong>do</strong>s media<strong>do</strong>s pelo nosso Observatório da<br />

Desproteções Sociais no Campo. O Observatório foi cria<strong>do</strong> como um<br />

instrumento de pesquisa, com o foco no levantamento de informações, na<br />

análise e consolidação de da<strong>do</strong>s que permitam identificar os vazios sociais<br />

nas áreas rurais. Mais <strong>do</strong> que identificar, o Observatório se compromete a<br />

desempenhar o necessário papel de tornar visíveis e ajudar a encontrar a<br />

solução para essas ausências. Trabalhamos com a certeza de que é preciso<br />

conhecer a realidade para poder transformá-la.<br />

Se os problemas sociais urbanos, por piores que sejam, estão visíveis, permanentemente denuncia<strong>do</strong>s, e<br />

demandan<strong>do</strong> respostas e políticas públicas, as questões da área rural estão esquecidas. Por ser invisíveis, para a<br />

maior parte da sociedade brasileira.<br />

É a memória <strong>do</strong> registro dessas trajetórias que abordamos aqui. As desproteções sociais no campo vividas por<br />

essas quatorze pessoas que entrevistamos estão expressas na falta de acesso a serviços de saúde e educação, ou<br />

na precariedade da moradia, sem saneamento básico, sem energia elétrica, sem água encanada. Tu<strong>do</strong> isso,<br />

agrava<strong>do</strong> pela ausência de oportunidades.<br />

Para recriar a vida e o futuro, to<strong>do</strong>s os que estão nessa publicação refizeram por conta própria a esperança e<br />

enfrentaram o desafio de buscar novas oportunidades, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> campo. O destino foi as duas maiores cidades<br />

<strong>do</strong> país, Rio de Janeiro e São Paulo, onde também encontraram condições adversas nas comunidades de baixa<br />

renda em que se instalaram – Mangueira e Rocinha, no Rio de Janeiro, e Heliópolis e Paraisópolis, em São Paulo.<br />

Precisaram deixar para trás um mo<strong>do</strong> de vida, a família e os amigos em busca <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro, ausente na<br />

proteção onde ela é mais necessária.<br />

5


João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, nos disse que “é difícil defender a vida só com palavras, ainda<br />

mais quan<strong>do</strong> a vida é esta que se vê”. Essa publicação quer motivar a to<strong>do</strong>s nós para que, conhecen<strong>do</strong> as condições<br />

de vida e a trajetória dessas pessoas, possamos contribuir para construir outra história para os que vivem ou<br />

sobrevivem nas áreas rurais <strong>do</strong> Brasil.<br />

Um compromisso como esse é urgente e inadiável.<br />

Já não é possível dar as costas para o imenso território rural e permanecer com os olhos fixos no mar. Brasileiros de<br />

todas as idades precisam ter o direito de escolher permanecer em sua terra, no lugar onde nasceram. Isso deve ser<br />

uma opção.<br />

Que possamos injetar vida nova, transforman<strong>do</strong> em oásis os nossos velhos desertos.<br />

Sena<strong>do</strong>ra Kátia Abreu.<br />

Presidente da Confederação Nacional de Agricultura, CNA<br />

6


COMO FOI FEITO ESSE TRABALHO<br />

“Alguém precisa rever, escrever e assinar os autos <strong>do</strong> Passa<strong>do</strong><br />

antes que o Tempo torne tu<strong>do</strong> raso.”<br />

Cora Coralina<br />

O Instituto CNA foi buscar em São Paulo, capital, e na cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro, pessoas que viveram a desproteção<br />

social em áreas rurais <strong>do</strong> Brasil. São pessoas simples, que contam sua trajetória, e pintam retratos <strong>do</strong> homem <strong>do</strong><br />

campo, <strong>do</strong> pequeno agricultor familiar. São eles que encontram mais <strong>do</strong> que dificuldades para permanecer no<br />

campo. Eles se deparam, de fato, com a impossibilidade. Essas quatorze pessoas hoje vivem em <strong>do</strong>is bairros de<br />

São Paulo, há bem pouco tempo considera<strong>do</strong>s favelas – Heliópolis e Paraisópolis, e em duas favelas famosas <strong>do</strong> Rio<br />

de Janeiro, Mangueira e Rocinha.<br />

Foram entrevistadas mais de vinte pessoas, mas uma seleção das histórias mais expressivas resultou em quartoze<br />

perfis. Eles falam não apenas da luta pela sobrevivência na área rural e das desproteções vividas, mas também das<br />

marcas e estigmas que aquelas desproteções cravaram nessas pessoas – suas carências, e o confronto com a<br />

realidade da cidade grande, a dificuldade de inserção no merca<strong>do</strong> de trabalho, inclusão que é o grande sonho de<br />

to<strong>do</strong>s. As entrevistas buscaram reconstruir os processos migratórios de cada um e uma atualização da memória<br />

<strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s para gerar um quadro das condições de vida na área rural e das principais motivações da<br />

definição pela mudança.<br />

A escolha pela realização de entrevistas qualitativas que se transformaram em pequenas histórias, fundamentadas<br />

nos processos de memória, foi definida pelo desejo de dar “humanidade” e colorir com experiências reais e<br />

subjetivas o extenso universo de estatísticas que retratam os processos de migração no país. As favelas e bairros<br />

populares foram visita<strong>do</strong>s muitas vezes, em busca de pessoas dispostas a resgatar suas histórias. Ainda que seja<br />

enorme o número de migrantes em todas as favelas, nem todas as pessoas se disponibilizam a remexer nos baús <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong>, para encontrar lembranças tantas vezes <strong>do</strong>lorosas.<br />

As Associações de Mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s assentamentos populares urbanos, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo,<br />

têm desempenha<strong>do</strong> um papel fundamental na organização dessas comunidades. São hoje protagonistas na<br />

articulação com mora<strong>do</strong>res e na legitimação de ações e atividades realizadas nas comunidades que representam,<br />

mesmo ações de cunho pontual. No senti<strong>do</strong> de formalizar a ação desenvolvida, foi feito um termo de parceria com<br />

as Associações de Mora<strong>do</strong>res das quatro comunidades envolvidas no projeto. As Associações viabilizaram o acesso<br />

da equipe às comunidades e aos entrevista<strong>do</strong>s.<br />

Agradecemos a cada um das pessoas entrevistadas pelo seu tempo e sua disponibilidade de resgatar suas histórias,<br />

revelan<strong>do</strong> aspectos de uma vida que é também a vida de to<strong>do</strong>s nós, brasileiros.<br />

7


HELIÓPOLIS – UM NOVO BAIRRO EM SÃO PAULO<br />

Em 1971, a Prefeitura retirou cerca de 150 famílias da favela de Vila Prudente para construir vias públicas na área liberada. Para abrigar<br />

essas pessoas, projetou um alojamento provisório, numa área, na Zona Sul de São Paulo, que pertencia ao antigo IAPAS, hoje INSS. A área,<br />

que hoje passou para Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo,COHAB-SP, tem um milhão de km², num terreno entre os bairros<br />

<strong>do</strong> Ipiranga e São Caetano <strong>do</strong> Sul.<br />

O alojamento que era “provisório” virou permanente, e a região atraiu muitas outras famílias de diversas regiões <strong>do</strong> país. Ali surgiu<br />

Heliópolis, que já foi considerada uma das maiores favelas <strong>do</strong> Brasil.<br />

Heliópolis não fugiu à regra, e apresentou to<strong>do</strong>s os problemas inerentes a assentamentos populares sem infra-estrutura. Na região foram<br />

construí<strong>do</strong>s conjuntos habitacionais da CDHU e da COHAB, em substituição a áreas horizontais degradadas. As ruas de terra foram<br />

substituídas por asfalto, e favela foi pouco a pouco consolidan<strong>do</strong> a sua estrutura.<br />

Projeto da Prefeitura de São Paulo, com financiamento <strong>do</strong> Governo Federal, inicia<strong>do</strong> em 2008, começou o processo de urbanização da área e<br />

transformou a favela em bairro. O projeto contempla a construção de moradias, pavimentação de ruas e vielas, implantação de espaços de<br />

lazer, como praças, parques infantis e áreas verdes. Obras de drenagem, iluminação pública, contenção de encostas, estabilização <strong>do</strong> solo,<br />

ampliação e melhoria das redes coletoras de esgoto e abastecimento de água também estão previstas no projeto.<br />

O bairro tem mora<strong>do</strong>res de classe média baixa e baixa. Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> IBGE, 92% da população de Heliópolis é composta por nordestinos<br />

que migraram em busca de empregos e melhores condições de vida.<br />

Da<strong>do</strong>s da Prefeitura de São Paulo, em 2008, mostram que a infra-estrutura urbana de Heliópolis disponibilizava abastecimento de água a<br />

83% <strong>do</strong>s <strong>do</strong>micílios e esgotamento sanitário a 62%; 94% das casas possuíam rede elétrica, 57% das ruas eram iluminadas, 97% das vias<br />

eram pavimentadas. Na região <strong>do</strong> Ipiranga, a rede de ensino contava com 55 escolas públicas estaduais e 46 escolas públicas municipais,<br />

mas na comunidade eram duas escolas de ensino básico, um hospital, um posto de saúde e um distrito policial.<br />

No início da década de 80, a comunidade se mobilizou contra ameaças de despejo e desde então constituiu um movimento comunitário forte<br />

e organiza<strong>do</strong>. A União de Núcleos, Associações e Sociedades de Mora<strong>do</strong>res de Heliópolis e São João Climaco, UNAS, organizada por<br />

lideranças comunitárias, tem origem nesse movimento e luta ainda hoje pela urbanização de Heliópolis. Durante a década de 90, ampliou o<br />

seu leque de atuação nas áreas de atendimento a Criança e A<strong>do</strong>lescente, Saúde, Influência em Políticas Publicas, Assistência Judiciária e<br />

implantação da Rádio Comunitária, que funciona na freqüência 97,9FM. Em 2003, a rádio recebeu o prêmio APCA - Associação Paulista <strong>do</strong>s<br />

Críticos da Arte, como exemplo de exercícios de cidadania e divulgação educativa e cultura.<br />

9


EM BUSCA DE UM CERTO ESQUECIMENTO<br />

Angenor de Andrade Cordeiro<br />

Veio de Sanharó, Pernambuco<br />

Vive em Heliópolis, São Paulo<br />

Lá não tem brisa<br />

Não tem verde-azuis<br />

Não tem frescura nem atrevimento<br />

Lá não figura no mapa<br />

Subúrbio, Chico Buarque<br />

Angenor preferiu esconder na noite as marcas das desproteções que trazia <strong>do</strong> campo, <strong>do</strong> município de Sanharó, a 204 km de Recife,<br />

Pernambuco. Foi uma decisão pensada.<br />

O primeiro emprego que conseguiu em São Paulo foi em Serviços Gerais, num supermerca<strong>do</strong>. Trabalhava de dia, carteira assinada e, na<br />

realidade, naquele momento, o trabalho condizia com o que ele tinha a oferecer.<br />

Então, mesmo saben<strong>do</strong> que o sacrifício seria maior, pediu para trocar seu horário e passar para o turno da noite. Mas por essa decisão?<br />

Porque Angenor se sentia humilha<strong>do</strong>. Continuou no mesmo tipo de serviço, limpan<strong>do</strong> o supermerca<strong>do</strong> durante a noite, trabalho pesa<strong>do</strong>. No<br />

entanto, se sentiu melhor, por que não havia mais público, não havia testemunhas, espelhos, onde Angenor pudesse temer a sua imagem.<br />

A ilusão <strong>do</strong> migrante é acreditar que ele pode deixar, lá na roça, todas as dificuldades e desproteções com que vivia pelejan<strong>do</strong>. Engano. A<br />

desproteção deixa marcas, cria e consolida as condições que o migrante vai trazer para a cidade ou para onde for. Ele traz a pior parte dessas<br />

desproteções – aquela parte que lhe constitui no momento mesmo da chegada: falta de qualificação profissional, baixa ou nenhuma<br />

escolaridade, desinformação, ausência de recursos. As desproteções e ausências da vida na área rural também migram para a cidade grande<br />

e o movimento, pelo menos nesse momento, é o de buscar um novo lugar para acomodar a pobreza. Mudar essa condição exige muito<br />

trabalho, muito esforço e uma grande <strong>do</strong>se de sorte.<br />

Houve um tempo, como contam os migrantes mais velhos, em que emprega<strong>do</strong>res ficavam na ro<strong>do</strong>viária a espera <strong>do</strong>s ônibus que chegavam<br />

<strong>do</strong> nordeste e de Minas Gerais, para oferecer vagas principalmente na construção civil. Ajudante de pedreiro era um trabalho certo para<br />

aqueles que, no final <strong>do</strong>s anos 50, início <strong>do</strong>s 60, desembargavam em São Paulo e no Rio de Janeiro.<br />

Mas, para os jovens que deixaram a área rural recentemente, e que continuam deixan<strong>do</strong>, o contexto em que desembarcam nas cidades é<br />

bastante diferente. Com um merca<strong>do</strong> de trabalho cada vez mais seletivo, exigin<strong>do</strong> qualificação e dispon<strong>do</strong> de farta oferta de mão de obra, o<br />

jovem migrante nas condições de Angenor tem poucas oportunidades de trabalho.<br />

11


Abelhas, mas pouco mel<br />

Sanharó fica na Microrregião <strong>do</strong> Agreste Pernambucano. Foi cria<strong>do</strong> como distrito em 1912, e eleva<strong>do</strong> à categoria de município em<br />

1948. Tem uma população de 18.723 habitantes. Seu IDH Municipal, 2000, era de 0,618. No ranking <strong>do</strong> IDH municipal de<br />

Pernambuco, Sanharó ocupa a 94ª posição, entre os 185 municípios pernambucanos. No ranking nacional, está na 4348ª posição,<br />

entre os 5.560 municípios brasileiros.O município possui uma rede de saúde com 12 estabelecimentos, to<strong>do</strong>s públicos, que no total<br />

dispõem de 12 leitos para internação. Com o IDH-Educação de 0,670, a cidade tem uma rede de ensino com 26 estabelecimentos de<br />

ensino pré-escolar, 36 escolas de Ensino Fundamental e <strong>do</strong>is de Ensino Médio (IBGE). Sanharó é banhada pelo rio Ipojuca, que<br />

deságua no Oceano Atlântico. Famosa como uma das maiores bacias leiteiras <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, é conhecida como a cidade <strong>do</strong> queijo e <strong>do</strong><br />

leite. O nome Sanharó veio de uma espécie de abelha negra existente neste local, denominada sanharó, que em vocábulo indígena<br />

significa zanga<strong>do</strong> ou excita<strong>do</strong>. Sanharó tem várias pequenas fábricas artesanais de queijo de coalho e de queijo e quatro fábricas de<br />

laticínios registradas na Agência de Defesa Agropecuária de Pernambuco. O rebanho bovino de 18 mil animais produz 40 mil litros leite<br />

por dia. No mês de setembro realiza-se a feira <strong>do</strong> leite, com vaquejadas, concurso leiteiro, rodeios e show ao vivo.<br />

Rota de fuga<br />

A área rural continua produzin<strong>do</strong> um enorme contingente de meninas e meninos, jovens, adultos que, envolvi<strong>do</strong>s no trabalho nas lavouras,<br />

isola<strong>do</strong>s em pequenas propriedades, onde as redes de proteção social não chegam, permanecem analfabetos, viven<strong>do</strong> um mo<strong>do</strong> de vida que,<br />

certa vez, Tom Zé, compositor e músico nasci<strong>do</strong> em Irará, na Bahia, classificou como medieval, tamanho o isolamento.<br />

Mas to<strong>do</strong>s sabem que existe uma possibilidade de mudança, uma saída <strong>do</strong> inequívoco destino de repetir a vida que seus pais e avós viveram –<br />

trabalhan<strong>do</strong> a terra, mas sem a certeza <strong>do</strong> retorno, com os frutos da colheita. Sem ler, sem escrever, sem <strong>do</strong>cumentos, esperan<strong>do</strong> e contan<strong>do</strong><br />

com a sorte de conseguir a aposenta<strong>do</strong>ria rural, para pelo menos envelhecer e morrer com alguma dignidade. A sina de trabalhar to<strong>do</strong>s os<br />

dias, faça chuva ou faça sol.<br />

Mas a esperança chega com as notícias sobre a possibilidade de salário to<strong>do</strong> fim de mês, carteira assinada, e, “veja só”, folga sába<strong>do</strong> e<br />

<strong>do</strong>mingo e também, faça chuva ou faça sol. Notícias que no sertão, no agreste, lá no meio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, funcionam como canto da sereia. E São<br />

Paulo, Rio de Janeiro, aparecem como postais <strong>do</strong> El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>.<br />

Lembrar para que?<br />

Angenor veio para São Paulo há seis anos, para ficar com a prima, que alugou casa na favela de Heliópolis. Custou a conseguir trabalho e<br />

sofreu no enfrentamento das dificuldades inerentes à mudança. Mora mal, com a mãe, que chegou de Sanharó há pouco tempo, e com o<br />

irmão, numa casinha sem ventilação, escura, no fun<strong>do</strong> de uma viela úmida. Ganha pouco e ainda não conseguiu voltar a estudar.<br />

Mas a realidade impõe uma condição crucial, que é a necessidade da manutenção da própria vida: melhor salário mínimo <strong>do</strong> que nenhum<br />

salário; melhor uma oportunidade de fazer um “bico”, <strong>do</strong> que nenhuma oportunidade; melhor a viela fria com luz elétrica <strong>do</strong> que a escuridão<br />

permanente <strong>do</strong> agreste sem iluminação.<br />

Angenor fala de uma condição em que não existem saídas. Lá na roça, no meio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, distante às vezes léguas da cidade mais próxima,<br />

não tem como pedir empréstimo, esmola, ajuda. Não tem padaria, sinal de trânsito para vender bala, equilibrar bolinhas, nem sapato para<br />

engraxar; não tem associação de mora<strong>do</strong>res ou associação comunitária a que recorrer.<br />

12


“Não tinha escola perto, não<br />

tinha posto de saúde, nem<br />

telefone, nem ambulância...”<br />

Por isso, Angenor tem a maior tranquilidade em relação à sua decisão de vir para São Paulo e, mais que tu<strong>do</strong>, ficar em São Paulo: “Não<br />

voltaria pra lá de jeito nenhum. Mesmo se eu ficasse sem trabalho aqui, eu não volto pra lá não. Lá o sujeito trabalha o dia inteiro num sol de<br />

rachá pra ganhar muito pouco, ou pra ver a lavoura se perder todinha. Era muito sofrimento”. Ele aprendeu que assim que a pessoa chega da<br />

roça é difícil se adaptar - “A gente leva um susto, fica mesmo se sentin<strong>do</strong> 'maturo', meio com me<strong>do</strong>. Eu então, nunca tinha visto tanta coisa na<br />

vida, tanto prédio grande”. O irmão de Angenor acaba de chegar em São Paulo. E está louco para ir embora de volta. Mas já, já, passa.<br />

Passa, por que segun<strong>do</strong> Angenor, a vida lá na roça é dura demais. No lugar em que a família vivia, longe da sede <strong>do</strong> município, ele não<br />

encontrava nada que lhe possibilitasse pensar em alternativas para seu presente, quanto mais para o futuro. “Não tinha escola perto, não<br />

tinha posto de saúde, nem telefone, nem ambulância...”, Angenor vai enfileiran<strong>do</strong> as ausências. E o mais grave: não tinha trabalho. Por isso<br />

não vai voltar, e é categórico: “eu não busco nem ficar com muita lembrança de lá”. Mas tem lá suas histórias. Vivia com os avós e <strong>do</strong>is tios, na<br />

terra onde plantavam milho, feijão e mandioca, numa lavoura de subsistência. Com <strong>do</strong>ze anos começou a buscar trabalho fora, para capinar,<br />

roçar mato e juntar o ga<strong>do</strong> que se espalhava no campo. – “Eu lembro que, quan<strong>do</strong> eu já sabia fazer o serviço melhor, ganhei cinco mil<br />

cruzeiros, era aquela nota que tinha um piano. Foi a primeira que eu ganhei na minha vida!”.<br />

Angenor só entrou para a escola com 16 anos, sem saber ler nem escrever - “criança lá nem tem cabeça para pensar em escola, não. Vive é<br />

trabalhan<strong>do</strong>, ajudan<strong>do</strong> a família para ter o de comer. E fica tu<strong>do</strong> cansa<strong>do</strong> demais, <strong>do</strong> trabalho duro, de acordar ce<strong>do</strong>. Se trabalhar de dia, tem<br />

que ir estudar de noite na rua, que é longe. Não dá.” O sonho <strong>do</strong> menino era ter uma bicicleta. E <strong>do</strong> seu próprio trabalho foi juntan<strong>do</strong> o<br />

dinheiro que recebia, de pouquinho em pouquinho, “foi in<strong>do</strong>, foi in<strong>do</strong>”, e conseguiu comprar a bicicleta. Angenor sorri e diz que ainda lembra<br />

direitinho, “a bicicleta era quase cain<strong>do</strong> aos pedaços”. Mas aquele sonho cresceu, e virou uma vontade desesperada de mudar de vida –<br />

largar roça, bicicleta velha, tu<strong>do</strong> pra lá... Ligou para a prima que estava em São Paulo e pediu para vir. “Compra a passagem e vem”, ela<br />

respondeu. Pronto!<br />

Em São Paulo, fez “bicos”, trabalhou no supermerca<strong>do</strong>, aju<strong>do</strong>u a família. Seis anos de dificuldades, não há dúvida. Angenor agora trabalha<br />

como vigilante no projeto da UNAS, União de Núcleos Associações e Sociedades de Mora<strong>do</strong>res de Heliópolis e São João Clímaco, para jovens<br />

cumprin<strong>do</strong> medida sócioeducativa. Ainda não voltou a estudar, mas começa a enxergar um desenho de futuro, possibilidades de<br />

qualificação. Ele e os irmãos mandaram buscar a mãe, que é pensionista, e ainda vivia em Sanharó. Ela quer voltar, o irmão quer voltar, e<br />

Angenor deixou uma filha lá na sua cidade, de quem tem saudades. Mas não se abala: “não volto de jeito nenhum!”<br />

13


COM MEU PAI APRENDI QUE O IMPORTANTE<br />

É CRESCER<br />

Francisco Joaquim de Oliveira<br />

Veio de Cajazeiras, Paraíba<br />

Mora em Heliópolis, São Paulo<br />

De sua formosura, deixai-me que diga:<br />

é tão belo como um sim numa sala negativa<br />

Morte e vida Severina, João Cabral de Melo Neto<br />

Seu Francisco declara que nasceu e se criou lutan<strong>do</strong> com a terra. Mas deixou para trás o cheiro <strong>do</strong>ce da terra, <strong>do</strong> milho, e tornou-se adulto,<br />

constituiu família, em São Caetano, São Paulo. Como tantos outros jovens nordestinos, Francisco partiu para o sudeste em busca de vida<br />

melhor. E vida melhor não era apenas a possibilidade de trabalho melhor, ou salário. A esperança de ter acesso também a serviços públicos e<br />

políticas sociais nas áreas mais desenvolvidas economicamente é um motor poderoso para a decisão no movimento de migração.<br />

Seu Francisco cresceu no Sítio Mina<strong>do</strong>r, terra da família – pai, mãe e dez filhos, longe da cidade de Cajazeiras, Paraíba, semiári<strong>do</strong>, com<br />

vegetação de caatinga. O primeiro motivo aponta<strong>do</strong> para a decisão de migrar reside aí, no clima da região. Seu Francisco tinha um me<strong>do</strong><br />

brutal de viver a experiência da seca. “Em 1970 eu tinha 14 anos e quase morri de fome e sede. Foi uma seca terrível, que atingiu Paraíba,<br />

Pernambuco, Rio Grande <strong>do</strong> Norte, Ceará”. A estiagem que atingiu to<strong>do</strong> o nordeste deixou uma marca profunda em Seu Francisco. Não, não<br />

passou fome, comia angu e uma rapadura “tão preta quanto o seu sapato. E mais, tinha até prego dentro! Vou lhe dizer a verdade.”<br />

No isolamento da família no Sítio Mina<strong>do</strong>r, Francisco monitorava os potes de barro, medin<strong>do</strong> dia a dia a água que ainda restava: “Lá em<br />

Cajazeiras era cacimbão, tipo açude... A gente enchia os potes e a água era tão cheia de barro que a mãe tinha que lavar os potes to<strong>do</strong> dia<br />

para tirar a água para os animais, colocar no cocho para eles, e ficar também para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> beber. E a gente ven<strong>do</strong> a hora de secar.”<br />

As secas que ocorrem periodicamente na região <strong>do</strong> semi-ári<strong>do</strong> geram situações de calamidade pública. A devastação das lavouras aprofunda<br />

a pobreza ou torna pobres os pequenos produtores rurais. A palavra, repetida inúmeras vezes, é maltrato – “a seca maltrata demais a gente.”<br />

Na seca de 70, o pai foi trabalhar na rodagem, na frente de trabalho e deixou Francisco com a mãe, que estava grávida, e os irmãos menores.<br />

Os olhos, mais <strong>do</strong> que qualquer palavra, expressam o peso da experiência vivida. E lágrimas vêm à tona. “Dia 19 de janeiro de 1971, quan<strong>do</strong><br />

amanheceu o dia, estava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> choran<strong>do</strong>. Choran<strong>do</strong> de alegria, por que tinha chovi<strong>do</strong>. Eu lembro como se fosse hoje. A seca de 70<br />

magoou to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O nordeste inteiro”, relembra Seu Francisco, com a voz embargada.<br />

15


A terra que ensinou a Paraíba a ler<br />

Cajazeira é um <strong>do</strong>s maiores municípios da Paraíba. A cidade originou-se de um sítio denomina<strong>do</strong> "Cajazeiras", por causa das árvores.<br />

Essa terra fez parte da sesmaria concedida em 1767, pelo Governa<strong>do</strong>r da Capitania, Jerônimo José de Melo, ao pernambucano Luís<br />

Gomes de Albuquerque. O neto de Luís Albuquerque, Padre Inácio Rolim, fun<strong>do</strong>u a “Escolinha da Serra”, por volta de 1829. A escola<br />

cresceu e começou a atrair estudantes de vários esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> nordeste. Em 1843, o Padre Rolim ergue uma "Casa Escola" na fazenda de<br />

seus pais, mais tarde denominada de colégio, que começa a funcionar inclusive em regime de interna<strong>do</strong>. Lá estuda, por exemplo, o<br />

Padre Cícero, <strong>do</strong> Juazeiro <strong>do</strong> Norte, conheci<strong>do</strong> missionário. Muitas outras personalidades estudaram e passaram a morar nas<br />

imediações <strong>do</strong> colégio. Na Paraíba, costuma-se dizer que Cajazeiras é a terra que ensinou a Paraíba a ler. Foram as moradias<br />

construídas perto <strong>do</strong> colégio que deram origem ao município. Cajazeiras tem uma população de 57.875 pessoas. Com Índice de<br />

Desenvolvimento Humano de 0,692, ocupa a 7ª posição no ranking <strong>do</strong> IDH municipal da Paraíba, entre os 223 municípios. No ranking<br />

nacional, está na 3236ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros.<br />

Um cadinho de feijão com farinha<br />

O exercício de resgatar a sua trajetória desde o Sítio Mina<strong>do</strong>r mexe com a emoção de Seu Francisco. Ele está em São Paulo há 35 anos e já lá<br />

se vão 25, desde a última vez em que visitou Cajazeira.<br />

Como outros migrantes, Seu Francisco vive a contradição de acreditar que a vida melhorou em São Paulo e o desejo de reviver a vida na<br />

lavoura. Se por um la<strong>do</strong> ele relembra o prazer de trabalhar na terra, de ver a terra devolver o trabalho como alimento, o cheiro da terra, <strong>do</strong><br />

milho, da manga <strong>do</strong>ce, por outro, tem memórias muito sofridas.<br />

Começou a trabalhar na roça da família com cinco anos de idade. Lembra que o pai fazia para os filhos menores uma enxadinha para carpir.<br />

“Meu pai dizia que serviço de menino é pouco, mas quem perde é louco. Olha que frase! Mas era por que não tinha outra opção, filha”, lembra<br />

Francisco. Por que para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comer, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tinha que trabalhar. Nos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sítio não tinha escola. Aliás, falar em serviços<br />

públicos na área rural com seu Francisco é como falar de miragens, fenômenos estranhos à vida na roça. Escola, posto médico, assistência<br />

social ? “Tinha isso não, filha!”.<br />

A escola mais perto ficava a duas léguas <strong>do</strong> sítio. “Você sabe aquelas veredinhas, que você vai passan<strong>do</strong>, o mato cheio de orvalho? Pois era<br />

assim”. E criança não tinha tempo de ir para escola. O serviço da lavoura consumia toda a energia da família. Serviços de saúde? Posto de<br />

Saúde ficava longe, tinha que ir jumento, de burro... A lembrança de algum cuida<strong>do</strong>, um tipo de atendimento afinal, vem junto com a imagem<br />

de Mãe Chica, a parteira que amparou seus irmãos. No seu caso, quan<strong>do</strong> Mãe Chica chegou só restou cortar o umbigo, por que ele já estava<br />

no mun<strong>do</strong>.<br />

A alimentação, pelo menos, a terra da família de Francisco garantia, quan<strong>do</strong> a seca não destruía tu<strong>do</strong>. Vendiam ou trocavam alguma coisa<br />

extra. De quinze em quinze dias o pai ia à feira comprar café, fumo, açúcar. “A gente tinha também uns porquinhos, peru, galinhas. Quan<strong>do</strong><br />

matava um porco, a mãe mandava entregar um pedaço para o vizinho, que dias depois matava também um animal e devolvia a gentileza”,<br />

lembra Francisco. “Mas a coisa lá não era fácil não. Na minha época eu não sabia nem o que era um rádio a pilha!”. E essa condição foi a<br />

responsável pela decisão de tentar a vida em outro canto. Num lugar em que a natureza não tivesse tanto poder de mudar o destino e onde<br />

houvesse a possibilidade de construir uma vida menos limitada. Os filhos que tivesse poderiam ter escola, médico, formação.<br />

Depois que Francisco serviu no Tiro de Guerra, TG, em Cajazeiras, vincula<strong>do</strong> a 7ª Região Militar, ele resolveu que era hora de partir. O TG é<br />

uma instituição militar <strong>do</strong> Exército Brasileiro, que forma reservistas. O convoca<strong>do</strong> pode conciliar a instrução militar e o trabalho, ou o estu<strong>do</strong>.<br />

16


Em convênio com a Prefeitura, o Exército disponibiliza os instrutores, o fardamento e os equipamentos e a administração municipal oferece<br />

as instalações. Um <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong>s TGs é evitar o êxo<strong>do</strong> rural. Não funcionou com Seu Francisco. O Tiro de Guerra não permitia o<br />

engajamento e ele, com 18 anos achou que aquela era hora. “Eu vim mais João, meu irmão”, lembra Francisco.<br />

Quan<strong>do</strong> chegou em São Caetano ficou assusta<strong>do</strong>. Nunca tinha visto uma cidade daquele tamanho. Logo tirou <strong>do</strong>cumentação e conseguiu<br />

emprego na Refinaria de Óleo Brasil. Ri com a memória desse tempo, em que pouco entendia da cidade, ainda sem saber ler. A primeira<br />

aventura foi com o cartão de ponto. No primeiro dia, Francisco chegou, “catou” lá o primeiro cartão, marcou e saiu. “O número da minha<br />

chapa era 388. O chefe me chamou para perguntar por que eu não tinha bati<strong>do</strong> o ponto? E eu lá sabia que tinha que ser o meu cartão?? Ele<br />

marcou o cartão com o cigarro para eu poder saber qual era...”<br />

Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia<br />

Como qualquer coisa nova inauguran<strong>do</strong> o seu dia<br />

Ou como o caderno novo quan<strong>do</strong> a gente o principia<br />

Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto<br />

A rede familiar funcionou e veio trazen<strong>do</strong>, pelos mesmos caminhos, os parentes de Francisco – primos, irmãos, finalmente o pai e a mãe.<br />

To<strong>do</strong>s vieram para São Caetano. E se estabeleceram em Heliópolis. Em São Caetano conheceu a mulher, que também era de Cajazeira.<br />

Tiveram filhos, que hoje estudam, fizeram faculdade. E isso, para Francisco é o que vale, a recompensa da aventura da migração e da<br />

adaptação a cidade grande, numa dinâmica tão diferente da vida na roça. É com todas as possibilidades de trabalhar, viver, ousar, conhecer<br />

outras pessoas, fazer amigos, que ele se alimenta, e justifica não realizar um desejo um pouco utópico, um sonho, acalenta<strong>do</strong> talvez como<br />

consolo, de um dia voltar a viver na roça. Seu Francisco trabalha na Rádio Comunitária de Heliópolis, fazen<strong>do</strong> participações nos programas,<br />

contribuin<strong>do</strong> na administração e no cuida<strong>do</strong> com o prédio, e não abriria mão da vida que pode trazer mudanças em cada esquina, situação<br />

bem distinta <strong>do</strong> universo cristaliza<strong>do</strong> da roça.<br />

Oportunidades e possibilidades, lembra Francisco, que levaram o Lula a ser Presidente <strong>do</strong> Brasil: “Eu tomava pinga com o Lula no Bar <strong>do</strong> Zé<br />

Brasileiro, outro pernambucano, lá na Humberto de Campos, em São Caetano. Ele era peão da Vilares. E ele também foi cria<strong>do</strong> na roça, em<br />

Caeté. E o que ele é hoje?? Tá ven<strong>do</strong>?”<br />

17<br />

“Mas a coisa lá não era fácil<br />

não. Na minha época eu não<br />

sabia nem o que<br />

era um rádio a pilha!”


ACONTECEU COMIGO E CONTINUA<br />

ACONTECENDO. DO MESMO JEITINHO...<br />

Geronino Barbosa de Souza<br />

Veio de Mato Verde, Minas Gerais<br />

Mora em Heliópolis, São Paulo<br />

Mira veja: o mais importante e bonito, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,<br />

ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudan<strong>do</strong>. Afinam ou desafinam. Verdade maior."<br />

Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas<br />

Geronino trabalhou na roça desde pequeno. Com oito anos já fazia to<strong>do</strong> tipo de trabalho – carpia de enxada, arrancava toco, preparava a<br />

terra para a plantação. E afirma: “de trabalho na roça, tu<strong>do</strong> o que você pensar, eu já fiz”.<br />

Gerô, como Geronino Barbosa de Souza é conheci<strong>do</strong> em Heliópolis, saiu de Mato Verde há 24 anos. Veio embora para São Paulo, deixou<br />

enxada, roça<strong>do</strong>, xibanca. Comprou caderno, lápis, caneta, livros. Ou seja, identificou e se apropriou de outros instrumentos e descortinou<br />

um universo em que é possível refletir, entender e transformar. Fez duas faculdades, é jornalista e pedagogo. Mu<strong>do</strong>u o próprio destino. Mas<br />

denuncia a fatalidade: lá, no sertão de Minas, não muda nada. “Continua tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo jeitinho”, afirma com o velho sotaque mineiro, que<br />

também não mu<strong>do</strong>u. Mas Gerô para, pensa um pouco, e decreta, quase magoa<strong>do</strong>: “eu digo mais, piorou!”. Piorou porque a seca está mais<br />

cruel <strong>do</strong> que no tempo em que ele vivia lá. O tempo das águas, que é como eles chamam o inverno no norte de Minas, tem cada vez menos<br />

água, e o povo cada vez planta menos.<br />

Ele saiu de Mato Verde há tanto tempo, ainda não tem nem 40 anos de idade, que experiência teria da vida na lavoura!? Gerô explica: “saí<br />

com dezesseis anos, por que não agüentava mais. Saí em busca de outra vida. Mas conheço a roça, sim, por que trabalhei desde pequeno,<br />

criança ainda”. Até por que, naquele contexto, a vida não pode ser diferente. A situação real era a seguinte: pai de família não tinha escolha.<br />

Ou colocava a filharada para trabalhar, em terra própria e também na terra <strong>do</strong> patrão, ou morria to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de fome. Não há como<br />

culpabilizar a família por priorizar a plantação em detrimento de uma escola que, a rigor, está a léguas de distância daquele universo.<br />

Geronino, ainda pequeno, entendeu muito bem qual era a relação <strong>do</strong> trabalho com a garantia da comida, mesmo que nunca tenha visto a cor<br />

de dinheiro. A família trabalhava para plantar e colher seu alimento. Gerô tem uma imagem fechada desse passa<strong>do</strong>. Fechada e triste:<br />

“quem põe a mão na terra, quem está lá na ponta, esse, é só sofrimento, por que a área rural está esquecida”.<br />

As memórias da vida na área rural ainda parecem frescas e incomodam. Estão enraizadas e gravadas no corpo também. Gerô mostra o de<strong>do</strong><br />

decepa<strong>do</strong> por uma bombinha de São João que estourou na sua mão. Perdeu parte <strong>do</strong> de<strong>do</strong> porque teve que seguir a pé um longo e demora<strong>do</strong><br />

caminho até o posto de saúde e quan<strong>do</strong> chegou lá, o ferimento já estava muito ruim, sem jeito de consertar. A ausência de serviços de saúde é<br />

tão marcante que a questão parece nem ser percebida, e a idéia de atendimento médico permanece estranha ao universo rural. Tratamento,<br />

19


“Mas quem mais sofre<br />

nesse país é o homem que<br />

trabalha na roça.”<br />

remédio, saúde se resolve com plantas, simpatias e com o tempo. Até 2005, segun<strong>do</strong> o IBGE, a cidade de Mato Verde tinha apenas 10<br />

estabelecimentos de saúde, e 17 leitos para internação para uma população de mais de onze mil pessoas. Gerô entende perfeitamente que<br />

inúmeras famílias, ainda hoje, não considerem colocar as crianças na escola uma prioridade. Prioridade é investir na terra, que também não<br />

se constitui em riqueza, se não devolver em alimentos o trabalho de meses no plantio e nos cuida<strong>do</strong>s com a plantação.<br />

“A pessoa não tem para onde ir, e fica lá, esperan<strong>do</strong> uma bolsa <strong>do</strong> governo para viver. E eu estou falan<strong>do</strong> porque eu vivi isso, e voltei na minha<br />

cidade no ano passa<strong>do</strong>, para ver a minha irmã, visitei todas as roças em que eu trabalhei e continua tu<strong>do</strong> igual – criança trabalhan<strong>do</strong>, porque<br />

os pais são obriga<strong>do</strong>s a colocar os filhos para cuidar da terra, que é para alimentar os filhos menores. E ainda vão aos mesmos merca<strong>do</strong>s onde<br />

tem os cadernos para comprar fia<strong>do</strong>. Ganham o dinheiro, pagam a despesa e compram tu<strong>do</strong> de novo, anotam tu<strong>do</strong> de novo. Trabalham só<br />

para comer. Eu lhe digo que aconteceu comigo e que continua acontecen<strong>do</strong>, como há 24 anos.” O pai aban<strong>do</strong>nou suas terras num lugar<br />

chama<strong>do</strong> Melancias e partiu em busca de vida melhor, onde houvesse água. Foram para Barreiros, “onde tinha um rio”, para trabalhar a terra<br />

alheia, em troca de pagamento em dinheiro. A família limpava a roça, semeava, colhia, plantava pasto para o ga<strong>do</strong>. Escola, mesmo aquela<br />

na varanda da casa da professora, nem pensar. Não dava tempo, e nem pai nem criança valorizava estudar.<br />

A idéia de que era importante ou de que valia a pena colocar as crianças na escola talvez só tenha começa<strong>do</strong> a chegar efetivamente na área<br />

rural com o Programa de Erradicação <strong>do</strong> Trabalho Infantil, PETI, implanta<strong>do</strong> pelo Governo Federal a partir de 1996. Depois de um longo<br />

processo de negociação com organizações da sociedade civil, com a Organização Internacional <strong>do</strong> Trabalho, o governo criou o programa<br />

como uma estratégia de proteção social para crianças com menos de 16 anos, que são tiradas <strong>do</strong> trabalho, ganham uma bolsa-auxílio e<br />

participam de atividades no contra-turno escolar. A bolsa é uma forma de compensar a família pela falta que o trabalho da criança vai fazer.<br />

Na verdade, o PETI foi a alternativa encontrada para fazer com que os pais prescindissem <strong>do</strong> trabalho das crianças. Por outro la<strong>do</strong>, a<br />

valorização da escola vem da condição de que para receber o recurso da bolsa-auxílio, é preciso que a criança frequente a escola.Manter o<br />

filho na escola era a condição para receber o recurso. Mas o processo é lento, não alcança todas as crianças e nem to<strong>do</strong>s os municípios<br />

brasileiros. São esses pequenos pequenos homens <strong>do</strong> campo esqueci<strong>do</strong>s que, segun<strong>do</strong> Gerô, aguardam ansiosamente o aniversário de<br />

dezoito anos, para tomar o rumo <strong>do</strong> novo: “tô só esperan<strong>do</strong> crescer pra ir embora”.<br />

20


Geronino não deixa meias palavras no ar e nem tem dúvida sobre as condições em que vivem crianças e a<strong>do</strong>lescentes no sertão mineiro.<br />

To<strong>do</strong>s vivem esperan<strong>do</strong> a hora de sair de lá, migrar, colocar o pé na estrada para bem longe da ameaça da fome, da falta de trabalho ou da<br />

oferta única <strong>do</strong> trabalho na roça, que não dá garantia de nada. Gerô afirma com toda a convicção: “quem vive na roça, no norte e nordeste,<br />

vive na miséria das misérias, muito pior <strong>do</strong> que qualquer favela nas metrópoles”. E é por isso que os que vêm primeiro mandam buscar<br />

parentes e amigos, mesmo que para viver nas favelas. Gerô, por exemplo, já trouxe a mãe para São Paulo. “Quan<strong>do</strong> eu fui buscar a minha<br />

mãe, a patroa lá na roça perguntou o que a gente vinha fazer aqui”, lembra ele. “Vão morrer de fome”, profetizou a mulher, mas Gerô trazia<br />

no coração a certeza de que “o pior <strong>do</strong>s piores em São Paulo é melhor <strong>do</strong> que a vida na roça de lá.”<br />

“E eu disse isso a ela por que na grande cidade você vai, pelo menos, ter um trabalho, ter carteira assinada, pensan<strong>do</strong> na aposenta<strong>do</strong>ria. E lá,<br />

você morre na roça e nem se aposentar se aposenta, se o patrão não assinar o tal INCRA. Na roça, as pessoas mal têm comida para comer. Lá<br />

ninguém tem entendimento de que existe Conselho Tutelar, que crianças têm direitos, como direito a educação”, acusa Gerô, que aproveitou<br />

a vida na cidade para adquirir informação e conhecimento, o que afinal é poder. Poder de escolha, poder de interferência, poder tornar a vida<br />

maior.<br />

Se eu pudesse, eu voltava pra lá...<br />

Onde tem água, o verde permanece<br />

Mato Verde, de onde Geronino saiu, tinha uma população, em 2009, segun<strong>do</strong> o IBGE, de 12 957 pessoas. O município vive<br />

principalmente da criação <strong>do</strong> ga<strong>do</strong>, da produção de leite, comércio e de pequenas lavouras de subsistência. A cidade tem uma rede de<br />

ensino fundamental com 18 escolas e 2093 matrículas, e apenas uma escola de Ensino Médio. Com um IDH de 0,669, Mato Verde tem<br />

uma incidência de pobreza, segun<strong>do</strong> o Mapa de Pobreza e Desigualdade, <strong>do</strong> IBGE, 2003, de 57,52%. No ranking <strong>do</strong> IDH municipal <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong>, ocupa a 674ª posição, entre os 853 municípios mineiros. No ranking nacional, está na 3472ª posição, entre os 5.560<br />

municípios brasileiros. O Bispo Dom João Antônio <strong>do</strong> Santos, foi o mentor da criação <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong>, em visita a região, em 1872,<br />

convenceu o povo de que seria mais fácil resolver seus problemas de forma conjunta, moran<strong>do</strong> próximos uns <strong>do</strong>s outros. Antes da<br />

formação <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong>, a partir das primeiras décadas <strong>do</strong> século XVIII, já havia si<strong>do</strong> iniciada a ocupação da região. Alguns<br />

explora<strong>do</strong>res vieram de Salva<strong>do</strong>r, para ocupar o Vale <strong>do</strong> São Francisco. E no fim <strong>do</strong> século XVIII, ou início <strong>do</strong> século XIX,<br />

estabeleceram-se na região de São João <strong>do</strong> Bonito, João José da Silveira e alguns companheiros que, após terem participa<strong>do</strong> da<br />

Inconfidência Mineira, ali chegaram, fugi<strong>do</strong>s da perseguição movida contra os inconfidentes. Região de poucas chuvas e clima semiári<strong>do</strong>,<br />

somente às margens <strong>do</strong> Rio Viamão, ou "Rio Mato Verde", a vegetação permanecia verde mesmo durante os meses de seca, o<br />

verão que vai de abril a outubro. Os mora<strong>do</strong>res passaram a chamar o lugar de Mato Verde, nome oficializa<strong>do</strong> com a criação <strong>do</strong> distrito<br />

de Santo Antônio <strong>do</strong> Mato Verde. Na "febre <strong>do</strong> algodão", entre 1950 e 1990, o município progrediu muito, mas a praga <strong>do</strong> "bicu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

algo<strong>do</strong>eiro" atacou as lavouras, e os produtores não conseguiram enfrentar o inimigo, perden<strong>do</strong> as lavouras.<br />

Geronino está feliz em São Paulo e se considera uma pessoa realizada, bem vivida. Mas, mesmo com tu<strong>do</strong> isso, ele fala com respeito de suas<br />

origens, e faz uma confissão: “Olha, se eu pudesse escolher, eu viveria na minha cidade. Por que lá é a minha terra, a cidade onde eu nasci; as<br />

pessoas que me viram nascer, estão lá, estão vivas. Tem a terra que era da minha avó, mãe de minha mãe, e a terra <strong>do</strong> meu pai ... Mas como<br />

é que vou??? Não tem condição de viver lá. Eu deixei de ser agricultor, mas eu tenho que dizer que quem mais sofre com a má distribuição de<br />

renda no país é o agricultor. Quem está nas favelas, nos cortiços, esse povo sofre. Mas quem mais sofre nesse país é o homem que trabalha<br />

na roça. O pequeno agricultor tá lá aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, sem nada que lhe dê apoio. É só sofrimento.” Gerô não é único migrante que manifesta a<br />

saudade da terra natal. Mas também não é o único que faz a opção consciente pela vida na favela, em comunidades muitas vezes caóticas,<br />

mas que têm um grande diferencial – a oportunidade.<br />

21


A PAZ DE AVELINO LOPES PODERIA AJUDAR<br />

Zenil<strong>do</strong> Ribeiro da Silva<br />

Veio de Avelino Lopes, Piauí<br />

Mora em Heliópolis, São Paulo<br />

Toda vez que <strong>do</strong>u um passo o mun<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> lugar. Eu vivo no mun<strong>do</strong> com me<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> me atropelar<br />

Toda vez que <strong>do</strong>u um passo o mun<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> lugar. E o mun<strong>do</strong> por ser re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, tem por destino embolar<br />

Siba<br />

A estrada que atravessa Avelino Lopes dá acesso a Curimatá, Parnagua e Correntes. Há também um acesso ao ex-distrito, e atual município<br />

de Cabeça no Tempo.<br />

Zenil<strong>do</strong> ainda não voltou para Avelino Lopes por que faz tratamento psiquiátrico, para controlar a esquizofrenia, em São Paulo. Ele acha que<br />

o sossego das terras da família, no sul <strong>do</strong> Piauí, quase divisa com a Bahia, lhe faria bem. Poderia <strong>do</strong>rmir no terreiro, sob o céu estrela<strong>do</strong> e<br />

então, quem sabe, as vozes estranhas se calariam e, no aconchego da casa paterna, o mun<strong>do</strong> voltaria para seu lugar, firme e equilibra<strong>do</strong>.<br />

Seguro. A cabeça, enfim, dentro de seu próprio tempo. Talvez. Mas segurança, afinal, não é palavra para definir, nem de perto, a vida em<br />

Avelino Lopes, nas terras da família.<br />

Pai, mãe e nove irmãos. To<strong>do</strong>s nasci<strong>do</strong>s na mesma casa, onde ainda moram seus pais, hoje ampara<strong>do</strong>s pela aposenta<strong>do</strong>ria rural, o que<br />

aju<strong>do</strong>u a melhorar um pouco a situação. A família é <strong>do</strong>na de uma boa terra, “sitiozão”, diz Zenil<strong>do</strong>. Mas terra que exigia trabalho árduo. Das<br />

seis da manhã ao meio-dia, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> na roça, sob o sol <strong>do</strong> sertão. Intervalo para almoço, para cuidar <strong>do</strong>s animais – um bode, um cabrito,<br />

um jumento – e para um tantinho só de descanso. Por volta das duas da tarde, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de volta para a lida com a terra, guerrean<strong>do</strong> o<br />

mato, as pragas, as intempéries. Guerrean<strong>do</strong> com o destino. Plantavam “de tu<strong>do</strong> um pouco” – feijão, mandioca, melancia, milho.<br />

Zenil<strong>do</strong> labutou na roça <strong>do</strong>s sete aos dezessete anos. Foi cria<strong>do</strong> roçan<strong>do</strong>, brocan<strong>do</strong>, plantan<strong>do</strong> na terra <strong>do</strong>s Ribeiro da Silva, em Avelino<br />

Lopes, a 9 horas de Teresina. A água não era problema: “água tem muito. Não é água de açude, mas água de poço. Não é tão boa, é água de<br />

sal. Mas tem muita água. Tem até uma pesquisa que diz que o sul <strong>do</strong> Piauí é o mais rico de água. É poço artesiano”. Mas em Avelino Lopes<br />

existem famílias que até a pouco percorreiam seis quilômetros para conseguir água.<br />

E a família vivia da roça? Zenil<strong>do</strong> dá a dimensão <strong>do</strong> que representa a terra e, mais que a terra, os frutos da terra para o homem <strong>do</strong> campo: “o<br />

que a gente plantava na roça era pra tu<strong>do</strong> - pra comer, para vestir, para comprar calça<strong>do</strong>. Era pra tu<strong>do</strong> mesmo”. Mas o tu<strong>do</strong> que conseguiam<br />

produzir não bastava para suprir tu<strong>do</strong> o de que precisavam. Por que nessa equação de investimento de trabalho na terra e retorno que ela dá<br />

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entra ainda o imprevisível – “Tinha anos que ganhava um pouco e tinha ano que não ganhava nada, por que quan<strong>do</strong> não perdia para o sol,<br />

perdia para a chuva”. E, em perden<strong>do</strong> a lavoura, restava “nada, nada mesmo”..<br />

Nesse contexto, a família tinha que criar sua própria “política de subvenção”: o pai migrava para São Paulo, conseguia um trabalho ou fazia<br />

biscates, e ganhava dinheiro para enviar para a manutenção da família e de sua lavoura. O Esta<strong>do</strong> passava longe. Zenil<strong>do</strong> diz que apesar <strong>do</strong><br />

que to<strong>do</strong>s os nove irmãos, to<strong>do</strong>s homens, faziam na terra, a família “sempre dependeu de São Paulo”. Ou seja, havia sempre alguém geran<strong>do</strong><br />

renda “na cidade grande” para complementar ou mesmo prover a renda familiar – “sempre alguém da família tava aqui e mandava dinheiro<br />

para ajudar, por que só o dinheiro da roça não dava”.<br />

O meu aconchego<br />

A população de Avelino Lopes, na região <strong>do</strong> Semi-ári<strong>do</strong> brasileiro, é estimada em 2009 pelo IBGE em 12.039 almas. O nome <strong>do</strong> lugar<br />

vem da visita, em 1914, de Avelino Lopes <strong>do</strong> Couto, vin<strong>do</strong> da Bahia, que instalou fazenda de ga<strong>do</strong> nas proximidades de uma lagoa<br />

onde, posteriormente, um grupo de baianos formaria o núcleo populacional. Naquele tempo, chamava-se ao lugar Lagoa de Dentro.<br />

Em 1952, foi inaugurada a feira de Avelino Lopes, que atraiu produtores de todas as localidades vizinhas, consolidan<strong>do</strong> o lugar. Ainda<br />

hoje, essa feira mantém a tradição de ser a maior da região. Em 1955, instituiu-se Nossa Senhora das Mercês como padroeira da<br />

cidade, com a construção de sua capela, que oficializava as cerimônias religiosas. O Índice de Desenvolvimento Humano de Avelino<br />

Lopes é 0,574. No ranking <strong>do</strong> IDH municipal <strong>do</strong> Piauí, o município ocupa a 136ª posição. No ranking nacional, está na 5060ª posição,<br />

entre os 5.560 municípios brasileiros. O município, localiza<strong>do</strong> microrregião das Chapadas produz basicamente feijão, arroz e milho. Em<br />

relação aos serviços de saúde, Avelino Lopes tem 03 estabelecimentos, disponibilizan<strong>do</strong> 11 leitos para internação. Zenil<strong>do</strong> teria pouca<br />

chance de um tratamento eficaz na sua cidade natal. Na área de educação, são 36 escolas de ensino fundamental, e uma de ensino<br />

médio.<br />

Toda vez que <strong>do</strong>u um passo o mun<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> lugar. Ouço o mun<strong>do</strong> me dizen<strong>do</strong>: corra pra me acompanhar!<br />

Toda vez que <strong>do</strong>u um passo o mun<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> lugar. Se eu correr e ir atrás <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vou gastar meu calcanhar<br />

Siba<br />

A família de Zenil<strong>do</strong>, plantava, colhia, guardava o que equivalia ao seu sustento, à alimentação da família e levava os produtos para vender na<br />

feira. “Mas já pensou o que é você fazer comida para oito homens que tão vin<strong>do</strong> da roça?”, pergunta Zenil<strong>do</strong>, lembran<strong>do</strong> da ameaça, a mais<br />

freqüente, mais provável e assusta<strong>do</strong>ra, que era a fome. Mas Zenil<strong>do</strong> diz que fome mesmo nunca passou. “quan<strong>do</strong> não tinha feijão, meu pai<br />

ia lá no mato e matava um Juriti, um Verdadeiro. Se a coisa ficasse muito feia, a gente trabalhava para os outros, na enxada. Trabalhava de<br />

dia para comer de noite.”<br />

Zenil<strong>do</strong> nasceu em 1979, em pleno perío<strong>do</strong> de uma das piores secas da história. A seca que começou em 79 durou até 84 e atingiu toda a<br />

região <strong>do</strong> nordeste. Não houve colheita numa área de quase 1,5 milhões de km2. Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s da Sudene, entre 1979/1984, morreram na<br />

região 3,5 milhões de pessoas, a maioria crianças, por fome e enfermidades derivadas da desnutrição.<br />

Como uma destino traça<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sabia que quan<strong>do</strong> os jovens completassem 18 anos, era hora de partir para São Paulo, arrumar<br />

recursos para “subsidiar” a vida da família na roça. Quem estava em São Paulo, dividia moradia e aluguel para economizar e fundava os<br />

alicerces da migração futura, de vários e vários membros das comunidades rurais, que engrossariam as populações das favelas, reincidin<strong>do</strong><br />

em desproteções variadas. Mas, como lembra Zenil<strong>do</strong>, se não tivesse dinheiro vin<strong>do</strong> da cidade, “a coisa ficava feia, por que a roça não dava.<br />

Por isso, a gente pegou sempre a linha um <strong>do</strong> outro. Sempre quan<strong>do</strong> o homem completava dezoito anos, o destino dele era vir para São Paulo.<br />

Lá ele não consegue nada. Aqui é mais fácil, mesmo sem escolaridade, por que ninguém ia para escola, não. Não é que meu pai não queria<br />

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dar escola pra gente... Mas a preferência era a roça. Senão, passava a fome. A distância de casa para a escola era de uma hora e meia<br />

andan<strong>do</strong>, e a gente não 'tinha cabeça' para escola. Olhe, tinha que sair antes <strong>do</strong> meio dia para chegar na escola à uma hora. E antes já tinha<br />

i<strong>do</strong> para roça, já tinha da<strong>do</strong> água a bode, jumento, cavalo”, justifica Zenil<strong>do</strong>.<br />

Hoje são quatro irmãos em São Paulo, e a vida ficou melhor um pouco por causa da aposenta<strong>do</strong>ria rural <strong>do</strong>s pais. Mas até hoje, onde mora a<br />

família de Zenil<strong>do</strong>, não tem luz elétrica. Ainda é candeeiro. Mas não tem que faça os pais saírem da roça, e nem os outros cinco irmãos. Tem<br />

até um deles que é verea<strong>do</strong>r, mas que vive na roça, de onde só sai quan<strong>do</strong> tem sessão na Câmara.<br />

E tem hora que até me canso de ver o mun<strong>do</strong> rodar. Toda vez que <strong>do</strong>u um passo o mun<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> lugar<br />

Quan<strong>do</strong> eu vou <strong>do</strong>rmir eu rezo pro mun<strong>do</strong> me acalentar. Toda vez que <strong>do</strong>u um passo o mun<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> lugar<br />

De manhã escuto o mun<strong>do</strong> gritan<strong>do</strong> pra me acordar<br />

Siba<br />

Há uns seis anos Zenil<strong>do</strong> começou a manifestar sintomas que levaram ao diagnóstico de esquizofrenia. Fica deprimi<strong>do</strong>, nervoso, não<br />

consegue <strong>do</strong>rmir, escuta vozes. Não <strong>do</strong>rme mesmo com medicamento. O trabalho como voluntário na rádio comunitária de Heliópolis é uma<br />

terapia: “Se eu sair dessa rádio eu acho que eu não escapo não. Por que aqui é onde eu abro mais a mente, sabe? Por que eu mu<strong>do</strong> sem<br />

querer. Eu tô aqui, de repente já mu<strong>do</strong>. Eu não quero ser assim, mas não consigo. Você não pode nem olhar pra mim que eu acho que é<br />

perseguição a minha vida. Eu queria sair disso, mas não tem jeito. Eu já aprendi mais, mas ainda é difícil. Agora eu não ligo nem para a voz<br />

que eu escuto.”<br />

Zenil<strong>do</strong> está casa<strong>do</strong> com uma baiana que veio de Pilão Arca<strong>do</strong>, no norte da Bahia, pertinho de Avelino Lopes, para ficar com ele. Nas mãos<br />

dela ainda estão os calos <strong>do</strong> trabalho na roça. E ela trouxe um pouco de alento para o mari<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> Zenil<strong>do</strong> chegou em São Paulo teve um<br />

impacto tremen<strong>do</strong> com o fluxo <strong>do</strong>s carros, o metrô, o trânsito. No sítio em Avelino Lopes, era difícil ver um carro passar. Às vezes levava <strong>do</strong>is<br />

meses para ver um carro. E ele está dividi<strong>do</strong> por dentro. Na alma, na emoção, no pensamento. Talvez, sua terra natal, o silêncio <strong>do</strong> sertão<br />

ajudasse Zenil<strong>do</strong> a se reencontrar, unir seus pedaços dispersos. E talvez, como o poeta pernambucano, ele entendesse que toda vez que dá<br />

um passo, o mun<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> lugar e decidisse, também como fez o poeta: nem vou gastar meu juízo queren<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> explicar.<br />

“Tinha anos que ganhava um<br />

pouco e tinha ano que não ganhava<br />

nada, por que quan<strong>do</strong> não perdia<br />

para o sol, perdia para a chuva.”<br />

25


MANGUEIRA TEU CENÁRIO É UMA BELEZA<br />

O Complexo da Mangueira, na Zona Norte <strong>do</strong> Rio de Janeiro, sub-região de São Cristóvão, tem cerca de 14 mil habitantes e 3800 <strong>do</strong>micílios,<br />

segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Instituto Pereira Passos, para 2000.<br />

O Complexo constitui a terceira mais antiga favela <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e agrega a seu histórico a tradição <strong>do</strong> samba, com artistas famosos,<br />

como Cartola e Carlos Cachaça, e com a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, de fama internacional e que desempenha um<br />

importante papel na construção da identidade da comunidade.<br />

Os primeiros barracos da região teriam si<strong>do</strong> construí<strong>do</strong>s já em 1852, nas terras <strong>do</strong> Visconde de Niterói, na época da inauguração <strong>do</strong><br />

telégra<strong>do</strong>, próximo à Quinta da Boa Vista. O morro onde foi instala<strong>do</strong> o telégrafo, em localização estratégica, pertencia ao Exército, que<br />

tolerava a ocupação informal. A ocupação começa a crescer efetivamente a partir de 1900, com a migração da população desalojada <strong>do</strong>s<br />

cortiços <strong>do</strong> centro da cidade, que buscava alternativas de moradia para poder permanecer na região, onde havia oferta de trabalho. Os<br />

mora<strong>do</strong>res acreditam que o nome da comunidade veio <strong>do</strong> mangueiral que existia próximo a linha <strong>do</strong> trem da Central <strong>do</strong> Brasil. O nome era tão<br />

marcante que a estação de trem foi batizada de Mangueira, em 1889.<br />

Já a partir <strong>do</strong>s anos 30, a população <strong>do</strong> morro aumenta significativamente com a chegada de migrantes mineiros e nordestinos, em busca de<br />

trabalho nas indústrias que se instalavam no Rio de Janeiro.<br />

São quatro comunidades que formam o Complexo – Telégrafo, Mangueira, Chalé e Candelária. Existem outros espaços menores, como o<br />

Buraco Quente e a Vila Miséria, que como o nome já diz, abriga a população em situação de extrema pobreza.<br />

A Mangueira tem uma situação privilegiada em relação a estruturas funcionais da cidade. Fica próxima à linha de trem e <strong>do</strong> metrô, e em<br />

to<strong>do</strong>s os seus acessos dispõem de linhas de transportes. A favela conta com uma Vila Olímpica, construída em 1987, com instalações<br />

esportivas disponibilizadas para projetos sociais.<br />

O Complexo foi alvo, entre 1993 e 1995, de um amplo processo de urbanização, implanta<strong>do</strong> pelo Programa Favela-Bairro, que fez obras de<br />

infra-estrutura urbana, acessibilidade, e construção de equipamentos sociais. Em relação à infra-estrutura, a Mangueira apresenta 98,20%<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>micílios com esgotamento sanitário, 82,92% contam com serviços de coleta de lixo e 98,87% dispõem de abastecimento de água. Na<br />

favela, a rede pública de ensino tem cinco escolas, uma pré-escola e quatro creches, segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Instituto Pereira Passos.<br />

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COISAS QUE NÃO TEM EXPLICAÇÃO<br />

Antonio Souza Martim<br />

Veio de Hidrolândia, Ceará<br />

Vive na Mangueira, Rio de Janeiro<br />

O martírio <strong>do</strong> homem, ali, é o reflexo de tortura maior,<br />

ampla, abrangen<strong>do</strong> a economia geral da Vida.<br />

Nasce <strong>do</strong> martírio secular da Terra...<br />

Os Sertões, Euclides da Cunha.<br />

Tem gente tão distraída, esquecida <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, de sua própria trajetória, que quan<strong>do</strong> alguém lhe cobra lembranças, fica assustada, diz que<br />

nem tem memória.<br />

- O senhor lembra, Seu Antonio, da vida lá na roça? Como o senhor vivia, como era seu dia-a-dia?<br />

Seu Antonio sorri e olha desconfia<strong>do</strong>, surpreso com a pergunta. A primeira resposta, rápida e incisiva, é “não, lembro disso não”.<br />

Desanima<strong>do</strong>r. Seu Antonio não entende que interesse é esse pelo passa<strong>do</strong>, por uma história tão simples – “o que é que tem pra contar de vida<br />

na roça?”<br />

Mas frente ao desafio de lembrar, a pessoa olha para dentro e começa a perceber que tem lá seus tesouros, há muito não visita<strong>do</strong>s, e é como<br />

se acendesse a luz de um quarto escuro, esqueci<strong>do</strong>. “Eu sou de Hidrolândia, lá no Ceará”, diz Seu Antonio. Pronto, abriu-se uma comporta.<br />

Às vezes, esse movimento libera emoções contidas há muito tempo, e o homem, distraí<strong>do</strong> que estava, pego de surpresa, chora. No caso <strong>do</strong><br />

Seu Antonio, as lágrimas brotam sem aviso prévio, quan<strong>do</strong> ele diz que a mãe, que ficou lá em Hidrolândia, morreu há nove meses. E faz mais<br />

de dez anos que ele não ia ver a família, e agora... Nunca mais vai rever a mãe.<br />

“Eu vim embora de lá, não sei nem explicar por que”, declara. Mas o que Seu Antonio diz que não sabe explicar, ele começa a reconstruir<br />

pouco a pouco, alinhavan<strong>do</strong> o cotidiano e as dificuldades da vida na roça com os fragmentos de sua história.<br />

“Eu acho que foi mesmo que eu cansei de trabalhar na roça... O trabalho da roça é brabo. Sabe como é? Começa brocan<strong>do</strong> o roça<strong>do</strong> lá no mês<br />

de junho e julho, começa um trabalho brabo mesmo. E se tem estiagem perde aquilo tu<strong>do</strong>. E daí que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> começou a querer vim<br />

29


embora pro Rio, pra São Paulo... E a gente pegava e vinha.” O que aparece primeiro é a insegurança em relação aos frutos <strong>do</strong> próprio<br />

trabalho, o me<strong>do</strong> da seca, como um <strong>do</strong>s motivos para deixar a família e a vida no campo.<br />

Depois, atualizan<strong>do</strong> a sua experiência de vida, Seu Antonio diz que a maior diferença para ele, entre a vida na roça e a vida na cidade, é o<br />

componente de solidariedade. Lá na roça, até por causa <strong>do</strong> isolamento a vizinhança se ajuda, “o povo se preocupa com os outro, uns é mais<br />

amigo <strong>do</strong>s outro, né?” Ele fala da amizade, de uma união entre os vizinhos que não vê existir na metrópole. E conta, exemplifican<strong>do</strong>, que<br />

quan<strong>do</strong> alguém matava uma criação, sempre mandava um pedaço para alguém. Mas a continuação da narrativa mostra que o costume de<br />

dividir tinha sua origem também numa necessidade – “Lá não tem esse negócio de botar na geladeira, de guardar comida. Quan<strong>do</strong> sobrava,<br />

dividia tu<strong>do</strong>”, diz Antonio, para logo depois cair em si: “é, mas também não tem luz pra ter geladeira, né? Lá no interior não tem luz, nem<br />

nada. Nós vivia com lamparina de querosene, minha mãe fazia o pavio de algodão. Quan<strong>do</strong> dava seis horas tinha que <strong>do</strong>rmir. Não tinha<br />

televisão, não tinha nada”.<br />

Seu Antonio emenda as lembranças na escuridão <strong>do</strong> campo, quan<strong>do</strong> ele andava, sem me<strong>do</strong>, pelas veredas de sua terra. E seu coração se<br />

volta para as estórias de lobisomem, da magia das tempestades, a escuridão. - A gente andava naqueles caminhos estreitinho, se fosse<br />

época de inverno não enxergava nada. Uma vez eu saí um pouco tarde lá da cidade, mas ainda tava claro... sabe que hora eu fui chegar?? Eu<br />

sai da cidade seis horas e só cheguei dez hora da noite, um lugar que era pertinho. Eu tinha que andar quan<strong>do</strong> abria o relâmpago. E ia me<br />

guian<strong>do</strong> pelas pedras que eu conhecia e via no relâmpago.”<br />

E não tinha me<strong>do</strong>. Lá na roça não tem me<strong>do</strong> de assalto, de bandi<strong>do</strong>, “dessas maldades que se faz na cidade”. Mas lá tem outras estórias,<br />

coisas de lobisomem, <strong>do</strong> amortalha<strong>do</strong>. Amortalha<strong>do</strong>? “Amortalha<strong>do</strong> é um cara que fez maldade com os outros, e ele vai no padre, para se<br />

confessar, de mo<strong>do</strong> a resolver. E o padre, de mo<strong>do</strong> para tirar os peca<strong>do</strong>, o padre veste ele com uma veste que nem a <strong>do</strong> padre. Ele fica por lá,<br />

pagan<strong>do</strong> a pena. O padre passa para ele ir no cemitério à noite, nas encruzilhadas, onde tem cruz ... parece que é um ano, seis anos que<br />

leva... Ele não faz nada de mal não. Vamos dizer, eu sou um amortalha<strong>do</strong>, se você mexer comigo, eu jogo aquela mortalha em cima de você,<br />

e os peca<strong>do</strong> passa; o peca<strong>do</strong> que era meu vai pra você. E você é que vai andar amortalhada!” Seu Antonio ri, divertin<strong>do</strong>-se com as próprias<br />

lembranças.<br />

E a escola? Escola não havia. Pode ser até que houvesse escola, em algum lugar para além das veredas, mas o que não existia, na verdade,<br />

era a possibilidade de ir à escola. Ou melhor, ninguém considerava importante ir para a escola, isso estava fora <strong>do</strong> campo de possibilidades da<br />

família de Seu Antonio e de tantas outras famílias. “Criança também tinha que trabalhar, ajudar na plantação. E ninguém tinha cabeça pra ir<br />

pra escola. Naquele tempo não tinha. Eu fui um pouco pra escola, mas não aprendi nada, não.”<br />

Manancial com poucas águas<br />

Hidrolândia, no Ceará, semi-ári<strong>do</strong> nordestino, nasceu às margens <strong>do</strong> Rio Botoque, que hoje corta a cidade de 19 252 habitantes (IBGE,<br />

2009). O rio Botoque já deu o nome à cidade, que também se chamou Cajazeiras e Cajazeiras <strong>do</strong> Timbó. O nome atual vem de uma<br />

fonte de águas sulfurosas, que atraiu romarias à cidade, em busca de seus efeitos curativos “milagrosos”. O povoa<strong>do</strong> tem origem no<br />

século XVIII, quan<strong>do</strong> em torno da Casa Grande se reuniam agrega<strong>do</strong>s e serviçais <strong>do</strong>mésticos. Em 1882 já é um povoa<strong>do</strong>, e é elevada a<br />

município em 1957. O Índice de Desenvolvimento Humano de Hidrolândia, em 2000, era de 0,638, No ranking <strong>do</strong> IDH municipal <strong>do</strong><br />

Ceará, ocupava a 77ª posição, entre os 184 municípios cearenses. No ranking nacional, estava na 3972ª posição, entre os 5.560<br />

municípios brasileiros. A cidade tem uma rede de serviços de saúde com seis estabelecimentos, que oferecem 25 leitos para<br />

internação. A rede de Ensino Fundamental dispõe de 46 escolas; o Ensino Médio tem duas escolas e a rede de pré-escolar tem 41<br />

escolas.<br />

30


Uma outra escuridão<br />

Enquanto conta sua história, Seu Antonio trabalha, ensacan<strong>do</strong> castanhas de caju assadas. Ele presta serviço numa loja de produtos<br />

nordestinos na Feira de São Cristóvão ou Feira <strong>do</strong>s Paraíbas, como é conheci<strong>do</strong> o Centro de Tradições Nordestinas, na zona norte <strong>do</strong> Rio de<br />

Janeiro. Conversan<strong>do</strong>, ele vai refazen<strong>do</strong> a sua história e parece que é nesse momento que ele percebe o quanto distante da vida atual está a<br />

sua experiência na roça. Se no início da conversa sua terra natal, com sua cultura e suas práticas, a lavoura, apareceram na sua fala como<br />

um tempo e uma experiência semelhantes a sua vida no Rio, como se não houvesse descontinuidades, ao longo da narrativa ele parece<br />

perceber a enorme distância que separa Hidrolândia de 40 anos atrás <strong>do</strong> Rio de Janeiro em que ele vive hoje. Enquanto conta, ele percebe<br />

que as histórias de sua terra são muito distintas das práticas, hábitos e condições de vida no Rio de Janeiro e vai, pouco a pouco,<br />

compreenden<strong>do</strong> que sim, ele tem muita coisa para contar.<br />

E na sua fala percebe-se, também, que a essência <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> campo que migrou há quatro décadas parece intocada, como se tivesse si<strong>do</strong><br />

muito pouco afetada pela cidade grande. Afinal, Seu Antonio é mais um migrante que permanece à margem de to<strong>do</strong>s os serviços, acessos e<br />

oportunidades que a metrópole oferece. Ele permanece um pouco naquela escuridão de que ele falou repetidamente – a escuridão <strong>do</strong>s<br />

caminhos, o lobisomem andan<strong>do</strong> nas sombras, a inexistência da escola no seu campo de possibilidades. Então, com baixa escolaridade, sem<br />

redes de solidariedade, capital social e recursos objetivos e subjetivos que pudessem efetivamente impulsionar mudanças significativas em<br />

sua vida, seu Antonio permaneceu analfabeto, no sub-emprego. Sua pobreza mu<strong>do</strong>u de lugar, ficou mais próxima das proteções, mas em<br />

essência, nada mu<strong>do</strong>u.<br />

Seu Antonio não se casou, e não sabe explicar muito bem porque. Agora tem um pouco de arrependimento. Está “sozinho no mun<strong>do</strong>”, com a<br />

morte da mãe e <strong>do</strong> pai, e aqui no Rio de Janeiro, tão longe de casa. E no meio da cidade grande, desta multidão, vive ainda a solidão <strong>do</strong><br />

excluí<strong>do</strong>.<br />

“...e daí que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

começou a querer vim<br />

embora pro Rio, pra São<br />

Paulo... E a gente<br />

pegava e vinha.”<br />

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AMOR NA ADVERSIDADE<br />

Maria da Gloria Silva<br />

Veio de Manhuaçu, Minas Gerais<br />

Mora na Mangueira, Rio de Janeiro<br />

Que a vida não é só isso que se vê<br />

É um pouco mais<br />

Que os olhos não conseguem perceber<br />

Sei lá, Mangueira, Paulinho da Viola e Hermínio Carvalho<br />

Dona Glorinha casou bem novinha, com 16 anos. Quase uma menina. O pai, que tinha trabalha<strong>do</strong> no cinema em Manhuaçu, mu<strong>do</strong>u-se mais<br />

para o interior, para trabalhar como administra<strong>do</strong>r numa fazenda. Maria da Glória tinha 11 anos. Em nenhuma das duas situações Dona<br />

Glorinha, como é conhecida na Mangueira, sentiu na pele as dificuldades da vida <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r rural.<br />

Certa feita, o pai, que também era serra<strong>do</strong>r, foi prestar serviço numa fazenda das re<strong>do</strong>ndezas e levou a família. Lá, a jovem Glorinha<br />

conheceu o futuro mari<strong>do</strong>, José, então com 19 anos. O amor selou o destino desse casal cuja trajetória até o Rio de Janeiro, nessa casa numa<br />

viela <strong>do</strong> Buraco Quente, Mangueira, pode revelar um contexto maior, onde tantas vidas se cruzam e formam um quadro da história <strong>do</strong> país. A<br />

história da família de D. Glória revela a história da cidade e de tantos outros migrantes que se tornam os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s assentamentos<br />

populares urbanos. A impressão é de que acabamos, to<strong>do</strong>s, reféns de papéis pré-defini<strong>do</strong>s, sem saída, hui clos.<br />

E mesmo que às vezes as<br />

decisões pareçam tão subjetivas, um segun<strong>do</strong> olhar revela que a trajetória seguiu quase um script,<br />

seus personagens abraçan<strong>do</strong> as únicas<br />

opções que lhes cabiam.<br />

Você também me lembra a alvorada<br />

Quan<strong>do</strong> chega iluminan<strong>do</strong> meus caminhos tão sem vida<br />

Mas o que me resta é bem pouco, quase nada<br />

Do que ir assim vagan<strong>do</strong> numa estrada perdida<br />

Alvorada, Hermínio Carvalho e Carlos Cachaça<br />

Manhuaçu, na Zona da Mata mineira, foi pólo cafeeiro desde a primeira metade <strong>do</strong> século XIX. A família de Seu José era meeira de cafezal,<br />

tinha sua lavoura de subsistência, criava porcos, animais. Ele também trabalharia no cafezal, no entanto, ganhava a vida trabalhan<strong>do</strong> para<br />

outros, e tinha que procurar serviço, se virar - capinava, lavava café nas madrugadas, e ia de carro de boi pegar o fruto em outras fazendas,<br />

cortava lenha no mato para vender. E o agravante era que Seu José era analfabeto, por que a sua família nunca valorizou educação<br />

–“bobageira esse negócio de estudar. O que manda é o braçal.” Então, conta Dona Glorinha, quan<strong>do</strong> ele vendia a lenha, quem media, para<br />

definir o preço, era outra pessoa, e “às vezes tirava da conta metros e metros de lenha”.<br />

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As escolas que existiam eram nas fazendas, com a professora paga pelo fazendeiro para ensinar as crianças <strong>do</strong> lugar. A professora vinha de<br />

longe e muitas vezes passava a semana na fazenda, cuidan<strong>do</strong> da escolinha montada nas tulhas, onde se guardavam mantimentos. Mas como<br />

o pai de José, muitas famílias não liberavam suas crianças para ir a escola. Tinha serviço demais.<br />

D. Glorinha trabalhava na casa da fazenda, no serviço <strong>do</strong>méstico ou cuidan<strong>do</strong> das crianças pequenas. Na época, o café já estava em declínio.<br />

Apesar de ser uma atividade secundária, nas décadas anteriores, voltada apenas para abastecer as fazendas com carne e leite, a pecuária<br />

expandia-se e José via sua paisagem mudar, ou melhor, mudava ele mesmo a paisagem, arrancan<strong>do</strong> cafezais para dar lugar a pastos. E o<br />

casal começou a pensar em vir embora para o Rio, como já tinha feito o irmão mais velho de José.<br />

“Meu mari<strong>do</strong> estava cansa<strong>do</strong>. Ele começou a sentir a necessidade de melhorar. Ele tinha uma vida muito sofrida, de trabalho muito duro.<br />

Médico, só in<strong>do</strong> na cidade maior, Manhuaçu, Manhumirim. Para ir a cidade, tinha que sair às cinco da manhã, para chegar lá por volta das oito<br />

ou nove horas. Se quisesse ir ao médico tinha que sair com o cantar <strong>do</strong> galo, que é à uma hora da manhã”, lembra-se D. Glorinha.<br />

A tragédia que se repete<br />

Ouro por café<br />

Manhuaçu, na Zona da Mata, em Minas Gerais, está a 290 km de Belo Horizonte, e tem 78.605 habitantes, segun<strong>do</strong> o IBGE, 2009. No<br />

ranking <strong>do</strong> IDH municipal de Minas Gerais, Manhuaçu, ocupa a 134ª posição, entre os 853 municípios mineiros, com um IDH-M de<br />

0,776. No ranking nacional, está na 1167ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. A freguesia de Manhuaçu foi criada em 1875,<br />

e o município em 1881. Sua sede inicialmente foi em São Simão, hoje Simonésia, depois transferida para a Vila de São Lourenço. O<br />

nome Manhuaçu é de origem tupi, deriva<strong>do</strong> da palavra indígena mayguaçu, que significa “rio grande” ou "chuva grande". A produção<br />

cafeeira se expandiu na região, fruto da abundância de terras adequadas ao cultivo, <strong>do</strong> eleva<strong>do</strong> número de escravos dispensa<strong>do</strong>s da<br />

mineração e o preço eleva<strong>do</strong> <strong>do</strong> café no merca<strong>do</strong> externo. A cafeicultura atraiu para a região migrantes europeus, como franceses,<br />

suíços e alemães, e mais tarde italianos e árabes. O município tem 622 km² e continua sen<strong>do</strong> o maior da microrregião, além de ser pólo<br />

econômico, de prestação de serviços e oferecer a melhor infra-estrutura hoteleira para turismo da região Vertente <strong>do</strong> Caparaó.<br />

Manhuaçu dispõe de uma rede de 47 estabelecimentos de saúde com um total de 185 leitos para internação. A rede escolar tem 57<br />

escolas de ensino fundamental, 14 de ensino médio e 35 de pré-escolar.<br />

Seu José estava mesmo no seu limite. Não via alternativas para melhorar de vida, com o trabalho escassean<strong>do</strong>. Era um guerreio, mas como<br />

diz D. Glorinha, “ali não tinha de onde tirar o sustento”. José, então, resolveu partir para o Rio de Janeiro. Comunicou ao sogro a decisão e<br />

teve apoio – “se não der certo, vocês voltam”. D. Glorinha tratou de ensinar o mari<strong>do</strong> a assinar o nome: “ao menos seu nome, por que você vai<br />

chegar no Rio e vai ter que tirar <strong>do</strong>cumento.”<br />

O ponto de apoio na cidade foi o cunha<strong>do</strong>, que hospe<strong>do</strong>u o casal por três meses. Quan<strong>do</strong> José conseguiu trabalho, como jardineiro, alugou um<br />

barraco lá <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da favela. Trabalhou em obra, como ajudante de pedreiro, e depois conseguiu o emprego, com carteira assinada,<br />

como ajudante de caminhão. Ficou trinta anos nesta mesma empresa e lá também se aposentou. “Quan<strong>do</strong> eu vim pra cá, fiquei muito<br />

assustada com as moradias, com os barracos de madeira, as coisinhas muito finas. Numa enxurrada eu vi as casas caírem e fiquei com muito<br />

me<strong>do</strong>, temia que aquilo acontecesse comigo”, lembra Maria da Glória.<br />

A única vez que Seu José e D. Glorinha pensaram em voltar para Minas Gerais foi justamente quan<strong>do</strong> o pior me<strong>do</strong> dela se concretizou. Glória<br />

mostra nos braços as cicatrizes que ficaram quan<strong>do</strong> ficou soterrada sob os escombros de sua casa. Numa chuvarada que devastou o Rio em<br />

1968, uma pedra deslizou e veio empurran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que estava na frente. Levou parte da casa <strong>do</strong>s seus pais - que na época já estavam no Rio<br />

34


“...ali não tinha de onde tirar<br />

o sustento”.<br />

também, e moravam próximo- e derrubou os alicerces da casa de Glória. No desabamento morreram seus <strong>do</strong>is filhos pequenos – a menina<br />

de quatro anos e o menino de oito meses. “Eu não enlouqueci por que Deus é Deus”, diz Dona Glória, os olhos tristes, cheios de lágrimas. Uma<br />

tragédia que faz qualquer um perder o rumo da vida. E o casal quase perdeu. Mas os parentes e os patrões se mobilizaram e apoiaram Seu<br />

José, que acabara de perder o pouco que tinha consegui<strong>do</strong> amealhar nos quatro anos de trabalho no Rio. Apareceram oportunidades,<br />

alternativas, apoios que não seriam possíveis lá na roça. E D. Glorinha reconhece isso – “Foi muito difícil, mas a gente conseguiu refazer a<br />

vida, e estamos aqui, com essa casa que ele construiu, com quatro filhos, seis netos e uma bisneta.”<br />

Seu José, que quan<strong>do</strong> chegou no Rio de Janeiro fez Mobral e conseguiu tirar o diploma como não analfabeto, resolveu, agora, depois de<br />

aposenta<strong>do</strong>, retomar os estu<strong>do</strong>s. Ele está mais tranqüilo, tem a renda fixa da aposenta<strong>do</strong>ria, que poderia inclusive financiar um retorno<br />

para a terra natal.<br />

Mas D. Glorinha não quer nem saber dessa possibilidade: “Só voltei lá no ano passa<strong>do</strong>, depois de mais de 40 anos. E a vida lá continua <strong>do</strong><br />

mesmo jeito, tu<strong>do</strong> tão dificultoso... Quem tá na cidade, não. Vive melhor, já tem escola, posto de saúde, farmácia. Mas quem mora lá no<br />

mato, como a gente morava, continua tu<strong>do</strong> igual. As crianças, para estudar, têm que sair andan<strong>do</strong> quatro, cinco quilômetros, não tem<br />

condução; não tem posto de saúde, fica no aban<strong>do</strong>no ...”<br />

Na tarde quente de verão na Mangueira, D. Glorinha está cercada da família e <strong>do</strong>s vizinhos. A comunidade mu<strong>do</strong>u muito, desde que ela<br />

chegou, quan<strong>do</strong> ainda tinha que ir buscar água na bica, encher os latões para cozinhar e tomar banho. Mas a casa sólida, o mari<strong>do</strong> com<br />

saúde, ainda a seu la<strong>do</strong>, os filhos, netos e a bisneta, representam hoje a realização <strong>do</strong> casal, que enfrentan<strong>do</strong> trancos e barrancos, mantém,<br />

há 48 anos, uma parceria feroz.<br />

Alvorada lá no morro que beleza. Ninguém chora, não há tristeza<br />

Ninguém sente dissabor. O sol colorin<strong>do</strong>, é tão lin<strong>do</strong>, é tão lin<strong>do</strong><br />

A natureza sorrin<strong>do</strong>, tingin<strong>do</strong>, tingin<strong>do</strong><br />

Hermínio Carvalho e Carlos Cachaça<br />

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UM UNIVERSO DOMÉSTICO<br />

Maria Sabino<br />

Veio de Manhuaçu, Minas Gerais<br />

Mora na Mangueira, Rio de Janeiro<br />

Eu já plantei café de meia<br />

Eu já plantei canaviá<br />

Café de meia não dá lucro<br />

Canaviá cachaça dá<br />

Mãe Severina, Jongo <strong>do</strong> Quilombo São José<br />

Dona Maria Sabino ainda faz broa de milho. A receita é caprichada e a vizinhança na Mangueira é fã. O que difere a broa de agora da que<br />

fazia, ainda pequena, lá no interior de Minas, no sítio em Manhuaçú, é a maneira de assar – o fogão a gás na favela <strong>do</strong> Rio substituiu o fogão<br />

de lenha, com as brasas no fun<strong>do</strong> e na tampa da panela, improvisan<strong>do</strong> um forninho. A menina Maria embrulhava a broa, pegava a chaleira<br />

com café e levava a merenda para os pais e os irmãos mais velhos que já estavam na roça desde a madrugada.<br />

São poucas coisas que Dona Maria mantém guardadas no coração como memória <strong>do</strong> tempo em que viveu na roça, em Manhuaçu, Zona da<br />

Mata mineira. As primeiras lembranças que surgem são <strong>do</strong> fogão a lenha, <strong>do</strong> candeeiro, da lamparina, coisas que marcaram sua infância e<br />

mocidade. Na roça, a família plantava feijão, mandioca, milho. Maria teve pouca experiência direta com o trabalho na terra porque a partir<br />

<strong>do</strong>s sete anos ficou responsável por tomar conta <strong>do</strong>s irmãos menores e cozinhar para a família. Uma família com pai, mãe e 22 filhos. Mas<br />

Maria não se importava, porque qualquer serviço era melhor <strong>do</strong> que o roça<strong>do</strong> na madrugada.<br />

Dona Maria conta que o que a família plantava, colhia de ano em ano, tinha que guardar o “de comer” até a próxima colheita, e se o estoque<br />

acabasse no meio <strong>do</strong> ano, passava necessidade: “O que colhia não dava até o fim <strong>do</strong> ano de jeito nenhum. Passei muita fome na vida, mas<br />

muita fome mesmo.” O pai era meeiro na plantação de café de uma fazenda e <strong>do</strong> que colhia, metade era devi<strong>do</strong> ao <strong>do</strong>no da terra. A outra<br />

metade ele vendia.<br />

A figura da mãe da família é uma presença forte nas lembranças de Maria, talvez porque, mais <strong>do</strong> que nunca, com a vida que tem na cidade,<br />

sua indignação com a condição das mulheres na área rural aumente, e a lembrança da mãe sacrificada ganhe peso maior. Maria, hoje,<br />

37


participa de projetos da Prefeitura, <strong>do</strong> Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, está estudan<strong>do</strong>, faz curso de artesanato, canta no coral, faz tai chi chuan,<br />

ginástica, alongamento, e vai ao médico no INPS - “médico tem à vontade”. Um outro jeito de viver!<br />

A mãe de Maria viveu talvez uma das piores condições de vida da mulher brasileira – a agricultora que divide com o mari<strong>do</strong> a tarefa de lavrar a<br />

terra, mas cujo trabalho é apenas considera<strong>do</strong> como “ajuda”. A mulher rural acumula as tarefas, tem em geral um número alto de gestações;<br />

não tem acesso a serviços de saúde, dificilmente pode colocar as crianças na escola e tem possibilidades praticamente nulas de acessar<br />

programas de qualificação técnica, mesmo quan<strong>do</strong> é chefe de família. As parteiras foram, durante anos, o único “cuida<strong>do</strong>” a que tinham<br />

direito.<br />

Dona Maria talvez atualize os sentimentos em relação a vida da mãe na roça, construin<strong>do</strong>-os a partir da sua experiência no Rio de Janeiro:<br />

“Eu ficava muito indignada, revoltada mesmo com a vida que a minha mãe levava. Tinha um filho atrás <strong>do</strong> outro, nem inteirava ano já vinha<br />

outro. Trabalhava na roça com meu pai desde as quatro horas da manhã. E ainda passava fome! Mas era uma mulher que não deixava um<br />

vizinho passar em casa sem tomar um café, comer uma broa de milho. Isso eu aprendi com ela.”<br />

Ainda bem nova, Dona Maria decidiu dar outro rumo à vida, e viu que era melhor trabalhar na casa da fazenda, para patroa, e ganhar algum<br />

dinheiro <strong>do</strong> que se dedicar unicamente a lavoura da família. Na fazenda era também serviço <strong>do</strong>méstico, de cuida<strong>do</strong> com a casa, com as<br />

crianças, lavar roupa e cozinhar. Trabalho duro e cansativo. O dinheiro que ganhava comprava tu<strong>do</strong> de comida, no armazém da fazenda, para<br />

levar para a família no dia de folga. Apesar da trabalheira e das dificuldades, Maria considera que a decisão foi correta - “depois que fui para<br />

a fazenda, não passei mais fome. Ganhava duzentos réis e dava pra comprar comida pra família toda, comprar umas coisinha! Hoje em dia a<br />

gente ganha dinheiro e não dá pra nada. O dinheiro não vale nada bem dizer....”<br />

Saber entrar e saber sair<br />

Ouro por café<br />

Manhuaçu, na Zona da Mata, em Minas Gerais, está a 290 km de Belo Horizonte, e tem 78.605 habitantes, segun<strong>do</strong> o IBGE, 2009. No<br />

ranking <strong>do</strong> IDH municipal de Minas Gerais, Manhuaçu, ocupa a 134ª posição, entre os 853 municípios mineiros, com um IDH-M de<br />

0,776. No ranking nacional, está na 1167ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. A freguesia de Manhuaçu foi criada em 1875,<br />

e o município em 1881. Sua sede inicialmente foi em São Simão, hoje Simonésia, depois transferida para a Vila de São Lourenço. O<br />

nome Manhuaçu é de origem tupi, deriva<strong>do</strong> da palavra indígena mayguaçu, que significa “rio grande” ou "chuva grande". A produção<br />

cafeeira se expandiu na região, fruto da abundância de terras adequadas ao cultivo, <strong>do</strong> eleva<strong>do</strong> número de escravos dispensa<strong>do</strong>s da<br />

mineração e o preço eleva<strong>do</strong> <strong>do</strong> café no merca<strong>do</strong> externo. A cafeicultura atraiu para a região migrantes europeus, como franceses,<br />

suíços e alemães, e mais tarde italianos e árabes. O município tem 622 km² e continua sen<strong>do</strong> o maior da microrregião, além de ser pólo<br />

econômico, de prestação de serviços e oferecer a melhor infra-estrutura hoteleira para turismo da região Vertente <strong>do</strong> Caparaó.<br />

Manhuaçu dispõe de uma rede de 47 estabelecimentos de saúde com um total de 185 leitos para internação. A rede escolar tem 57<br />

escolas de ensino fundamental, 14 de ensino médio e 35 de pré-escolar.<br />

Os irmãos mais novos de Dona Maria foram à escola nas fazendas de café da região, mantidas pelos proprietários. Mas ela e as meninas<br />

antes dela não tiveram esse privilégio - “nunca fui a escola. Meu pai era desses homens que achava que mulher não precisava de aprender<br />

ler. Só os homens. Os filhos homens ainda foram. Nunca entrei numa aula de escola. Se eu quisesse aprender a fazer o meu nome, era<br />

38


“O que colhia não dava até o<br />

fim <strong>do</strong> ano de jeito nenhum.<br />

Passei muita fome na vida,<br />

mas muita fome mesmo.”<br />

assim: quan<strong>do</strong> eles chegava de noite da escola, eu pegava o livro e enfiava dentro da fronha <strong>do</strong> travesseiro, para quan<strong>do</strong> eles ta <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> eu<br />

ir juntan<strong>do</strong> qual a letra <strong>do</strong> meu nome... assim quan<strong>do</strong> aprendi meu nome, sozinha e Deus”.<br />

Mas a oportunidade chegou para Maria Sabino, e ela mu<strong>do</strong>u de vida quan<strong>do</strong> aceitou o convite de uma moça, filha de um fazendeiro de café,<br />

que a chamou para vir trabalhar como <strong>do</strong>méstica em sua casa no Rio de Janeiro. Consultou a família, e to<strong>do</strong>s concordaram que era uma<br />

oportunidade de melhoria. E com 22 anos, fugiu da fazenda onde trabalhava sem dar satisfação a ninguém e veio para o Rio, morar com a<br />

patroa, trabalhar como <strong>do</strong>méstica. “Quan<strong>do</strong> cheguei, fiquei quase maluca, sem saber o que fazer... Andei muito a pé, com me<strong>do</strong> de pegar<br />

uma condução e se perder. Vinha a pé de Botafogo a Central <strong>do</strong> Brasil. Não sabia ler nada, não sabia nada, morria de me<strong>do</strong>!”, conta Maria. E a<br />

família não tinha se engana<strong>do</strong>. Do Rio ela pode ajudar muito mais à família toda. Mandava dinheiro, roupas, calça<strong>do</strong>s, comida.<br />

To<strong>do</strong> ano ia a Manhuaçu para fazer a festa de aniversário da filha. Numa dessas visitas, conheceu o segun<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. O rapaz era namora<strong>do</strong><br />

de outra, mas ficou apaixona<strong>do</strong> por Maria, sem ela saber. Pois não é que o sujeito saiu de Manhuaçu e veio para o Rio, atrás dela? Largou<br />

enxada e ara<strong>do</strong> para vir trabalhar com a britadeira, furan<strong>do</strong> asfalto e quebran<strong>do</strong> pedras.<br />

“Ele era um homem muito bom, correto. Era um homem que sabia entrar e sabia sair”, e com ele Maria teve outros quatro filhos - duas<br />

meninas e <strong>do</strong>is meninos. Na Mangueira construíram suas vidas, mas também na Mangueira perderam seus <strong>do</strong>is filhos para a guerra <strong>do</strong><br />

tráfico. Um tinha 17 anos e o outro 18 anos.<br />

Dona Maria está viúva há <strong>do</strong>is anos. Ela acha que o mari<strong>do</strong> morreu de desgosto, de sofrimento com a perda <strong>do</strong>s filhos. “Ele ficou muito<br />

apaixona<strong>do</strong> com a perda <strong>do</strong>s meninos. Ficou em depressão, passava o tempo to<strong>do</strong> senta<strong>do</strong> aí no portão, não saía pra nada, e não queria ir pra<br />

médico. Um dia, deitou pra <strong>do</strong>rmir e não acor<strong>do</strong>u mais”, conta Maria. Soube sair.<br />

39


PARAISÓPOLIS – POR POUCO, O ELDORADO<br />

Paraisópolis também já é um bairro consolida<strong>do</strong>, que surgiu a partir da segunda maior favela de São Paulo. Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s da Prefeitura da<br />

Cidade, Paraisópolis tem mais de 55 mil mora<strong>do</strong>res, distribuí<strong>do</strong>s em 20.832 <strong>do</strong>micílios.<br />

A favela originou-se da invasão de um loteamento feito em 1921, resulta<strong>do</strong> da divisão da antiga Fazenda <strong>do</strong> Morumbi, parcelada em 2.200<br />

lotes pela União Mútua Companhia Construtora e Crédito Popular S.A. O loteamento ficou aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, sem infra-estrutura, e décadas<br />

depois seria ocupa<strong>do</strong> informalmente, como tantos outros empreendimentos não concluí<strong>do</strong>s. Na década de 50, famílias japonesas ocuparam<br />

a área com pequenas chácaras, e atuavam também como grileiros. A partir de 1970 aparecem os primeiros barracos de madeira, com a<br />

ocupação <strong>do</strong> Jardim Colombo e Porto Seguro, que integram Paraisópolis.<br />

O poder público ensaiou várias intervenções, mas nenhuma das propostas se concretizou. E no fim da década de 70 e início <strong>do</strong>s anos 80, o<br />

processo de ocupação se intensificou, devi<strong>do</strong> principalmente a oferta de trabalho, com demanda crescente de mão de obra para a construção<br />

civil na região Morumbi.<br />

Paraisópolis é vizinha de uma das regiões de mais alta renda da cidade de São Paulo, o que possibilita uma série de oportunidades de<br />

trabalho, o que ajuda a alimentar um fluxo migratório permanente. Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s da Associação de Mora<strong>do</strong>res, 80% da comunidade é<br />

composta de migrantes <strong>do</strong> Nordeste.<br />

A maioria das pessoas empregadas com carteira assinada trabalha nas casas de alto luxo <strong>do</strong> bairro ao la<strong>do</strong>. Além disso, consolidada em<br />

bairro, mesmo apresentan<strong>do</strong> ainda condições precárias de infra-estrutura, oferece possibilidades de acesso a serviços públicos de saúde,<br />

assistência social e educação, além de uma enorme rede de entidades assistencialistas. Esse é um diferencial importante de Paraisópolis,<br />

que oferece uma grande rede de oportunidades para seus mora<strong>do</strong>res.<br />

Em 2005, foi inicia<strong>do</strong> um processo de urbanização e regularização <strong>do</strong>s imóveis construí<strong>do</strong>s irregularmente, semelhante ao processo que<br />

aconteceu na antiga favela de Heliópolis.<br />

Em Paraisópolis, o Fórum Multientidades de Paraisópolis, cria<strong>do</strong> em 1994, congrega as ongs <strong>do</strong> bairro. São cerca de 25 entidades que operam<br />

em rede, com reuniões mensais nas diversas organizações, em sistema de rodízio, objetivan<strong>do</strong> fortalecer as iniciativas populares e os<br />

esforços para melhoria da qualidade de vida na região. O Fórum não tem filiação política, religiosa ou comercial.<br />

41


ANA E SUAS FILHAS<br />

Ana Rosa Ribeiro, Claudete Ribeiro e Cleide Ribeiro de Mace<strong>do</strong><br />

Vieram <strong>do</strong> Rio <strong>do</strong> Pires, Bahia<br />

Moram em Paraisópolis, São Paulo<br />

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas<br />

geram pros seus mari<strong>do</strong>s os novos filhos de Atenas<br />

Mulheres de Atenas, Chico Buarque<br />

A coisa mais importante para o grupo de mulheres reunidas na pequena sala de uma casa em Paraisópolis é, sem nenhuma dúvida, a<br />

segurança de renda. No contexto em que viviam, segurança de renda poderia ser uma Bolsa Família, Vale Gás, qualquer bolsa ou auxílio, mas<br />

principalmente emprego. Está bem, nem sequer emprego, mas ao menos trabalho. Para Dona Ana Rosa e suas duas filhas, Cleide e<br />

Claudete, é preciso ter de onde tirar o sustento – isto é, a segurança de renda.<br />

Acontece que a família vivia da agricultura de subsistência, ainda que sempre com a perspectiva de algum excedente que pudesse ser<br />

comercializa<strong>do</strong>. As meninas ajduavam o pai no roça<strong>do</strong>, limpan<strong>do</strong> a terra, semean<strong>do</strong>, colhen<strong>do</strong>. Mas nem sempre a colheita era, ou é,<br />

suficiente sequer para alimentar a família. Trabalho na sede <strong>do</strong> município ou para outros pequenos agricultores é coisa escassa, e mesmo<br />

nos momentos mais críticos, quan<strong>do</strong> a seca faz seus estragos, não existem programas de emprego, ou estratégias de aproveitamento da<br />

mão de obra ociosa, principalmente da juventude, que vê minguar suas expectativas de futuro. Sem alternativas, cai por terra o primeiro<br />

direito <strong>do</strong> cidadão, lavra<strong>do</strong> na Constituição, que é o direito de sobreviver. “Ué, se deixar a gente morre de fome. Vai viver <strong>do</strong> que?”, diz<br />

Claudete, indignada.<br />

Lá por perto <strong>do</strong> Velho Chico<br />

Rio <strong>do</strong> Pires fica no sudeste da Bahia e faz parte da bacia hidrográfica <strong>do</strong> Rio São Francisco, dentro <strong>do</strong> território <strong>do</strong> Polígono das Secas.<br />

Sua população estimada em 2009 pelo IBGE, era de 11.612 habitantes. No ranking <strong>do</strong> IDH municipal da Bahia, Rio <strong>do</strong> Pires ocupa a<br />

161ª posição, entre os 415 municípios baianos, com um IDH-M de 0,635. No ranking nacional, está na 4031ª posição, entre os 5.560<br />

municípios brasileiros. Agricultores que saíram <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> Morro <strong>do</strong> Fogo se reuniram na Fazenda <strong>do</strong> Pires, começan<strong>do</strong> uma nova<br />

povoação. Em 1953, sob a denominação de Rio <strong>do</strong> Pires, por causa <strong>do</strong> rio que atravessa o território, o povoa<strong>do</strong> foi constituí<strong>do</strong> distrito,<br />

e, em 1961, foi eleva<strong>do</strong> a categoria de município. A agricultura e a pecuária são a base de sua economia. Segun<strong>do</strong> o IBGE, 2008, o<br />

município possuía vinte escolas de ensino fundamental, duas escolas de ensino médio, e 7 estabelecimentos pré-escolares. A rede de<br />

saúde tem nove estabelecimentos, com 34 leitos disponíveis.<br />

43


O jeito é sair para o mun<strong>do</strong><br />

Então, Dona Ana, na sua simplicidade mágica e sorridente, veio parar em Paraisópolis, bairro que já foi favela, vizinho ao riquíssimo Morumbi,<br />

em São Paulo, capital. Dona Ana, no meio <strong>do</strong> furacão. Mas está apenas “de visita”. Chegou há <strong>do</strong>is meses para “ficar com as meninas”- a mais<br />

nova que está grávida de sete meses e a mais velha que deu à luz uma menina. Dona Ana veio com todas as tarefas reservadas às mulheres<br />

que se amparam: cuidar das filhas, da netinha, da próxima criança que nasce daqui a <strong>do</strong>is meses. Mas veio mesmo é matar saudades. Saiu lá<br />

de Rio <strong>do</strong> Pires, de ônibus, numa viagem de 24 horas sacolejan<strong>do</strong> pela estrada. E a possibilidade dessa viagem feita por ela e pelo mari<strong>do</strong>,<br />

surgiu <strong>do</strong>s benefícios que essa família começou a receber. Primeiro, a passagem gratuita é um benefício para os i<strong>do</strong>sos e, segun<strong>do</strong>, Dona<br />

Ana e seu mari<strong>do</strong> têm aposenta<strong>do</strong>ria rural, o que tornou possível essas “extravagâncias de viagem”. A extravagância da liberdade de visitar<br />

as filhas e voltar para sua terra, como já fez seu mari<strong>do</strong>. Dona Ana diz que “até gostou de São Paulo”, mas também vai voltar para roça, voltar<br />

para casa. Para ela, por mais difícil que seja a vida na roça, lá ainda é a sua vida, seu universo.<br />

Esse movimento to<strong>do</strong>, de ir e vir de Rio <strong>do</strong> Pires, começou com uma história de amor. Não. Com duas histórias de amor. Claudete fugiu de<br />

casa para vir para São Paulo com o namora<strong>do</strong> e atual companheiro, já há <strong>do</strong>is anos. A fuga teve causa justa, além <strong>do</strong> amor, é claro. O mari<strong>do</strong><br />

de Claudete é cunha<strong>do</strong> da sua irmã, Cleide. Moran<strong>do</strong> e trabalhan<strong>do</strong> em Paraisópolis, o rapaz foi a Gravatá para o casamento <strong>do</strong> irmão e lá<br />

conheceu Claudete. Amor à primeira vista.<br />

Mas o mais novo casal da família analisou a situação: os pais das duas irmãs, Cleide e Claudete, já tinham gasto o que tinham e o que não<br />

tinham com o casamento de Cleide. O namora<strong>do</strong> também já tinha gasto o que podia com a viagem para Gravatá. O que não tem remédio,<br />

remedia<strong>do</strong> está, e Claudete não teve dúvida, fugiu de casa três dias depois <strong>do</strong> casamento da irmã, sacramentan<strong>do</strong>, ela mesma, seu próprio<br />

casamento. Pouco tempo depois partiu para São Paulo.<br />

44<br />

“Ué, se deixar a gente<br />

morre de fome.<br />

Vai viver <strong>do</strong> que?”


A medida radical tem razão de ser. O para<strong>do</strong>xo é que se lançar no mun<strong>do</strong> é a única possibilidade de buscar segurança, sobrevivência e<br />

direitos. No risco da vida nova, está a esperança da segurança social e segurança de renda. “Lá é muito difícil pra viver. Só dá pra quem tem<br />

algum serviço. Ou então quan<strong>do</strong> é aposenta<strong>do</strong>. Eles têm salário e aí não precisa eles sair pro mun<strong>do</strong> pra viver. Mas a gente ia viver <strong>do</strong> que?”,<br />

pergunta Claudete. Triste o povo que só tem amparo para envelhecer.<br />

Elas não têm gosto ou vontade<br />

nem defeito, nem qualidade<br />

Têm me<strong>do</strong> apenas<br />

Não tem sonhos, só tem presságios.<br />

O seu homem, mares, naufrágios<br />

Lindas sirenas, morenas.<br />

Mulheres de Atenas, Chico Buarque<br />

Dona Ana só teve as duas filhas, segun<strong>do</strong> ela, porque casou “velha”, aos 37 anos de idade. E diz que não se casou antes por que “a natureza<br />

não quis, não tinha destino”. Talvez, e apenas talvez, a verdade repouse no fato, menciona<strong>do</strong> por ela, que a mãe, com dez filhos, tinha<br />

reserva<strong>do</strong> Ana Rosa para cuidar dela, na sua velhice: “Você vai zelar por mim e eu vou zelar por você”, costumava dizer.<br />

Mas a natureza mu<strong>do</strong>u de idéia, e um enamora<strong>do</strong>, que vinha moer cana no moinho da família, ele também maduro, com 47 anos, decidiu<br />

mudar o destino e pediu Ana Rosa em casamento. Ela aceitou. D. Ana diz que ele também nunca tinha casa<strong>do</strong>, mas, como para mostrar que<br />

era vivi<strong>do</strong>, “dançava nos bailes com as moças”.<br />

Cleide, a que se casava em Gravatá quan<strong>do</strong> a irmã se apaixonou, também já veio embora para São Paulo. Cleide chegou a ter esperança de<br />

permanecer em Rio <strong>do</strong> Pires, já que tinha um emprego na Prefeitura, um emprego da<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> elas, “para quem vota neles”. Mas mesmo<br />

Cleide que votou perdeu o emprego para quem tinha mais escolaridade <strong>do</strong> que ela. E seguin<strong>do</strong> a correnteza, veio também para Paraisópolis,<br />

em busca de trabalho, de renda para ela e para o mari<strong>do</strong>. Mas logo que chegou descobriu a gravidez, e não encontrou mais trabalho.<br />

Dona Ana, “graças a Deus”, colocou as duas meninas na escola. Mas a escolaridade que elas trazem lá da roça não chega a ajudar no<br />

momento de disputar um emprego, arranjar trabalho na cidade. A educação mal chega a alfabetização, e inexistem, lá na roça onde viviam,<br />

programas de capacitação ou qualificação mesmo para trabalhar na agricultura. Quan<strong>do</strong> vêem para a cidade, trazem consigo, no seu<br />

currículo, to<strong>do</strong> o histórico da desproteção e das ausências institucionais que vigoram no campo. Essas jovens vão repetir a saga de outras<br />

tantas gerações de mulheres que há décadas deixam o campo em busca de oportunidades e têm como única alternativa o emprego em casas<br />

de família, como <strong>do</strong>mésticas, faxineiras e babás. Paraisópolis, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Morumbi tem uma larga oferta desse tipo de emprego.<br />

E as redes formadas por familiares vão tecen<strong>do</strong> as pontes que trazem os mora<strong>do</strong>res da área rural para a metrópole. Em Paraisópolis, estão<br />

muitos parentes das filhas de Dona Ana – cunhadas, primos, tios. As redes que os trazem dispõem de um capital social bastante limita<strong>do</strong>,<br />

mas que é muito maior <strong>do</strong> que o que podem alcançar na área rural – apontam para um novo campo de possibilidades, o campo da proteção<br />

social.<br />

Resta saber se para essas mulheres que acabam repetin<strong>do</strong> a mesma trajetória de suas avós e mães, prisioneiras <strong>do</strong> universo <strong>do</strong>méstico,<br />

haverá, na área urbana, as saídas que não encontraram na roça, haverá as proteções que elas buscam. Por que, agora, daqui da cidade<br />

grande, não há mais para onde fugir.<br />

45


RECRIAR A VIDA, AINDA QUE À FERRO<br />

Antonio Edinal<strong>do</strong> da Silva<br />

Veio de Iatí, Pernambuco<br />

Vive em Paraisópolis<br />

Ali ninguém aprendeu<br />

outro ofício, ou aprenderá:<br />

mas o sol, de sol a sol,<br />

bem se aprende a suportar.<br />

Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto<br />

Seu Antonio Edinal<strong>do</strong> nasceu no interior de Pernambuco, microrregião <strong>do</strong> Agreste, a 286 km de Recife. Nem parece tanto, quan<strong>do</strong> a medida é<br />

a estrada, kilometros. Mas se outros indica<strong>do</strong>res forem utiliza<strong>do</strong>s para medir distâncias, Iatí está muito, muito longe da capital <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.<br />

Isso ainda agora, nos dias de hoje – Iatí tem o 183º IDH-M entre os 185 municípios pernambucanos. Ou seja, é o terceiro pior município nos<br />

indica<strong>do</strong>res de renda, longevidade e educação. Recife tem um IDH de 0,797, e ocupa o 3º lugar no município no ranking estadual, fican<strong>do</strong><br />

atrás de Fernan<strong>do</strong> de Noronha e Paulista.<br />

A família de Seu Antonio fazia parte da grande maioria de iatienses que viviam na área rural. Mas sua família não era proprietária de terras, e<br />

fez o primeiro movimento rumo a uma vida melhor. Saíram <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> em que viviam para morar na sede <strong>do</strong> município, em busca de<br />

trabalho. Mas pouca coisa mu<strong>do</strong>u.<br />

Na região, trabalho equivale a roçar, semear, colher, abrir a terra. E mesmo moran<strong>do</strong> na sede <strong>do</strong> município, E mesmo moran<strong>do</strong> na sede <strong>do</strong><br />

município, era da roça que tiravam seu sustento, trabalhan<strong>do</strong> de sol a sol, na lida com a terra. “Vida de luta, muita luta mesmo”, afirma Seu<br />

Antonio. A palavra que mais aparece na narrativa sobre o passa<strong>do</strong> no interior de Pernambuco, é “sofrimento”, seguida de fome, sede, de um<br />

desalento de não ter o que fazer. A narrativa de Seu Antonio aponta uma carência absoluta de alternativas de gestão da própria vida, na<br />

medida em que não havia, em Iatí, qualquer proteção social que garantisse a sobrevivência. O deserto <strong>do</strong> qual ele fala é o deserto da<br />

desproteção social.<br />

47


Mas isso então será tu<strong>do</strong><br />

em que sabe trabalhar?<br />

vamos, diga, retirante,<br />

outras coisas saberá.<br />

Seu Antonio, conheci<strong>do</strong> como Seu Berbelo, descobriu seu verdadeiro ofício, seu talento, em Paraisópolis. Ele é artista. Mas até chegar ao<br />

grande atelier no qual se transformou a sua oficina mecânica, Seu Berbelo, precisou enfrentar muitas vezes o grande terror de quem vive da<br />

terra – a fome.<br />

Iati – uma casa nova<br />

Iati fica na microrregião Agreste e na microrregião Garanhus <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Pernambuco. Está a 286,2 km da capital. Segun<strong>do</strong><br />

estimativa <strong>do</strong> IBGE, 2009, a população é de 18.350 pessoas, com a maioria <strong>do</strong>s habitantes viven<strong>do</strong> na área rural – cerca de 60%. O<br />

Índice de Desenvolvimento Humano é de 0,526, situan<strong>do</strong> o município no 183º lugar no ranking estadual e em 5435º no nacional. O<br />

Índice de Exclusão Social, constituí<strong>do</strong> por sete indica<strong>do</strong>res – pobreza, emprego formal, desigualdade, alfabetização, anos de estu<strong>do</strong>,<br />

concentração de jovens e violência – é de 0,283. Iatí ocupa a 182ª colocação no ranking estadual e a 5.437ª no ranking nacional. A<br />

rede de saúde é composta por seis hospitais que disponibilizam 26 leitos, também segun<strong>do</strong> o IBGE, 2006. E na área de educação,<br />

segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ministério da Educação, 2008, Iatí tem uma rede com 54 escolas de ensino fundamental e uma escola de ensino<br />

médio. Os negros fugi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Quilombo <strong>do</strong> Palmares buscaram instalar-se e proteger-se em muitos lugares de Pernambuco. Em Açude<br />

Velho, no Sítio Federação, muitos desses negros fundaram um Mucambo – em dialeto quibun<strong>do</strong>, um lugar para se esconder, lugar na<br />

floresta, quilombo, casa. Esse lugar viria a tornar-se Iatí. Lá também, havia índios carijós e tupiniquins, que nomearam o lugar como<br />

“casa nova”, Iatí. O lugar fica nas Serras <strong>do</strong>s Cavalos. O distrito de Iatí foi cria<strong>do</strong> em 1892, ainda chama<strong>do</strong> de Mucambo. Estava<br />

subordina<strong>do</strong> ao município de Águas Belas. Nomea<strong>do</strong> Iatí em 1938, o distrito só seria desmembra<strong>do</strong> de Águas Belas em 1963,<br />

elevan<strong>do</strong>-se a categoria de município.<br />

Deseja mesmo saber<br />

o que eu fazia por lá?<br />

comer quan<strong>do</strong> havia o quê<br />

e, haven<strong>do</strong> ou não, trabalhar.<br />

Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto<br />

Seu Berbelo perdeu a conta das vezes em que passou fome – a terra seca, sem dar frutos, inexistência absoluta de trabalho, nada de água<br />

para beber. Lembra de se embrenhar na mata para achar uma caça, um animal para comer. A família buscava trabalho no que quer que<br />

fosse, mas o fato é que quan<strong>do</strong> a seca descia sobre o agreste pernambucano não havia o que fazer. E esse paredão de impossibilidades e<br />

ausência absoluta de alternativas faz surgir o desespero e o impulso de começar a andar.<br />

Mesmo nas piores condições das favelas paulistas ou cariocas, a miséria não alcança os níveis em que podia chegar uma família na área rural<br />

<strong>do</strong> nordeste brasileiro. E a palavra que abre todas as lembranças de Berbelo é uma só, uma mesma tecla e um triste som: sofrimento.<br />

48


Era imperioso sair de Iatí, e Seu Berbelo botou o pé na estrada. O primeiro porto foi Feira de Santana, para juntar-se ao irmão, refazen<strong>do</strong> o<br />

mesmo caminho de to<strong>do</strong>s os migrantes que seguem os fios estendi<strong>do</strong>s por parentes, amigos, conheci<strong>do</strong>s que são pioneiros na busca por<br />

outras terras e oportunidades. Em Feira de Santana, Seu Berbelo aprendeu o ofício de mecânico e apesar da pouca escolaridade, ele revelou<br />

ter talento para lidar com aquele “sem fim” de ferros, parafusos, fios, arruelas.<br />

Em 2001, seu Antonio “Berbelo” chegou em Paraisópolis, e aqui, o mun<strong>do</strong> lhe prometia muito mais <strong>do</strong> que ele jamais sonhou – os filhos<br />

estudam e trabalham, e ele tem sua oficina mecânica. Mas aqui, também, suas ferramentas e instrumentos começaram talvez a sussurrar<br />

em seus ouvi<strong>do</strong>s outras formas, outros usos que podiam assumir, mostravam formas que continham uma outra história, um outro destino. E<br />

ele não para de tirar insetos, carcarás, gaviões, pássaros, cobras, gente, de suas sucatas de dentro de parafusos, pregos, roscas, metais. Vai<br />

juntan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> isso e refaz um mun<strong>do</strong> mágico e orgânico a partir <strong>do</strong> metal.<br />

Seu Berbelo tem uma calma que remonta a sua origem rural, o tempo da terra. E mesmo que ele não se dê conta, pouco a pouco, ele recria,<br />

na sua oficina/ateliê, o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> campo, com seus pássaros. A diferença, é que na capital paulista, a vida é de ferro.<br />

49<br />

“... perdeu a conta das<br />

vezes em que passou<br />

fome.”


À MARGEM DO TEMPO<br />

Dinalva Marinalda de Almeida<br />

Nascida em Nova Itarana, Bahia<br />

Vive em Paraisópolis, São Paulo<br />

Uma vida de cuida<strong>do</strong>s<br />

Peneirei o fubá<br />

Fubá caiu<br />

Tornei penerar<br />

Fubá sumiu<br />

Cantiga mineira<br />

A mãe de Dinalva criou sozinha os cinco filhos, lá numa rocinha em Nova Itarana, Bahia. Para conseguir dinheiro, trabalhava também nos<br />

cafezais e toda sexta-feira, quan<strong>do</strong> recebia, comprava feijão e farinha, que “era o que se comia”. Madrugadinha, a mãe enfileirava as<br />

crianças, cada uma com sua enxadinha e rumava para o cafezal. Dinalva lembra que cada um fazia o seu montinho, que depois seria medi<strong>do</strong>.<br />

A mãe de Dona Dinalva não tinha com quem dividir a criação <strong>do</strong>s filhos. Era viúva. Trabalhou até ficar bem velhinha e conseguir uma<br />

aposenta<strong>do</strong>ria rural, por graça <strong>do</strong> prefeito de Nova Itarana. Depois que deixou a roça, a mulher ganhava seu sustento “botan<strong>do</strong> água nas<br />

casas”, conta Dinalva. “Ela ia lá na fonte e trazia a água nas latas, na cabeça, e colocava nas casas”. Isso mesmo, por que até bem pouco<br />

tempo, em Nova Itaruna, não tinha água encanada, não tinha energia elétrica, nem gás. E tu<strong>do</strong> de que se lembra é que a vida “era só trabalho<br />

demais”.<br />

Dona Dinalva passou sua infância e a<strong>do</strong>lescência empenhada na tarefa de sobrevivência. Uma tarefa coletiva, partilhada por toda a família,<br />

de juntar recursos para comer e vestir. Este talvez tenha si<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> de sua vida em que experimentou a vivência coletiva, quan<strong>do</strong> ajudava<br />

a mãe a arrancar da terra o sustento de to<strong>do</strong>s – mãe e filhos trabalhan<strong>do</strong> na roça, plantavam, colhiam, faziam lenha para vender. Todas as<br />

tarefas pensadas e realizadas por aquele grupo e para o próprio grupo.<br />

Mas, na medida em que cresciam, os irmãos saiam para buscar seu próprio destino. A irmã, já falecida, foi a primeira a migrar para Salva<strong>do</strong>r,<br />

em busca de trabalho. Dinalva, já moça, foi logo acionada para ir em seu auxílio. A irmã de fato arranjou trabalho como <strong>do</strong>méstica, mas logo<br />

depois engravi<strong>do</strong>u e não tinha com quem deixar a filha. Man<strong>do</strong>u buscar Dinalva. E ela foi.<br />

51


Dinalva também investiu na sua própria vida. Conheceu um amor, teve suas filhas. Mas, quis o destino se repetir e também ficou viúva e só,<br />

como a mãe. Sua filha que também já tinha migra<strong>do</strong>, man<strong>do</strong>u buscar a mãe, para uma visita. E Dinalva veio para São Paulo. A visita se<br />

prolongou e agora, no coração de Paraisópolis, ela mora com a filha, na casinha minúscula. Cuida da neta, enquanto a filha trabalha como<br />

<strong>do</strong>méstica. Repetição?<br />

Dona Dinalva parece ser um retrato, uma amostra da situação de invisibilidade e exclusão em que vivem milhões de mulheres brasileiras.<br />

Desempenhan<strong>do</strong> tarefas que não são contabilizadas no mun<strong>do</strong> da produção como trabalho produtivo, elas podem passar toda uma vida<br />

isoladas, dedicadas ao cuida<strong>do</strong> e a reprodução da vida, sem que tenham propriedade nem mesmo de sua própria história. Perdem a<br />

contagem <strong>do</strong>s anos, perdem a dimensão <strong>do</strong> tamanho <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e quan<strong>do</strong> dão por si, a vida passou sem que tivessem muda<strong>do</strong><br />

fundamentalmente qualquer coisa em sua trajetória. O isolamento no qual desempenham suas tarefas, dentro de casa, impõe limites<br />

contundentes à sociabilidade e restringe qualquer possibilidade de acesso à informação, oportunidades, mudanças. Nesse caso, falar de<br />

proteção social é lembrar uma dívida histórica, que ninguém se propõe a saldar.<br />

Dona Dinalva tem dificuldade de definir seus principais marcos – quan<strong>do</strong> nasceu, por exemplo. A data e o ano são nebulosos e talvez ela<br />

tenha 57 anos. Nascida em Nova Itarana, numa família de cinco irmãos, casada duas vezes, tem quatro filhas.<br />

“...a minha filha ficou sen<strong>do</strong> a<br />

minha mãe e tu<strong>do</strong> meu. Depois<br />

que meu mari<strong>do</strong> morreu eu<br />

fiquei sem nada, sozinha.”<br />

52


A história Dinalva, na sua própria versão, é confusa, perdida entre marcos não muito bem fixa<strong>do</strong>s, como que soltos numa vida de isolamento<br />

e repetição. A única presença e registro concreto, hoje, é a neta no seu colo. Uma menina gorducha e sorridente que fica sob os cuida<strong>do</strong>s da<br />

avó, enquanto a mãe trabalha. É a criança que dá senti<strong>do</strong> a vida dessa mulher, funcionan<strong>do</strong> como uma âncora no presente e no futuro. Voltar<br />

para onde? Para Salva<strong>do</strong>r ou para Nova Itarana? A filha promete que um dia voltam a Itarana, para ver a casa da avó, a casinha de sopapo e<br />

telha<strong>do</strong> de palha, que ficou lá, quan<strong>do</strong> a velhinha morreu. Mas por enquanto, a vida é aqui, onde ela tem a netinha a quem está “muito<br />

agarrada”.<br />

E Dona Dinalva, sem saber ler e nem sequer assinar o próprio nome, vivencia em São Paulo, no meio da metrópole, o mesmo isolamento em<br />

que parece ter vivi<strong>do</strong> toda a sua vida. A casa não tem quintal, não tem varandinha e a rigor não tem nem janela. A mulher passa o dia na<br />

companhia <strong>do</strong> bebê, e no máximo conversa com alguma vizinha, ali, daquele pedaço sem sol, no meio <strong>do</strong> cipoal da favela, tão denso quanto a<br />

mata.<br />

Pouca coisa mu<strong>do</strong>u<br />

Nova Itarana fica a 267 km de Salva<strong>do</strong>r, Bahia, na microregião de Jequié. Sua população, estimada em 2009 pelo IBGE, é de 7.875<br />

habitantes. Para atender a essa população, Nova Itarana dispõe de uma rede de saúde com seis estabelecimentos, que não oferecem<br />

leitos para internação. Tem uma rede de ensino formada por 12 escolas de ensino fundamental, uma escola de ensino médio e duas<br />

escolas de pré-escolar. A produção agrícola <strong>do</strong> município está baseada no café, no maracujá e no sisal. Da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> IBGE 2000 apontam<br />

uma taxa de analfabetismo de 35,58%. A cobertura <strong>do</strong> esgotamento sanitário para a população urbana é de apenas 13%. Mas a água<br />

encanada chegava a 80% <strong>do</strong>s <strong>do</strong>micílios urbanos. No ranking <strong>do</strong> IDH municipal da Bahia, Nava Itarana ocupa a 390ª posição, entre os<br />

415 municípios baianos, com um IDH-M de 0,568. No ranking nacional, está na 4031ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. O<br />

povoamento da região começou com os jesuítas, no século XVII, que chegaram àquelas terras com a missão de catequizar os índios.<br />

Depois, com a valorização da região, fazendeiros adquiriram as terras. Para conseguir explorar as terras os fazendeiros expandiram o<br />

sistema de “meia”, permitin<strong>do</strong> que os lavra<strong>do</strong>res morassem nas terras, plantassem e colhessem, devolven<strong>do</strong> 50% da produção para o<br />

proprietário. Mas tarde, esses posseiros compraram parte das terras, dan<strong>do</strong> origem ao povoa<strong>do</strong>r de Vea<strong>do</strong>s. Em 1927, o povoa<strong>do</strong> foi<br />

eleva<strong>do</strong> a categoria de vila. Recebeu nova denominação em 1953 – Nova Itarana, e em 1962 foi alça<strong>do</strong> a município.<br />

Dinalva cumpre ali no interior de Paraisópolis, no seu pequeno casulo, com quarto, sala, paredes úmidas pintadas de verde, a função da<br />

maternagem que tantas outras mulheres – avós, tias, madrinhas - assumem, substituin<strong>do</strong> mães biológicas. Essa é a rede de mulheres que<br />

sustentam a vida, partilhan<strong>do</strong> a ausência de proteção social para si e para seus filhos. A herança da roça está presente em São Paulo – e o<br />

isolamento talvez seja mais rigoroso com todas as carências trazidas pela Dona Dinalva, desde o seu tempo de roça.<br />

Dona Dinalva expressa um pouco de sua condição quan<strong>do</strong> fala da sua própria vulnerabilidade – “a minha filha ficou sen<strong>do</strong> a minha mãe e tu<strong>do</strong><br />

meu. Depois que meu mari<strong>do</strong> morreu eu fiquei sem nada, sozinha.” Arrependimento? Talvez o de ter saí<strong>do</strong> de Nova Itarana, por um único<br />

motivo: “Se eu tivesse lá, já tava aposentada...”<br />

53


NA ROÇA, OS SONHOS SÃO SIMPLES. MESMO<br />

ASSIM, IRREALIZÁVEIS<br />

Jakson André Nunes da Silva<br />

Veio de Águas Belas, Pernambuco<br />

Mora em Paraisópolis, São Paulo<br />

Deixe-me ir, preciso andar,<br />

vou por aí a procurar<br />

rir pra não chorar<br />

Preciso me encontrar, Cartola<br />

André quer ter uma casa, um carro e a vida estabilizada. Sonhos da grande maioria das pessoas, não só de jovens, não só de brasileiros.<br />

Voltar para Águas Belas, agora, só para passear. Foi o último da família a deixar o sítio nos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> município, que fica a 303 km de<br />

Recife, Pernambuco. Com a venda da casa e das posses desfez um mo<strong>do</strong> de vida. Ao aban<strong>do</strong>nar uma terra que era sua, escolheu deixar para<br />

trás um universo conheci<strong>do</strong>, familiar, mas que impunha a ele uma condição radical – a privação de oportunidades.<br />

Ele é grandão, bonito, e tem apenas 21 anos. Está em Paraisópolis há quatro anos, depois de vir para São Paulo e voltar para Pernambuco,<br />

numa vez anterior. Entra na sala com o sorriso aberto, boné azul, que não tira para nada; fica por ali, observan<strong>do</strong> o movimento, para entender<br />

o que é espera<strong>do</strong> dele, tão jovem. O fato é que, apesar <strong>do</strong>s 21 anos, André tem uma história comprida, de muito trabalho, uma trajetória<br />

cheia de despedidas e <strong>do</strong>s aban<strong>do</strong>nos necessários para reinventar a vida, criar um futuro e ampliar os sonhos. O que surpreende é que já<br />

tenha vivi<strong>do</strong>, no campo, a mesmíssima experiência que os mais velhos contam. André, como outros jovens da área rural, reeditam uma<br />

história de privações – ausência de recursos, de oportunidades, de acessos. Surpreende que ele, nasci<strong>do</strong> ainda agorinha, em 1989, também<br />

tenha si<strong>do</strong> uma criança que passava mais tempo na lida da roça <strong>do</strong> que na escola, e que tenha vivi<strong>do</strong> toda a infância à luz <strong>do</strong> lampião, ali<br />

mesmo, logo na esquina <strong>do</strong> Recife.<br />

Para os jovens como André, a opção pela migração surge como uma sina, como o velho fa<strong>do</strong>, o tal destino, que levou para o Atlântico os<br />

coloniza<strong>do</strong>res portugueses. A vida na área rural onde a ausência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na oferta de serviços básicos de educação, saúde, transporte,<br />

trabalho e mesmo lazer é tão séria, que beira o surreal. E é dessa constatação que Jakson André ri. O riso funciona como uma saída frente à<br />

triste constatação <strong>do</strong> anacronismo de condições tão precárias, num mun<strong>do</strong> tão cheio de tecnologias e luzes.<br />

55


Oásis<br />

Águas Belas tem uma população estimada pelo IBGE, em 2009, de 39.672 habitantes e uma área de 887,56 km². Fica<br />

aproximadamente a 303 km de Recife, e é formada pelo distrito-sede e pelos povoa<strong>do</strong>s de Campo Grande, Curral Novo, Garcia, e<br />

Tanquinho. O município está incluí<strong>do</strong> na área geográfica de abrangência <strong>do</strong> semiári<strong>do</strong> brasileiro, definida pelo Ministério da Integração<br />

Nacional, em 2005. Ainda segun<strong>do</strong> o IBGE, a cidade tem uma rede de 53 escolas de Ensino Fundamental, que totalizam 9.398<br />

matrículas. Em 2005, a cidade dispunha de 9 estabelecimento de saúde, dispon<strong>do</strong> de um total de 35 leitos para internação. Seu IDH é<br />

de 0,532, PNUD 2000. No ranking <strong>do</strong> IDH municipal da Pernambuco, Águas Belas ocupa a 182ª posição, entre os 185 municípios<br />

pernambucanos. No ranking nacional, está na 5414ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. O Mapa da Pobreza e<br />

Desigualdade, IBGE, 2003, mostra que a incidência da pobreza em Águas Belas é de 68,06%, poden<strong>do</strong> chegar a 72,31%. A região era<br />

habitada, originalmente, pelos índios tupiniquins, que tiveram sua tribo unificada com a tribo Carnijós, que residia nas imediações da<br />

Serra <strong>do</strong>s Cavalos. A aldeia era conhecida como Lagoa, devi<strong>do</strong> a uma lagoa existente no local, onde hoje se encontra a matriz de Nossa<br />

Senhora da Conceição, depois a povoação ganhou o nome de Ipanema. Consta que, por volta <strong>do</strong> ano de 1700, apareceu na região o<br />

primeiro homem branco (João Rodrigues Car<strong>do</strong>so), com objetivo de unificar as duas tribos existentes na região. A denominação de<br />

Águas Belas se originou <strong>do</strong> fato <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r Jacobina ali encontrar para surpresa sua, água potável e cristalina, que era difícil naquela<br />

região. Hoje cerca de 5 mil índios Fulni-ôs também habitam uma área dividida em 427 lotes individuais, que totalizam 11505. Vivem <strong>do</strong><br />

artesanato e agricultura de subsistência. São ainda os únicos índios da região nordeste com o idioma próprio, o Yaathê e e alguns<br />

rituais como o Toré e Cafurna e o Ouricuri.<br />

Sonhos, projeções e realidade<br />

André diz que os sonhos de quem vive na roça são sonhos simples. E ri de novo. Um riso largo e que vem lá de dentro - uma capacidade rara<br />

de expressar numa gargalhada o impacto das dificuldades. Ele acha a história que conta engraçada? Acha não. Sabe o quanto é trágica a<br />

vida que viveu. Mas consegue rir da singeleza <strong>do</strong> próprio sonho, que sonhava lá na roça onde vivia, nos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> município de Águas<br />

Belas. O sonho acalenta<strong>do</strong> era o desejo enorme de colocar aparelho nos dentes. Achava a coisa mais linda. Quem usava aparelho para<br />

consertar os dentes eram os filhos <strong>do</strong>s “ricões” - “Nossa, o maior bonito!” e André ia para a roça com os dentes recobertos de papel lamina<strong>do</strong>,<br />

o papel pratea<strong>do</strong> que embrulhava os cigarros dentro <strong>do</strong> maço, inventan<strong>do</strong>, ele mesmo, seu aparelho. Em Águas Belas, não havia a menor<br />

chance de André ter um aparelho de verdade, nunca tinha i<strong>do</strong> sequer ao dentista. Como também nunca foi ao cinema – “tem isso lá não!”,<br />

como pouco ia à escola, que era longe, como não tinha oferta de trabalho fora da roça.<br />

O riso sobe de novo, incontrolável, quan<strong>do</strong> diz, marcan<strong>do</strong> o tamanho <strong>do</strong> absur<strong>do</strong>, que em Águas Belas não tinha luz elétrica. O assombro de<br />

André, que se manifesta no riso, é o assombro com uma condição de vida que parece acontecer em outro tempo, em outra historicidade.<br />

Viven<strong>do</strong> no coração da cidade de São Paulo, numa comunidade que já completa 50 anos de existência e que pouco a pouco se transforma em<br />

bairro popular, com cerca de 80 mil mora<strong>do</strong>res, no centro de um burburinho indizível, André ainda se surpreende com esse descompasso<br />

enorme entre seu pedaço de terra natal e a metrópole, seu destino, sua sina.<br />

A mãe foi a primeira a decidir que não dava para ficar em Águas Belas. Uma amiga telefonou de São Paulo, contan<strong>do</strong> que tinha trabalho por<br />

aqui, que se ganhava dinheiro. Com o casamento desfeito, sem perspectiva de trabalho ou futuro nem para ela nem para os filhos, “meteu as<br />

caras”, como diz André. Deixou os cinco filhos com o ex-mari<strong>do</strong> e pegou a estrada há quinze anos. Enfrentou três dias de viagem até São<br />

Paulo e abriu o caminho que o filhos seguiriam, cada um a seu tempo. André veio uma primeira vez, mas voltou para Pernambuco, morto de<br />

saudade da sua terra, da sua casa. Chegou a ficar <strong>do</strong>ente em São Paulo – <strong>do</strong>ente de saudade, de frio, de susto talvez. Ficou sozinho com o<br />

pai por <strong>do</strong>is anos, em Águas Belas. Coube a ele apagar o candeeiro, fechar as portas e janelas e entregar a outro o sítio da família, uma<br />

casinha simples, que ficava nas terras <strong>do</strong> avô. Lá a família inteira plantava, colhia, fazia estoque para o ano to<strong>do</strong>, e vendia o excedente. Mas a<br />

falta absoluta de trabalho, ou o horror da privação de recursos ou oportunidades para mudar a vida, para ter acessos, moveu to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, e<br />

56


“...e trabalho lá é só na<br />

roça, trabalho duro,<br />

arrancan<strong>do</strong> toco!”<br />

empurrou André de volta para São Paulo. Esse era o destino, já que o horizonte em Águas Belas era estreito. Lazer? Jogar futebol.<br />

Transporte? Pé e bicicleta, que a mãe man<strong>do</strong>u de São Paulo para o irmão, vez em quan<strong>do</strong> um baile, um forró na cidade, distante mais de uma<br />

hora. Ele diz que mesmo nos piores momentos, quan<strong>do</strong> a colheita não era boa, “nunca ninguém aju<strong>do</strong>u, nem governo, nem ninguém”.<br />

Trabalho não tinha e, segun<strong>do</strong> ele, a oferta é ruim até hoje. A região onde vivia faz parte <strong>do</strong> Polígono das Secas, e ainda que os perío<strong>do</strong>s de<br />

estiagem sejam menores <strong>do</strong> que no sertão, a falta de chuvas é o pesadelo recorrente: “a gente fazia sempre uma reserva, guardava um<br />

boca<strong>do</strong> para dar para o ano. Mas teve época de passar seis meses sem chover”. Então, depois de meses de trabalho – “e trabalho lá é só na<br />

roça, trabalho duro, arrancan<strong>do</strong> toco!” – a família vê to<strong>do</strong> o investimento ir por terra, literalmente. E aí, o que falta lá? André responde sem<br />

hesitar, outra vez rin<strong>do</strong> da situação: “Lá faz falta tu<strong>do</strong>!”.<br />

Se alguém por mim perguntar<br />

Diga que eu só vou voltar<br />

Quan<strong>do</strong> eu me encontrar<br />

Preciso me Encontrar, Cartola<br />

A vida na roça, na verdade fica reduzida a cada dia, como a tese <strong>do</strong>s Alcoólicos Anônimos ao contrário – hoje, eu consegui comer, hoje a<br />

semente brotou, ao invés de “hoje eu não bebi”. O risco de voltar à estaca zero é permanente. E então, o que é um mo<strong>do</strong> de vida, começa a se<br />

tornar um mo<strong>do</strong> de não-vida, onde tu<strong>do</strong> é interdita<strong>do</strong>, num reino de desesperança. É disso que fala André, quan<strong>do</strong> narra a rotina de<br />

dificuldades. Como outros migrantes, Jackson André não renega a vida na área rural e nem a possibilidade de viver da agricultura. “Se tivesse<br />

condições, eu estava lá até hoje. Na roça <strong>do</strong>s outros não, mas se a terra fosse minha, ten<strong>do</strong> condições, eu tava lá.” Em São Paulo, depois de<br />

um perío<strong>do</strong> procuran<strong>do</strong> trabalho, se adaptan<strong>do</strong> a nova vida, André voltou a estudar e está na primeira série <strong>do</strong> Ensino Médio. Seu grupo de<br />

amigos é forma<strong>do</strong> basicamente de outros jovens migrantes, até mesmo de Águas Belas. A namorada trabalha na Associação de Mora<strong>do</strong>res<br />

de Paraisópolis, e André trabalha de dia como frentista, num posto de gasolina e estuda a noite. Tem casa com luz elétrica, televisão, rádio,<br />

som, e tem talvez um sentimento de pertencimento. Mesmo que na base da pirâmide, ele se sente um homem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, está no páreo. E,<br />

só para constar, o sorriso de André, hoje, é orna<strong>do</strong> com um aparelho ortodôntico. Não é o pratea<strong>do</strong>, daqueles antigões. É moderno, mais<br />

discreto. Colocou em São Paulo.<br />

57


FRAGILIDADE E FORTALEZA<br />

Maria <strong>do</strong> Desterro Ribeiro da Paz<br />

Novo Santo Antonio, Piauí<br />

Há seis meses em Paraisópolis, São Paulo<br />

Hoje mesmo eu estava falan<strong>do</strong> que lá na roça tá seco. Meu filho falou que se nós tivesse lá, nós ia morrer de sede. Eu<br />

disse que nos outro ano ninguém num morria. A gente procurava onde tinha água. E ele perguntou “Mãe, e o comê?”<br />

Mas nós nunca passou fome, por que eu trabalhava! Depois pronto!<br />

Maria <strong>do</strong> Desterro<br />

Maria chegou a São Paulo há apenas seis meses. Veio <strong>do</strong> Piauí, <strong>do</strong> município de Novo Santo Antonio para ficar com o mari<strong>do</strong>. Ele, sozinho,<br />

começou um processo de migração faz muito tempo - vinha, passava três, quatro meses trabalhan<strong>do</strong>, ganhava dinheiro e voltava para o<br />

“interiorzinho” onde morava a mulher e os <strong>do</strong>is filhos. Para Maria <strong>do</strong> Desterro é a primeira visita a São Paulo. Trouxe o filho e a filha, vendeu o<br />

fogão recém compra<strong>do</strong> em Novo Santo Antonio e tu<strong>do</strong> o que podia vender para juntar dinheiro para a viagem. Aqui o mari<strong>do</strong> adquiriu<br />

geladeira e televisão. Mas Maria só pensa em voltar para sua terra. Quan<strong>do</strong> chegou, chorava dia e noite. E ainda agora fala com carinho da<br />

terra, da casa e <strong>do</strong> riacho, e lembra com saudade das quatro curiquinhas, os passarinhos, que a irmã ficou “toman<strong>do</strong> de conta”. Quan<strong>do</strong> a<br />

tarde, ela chegava da roça, os pássaros chamavam seu nome.<br />

Maria mora nos fun<strong>do</strong>s de uma vielinha de mais ou menos uns 20 metros, no meio de Paraisóplois, um bairro popular, deriva<strong>do</strong> de uma favela,<br />

que tem cerca de 100 mil habitantes. Está cercada de paredes por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Às vezes se assusta com o barulho e com o movimento da<br />

comunidade. A primeira vez que “chegou na boca da viela”, viu um motoqueiro, que tinha bati<strong>do</strong> com a moto, caí<strong>do</strong> lá na frente, na rua. Até<br />

hoje treme ao lembrar a cena. A vida na favela sem dúvida representa uma solução para o problema de moradia que se coloca para o<br />

migrante que chega a metrópole sem recursos e sem trabalho. A característica da “ocupação ilegal”, <strong>do</strong> improvisa<strong>do</strong>, é fundamental porque<br />

torna os aluguéis e compras acessíveis, não são pagos impostos nem taxas, o que viabiliza a moradia em locais, em geral, a uma curta<br />

distância <strong>do</strong> trabalho. Existem moradias na favela que desafiam to<strong>do</strong>s os conceitos de arquitetura e engenharia. O cantinho de Maria <strong>do</strong><br />

Desterro é uma dessas moradas.<br />

Entre <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s<br />

O mari<strong>do</strong> começou a vir para São Paulo fazer dinheiro a convite da irmã, que migrou há muito tempo. Ele passava um tempo na cidade, fazia<br />

algum dinheiro, voltada para a roça. Mas, ano passa<strong>do</strong>, decidiu que Maria deveria vir ficar com ele definitivamente em São Paulo, por que o<br />

salário que ganhava não dava mais para pagar aluguel e ainda mandar dinheiro para Novo Santo Antonio. Ela não queria vir, mas ele insistiu.<br />

“Só fiz colher o arroz. Ficou feijão, milho, tu<strong>do</strong> lá para colher. Mas ele paga aluguel aqui, manda pra mim... o que é que fica? Ele ganha só o<br />

salário, um salarinho feito... e aí fica o que? Nem pra mim nem pra ele...”, pondera Maria, encontran<strong>do</strong> os argumentos para a decisão <strong>do</strong><br />

59


mari<strong>do</strong>. A vida de Maria foi construída na roça, desde pequenina, na convivência com o pai, como ela diz. A terra lá nos arre<strong>do</strong>res de Novo<br />

Santo Antonio - “uma hora de bicicleta, da cidade até lá”- é da família há gerações e vai passan<strong>do</strong> de um filho para outro. Bisavó, avó, mãe,<br />

to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> nasci<strong>do</strong> na mesma terra. E ela faz uma narrativa que parece remeter a outro tempo, uma Idade Média que só é violada pelo<br />

radinho de pilha. Maria não frequentou escola, por que o pai não queria. Mesmo quan<strong>do</strong> ele matriculou os <strong>do</strong>is filhos mais velhos na escola,<br />

quan<strong>do</strong> eles efetivamente iam a aula ele ficava bravo, dizia que tinham i<strong>do</strong> fazer “safadeza”...<br />

No curso <strong>do</strong> rio<br />

Tanta coisa por fazer<br />

Novo Santo Antonio fica na Microrregião de Campo Maior, com uma área de 545km2. O município foi cria<strong>do</strong> em 1994, desmembra<strong>do</strong><br />

de Alto Congá. A população é estimada em 3.547 pessoas, pelo IBGE, 2009. A densidade demográfica é de 5,79 habitantes por km2 -<br />

90,27% das pessoas estão na zona rural e 60,20% da população acima de 10 anos é analfabeta. Da<strong>do</strong>s de 2008, IBGE, registram 17<br />

escolas de Ensino Fundamental e uma de Ensino Médio. Segun<strong>do</strong> Censo <strong>do</strong> IBGE, 2000, <strong>do</strong>s 715 <strong>do</strong>micílios pesquisa<strong>do</strong>s, apenas 57<br />

possuíam energia elétrica; apenas 55 eram abasteci<strong>do</strong>s pela rede distribui<strong>do</strong>ra e 568 viviam de poços ou nascentes; 45 dispunham de<br />

banheiro ou sanitário. Não havia coleta de lixo. A agricultura está baseada na produção sazonal de arroz, cana de açúcar, feijão,<br />

mandioca e milho. No ranking <strong>do</strong> IDH municipal <strong>do</strong> Piauí, 2000, Novo Santo Antonio ocupa a 214ª posição, entre os 221 municípios<br />

piauienses, com um IDH-M de 0,509. No ranking nacional, está na 5474ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros.<br />

Maria tinha muita vontade de ir para escola, e quan<strong>do</strong> tinha quinze anos, tomou coragem e “colocou o seu nome na lista”, sem o pai saber.<br />

Quan<strong>do</strong> ela voltou <strong>do</strong> primeiro dia de aula, a mãe avisou que o pai tinha saí<strong>do</strong> muito bravo para a roça. E ela esperou, com me<strong>do</strong>. Fez tu<strong>do</strong> o<br />

que tinha que fazer, encheu as vasilhas de água, pisou o milho. Mas não escapou.<br />

“E ele me pegou com um rolo de corda. Me deu uma pisa... Eu nunca respondi a ele, mas esse dia eu disse: 'Meu pai, eu tenho fé em Deus que<br />

fica pela primeira e derradeira vez que o senhor me bate. Eu vou tirar o meu nome <strong>do</strong> colégio, e vou dizer para a professora que o senhor só<br />

chama o colégio de cabaré'. Então, por causa de ignorância dele, e minha também, eu não sei nem assinar meu nome”, conta Maria, com a<br />

singeleza e o cuida<strong>do</strong> de quem revela tesouros, segre<strong>do</strong>s que foram os marcos de sua vida, definiram seus caminhos. Seria esse mesmo tipo<br />

60<br />

“Tinha hospital não,<br />

nem em Novo Santo<br />

Antonio...”


de submissão que faz Maria aban<strong>do</strong>nar suas curuquinhas e a vida que conhece tão bem e partir rumo a um outro mun<strong>do</strong>, seguin<strong>do</strong> o curso da<br />

vida <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, numa cidade onde mal consegue se movimentar?<br />

Ela não sabe ler nem escrever, e nem sabe a sua idade. Precisa mostra a carteira de identidade. Pois a notícia que temos para Maria é que ela<br />

nasceu em 1964 e tem só 46 anos. E, agora, recomeça a vida, meio a contragosto, por que o que ela queria mesmo, de verdade, era voltar<br />

para roça, para a plantação e para as galinhas no terreiro, e principalmente para perto <strong>do</strong>s irmãos. Maria compreende, entretanto, que em<br />

São Paulo vai ter suas compensações. O mari<strong>do</strong>, que “graças a Deus” deixou de beber, tem trabalho certo. Os filhos vão ter escola pertinho<br />

dali, e tem também serviços de saúde. E na roça? Maria narra a sua experiência:<br />

“Ninguém nunca foi num hospital. Quan<strong>do</strong> ficava <strong>do</strong>ente era remédio caseiro. Eu, por tentação, cai e quebrei meu braço. Meu avô matou uma<br />

criação, uma ovelha. E o povo veio tu<strong>do</strong> almoçar. A irmã da minha mãe vivia dentro de casa. Meu prato era de esmalte, e derrubava,<br />

estampiava, tava feioso... E ela dizia, ´Maria, não bota tua comida nesse prato, que parece penico de quem tá grenguinha.´ A gente só<br />

cozinhava na lenha, e eu naquela agonia com a tia, peguei, sentei o pé na trempe, e a trempe rolou, caiu, queimou daqui pra cá no meu<br />

braço. Foi embora a manga <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> e tu<strong>do</strong>. Ai, minha bichinha, num foi nada não! Meu pai foi no mato, tirou uns talos de carnaúba, fez<br />

uma caninho de um la<strong>do</strong> e <strong>do</strong> outro, amarrou com as linhazinhas. To<strong>do</strong> dia tinha que tirar para furar as popoquinha da queimadura...E to<strong>do</strong><br />

aquele tempo para sarar. Tinha hospital não, nem em Novo Santo Antonio...”<br />

Na roça, Maria acordava cedinho, para fazer café. Pegava água no riacho, que era pertinho, “na cheia, dava para ver de casa”. Os filhos iam<br />

para escola e ela ia para o roça<strong>do</strong>. É boa de trabalho, forte e disposta. Conta que o pai dizia preferir trabalhar com Maria <strong>do</strong> que com cem<br />

homens ruins. Quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> vinha para São Paulo, a deixava na roça com os meninos e “<strong>do</strong>is potes de água”. Os vizinhos perguntavam o<br />

que ia ser da vida dela, e ela respondia – “eu tenho esses braços é para trabalhar!”<br />

Em Novo Santo Antonio, deixou a casa que até hoje não tem luz elétrica. Ainda usam candeeiro, vela, lampião e sono ce<strong>do</strong>, para acordar<br />

ce<strong>do</strong>, ainda madrugadinha.Cozinhava na lenha e no carvão. Fazia carvão para seu uso e também para vender na vizinhança. Cada galão de<br />

carvão custava R$ 1,00. Do que plantava, quan<strong>do</strong> colhia, conseguia vender um pouco, para fazer uma compra, pagar as contas, por que as<br />

vezes comprava fia<strong>do</strong> no comércio. D. Maria trabalhava também na casa <strong>do</strong>s aposenta<strong>do</strong>s. To<strong>do</strong>s já mais velhos, gastos <strong>do</strong> trabalho na terra,<br />

os aposenta<strong>do</strong>s, às vezes com uma roça grande, não conseguem cuidar sozinhos, e contratam um trabalha<strong>do</strong>r. “É uma diarinha de seis<br />

reais”, explica Maria. Estes tais aposenta<strong>do</strong>s hoje ganham um novo papel na família e na comunidade. São os únicos que têm renda certa. O<br />

antigo hábito de dividir uma criação foi deixa<strong>do</strong> para trás, com o surgimento destes compra<strong>do</strong>res: “Agora, quan<strong>do</strong> mata uma criação lá, um<br />

porco, eles só saem oferecen<strong>do</strong> na casa daqueles aposenta<strong>do</strong>s. Sabe por que? Por que to<strong>do</strong> mês o aposenta<strong>do</strong> tem aquele dinheirinho para<br />

comprar. Se ele não tem o dinheiro na hora, depois vai ter. Vê se alguém vai na minha casa! Antigamente tinha isso, de dar um pedaço. Mas<br />

agora isso acabou. Até <strong>do</strong> próprio irmão tá difícil. É desse jeito”, conta Maria.<br />

Viver é muito perigoso<br />

Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa<br />

Dona Maria parece que não entendeu ainda a lógica da migração. Entende que em São Paulo se ganha dinheiro. Isso é verdade. A sua roça<br />

de subsistência não gerava renda. Isso é verdade. Mas também é verdade que o irmão dela veio para São Paulo, o único da família que<br />

migrou, e foi assassina<strong>do</strong>. Ninguém mais veio. “Meu irmão tava aqui, e man<strong>do</strong>u dizer que eu podia ajeitar os capão (frangos capa<strong>do</strong>s, de<br />

carne gorda e macia), que ele já tava chegan<strong>do</strong>. E depois chegou a notícia que mataram. E eu tinha me<strong>do</strong> de que também matassem meu<br />

mari<strong>do</strong>.” Dona Maria chora, ainda magoada, viven<strong>do</strong> seu luto. Mas o mari<strong>do</strong> de Maria já man<strong>do</strong>u o sobrinho, em Novo Santo Antonio, vender o<br />

arroz colhi<strong>do</strong>, que ela deixou por lá. Ela insistiu que não, que ele não vendesse, e já faz planos de comer o feijão que também ficou na roça. O<br />

argumento, dela, é que não consegue trabalho em São Paulo, e é melhor ir cuidar da roça. Talvez Maria pense no riacho que corre lá pertinho<br />

da casa e nos banhos no fim da tarde. Do mun<strong>do</strong> moderno, talvez lhe baste o som <strong>do</strong> rádio, que ficava liga<strong>do</strong> direto, “comen<strong>do</strong> pilha”. O<br />

resto são os assombros da cidade grande.<br />

61


ROCINHA – UM NOVO LUGAR PARA PLANTAR<br />

O Centro Cultural na Estrada da Gávea teria si<strong>do</strong> o primeiro imóvel construí<strong>do</strong> na Rocinha, por volta de 1930. Nos anos 80, dizia-se que<br />

moravam na favela mais de 200 mil pessoas. Mas o censo realiza<strong>do</strong> em 2009 pela Secretaria de Esta<strong>do</strong> da Casa Civil, na maior favela da<br />

América Latina, mostra que a Rocinha tem 100.818 habitantes e 38.029 imóveis.<br />

A Rocinha foi elevada a condição de bairro em 1993, e tem a sua própria Região Administrativa. O nome <strong>do</strong> bairro viria das plantações de<br />

legumes e hortaliças, feitas pelos primeiros mora<strong>do</strong>res, que vendiam nas casas vizinhas, em São Conra<strong>do</strong> e Leblon. Com pequenos roça<strong>do</strong>s<br />

com terrenos de cultivo artesanal, a área ficou conhecida como Rocinha. Existe também uma versão de que o nome Rocinha seria uma<br />

referência à uma antiga mora<strong>do</strong>ra, muito branca, com cabelos quase louros, apelidada de "russinha". Por ser muito conhecida na região, as<br />

pessoas falavam: "vou lá onde mora a russinha".<br />

Segun<strong>do</strong> o site Favela tem Memória, o perío<strong>do</strong> de maior crescimento da Rocinha aconteceu durante o 'boom' imobiliário <strong>do</strong>s bairros de<br />

Ipanema, Leblon, Gávea e Jardim Botânico nos anos 50 e 60, quan<strong>do</strong> milhares de nordestinos se fixaram na favela, atraí<strong>do</strong>s pelas<br />

oportunidades na construção civil. Já na década de 40, com o crescimento de Copacabana, que empregava também mão de obra sem<br />

qualificação nas obras e em serviços, as favelas da Zona Sul experimentam um crescimento significativo, atrain<strong>do</strong> mora<strong>do</strong>res que precisam<br />

estar perto <strong>do</strong> seu local de trabalho. Hoje a favela continua atrain<strong>do</strong><br />

No que ser refere a infra-estrutura, segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Instituto Pereira Passos, 2000, a Rocinha dispunha de uma rede de esgoto que atingia<br />

60,50% <strong>do</strong>s <strong>do</strong>micílios; os serviços de limpeza chegavam a apenas 9,59% das residências, mas 96,20% tinham abastecimento de água.<br />

Segun<strong>do</strong> matéria publicada, em 2008, na Revista da Ação Social Padre Anchieta, ASPA, que desenvolve ações na comunidade, a Rocinha<br />

possuía, três Associações de Mora<strong>do</strong>res, três Centros Integra<strong>do</strong>s de Educação Pública, CIEPS, três jornais, duas rádios, <strong>do</strong>is postos de saúde,<br />

duas agências bancárias, duas linhas de ônibus, <strong>do</strong>is supermerca<strong>do</strong>s, Associação Comercial, Escola Estadual, Escola Municipal, Balcão de<br />

Direitos, rede de televisão exclusiva, Paróquia com 10 Capelas, Igreja Metodista, agência <strong>do</strong>s CORREIOS, escolas de esportes, escola de<br />

samba (Acadêmicos da Rocinha), Casa de Cultura, e diversas ONGs e instituições que oferecem cursos, serviços sociais e atividades diversas.<br />

O movimento comunitário da Rocinha viveu perío<strong>do</strong>s muito tensos, com a morte de duas lideranças importantes na história da favela, Maria<br />

Helena e Zé <strong>do</strong> Queijo. A primeira associações de mora<strong>do</strong>res da favela foi fundada em 1961 – a União Pró-Melhoramentos <strong>do</strong>s Mora<strong>do</strong>res da<br />

Rocinha, UPMMR.<br />

A União foi fechada no final da década, pelo regime militar. Nos anos 70, o movimento comunitário voltou a atuar, surgiram novas lideranças<br />

e novas associações, que lutavam por melhorias, como luta pela rede de água encanada, no final da década. Atualmente, a União Pró-<br />

Melhoramentos da Rocinha é uma das maiores associações da comunidade.<br />

63


QUEM VIU A CIDADE CRESCER<br />

Francisco Pereira Gomes<br />

Veio de Hidrolância, Ceará<br />

Mora na Rocinha, Rio de Janeiro<br />

Em to<strong>do</strong> canto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tem que ter um cearense. Tem! Tem! Tem!<br />

O cearense é bicho macho prá andar. Até na lua tem gente <strong>do</strong> Ceará<br />

Forró Mastruz com Leite<br />

O primeiro da família a desembarcar no Rio de Janeiro foi João, irmão mais velho de Seu Francisco. João desembargou no então Esta<strong>do</strong> da<br />

Guanabara, Rio de Janeiro, depois de uma longa viagem no pau de arara, uma viagem que deixou morto, em Feira de Santana, Bahia, um<br />

parceiro. O caminhão virou na estrada.<br />

Seu João desembarcou quan<strong>do</strong> na capital da República, em 1954. Era uma época de oportunidades, com o país crescen<strong>do</strong>, e principalmente<br />

oportunidades de trabalho, mau ou bem remunera<strong>do</strong>, com maiores ou menores possibilidades de mobilidade. De qualquer maneira, para o<br />

homem que não encontrava opções na área rural, o bem mais precioso era e continua sen<strong>do</strong> a esperança. A mera perspectiva de trabalho e<br />

salário fazia a estrada de terra se abrir num grande horizonte, rota de fuga da miséria e da fome.<br />

Nos anos 50, oito milhões de brasileiros fizeram o mesmo caminho que fez Seu Francisco e antes dele o irmão João. Esse número<br />

correspondia a aproximadamente 24% da população rural <strong>do</strong> Brasil, naquela década. Nos ano 60 outros 14 milhões fariam o mesmo<br />

movimento rumo às cidades. E nos anos 70, outros 17 milhões migraram, cerca de 40% da população rural na década. Em 30 anos,<br />

migraram 39 milhões de pessoas.<br />

As fronteiras agrícolas estavam em expansão, principalmente entre os anos 50 e 80, com a criação de estradas de rodagem e de infraestrutura.<br />

Esse perío<strong>do</strong> de desenvolvimento faz chegar à população rural a história de um novo mun<strong>do</strong> de possibilidades. São alternativas<br />

que surgem para aquele grupo que vive isola<strong>do</strong> nas pequenas propriedades no interior, cavucan<strong>do</strong> a terra em lavouras que mal produzem<br />

para alimentar a família. Nesse lugar, a prioridade <strong>do</strong> vivente só pode ser livrar-se da miséria e da desproteção. Qualquer sacrifício<br />

compensa para encontrar alternativas e qualquer mudança só pode significar melhoria. Não há riscos na empreitada de migrar, por que não<br />

se tem quase nada a perder. Ao contrário, o risco de não tentar algum nível de melhoria é a pior opção.<br />

A longa citação a seguir vale pela construção de um cenário que lança luz sobre o processo que leva o mora<strong>do</strong>r da área rural, sacrifica<strong>do</strong> pelo<br />

65


clima, pela pobreza e pela falta completa de acesso a políticas públicas ou serviços que possam garantir-lhe pelo menos a sobrevivência, a se<br />

decidir migrar, mesmo sem recursos, objetivos ou subjetivos, para enfrentar a “cidade grande”:<br />

“Na cidadezinha, fazem a feira, assistem à missa, participam das festas, vendem o que resta de sua produção. E, também, a cidade um pouco<br />

maior, aonde vão de vez em quan<strong>do</strong>. E observa: o ônibus, o trem, o caminhão, o jeep, o automóvel; o rádio <strong>do</strong> bar, que toca música, dá<br />

notícias, irradia futebol; o consultório <strong>do</strong> médico, a farmácia, o posto de saúde, tão longes; as ruas iluminadas; o cinema; o mo<strong>do</strong> de vestir<br />

das pessoas; a variedade de alimentos no armazém; a escola. Depois, já nos anos 60 e 70, a televisão toma, no bar, muitas vezes o lugar <strong>do</strong><br />

rádio. Até nas pequenas cidades ou vilarejos lá está ela, no alto, colocada no ponto de encontro ou na praça: to<strong>do</strong>s estão ven<strong>do</strong> a novela das<br />

oito. Como na música notável de Chico Buarque, vêem o Brasil na TV. Observam tu<strong>do</strong> e conversam. E recebem cartas de parentes,<br />

compadres e vizinhos m morar na cidade – cartas escritas e lidas pelo favor de quem é alfabetiza<strong>do</strong>. E as cartas também falam de outra vida,<br />

melhor, muito melhor. A cidade não pode deixar de atraí-los.”<br />

Ninguém sabe dizer como a decisão foi tomada. To<strong>do</strong>s mencionam um parente, que estava no Rio ou em São Paulo, e que funcionou como a<br />

ponte para a travessia, como o ponto de apoio para se lançar “no meio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”. Mas como foi exatamente que o primeiro <strong>do</strong>s retirantes<br />

decidiu cair na estrada, como pioneiro, ninguém sabe dizer. “Ouvia falar de uma vida melhor, né? Dizia que tinha trabalho aqui.” E tinha<br />

mesmo. O irmão de Seu Francisco, João, achou trabalho e foi ele que acolheu os outros irmãos que engrossavam o fluxo da migração. Seu<br />

João se ajeitou logo e mandava dinheiro para a família que ficou no Ceará. A história de vida, narrada por Francisco, mostra que João acertou<br />

na escolha – logo que chegou arranjou trabalho na construção de um prédio em Copacabana. E dali nunca mais saiu - foi zela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mesmo<br />

prédio e lá se aposentou como porteiro. Com o trabalho de João e o dinheiro que mandava, a vida da família melhorou lá em Hidrolândia. Seu<br />

Francisco contava o tempo, esperan<strong>do</strong> a hora em que ele mesmo pudesse refazer o caminho aberto pelo irmão e partir também para o Rio de<br />

Janeiro.<br />

Manancial com pouca água<br />

Hidrolândia, no Ceará, semi-ári<strong>do</strong> nordestino, nasceu às margens <strong>do</strong> Rio Botoque, que hoje corta a cidade de 19 252 habitantes (IBGE,<br />

2009). O rio Botoque já deu o nome à cidade, que também se chamou Cajazeiras e Cajazeiras <strong>do</strong> Timbó. O nome atual vem de uma<br />

fonte de águas sulfurosas, que atraiu romarias à cidade, em busca de seus efeitos curativos “milagrosos”. O povoa<strong>do</strong> tem origem no<br />

século XVIII, quan<strong>do</strong> em torno da Casa Grande se reuniam agrega<strong>do</strong>s e serviçais <strong>do</strong>mésticos. Em 1882 já é um povoa<strong>do</strong>, e é elevada a<br />

município em 1957. O Índice de Desenvolvimento Humano de Hidrolândia, em 2000, era de 0,638, No ranking <strong>do</strong> IDH municipal <strong>do</strong><br />

Ceará, ocupava a 77ª posição, entre os 184 municípios cearenses. No ranking nacional, estava na 3972ª posição, entre os 5.560<br />

municípios brasileiros. A cidade tem uma rede de serviços de saúde com seis estabelecimentos, que oferecem 25 leitos para<br />

internação. A rede de ensino fundamental dispõe de 46 escolas; o ensino médio tem duas escolas e a rede de pré-escolar tem 41<br />

escolas.<br />

O dinheiro <strong>do</strong> irmão chegava pelo correio, num processo lento entre a emissão da remessa e o recebimento. Era um tempo de dificuldades,<br />

isolamento e fome. “Um telegrama levava quinze, às vezes vinte dias pra chegar lá na roça”, lembra Seu Francisco. E a sua impressão,<br />

olhan<strong>do</strong> para o passa<strong>do</strong> é que “a gente vivia igual índio”.<br />

Pai, mãe e <strong>do</strong>ze filhos dedica<strong>do</strong>s ao roça<strong>do</strong> da família, à mercê <strong>do</strong> tempo bom ou ruim, no silêncio <strong>do</strong> sertão sem eletricidade, parcamente<br />

ilumina<strong>do</strong> à luz <strong>do</strong> candeeiro. A família tirava seu alimento da lavoura e se sobrasse alguma coisa, vendia. “E vivia era só disso mesmo.<br />

Naquele tempo não tinha emprego na roça, não. Plantava arroz, feijão, milho. Criava galinha, porco, cabrito, e tinha uma vaquinha, só pra o<br />

leite. Quan<strong>do</strong> matava um animal, vendia na feira, para comprar uma roupa, uma coisa. Mas isso que sobrava para vender não tinha valor<br />

quase nenhum. Por que isso to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tinha lá”.<br />

66


Se no seu tempo, no inverno nordestino que acontece entre janeiro e maio, a chuva não vem, a calamidade se anuncia, trazen<strong>do</strong> junto o<br />

terror de to<strong>do</strong>s – a fome. O Ceará, à época da migração de João e Francisco, aparece no texto <strong>do</strong> “Plano de Reforma Agrária”, elabora<strong>do</strong> em<br />

1967, como uma área de intenso fluxo migratório, com fortíssimo êxo<strong>do</strong> rural, numa região em que quase três quartos da população viviam<br />

da agropecuária. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> queria sair de lá.<br />

“Então era assim – se colhia dez sacas de feijão, vendia cinco. Era uma vida muito difícil. Às vezes, eu que era o mais novo comia só uma mão<br />

de farinha para <strong>do</strong>rmir alivia<strong>do</strong>. Durante to<strong>do</strong> o verão a gente vai gastar umas cinco, seis sacas de feijão. Deu dez, a gente vende cinco.<br />

Vendia baratinho. Vendia aquilo para comprar roupa. Fui cria<strong>do</strong> assim”, vai contan<strong>do</strong> Seu Francisco. Ele diz que quan<strong>do</strong> ele tinha nove anos já<br />

estava definida a sua parte de trabalho na roça – “a gente plantava assim: o mais velho ia com a enxada na frente, cavan<strong>do</strong>, e os menorzinhos<br />

vinha colocan<strong>do</strong> as sementes. Primeiro um colocava o feijão, o outro vinha atrás para colocar milho. Ainda tem disso lá”.<br />

A experiência de Seu Francisco foi a <strong>do</strong> isolamento. O seu pai era analfabeto, mas fazia questão que os meninos fossem a escola, e Francisco<br />

chegou à terceira série. Mas nada era fácil. Naquele tempo, nem na sede <strong>do</strong> município tinha eletricidade. Havia apenas um gera<strong>do</strong>r que era<br />

desliga<strong>do</strong> às 10 da noite. “Olhe, lá na roça a gente não via nada. Levava um mês para passar um caminhão por lá, e a gente saia corren<strong>do</strong><br />

atrás. Hospital a gente nem ouvia falar. Curava tu<strong>do</strong> com chá, com as ervas e por costume, até hoje eu faço assim.”<br />

A casa que Seu Francisco mora hoje, na Rocinha, comprou <strong>do</strong> irmão João. To<strong>do</strong>s os irmãos que vieram para o Rio ficavam moran<strong>do</strong> com o<br />

João. No Rio, trabalhava na construção <strong>do</strong> Túnel Rebouças, quan<strong>do</strong> houve uma grande explosão, morreu gente, e Seu Francisco<br />

imediatamente mu<strong>do</strong>u de emprego. Trabalhou em bar, depois como zela<strong>do</strong>r de um prédio, ajudante de obra. Mas seu emprego fixo mesmo<br />

foi na Viação Amigos Uni<strong>do</strong>s, como troca<strong>do</strong>r e depois motorista. Lá se aposentou. “Hoje tá tu<strong>do</strong> muda<strong>do</strong>, tem aposenta<strong>do</strong>ria rural e tem a<br />

televisão que ensina tu<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> o cabra chega aqui já está esperto. Naquele tempo, quan<strong>do</strong> chegava uma pessoa <strong>do</strong> nordeste aqui, a<br />

gente chegava brabo. O cara não sabia nem andar. Vai andan<strong>do</strong> um atrás <strong>do</strong> outro. Eu brinco que se tiver um buraco, cai um atrás <strong>do</strong> outro<br />

também, por que na roça a gente anda na veredinha, em fila, e aqui andava igual”, brinca Francisco.<br />

A esposa de Francisco também veio de Hidrolândia. Trabalhava como camareira no Hotel Copacabana Palace. Quan<strong>do</strong> foi demitida, pegou o<br />

dinheiro da indenização e comprou um quiosque em Copacabana e depois se transferiu para a Praia de São Conra<strong>do</strong>. E Seu Francisco, há 18<br />

anos, passa o dia ali na Praia, de frente para o mar, cuidan<strong>do</strong> de seu quiosque, conviven<strong>do</strong> com vizinhos ilustres, celebridades. Considera o<br />

Rio de Janeiro a melhor cidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E não pensa em voltar para Hidrolândia. Não existe essa hipótese. Nunca!<br />

“Ouvia falar de uma vida melhor, né?<br />

Dizia que tinha trabalho aqui.”<br />

67


MULÉ, O HOMEM ERA RUIM QUE NEM A<br />

PRECISÃO<br />

Margarida Mozim de Pontes<br />

Veio de Cacimba de Dentro, Paraíba<br />

Mora na Rocinha, Rio de Janeiro<br />

Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga,<br />

há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida?<br />

espera poder um dia comprá-la em grandes partidas?<br />

Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto<br />

O tempo para Dona Margarida é marca<strong>do</strong> pelas festas de São João. Ela tenta determinar há quanto tempo está no Rio de Janeiro contan<strong>do</strong><br />

nos de<strong>do</strong>s as vezes que já voltou a Cacimba de Dentro para as festas juninas. Conta uma, pula um ano, voltou <strong>do</strong>is atrás, enfim... Não sabe<br />

direito. Sem a referência das colheitas, da plantação, das chuvas, <strong>do</strong>s nascimentos e mortes, fica mais difícil contar o tempo. Então, a gente<br />

não sabe dizer ao certo quan<strong>do</strong> Dona Margarida chegou à Rocinha. Ela acha que “ainda vai inteirar onze anos”, desde que veio de Cacimba de<br />

Dentro para o Rio de Janeiro.<br />

Margarida mora na Rocinha com o filho e a nora. No momento <strong>do</strong> encontro, ela está no Clube Umuarama, na Estrada da Gávea, que funciona,<br />

no perío<strong>do</strong> pós-tempestades no Rio de Janeiro, como abrigo para as famílias que ficaram desabrigadas no início de abril. Dona Margarida não<br />

é uma das desabrigadas, mas vem à tarde para o clube, ajudar no que puder. Já trabalhou na cozinha, na preparação da comida, e se orgulha<br />

de ter usa<strong>do</strong> touca no cabelo, sabão especial para lavar as mãos, cuida<strong>do</strong> muito bem da higiene <strong>do</strong>s alimentos. Já aju<strong>do</strong>u a separar as<br />

<strong>do</strong>ações e se surpreende, impactada, com a quantidade e variedade de roupas e sapatos que chegam. “É muita coisa, mulé!”<br />

Ela se deslumbra com a abundância em que vive o povo na favela – “aqui se tem de tu<strong>do</strong>. Tem roupa... lá na roça tinha umas roupinhas que<br />

eu costurava na mão, com a agulha e linha, fazia o calçãozinho pros menino. Ninguém num tinha nem chinelo. Comia passarinho com feijão<br />

e tacaca, um pebinha... Vivia assim no meio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> banho no rio, comen<strong>do</strong> uma piabinha”, lembra Margarida. Para esclarecer,<br />

“peba” é uma espécie de tatu, uma iguaria para os sertanejos. A favela, para Margarida, é um oásis, um enorme horizonte vertical com suas<br />

casinhas morro acima, empilhadas umas nas outras, abrigan<strong>do</strong> tanta gente, uma variedade enorme de amigos e histórias, novidades.<br />

Aqui está feliz e segura. Trata da saúde com a Dra. Maria José, no hospital psiquiátrico Phillip Pinel. A médica que passa mais de uma hora<br />

conversan<strong>do</strong> com ela, para saber tu<strong>do</strong>. Mediu o colesterol, tirou sangue, sabe a quantas anda a pressão sanguínea... A <strong>do</strong>utora “olha tu<strong>do</strong><br />

como é que está”. E Dona Margarida pergunta – “sabe o que eu acho bom aqui? É que eu não sei ler, não sei nada, mas eu vou para onde eu<br />

quiser”. “Onde quiser”, para Dona Margarida, é circular um pouco ali dentro da favela, nas re<strong>do</strong>ndezas. Liberdade sim, um bem raro, a<br />

autonomia para andar, se relacionar, conversar e até dar uma entrevista. Por que não?<br />

69


Cacimba de Dentro, uma água nova<br />

Segun<strong>do</strong> o IBGE, 2009, são 17.654 habitantes, na cidade na região <strong>do</strong> semiári<strong>do</strong>, na Paraíba. O IDH é de 0,548. No ranking <strong>do</strong> IDH<br />

municipal da Paraíba, Cacimba de Dentro ocupa a 197ª posição, entre os 223 municípios paraibanos. No ranking nacional, está na<br />

4031ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. O povoa<strong>do</strong> começou a formar-se por volta de 1880, com o sítio Cacimba de<br />

Dentro, propriedade de um cobra<strong>do</strong>r de impostos. Nas primeiras décadas <strong>do</strong> século XX, novos mora<strong>do</strong>res, vin<strong>do</strong>s de Araruna, povoa<strong>do</strong><br />

vizinho, chegaram às re<strong>do</strong>ndezas construin<strong>do</strong> casas, crian<strong>do</strong> um merca<strong>do</strong> público e casas de comércio. A origem <strong>do</strong> nome deve-se ao<br />

fato de existirem na propriedade primitiva duas cacimbas de água de ótima qualidade- a "velha" e a "nova". Como a cacimba nova<br />

ficava mais para dentro da mata, tornou-se “a cacimba de dentro”, e acabou batizan<strong>do</strong> o sítio e mais tarde o município. O povoa<strong>do</strong> de<br />

Cacimba de Dentro tornou-se distrito de Araruna em torno de 1937, e foi eleva<strong>do</strong> à categoria de município em 1959. Cacimba de<br />

Dentro, segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s IBGE, 2009, tem sete estabelecimentos de saúde, que oferecem 30 leitos para internação. A rede de ensino<br />

tem 38 escolas <strong>do</strong> ensino fundamental, duas de ensino médio e 31 de pré-escolar.<br />

A história de Margarida vida é a trajetória possível daqueles que vivem na desproteção social, as mulheres da área rural. Margarida teve<br />

muitos filhos - Carmoniza, Francisco, Paulo, Graça, Genival, Luzinete, Luzimar, Antonio, Pedro; Francisca, morta de sarampo, Lourival, morto<br />

de apendicite, Manuel, Maria e Maria José morreram pequenos, entre recém nasci<strong>do</strong>s e um ou <strong>do</strong>is anos. Os mortos estão incluí<strong>do</strong>s nas<br />

estatísticas das crianças que morrem no aban<strong>do</strong>no, e engrossam ainda a narrativa antiga e atual <strong>do</strong>s pais nordestinos acostuma<strong>do</strong>s a assistir<br />

a morte das crianças que “não vingam”, vítimas mais <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> da desproteção e da pobreza.<br />

- Mas por que morria assim, D. Margarida?<br />

- Dava uma <strong>do</strong>ença, uma coceira e não tinha jeito de tratar, não tinha médico nem hospital, pra acudir.<br />

Margarida acha que vai completar 69 anos. Acha que é isso. Os pais a<strong>do</strong>tivos a teriam registra<strong>do</strong> sem saber ao certo quan<strong>do</strong> ela nasceu e ela<br />

também não tem certeza. Sabe que nasceu em Mata Velha, no caminho de Araruna. Vivia de que, Dona Margarida? Da mandioca. Plantava,<br />

colhia e fazia farinha, na casa de farinha <strong>do</strong> vizinho. Pagava a utilização da casa com uma parte da sua produção. E a memória enfileira os<br />

marcos de sofrimento na vida de Margarida. A morte das crianças, por exemplo, e o pânico de mais uma gravidez. Ela conta sorrin<strong>do</strong> como<br />

fugia <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> alcooliza<strong>do</strong>, para escapar <strong>do</strong> sexo e <strong>do</strong> risco de engravidar.<br />

As coisas começaram a mudar quan<strong>do</strong> a filha saiu de Cacimba de Dentro. Uma mulher de Natal, Rio Grande <strong>do</strong> Norte, visitou Cacimba de<br />

Dentro e pediu para levar a filha, Carmoniza, para trabalhar com ela, como <strong>do</strong>méstica, em Natal. E lá se foi Carmoniza. A recompensa pela<br />

ausência da filha não demorou a chegar. Pelo correio recebeu dinheiro, comida. Carmoniza man<strong>do</strong>u fogão e até o primeiro sapato <strong>do</strong> irmão<br />

mais novo, Paulo. Ninguém teve mais dúvida de que aquele era o caminho a trihar, e os filhos foram partin<strong>do</strong>. Vale a narrativa:<br />

“O Paulo comprou uma casa na rua (na cidade), e entregou pra mim. E eu fiquei só sofren<strong>do</strong>. Sabe quantas vezes eu fui no hospital? Umas<br />

<strong>do</strong>ze vez. Por que quebrei o resguar<strong>do</strong> e fiquei <strong>do</strong>ente. Tomei sabe quantos choque? Tomei seis choques. No derradeiro choque foi que eu<br />

conheci que eu tava melhor. O choque é assim, bota o paninho assim no de<strong>do</strong>, bota a coisa na testa da gente, assim, o pauzinho na boca da<br />

gente, e ligava. Ali a gente morria. Ficava ali morta. No derradeiro eu retornei. Passei seis meses dentro de João Pessoa, sem ninguém ir me<br />

visitar, porque o pai dele era mais ruim <strong>do</strong> que precisão, só prestava para beber e cair bêba<strong>do</strong> pelo meio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>...”<br />

Como quebrou o resguar<strong>do</strong>? Comeu coloral. Comeu a comida com o coloral, que uma vizinha fez, e depois viu o vulto passan<strong>do</strong> em casa.<br />

Nesse tempo, de resguar<strong>do</strong>, só se tomava banho de quinze em quinze dias. E nesse dia fatídico em que comeu o coloral, depois <strong>do</strong> banho, o<br />

sangue que devia descer, não desceu mais. Margarida ficou em casa, <strong>do</strong>ente, por mais de quinze dias, até que os filhos decidissem que era<br />

preciso procurar um médico. Mas aí já era tarde, o sangue subiu e Dona Margarida teve “uma queda na mente”. Ficou desorientada, sem<br />

saber o que estava fazen<strong>do</strong>. A criança morreu. E o esquisito é que ela lembra de tu<strong>do</strong>, mesmo com a “mente caída”.


“...eu ia pra o arribo da serra<br />

catar xique-xique pras<br />

crianças comer, que tava<br />

tu<strong>do</strong> passan<strong>do</strong> fome.”<br />

Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso de tais partidas,<br />

mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida.<br />

Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto.<br />

Dona Margarida quan<strong>do</strong> criança e como filha a<strong>do</strong>tiva, tinha o compromisso de cuidar <strong>do</strong>s menores, os irmãos a<strong>do</strong>tivos e os outros pequenos<br />

<strong>do</strong>s vizinhos, enquanto os pais estavam na roça. Os pais biológicos ela nem conheceu. O pai “vivia no mun<strong>do</strong>” e a mãe “ganhou o mun<strong>do</strong> com<br />

outro homem”, quan<strong>do</strong> ela tinha um mês de nascida. “Sabe o que era meu comer?”, pergunta Margarida. “Matava lagartixa e calango, fazia<br />

um molhinho e me dava para beber.”<br />

Com dez anos, tomava conta de tu<strong>do</strong> - de roça<strong>do</strong>, da casa e das crianças. “Lá, com uma seca muito grande, eu ia pra o arribo da serra catar<br />

xique-xique pras crianças comer, que tava tu<strong>do</strong> passan<strong>do</strong> fome. Descascava ele – não tem macaxeira boa? pois é que nem ele – botava no<br />

fogo de lenha e dava de comer a tudinho”. Quan<strong>do</strong> completou quinze anos, “era para tomar conta de ga<strong>do</strong>, de cavalo, de cabra, de jumento,<br />

era pra ir para o roça<strong>do</strong>. Tinha que passar no rio com a água pelo pescoço. Tinha que passar. Ou passava ou entrava no pau. Eu sei que eu<br />

sofri demais, minha filha. A terra era grande, mas eles morreram tu<strong>do</strong> e eu não fiquei com nada”, lamenta Margarida. Conheceu o mari<strong>do</strong> em<br />

Pedra Preta, e seguiu o conselho <strong>do</strong> povo, que lhe dizia para casar. Teve seus filhos, e fez sua vida, como pode, mas faz uma denúncia – “eu<br />

nem sei ler, eu nem sei costurar... não sei nada”, segun<strong>do</strong> ela graças ao pai e ao mari<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is muito ruins. E lá, na roça, a mulher “tinha<br />

filho como cabra que dá cria”.<br />

No Rio de Janeiro, Dona Margarida já teve proposta de namoro e casamento. Mas não quer nem pensar nisso. Está feliz com a vida que tem,<br />

principalmente com o sossego das tardes quan<strong>do</strong> o filho <strong>do</strong>rme e a nora está no trabalho. O filho, acidenta<strong>do</strong>, foi aposenta<strong>do</strong> por invalidez;<br />

ela tem a pensão <strong>do</strong> fina<strong>do</strong>, um dinheirinho que dá para ir viven<strong>do</strong>. Se encontrar alguém para conversar, melhor ainda. Bom então, para Dona<br />

Margarida, a vida está mais que perfeita. Ainda que mais não fosse, ela sabe que, bem diferente <strong>do</strong> que acontecia em Cacimba de Dentro, ela<br />

tem a quem recorrer: a Dra. Maria José <strong>do</strong> Pinel olha por ela.<br />

71


CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E<br />

PECUÁRIA DO BRASIL - CNA<br />

Diretoria Executiva<br />

Sena<strong>do</strong>ra Kátia Abreu<br />

Presidente<br />

Agide Meneguete (PR)<br />

1º Vice-Presidente<br />

Fábio de Salles Meirelles Filho (MG)<br />

Vice-Presidente Executivo<br />

Pio Guerra Júnior (MS)<br />

Vice-Presidente de Secretaria<br />

Ademar Silva Júnior (MS)<br />

Vice-Presidente de Finanças<br />

Assuero Doca Veronez (AC)<br />

Vice-Presidente Executivo<br />

Carlos Rivaci Sperotto (RS)<br />

Vice-Presidente Executivo<br />

Homero Alves Pereira (MT)<br />

Vice-Presidente Executivo<br />

José Ramos Torres de Melo Filho (CE)<br />

Vice-Presidente Executivo<br />

Júlio da Silva Rocha Júnior (ES)<br />

Vice-Presidente Executivo<br />

Vice-Presidentes<br />

Almir Moraes Sá (RR)<br />

Álvaro Arthur Lopes de Almeida (AL)<br />

Ângelo Crema Marzola Júnior (TO)<br />

Carlos Augusto Melo Carneiro da Cunha (PI)<br />

Carlos Fernandes Xavier (PA)<br />

Eduar<strong>do</strong> Silveira Sobral (SE)<br />

Eurípedes Ferreira Lins (AM)<br />

Fábio de Salles Meirelles (SP)<br />

Francisco Ferreira Cabral (RO)<br />

João Martins da Silva Junior (BA)<br />

José Mário Schreiner (GO)<br />

José Hilton Coelho de Sousa (MA)<br />

José Zeferino Pedrozo (SC)<br />

José Alves Vieira (RN)<br />

Luiz Iraçu Guimarães Colares (AP)<br />

Mário Antônio Pereira Borba (PB)<br />

Renato Simplício Lopes (DF)<br />

Roberto Simões (MG)<br />

Ro<strong>do</strong>lfo Tavares (RJ)<br />

SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM<br />

RURAL – SENAR<br />

Conselho Deliberativo<br />

Sena<strong>do</strong>ra Kátia Abreu<br />

Presidente<br />

Titular: Júlio da Silva Rocha Júnior<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Espírito Santo<br />

Suplente: Roberto Simões<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de Minas Gerais<br />

Titular: Carlos Riveci Sperotto<br />

Presidente da Federação da Agricultura <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul<br />

Suplente: Ágide Meneguette<br />

Presidente da Federação da Agricultura <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paraná<br />

Titular: Ângelo Crema Marzola Júnior<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Tocantins<br />

Suplente: Francisco Ferreira Cabral<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Rondônia<br />

Titular: Renato Simplício Lopes<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Distrito Federal<br />

Suplente: José Mário Schreiner<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Goiás<br />

Titular: Raimun<strong>do</strong> Coelho de Souza<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Maranhão<br />

Suplente: João Martins da Silva Júnior<br />

Presidente da Federação da Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia<br />

Ministério <strong>do</strong> Trabalho e Emprego (MTE)<br />

Ministério da Educação (MEC)<br />

Agroindústria (CNI)<br />

Organização das Cooperativas Brasileiras<br />

(OCB)<br />

Ministério da Agricultura Pecuária e<br />

Abastecimento (MAPA)<br />

Confederação Nacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res na<br />

Agricultura (CONTAG)<br />

INSTITUTO CNA<br />

Conselho de Administração<br />

Moisés Pinto Gomes<br />

Presidente<br />

Titulares:<br />

Rui Carlos Ottoni Pra<strong>do</strong><br />

Presidente da Federação de Agricultura e<br />

Pecuária <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mato Grosso –<br />

FAMATO<br />

José Zaferino Pedrozzo<br />

Presidente <strong>do</strong> Conselho Administrativo <strong>do</strong><br />

SENAR – A.R./SC.<br />

Álvaro Arthur Lopes de Almeida<br />

Presidente da Federação de Agricultura <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> de Alagoas – FAEAL<br />

Suplentes:<br />

José Hilton Coelho de Sousa<br />

Presidente <strong>do</strong> Conselho Administrativo <strong>do</strong><br />

SNAR – A.R./MA.<br />

Andréa Barbosa Alves<br />

Chefe <strong>do</strong> Departamento de Educação<br />

Profissional e de Promoção Social – DEPPS,<br />

<strong>do</strong> SENAR.<br />

Ademar da Silva Júnior<br />

Diretor Financeiro da CNA<br />

José Mário Schereiner<br />

Presidente da Federação de Agricultura <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> de Goiás – FAEG.


CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL - CNA<br />

Sena<strong>do</strong>ra Kátia Abreu<br />

Presidente<br />

Moisés Pinto Gomes<br />

Superintendência Geral<br />

SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM RURAL - SENAR<br />

Daniel Carrara<br />

Secretário Executivo<br />

Andréa Barbosa Alves<br />

Departamento de Educação Profissional e Promoção Social<br />

Rosanne Curi Zarattini<br />

Departamento Administrativo e Financeiro<br />

INSTITUTO CNA<br />

Moisés Pinto Gomes<br />

Presidente<br />

Marcelo Garcia<br />

Secretário Executivo<br />

João Cruz<br />

Diretor Técnico<br />

Coleção Desproteções Sociais no Campo<br />

Marcelo Garcia<br />

Coordenação Técnica e Editorial<br />

Cátia Dinniz<br />

Articula<strong>do</strong>ra com as Comunidades<br />

Nívea Chagas<br />

Entrevistas e Redação<br />

Adrien Scultori<br />

Programação Visual e Editoração


www.canal<strong>do</strong>produtor.com.br

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