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A Vitrina de Luzbel - Aulo Sanford de Vasconcelos

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COLÉGIO BOM JESUS CORAÇÃO DE JESUS<br />

(48) 3211 4400 – Rua: Emir Rosa, 120 – Centro<br />

Florianópolis - www.bomjesus.br<br />

Professora: Sônia Rivello<br />

AULO SANFORD DE VACONCELOS<br />

Terceirão 2009


BIOGRAFIA<br />

<strong>Aulo</strong> <strong>Sanford</strong> <strong>de</strong> Vasconcellos nasceu em Florianópolis<br />

– Santa Catarina, em 1936. Bacharelou-se pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Direito na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina, em 1962.<br />

Foi titular da Delegacia Regional <strong>de</strong> Polícia em Mafra – Santa<br />

Catarina. É jornalista e escreveu diversos romances.<br />

As Obras:<br />

• O homem da madrugada<br />

• Carrossel<br />

• Cavalo voa ou flutua?<br />

• Ave Selva<br />

• Falai baixo<br />

• A <strong>Vitrina</strong> <strong>de</strong> <strong>Luzbel</strong><br />

• O monólogo <strong>de</strong> um Deodato Alvim<br />

• O dragão vermelho do Contestado<br />

• Chica Pelega<br />

• Sargento Momora, sentido!<br />

• Alexandre, o Publicano<br />

2


INTRODUÇÃO<br />

Trata-se <strong>de</strong> um romance contemporâneo da literatura<br />

catarinense.<br />

O livro é narrado em 3ª pessoa e dividido em quatorze<br />

capítulos.<br />

De tom policialesco, conta a história <strong>de</strong> Babão, um dos<br />

suspeitos <strong>de</strong> ter matado três moças friamente.<br />

A narrativa tem idas e vindas, com a narração nos induzindo<br />

a crer que o gran<strong>de</strong> assassino é Lupércio Men<strong>de</strong>s, o Babão.<br />

Há várias referências literárias dando um to intertextual, bem<br />

ao gosto da literatura contemporânea. O recurso da metalinguagem<br />

é muito utilizado, principalmente através do personagem<br />

Gumercindo.<br />

Não há referência direta à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Florianópolis; po<strong>de</strong>mos<br />

inferir, porém, que se trata <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> litorânea <strong>de</strong> caráter<br />

açoriano, o que po<strong>de</strong>mos perceber pelo linguajar.<br />

3


Capítulo I<br />

ANTOLOGIA COMENTADA<br />

Neste capítulo, se nos é apresentado Babão, o qual quer<br />

porque quer relacionar-se com Astronil<strong>de</strong>s e para tanto vale-se do<br />

amigo Bodinho, como mediador.<br />

Dado a essa circunstância, outro qualquer pensaria em <strong>de</strong>sistir da<br />

conquista. Mas não ele, Babão. Daí, não <strong>de</strong>sistiu. Era tinhoso. Em se<br />

tratando <strong>de</strong> capturar uma lebre, não <strong>de</strong>sistia tão fácil. Por isso, passado o<br />

dia e passado o susto, ali estava ele <strong>de</strong> volta. Só que, <strong>de</strong>sta vez, levou<br />

consigo Eucla<strong>de</strong>s Ferreira, o Bodinho, como seu emissário, pois não era<br />

besta para repetir, ele próprio, o temerário assédio. Daí, levou o Bodinho.<br />

Podia ser que, com alguma sorte, as coisas <strong>de</strong>sta vez se ajeitassem melhor.<br />

Podia até acontecer que os tais brutamontes, <strong>de</strong>sta vez, nem estivessem em<br />

casa, <strong>de</strong> plantão. Ou, se estivessem, talvez se comportassem <strong>de</strong> uma forma<br />

mais civilizada e compreensiva. A rapariga Astronil<strong>de</strong>s valia bem o sacrifício<br />

e a teimosia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não se apresentasse fisicamente ele, Babão, como<br />

o herói da nova tentativa.<br />

(...)<br />

Agora voltava à carga, valendo-se do prestativo Eucla<strong>de</strong>s Ferreira,<br />

o Bodinho. Um bom sujeito, avaliou Babão, ao vê-lo subindo a la<strong>de</strong>ira,<br />

mancando. Um bom sujeito, repetiu.<br />

Comentário: Já se percebe que Babão é enrolador e <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

sempre usou e abusou do seu amigo Bodinho.<br />

Capítulo II<br />

Este capítulo começa com um recuo no tempo, mostrando a<br />

turma <strong>de</strong> amigos <strong>de</strong> Babão.<br />

É já citado o personagem Pardal, <strong>de</strong>legado que atormentará<br />

Babão e solucionará os crimes que virão a acontecer.<br />

Foi o que ele disse, e o disse com presunçosa soberbia. Ora, on<strong>de</strong><br />

já se viu? A cara amarrada <strong>de</strong> Pardal virou carranca. Aquele indivíduo<br />

empolado não queria enten<strong>de</strong>r a situação, o que só fez irritá-lo, com o caso<br />

já ganhando dimensões além da esperada. Pardal <strong>de</strong>cidiu acabar logo com<br />

aquela engronha e cresceu, agressivo:<br />

⎯ Ouça aqui, fariseu! Vais me <strong>de</strong>volver essa pata <strong>de</strong> coelho, ou por<br />

bem, ou por mal. E será agora mesmo!<br />

4<br />

É BOM SABER...<br />

Trata-se <strong>de</strong> literatura catarinense contemporânea.<br />

O título po<strong>de</strong> ser interpretado <strong>de</strong>ssa forma: num mundo<br />

<strong>de</strong> traições, misérias, homicídios, frustrações etc, existe a malda<strong>de</strong>.<br />

LUZBEL seria a junção <strong>de</strong> Lúcifer e Belzebu.<br />

A narrativa indica ser Babão o assassino, porém ao longo<br />

da narrativa há pistas <strong>de</strong> que o verda<strong>de</strong>iro assassino é Gumercindo.<br />

SÃO PERSONAGENS:<br />

LUPÉRCIO ODRIGO MENDES: O Babão. Boa vida,<br />

contador <strong>de</strong> histórias. Protagonista. Mulherengo mas apaixonado<br />

pela prima Gigi. Termina só.<br />

GUMERCINDO LIMEIRA: Bancário. Homem frustrado,<br />

esquisito, pseudointelectual. Foi preso pelo assassinato <strong>de</strong> Valéria.<br />

CENTO E UM: Amigo <strong>de</strong> Babão.<br />

EUCLADES FERREIRA: O Bodinho. Amigo sempre<br />

explorado por Babão.<br />

GIGI: Prima <strong>de</strong> Babão. Casada com Nelo.<br />

NELO: Rico empresário, casado com Gigi.<br />

PARDAL: Detetive/ <strong>de</strong>legado que investiga os<br />

assassinatos. O<strong>de</strong>ia Babão.<br />

ASTRONILDES: Uma das paqueras <strong>de</strong> Babão e que<br />

acaba engravidando <strong>de</strong> Bodinho.<br />

ODETE DE SOUZA: 18 anos, garçonete. É assassinada<br />

em uma praia a golpes na cabeça.<br />

MARLENE COELHO: Balconista, assassinada atrás da<br />

igreja, com golpes na cabeça.<br />

VALÉRIA RODRIGUES: Garçonete da churrascaria “Jóia<br />

do Campo”. Namorou Babão e foi assassinada com golpes na<br />

cabeça.<br />

21


astante estranha porque aquele manco miserável, apesar do tabagismo,<br />

gozava <strong>de</strong> uma saú<strong>de</strong> invejável.<br />

Casualmente, por seu pequeno rádio <strong>de</strong> pilha, ele na outra noite<br />

sintonizara uma estação on<strong>de</strong> um pastor pregava a palavra <strong>de</strong> Deus. Aquela<br />

voz carismática, que tanto o intrigou, fê-lo persistir na estação,<br />

acompanhando a prédica até o seu final. Intitulava-se o dito pregador como<br />

sendo o missionário Elias, da Igreja Pentecostal Reino do Amor Divino.<br />

Intrigou-o, realmente, aquela voz. Porque era a voz do Ronivaldo.<br />

Ind6entica, sem tirar nem pôr. Seja pelo timbre levemente anasalado,<br />

inconfundível, seja pelas filigranas únicas – nas sílabas aveludadas, na<br />

carícia das consoantes, na separação das frases -, era impossível ser uma<br />

outra pessoa. Aquele pregador tinha <strong>de</strong> ser o Ronivaldo. Sempre<br />

envolvente, liso, finório, um ilusionista do verbo. Parecia vê-lo, ainda agora,<br />

com aqueles seus beiços úmidos, lúbricos. Seria, forçosamente, o<br />

Ronivaldo.<br />

Lupércio Odrigo Men<strong>de</strong>s, o Babão, sentia-se velho, muito velho.<br />

Expediente encerrado. Na rua as pessoas caminhavam, vivazes,<br />

cada qual tendo um <strong>de</strong>stino certo, cada qual sabendo aon<strong>de</strong> chegar.<br />

O frio apertava, e Babão levantou-se na intenção <strong>de</strong> caminhar, <strong>de</strong><br />

também chegar a um <strong>de</strong>stino, ao seu <strong>de</strong>stino.<br />

Voltou, porém, a sentar-se.<br />

Arriou-se, como um saco gasto e vazio.<br />

E foi ficando. Abandonava-se, ali, entregue a si, entregue ao nada.<br />

20<br />

⎯ Vós preferis <strong>de</strong>ssa maneira ru<strong>de</strong>? Ora qual!, pois que assim o<br />

seja. Tirai-ma quero ver, pela força.<br />

Por essa, e por diversas outras razões, é que todos os da turma –<br />

Avelino, Zeno, Babão, Bodinho, Dobes, Cicão, Cento e Um, o galego Mila -,<br />

não olhavam Pardal como um bom camarada. Tratava-se <strong>de</strong> um elemento<br />

agressivo, insociável. Um gran<strong>de</strong> criador <strong>de</strong> casos, enfim. Conservá-lo à<br />

distância era a melhor maneira <strong>de</strong> evitar trombadas indigestas. Porque<br />

alguém com o físico dobrado <strong>de</strong> Pardal, e ainda influenciado pelas figuras<br />

do Morcego Negro e do Fantasma Voador merecia, evi<strong>de</strong>ntemente, ser<br />

olhado com a máxima prudência.<br />

Insensatos foram quantos vieram a tê-lo nos calcanhares, mais<br />

tar<strong>de</strong>, quando ele ingressou nos quadros da polícia, como ainda se verá. Ah,<br />

sim, sobre a pata <strong>de</strong> coelho? Pois é. Recuperou-a Pardal, sem dúvida.<br />

Quando ele fechou os punhos, disposto a <strong>de</strong>sferir no prolixo mancebo o<br />

primeiro sopapo, já este atirava no chão o amuleto e corria, amedrontado. E<br />

<strong>de</strong> longe, botou a boca no mundo, contun<strong>de</strong>nte:<br />

⎯ Agachai-vos, animal! Cumpri com o que vos disse, pois vo-la não<br />

<strong>de</strong>volvi em mãos. Curvai-vos para apanhá-la entre os seixos, tal como eu<br />

mesmo já dantes o fizera. E raios que vos partam!<br />

Dito isso, <strong>de</strong> novo acionou-se, sumindo para sempre daquele<br />

bairro. “Pardal baniu com o portuga”, foi a notícia a rolar pelas esquinas. E<br />

os muitos admiradores da Gigi evi<strong>de</strong>ntemente exultaram com aquela<br />

expulsão, contando nos <strong>de</strong>dos um concorrente a menos.<br />

Capítulo III<br />

Gigi era a moça que todos queriam, era prima <strong>de</strong> Babão.<br />

Ela, porém, casou-se com Nelo. Este só agüentava o rapaz por<br />

causa <strong>de</strong> sua esposa.<br />

Babão só era um mestre, mesmo, na arte <strong>de</strong> mentir e <strong>de</strong> contar<br />

lorotas. Em nada mais. Por essa razão, se precisasse trocar uma torneira,<br />

ou emendar um simples fio, apelava para o seu prestimoso Cento e Um, o<br />

polivalente, o genial homem das mil habilida<strong>de</strong>s. Porém, quem se apressar a<br />

concluir ser o apelido Cento e Um <strong>de</strong>vido à soma <strong>de</strong>ssas suas múltiplas<br />

aptidões, engana-se redondamente. Tal apelido lhe fora dado há muito<br />

tempo, quando ainda jovem, em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> um inusitado <strong>de</strong>safio. Vinha<br />

ele <strong>de</strong>scendo a la<strong>de</strong>ira da Covanca Braba com uma tarrafa <strong>de</strong> malha fina<br />

nas costas, la<strong>de</strong>ado por Babão e Bodinho – este carregando um balaio, e<br />

aquele uma lamparina <strong>de</strong> querosene. Iam ao camarão. Foi aí que ele<br />

indagou dos companheiros se duvidavam da sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>tonar<br />

cem pedidos do lugar on<strong>de</strong> estavam até a praia. Duvidaram. E foram<br />

contando. Exatamente na praia, aconteceu o centésimo. O <strong>de</strong>safiante, <strong>de</strong><br />

fato, mostrara-se capaz. Para tripudiar, ainda brindou-os <strong>de</strong>tonando um<br />

<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, pavoneando-se com a façanha, “este é <strong>de</strong> lambuja”. Daí em<br />

diante, como justa homenagem, passou a ser chamado <strong>de</strong> Cento e Um. E<br />

fez por merecê-lo, certamente.<br />

5


Capítulo IV<br />

trama.<br />

Capítulo crucial, pois nele é narrado um dos assassinatos da<br />

A jovem, inerte e <strong>de</strong>snuda, jazia sobre a areia úmida do sereno. Um<br />

vulto se <strong>de</strong>bruçava sobre ela com a respiração pesada, ofegante.<br />

Inesperada lufada <strong>de</strong> vento moveu as folhagens ásperas da vegetação<br />

rasteira ao <strong>de</strong>rredor. Trovões há instantes passaram a pipocar, e<br />

relâmpagos iluminavam com intermitência, logo abaixo, um quadro que se<br />

revelava sinistro.<br />

(...)<br />

O corpo inerte, obscurecido pela penumbra, parecia uma gravura<br />

baça colada naquele rústico chão <strong>de</strong> areia. Desnudou-a. Tinha-o, agora, à<br />

sua inteira mercê. Moldura, quadro, mo<strong>de</strong>lo, gravura, tudo ali naquele<br />

momento era real e palpável. O inesperado temporal, que logo <strong>de</strong>pois se<br />

<strong>de</strong>sabou dos céus, veio precipitar os acontecimentos e inclusive quase o<br />

aprisionou, escapando por pouco <strong>de</strong> atolar-se no areal traiçoeiro. Agora,<br />

afastando-se velozmente e superada a ligeira crise <strong>de</strong> nervosismo<br />

retardatário, admirava-se com a própria tranquilida<strong>de</strong>, experimentando até<br />

uma certa euforia, abcindido <strong>de</strong> qualquer sentimento <strong>de</strong> culpa. Tratara-a<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, quando lhe oferecera carona, com a máxima lhaneza e com<br />

toda a educação. Ele não merecia as xingações por parte da ordinária e<br />

nem o seu ofensivo repúdio.Claro que não merecia.<br />

(...)<br />

A vítima foi mais tar<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificada como O<strong>de</strong>te <strong>de</strong> Souza, <strong>de</strong>zoito<br />

anos, balconista <strong>de</strong> loja, sem namorado ou companheiro fixo, e que<br />

costumava divertir-se nos bailes da periferia. Morava com os pais, no Morro<br />

da Carlita.<br />

Comentário: O capítulo <strong>de</strong>ixa várias pistas, o assassino não<br />

trabalha bem a rejeição, por isso mata suas vítimas. É <strong>de</strong><br />

complicação fraca, pois nem consegue carregar os corpos.<br />

Pardal associa esse assassinato ao <strong>de</strong> Marlene Coelho.<br />

Pardal correu a mão pelo rosto marcado por longa cicatriz. Sim,<br />

recordava-se perfeitamente do referido caso, pois era coisa recente, e até<br />

trabalhara nele assim que transferido para a Delegacia <strong>de</strong> Homicídios, vindo<br />

da <strong>de</strong> Costumes. Reviu a cena. Lá estava a garota, seminua, atrás da igreja<br />

do subdistrito, na mesma posição encontrada por uma moradora das<br />

vizinhanças, logo ao amanhecer. Apresentava a parte posterior da cabeça<br />

golpeada por um objeto contun<strong>de</strong>nte. Tal crime chocara a pequena e pacata<br />

comunida<strong>de</strong>, tornando-se o motivo central <strong>de</strong> seus exaustivos comentários<br />

6<br />

consigo. Impaciente já pela <strong>de</strong>mora, respon<strong>de</strong>u-lhe o veterano ter <strong>de</strong><br />

acompanhá-los assim mesmo, vestido como estava, e sem levar coisa<br />

alguma. Já na porta o escoltado ainda voltou a cabeça, lançou um arrastado<br />

olhar para as gravuras, e logo foi levado.<br />

A fim da diligência, no retorno da Delegacia, o veterano ouviu do<br />

colega o seguinte comentário:<br />

⎯ Veja só. O homem, num <strong>de</strong>terminado momento, perguntou-me<br />

sobre os meus bloqueios e sobre as minhas fobias, dizendo ainda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />

a compreensão do mundo da consciência do não ser.<br />

⎯ Então é isso – agastou-se o outro, por óbvio, indiferente ao<br />

assunto.<br />

* * *<br />

Sentia-se como um animal acuado. Sentado no banco <strong>de</strong> pedra sob<br />

um velho salgueiro, remanescente dos muitos que dantes por ali havia,<br />

Babão acompanhava nostálgico as ondas batendo na praia. Já não havia<br />

caranguejos. Até o cheiro das algas fora substituído por um odor<br />

<strong>de</strong>sagradável, <strong>de</strong> cloacas e <strong>de</strong> coisas mortas.<br />

Soprava do sul um vento frio, em rajadas, e ele levantou a gola do<br />

paletó.<br />

O que lhe sobrara, que valesse à pena? Chegara até a pensar,<br />

dias atrás, em atirar-se da ponte, <strong>de</strong> cabeça, sobre as pedras do rio, um rio<br />

que já não possuía alma. Mas não fora capaz <strong>de</strong> reunir coragem para tanto.<br />

Amigos, lamentou, já nem possuía. E ninguém mais. Os dois<br />

filhos, que teria gerado com companheiras diferentes e temporárias, eramlhe<br />

praticamente estranhos. Essas antigas parceiras, eventuais, estariam<br />

casadas, ou amasiadas por aí, nunca se preocupara em indagar, esgotandose<br />

essas suas aventuras no ato da <strong>de</strong>spedida.<br />

O dia seguinte talvez lhe fosse menos hostil, sempre seria um novo<br />

dia.<br />

Distinguiu, à distância, o que lhe pareceu ser uma gaivota. As<br />

ondas ora a <strong>de</strong>positavam na praia, ora o levavam <strong>de</strong> volta, aquele pássaro<br />

morto seria mais um lixo empobrecendo a baía.<br />

E alguma última e recente cizânia, alguma po<strong>de</strong>rosa intriga<br />

incompatibilizara-o em <strong>de</strong>finitivo com o pequeno Nelo. Este sequer admitira<br />

recebê-lo, como quem evita um cão leproso. O recado não podia ser mais<br />

claro. Até mesmo a prima Gigi, nessa repentina voragem, retraíra-se,<br />

mudando <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> e voltando-lhe as costas. Eximira-se, simplesmente,<br />

largando-o no vazio, e essa foi a maior das <strong>de</strong>cepções. Isso o machucou,<br />

<strong>de</strong>veras. Até ela a<strong>de</strong>rira ao contexto conspiratório. Do que lhe valeram uma<br />

vida nteira <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação extrema, <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> total, até <strong>de</strong> subserviência?<br />

Valeram-lhe, sim, um solene pontapé na bunda.<br />

O seu mundo ruíra, em meio aos inesperados turbilhões.<br />

Um fato que muito o surpreen<strong>de</strong>u foi a notícia da morte <strong>de</strong><br />

Eucla<strong>de</strong>s Ferreira, o Bodinho, encontrado caído na calçada <strong>de</strong> uma rua<br />

próxima ao Morro da Carlita, disseram que <strong>de</strong> um malsúbito. Uma morte<br />

19


perturbações e interferências alheias, o que lhe permitia meditar em<br />

quietu<strong>de</strong>. As fobias. Ei-las, as fobias, como um tema vasto e merecedor <strong>de</strong><br />

especial atenção, sendo assunto para inesgotáveis abordagens.<br />

De novo soaram as batidas, agora mais fortes, e um contrariado<br />

Gumercindo Limeira foi vagarosamente aten<strong>de</strong>r. Quem estaria a perturbá-lo<br />

naquele fim <strong>de</strong> semana?<br />

Abriu a porta e <strong>de</strong>u com dois indivíduos, os quais pediram licença e,<br />

antes da anuência, já foram entrando, folgados, como se os seus ingressos<br />

estivessem amparados por permissão compulsória. O mais velho dos<br />

invasores avançou três ou quatro passos, correndo os olhos pelo recinto<br />

numa inspeção preliminar, enquanto o mais jovem, aproximando-se <strong>de</strong><br />

Gumercindo, exibiu-lhe um cartão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação funcional, plastificado.<br />

⎯ Este crachá, é seu?<br />

Gumercindo Limeira olhou para o cartão que lhe era apresentado.<br />

Os seus olhos miúdos, por trás das grossas lentes, pousaram por algum<br />

tempo, sem qualquer emoção, sobre o objeto retangular exposto na mão do<br />

seu inquiridor. Não disse uma palavra, e o seu silêncio bastou como<br />

concordância. Em seguida <strong>de</strong>sviou o olhar inexpressivo para a caixinha<br />

on<strong>de</strong> <strong>de</strong>positara o besouro.<br />

⎯ Somos da Homicídios – esclareceu o mais velho,<br />

acompanhando com olhar atento a estranha reação do visitado, o qual, sem<br />

pressa e indiferente, acabava <strong>de</strong> introduzir os <strong>de</strong>dos na caixinha <strong>de</strong>la<br />

retirando, <strong>de</strong>licadamente pinçado, o compacto besouro que, com seus pares<br />

<strong>de</strong> pernas, passou a remar contínua e ca<strong>de</strong>ncidamente no vácuo.<br />

O policial trocou um olhar interrogativo com o colega,<br />

<strong>de</strong>sconcertados ambos diante daquele surpreen<strong>de</strong>nte e bizarro<br />

comportamento. Em seguida, foi objetivo:<br />

⎯ Este crachá foi encontrado nas dunas da Praia Gran<strong>de</strong>, junto ao<br />

cadáver i<strong>de</strong>ntificado como <strong>de</strong> Valéria Rodrigues, garçonete da churrascaria<br />

“Jóia do Campo”. Foi atingida na cabeça. O senhor terá que nos<br />

acompanhar até a Delegacia.<br />

⎯ Vais ter que te explicar direitinho, meu chapa – ajuntou o<br />

veterano, correndo mais uma vez os olhos pela incrível <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m do<br />

apartamento, com pilhas <strong>de</strong> papéis por todos os cantos, e cheirando a mofo.<br />

Gumercindo Limeira olhou primeiro para um, e <strong>de</strong>pois para o outro.<br />

Parecia não <strong>de</strong>monstrar qualquer alteração emocional, como que alheio a<br />

tudo aquilo. Contemplou por mais alguns instantes o besouro, ainda retido<br />

entre os seus <strong>de</strong>dos, e cujas pernas remavam no ar. Virou-se para o homem<br />

que lhe estava mais próximo e pela primeira vez falou, calmamente,<br />

professoral:<br />

⎯ Trata-se <strong>de</strong> um belo espécime <strong>de</strong> coleóptero. Essa or<strong>de</strong>m, a dos<br />

besouros, é numerosíssima. E este exemplar é dos mais raros, nem consta<br />

das estampas do livro. Permita-me que vá à janela?<br />

Escoltado pelo veterano ele, junto ao peitoral, lançou com cuidado<br />

o inseto sobre uns arbustos existentes logo abaixo, além do muro. “São<br />

criaturas extraordinárias”, falou.<br />

Depois, indicando as <strong>de</strong>sbotadas gravuras das mulheres presas<br />

nas pare<strong>de</strong>s por a<strong>de</strong>sivos, indagou se po<strong>de</strong>ria recolhê-las, levando-as<br />

18<br />

durante dias seguidos. Ninguém ali conhecia a moça, mais tar<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificada<br />

como Marlene Coelho, solteira, balconista, com <strong>de</strong>zenove anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />

enteada <strong>de</strong> um sapateiro resi<strong>de</strong>nte numa das várias ruas <strong>de</strong>rivadas do eixo<br />

principal do Morro da Carlita.<br />

Capítulo V<br />

Neste capítulo, é feita a apresentação <strong>de</strong> Gumercindo<br />

Limeira. Homem frustrado, recluso, metido a intelectual. Detestava<br />

seu trabalho <strong>de</strong> bancário. Teve uma infância complicada: a mãe<br />

fugira com um amante.<br />

A chuva fina teimava em prolongar-se pelo quarto dia consecutivo,<br />

entristecendo as ruas e as almas. Defronte ao Branco, a calçada<br />

costumeiramente muito movimentada e alegre mostrava-se agora quase<br />

<strong>de</strong>serta, reduzindo-se os transeuntes a uns poucos indivíduos sorumbáticos<br />

e encapotados.<br />

O bancário Gumercindo Limeira formara-se em Filosofia com<br />

louvor, sendo reconhecidamente um <strong>de</strong>vorador <strong>de</strong> livros. Bebeu <strong>de</strong> Marx, <strong>de</strong><br />

Nietzsche e <strong>de</strong> Freud – a chamada “Profaníssima Trinda<strong>de</strong>” –, e <strong>de</strong> muitos<br />

outros pensadores, pencas <strong>de</strong>les, dos mais variados calibres. Demorou-se<br />

no panteísmo <strong>de</strong> Spinoza, percorreu dos antigos autores clássicos aos<br />

renascentistas Petrarca, Boccaccio, e <strong>de</strong>stes aos contemporâneos. Dos<br />

velhos gregos leu Zenão <strong>de</strong> Eléia, e <strong>de</strong> Cicio, e releu as acusações do Santo<br />

Ofício contra Giordano Bruno. Em Boccaccio i<strong>de</strong>ntificou atualíssimos<br />

<strong>de</strong>boches, e sobre o citado panteísmo <strong>de</strong> Spinoza elaborou um inacabado<br />

ensaio crítico. Esse era o seu mundo. Sentia-se, daí, irrealizado naquele<br />

emprego no Banco, há anos lidando com os mesmos e repetitivos papéis,<br />

no enfado daquela ciranda mecanicista, agastado do ontem, enjoado do<br />

hoje, aborrecido do amanhã. Abominava aquela mesmice situada muito<br />

aquém dos seus sonhos e da sua fome intelectual.<br />

Comentário: Há muitas referências neste capítulo.<br />

Principalmente <strong>de</strong> filósofos e clássicos.<br />

Capítulo VI<br />

Lico Barbosa é o personagem apresentado neste capítulo.<br />

Ele é pai <strong>de</strong> Nelo e abomina a amiza<strong>de</strong> do filho com Babão.<br />

Era um homem culto, amargurado e lamentava o fato <strong>de</strong> sua<br />

cida<strong>de</strong> ter se “mo<strong>de</strong>rnizado” tanto. Enquanto vivo não saiu <strong>de</strong> sua<br />

casa, o filho queria ali construir um prédio.<br />

O acelerado progresso e a transformação da paisagem mais do que<br />

a avançada ida<strong>de</strong>, fizeram do viúvo e quase octogenário Lico Barbosa um<br />

7


<strong>de</strong>slocado do seu ultrapassado mundo. Cobria-o, inteiro, um irremovível<br />

manto <strong>de</strong> saudosas nostalgias.<br />

Primeiro furtaram-lhe a praia. Aterraram até mesmo o antigo<br />

trapiche on<strong>de</strong>, pelas manhãs <strong>de</strong> calmaria, <strong>de</strong>ixava-se nele ficar em quietu<strong>de</strong>,<br />

usufruindo a contemplação e a paz interior. Nele se distraia, observando as<br />

suaves ondulações das algas e do movimento harmonioso dos pequenos<br />

cardumes permeando entre as pilastras, formando um compacto conjunto <strong>de</strong><br />

flechinhas ágeis e cintilantes, movimentando-se mais aquém e mais além.<br />

Também o som molhado das marolas implicando com as areias da praia<br />

fazia parte do seu patrimônio existencial, até há pouco.<br />

Trapiche, algas, areias. Tudo isso lhe escamotearam. Aterraram a<br />

praia. Afastaram-na.<br />

Só o que ele ouvia agora era o ronco permanente dos caminhões,<br />

dos ônibus, e dos automóveis cruzando em velocida<strong>de</strong> a dupla pista<br />

asfáltica <strong>de</strong> <strong>de</strong>rramada sobre o aterro, tornando o ar fuliginoso e pesado.<br />

Recebia tudo isso como uma conspiração <strong>de</strong> injúrias.<br />

O sol, também este, lhe fora surrupiado. Cresceram-lhe<br />

monstruosas estruturas <strong>de</strong> concreto pelas laterais e pelos fundos da casa,<br />

substituindo árvores e quintais adjacentes, <strong>de</strong> jeito a ficar engolfado entre<br />

pare<strong>de</strong>s, sem luz e sem oxigênio. O seu horizonte apequenou-se e<br />

empobreceu, vendo-se cercado por elevadas muralhas <strong>de</strong> cimento, e tendo<br />

à frente um interminável <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> barulhentos veículos. Não,<br />

<strong>de</strong>cididamente o tão elogiado progresso em nada o agradava. Diziam-lhe<br />

ser aquilo a evolução. Mas ele, apontando para as águas pobres da baía,<br />

retrucava já terem sido limpas e pululantes <strong>de</strong> vida. E as pedras, hoje<br />

mortas e cobertas por uma borra escura e fedorenta, exibiam outras bastas<br />

cabeleiras <strong>de</strong> limo ver<strong>de</strong> e brilhante. Daí, saudosismos à parte, ele não<br />

conseguia <strong>de</strong>scobrir on<strong>de</strong> estavam os atrativos do ar envenenado, das<br />

águas pestilentas, e das pedras ensebadas.<br />

Comentário: Neste capítulo é on<strong>de</strong> há bastante indicações<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se passa a história. Há várias citações <strong>de</strong> autores literários.<br />

Lico Barbosa trilhara uma longa vida <strong>de</strong> <strong>de</strong>cências. Autodidata,<br />

absorvera em especial os pensamentos <strong>de</strong> M. Kant, autor da Crítica da<br />

Razão Pura, da Razão Prática, e da Crítica do Juízo, a quem vez por<br />

outra gostava <strong>de</strong> referir-se. Tinham-no como um homem <strong>de</strong> conduta<br />

exemplar e cordial, ainda que um tanto severo no trato. A sua<br />

respeitabilida<strong>de</strong> como cidadão correto era por todos reconhecida. Na sua<br />

recuada juventu<strong>de</strong> gostara <strong>de</strong> <strong>de</strong>clamar Billac, Raimundo Corrêa, Camões.<br />

8<br />

ou mesmo a transposição do dia pela noite, fechando-se no apartamento e<br />

trabalhando sob o foco da luz artificial.<br />

Dispunha-se, nesse fim <strong>de</strong> semana, a transformar-se novamente<br />

em letras. Subitamente, ao <strong>de</strong>slocar-se para a mesa, ouviu o estalar das<br />

asas <strong>de</strong> um inseto que, num relance, percebeu graúdo e escuro, no rasante<br />

quase lhe roçando o pescoço. “Uma barata!”, espavoriu-se, para, ato<br />

contínuo, atirar-se no piso tomado pelo pavor. Incontidos arrepios corriamlhe<br />

a espinha, o rosto lívido. Supôs ouvir umas risotas camufladas, vindas<br />

das suas mulheres da pare<strong>de</strong>, zombando <strong>de</strong>ssa sua vulnerabilida<strong>de</strong>. As<br />

vadias. Nem ousava mexer-se, preocupado com um novo rasante do<br />

<strong>de</strong>sprezível inseto. As baratas infligiam-lhe um in<strong>de</strong>scritível pavor. Não era<br />

exatamente medo o que ele por elas sentia, mas algo infinitamente pior,<br />

constituindo-se num verda<strong>de</strong>iro anátema. Tal inseto significava, para ele, a<br />

representação física do que pu<strong>de</strong>ssem ser todas as formas repulsivas, a<br />

soma <strong>de</strong> todos os ascos, a reunião <strong>de</strong> todas as abjeções e repugnâncias, e<br />

suas <strong>de</strong>mais variantes. No chão, imóvel, só os seus olhos escorregavam em<br />

todos os sentidos, perscrutados, sob temerosa expectativa, temendo<br />

encontrar o que medrosamente procurava. E assim permaneceu,<br />

absolutamente imóvel, atento ao menor ruído suspeito. Enchia o<br />

apartamento <strong>de</strong> inseticidas e <strong>de</strong> iscas letais, mas o asqueroso inseto<br />

revelava-se superior ao combate, parecendo in<strong>de</strong>strutível, impondo-lhe volta<br />

e meia essas <strong>de</strong>sagradáveis passagens.<br />

Certa vez, no Banco, um mau colega, sabendo <strong>de</strong>ssa sua fobia,<br />

fingiu introduzir-lhe pela gola do casaco uma barata. Até <strong>de</strong>scobrir ser a<br />

suposta barata uma casca <strong>de</strong> pinhão, <strong>de</strong>u-se o strip-tease. Um esc6andalo.<br />

Foi-se <strong>de</strong>sfazendo das roupas, aos pulos e aos berros, o que valeu uma<br />

pronta e injusta reprimenda por parte do gerente. Jamais perdoou o colega,<br />

augurando-lhe intimamente, para o futuro, os sinceros votos <strong>de</strong> mais<br />

completa infelicida<strong>de</strong> pessoal, concentrando nesse <strong>de</strong>sejo toda a força do<br />

seu po<strong>de</strong>r mental.<br />

Depois, com estudada cautela, ele foi ousando erguer-se. Os seus<br />

beiços lúbricos mostravam-se contraídos, apertadíssimos. Passeava os<br />

olhos pelo recinto, precavendo-se <strong>de</strong> alguma inesperada surpresa. De<br />

repente sentiu-se leve, experimentando uma <strong>de</strong>liciosa sensação <strong>de</strong> alívio.<br />

Movendo-se muito lentamente, entre os seios <strong>de</strong> uma das suas mulheres<br />

coladas na pare<strong>de</strong>, ele viu um besouro com a sua couraça <strong>de</strong> verniz escuro,<br />

equipado com longas antenas em arco, o rosto anguloso, e duas robustas<br />

pinças protegendo-se em forma <strong>de</strong> torquês. Ao bater com esse <strong>de</strong>sajeitado<br />

espécime, compacto como um reduzido tanque <strong>de</strong> guerra, Gumercindo<br />

Limeira se <strong>de</strong>sopressou. Não, não era uma nojenta e ignóbil barata. De<br />

besouros ele não tinha queixas e nem fobias. Resolutamente pinçou o inseto<br />

entre os <strong>de</strong>dos e antes <strong>de</strong> atirá-lo pela janela admirou-lhe, minuciosamente,<br />

as formas anatômicas. Depositou-o provisoriamente numa pequena caixa <strong>de</strong><br />

papelão e sacou da prateleira um compêndio sobre insetos, tratando-se<br />

aquele <strong>de</strong> um exemplar magnífico, e procurou i<strong>de</strong>ntificá-lo cientificamente.<br />

Ele não era um leigo completo no assunto. Detinha-se nessa pesquisa,<br />

quando ouviu lhe baterem à porta. Quem po<strong>de</strong>ria ser? Estranhou, pois não<br />

era dado a receber visitas. Comprazia-se com o isolamento, longe das<br />

17


Babão estava só!<br />

O impacto frontal, chegou a virar o rosto <strong>de</strong> Babão. Foi um golpe<br />

rijo, <strong>de</strong>cidido, ao mesmo tempo <strong>de</strong>spejando sobre o outro um balaio <strong>de</strong><br />

impropérios há dias cultivado na alma.<br />

⎯ E ainda preten<strong>de</strong>s me iludir com essa tua falsa amiza<strong>de</strong>,<br />

salafrário? Ainda tens o <strong>de</strong>scaramento <strong>de</strong> me olhar na cara?<br />

Sem enten<strong>de</strong>r as causas daquela brutal agressão, <strong>de</strong>smotivada na<br />

aparência, alguns tentaram interce<strong>de</strong>r, mas Cento e Um estava realmente<br />

zangado.<br />

⎯ Não se metam, isso é coisa à parte!<br />

Por causa daquele ordinário, foi dizendo, a polícia passara a lhe<br />

atucanar a vida querendo saber aí <strong>de</strong> uns crimes, da morte <strong>de</strong> duas<br />

raparigas, e sabe-se lá do que mais. O safado intrigara-o, sujara o seu lado.<br />

Mesmo se ele tivesse saído duas ou três vezes com as duas raparigas, e<br />

daí? Com quantos outros machos elas também saíram? Só que agora<br />

aquele policial maníaco, o Pardal, vinha pegando no meu pé, - tanto lá, no<br />

ensaio da Banda, quanto no seu local <strong>de</strong> serviço.<br />

⎯ Vou te partir os ossos, ordinário!<br />

Babão encolhia-se atrás da mesa, acuado, enquanto Cento e Um,<br />

na medida em que falava e ouvia as próprias razões, mais indignado ia<br />

ficando. Cento e Um gozava <strong>de</strong> bom prestígio entre os camaradas<br />

presentes, e agora estes, sabedores dos motivos daquele justo rancor,<br />

prestavam-lhe total solidarieda<strong>de</strong>, e até o atiçaram:<br />

⎯ Então merece até mais, esse danado!<br />

⎯ Porrada nele, é isso aí!<br />

Capítulo XIV<br />

Finalmente o assassino é preso.<br />

No seu acanhado e entupido apartamento, naquela manhã,<br />

Gumercindo Limeira acabara <strong>de</strong> anotar do filósofo Epicuro a seguinte frase:<br />

“Os gran<strong>de</strong>s navegadores <strong>de</strong>vem as suas reputações às gran<strong>de</strong>s<br />

tempesta<strong>de</strong>s”. Dormira aquela noite um sono profundo, sem pesa<strong>de</strong>los,<br />

reparador, levantando-se além da sua hora habitual. E ainda com a<br />

vantagem adicional, por ser sábado, <strong>de</strong> não precisar enfrentar o expediente<br />

bancário <strong>de</strong> esquema cartesiano, quadriculado, <strong>de</strong> ângulos retos, sem<br />

criativida<strong>de</strong>, aquele rodízio <strong>de</strong> mudanças iguais, tudo muito aborrecido e<br />

morbígeno. Decidiu permanecer recolhido naquele final <strong>de</strong> semana, tirá-lo-ia<br />

inteiro para <strong>de</strong>dicar-se aos textos. Sentia no cérebro um cesto <strong>de</strong> sementes<br />

germinando, próximas a eclodir. Depois <strong>de</strong> sentar-se à mesa, iniciando o<br />

trabalho, fazia-o interruptamente, sob entrega febril, indiferente a horários e<br />

<strong>de</strong>sligado do mundo. No fim <strong>de</strong> semana anterior, <strong>de</strong>bruçado sobre o seu<br />

trabalho “Consi<strong>de</strong>rações sobre o Não Ser”, passara quarenta e oito horas<br />

nele absorvido, somente ao fim das quais dando-se conta da sua <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong><br />

física causada pela anorexia. Nem percebera as mudanças do tempo lá fora,<br />

16<br />

Capitulo VII<br />

Gigi e Babão não se <strong>de</strong>sgrudavam. Através do diálogo dos<br />

dois po<strong>de</strong>mos construir a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Babão: contador <strong>de</strong><br />

lorotas, piadista, fofoqueiro, um boa vida.<br />

A essa altura, Pardal já o espreitava, <strong>de</strong>sconfiando do moço.<br />

⎯ Falavas-me, há pouco, na mulatinha que conduziste para a praia<br />

<strong>de</strong>serta, antes <strong>de</strong> cair o temporal... e, <strong>de</strong> repente, interrompeste a narrativa.<br />

Per<strong>de</strong>ste a imaginação? E quem te conce<strong>de</strong>u essa intimida<strong>de</strong> para beijar os<br />

meus pés?<br />

Lupércio Odrigo Men<strong>de</strong>s, o Lupe, continuou calado. Ergueu a<br />

fronte, e os seus olhos perdidos mostraram que, nas admoestações, a prima<br />

tornava-se ainda mais provocante. Prosseguiu calado. Na sua fisionomia<br />

<strong>de</strong>senhava-se ainda um certo ar <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong>, próprio <strong>de</strong> quem se<br />

<strong>de</strong>sloca abruptamente do sonho para a realida<strong>de</strong>, sem ainda separá-los<br />

<strong>de</strong>vidamente. Não raro faziam-se, para ele, muito tênues as fronteiras entre<br />

a mentira e a verda<strong>de</strong>, entre os sonhos e a vida real. Transitava por um e<br />

outro estado, real e virtual, com extrema facilida<strong>de</strong>, confundindo-os como<br />

num mesmo plano monodimensional. Subjugado pelo olhar interrogativo <strong>de</strong><br />

Gigi ele, agora recomposto, exibiu o <strong>de</strong>nte escuro num sorriso entre contrito<br />

e cínico. Por costume, quando surpreendido em algum ato in<strong>de</strong>vido, ele<br />

sorria daquela maneira.<br />

(...)<br />

A uma distância estratégica, com o rádio sintonizado num programa<br />

<strong>de</strong> música sertaneja, o investigador Pardal espionava os passos <strong>de</strong> Babão.<br />

De algum tempo vinha bisbilhotando a seu respeito. Passara a vigiá-lo e,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, entre outras coisas, veio a constatar ser ele um habitual<br />

acompanhante da prima, com ela formando par constante, ora aqui e ora<br />

acolá, pelos mais diferentes lugares. Já os vira ingressar, juntos, até em<br />

casas <strong>de</strong> espetáculos.<br />

O péssimo conceito <strong>de</strong> Pardal com relação a Babão vinha <strong>de</strong> longa<br />

data, remontando aos tempos da juventu<strong>de</strong> comum. Antes disso, quando<br />

ainda na fase infantil, chegaram a sentar-se, lado a lado, na mesma carteira<br />

escolar. Só mais tar<strong>de</strong>, por razões várias, é que passara a hostilizá-lo. Hoje,<br />

sabia-o capaz <strong>de</strong> cometer qualquer tipo <strong>de</strong> crime previsto no Código Penal.<br />

Tratava-se com certeza <strong>de</strong> um elemento perverso e sem o menor escrúpulo,<br />

enfim <strong>de</strong> um biltre da pior espécie, em quem gostaria <strong>de</strong>, um dia, po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>itar a mão. E, muito recentemente, andara colhendo a seu respeito umas<br />

informações bastante comprometedoras.<br />

Sim, a sua aversão pelo antigo colega <strong>de</strong> escola já vinha <strong>de</strong> longa<br />

data.<br />

9


Capítulo VIII<br />

A narrativa volta-se novamente para o apartamento <strong>de</strong><br />

Gumercindo. De sua janela ele viu o encontro <strong>de</strong> Babão com O<strong>de</strong>te,<br />

a jovem mulata. Tal visão excitou-o.<br />

Em sua casa havia várias gravuras <strong>de</strong> mulheres na pare<strong>de</strong>.<br />

Ali junto da janela, em prolongada vigília, ocorriam-lhe <strong>de</strong>sses<br />

pensamentos. Não era época <strong>de</strong> cio, e felinos escandalosos agora por ali<br />

não perturbavam. Contudo, em dado momento, Gumercindo Limeira veio a<br />

testemunhar uma cena que se suce<strong>de</strong>u, a um só tempo, violenta e<br />

<strong>de</strong>sconcertante. Ao ouvir abafados sussurros advindos daquele ermo, sob a<br />

sua janela, quedou-se em silenciosa espreita. Apesar da fraca iluminação do<br />

local, <strong>de</strong>u para ver tratar-se <strong>de</strong> um homem concitando uma mulata jovem a<br />

acompanhá-lo para uns arbustos existentes mais além, atrás <strong>de</strong> um muro<br />

parcialmente <strong>de</strong>molido. Contudo, a jovem resistia. Notava-se que ambos<br />

procuravam manter baixo o tom da voz, o que nem sempre conseguiam,<br />

especialmente quando o diálogo encrespava um pouco mais. Nesses<br />

instantes, os sussurros alterados escapavam-lhes do controle sonoro,<br />

quando então muitos <strong>de</strong>les tornavam-se perfeitamente audíveis, varando o<br />

silêncio. E audíveis o suficiente para Gumercindo <strong>de</strong>scobrir ser O<strong>de</strong>te o<br />

nome da jovem mulata, a qual afirmava nada haver prometido em troca da<br />

carona oferecida, ao fim do baile, pelo galã. E o nome do galã, por duas<br />

vezes pronunciado, era Babão. Gumercindo Limeira acompanhava os<br />

lances sob excitante curiosida<strong>de</strong>. Por momentos a moça parecia disposta a<br />

ce<strong>de</strong>r, esfregando-se no homem e lhe estimulando a libido, mas num<br />

momento seguinte afastava-o com os braços, bruscamente, <strong>de</strong>ixando-o<br />

<strong>de</strong>veras irritado. Alternava aquiescência com repentinos gestos <strong>de</strong> repúdio.<br />

Daquele embalo enervante Gumercindo foi um espião febril, sentindo-se<br />

mais excitado do que o próprio protagonista do efervescente jogo amoroso<br />

que se passava ali embaixo. E assim prosseguia aquela cálida novela, em<br />

arrastados e não resolvidos capítulos, até o momento em que o fogoso<br />

lovelace, transtornado, recorreu ao último argumento, primitivo e atávico,<br />

aplicando-lhe uma potente bofetada. O estalo do tabefe foi seguido <strong>de</strong> um<br />

gemido <strong>de</strong> dor. Esperou Gumercindo alguma reação à altura, escandalosa,<br />

o que entretanto não ocorreu. Pelo contrário. Surpreso, ele assistiu a jovem<br />

então a se abraçar languidamente com o agressor e pousar-lhe,<br />

choramingas, a cabeça sobre o ombro. O homem se foi <strong>de</strong>sabotoando,<br />

naquela penumbra, e ajudou a abrir as vestes da lacrimosa parceira, agora<br />

já participava , e inauguraram ali mesmo uma sacanagem lascada, - só<br />

faltando miar, como os felinos -, tendo daí Gumercindo Limeira alcançado o<br />

orgasmo antes mesmo do casal <strong>de</strong>sengatar-se e, recomposto, <strong>de</strong>saparecer<br />

<strong>de</strong> mãos dadas mais além, expurgindo-se do seu império visual. O<br />

silencioso observador afastou-se da janela, lívido. Voltou a acen<strong>de</strong>r o abajur<br />

e correu os olhos pelas suas mulheres coladas na pare<strong>de</strong>. Xingou-as todas,<br />

“vagabundas, são todas iguais!”, e elas não ousaram reptar. Depois disso<br />

escreveu, escreveu e escreveu, transformando-se em texto.<br />

10<br />

mas ainda voltaremos a nos enten<strong>de</strong>r. E, da próxima vez, espero que tenhas<br />

refletido melhor. Amanhã, ou <strong>de</strong>pois, voltaremos a nos ver. Passe-me,<br />

agora, o canivete e o soco-inglês.<br />

Comentário: Notar o “manegês” <strong>de</strong> Bodinho.<br />

Ainda neste capítulo nos é narrada a chegada <strong>de</strong> Nelo e<br />

Gigi, oriundos da Europa. O moço queria viajar pelo Brasil e proibiu a<br />

moça <strong>de</strong> convidar o primo Babão. Este apanhou, ainda, <strong>de</strong> Bodinho<br />

e fugiu.<br />

O capítulo contém uma pista sobre a mãe <strong>de</strong> Gumercindo<br />

ser também a mãe <strong>de</strong> Avelino e Ronivaldo, amigos <strong>de</strong> Babão.<br />

Comentário: O cerco fecha-se para Babão. Um a um os<br />

amigos o abandonam.<br />

Capítulo XII<br />

Valéria está indo viajar e é seguida por Gumercindo.<br />

Fixação!!<br />

Sempre que podia Valéria ia visitar a família, num vilarejo rural no<br />

interior do município vizinho. Uma família simples, da roça, vivendo<br />

precariamente dos produtos da terra. Livrara-se <strong>de</strong> Babão, e não se<br />

arrependia disso. Ainda bem que fora alertada em tempo por aquele policial.<br />

Sob a sombra da árvore, à margem da estrada poeirenta,<br />

Gumercindo Limeira observava a casa, afundado no assento do seu velho<br />

carro. No banco ao lado viam-se dois exemplares, o “Elogio da Loucura”,<br />

<strong>de</strong> W. Somerset Maugham, recém-adquirido em um sebo. Vivia comprando<br />

livros em sebos, mesmo faltando-lhe tempo físico para consumi-los, a todos.<br />

Já pela segunda vez ele fazia a incursão ao vilarejo.<br />

Aquela moça passara a exercer sobre ele um po<strong>de</strong>roso fascínio.<br />

Um algo inexplicável e, acreditava, até pre<strong>de</strong>stinado. Já tinham se lhe<br />

apresentado duas ou três ocasiões favoráveis para um contacto, porém, em<br />

todas, ele vacilara no <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro instante, <strong>de</strong>sencorajado. Com as suas<br />

mulheres da pare<strong>de</strong>, no aconchego do seu apartamento, era muito diferente,<br />

ele se transbordava em diálogos intimistas, trocava <strong>de</strong>ngos, elogiava,<br />

insultava, discutia, liberto em loquacida<strong>de</strong>.<br />

Capítulo XIII<br />

Babão estava só. Sentia-se só. Para piorar, Cento e Um<br />

surrou-o.<br />

Todos sentiram-se traídos por Babão, por ele ter citado seus<br />

nomes para Pardal.<br />

15


(...)<br />

Bodinho arregalou os olhos, tomando <strong>de</strong> espanto, surpreen<strong>de</strong>ndose<br />

com o sentido da pergunta e elevando a sua voz <strong>de</strong> cabra:<br />

⎯ Eu?! Eu matei alguém?! Ó-lhó-lhó...<br />

⎯ Não te acuso <strong>de</strong> nada, ainda. E nada <strong>de</strong> charme – retornou<br />

Pardal, espremendo-lhe o braço como uma prensa. ⎯ Não estou te<br />

perguntando à-toa. Possuo informações sobre a tua pessoa, por isso é bom<br />

ir logo vomitando o que sabes. Também não tenho medo <strong>de</strong>ste teu olhar <strong>de</strong><br />

bicho mau, e nem penses em apelar para o canivete, pois o primeiro<br />

movimento eu prometo <strong>de</strong>ixar-te aleijado da outra maldita perna e te jogo<br />

sobre um monte <strong>de</strong> lixo, como um trapo velho. Vagabundos não me<br />

intimidam. Vai falando.<br />

No semblante <strong>de</strong> Bodinho misturavam-se a indignação e um ódio<br />

reprimido.<br />

⎯ Ora, como alguém po<strong>de</strong> achar...<br />

⎯ ... não acho nada. Quero respostas. O teu cunhado tem carro?<br />

⎯ Tem. Um carro velho.<br />

⎯ Ele nunca te emprestou o dito carro?<br />

⎯ Uma vez ou outra, sim, mas muito raramente.<br />

⎯ Para quê?<br />

⎯ Sei lá. Para umas voltas...<br />

⎯ Como é o nome <strong>de</strong>le?<br />

⎯ É Valflor.<br />

⎯ Ele trabalha, ou é algum trambiqueiro?<br />

⎯ Trabalha no Mercado. Tem uma peixaria.<br />

⎯ E esse dito Valflor, teu cunhado... não é metido, também, a<br />

gostosão?<br />

⎯ Não que eu saiba. É uma jóia <strong>de</strong> pessoa... e bota jóia nisso...<br />

⎯ É mesmo? Vou checar o que dizes, vou checar. As caronas para<br />

a O<strong>de</strong>te, e para a Marlene, foi sempre usando o carro <strong>de</strong>sse teu cunhado?<br />

Desse tal Valflor?<br />

⎯ Que caronas?! Por lembrança, jamais conheci essas pessoas.<br />

Alguém disse isso? Se é que alguém disse, mentiu, é alguma armação –<br />

arquejou Bodinho, puxando inutilmente o braço pressionado. ⎯ Só quero<br />

saber quem foi o infame que disse isso... quem terá sido o infame...<br />

⎯ Todo esse teu teatro não me impressiona. Eu já sabia que, <strong>de</strong><br />

cara, ias negar conhecê-las. No início, todos negam. O teu amigo Babão,<br />

que é outro caco, também negou <strong>de</strong> pronto, mas <strong>de</strong>pois admitiu as caronas.<br />

Vocês dois são amigos. Quem sabe até se não agiram juntos, em<br />

cumplicida<strong>de</strong>, embora ele insinuasse a tua possível implicação. Agindo,<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, sozinho.<br />

⎯ Ele me acusou??? O Babão me acusou?! Pois é muito possível<br />

que as tenha assassinado, ele próprio, pois é capaz <strong>de</strong> tudo!<br />

⎯ É o que eu pretendo <strong>de</strong>scobrir, e vou <strong>de</strong>scobrir. Vejo que se<br />

acusam mutuamente, o que é bastante sintomático. Por ora vou te <strong>de</strong>ixar,<br />

14<br />

Comentário: Gumercindo seria o expectador <strong>de</strong> um<br />

assassinato? Ou seria o assassino?<br />

O perfil <strong>de</strong> homem frustrado com as mulheres é claro.<br />

Mais a frente, ele vai a uma festa e encontra Valéria, uma<br />

das moças que foram assassinadas. Achou-a parecida com uma das<br />

mulheres das gravuras <strong>de</strong> seu apartamento.<br />

Gumercindo Limeira, observando o grupo, encantava-se com as<br />

risadas <strong>de</strong> Valéria. Atraíam-no os seus modos e o seu sorriso. Conhecia-a<br />

<strong>de</strong> há muito tempo <strong>de</strong>vido ao retrato da pare<strong>de</strong>, sabia dos seus<br />

pensamentos secretos, apesar <strong>de</strong> ser aquela a primeira vez que a<br />

encontrava em carne e osso. E havia entre ambos, à evidência, um algo <strong>de</strong><br />

transcen<strong>de</strong>ntal, sentia-o perfeitamente.<br />

Capítulo IX<br />

Babão gostaria <strong>de</strong> ter sido maestro <strong>de</strong> banda, mas nunca<br />

teve habilida<strong>de</strong>. Assistindo a uma apresentação, cumprimentou o<br />

amigo Cento e Um, que foi frio com ele. Deduziu que era por não ter<br />

conseguido levá-lo ao churrasco <strong>de</strong> Nelo, (o marido da Gigi não<br />

<strong>de</strong>ixou).<br />

Viu, também, Astronil<strong>de</strong>s com Bodinho. Sentiu-se traído.<br />

O capítulo tem <strong>de</strong>sfecho com o assédio <strong>de</strong> Pardal.<br />

⎯ Vamos lá, meu velho amigo, fale-me sobre o que se trata, ao<br />

menos.<br />

⎯ Mesmo assim, continuo ouvindo. Conta-me tudo, vai.<br />

⎯ Conta tudo? Mas contar o quê?<br />

⎯ Ora, nada <strong>de</strong> representação teatral, não te faças <strong>de</strong> anjo. Quero<br />

ouvir sobre aquela pobre moça, a O<strong>de</strong>te <strong>de</strong> Souza. Abra logo o jogo, e<br />

prometo não interromper o teu relato.<br />

Babão arregalou os olhos, surpreso:<br />

⎯ Qual O<strong>de</strong>te?! Nem conheço qualquer O<strong>de</strong>te, ao que me<br />

lembre... Deve haver algum equívoco, evi<strong>de</strong>ntemente...<br />

Pardal fixou os seus olhos frios em Babão, cujos esforços em<br />

aparentar tranquilida<strong>de</strong> se foram esmaecendo, e ce<strong>de</strong>ndo lugar ao<br />

nervosismo. Depois <strong>de</strong> tornar a encher calmamente o copo <strong>de</strong> cerveja,<br />

Pardal veio com um novo nome:<br />

⎯ E também sobre a Marlene. Marlene Coelho, para ser exato.<br />

Vamos, <strong>de</strong>sembucha.<br />

⎯ É boa. Agora, é essa Marlene... Só se for a Marlene Peituda,<br />

conhecida por Pomboca, amante do Cento e Um...<br />

⎯ ... Coelho, como eu já disse. Marlene Coelho.<br />

⎯ Continuo na mesma...<br />

11


⎯ ... e O<strong>de</strong>te <strong>de</strong> Souza...<br />

⎯ ... não sei <strong>de</strong> nenhuma O<strong>de</strong>te <strong>de</strong> Souza, e tampouco <strong>de</strong> Marlene<br />

Coelho. Por que tenho <strong>de</strong> saber? – indagou o interrogado abrindo os braços,<br />

num gesto vago.<br />

⎯ É normal. Eu já esperava a negativa. E os mariscos? Estavam<br />

gostosos, no ponto?<br />

⎯ Francamente, não sei. Nem mesmo os experimentei. Quem<br />

pediu esse prato foi o Cento e Um. Ele, e a amásia.<br />

⎯ Interessante. Reparo que nunca sabes <strong>de</strong> nada. És um artista,<br />

fariseu. Mas eu sou um sujeito paciente, e inimigo da presa. E sabes que eu<br />

sei que estás mentindo. Nós temos tempo <strong>de</strong> sobra e, sem atropelos,<br />

chegaremos a ponto <strong>de</strong> esclarecer direitinho o que eu sei que tu sabes e, no<br />

mesmo tanto, tu sabes que eu sei. É ou não é? Vejo que estás ficando<br />

nervoso, o que é um sinal animador.<br />

Capítulo X<br />

O cenário era a churrascaria “Jóia do Campo”.<br />

Lá estavam Pardal, comemorando o aniversário; Babão,<br />

esperando por Valéria; Gumercindo observando.<br />

Pardal alertou Valéria sobre Babão.<br />

O piano prosseguia executando novas páginas pertinentes e<br />

Gumercindo Limeira, discretamente, não perdia um único momento <strong>de</strong><br />

Valéria, sorri<strong>de</strong>nte e leve, aten<strong>de</strong>ndo com elegante presteza as mesas do<br />

seu setor. Gumercindo passou a língua sobre os beiços lúbricos. Essa sua<br />

lassidão contemplativa viu-se violada ao avisar, pela janela, o pusilânime<br />

Babão estacionando o carro. Aquela presença o acabrunhou visivelmente.<br />

(...)<br />

⎯ Insistes em te divertir às minhas custas, fariseu. Sabes muito<br />

bem o que eu <strong>de</strong>sejo ouvir – agastou-se Pardal. ⎯ E não me venhas com<br />

mentiras, pois já estou tentando a te levar para um longo passeio, no meu<br />

carro.<br />

⎯ Olha, eu posso até ter cometido algum errinho aqui, outro ali,<br />

como toda gente. Mas sobre aquelas moças...<br />

⎯ Nada <strong>de</strong> papo furado. Não passas <strong>de</strong> um caco, fariseu.<br />

⎯ Até posso concordar. Mas sobre o caso <strong>de</strong>ssas tais moças eu<br />

nada sei, sou mesmo inocente – gaguejou Babão, humilhando-se, nessa<br />

altura quase caindo <strong>de</strong> joelhos. ⎯ Juro não saber <strong>de</strong> nada.<br />

⎯ É o que todos dizem, afinal. Mas vamos lá. Conversei há pouco,<br />

<strong>de</strong>ntro da churrascaria, com a garçonete, tua atual concubina. Toma sentido,<br />

fariseu. On<strong>de</strong> estiveres, estarei por perto. On<strong>de</strong> te escon<strong>de</strong>res, estarei te<br />

observando. Acabarás não resistindo. Por isso, se tiveres algo para me<br />

contar, faça-o logo. É a única maneira <strong>de</strong> te sentires aliviado. Vai pensando<br />

12<br />

nisso. Porque mais pra frente, se me forçares a mudar <strong>de</strong> método, a coisa<br />

vai engrossar. Por hora, eu me contento com esta breve conversa, mas logo<br />

voltaremos a nos ver.<br />

Depois <strong>de</strong>sta rápida abordagem o policial se afastou,<br />

embrenhando-se nas sombras, dirigindo-se rapidamente para o carro que<br />

<strong>de</strong>ixara, acolá, oculto por uma fileira <strong>de</strong> árvores.<br />

Valéria, ao chegar, encontrou Babão acuado e com as feições<br />

abatidas, sob péssimas condições emocionais. Sem pronunciar uma<br />

palavra, contrariando os seus festivos hábitos, ele arrancou o veículo.<br />

A moça olhava para Babão <strong>de</strong> soslaio, tomada por séria apreensão.<br />

Será que se envolvera com um perigoso maníaco? Será que tinha ao seu<br />

lado alguém cuja aparência alegre servia apenas <strong>de</strong> biombo para ocultar os<br />

seus verda<strong>de</strong>iros instintos? Porque as pessoas têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fingir,<br />

<strong>de</strong> simular.<br />

O melhor seria ficar <strong>de</strong> sobreaviso. Aquele policial há pouco, a<br />

alertara contra aquele homem. Uma pessoa prevenida passa a enxergar<br />

coisas que, antes, não percebia. E agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> assim alertada, ela<br />

aprecia notar em Babão um algo pouco confortador, um algo embutido que<br />

antes lhe escapava. Pensando nisso ela <strong>de</strong>cidiu ir esfriando aquele<br />

relacionamento, até rompê-lo <strong>de</strong> vez, num futuro que pretendia breve.<br />

Capítulo XI<br />

Astronil<strong>de</strong>s estava grávida e Bodinho apavorou-se, afinal era<br />

casado. Quis empurrar tal filho para Babão.<br />

Pardal o perseguia também. Bodinho ficou virado quando<br />

soube que foi Babão que contou ao <strong>de</strong>legado seu caso com uma<br />

menor. Jurou vingança.<br />

E agora a Astronil<strong>de</strong>s veio com a conversa da prenhez. Daí ele<br />

precisava bater em retirada, tirando o corpo fora. Capengando pela calçada,<br />

vinha estudando um modo ardiloso <strong>de</strong> livrar-se da encrenca. Como fazê-lo?<br />

Os acontecimentos se precipitavam, com a Astronil<strong>de</strong>s chegando até a falar<br />

em suicídio. Sendo uma pessoa <strong>de</strong> cabeça fraca, que não raciocina direito,<br />

seria muito capaz <strong>de</strong> praticar <strong>de</strong> fato esse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>satino. Além disso,<br />

vamos que o seu tio e primos cismassem <strong>de</strong> caçá-lo pela cida<strong>de</strong>, dispostos<br />

a acabarem com a sua raça? Ele era um indivíduo coxo e, por causa <strong>de</strong>ssa<br />

<strong>de</strong>ficiência, costumava carregar consigo um canivete. E ainda um socoinglês,<br />

por precaução, adquirido há pouco <strong>de</strong> um marinheiro. Todavia contra<br />

tais adversários, - e eram três -, até on<strong>de</strong> lhe valeriam o canivete e o socoinglês?<br />

Matutando, matutando, lembrou-se da pessoa do Babão. Sim, sim,<br />

talvez fosse ele a chave para resolver o seu problema. Por que não tentar<br />

incluí-lo na enrascada? Quanto mais gente fosse envolvida naquele rolo,<br />

melhor, aumentando as suas chances <strong>de</strong> escapar <strong>de</strong> fino. Valia à pena<br />

tentar alguma coisa por esse lado. Babão era ligado na rapariga.<br />

Oferecendo-se a oportunida<strong>de</strong>, ele a abraçaria no mesmo instante.<br />

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