em torno de balzac ea costureirinha chinesa - Repositório da ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />
INSTITUTO DE LETRAS<br />
MESTRADO EM LETRAS<br />
ALESSANDRA FONTES CARVALHO DA ROCHA<br />
EM TORNO DE BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA<br />
NITERÓI<br />
2010
ALESSANDRA FONTES CARVALHO DA ROCHA<br />
EM TORNO DE BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA<br />
Dissertação apresenta<strong>da</strong> ao Curso <strong>de</strong><br />
Pós-Graduação <strong>em</strong> Letras <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense,<br />
como requisito parcial para obtenção<br />
do Grau <strong>de</strong> Mestra.<br />
Orientadora: Prof a Dr a MARIA ELIZABETH CHAVES DE MELLO<br />
NITERÓI<br />
2010
ALESSANDRA FONTES CARVALHO DA ROCHA<br />
EM TORNO DE BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA<br />
BANCA EXAMINADORA<br />
___________________________________________________________________<br />
Professora Doutora Maria Elizabeth Chaves <strong>de</strong> Mello<br />
(Orientadora)<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />
___________________________________________________________________<br />
Professora Doutora Maria Ruth Machado Fellows<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
___________________________________________________________________<br />
Professora Doutora Vera Lúcia Soares<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />
SUPLENTES<br />
___________________________________________________________________<br />
Roberto Acízelo Quelha <strong>de</strong> Souza<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />
___________________________________________________________________<br />
Stela Maria Sardinha Chagas <strong>de</strong> Moraes<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro
Dedico este trabalho à minha queri<strong>da</strong> mãe e ao<br />
meu tio Fran pelo apoio incondicional, por<br />
ter<strong>em</strong> lutado junto comigo para que esse sonho<br />
se tornasse r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>. Agra<strong>de</strong>ço pelos<br />
estímulos que me impulsionaram a lutar ca<strong>da</strong><br />
vez mais por meus objetivos e por ter<strong>em</strong> aceito,<br />
muitas vezes, se privar <strong>de</strong> minha companhia<br />
e atenção pelos estudos.
AGRADECIMENTOS<br />
À Maria Elizabeth Chaves <strong>de</strong> Mello, pela perfeita orientação, pelo incentivo, carinho<br />
e amiza<strong>de</strong>. Agra<strong>de</strong>ço pelas doces palavras nos momentos <strong>de</strong> insegurança, pelos<br />
abraços nas horas <strong>de</strong> cansaço e pela sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que a diferencia como uma<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira educadora;<br />
Às professoras Vera Lúcia Soares e Maria Ruth, pela leitura atenta e crítica e pelos<br />
apontamentos <strong>de</strong> novos caminhos;<br />
A todos os professores que <strong>de</strong> certa forma passaram por minha vi<strong>da</strong> e só<br />
acrescentaram bons conhecimentos. Especialmente os professores <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral Fluminense Vera Lúcia Soares, Sônia Materno, Fernando Afonso, Lúcia<br />
Teixeira, Luis Filipe, Dalva Galvão, Edila pelo carinho e <strong>de</strong>dicação <strong>em</strong> sala <strong>de</strong> aula.<br />
À Nelma, funcionária <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense, pela atenção dispensa<strong>da</strong><br />
<strong>em</strong> todos os momentos;<br />
Aos meus amigos pela compreensão nos meus momentos <strong>de</strong> ausência e pelo<br />
estímulo que me faziam não <strong>de</strong>sistir. Particularmente aos meus amigos André<br />
Radomski, Fabiana Patueli, Florence, Roseli, Cláudio e Bruno (in m<strong>em</strong>orian) pelo<br />
encorajamento, pelos gestos <strong>de</strong> carinho e pelas gargalha<strong>da</strong>s que <strong>da</strong>mos juntos nos<br />
momentos mais difíceis. Obriga<strong>da</strong> pela amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> vocês;<br />
Ao querido Washington pela motivação nos momentos mais difíceis e pelas gran<strong>de</strong>s<br />
trocas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias;<br />
À Sandra Guimarães pelo incentivo e pela revisão do projeto para o ingresso no<br />
mestrado;<br />
À Zulei<strong>de</strong>, queri<strong>da</strong> Zú, pela aju<strong>da</strong> na qualificação, atenção e apoio;<br />
A Deus pelas oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s concedi<strong>da</strong>s e por colocar <strong>em</strong> meu caminho pessoas tão<br />
especiais que me faz<strong>em</strong> crescer pessoalmente e profissionalmente.
[...]às vezes os bons leitores são cisnes<br />
ain<strong>da</strong> mais tenebrosos e singulares<br />
que os bons autores.<br />
Jorge Luís Borges
RESUMO<br />
Esta dissertação t<strong>em</strong> como objetivo o estudo <strong>de</strong> questões relativas à teoria do efeito<br />
estético, partindo <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> leitura do romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>,<br />
<strong>de</strong> Dai Sijie, e do filme homônimo, do próprio autor. Interessa-nos observar e<br />
analisar a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> uma obra literária e as suas inúmeras<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura. Para tanto, analisar<strong>em</strong>os o jogo <strong>de</strong> leituras presente na<br />
obra <strong>de</strong> Dai Sijie, b<strong>em</strong> como as diferenças e as s<strong>em</strong>elhanças entre o filme e o<br />
romance do escritor chinês, ou seja, entre a leitura literária e a cin<strong>em</strong>atográfica que<br />
Dai Sijie faz <strong>de</strong> uma mesma história, constituindo assim uma reflexão sobre a r<strong>ea</strong>ção<br />
do leitor e as possíveis transformações que o ato <strong>de</strong> ler po<strong>de</strong> acarretar.<br />
Palavras-chave: literatura – cin<strong>em</strong>a - recepção
RÉSUMÉ<br />
Cette dissertation a comme but l’étu<strong>de</strong> <strong>de</strong>s questions sur la théorie <strong>de</strong> l’effet<br />
esthetique, à partir d’une analyse du roman Balzac et la petite tailleuse chinoise, <strong>de</strong><br />
Dai Sijie, et du film homonyme, du même auteur. Nous avons essayé d’observer et<br />
d’analyser l'efficacité <strong>de</strong> la transformation d'une œuvre littéraire et ses nombreuses<br />
possibilités <strong>de</strong> lecture. Le travail analyse la série <strong>de</strong> lectures suscitées par l’ouvrage<br />
<strong>de</strong> Dai Sijie, les différences et les similitu<strong>de</strong>s entre le film et le roman <strong>de</strong> l’ écrivain<br />
chinois, entre la lecture littéraire et cinématographique que Dai Sijie fait d’une même<br />
histoire, comme une réflexion sur la réaction du lecteur et les chang<strong>em</strong>ents possibles que l'acte <strong>de</strong><br />
lecture peut susciter.<br />
Mots-clés: littérature – cinéma - réception
1 INTRODUÇÃO<br />
“O verbo ler não suporta o imperativo. É uma aversão<br />
que compartilha com outros: o verbo amar… o verbo<br />
sonhar… É evi<strong>de</strong>nte que se po<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre tentar.<br />
Vejamos: “Ama-me!” “Sonha!” “Lê!”. “Lê, já te disse,<br />
or<strong>de</strong>no-te que leias!”<br />
- Vai para o teu quarto e lê!<br />
Resultado?<br />
Na<strong>da</strong>.<br />
Ele adormeceu sobre o livro (…).<br />
- Ele acha que as <strong>de</strong>scrições são d<strong>em</strong>asiado longas.<br />
T<strong>em</strong>os <strong>de</strong> o compreen<strong>de</strong>r, estamos no século do<br />
audiovisual, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, os autores do século XIX<br />
tinham <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver tudo…<br />
- Mas isso não é razão para o <strong>de</strong>ixarmos saltar meta<strong>de</strong><br />
<strong>da</strong>s páginas!”<br />
Daniel Pennac<br />
Minha incursão pelo mundo <strong>da</strong> leitura, ou melhor, pela leitura literária,<br />
começou com Fernão Capelo Gaivota 1 . Naquela época, aos 10 anos, o livro me foi<br />
<strong>da</strong>do como presente para criar o hábito <strong>da</strong> leitura. L<strong>em</strong>bro-me <strong>de</strong> que <strong>da</strong> história, o<br />
universo <strong>da</strong>s gaivotas me encantou e fiquei triste quando Fernão, a ave, foi expulso<br />
<strong>de</strong> seu bando por ser diferente. Após a primeira leitura, o livro ocupou a prateleira<br />
junto aos outros, sendo esquecido logo <strong>de</strong>pois.<br />
Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que começava a nutrir o gosto pela leitura, uma outra<br />
paixão me mantinha acor<strong>da</strong><strong>da</strong> por horas: os filmes. Cin<strong>em</strong>a e literatura s<strong>em</strong>pre me<br />
atraíram. Achava ótima a idéia <strong>de</strong> ler um romance e conferir como aquela história<br />
tinha sido transposta para o cin<strong>em</strong>a. Perguntava a mim mesma: Como apareceriam<br />
1 Referência ao livro <strong>de</strong> Richard Bach, publicado <strong>em</strong> 1970.
os personagens? Eram parecidos com o que eu tinha imaginado? A leitura estava<br />
pareci<strong>da</strong> com a minha?<br />
Em 2005, quando ingressei como bolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica com a<br />
orientação <strong>da</strong> professora Maria Elizabeth Chaves <strong>de</strong> Mello, interessei-me ain<strong>da</strong> mais<br />
pela t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> leitura literária e midiática, principalmente, a cin<strong>em</strong>atográfica.<br />
Nesse mesmo período, Fernão Capelo Gaivota voltou a ser meu livro <strong>de</strong> cabeceira.<br />
O livro <strong>em</strong> questão <strong>em</strong> na<strong>da</strong> se parecia com aquele também intitulado Fernão<br />
Capelo Gaivota que havia lido há 11 anos. Em paralelo a essa leitura, outras<br />
aconteciam. Lia os textos teóricos direcionados à pesquisa que <strong>de</strong>senvolvia. Travei<br />
gran<strong>de</strong>s discussões com Proust, Jauss, Iser, Foucambert, Zilberman, Luiz Costa<br />
Lima, Eco, entre outros. Sendo assim, passei a enten<strong>de</strong>r porque o Fernão e sua<br />
história não eram os mesmos <strong>de</strong> outros t<strong>em</strong>pos, pois eu também não era a mesma<br />
pessoa <strong>da</strong> época <strong>em</strong> que fui present<strong>ea</strong><strong>da</strong> com o livro. Os <strong>de</strong>sejos, anseios e<br />
objetivos eram outros. Percebia o quanto, às vezes, inspirava-me na ave Fernão<br />
para conseguir <strong>da</strong>r o melhor <strong>de</strong> mim <strong>em</strong> tudo que estava prestes a r<strong>ea</strong>lizar; não me<br />
conformava com o bom, tinha que ser o melhor, o mais perfeito, assim como os altos<br />
voos <strong>da</strong> ave.<br />
Minha experiência como leitora, certamente, influenciou-me a <strong>de</strong>limitar o<br />
t<strong>em</strong>a abor<strong>da</strong>do nesta dissertação. Mas, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, foi a experiência como<br />
professora que me apontou para a urgência <strong>de</strong> discutir a importância <strong>da</strong> leitura,<br />
principalmente dos textos literários, e pensar nela como instrumento transformador<br />
do indivíduo. Durante minha prática docente, pu<strong>de</strong> observar <strong>em</strong> algumas turmas o<br />
<strong>de</strong>scaso com a leitura e até mesmo a raiva <strong>de</strong> alguns alunos ao sugerir que<br />
<strong>de</strong>veriam ler alguma obra literária ou outros gêneros textuais. Porém, o contrário<br />
acontecia quando a sugestão para aula era assistir um filme ou um documentário.<br />
Sab<strong>em</strong>os que, no Brasil, o hábito <strong>de</strong> ler ain<strong>da</strong> é algo distante <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong> população. Talvez, essa seja uma <strong>da</strong>s explicações para o cin<strong>em</strong>a<br />
contar com um público absur<strong>da</strong>mente maior <strong>em</strong> comparação ao dos livros,<br />
principalmente, os literários, tendo <strong>em</strong> vista que as etapas <strong>de</strong> aprendizag<strong>em</strong> são<br />
b<strong>em</strong> mais curtas <strong>em</strong> relação a esse último. Consi<strong>de</strong>rando o número <strong>de</strong> analfabetos<br />
10
existente <strong>em</strong> nosso país, é possível imaginarmos o porquê <strong>de</strong> a leitura ficar <strong>em</strong><br />
segundo plano. Segundo matéria do Jornal Folha Online (2009) 2 :<br />
No Dia Internacional <strong>da</strong> Alfabetização (8), o Brasil aparece como o país<br />
com o maior número <strong>de</strong> analfabetos na América Latina, apesar <strong>de</strong> alguns<br />
progressos, segundo <strong>da</strong>dos divulgados pela Organização <strong>da</strong>s Nações<br />
Uni<strong>da</strong>s para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). No total, 14,1<br />
milhões <strong>de</strong> brasileiros, o que equivale a 10,5% <strong>da</strong> população maior <strong>de</strong> 15<br />
anos, não sab<strong>em</strong> ler n<strong>em</strong> escrever.<br />
Dentro <strong>de</strong> um mundo dirigido pelo pragmatismo, imediatismo e pela eficiência<br />
na produção, os textos literários têm seu espaço reduzido e tornam-se ca<strong>da</strong> vez<br />
mais inoperantes no mundo atual. Hoje, não se admite per<strong>de</strong>r t<strong>em</strong>po porque “t<strong>em</strong>po<br />
é dinheiro”. O ato <strong>de</strong> ler teve seu espaço reduzido a mera leitura <strong>de</strong> informação. Por<br />
outro lado, a rapi<strong>de</strong>z com que as informações são transmiti<strong>da</strong>s nos permite conhecêlas<br />
ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os fatos estão acontecendo, não importa a que<br />
distância.<br />
É por consi<strong>de</strong>rar que a leitura é um instrumento <strong>de</strong> formação e crescimento<br />
do ci<strong>da</strong>dão, que este trabalho se propõe a abor<strong>da</strong>r uma história que, tanto na obra<br />
literária, quanto no cin<strong>em</strong>a, insiste na função transformadora do sujeito através <strong>da</strong><br />
leitura. Assim, a partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> leitura do romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong><br />
<strong>chinesa</strong>, <strong>de</strong> Dai Sijie 3 , e do filme homônimo, do próprio autor, estu<strong>da</strong>r<strong>em</strong>os 4<br />
questões relativas à teoria do efeito estético, através <strong>da</strong> observação e análise <strong>da</strong><br />
capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> uma obra literária e as suas inúmeras<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura. Para isso, analisar<strong>em</strong>os as concepções <strong>de</strong> leitura implícitas<br />
no livro e no filme <strong>de</strong> Dai Sijie, b<strong>em</strong> como as diferenças e s<strong>em</strong>elhanças entre o filme<br />
e o romance do escritor chinês, ou seja, entre a leitura literária e a cin<strong>em</strong>atográfica<br />
que Dai Sijie faz <strong>de</strong> uma mesma história, constituindo, assim, uma reflexão sobre a<br />
r<strong>ea</strong>ção do leitor neste jogo <strong>de</strong> leituras no romance e no filme analisados.<br />
O interesse pelo objeto analisado surgiu durante o contato com as obras nas<br />
aulas <strong>de</strong> Teorias <strong>da</strong> Leitura no curso <strong>de</strong> Especialização <strong>em</strong> Literaturas Francófonas,<br />
2 Disponível <strong>em</strong>: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u621229.shtml 09/09/2009 -<br />
Brasil é o país com maior número absoluto <strong>de</strong> analfabetos na América Latina. Acessado <strong>em</strong><br />
03/12/2009 às 17:45.<br />
3 Nascido na China <strong>em</strong> 1954, <strong>em</strong> família <strong>de</strong> classe média, foi enviado para reeducação <strong>em</strong> um campo<br />
rural <strong>em</strong> Sichuan entre os anos <strong>de</strong> 1971 e 1974, durante a Revolução Cultural Chinesa. Em 1984<br />
mu<strong>da</strong>-se para França, on<strong>de</strong> se <strong>torno</strong>u romancista e diretor cin<strong>em</strong>atográfico.<br />
4 Ao usar a primeira pessoa do singular, relato uma experiência pessoal <strong>em</strong> relação às minhas<br />
leituras. Quando passo a utilizar a primeira pessoa do plural é porque insiro <strong>em</strong> meu discurso outras<br />
falas e vozes, como <strong>de</strong> minha orientadora e <strong>de</strong> todos os teóricos lidos, e os diálogos que mantive com<br />
eles, que me auxiliaram a construir pensamentos e opiniões.<br />
11
<strong>ea</strong>lizado na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Com a leitura do romance, tive<br />
certeza que havia encontrado um gran<strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> tudo aquilo que acreditava ser<br />
a relação entre o leitor e o texto no ato <strong>de</strong> leitura. Inúmeras são as razões que me<br />
levaram a optar por trabalhar com Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> no mestrado.<br />
Primeiro, por ter um enredo que cont<strong>em</strong>pla o t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> nossa investigação e reflexão:<br />
o efeito transformador causado no leitor pela leitura literária; segundo, pelo fato do<br />
autor do romance ter r<strong>ea</strong>lizado uma releitura <strong>de</strong> sua obra para o cin<strong>em</strong>a, tornandose<br />
leitor <strong>de</strong> si mesmo e produtor <strong>de</strong> um novo texto, <strong>de</strong>ssa vez, cin<strong>em</strong>atográfico; e<br />
terceiro, por ser uma obra que causa um impacto como <strong>de</strong>scrito por Dostoievski<br />
sobre quando se lê um livro e t<strong>em</strong>os a sensação <strong>de</strong> o termos escrito, <strong>de</strong> nos<br />
<strong>de</strong>scobrirmos num outro ser, mesmo sendo nós mesmos.<br />
Deixa-me dizer-te, meu caro, po<strong>de</strong> b<strong>em</strong> acontecer que vás através <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
s<strong>em</strong> saber que <strong>de</strong>baixo do teu nariz existe um livro no qual a tua vi<strong>da</strong> é<br />
<strong>de</strong>scrita <strong>em</strong> todo o <strong>de</strong>talhe. Aquilo do qual nunca te <strong>de</strong>ste conta antes,<br />
vais rel<strong>em</strong>brando aos poucos, assim que comeces a ler esse livro, e<br />
encontras e <strong>de</strong>scobres... alguns livros tu lês e lês e não lhe consegues<br />
encontrar qualquer sentido ou lógica, por mais que tentes. São tão<br />
'espertos' que não consegues perceber uma palavra <strong>da</strong>quilo que diz<strong>em</strong>...<br />
Mas esse livro que talvez esteja logo <strong>de</strong>baixo do teu nariz, tu lês e senteste<br />
como se tivesses sido tu próprio a escrevê-lo, tal como - como é que hei<strong>de</strong><br />
dizer? - tal como tivesses tomado posse do teu próprio coração -<br />
qualquer que este possa ser - e o tivesse virado do avesso <strong>de</strong> forma que as<br />
pessoas o consigam ver, e <strong>de</strong>scrito com todos os <strong>de</strong>talhes - tal e qual como<br />
ele é!<br />
E como isto é simples, meu Deus! Porque, eu próprio po<strong>de</strong>ria ter<br />
escrito este livro! Porque, <strong>de</strong> fato, por que é que eu próprio não<br />
escrevi este livro! (DOSTOIEVSKI, 1963, grifo nosso)<br />
Dostoievski nos apresenta uma forma <strong>de</strong> ler que perpassa pela simples<br />
<strong>de</strong>codificação dos códigos <strong>da</strong> língua e se eleva à alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> 5 , como afirma Chartier<br />
(1999, p. 16) “A leitura não é somente uma operação abstrata <strong>de</strong> intelecção; ela é<br />
engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros”,<br />
sendo esse um dos aspectos que procuramos ver <strong>de</strong> perto nos personagens <strong>da</strong> obra<br />
literária e cin<strong>em</strong>atográfica Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>.<br />
Como forma <strong>de</strong> abarcar todos os aspectos <strong>da</strong> leitura que nos propomos<br />
analisar, adotamos como metodologia a pesquisa bibliográfica, através <strong>da</strong> qual<br />
selecionamos autores que discorr<strong>em</strong> sobre as práticas leitoras e os efeitos durante o<br />
5 Alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> no sentido <strong>de</strong> se colocar no lugar do outro na relação interpessoal, com consi<strong>de</strong>ração,<br />
valorização, i<strong>de</strong>ntificação e dialogar com o outro.<br />
12
ato <strong>de</strong> ler produzidos no indivíduo, e que apresentam um gran<strong>de</strong> comprometimento<br />
com o t<strong>em</strong>a, fazendo s<strong>em</strong>pre a ponte entre essas teorias e as duas obras (romance<br />
e filme) analisa<strong>da</strong>s.<br />
Na primeira parte do trabalho Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>: um jogo <strong>de</strong><br />
leituras, apresentamos a concepção <strong>de</strong> leitura que adotamos ao longo <strong>da</strong> pesquisa,<br />
enfatizando os conceitos <strong>de</strong> leitura que acreditamos ser<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ais a partir <strong>de</strong> alguns<br />
teóricos como Iser, Proust, Eco, Chartier e Zilberman. Ain<strong>da</strong> nesta seção, é feito um<br />
breve resumo do romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> e a contextualização<br />
histórica do mesmo, priorizando nas discussões o jogo <strong>de</strong> leituras que se forma ao<br />
longo <strong>da</strong> trama. Destaca-se ain<strong>da</strong> a importância <strong>da</strong> narração, dos contadores <strong>de</strong><br />
história, o processo <strong>de</strong> apropriação e criação durante o ato <strong>de</strong> ler, além do olhar<br />
estrangeiro do autor Dai Sijie.<br />
O segundo capítulo intitula-se Entre o leitor e o espectador. Neste, romance<br />
e filme entram <strong>em</strong> cena num estudo comparativo entre os dois tipos <strong>de</strong> texto<br />
elaborados pelo autor Dai Sijie, as r<strong>ea</strong>ções provocados <strong>em</strong> leitores e receptores e<br />
possíveis contribuições para discutir o campo <strong>da</strong> recepção na literatura e no cin<strong>em</strong>a.<br />
O terceiro e último capítulo - Cin<strong>em</strong>a, literatura e recepção - abor<strong>da</strong> a relação<br />
do leitor ativo, tanto diante do texto literário quanto do texto cin<strong>em</strong>atográfico, tendo<br />
como ex<strong>em</strong>plos as transformações sofri<strong>da</strong>s pelos personagens no romance Balzac e<br />
a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> e a leitura e releitura do próprio autor Dai Sijie nas duas<br />
formas <strong>de</strong> expressão, literária e cin<strong>em</strong>atográfica, <strong>de</strong>stacando similitu<strong>de</strong>s e diferenças<br />
<strong>em</strong> ambos os textos analisados.<br />
13
2 BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA: UM JOGO DE LEITURAS<br />
14<br />
Tenho o livro aberto diante <strong>de</strong> mim, sobre a mesa. O<br />
autor, cujo rosto vi no belo frontispício, está sorrindo<br />
com satisfação e sinto que estou <strong>em</strong> boas mãos. Sei<br />
que, à medi<strong>da</strong> que avançar pelos capítulos, serei<br />
apresentado àquela antiga família <strong>de</strong> leitores, alguns<br />
famosos, muitos obscuros, do qual faço parte.<br />
Apren<strong>de</strong>rei suas maneiras e as mu<strong>da</strong>nças nessas<br />
maneiras, e as transformações que sofreram enquanto<br />
levaram consigo, como os magos <strong>de</strong> outrora, o po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> transformar signos mortos <strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória viva. Lerei<br />
sobre seus triunfos e perseguições, sobre suas<br />
<strong>de</strong>scobertas quase secretas. E, no final,<br />
compreen<strong>de</strong>rei melhor qu<strong>em</strong> eu__leitor__sou.<br />
Alberto Manguel<br />
Consi<strong>de</strong>rando que o ato <strong>de</strong> ler é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> complexa, plural e<br />
multidireciona<strong>da</strong>, que segundo Kleiman (1989, p. 13) necessita do engajamento e<br />
apoio <strong>de</strong> muitos fatores – m<strong>em</strong>ória, atenção, percepção e conhecimentos<br />
linguísticos - que precisam ser ativados quando se constrói os sentidos do texto,<br />
recusamos a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a leitura se reduz à simples <strong>de</strong>codificação <strong>de</strong> códigos<br />
linguísticos e à simples apreensão <strong>de</strong> informações, pois a tarefa do leitor não é<br />
apenas a do reconhecimento <strong>de</strong> objetos e situações representados no texto, assim<br />
como <strong>de</strong>fine o próprio Dicionário Aurélio:<br />
Ler v.t. 1. Percorrer com a vista (o que está escrito), proferindo ou não as<br />
palavras, mas conhecendo-as. 2. Ver e estu<strong>da</strong>r (coisa escrita). 3. Decifrar e<br />
interpretar o sentido <strong>de</strong>. 4. Perceber; reconhecer. 5. Adivinhar; predizer. Int.<br />
6.Ver as letras do alfabeto e junta-las <strong>em</strong> palavras.
Também é importante revermos as concepções e mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> leitura que<br />
circularam entre os séculos XIX e XX para enten<strong>de</strong>rmos as múltiplas visões acerca<br />
<strong>de</strong> um mesmo t<strong>em</strong>a: o ato <strong>de</strong> ler. Primeiro, como Luiz Costa Lima nos aponta:<br />
Por efeito <strong>da</strong> tradição que se instaura com a poesia <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> – ou<br />
seja, <strong>de</strong> Nerval ou Bau<strong>de</strong>laire para cá -, por efeito, como seria mais correto<br />
dizer, <strong>da</strong>s condições sociais <strong>em</strong> que esta tradição é engendra<strong>da</strong>, a crítica<br />
que respon<strong>de</strong> a seu apelo concentrou-se ca<strong>da</strong> vez mais na relação autortexto<br />
ou, mais puramente, no pólo <strong>da</strong> textuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, abandonando o leitor<br />
nas sombras <strong>de</strong> uma ár<strong>ea</strong> confina<strong>da</strong> apenas à história ou à sociologia <strong>da</strong><br />
comunicação literária. À medi<strong>da</strong> que a poesia se afastava <strong>da</strong> experiência,<br />
mediante a exploração <strong>de</strong> uma “vivência <strong>de</strong> choque” (Benjamin) e se<br />
concentrava <strong>em</strong> sua própria linguag<strong>em</strong>, a crítica, acompanhando este<br />
processo, dirigia-se à textuali<strong>da</strong><strong>de</strong>(...) A primazia histórica <strong>de</strong>sta orientação<br />
coube à estilística.(...) Nisto, contudo, ela não esteve sozinha.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> estilística e entre si autônomos, o formalismo russo<br />
(salvo as exceções <strong>de</strong> Tynianov e Bakhtin), o new criticism, o<br />
estruturalismo francês (que nunca absorveu a vocação etno-antropológica<br />
<strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Lévi-Strauss) aprimoraram as análises imanentes do texto,<br />
assim <strong>de</strong>terminando um panorama que não po<strong>de</strong> ser ignorado e, ao<br />
mesmo t<strong>em</strong>po, necessita ser redimensionado. (...) por to<strong>da</strong>s estas<br />
correntes perpassa a divisão entre uma ár<strong>ea</strong> menospreza<strong>da</strong>, a ár<strong>ea</strong> <strong>da</strong><br />
comunicação, e uma privilegia<strong>da</strong>, a <strong>da</strong> textuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. (LIMA,1979, p. 10)<br />
Tais correntes críticas mo<strong>de</strong>rnas 6 acentuam o interesse pelos espaços<br />
internos <strong>da</strong>s obras literárias (a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> do texto) e as compreend<strong>em</strong> como um<br />
organismo fechado. Luiz Costa Lima d<strong>em</strong>onstra o seu <strong>de</strong>sagrado <strong>em</strong> relação ao<br />
panorama apresentado, e sugere um redimensionamento, partindo do impacto<br />
causado pela lição inaugural <strong>de</strong> H. R. Jauss, na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Konstanz. Na fala<br />
<strong>de</strong> Jauss, perceb<strong>em</strong>os uma <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s provocações que contribuiriam para a<br />
quebra <strong>de</strong> paradigma na historiografia <strong>da</strong> literatura, que passaria a se interessar pela<br />
função que um texto <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha <strong>em</strong> diferentes contextos e a r<strong>ea</strong>ção que este<br />
mesmo texto provoca no leitor.<br />
O meu programa para superar a distância entre literatura e história, entre<br />
conhecimento histórico e estético, aproveita-se dos resultados finais <strong>de</strong><br />
ambas as escolas (o formalismo e o marxismo). Os seus métodos vê<strong>em</strong> o<br />
fato literário <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um círculo fechado <strong>de</strong> estética <strong>da</strong> produção e <strong>da</strong><br />
representação. Prescind<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma dimensão <strong>da</strong> literatura, fun<strong>da</strong>mental,<br />
<strong>da</strong>dos o seu caráter estético e a sua função social: a dimensão <strong>da</strong> sua<br />
recepção e os efeitos que ela ocasiona. (JAUSS, 1967, p. 37)<br />
6<br />
Correntes críticas que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a estilística ao estruturalismo, passando pelo formalismo e o New<br />
Criticism.<br />
15
Assim, inicia-se uma renovação na história <strong>da</strong> literatura, criando-se uma base<br />
científica para a estética tradicional <strong>da</strong> produção e <strong>da</strong> representação, apoia<strong>da</strong> na<br />
estética <strong>da</strong> recepção 7 e na sua efetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Com essas diferentes perspectivas, também po<strong>de</strong>-se fazer uma classificação<br />
dos tipos <strong>de</strong> leituras <strong>em</strong> três gran<strong>de</strong>s abor<strong>da</strong>gens: num primeiro momento, a leitura é<br />
r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> num fluxo unidirecional <strong>da</strong> informação, no qual o estímulo v<strong>em</strong> <strong>da</strong> página<br />
impressa para o leitor, que <strong>de</strong>codifica o texto. Isto faz com que a informação flua do<br />
texto para o leitor e as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s executa<strong>da</strong>s pelo leitor sejam <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s pelo<br />
que está escrito na página.<br />
Em oposição ao mo<strong>de</strong>lo ascen<strong>de</strong>nte, surge o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> leitura,<br />
on<strong>de</strong> a informação parte do leitor para o texto, ao qual é atribuído significado <strong>de</strong><br />
acordo com sua experiência prévia e seus objetivos. Já no que pod<strong>em</strong>os chamar <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>lo interativo <strong>de</strong> leitura, segundo Iser, a informação segue nas duas direções, do<br />
texto para o leitor e do leitor para o texto. É uma visão dialógica do significado. Esse<br />
é construído na interação leitor e escritor através do texto 8 . Pressupõe a visão <strong>da</strong><br />
leitura como fenômeno social. Leitura como processo social. Ler a partir <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> concepção, do lugar social que envolve i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social. Nesta visão,<br />
o ato <strong>de</strong> ler envolve tanto a informação impressa na página, quanto a informação<br />
que o leitor traz para o texto, seu pré-conhecimento. Assim,<br />
[...] o texto só existe pelo ato <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> uma consciência que o<br />
recebe, e é somente ao longo <strong>da</strong> leitura que a obra adquire seu caráter<br />
particular <strong>de</strong> processo... A obra é, portanto, a constituição do texto na<br />
consciência do leitor. (ISER, 1976, p. 49)<br />
O significado não está n<strong>em</strong> no texto, n<strong>em</strong> na mente do leitor. Ele torna-se<br />
possível no processo <strong>de</strong> interação entre o leitor e o escritor, através do texto, não<br />
tendo existência na falta <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses el<strong>em</strong>entos.<br />
7 A Estética <strong>da</strong> recepção ou também chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> Escola <strong>de</strong> Constância concentra-se no estudo do<br />
leitor. Ela surgiu no final dos anos 60 na Al<strong>em</strong>anha, como uma forma <strong>de</strong> contestação à ausência <strong>de</strong><br />
subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> na crítica, pois nos anos 60, na França surgiu um movimento crítico, o estruturalismo,<br />
que pregava a morte do autor, e <strong>em</strong> conseqüência, a morte <strong>de</strong> qualquer análise <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> a<br />
partir <strong>da</strong> literatura. A estética <strong>da</strong> recepção resolveu contestar esse pressuposto e iniciar o estudo <strong>de</strong><br />
como uma subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> – do leitor - dá sentido a um texto.<br />
8 Wolfgang Iser, na obra O Ato <strong>de</strong> Ler: uma Teoria do Efeito Estético, postula que ler é pensar os<br />
pensamentos <strong>de</strong> outros. É uma forma <strong>de</strong> ingressar <strong>em</strong> outros modos <strong>de</strong> reflexão, <strong>de</strong> ação, <strong>de</strong> ser,<br />
que não os seus próprios. É envolver-se por momentos na insegurança do novo e, talvez,<br />
<strong>de</strong>sconhecido. Para ele, o ato <strong>de</strong> ler e ocupar-se com o pensamento <strong>de</strong> outros é importante se, além<br />
<strong>da</strong> compreensão, aju<strong>da</strong>r a <strong>de</strong>senvolver algo no leitor, levando-o a refletir sobre si mesmo e a<br />
<strong>de</strong>scobrir um mundo até então inatingível para ele.<br />
16
O ato criador é apenas um momento incompleto e abstrato <strong>da</strong> produção <strong>de</strong><br />
uma obra; se o autor existisse sozinho, ele po<strong>de</strong>ria escrever tanto quanto<br />
quisesse, jamais a obra como objeto veria a luz[...] a operação <strong>de</strong> escrever<br />
implica a <strong>de</strong> ler como o seu correlato dialético. (SARTRE, 1993, p. 37)<br />
Desta forma, a leitura se constitui na interação <strong>de</strong> três pólos: autor – texto –<br />
leitor, on<strong>de</strong> o movimento no ato <strong>de</strong> ler é s<strong>em</strong>pre dialógico, sendo mediado pelo texto<br />
lido e coproduzido por seu leitor, além <strong>de</strong> ser uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> transformadora do<br />
sujeito.<br />
De acordo com Proust:<br />
O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nossa sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> nossa inteligência, só pod<strong>em</strong>os<br />
<strong>de</strong>senvolvê-lo <strong>em</strong> nós mesmos, nas profun<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> nossa vi<strong>da</strong> espiritual.<br />
Mas é nesse contato com os outros espíritos, que chamamos <strong>de</strong> leitura,<br />
que se faz a educação do espírito. (PROUST, 1993, p.51)<br />
Marcel Proust comenta sobre a educação dos “modos” do espírito e trata o<br />
ato <strong>de</strong> leitura como um instrumento essencial na formação do ser humano. O teórico<br />
Iser retoma as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Proust ao afirmar que no ato <strong>de</strong> leitura o leitor se ocupa <strong>de</strong><br />
outras experiências que ain<strong>da</strong> não conhecia. “Daí a impressão <strong>de</strong> viver uma<br />
transformação durante a leitura” (ISER, 1999, p. 90).<br />
Nessa <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um novo mundo pelo leitor e a transformação do sujeito<br />
a partir <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> textos literários, t<strong>em</strong>os como ex<strong>em</strong>plo o romance Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>. É a partir <strong>da</strong> paixão <strong>de</strong> narrar histórias a uma jov<strong>em</strong><br />
costureira, o fascínio dos montanheses pelas narrativas, a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um tesouro<br />
– a valise secreta com livros “proibidos” –, o misto entre produção literária e<br />
cin<strong>em</strong>atográfica que nasce o jogo <strong>de</strong> leituras presente no romance Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, primeiro livro publicado <strong>de</strong> autoria do escritor chinês Dai Sijie,<br />
que migrou para a França no ano <strong>de</strong> 1984. Nascido <strong>em</strong> 1954, o autor passou sua<br />
infância e juventu<strong>de</strong> na China Comunista <strong>de</strong> Mao Tse Tung, sendo vítima <strong>da</strong><br />
opressão <strong>de</strong> um regime ditatorial e intolerante. Seu romance, lançado <strong>em</strong> 2000,<br />
atingiu sucesso absoluto <strong>em</strong> ven<strong>da</strong>s e críticas, sendo traduzido para mais <strong>de</strong> 25<br />
idiomas, atingindo leitores <strong>em</strong> todo o mundo.<br />
A história do romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> se passa no fim <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960, quando o lí<strong>de</strong>r chinês Mao Tse Tung, fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> República<br />
Popular <strong>da</strong> China, importante teórico do comunismo do século XX e um dos<br />
17
principais ativistas precursores do Partido Comunista chinês <strong>em</strong> 1921, apresenta<br />
uma nova campanha para o país. Em outubro <strong>de</strong> 1949, assumiu a presidência do<br />
primeiro governo chinês 9 .<br />
Mao Tse Tung lança <strong>em</strong> 1966 uma campanha que mu<strong>da</strong>ria radicalmente a<br />
vi<strong>da</strong> do país: a Revolução Cultural 10 , um período <strong>de</strong> transformações políticas e<br />
sociais que agitaram a China até 1976. Insatisfeito com os rumos do sist<strong>em</strong>a que ele<br />
mesmo havia implantado, Mao Tse Tung queria que a China fugisse do mo<strong>de</strong>lo<br />
soviético <strong>de</strong> comunismo, por consi<strong>de</strong>rá-lo falido e on<strong>de</strong> os burocratas do governo<br />
viviam num mundo irr<strong>ea</strong>l, com mordomias que o resto <strong>da</strong> população não tinha.<br />
Assim, numa reunião do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC), <strong>em</strong><br />
agosto <strong>de</strong> 1966, ele lançou formalmente a Revolução Cultural. Segundo o cientista<br />
político Kenneth Lieberthal 11 , do Centro <strong>de</strong> Estudos Chineses <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Michigan, nos Estados Unidos:<br />
Mao tinha quatro objetivos: corrigir o rumo <strong>da</strong>s políticas do PCC; substituir<br />
seus sucessores por lí<strong>de</strong>res mais afinados com o que pensava; assegurar<br />
uma experiência revolucionária à juventu<strong>de</strong> <strong>chinesa</strong>; e tornar menos<br />
elitistas os sist<strong>em</strong>as educacional, cultural e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. (Revista Eletrônica<br />
Mundo Estranho/História, 2008)<br />
Para atingir esses objetivos, Mao Tse Tung se apoiou numa enorme<br />
mobilização <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong> urbana <strong>da</strong> China, organizando grupos conhecidos como<br />
Guar<strong>da</strong>s Vermelhos. Além <strong>de</strong> questionar os rumos do comunismo chinês, a<br />
Revolução Cultural combateu o confucionismo, i<strong>de</strong>ias bas<strong>ea</strong><strong>da</strong>s no pensamento do<br />
filósofo Confúcio, que durante milênios influenciaram a vi<strong>da</strong> cultural na socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>chinesa</strong>. Pelo valor que <strong>da</strong>vam à hierarquia e ao culto do passado, tais i<strong>de</strong>ias<br />
passaram a ser encara<strong>da</strong>s como r<strong>ea</strong>cionárias. "A Revolução Cultural foi a luta contra<br />
uma classe intelectual separa<strong>da</strong> <strong>da</strong> massa", diz o historiador Mário Bruno Sproviero,<br />
<strong>da</strong> USP 12 .<br />
Entre muitas medi<strong>da</strong>s drásticas, o governo retira <strong>da</strong>s bibliotecas obras<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como símbolo <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência oci<strong>de</strong>ntal, impossibilitando que muitos<br />
estu<strong>da</strong>ntes secun<strong>da</strong>ristas tivess<strong>em</strong> a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer obras literárias<br />
9<br />
Mao Tse Tung morreu <strong>em</strong> 1976, s<strong>em</strong> nunca ter <strong>de</strong>ixado a presidência <strong>da</strong> China.<br />
10<br />
Revista Mundo Estranho/História. O que foi a Revolução Cultural Chinesa? Ed. Abril. 2008.<br />
Disponível <strong>em</strong> http://mundoestranho.abril.com.br/historia/pergunta_286410.shtml. Acessado <strong>em</strong>: 20<br />
junho 2009 às 19h54.<br />
11<br />
Apud. Op. Cit.<br />
12<br />
Apud. Op. Cit.<br />
18
diversas. Só era permiti<strong>da</strong> a leitura <strong>de</strong> obras que contribuíam com o discurso<br />
revolucionário sobre a i<strong>de</strong>ologia, o comunismo e o patriotismo impostos pelo<br />
presi<strong>de</strong>nte Mao Tse Tung.<br />
Nas escolas:<br />
As aulas <strong>de</strong> mat<strong>em</strong>ática tinham sido corta<strong>da</strong>s, o mesmo acontecendo com<br />
as <strong>de</strong> física e química. A partir <strong>da</strong>quele momento, a “instrução <strong>de</strong> base”<br />
limitava-se à indústria e à agricultura. Na capa dos manuais, via-se um<br />
operário <strong>de</strong> boné, com braços tão grossos quanto os <strong>de</strong> Stallone, erguendo<br />
um imenso martelo. A seu lado, estava uma mulher comunista fantasia<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> camponesa, com um lenço vermelho na cabeça. (...) Os manuais e o<br />
Livrinho Vermelho <strong>de</strong> Mao foram, durante muitos anos, nossa única fonte<br />
<strong>de</strong> conhecimento intelectual. (SIJIE, 2000, p. 9)<br />
O probl<strong>em</strong>a é que a Revolução Cultural Chinesa, na prática, resultou <strong>em</strong><br />
escolas fecha<strong>da</strong>s, no ataque - não só verbal - a intelectuais e no culto exagerado à<br />
personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Mao Tse Tung. A morte do lí<strong>de</strong>r, <strong>em</strong> 1976, abriu caminho para a<br />
ascensão do político Deng Xiaoping. Com a mu<strong>da</strong>nça no po<strong>de</strong>r, <strong>em</strong> 1977, a<br />
Revolução Cultural foi oficialmente encerra<strong>da</strong>.<br />
É <strong>em</strong> meio à opressão do Exército Vermelho chinês 13 , arma repressora<br />
símbolo dos anos <strong>de</strong> governo <strong>de</strong> Mao Tse Tung, que dois jovens, filhos <strong>de</strong><br />
intelectuais <strong>da</strong> burguesia <strong>chinesa</strong>, são enviados a um campo <strong>em</strong> uma região r<strong>em</strong>ota<br />
<strong>da</strong> China para ser<strong>em</strong> reeducados por pobres camponeses. O objetivo pe<strong>da</strong>gógico<br />
era fazer com que esses jovens apren<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> o “ex<strong>em</strong>plar” modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> do<br />
proletariado comunista. Luo e seu amigo (o próprio narrador <strong>da</strong> história) 14 chegaram<br />
no inicio <strong>de</strong> 1971 a uma montanha, chama<strong>da</strong> “Fênix Celestial”, mais conheci<strong>da</strong> como<br />
“Montanha Fênix”, on<strong>de</strong> passariam o período <strong>de</strong> suas reeducações. A montanha era<br />
um local <strong>de</strong> difícil acesso, nenhuma estra<strong>da</strong> passava por lá e todos que <strong>de</strong>sejass<strong>em</strong><br />
subir ao local, ou foss<strong>em</strong> obrigados, teriam que caminhar um longo período por uma<br />
vere<strong>da</strong> estreita. Também não havia nenhum sinal <strong>de</strong> civilização e, mesmo para que<br />
se sentisse o cheiro <strong>de</strong> um restaurante, seria necessário caminhar dois dias pela<br />
montanha.<br />
Naquele ano <strong>de</strong> 1971, o filho <strong>de</strong> um pneumologista e seu companheiro, o<br />
filho <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> inimigo do povo que tinha tido a sorte <strong>de</strong> tocar nos<br />
<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Mao, eram apenas dois “jovens intelectuais” entre centenas <strong>de</strong><br />
rapazes e moças enviados para aquela montanha, chama<strong>da</strong> “Fênix<br />
13<br />
O Exército <strong>de</strong> Salvação Popular (ESP) tinha o nome original <strong>de</strong> Exército Vermelho e incluia o<br />
Exército, Força Aér<strong>ea</strong> e Marinha, e outras forças nucl<strong>ea</strong>res estratégicas, servindo os propósitos<br />
militares <strong>da</strong> República Popular <strong>da</strong> China.<br />
14<br />
Pelo fato <strong>de</strong> ser um narrador-personag<strong>em</strong>, ir<strong>em</strong>os i<strong>de</strong>ntificá-lo ao longo do trabalho nom<strong>ea</strong>ndo-o<br />
como narrador ou amigo <strong>de</strong> Luo.<br />
19
Celestial”. O nome poético era até um modo engraçado <strong>de</strong> sugerir sua<br />
altura terrível: os par<strong>da</strong>is e os pássaros comuns <strong>da</strong>s planícies jamais<br />
po<strong>de</strong>riam elevar-se até ela. Só podia atingi-la uma espécie liga<strong>da</strong> ao céu,<br />
po<strong>de</strong>rosa, legendária, profun<strong>da</strong>mente solitária. (SIJIE, 2000, p. 12)<br />
O narrador é um jov<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zessete anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, filho <strong>de</strong> um<br />
pneumologista e <strong>de</strong> uma especialista <strong>em</strong> doenças parasitárias. Seus pais<br />
trabalhavam no hospital <strong>de</strong> Chengtu 15 e eram consi<strong>de</strong>rados gran<strong>de</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
cientificas, com certa fama. Já Luo tinha <strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, filho <strong>de</strong> uma<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira celebri<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a China. Seu pai era um famoso <strong>de</strong>ntista que tinha a<br />
audácia <strong>de</strong> afirmar que havia cui<strong>da</strong>do dos <strong>de</strong>ntes do presi<strong>de</strong>nte Mao Tse Tung e<br />
sugeria que o mesmo usava <strong>de</strong>ntaduras. Essa sua postura era consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>, na<br />
época, como um crime insensato e imperdoável, levando-o a ser consi<strong>de</strong>rado<br />
inimigo do povo e, por <strong>de</strong>núncia pública <strong>de</strong> seus crimes, foi con<strong>de</strong>nado como<br />
r<strong>ea</strong>cionário.<br />
Antes <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> enviados para a reeducação, os dois jovens eram vizinhos e<br />
viveram por muito t<strong>em</strong>po lado a lado, cresceram juntos e passaram por muitas<br />
situações difíceis. Interromperam seus estudos entre os doze e os quatorze anos <strong>de</strong><br />
i<strong>da</strong><strong>de</strong> com a expectativa <strong>de</strong> que a revolução fosse abran<strong>da</strong><strong>da</strong>. Mas os dois amigos<br />
não tiveram sorte. Mesmo s<strong>em</strong> ser secun<strong>da</strong>ristas e com os conhecimentos<br />
adquiridos na escola quase nulos, foram consi<strong>de</strong>rados burgueses intelectuais por<br />
causa <strong>de</strong> seus pais e enviados, como muitos outros jovens, para os campos <strong>de</strong><br />
reeducação.<br />
Ao chegar<strong>em</strong> à montanha <strong>da</strong> Fênix Celestial, Luo e o narrador tiveram suas<br />
bagagens revista<strong>da</strong>s e tudo que era consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> pessoas<br />
r<strong>ea</strong>cionárias passava pela inspetoria do chefe dos al<strong>de</strong>ões camponeses, correndo o<br />
risco <strong>de</strong> ser queimado. Isto aconteceu com o instrumento musical do narrador. O<br />
jov<strong>em</strong> guar<strong>da</strong>va na bagag<strong>em</strong> seu violino, o que foi consi<strong>de</strong>rado pelos camponeses<br />
um brinquedo símbolo <strong>da</strong> burguesia revolucionária. Ao manifestar<strong>em</strong> o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
atirar<strong>em</strong> ao fogo o violino, os al<strong>de</strong>ões foram surpreendidos, s<strong>em</strong> saber<strong>em</strong>, pela boa<br />
retórica dos dois reeducandos que, para convencer<strong>em</strong> o chefe <strong>de</strong> que aquilo não era<br />
um brinquedo burguês, argumentam que o violino é um instrumento musical e que<br />
com ele po<strong>de</strong>riam tocar canções que cont<strong>em</strong>plariam o presi<strong>de</strong>nte Mao Tse Tung. A<br />
15 Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> com quatro milhões <strong>de</strong> habitantes. Chengtu era capital do Sichuan, província com c<strong>em</strong><br />
milhões <strong>de</strong> habitantes, afasta<strong>da</strong> <strong>de</strong> Pequim e próxima do Tibete.<br />
20
esposta <strong>da</strong><strong>da</strong> pelos rapazes satisfez o chefe, que permitiu a permanência do violino<br />
na al<strong>de</strong>ia.<br />
Luo e o narrador passaram por momentos difíceis com duras jorna<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
trabalho, a que não estavam acostumados, e vivendo num local s<strong>em</strong> nenhuma<br />
estrutura mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> san<strong>ea</strong>mento básico, sendo ain<strong>da</strong> necessário o trabalho<br />
humano para se <strong>de</strong>sfazer<strong>em</strong> dos excr<strong>em</strong>entos.<br />
O que mais nos assustava era carregar mer<strong>da</strong> nas costas. Bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
ma<strong>de</strong>ira cilíndricos foram especialmente concebidos e fabricados para<br />
transportar todo tipo <strong>de</strong> adubo, humano ou animal. De modo que,<br />
diariamente, <strong>de</strong>víamos enche-los com os excr<strong>em</strong>entos misturados com<br />
água, pô-los no lombo e trepar aos campos, muitas vezes situados a uma<br />
altura vertiginosa. A ca<strong>da</strong> passo ouvia-se o líquido merdoso agitar-se no<br />
bal<strong>de</strong>, b<strong>em</strong> atrás <strong>de</strong> nossos ouvidos. O conteúdo fétido escapava gota a<br />
gota pela tampa e <strong>de</strong>rramava-se, espalhando-se pelo dorso do carregador.<br />
(SIJIE, 2000, p. 15-16)<br />
Outros trabalhos também eram <strong>de</strong>stinados aos jovens que passavam pela<br />
reeducação, como por ex<strong>em</strong>plo: o trabalho no arrozal, na plantação <strong>de</strong> milho, lavrar<br />
a terra, a colheita <strong>de</strong> arroz e a mina <strong>de</strong> carvão. O único lugar <strong>em</strong> que os jovens não<br />
entravam, mas espionavam <strong>de</strong> longe, era a plantação <strong>de</strong> ópio. A geografia <strong>da</strong><br />
montanha Fênix auxiliava no cultivo <strong>de</strong>sta erva entorpecente, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> à produção<br />
sintética <strong>de</strong> drogas ilícitas também muito aprecia<strong>da</strong>s no mundo oci<strong>de</strong>ntal. Os jovens<br />
eram <strong>de</strong>saconselhados a pisar nas regiões <strong>de</strong> ópio, pois seus plantadores an<strong>da</strong>vam<br />
armados e matavam os viajantes ou curiosos que passavam pelo local.<br />
Enten<strong>de</strong>-se que, antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Luo e o narrador à montanha Fênix, a<br />
contabilização do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> trabalho era feita utilizando-se <strong>da</strong> técnica do relógio<br />
solar, que se bas<strong>ea</strong>va no posicionamento do sol <strong>em</strong> sua trajetória pelo céu, o que<br />
não garantia uma precisão na organização do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> trabalho que era<br />
supervisionado pelo chefe do camposinato. Com a chega<strong>da</strong> dos dois jovens, chefe e<br />
al<strong>de</strong>ões já inser<strong>em</strong> <strong>em</strong> seus conhecimentos um novo instrumento tecnológico. Luo<br />
trazia consigo um pequeno <strong>de</strong>spertador que era <strong>de</strong>corado por um galo com penas<br />
<strong>de</strong> pavão esver<strong>de</strong>a<strong>da</strong>s, estria<strong>da</strong>s <strong>de</strong> azul-escuro. Olhando através do vidro do<br />
relógio, os habitantes <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia observavam impressionados o galo que<br />
movimentava rapi<strong>da</strong>mente a cabeça, beliscando o chão invisível com o bico,<br />
enquanto o gran<strong>de</strong> ponteiro marcava os segundos.<br />
Esse era o primeiro relógio que os montanheses conheciam. Após ter<br />
passado pela revista do chefe, graças ao seu pequeno tamanho, o relógio passou a<br />
21
ser consultado por todos. O chefe ia to<strong>da</strong> manhã à casa <strong>de</strong> Luo e o narrador para<br />
ouvir o alarme do <strong>de</strong>spertador que soava doc<strong>em</strong>ente, <strong>da</strong>ndo o sinal <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para<br />
o início do trabalho nos campos:<br />
_Está na hora! Vocês ouviram? – gritava ritualmente para as casas<br />
construí<strong>da</strong>s <strong>em</strong> volta.<br />
_Está na hora <strong>de</strong> <strong>da</strong>r duro, bando <strong>de</strong> molengas! O que estão esperando,<br />
seus filhos <strong>de</strong> uma égua!... (SIJIE, 2000, p. 15)<br />
To<strong>da</strong>s as manhãs o chefe cumpria com o mesmo ritual, até que, cansados<br />
dos gritos e dos trabalhos forçados, Luo e o narrador resolv<strong>em</strong> atrasar o relógio <strong>em</strong><br />
uma hora. Isso passou a ser um hábito; às vezes, ao invés <strong>de</strong> atrasar<strong>em</strong> as horas,<br />
os dois amigos resolviam adiantá-las com a intenção do dia terminar mais cedo.<br />
Depois <strong>de</strong> tanto mexer nos ponteiros, eles mesmos já se confundiam e não tinham<br />
mais o controle <strong>de</strong> que horas eram r<strong>ea</strong>lmente.<br />
Mesmo com todo o esforço, principalmente braçal, os rapazes por vezes<br />
conseguiam escapar do trabalho, <strong>de</strong>vido ao talento <strong>de</strong> Luo para narrar aos al<strong>de</strong>ões<br />
montanheses as histórias dos filmes que assistia quando era enviado à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mais<br />
próxima pelo chefe do camposinato. Por sua vez, o narrador era violinista, o que fez<br />
com que ele sofresse preconceito do chefe do grupo, pois seu instrumento musical<br />
era consi<strong>de</strong>rado como um dos símbolos <strong>da</strong> burguesia r<strong>ea</strong>cionária, o que causou<br />
<strong>de</strong>sconforto e reprovação perante os d<strong>em</strong>ais habitantes <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia comunista.<br />
Luo tinha a astúcia necessária para garantir a sobrevivência nas montanhas.<br />
Encantado pelo po<strong>de</strong>r narrativo do jov<strong>em</strong>, o chefe dos camponeses <strong>de</strong>termina que<br />
como forma principal <strong>de</strong> trabalho ele esteja presente às eventuais sessões do<br />
cin<strong>em</strong>a <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mais próxima, com o intuito <strong>de</strong> assistir às produções oficiais e<br />
repassá-las aos al<strong>de</strong>ões.<br />
A Fênix Celestial era composta <strong>de</strong> aproxima<strong>da</strong>mente vinte al<strong>de</strong>ias<br />
dispersas nos m<strong>ea</strong>ndros <strong>de</strong> uma única vere<strong>da</strong> ou escondi<strong>da</strong>s nos vales<br />
sombrios. Em regra, ca<strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia acolhia cinco ou seis jovens provenientes<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. A nossa, entretanto, pendura<strong>da</strong> no topo <strong>da</strong> montanha, e a mais<br />
pobre <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s, só podia assumir dois: Luo e eu. A montanha Fênix<br />
Celestial ficava tão afasta<strong>da</strong> <strong>da</strong> civilização que a maioria <strong>da</strong>s pessoas<br />
nunca havia visto um filme sequer <strong>em</strong> suas vi<strong>da</strong>s, n<strong>em</strong> sabia o que era<br />
cin<strong>em</strong>a. (SIJIE, 2000, p. 18 - 19)<br />
22
É durante as sessões <strong>de</strong> narrativas que os dois jovens viv<strong>em</strong> pequenos<br />
momentos <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, conhecendo melhor os habitantes <strong>da</strong> montanha e<br />
conseguindo se distanciar ca<strong>da</strong> vez mais dos trabalhos no campo. Vivendo na casa<br />
sobre palafitas, passavam a maior parte do t<strong>em</strong>po pensando nas chances <strong>de</strong> ser<strong>em</strong><br />
reeducados no menor t<strong>em</strong>po possível, ou seja, dois anos. Com a sau<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> família<br />
e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, a melancolia e a <strong>de</strong>pressão dominavam as mentes e corpos dos<br />
dois amigos, fazendo com que seus dias foss<strong>em</strong> intermináveis. Mesmo com a difícil<br />
a<strong>da</strong>ptação, Luo e o narrador tiveram que se acostumar com a vi<strong>da</strong> na pocilga 16 , os<br />
trabalhos nas minas e as duras or<strong>de</strong>ns do chefe <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia.<br />
As festas na al<strong>de</strong>ia também contribuíam para a alegria dos rapazes. A<br />
simples vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> um velho alfaiate, morador <strong>de</strong> uma outra al<strong>de</strong>ia também situa<strong>da</strong> na<br />
montanha <strong>da</strong> Fênix Celestial, era motivo <strong>de</strong> com<strong>em</strong>oração nas outras al<strong>de</strong>ias,<br />
incluindo on<strong>de</strong> Luo e o narrador eram reeducados. O velho, único alfaiate <strong>da</strong><br />
montanha, era recebido com muitas comi<strong>da</strong>s e disputado pelas famílias que queriam<br />
<strong>da</strong>r-lhe a melhor hospe<strong>da</strong>g<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas casas. Passava vários dias nas diferentes<br />
al<strong>de</strong>ias para vestir com roupas novas aqueles que encomen<strong>da</strong>vam seus serviços.<br />
No período que ficava afastado <strong>de</strong> sua al<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong> sua mora<strong>da</strong>, o velho<br />
alfaiate mantinha <strong>em</strong> casa sua filha. Chama<strong>da</strong> carinhosamente <strong>de</strong> Costureirinha, a<br />
princesa <strong>da</strong> montanha Fênix Celestial atraía o interesse e o amor <strong>de</strong> todos os<br />
camponeses. Com Luo e o narrador não po<strong>de</strong>ria ser diferente. O primeiro encontro<br />
acontece na casa <strong>da</strong> própria Costureirinha, on<strong>de</strong> os dois amigos haviam ido para<br />
que a mesma aumentasse a bainha <strong>da</strong> calça <strong>de</strong> Luo. Nesse primeiro contato, os<br />
jovens ficam surpreendidos com a beleza e a graciosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> moça. Senta<strong>da</strong> à<br />
máquina, a Costureirinha fazia seu trabalho enquanto os dois jovens tentavam<br />
conhecê-la um pouco mais:<br />
_Você sabe ler? – perguntei-lhe.<br />
_Não muito. – respon<strong>de</strong>u-me, s<strong>em</strong> nenhum complexo.<br />
_Mas não pense que eu sou idiota. Gosto muito <strong>de</strong> conversar com pessoas<br />
que sab<strong>em</strong> ler e escrever, como os jovens <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Você não percebeu?<br />
Meu cão não latiu quando vocês entraram. Ele conhece minhas<br />
preferências. (SIJIE, Op. Cit., p. 25)<br />
16 O termo Pocilga é utilizado no romance para <strong>de</strong>finir a casa sobre pilotis on<strong>de</strong> Luo e o narrador<br />
moravam durante a reeducação. Pelo fato <strong>de</strong> ser um lugar imundo, não era <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a moradia e<br />
sim ao curral <strong>de</strong> porcos.<br />
23
A preferência <strong>da</strong> Costureirinha era por Luo, o contador <strong>de</strong> histórias. Mas, seu<br />
amigo, o narrador, também nutria um gran<strong>de</strong> carinho e paixão por ela e se mantinha<br />
como cúmplice <strong>da</strong>s aventuras amorosas entre ela e Luo. Entretanto, o amigo<br />
continuava a afirmar que a jov<strong>em</strong> não era “civiliza<strong>da</strong> 17 ” o suficiente, pelo menos para<br />
ele. Mesmo não tão “civiliza<strong>da</strong>”, Costureirinha ganhou o coração dos moços e a<br />
amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong>les.<br />
Os três se viam periodicamente. Foi Costureirinha qu<strong>em</strong> os salvou <strong>de</strong> alguns<br />
dias <strong>de</strong> trabalho arriscado na mina <strong>de</strong> carvão, com seu pedido feito ao chefe para<br />
que os liberass<strong>em</strong> para contar histórias <strong>em</strong> sua al<strong>de</strong>ia. Com os riscos que passavam<br />
com o trabalho na mina, o pedido <strong>da</strong> <strong>costureirinha</strong> era sinônimo <strong>de</strong> alguns dias <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scanso.<br />
Um dos melhores momentos na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sses três jovens é quando <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong><br />
que um outro menino, chamado <strong>de</strong> Quatro-olhos, que também estava <strong>em</strong> processo<br />
<strong>de</strong> reeducação, guar<strong>da</strong> um gran<strong>de</strong> segredo: ele possui uma valise cheia <strong>de</strong> livros<br />
“proibidos” 18 . Quatro-olhos tinha <strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> e era filho <strong>de</strong> um escritor e<br />
<strong>de</strong> uma poetisa, que também foram punidos pelas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, assim como os pais<br />
<strong>de</strong> Luo e do narrador. O jov<strong>em</strong> negava até a morte a existência <strong>de</strong> tais livros, porém,<br />
com a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus óculos durante o trabalho no arrozal, aceita a proposta <strong>de</strong><br />
<strong>em</strong>prestar alguns livros <strong>em</strong> troca <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização <strong>de</strong> trabalhos no campo. Ele paga os<br />
trabalhos feitos por Luo e o narrador com “Úrsula Mirouet”, uma obra <strong>de</strong> Honoré <strong>de</strong><br />
Balzac 19 .<br />
Este foi o primeiro contato dos jovens com um livro oci<strong>de</strong>ntal. Pouco tinham<br />
ouvido falar <strong>de</strong>ssas obras. Possuíam mais contato com livros técnicos <strong>de</strong> medicina.<br />
O narrador até conhecia um pouco mais, pois antes <strong>da</strong> Revolução Cultural, sua tia,<br />
possuidora <strong>de</strong> alguns livros estrangeiros traduzidos <strong>em</strong> chinês, tinha lido para ele a<br />
história <strong>de</strong> Dom Quixote 20 . O jov<strong>em</strong> sabia que jamais po<strong>de</strong>ria ler os livros <strong>da</strong> tia,<br />
porque todos foram confiscados e queimados <strong>em</strong> público pelos Guar<strong>da</strong>s Vermelhos.<br />
17 O conceito <strong>de</strong> civilização aqui utilizado é <strong>de</strong>fendido por Kalina Silva e Maciel Silva como o domínio<br />
<strong>da</strong> escrita, e o fato <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter a urbani<strong>da</strong><strong>de</strong>. (SILVA, Kalina & SILVA, Maciel. Dicionário <strong>de</strong> conceitos<br />
históricos; Ed. Contexto, São Paulo, 2006. p.59.)<br />
18 No caso do Quatro Olhos eram somente romances <strong>de</strong> escritores oci<strong>de</strong>ntais.<br />
19 Um dos principais autores do R<strong>ea</strong>lismo na literatura francesa no século XIX. Mesmo tornado-se<br />
num dos maiores nomes do r<strong>ea</strong>lismo na literatura, as suas obras são, no entanto, cunha<strong>da</strong>s sobre a<br />
tradição literária do romantismo francês e a maioria <strong>de</strong> suas obras procura retratar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
burguesa <strong>da</strong> França na sua época.<br />
20 Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha é um livro do escritor espanhol Miguel <strong>de</strong> Cervantes y Saavedra (1547-<br />
1616). O livro surgiu <strong>em</strong> um período <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> inovação e diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> por parte dos escritores<br />
24
Nas bibliotecas, eles também não existiam mais. As únicas obras que<br />
restaram na seção <strong>de</strong> literatura oci<strong>de</strong>ntal foram as Obras Completas do dirigente<br />
comunista albanês Enver Hoxha, por ir<strong>em</strong> ao encontro dos pensamentos <strong>de</strong> Mao<br />
Tse Tung.<br />
É a leitura <strong>de</strong> Úrsula Mirouet que faz com que os jovens <strong>de</strong>sej<strong>em</strong> encontrar<br />
muitos outros livros oci<strong>de</strong>ntais na valise <strong>de</strong> Quatro-olhos. O livro <strong>de</strong>sperta nos dois<br />
amigos ain<strong>da</strong> mais o gosto pela leitura e a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. A história <strong>de</strong> Úrsula os faz<br />
a<strong>de</strong>ntrar num novo universo, conhecendo um pouco <strong>da</strong> cultura oci<strong>de</strong>ntal e abrindolhes<br />
os olhos. Luo foi o primeiro a ler o livro, passando-o para seu amigo, que só<br />
consegue sair <strong>da</strong> cama ao final <strong>de</strong> sua leitura.<br />
No prazo acor<strong>da</strong>do, o livro foi <strong>de</strong>volvido para Quatro-olhos, mas a<br />
<strong>costureirinha</strong> também teve acesso aos conteúdos do romance balzaquiano. É<br />
através <strong>de</strong> trechos copiados num casaco <strong>de</strong> pele do narrador que a história é li<strong>da</strong> e<br />
cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong> pela jov<strong>em</strong>, que necessita vestir o casaco do amigo para sentir na pele<br />
as palavras <strong>de</strong> Balzac, acreditando que estas lhe trariam felici<strong>da</strong><strong>de</strong> e inteligência.<br />
Embora os jovens continuass<strong>em</strong> pensando que conseguiriam outros<br />
<strong>em</strong>préstimos <strong>de</strong> livros usando a força <strong>de</strong> trabalho como moe<strong>da</strong> <strong>de</strong> troca, com a<br />
chega<strong>da</strong> dos óculos novos <strong>de</strong> Quatro-olhos enviados por sua mãe, o mesmo não via<br />
mais necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manter a troca <strong>de</strong> favores. Isto levou os três jovens a<br />
planejar<strong>em</strong> o roubo <strong>da</strong> valise secreta. Ao <strong>de</strong>scobrir<strong>em</strong> que Quatro-olhos po<strong>de</strong>ria<br />
voltar <strong>da</strong> reeducação, o plano foi traçado. No dia <strong>da</strong> com<strong>em</strong>oração <strong>da</strong> reeducação<br />
plena <strong>de</strong> Quatro-olhos, Luo e o narrador invad<strong>em</strong> sua casa e furtam a valise.<br />
A execução do plano não foi simples. Quatro-olhos retorna para a casa com<br />
sua mãe num t<strong>em</strong>po inesperado. O imprevisto se <strong>de</strong>u pela quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sangue <strong>de</strong><br />
búfalo 21 tomado pelo jov<strong>em</strong>, acarretando uma indisposição intestinal. Quase sendo<br />
surpreendidos na mora<strong>da</strong>, os dois amigos consegu<strong>em</strong> se escon<strong>de</strong>r e sa<strong>em</strong><br />
vitoriosos com os valiosos romances encontrados na valise.<br />
A partir <strong>de</strong> então, uma nova revolução explo<strong>de</strong> na vi<strong>da</strong> dos três adolescentes<br />
chineses quando, ao efetuar<strong>em</strong> o furto e abrir<strong>em</strong> a velha e <strong>em</strong>poeira<strong>da</strong> mala, têm as<br />
suas vi<strong>da</strong>s invadi<strong>da</strong>s pelas obras <strong>de</strong> Balzac, Victor Hugo, Stendhal, Dumas,<br />
Flaubert, Bau<strong>de</strong>laire, Romain Rolland, Rouss<strong>ea</strong>u, Tolstoi, Gogol, Dostoievski, além<br />
ficcionistas espanhóis. Parodiou os romances <strong>de</strong> cavalaria que gozaram <strong>de</strong> imensa populari<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />
período e, na altura, já se encontravam <strong>em</strong> <strong>de</strong>clínio.<br />
21 O sangue do búfalo era consi<strong>de</strong>rado um r<strong>em</strong>édio contra a covardia. Para se tornar corajoso era<br />
necessário engolir o sangue ain<strong>da</strong> morno e espumante.<br />
25
dos ingleses Dickens, Kipling, Emily Brontë... Livros oci<strong>de</strong>ntais proibidos que<br />
revelam aos três adolescentes uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> que nunca antes fora imagina<strong>da</strong>.<br />
Os jovens acreditavam que não só eles seriam beneficiados com tais leituras.<br />
Com elas, po<strong>de</strong>riam transformar a mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Costureirinha, a simples jov<strong>em</strong><br />
montanhesa. Após o furto, passaram todo aquele mês <strong>em</strong> contato com os novos<br />
conhecimentos trazidos pelo mundo novo. Luo levava os romances até a<br />
Costureirinha para ser<strong>em</strong> lidos <strong>em</strong> voz alta por ele. Com medo <strong>de</strong> ser pego com os<br />
livros, ele os mantinha num cesto <strong>de</strong> bambu coberto com frutas e outros alimentos<br />
que carregava nas costas por caminhos <strong>de</strong> mais difícil acesso.<br />
Agora não eram apenas as projeções cin<strong>em</strong>atográficas a ser<strong>em</strong> narra<strong>da</strong>s por<br />
Luo e seu amigo. Os textos literários também faziam parte dos repertórios<br />
escolhidos para as sessões <strong>de</strong> narrativas. O velho alfaiate, sabendo, por sua filha,<br />
que os rapazes contavam belas histórias, resolve se hospe<strong>da</strong>r na velha casa sobre<br />
palafitas para mais uma t<strong>em</strong>pora<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho na al<strong>de</strong>ia. Os jovens amigos não<br />
entendiam a preferência do velho por sua casa. Pensaram que ele po<strong>de</strong>ria estar<br />
querendo conhecer o genro <strong>em</strong> potencial. Como Luo mantinha um relacionamento<br />
secreto com a Costureirinha, imaginavam que o velho alfaiate já havia <strong>de</strong>scoberto<br />
tudo. À noite, compreen<strong>de</strong>ram o que atraiu o alfaiate para o convívio com os<br />
rapazes:<br />
Depois do jantar rápido, educado e cortês, durante o qual rimos <strong>de</strong> nosso<br />
primeiro encontro na vere<strong>da</strong>, perguntei a nosso convi<strong>da</strong>do se gostaria <strong>de</strong><br />
me ouvir tocar violino, antes <strong>de</strong> irmos para a cama. Contudo, já com as<br />
pálpebras s<strong>em</strong>icerra<strong>da</strong>s, recusou.<br />
_Prefiro que me cont<strong>em</strong> uma história – pediu-nos num longo bocejo.<br />
_Minha filha me disse que vocês eram contadores formidáveis. Foi por isso<br />
que me hospe<strong>de</strong>i com vocês. (SIJIE, 2000, p. 108)<br />
Ao contrário <strong>da</strong>s outras sessões, o amigo <strong>de</strong> Luo foi qu<strong>em</strong> assumiu o papel <strong>de</strong><br />
contador <strong>de</strong> histórias. O narrador, ao escolher a trama, pensou <strong>em</strong> algo que seu<br />
amigo não conhecesse. A história escolhi<strong>da</strong> foi O Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte-Cristo, do escritor<br />
Dumas 22 . O que o jov<strong>em</strong> contador não sabia é que a narrativa que começaria nesta<br />
noite seria a mais longa <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>, durando nove noites segui<strong>da</strong>s. Os três,<br />
Luo, o narrador e o velho alfaiate, passavam as noites <strong>em</strong> claro vivenciando as<br />
22 Alexandre Dumas, pai (1802-1870) foi um romancista francês que escreveu romances e crônicas<br />
históricas com muita aventura que estimulavam a imaginação do público francês e <strong>de</strong> outros países<br />
nos idiomas para os quais foram traduzidos.<br />
26
experiências junto ao Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte-Cristo e <strong>de</strong> dia mantinham a resistência para<br />
o trabalho. A ca<strong>da</strong> ponto <strong>de</strong>cisivo <strong>da</strong> história, o narrador fazia uma pausa, um<br />
suspense. Passava horas contando, mantendo os mecanismos <strong>da</strong> narrativa. No<br />
momento <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s pausas, Luo lhe segredou que o amigo o havia superado e<br />
que já po<strong>de</strong>ria ser um escritor.<br />
Ao fim <strong>da</strong> terceira noite <strong>de</strong> narrativa, o narrador e seus ouvintes foram<br />
surpreendidos pelo chefe <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia. Enquanto eles viajavam na narrativa <strong>de</strong> Dumas<br />
e do jov<strong>em</strong> narrador, o chefe se mantinha do lado <strong>de</strong> fora ouvindo to<strong>da</strong> a história.<br />
Classifica<strong>da</strong> pelo chefe como safa<strong>de</strong>zas r<strong>ea</strong>cionárias, ele estava inconformado e<br />
<strong>de</strong>nunciaria o narrador para a Secretaria <strong>de</strong> Segurança Pública, local que significava<br />
tortura física e inferno para aqueles consi<strong>de</strong>rados inimigos do povo.<br />
Mais uma vez a retórica dos jovens consegue inverter o jogo. Eles concor<strong>da</strong>m<br />
<strong>em</strong> cui<strong>da</strong>r dos <strong>de</strong>ntes do chefe que estão cariados <strong>em</strong> troca do narrador não ser<br />
<strong>de</strong>nunciado. O trabalho foi feito com uma agulha <strong>de</strong> máquina <strong>de</strong> costura <strong>de</strong> aço<br />
cromado que era movimenta<strong>da</strong> pelo pe<strong>da</strong>l <strong>da</strong> máquina do velho alfaiate. Com a<br />
obturação concluí<strong>da</strong>, o chefe cumpriu sua palavra e não incomodou mais os jovens<br />
durante as outras seis noites nas quais as narrações prosseguiriam.<br />
Algum t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois, Luo é chamado à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> por telegrama. O motivo <strong>de</strong><br />
sua parti<strong>da</strong>, que o <strong>de</strong>ixará um mês longe <strong>da</strong> montanha Fênix, é o estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sua mãe. O rapaz parte, mas <strong>de</strong>ixa seu amigo com a difícil missão <strong>de</strong> proteger a<br />
Costureirinha e <strong>de</strong> ler livros para ela. Com a intenção <strong>de</strong> não <strong>de</strong>cepcionar Luo, o<br />
jov<strong>em</strong> passava os dias inteiros com a moça lendo-lhe histórias e aju<strong>da</strong>ndo <strong>em</strong><br />
algumas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s domésticas. Ela, por sua vez, não fazia i<strong>de</strong>ia que estava sob<br />
proteção e o consi<strong>de</strong>rava como um amigo e como leitor substituto <strong>de</strong> Luo.<br />
Depois <strong>de</strong> três meses <strong>de</strong> um aborto b<strong>em</strong> sucedido e do re<strong>torno</strong> <strong>de</strong> Luo à<br />
montanha, t<strong>em</strong>os a parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> Costureirinha. Luo, <strong>em</strong>briagado, resolve por fim<br />
àqueles que a aju<strong>da</strong>ram a abrir os olhos e a se transformar. A maior parte dos<br />
tesouros encontrados na valise <strong>de</strong> Quatro-olhos foram incendiados. Sua parti<strong>da</strong><br />
causou um gran<strong>de</strong> impacto no pai e nos dois amigos. Eles percebiam que com o<br />
passar do t<strong>em</strong>po, a Costureirinha se aproximava ca<strong>da</strong> vez mais <strong>da</strong>s moças <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Havia costurado um sutiã, o primeiro <strong>da</strong> montanha. Depois encurtou os<br />
cabelos, pediu ao pai que lhe comprasse um par <strong>de</strong> tênis brancos e alterou os cortes<br />
<strong>da</strong>s roupas <strong>de</strong> seu guar<strong>da</strong>-roupa. A aparência era <strong>de</strong> uma jov<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rna com<br />
roupas que só podiam ser usa<strong>da</strong>s por jovens <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. A transformação <strong>da</strong><br />
27
Costureirinha só foi observa<strong>da</strong> após sua parti<strong>da</strong>. Luo ain<strong>da</strong> conseguiu lhe dizer<br />
algumas palavras, mas não foi o suficiente para convencê-la a ficar. As lições e<br />
ensinamentos balzaquianos foram mais fortes e a fizeram ir <strong>em</strong>bora, <strong>de</strong>saparecendo<br />
como um pássaro quando alça voo.<br />
No romance analisado, a <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> valise e dos livros oci<strong>de</strong>ntais<br />
possuídos por Quatro-olhos faz com que o contato com o pensamento <strong>de</strong> outros<br />
aconteça, primeiro, pela leitura do romance Úrsula Mirouet, do escritor francês<br />
Balzac. Ao ler a trama vivi<strong>da</strong> pela personag<strong>em</strong> Úrsula, o narrador vivenciava aquelas<br />
experiências <strong>de</strong> outros e <strong>de</strong>sejava estar no lugar <strong>da</strong> personag<strong>em</strong>. Durante o ato <strong>de</strong><br />
leitura, fazia planos <strong>em</strong> sua vi<strong>da</strong> se inspirando na história li<strong>da</strong>.<br />
Iser acredita na transformação do leitor através <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> leitura, pelo fato<br />
<strong>de</strong>ste ser convi<strong>da</strong>do a observar e <strong>de</strong>scobrir, durante o ato <strong>de</strong> ler, os confrontos e<br />
diferenças entre o mundo r<strong>ea</strong>l, vivido por ele – o leitor – e o mundo presente nos<br />
textos literários. “[...] o mundo literário parece fantástico porque contradiz nossa<br />
experiência, ou parece trivial porque simplesmente correspon<strong>de</strong> a ela. (Iser, 1999, p.<br />
8) De qualquer forma, com a contradição ou a correspondência <strong>em</strong> relação à vi<strong>da</strong><br />
r<strong>ea</strong>l, o leitor, mesmo que o texto seja muito diferente do seu próprio cotidiano, verse-á<br />
convi<strong>da</strong>do a refletir sobre o já conhecido por ele e a incorporar novas<br />
experiências senti<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> leitura. Espera-se uma mu<strong>da</strong>nça para algo novo,<br />
num mundo novo que, ao interagir com o mundo já existente e vivido pelo leitor –<br />
regido por regras, limitado, às vezes insatisfatório por não preencher as suas<br />
necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s existenciais –, enriquece-o com experiências inéditas que por vezes<br />
indica-lhe que po<strong>de</strong> ser diferente e melhor.<br />
Essa mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> qual nos fala Iser é b<strong>em</strong> retrata<strong>da</strong> <strong>em</strong> todos os<br />
personagens: Luo, o narrador, a Costureirinha, o velho alfaiate e todos os outros<br />
al<strong>de</strong>ões <strong>da</strong> montanha Fênix. Ao ler<strong>em</strong> o romance Úrsula Mirouet, os dois jovens<br />
amigos afirmam que seus olhos foram abertos. Para a Costureirinha: “Esse velho<br />
Balzac – continuou – é um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro bruxo que pousou as mãos invisíveis sobre a<br />
cabeça <strong>de</strong>ssa menina. Ela estava metamorfos<strong>ea</strong><strong>da</strong>, sonhadora.” (SIJIE. 2000, p.<br />
53.)<br />
A tarefa atribuí<strong>da</strong> a Balzac não passa <strong>de</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> liga<strong>da</strong> ao próprio ato<br />
<strong>de</strong> ler, vincula<strong>da</strong> ao papel do leitor como produtor <strong>de</strong> sentidos. O ato <strong>de</strong> leitura se<br />
constitui na interação entre dois pólos: texto – leitor, além <strong>da</strong>s interferências sofri<strong>da</strong>s<br />
28
pela i<strong>de</strong>ologia, contexto sócio-histórico, imaginário e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do próprio leitor.<br />
Diante do texto, o leitor é que <strong>de</strong>ve interagir com eles e transformá-lo, pois:<br />
[...] o objeto literário é um estranho pião, que só existe <strong>em</strong> movimento. Para<br />
fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só<br />
dura enquanto essa leitura durar. Fora <strong>da</strong>í, há apenas traços negros sobre o<br />
papel. Mas o escritor não consegue ler o que ele escreveu, ao contrário do<br />
sapateiro, que po<strong>de</strong> usar os sapatos que ele fez, se for<strong>em</strong> <strong>de</strong> suas<br />
dimensões, e o arquiteto po<strong>de</strong> morar na casa que ele construiu. Lendo,<br />
prev<strong>em</strong>os, esperamos. Prev<strong>em</strong>os o final <strong>da</strong> frase, a frase seguinte, a próxima<br />
página; esperamos que elas confirm<strong>em</strong> ou que invalid<strong>em</strong> essas previsões; a<br />
leitura é composta <strong>de</strong> muitas hipóteses, sonhos seguidos <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertares,<br />
esperanças e <strong>de</strong>cepções; os leitores s<strong>em</strong>pre estão adiantados <strong>em</strong> relação à<br />
frase que le<strong>em</strong>, num futuro apenas provável, que se <strong>de</strong>smonta e se consoli<strong>da</strong><br />
parcialmente à medi<strong>da</strong> que eles progrid<strong>em</strong>; que recua <strong>de</strong> uma página a outra<br />
e forma o horizonte móvel do objeto literário 23 . (SARTRE, 1993, p. 48)<br />
Com a metáfora cria<strong>da</strong> por Sartre, pod<strong>em</strong>os perceber que o leitor também é<br />
um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> completu<strong>de</strong> <strong>da</strong> obra literária, mostrando o caráter dinâmico do texto.<br />
No momento <strong>de</strong> leitura, a preocupação não é extrair, mas, sim, atribuir significados.<br />
Para Regina Zilberman (2001, p.54), “A experiência <strong>da</strong> leitura po<strong>de</strong> liberá-lo [o<br />
leitor] <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptações, prejuízos e apertos <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> prática, obrigando-o a uma<br />
nova percepção <strong>da</strong>s coisas”. Segundo Jauss:<br />
[...] a relação entre literatura e leitor po<strong>de</strong> atualizar-se tanto no terreno<br />
sensorial como estímulo à percepção estética, como também no terreno<br />
ético enquanto exortação à reflexão moral. A nova obra literária é acolhi<strong>da</strong><br />
e julga<strong>da</strong> tanto contra o background <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> outras formas<br />
artísticas, como ante o background <strong>da</strong> experiência cotidiana <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
(JAUSS, 1979, p.203)<br />
É a leitura que r<strong>ea</strong>liza <strong>de</strong> forma mais completa o processo transformador e<br />
liberador, sendo essa a função primordial dos textos literários. “[...] se assim é,<br />
então a literatura po<strong>de</strong> levar o leitor a uma nova percepção <strong>de</strong> seu universo.”<br />
(ZILBERMAN, 1989, p. 38) Os filmes chineses, norte-cor<strong>ea</strong>nos, ou até albaneses,<br />
23 [...] l’objet littéraire est une étrange toupie, qui n’existe qu’en mouv<strong>em</strong>ent. Pour la faire surgir, il faut<br />
un acte concret qui s’appelle la lecture, et elle ne dure qu’autant que cette lecture peut durer. Hors <strong>de</strong><br />
là, il n’y a que <strong>de</strong>s tracés noirs sur le papier. Or l’écrivain ne peut pas lire ce qu’il écrit, au lieu que le<br />
cordonnier peut chausser les souliers qu’il vient <strong>de</strong> faire, s’ils sont à sa pointure, et l’architecte habiter<br />
la maison qu’il a construite. En lisant, on prévoit, on attend. On prévoit la fin <strong>de</strong> la phrase, la phrase<br />
suivante, la page d’après ; on attend qu’elles confirment ou qu’elles infirment ces prévisions ; la<br />
lecture se compose d’une foule d’hypothèses, <strong>de</strong> rêves suivis <strong>de</strong> réveils, d’espoirs et <strong>de</strong> déceptions ;<br />
les lecteurs sont toujours en avance sur la phrase qu’ils lisent, <strong>da</strong>ns un avenir seul<strong>em</strong>ent probable qui<br />
s’écrouleen partie et se consoli<strong>de</strong> en partie à mesure qu’ils progressent, qui recule d’une page à<br />
l’autre et forme l’horizon mouvant <strong>de</strong> l’objet littéraire. (A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.)<br />
29
assistidos pelos jovens na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Yong Jing, eram consi<strong>de</strong>rados, por eles, filmes<br />
<strong>de</strong> agressivo r<strong>ea</strong>lismo proletariado, já faziam parte <strong>da</strong> educação cultural dos dois<br />
amigos. Por isso, não os achavam interessantes. Já os romances <strong>de</strong>scobertos<br />
recent<strong>em</strong>ente e proibidos se aproximavam muito mais dos <strong>de</strong>sejos humanos, do<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sofrimento e, sobretudo, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Vi<strong>da</strong>s estas que eram representa<strong>da</strong>s<br />
por personagens nas histórias e que vinham <strong>de</strong> um mundo exterior ao <strong>de</strong>les. É nos<br />
textos literários que os jovens apren<strong>de</strong>ram sobre o <strong>de</strong>spertar dos <strong>de</strong>sejos, o amor,<br />
as pulsões, etc. T<strong>em</strong>as que jamais ouviram falar.<br />
Durante todo o mês <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro, <strong>de</strong>pois do roubo b<strong>em</strong>-sucedido, fomos<br />
tentados, invadidos, conquistados pelo mistério do mundo exterior,<br />
sobretudo o <strong>da</strong> mulher, do amor, do sexo, que os escritores oci<strong>de</strong>ntais<br />
nos revelavam, dia após dia, página após página, livro após livro. (SIJIE,<br />
2000, p. 95.)<br />
Zilberman (2001, p. 55) ain<strong>da</strong> afirma que: “[...] o único t<strong>em</strong>or que a leitura<br />
po<strong>de</strong> inspirar é o <strong>de</strong> que seus usuários sejam levados a alterar sua visão <strong>de</strong><br />
mundo, sonh<strong>em</strong> com as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> transformar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e não se<br />
conform<strong>em</strong> ao já existente”. Nesta afirmativa, a autora enfoca a leitura como ato<br />
reflexivo, assim como Foucambert (1994) a apresenta <strong>em</strong> seu texto. Para ele, ler é<br />
questionar o mundo e ser por ele questionado; é questionar-se a si mesmo. Ler<br />
significa também construir uma resposta que integra parte <strong>da</strong>s novas informações<br />
ao que já se é; significa, também, ter condições <strong>de</strong> questionar o texto escrito e <strong>de</strong><br />
construir um juízo sobre ele. É na insatisfação e no questionamento do mundo <strong>em</strong><br />
que viv<strong>em</strong> que Luo e o narrador pretend<strong>em</strong> abrir novos caminhos, transformando a<br />
si e a al<strong>de</strong>ã Costureirinha com as leituras dos textos literários. “Com estes livros,<br />
vou transformar a Costureirinha. Ela nunca mais será uma simples montanhesa.”<br />
(SIJIE, 2000, p. 88)<br />
Luo estava certo ao afirmar que transformaria a jov<strong>em</strong>. Ao final do romance<br />
Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, observamos a r<strong>ea</strong>lização <strong>da</strong> metamorfose<br />
causa<strong>da</strong> pela literatura. Enquanto os jovens, oficialmente, passam pela reeducação<br />
cultural <strong>chinesa</strong>, a <strong>costureirinha</strong> passou pela reeducação balzaquiana. “_Não foram<br />
inúteis as leituras que fiz<strong>em</strong>os durante esses meses.” (SIJIE, 2000, p. 160)<br />
As mu<strong>da</strong>nças podiam ser observa<strong>da</strong>s <strong>em</strong> tudo, na Costureirinha. As longas<br />
tranças <strong>de</strong>ram lugar a um cabelo curto, na altura <strong>da</strong>s orelhas; as roupas<br />
30
apresentavam cortes masculinos como as roupas usa<strong>da</strong>s pelas moças <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>; e<br />
o par <strong>de</strong> tênis brancos já anunciava qual o rumo escolhido por ela. O branco do<br />
tênis jamais resistiria ao primeiro passo na montanha. Ele ficaria sujo <strong>de</strong> lama na<br />
primeira pisa<strong>da</strong>. O <strong>de</strong>stino era a civilização.<br />
Com o seu romance, Luo só se esqueceu que a compreensão dos<br />
fun<strong>da</strong>mentos dos textos que liam não era a mesma para to<strong>da</strong>s as pessoas. A<br />
<strong>costureirinha</strong> havia se transformado graças as suas leituras e interpretações <strong>da</strong>s<br />
obras <strong>de</strong> Balzac. Mesmo com Luo lendo para ela os livros <strong>em</strong> voz alta, as<br />
interpretações feitas eram pertencentes à própria Costureirinha, que as fazia a<br />
partir <strong>de</strong> sua subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. As significações aparent<strong>em</strong>ente ocultas nos textos lidos<br />
eram preenchi<strong>da</strong>s pela Costureirinha, e isso n<strong>em</strong> Luo n<strong>em</strong> seu amigo po<strong>de</strong>riam<br />
prever.<br />
Não é só a personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> Costureirinha que sofre transformação. Outro<br />
gran<strong>de</strong> expoente <strong>da</strong> transformação pela literatura é o velho alfaiate. Nele as<br />
mu<strong>da</strong>nças afetam até mesmo o lado profissional. Durante as nove noites que<br />
passou acor<strong>da</strong>do ouvindo a história do Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte Cristo, do escritor francês<br />
Dumas, o velho alfaiate também trabalhava <strong>de</strong> dia. Ao confeccionar as roupas para<br />
os al<strong>de</strong>ões, algo <strong>de</strong> diferente também acontecia com aqueles montanheses:<br />
Inevitavelmente, algumas fantasias discretas e espontân<strong>ea</strong>s, motiva<strong>da</strong>s<br />
pela influência do romancista francês, começaram a aparecer nas roupas<br />
novas dos al<strong>de</strong>ões, sobretudo el<strong>em</strong>entos marítimos”. Dumas seria, com<br />
certeza, o primeiro a se espantar, se tivesse visto nossos montanheses<br />
usando camisa <strong>de</strong> marinheiro, <strong>de</strong> ombros caídos e golas largas, retas nas<br />
costas e pontu<strong>da</strong>s na frente, estalando ao vento. Era quase possível<br />
respirar o Mediterrâneo. As calças azuis dos marinheiros <strong>de</strong>scritos por<br />
Dumas e confecciona<strong>da</strong>s por seu discípulo, o velho alfaiate, conquistaram<br />
as moças por causa <strong>da</strong>s bocas largas e flutuantes, <strong>da</strong>s quais parecia<br />
<strong>em</strong>anar o cheiro <strong>da</strong> Costa Azul. “Pediu que <strong>de</strong>senháss<strong>em</strong>os uma âncora<br />
com cinco bicos, que virou o enfeite mais procurado <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> f<strong>em</strong>inina<br />
<strong>da</strong>queles anos, na montanha <strong>da</strong> Fênix Celestial. (SIJIE, 2000, p.112.)<br />
Com as leituras, o trabalho do alfaiate refletia os novos conhecimentos<br />
adquiridos. Tudo mudou na montanha <strong>da</strong> Fênix Celestial. O novo modo <strong>de</strong> se vestir<br />
influenciado pelo romance <strong>de</strong> Dumas provocou uma nova roupag<strong>em</strong> aos moradores<br />
<strong>da</strong> montanha.<br />
Luo e o narrador também experimentaram transformações, como já citado<br />
acima.<br />
31
Em pouco t<strong>em</strong>po, a cortesia e o respeito <strong>de</strong>vidos à mulher, revelados nos<br />
romances <strong>de</strong> Balzac, me transformaram <strong>em</strong> lava<strong>de</strong>ira que lavava roupa<br />
no riacho, mesmo naquele início <strong>de</strong> inverno, quando a Costureirinha<br />
estava cheia <strong>de</strong> encomen<strong>da</strong>s. (SIJIE, 2000, p. 134)<br />
Os costumes e comportamentos tratados nos textos lidos eram novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
para os dois amigos. Eles foram <strong>de</strong>spertados para outros mundos e <strong>de</strong>sejavam<br />
fazer com que outros também o foss<strong>em</strong>. É no contato com a literatura que eles<br />
compreend<strong>em</strong> o mundo <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong> e passam a questioná-lo; tomam<br />
consciência do quanto este mundo não mais os satisfaz; e tentam mu<strong>da</strong>r a<br />
r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> no campo social.<br />
Ao pensarmos <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s essas r<strong>ea</strong>ções do leitor suscita<strong>da</strong>s diante do texto,<br />
foi preciso, antes <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>finir alguns conceitos que nos auxiliaram no processo<br />
<strong>de</strong> análise do jogo <strong>de</strong> leituras presente no romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong><br />
<strong>chinesa</strong>. Vale aqui ressaltar o pensamento do teórico Roger Chartier que, <strong>em</strong> seus<br />
estudos, enfatiza a distância entre o sentido atribuído pelo autor e por seus leitores.<br />
Para Chartier, o mesmo material escrito e/ou lido não t<strong>em</strong> o mesmo significado para<br />
as diferentes pessoas que <strong>de</strong>le se apropriam.<br />
Antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong>, <strong>da</strong>r à leitura o estatuto <strong>de</strong> uma prática criadora,<br />
inventiva, produtora, e não anulá-la do texto lido, como se o sentido<br />
<strong>de</strong>sejado por seu autor <strong>de</strong>vesse inscrever-se com to<strong>da</strong> a imediatez e<br />
transparência, s<strong>em</strong> resistência n<strong>em</strong> <strong>de</strong>svio, no espírito <strong>de</strong> seus leitores. Em<br />
segui<strong>da</strong>, pensar que os atos <strong>de</strong> leitura que dão aos textos significações<br />
plurais e móveis situam-se no encontro <strong>de</strong> maneiras <strong>de</strong> ler, coletivas e<br />
individuais, her<strong>da</strong><strong>da</strong>s ou inovadoras, íntimas ou públicas e <strong>de</strong> protocolos <strong>de</strong><br />
leitura <strong>de</strong>positados no objeto lido [...] (CHARTIER, 2004, p.78).<br />
A abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> <strong>em</strong>preendi<strong>da</strong> por Chartier confirma as diferenças e variações<br />
existentes no modo como os leitores se relacionam com o material escrito. Uma só<br />
obra t<strong>em</strong> inúmeras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo, entre outras<br />
coisas, do suporte, <strong>da</strong> época e do contexto <strong>em</strong> que circula.<br />
O texto literário nos dá a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> várias leituras, ou seja, ele oferece<br />
uma gama enorme <strong>de</strong> interpretações. Qu<strong>em</strong> escreve está comprometido. A leitura<br />
<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> texto está relaciona<strong>da</strong> aos vínculos que se estabelec<strong>em</strong> entre significado e<br />
significante. Somente na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que pod<strong>em</strong>os perceber essa relação é que<br />
compreend<strong>em</strong>os as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leituras. Produção e leitura caminham juntas,<br />
32
são faces que se completam. Nesse sentido, é preciso nos apoiar <strong>em</strong> algumas<br />
funções <strong>da</strong> literatura 24 propostas por Marcel Proust, tendo como principal <strong>de</strong>las:<br />
[...] que a leitura é para nós iniciadora cujas chaves mágicas abr<strong>em</strong> o fundo<br />
<strong>de</strong> nós mesmos a porta <strong>da</strong>s mora<strong>da</strong>s on<strong>de</strong> não saberíamos penetrar, seu<br />
papel na nossa vi<strong>da</strong> é salutar. (PROUST, 1989, p.35)<br />
O mesmo se po<strong>de</strong> dizer <strong>da</strong> teoria do efeito estético, <strong>de</strong> Wolfgang Iser, que<br />
t<strong>em</strong> seus estudos voltados para as r<strong>ea</strong>ções potenciais suscita<strong>da</strong>s nos leitores<br />
pelo efeito estético, entendido como interação que ocorre entre texto e leitor.<br />
Nesse sentido,<br />
[...] a relação entre texto e leitor se atualiza porque o leitor insere no<br />
processo <strong>da</strong> leitura as informações sobre os efeitos nele provocados; <strong>em</strong><br />
conseqüência, essa relação se <strong>de</strong>senvolve como um processo constante<br />
<strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizações. (ISER, 1996, p.127)<br />
Todos esses autores trabalham a partir <strong>de</strong> textos literários, para enfatizar o<br />
caráter ativo <strong>da</strong> recepção <strong>de</strong>fendido pelo teórico Wolfgang Iser.<br />
[...] o texto só existe pelo ato <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> uma consciência que o<br />
recebe, e é somente ao longo <strong>da</strong> leitura que a obra adquire seu caráter<br />
particular <strong>de</strong> processo... A obra é, portanto, a constituição do texto na<br />
consciência do leitor. (ISER, 1996, p.49)<br />
É a partir <strong>de</strong> tais concepções e teorias cita<strong>da</strong>s anteriormente que passamos<br />
a ler e analisar o romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, observando que é<br />
através <strong>da</strong> leitura dos textos literários, principalmente <strong>da</strong>s obras do escritor francês<br />
Honoré <strong>de</strong> Balzac, que os personagens se transformam no romance, apren<strong>de</strong>ndo a<br />
li<strong>da</strong>r com diferentes questões <strong>em</strong> suas vi<strong>da</strong>s. Assim, os autores oci<strong>de</strong>ntais citados<br />
passam a integrar o jogo <strong>de</strong> leituras presente no romance, com as impressões dos<br />
seus leitores e os diferentes efeitos causados a partir <strong>da</strong> leitura.<br />
24 De acordo com Umberto Eco, a literatura contribui para formar a língua, cria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social,<br />
tendo como função educar a partir dos ecos <strong>de</strong> um mundo <strong>de</strong> valores que chega dos livros (literários),<br />
nos ensinando também até mesmo a morrer, fazendo com que cri<strong>em</strong>os i<strong>de</strong>ntificação com<br />
personagens, situações e objetos <strong>da</strong>s tramas narrativas. Eco ain<strong>da</strong> afirma que a educação ao fado e<br />
a morte é uma <strong>da</strong>s funções principais <strong>da</strong> literatura.<br />
33
2.1 APROPRIAÇÃO, CRIAÇÃO E NARRAÇÃO<br />
Para Luo e o narrador, os filmes que <strong>de</strong>veriam assistir, projetados na<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mais próxima <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia, e contar no mesmo dia <strong>de</strong> seu re<strong>torno</strong>,<br />
significavam a dispensa do trabalho duro e braçal. O chefe dos al<strong>de</strong>ões,<br />
encantado com o talento <strong>de</strong> Luo para narrar histórias, <strong>de</strong>clarou que assistir aos<br />
filmes e contar a história aos al<strong>de</strong>ões equivaleria aos dias <strong>de</strong> trabalho no campo.<br />
Desta forma, os filmes assistidos e, mais tar<strong>de</strong>, os livros achados na mala do<br />
amigo “Quatro olhos”, eram narrados para todos os al<strong>de</strong>ões, que não teriam<br />
acesso a esses textos, se não fosse a presença dos jovens narradores.<br />
Além dos textos cin<strong>em</strong>atográficos, os textos literários <strong>de</strong> autores oci<strong>de</strong>ntais<br />
também começaram a fazer parte <strong>da</strong>s narrativas orais. Os contadores <strong>da</strong><br />
Montanha Fênix passavam <strong>de</strong> espectadores e leitores a próprios escritores, pois,<br />
a partir <strong>da</strong> apropriação dos textos, eram soma<strong>da</strong>s as escolhas que compunham<br />
personagens, cenários, tom <strong>de</strong> voz para ca<strong>da</strong> momento <strong>da</strong> história. Segundo<br />
Walter Benjamin, o narrador não t<strong>em</strong> o intuito <strong>de</strong> fazer com que a história narra<strong>da</strong><br />
seja uma obra fecha<strong>da</strong>. Ele ressalta que as histórias <strong>de</strong> qualquer narrador se<br />
propõ<strong>em</strong> a <strong>da</strong>r conselhos e passar ensinamentos.<br />
[...] a natureza <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira narrativa, t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> si, às<br />
vezes <strong>de</strong> forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong> consistir seja num ensinamento moral, seja numa<br />
sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> –<br />
<strong>de</strong> qualquer maneira, o narrador é um hom<strong>em</strong> que sabe <strong>da</strong>r<br />
conselhos.[...] (BENJAMIN, 1987, p. 200)<br />
Os narradores <strong>da</strong> Montanha Fênix não eram diferentes, pois suas histórias<br />
ganhavam novos con<strong>torno</strong>s e seus ouvintes, acostumados apenas com i<strong>de</strong>ias<br />
revolucionárias sobre patriotismo, comunismo, i<strong>de</strong>ologia e propagan<strong>da</strong>,<br />
repentinamente, ouv<strong>em</strong> histórias que falam do <strong>de</strong>sejo, dos impulsos, <strong>da</strong>s pulsões,<br />
do amor e <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s essas coisas que jamais ouviram falar <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as suas<br />
34
experiências. Com o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> narração, os dois jovens eram ca<strong>da</strong> vez mais<br />
solicitados e, s<strong>em</strong> saber, começavam a transformar todos os habitantes <strong>da</strong><br />
Montanha Fênix.<br />
A arte <strong>de</strong> narrar é recupera<strong>da</strong> no romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong><br />
do mesmo modo como aparece <strong>em</strong> Sheraza<strong>de</strong>, 25 nas Mil e uma noites, 26 que<br />
conta histórias para sobreviver e evitar que outras mulheres morram nas mãos do<br />
rei Schahriar. Os personagens Luo e o narrador mostram a supr<strong>em</strong>acia e o po<strong>de</strong>r<br />
dos narradores <strong>de</strong> história.<br />
Narrava <strong>de</strong> modo enxuto, mas representava os personagens<br />
alterna<strong>da</strong>mente, variando a voz e os gestos. Dirigia a narrativa, mantinha o<br />
suspense; fazia perguntas, provocava a r<strong>ea</strong>ção do público, corrigindo<br />
respostas. Quando terminamos, ou melhor, quando ele terminou a sessão,<br />
exatamente no t<strong>em</strong>po previsto, o público estava feliz, excitado, surpreso.<br />
(SIJIE, 2000, p. 20)<br />
Nesta relação <strong>de</strong> micro po<strong>de</strong>r 27 é que a arte <strong>de</strong> contar também os salva <strong>de</strong><br />
duras jorna<strong>da</strong>s <strong>de</strong> trabalho, que po<strong>de</strong>riam os levar à morte. Os dois jovens<br />
contadores são exaltados pelos al<strong>de</strong>ões por sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> narrar, e, com<br />
isso, nosso jogo <strong>de</strong> leituras começa a se formar: são as leituras anteriores que se<br />
tornam narrativas.<br />
Entend<strong>em</strong>os que a experiência que passa <strong>de</strong> pessoa para pessoa foi a<br />
fonte que alimentou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre, todos os narradores, que retiravam <strong>da</strong>s suas<br />
vivências ou <strong>da</strong> experiência relata<strong>da</strong> pelos outros, o que contar, como por<br />
ex<strong>em</strong>plo: o camponês se<strong>de</strong>ntário, fixo <strong>em</strong> sua terra, mantinha vivo o saber do<br />
25 Sheheraza<strong>de</strong> é personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> narrativa que inicia e termina "As 1001 Noites". T<strong>em</strong> como objetivo<br />
burlar a morte e salvar outras mulheres do mesmo sofrimento.<br />
26 As Mil e Uma Noites é uma obra clássica <strong>da</strong> literatura Persa, consistindo numa coleção <strong>de</strong> contos<br />
orientais compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI. São estruturados como histórias <strong>em</strong><br />
ca<strong>de</strong>ia, <strong>em</strong> que ca<strong>da</strong> conto termina com uma <strong>de</strong>ixa que o liga ao seguinte. Essa estruturação força o<br />
ouvinte curioso a retornar para continuar a história, interrompi<strong>da</strong> com suspense no ar. A história conta<br />
que Schahriar, rei <strong>da</strong> Pérsia, vitimado pela infi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua mulher, mandou matá-la e resolveu<br />
passar ca<strong>da</strong> noite com uma mulher diferente, que man<strong>da</strong>va <strong>de</strong>golar na manhã seguinte. Recebendo<br />
como mulher a Sheraza<strong>de</strong>, esta iniciou um conto que <strong>de</strong>spertou o interesse do rei <strong>em</strong> ouvir-lhe a<br />
continuação na noite seguinte. Sheraza<strong>de</strong>, por artificiosa ligação dos seus contos, conseguiu<br />
encantar o monarca por mil e uma noites e foi poupa<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte.<br />
27 Michel Foulcault não <strong>de</strong>fine o po<strong>de</strong>r apenas sendo utilizado na macro relação entre o indivíduo e o<br />
Estado. Ele enfatiza que na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> ocorr<strong>em</strong> várias relações <strong>de</strong> micro po<strong>de</strong>r, sendo elas uma <strong>da</strong>s<br />
forças que motiva e transforma as relações interpessoais <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. (FOULCALUT, Michel.<br />
Microfísica do Po<strong>de</strong>r. FOULCALUT; Graal, São Paulo, 2009.)<br />
35
passado; o marinheiro comerciante trazia o saber <strong>da</strong>s terras distantes, e as<br />
histórias narra<strong>da</strong>s iam sendo incorpora<strong>da</strong>s à experiência dos ouvintes. O narrador<br />
era figura <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque e valorização na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, pelo simples fato <strong>de</strong><br />
conhecer e contar histórias, mitos, mantendo viva a m<strong>em</strong>ória dos povos na arte<br />
<strong>de</strong> narrar.<br />
No texto O Narrador, Walter Benjamin aponta com nostalgia o fim <strong>de</strong>ssa<br />
figura seculariza<strong>da</strong>, o contador <strong>de</strong> histórias. A prática <strong>de</strong> ouvir e contar histórias,<br />
ao redor <strong>da</strong> fogueira, nos jardins, <strong>em</strong> meio às festas familiares, se extinguiu ou,<br />
quando muito, agoniza <strong>em</strong> lugares distantes. Talvez, porque a fonte <strong>da</strong> qual se<br />
alimentava o narrador <strong>de</strong>saparece com a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> 28 .<br />
As histórias orais, conta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> geração <strong>em</strong> geração como forma <strong>de</strong><br />
transmissão <strong>de</strong> experiência, <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> valores, são recolhi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> tradição.<br />
Elas têm lugar na experiência coletiva, Erfahrung 29 , como diz Benjamin. Isso quer<br />
dizer que a narrativa que se conta foi, provavelmente, vivencia<strong>da</strong> por um ancestral<br />
não muito distante e que as suas aventuras são próximas do universo vivido e<br />
experimentado pelos ouvintes.<br />
[...] Ela não está interessa<strong>da</strong> <strong>em</strong> transmitir o 'puro <strong>em</strong> si' <strong>da</strong> coisa narra<strong>da</strong><br />
como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vi<strong>da</strong> do<br />
narrador para <strong>em</strong> segui<strong>da</strong> retirá-la <strong>de</strong>le. Assim se imprime na narrativa a<br />
marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores<br />
gostam <strong>de</strong> começar sua história com uma <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s circunstâncias <strong>em</strong><br />
que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que<br />
prefiram atribuir a essa história experiências autobiográfica. (BENJAMIN,<br />
1987, p. 205)<br />
Tais histórias têm, assim, um caráter ex<strong>em</strong>plar para aqueles que as ouv<strong>em</strong>.<br />
Fonte inesgotável <strong>da</strong>s narrativas orais, é a m<strong>em</strong>ória coletiva 30 que permite a<br />
28 A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> Walter Benjamin seria a evolução dos meios <strong>de</strong> comunicação que implicam<br />
numa nova relação interpessoal, na qual as pessoas passam a não ter mais necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> discutir<br />
sobre um fato ocorrido. Benjamin enfatiza que os meios <strong>de</strong> comunicação mo<strong>de</strong>rnizados já<br />
proporcionam ao leitor as explicações que, por ex<strong>em</strong>plo, tentariam encontrar <strong>em</strong> uma ro<strong>da</strong> narrativa.<br />
Na china rural <strong>de</strong> Mao Tse Tung os meios <strong>de</strong> comunicação não eram compatíveis com o europeu,<br />
tanto por ser uma região erma, quanto pela política do lí<strong>de</strong>r chinês perante a restrição no contato<br />
entre o campo, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e a relação entre a China e o restante do mundo.<br />
29 Experiência; prática.<br />
30 Para Benjamin, a idéia <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória coletiva diz respeito aos saberes e valores formados pelos<br />
m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. (BENJAMIN, Walter. Infância <strong>em</strong> Berlim - OBRAS<br />
ESCOLHIDAS – IN MAGIA E TÉCNICA – ARTE E POLÍTICA / BRASILIENSE. 3ª EDIÇÃO. SÃO<br />
PAULO, 1987. p. 199)<br />
36
existência, a renovação e a transmissão <strong>da</strong>s histórias. Como afirma Benjamin, até<br />
b<strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po atrás sabia-se muito b<strong>em</strong> o que era experiência: as pessoas mais<br />
velhas s<strong>em</strong>pre a passavam aos mais jovens. De forma concisa, com a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>em</strong> provérbios; ou <strong>de</strong> forma prolixa, com sua loquaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>em</strong> histórias; ou<br />
ain<strong>da</strong> através <strong>de</strong> narrativas <strong>de</strong> países estrangeiros, junto à lareira, diante <strong>de</strong> filhos e<br />
netos. Detona<strong>da</strong> pelo <strong>de</strong>senvolvimento alucinante <strong>da</strong>s forças produtivas, a crise <strong>da</strong><br />
narrativa oral começa a <strong>da</strong>r seus primeiros sinais com o surgimento do romance no<br />
início do período mo<strong>de</strong>rno.<br />
O primeiro indício <strong>da</strong> evolução que vai culminar na morte <strong>da</strong> narrativa é o<br />
surgimento do romance no início do período mo<strong>de</strong>rno. O que separa o<br />
romance <strong>da</strong> narrativa (e <strong>da</strong> epopéia no sentido estrito) é que ele está<br />
essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna<br />
possível com a invenção <strong>da</strong> imprensa. A tradição oral, patrimônio <strong>da</strong> poesia<br />
épica, t<strong>em</strong> uma natureza fun<strong>da</strong>mentalmente distinta<strong>da</strong> que caracteriza o<br />
romance. O que distingue o romance <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as formas <strong>de</strong> prosa- é que<br />
ela n<strong>em</strong> proce<strong>de</strong> <strong>da</strong> tradição oral n<strong>em</strong> a alimenta. Ele se distingue,<br />
especialmente, <strong>da</strong> narrativa. O narrador retira <strong>da</strong> experiência o que conta:<br />
sua própria experiência ou relata<strong>da</strong> pelos outros. E incorpora as coisas<br />
narra<strong>da</strong>s à experiência <strong>de</strong> seus ouvintes. O romancista segrega-se. A<br />
orig<strong>em</strong> do romance é o indivíduo isolado, que não po<strong>de</strong> mais falar<br />
ex<strong>em</strong>plarmente sobre suas preocupações mais importantes e que<br />
não recebe conselhos n<strong>em</strong> sabe dá-los. Escrever um romance, significa na<br />
<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> humana, levar o incomensurável a seus últimos<br />
limites. Na riqueza <strong>de</strong>ssa vi<strong>da</strong> e na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>ssa riqueza, o romance<br />
anuncia a profun<strong>da</strong> perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> vive. O primeiro gran<strong>de</strong> livro do<br />
gênero, Dom Quixote, mostra como a gran<strong>de</strong>za <strong>da</strong> alma, a corag<strong>em</strong> e a<br />
generosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um dos mais nobres heróis <strong>da</strong> literatura são totalmente<br />
refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha <strong>de</strong> sabedoria.<br />
(BENJAMIN, 1987, p. 201)<br />
A função social do romance, como indica Benjamin, é a <strong>de</strong> proporcionar ao<br />
leitor a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer o mundo no interior <strong>de</strong> sua casa, sendo sua<br />
natureza fun<strong>da</strong>mentalmente distinta <strong>da</strong>quela que caracteriza a tradição oral.<br />
Enquanto o contador <strong>de</strong> histórias retira <strong>da</strong> experiência aquilo que narra e incorpora<br />
os fatos narrados à experiência dos ouvintes, o romancista segrega-se. A orig<strong>em</strong> do<br />
romance é o indivíduo isolado, que não po<strong>de</strong> mais falar ex<strong>em</strong>plarmente sobre suas<br />
preocupações mais importantes e que não recebe conselhos n<strong>em</strong> sabe dá-los.<br />
Escrever um romance significa, na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> humana, levar o<br />
incomensurável a seus últimos limites.<br />
O gran<strong>de</strong> público dos romances no século XIX era a burguesia europeia, que<br />
via o mundo ao seu redor cercado <strong>de</strong> proletários esfom<strong>ea</strong>dos, mendigos, ladrões,<br />
todo e qualquer sujeito que pu<strong>de</strong>sse causar periculosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com o romance, a<br />
37
urguesia continuaria a ter contato com um suposto mundo, s<strong>em</strong> por <strong>em</strong> risco sua<br />
integri<strong>da</strong><strong>de</strong> física e moral, permanecendo <strong>em</strong> sua mora<strong>da</strong>. O romance, portanto, foi<br />
a forma mais simples que a burguesia encontrou para se manter a par <strong>da</strong>s mazelas<br />
sociais que ela mesma havia construído. Para Benjamin, o romance, ao contrário<br />
<strong>da</strong>s narrativas, não se constitui como uma obra aberta. Ele já estabelece<br />
previamente os nomes dos personagens, as tramas existentes e a durabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
limita<strong>da</strong> pela última página.<br />
Essa nova forma <strong>de</strong> narrativa está liga<strong>da</strong> essencialmente à escrita. Enquanto<br />
sist<strong>em</strong>a s<strong>em</strong>iótico singular, é óbvio que a escrita se diferencia <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa<br />
distinção, entretanto, não constitui <strong>em</strong> si um probl<strong>em</strong>a, uma vez que várias <strong>da</strong>s<br />
formas épicas se alimentam <strong>da</strong> tradição oral. Segundo Benjamin, o que distingue o<br />
romance <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras formas <strong>de</strong> prosa – contos <strong>de</strong> fa<strong>da</strong>, len<strong>da</strong>s e mesmo<br />
novelas – é que ele n<strong>em</strong> proce<strong>de</strong> <strong>da</strong> tradição oral, n<strong>em</strong> a alimenta.<br />
Pod<strong>em</strong>os afirmar, apropriando-nos <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Walter Benjamin, que<br />
nossos dois jovens narradores seriam como o marinheiro comerciante já citado<br />
anteriormente que, ao pisar <strong>em</strong> outras terras, absorve outras culturas e as transfere<br />
para seus ouvintes, já <strong>em</strong> sua terra <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>. Ao ler<strong>em</strong> os textos literários, Luo e o<br />
narrador <strong>de</strong>sconstro<strong>em</strong> os textos lidos e os transformam <strong>em</strong> experiências para todos<br />
aqueles al<strong>de</strong>ões que participavam <strong>da</strong>s sessões <strong>de</strong> narração. Até mesmo o cin<strong>em</strong>a,<br />
símbolo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e civilização <strong>de</strong>sconhecido por muitos al<strong>de</strong>ões, per<strong>de</strong> a<br />
preferência para os contadores <strong>de</strong> história. Observ<strong>em</strong>os o comentário feito pela<br />
Costureirinha diante <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> tela do cin<strong>em</strong>a: “B<strong>em</strong> no meio <strong>da</strong> sessão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
meia hora <strong>de</strong> filme, ela virou-se e me sussurrou uma frase que me <strong>de</strong>ixou todo<br />
<strong>de</strong>rretido: _Fica muito mais interessante quando você conta.” (SIJIE, 2000, p. 72)<br />
Ao contrário do marinheiro, que trazia experiências <strong>da</strong>s terras pelas quais<br />
passava, os jovens rapazes traziam novas experiências, mesmo s<strong>em</strong> saír<strong>em</strong> dos<br />
seus lugares e acreditando ter<strong>em</strong> vivenciado tais experiências. Ou seja, eram os<br />
romances que alimentavam a tradição oral. Assim nos mostra o narrador sobre sua<br />
leitura <strong>de</strong> “Úrsula Mirouet” do escritor Balzac 31 :<br />
31 Um dos principais autores do R<strong>ea</strong>lismo na literatura francesa no século XIX. Mesmo tornado-se<br />
num dos maiores nomes do r<strong>ea</strong>lismo na literatura, as suas obras são, no entanto, cunha<strong>da</strong>s sobre a<br />
tradição literária do romantismo francês e a maioria <strong>de</strong> suas obras procura retratar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
burguesa <strong>da</strong> França na sua época.<br />
38
[...] a história <strong>de</strong> Úrsula pareceu-me tão ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira quanto a <strong>de</strong> meus<br />
vizinhos. Tinha certeza <strong>de</strong> que os negócios escusos que envolviam aquela<br />
jov<strong>em</strong>, ligados a sucessão e a dinheiro, contribuíam para reforçar a<br />
verossimilhança, aumentando o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong>s palavras. Ao final do dia, sentiame<br />
<strong>em</strong> casa <strong>em</strong> N<strong>em</strong>ours, <strong>em</strong> sua casa, perto <strong>da</strong> lareira fumegante, na<br />
companhia <strong>da</strong>queles doutores e <strong>da</strong>queles párocos...Até o episódio sobre<br />
magnetismo e sonambulismo pareceu-me coerente e <strong>de</strong>licioso. (SIJIE,<br />
2000, p. 50)<br />
A partir <strong>de</strong>ssas leituras, os saberes e os novos modos <strong>de</strong> pensar <strong>de</strong> terras<br />
distantes eram conhecidos através <strong>da</strong> literatura, inserindo novas vivências numa<br />
outra cultura <strong>de</strong> forma sutil. A sutileza com que os rapazes introduz<strong>em</strong> novos<br />
pensares naqueles habitantes <strong>da</strong> Montanha Fênix está no simples fato <strong>de</strong>, <strong>em</strong><br />
alguns momentos, ludibriar<strong>em</strong> a população se apropriando dos romances lidos e<br />
contando-os como se foss<strong>em</strong> as projeções assisti<strong>da</strong>s por eles na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mais<br />
próxima.<br />
Repentinamente, como um intruso, o livrinho me falava do <strong>de</strong>spertar do<br />
<strong>de</strong>sejo, dos impulsos, <strong>da</strong>s pulsões, do amor, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s essas coisas sobre<br />
as quais jamais ouvira falar. A <strong>de</strong>speito <strong>da</strong> total ignorância sobre esse país<br />
chamado França (já tinha ouvido meu pai falar <strong>de</strong> Napoleão, mais na<strong>da</strong>),<br />
[...] (SIJIE, 2000, p. 50)<br />
Nossos personagens - Luo e o narrador - part<strong>em</strong> <strong>da</strong> escrita (leitura <strong>de</strong><br />
romances) para a orali<strong>da</strong><strong>de</strong>. São os romances que lhes apontam as vivências e<br />
experiências para as sessões <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong>stes dois jovens rapazes. Isto é<br />
possível, porque partimos <strong>da</strong> pr<strong>em</strong>issa abor<strong>da</strong><strong>da</strong> no romance, Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, <strong>de</strong> que os textos literários nos ensinam a viver, per<strong>de</strong>r, morrer.<br />
Com a literatura, aprend<strong>em</strong>os a li<strong>da</strong>r com nossas agonias; através <strong>de</strong>la nos<br />
i<strong>de</strong>ntificamos com personagens; imaginamos; viajamos; transportamo-nos para<br />
outras vi<strong>da</strong>s s<strong>em</strong> sair do lugar e mu<strong>da</strong>mos nossas próprias vi<strong>da</strong>s.<br />
[Recopiei o capitulo <strong>em</strong> que Úrsula viaja como uma sonâmbola.<br />
Queria ser como ela: po<strong>de</strong>r dormir na minha cama, ver o que minha<br />
mãe fazia <strong>em</strong> nosso apartamento a quinhentos quilômetros <strong>de</strong><br />
distância, assistir ao jantar <strong>de</strong> meus pais, observar suas atitu<strong>de</strong>s, os<br />
<strong>de</strong>talhes <strong>da</strong> refeição, a cor dos pratos, sentir o cheiro dos alimentos,<br />
39
ouvi-los conversar... E melhor ain<strong>da</strong>: como Úrsula, gostaria <strong>de</strong> ver<br />
<strong>em</strong> sonhos lugares on<strong>de</strong> jamais havia estado[...] (SIJIE, 2000, p. 51)<br />
Ao ler o romance Úrsula Mirouet, o amigo <strong>de</strong> Luo acreditava passar pelos<br />
mesmos momentos vividos pela personag<strong>em</strong> Úrsula. A i<strong>de</strong>ntificação com a<br />
personag<strong>em</strong> e sua vi<strong>da</strong> acontece <strong>de</strong> forma tão r<strong>ea</strong>l que a ficção conti<strong>da</strong> no romance<br />
acaba invadindo a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim como acontece com outros personagens <strong>de</strong><br />
Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, que, através <strong>da</strong>s histórias li<strong>da</strong>s e narra<strong>da</strong>s por Luo<br />
e seu amigo, se <strong>em</strong>ocionam e se i<strong>de</strong>ntificam com personagens e lugares <strong>da</strong>s obras.<br />
Dos três filmes que tínhamos visto no campo <strong>de</strong> basquete <strong>de</strong> Yong Jing, o<br />
mais popular era um melodrama norte-cor<strong>ea</strong>no, cuja principal personag<strong>em</strong><br />
chamava-se “a moça <strong>da</strong>s flores” [...] ao termino <strong>da</strong> sessão, quando<br />
pronunciei a frase final, imitando a voz <strong>em</strong> off, sentimental e fatal [...] o<br />
efeito foi tão grandioso quanto o obtido pela ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira projeção. Todos os<br />
nossos ouvintes choraram. Até o chefe <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia, por mais duro que fosse,<br />
não pô<strong>de</strong> conter a cáli<strong>da</strong> efusão <strong>da</strong>s lágrimas que lhe escorreram do olho<br />
esquerdo, s<strong>em</strong>pre marcado por três gotas <strong>de</strong> sangue. (SIJIE, 2000, p. 33)<br />
Dai Sijie constrói personagens que se val<strong>em</strong> dos romances, que, para<br />
Umberto Eco (1993, p. 53), "representa uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> artifícios expressivos que o<br />
<strong>de</strong>stinatário <strong>de</strong>ve atualizar”, para, na interação entre texto e leitor, se tornar<strong>em</strong><br />
coautores, se apropriando do texto já produzido e inserindo suas interpretações,<br />
construções <strong>de</strong> sentido, toques pessoais. Luo e seu amigo, representantes <strong>da</strong><br />
burguesia r<strong>ea</strong>cionária <strong>chinesa</strong>, sa<strong>em</strong> do interior <strong>de</strong> suas casas, <strong>da</strong> solidão <strong>da</strong>s<br />
leituras <strong>de</strong> romance e a<strong>de</strong>ntram <strong>em</strong> um novo mundo, narrando as suas experiências,<br />
como burgueses urbanos para o proletariado rural chinês. Eles consegu<strong>em</strong> implantar<br />
novos valores aos romances, acrescentando outras narrativas aos mesmos,<br />
socializando suas experiências que são obti<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> leitura, passando, assim,<br />
do individual para o coletivo. Isto só é viável pelo <strong>de</strong>sconhecimento dos al<strong>de</strong>ões<br />
sobre as obras narra<strong>da</strong>s.<br />
A todo o momento perceb<strong>em</strong>os no romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> a<br />
existência <strong>de</strong> um processo criativo durante a recepção <strong>de</strong> textos literários, como<br />
propõe Roger Chartier. A <strong>costureirinha</strong> se encantava com a leitura que fazia <strong>da</strong>s<br />
imagens e ficava ain<strong>da</strong> mais maravilha<strong>da</strong> quando Luo lia ou contava os romances<br />
para ela. No fascínio com as tramas li<strong>da</strong>s, brota a sensação <strong>de</strong> autonomia, que os<br />
jovens divid<strong>em</strong> com a personag<strong>em</strong> protagonista.<br />
40
Enquanto Luo viaja para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, com a permissão do chefe<br />
camponês, para visitar seu pai, seu amigo fica incumbido <strong>de</strong> proteger a<br />
Costureirinha e prosseguir com as leituras dos diferentes romances.<br />
S<strong>em</strong> nenhuma presunção, constatei que minha leitura, ou a leitura <strong>de</strong> meu<br />
modo, agra<strong>da</strong>va mais à minha ouvinte que a <strong>de</strong> meu antecessor. Ler <strong>em</strong><br />
voz alta uma página inteira parecia-me insuportavelmente marçante, por<br />
isso <strong>de</strong>cidi fazer uma leitura aproxima<strong>da</strong>, quer dizer, lia principalmente<br />
duas ou três páginas, ou um capítulo curto, enquanto ela trabalhava na<br />
máquina. Em segui<strong>da</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> curta reflexão, fazia-lhe perguntas ou lhe<br />
pedia para adivinhar o que ia acontecer. Depois que ela respondia,<br />
contava-lhe o que estava no livro, parágrafo por parágrafo. De vez <strong>em</strong><br />
quando, não conseguia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> acrescentar uns <strong>de</strong>talhes aqui e ali,<br />
digamos, alguns toques pessoais, para que ela se divertisse mais com a<br />
história. Acontecia até <strong>de</strong> inventar situações ou introduzir o episódio <strong>de</strong><br />
outro romance, quando achava que o velho pai Balzac estava cansado.<br />
(SIJIE, 2000. p. 133)<br />
Para todos aqueles al<strong>de</strong>ões que ouviam e se <strong>em</strong>ocionavam com as histórias<br />
conta<strong>da</strong>s pelos dois jovens rapazes, a narração era a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> crescer<strong>em</strong> e<br />
se transformar<strong>em</strong>. Os romances lidos por eles serviam como meio <strong>de</strong> libertação dos<br />
momentos difíceis <strong>da</strong> reeducação e como distanciamento <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a ignorância<br />
presente nos al<strong>de</strong>ões, sendo também um instrumento transformador do sujeito<br />
social.<br />
Neste sentido, “a literatura oferece a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> formularmo-nos a nós<br />
mesmos, formulando o não-dito.” (ISER, 1999, v. 2, p. 93). É na formulação <strong>de</strong>sse<br />
não-dito, nos preenchimentos dos vazios do texto que os efeitos causados pela<br />
leitura vão além. É a partir do acesso aos romances, principalmente <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong><br />
Balzac, que a protagonista e outros personagens resolv<strong>em</strong> mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Mostra-se<br />
então que o olhar sobre o mundo se modifica, alterando, também, o comportamento<br />
<strong>de</strong> todos os que, <strong>de</strong> alguma forma, se ve<strong>em</strong> tocados pela literatura. É por intermédio<br />
<strong>de</strong>sse mundo novo, além <strong>da</strong>s fronteiras <strong>chinesa</strong>s, e dos gran<strong>de</strong>s mestres <strong>da</strong><br />
literatura, que o narrador, Luo e a Costureirinha, compreend<strong>em</strong> que suas vi<strong>da</strong>s<br />
pertenc<strong>em</strong> a algo muito maior.<br />
41
2.2 O OLHAR ESTRANGEIRO: O PAPEL DA MEMÓRIA NO TEXTO LITERÁRIO<br />
Além <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>screver a sacrificante vi<strong>da</strong> na China durante a revolução<br />
cultural, o livro Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> é, acima <strong>de</strong> tudo, um romance sobre<br />
a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> literatura, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> proporciona<strong>da</strong> pelos livros e o<br />
po<strong>de</strong>r transformador <strong>da</strong> literatura, numa época <strong>em</strong> que as universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s foram<br />
fecha<strong>da</strong>s e os jovens intelectuais foram man<strong>da</strong>dos ao campo, para ser<strong>em</strong><br />
reeducados por camponeses.<br />
O escritor Dai Sijie constrói um romance sobre o po<strong>de</strong>r transformador <strong>da</strong><br />
literatura, reconhecendo-a como veículo importante que permite o estabelecimento<br />
<strong>de</strong> relações interpessoais ricas, o crescimento do leitor, enquanto sujeito, como<br />
el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> si mesmo e do meio social <strong>em</strong> que vive, e agora,<br />
como ver<strong>em</strong>os adiante, também do escritor.<br />
Sab<strong>em</strong>os que Dai Sijie nasceu na China, <strong>em</strong> 1954, proveniente <strong>de</strong> uma<br />
família <strong>de</strong> classe média, com parentes médicos, e também foi enviado a um campo<br />
<strong>de</strong> reeducação, assim como os personagens Luo e o narrador. Passou pela<br />
reeducação entre os anos <strong>de</strong> 1971 e 1974.<br />
Se analisarmos e aproximarmos os <strong>da</strong>dos obtidos sobre a vi<strong>da</strong> pessoal do<br />
escritor e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ficcional dos dois personagens do romance Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, constatar<strong>em</strong>os que, no mesmo ano que Dai Sijie inicia sua<br />
vi<strong>da</strong> nos campos <strong>de</strong> reeducação, os dois jovens também passam pela mesma<br />
vivência.<br />
O fato do narrador-personag<strong>em</strong> nunca ser nom<strong>ea</strong>do ao longo <strong>da</strong> história<br />
também faz com que este se aproxime ain<strong>da</strong> mais do escritor <strong>em</strong> questão, sendo um<br />
indício <strong>de</strong> que seus olhares – do escritor e do narrador – se cruzam <strong>em</strong> alguns<br />
momentos <strong>da</strong> história narra<strong>da</strong>. Numa breve análise <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> pessoal e <strong>de</strong> sua<br />
obra literária, pod<strong>em</strong>os observar que o autor apresenta marcas <strong>de</strong> sua r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
mistura<strong>da</strong>s a momentos ficcionais <strong>da</strong> narrativa.<br />
Por todos os indícios <strong>de</strong> que o romance foi bas<strong>ea</strong>do nas experiências <strong>de</strong> Dai<br />
Sijie no campo <strong>de</strong> trabalhos forçados, o classificar<strong>em</strong>os como autoficcional, que<br />
compreend<strong>em</strong>os melhor quando o diferenciamos <strong>da</strong> autobiografia 32 .<br />
32 Conceito elaborado <strong>em</strong> Le Pacte Autobiographique (1975) pelo teórico Philippe Lejeune, sendo<br />
<strong>de</strong>finido por ele como narrativa retrospectiva <strong>em</strong> prosa que uma pessoa r<strong>ea</strong>l faz <strong>de</strong> sua própria<br />
42
Em 1986, num artigo intitulado Le Pacte Autobiographique (Bis), Lejeune<br />
comenta sobre o termo autoficção, afirmando que “faltava um termo do vocabulário<br />
crítico e Doubrovsky o forneceu” Para Lejeune, a autoficção se caracteriza como um<br />
espaço entre uma autobiografia que não quer ser <strong>de</strong>svela<strong>da</strong> e uma ficcionalização<br />
do próprio autor. “[...] O termo <strong>de</strong>signa a lacuna entre uma autobiografia que não se<br />
assume como tal e uma ficção que não quer se separar <strong>de</strong> seu autor” (LEJEUNE,<br />
2002, p.23).<br />
De acordo com Rodrigues (2007, p. 20), na literatura, a autobiografia se<br />
manifesta na forma <strong>de</strong> “m<strong>em</strong>órias, <strong>de</strong> diários íntimos, <strong>de</strong> romances epistolares, <strong>de</strong><br />
auto-retratos, confissões e nas diversas formas <strong>de</strong> narração <strong>em</strong> primeira pessoa”. O<br />
autor ain<strong>da</strong> esclarece que:<br />
A relação entre o passado, supostamente vivido pela personag<strong>em</strong>narradora,<br />
e a escrita que dá a esse passado revela, <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>mente, a<br />
impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperar o t<strong>em</strong>po perdido na m<strong>em</strong>ória do presente.<br />
(RODRIGUES, 2007, p. 23)<br />
Ou seja, mesmo que consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma autobiografia, a obra apresenta uma<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> entrelaça<strong>da</strong> à ficção. Não pod<strong>em</strong>os afirmar que se trata <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
absoluta. Ela explora paradoxos <strong>da</strong> escritura autobiográfica, tendo como base<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s r<strong>ea</strong>is, mas:<br />
A autoficção [...], seria “uma variante ‘pósmo<strong>de</strong>rna’ <strong>da</strong> autobiografia na<br />
medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que ela não acredita mais numa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> literal, numa<br />
referência indubitável, num discurso histórico coerente e se sabe<br />
reconstrução arbitrária e literária <strong>de</strong> fragmentos esparsos <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória 33 .<br />
O termo engloba to<strong>da</strong> narrativa ficcional escrita a partir <strong>de</strong> um el<strong>em</strong>ento<br />
verídico extraído do cotidiano. El<strong>em</strong>entos estes vividos pelo próprio escritor. O<br />
princípio do prazer é predominante nessa narrativa, <strong>em</strong> que o r<strong>ea</strong>l é apenas um<br />
el<strong>em</strong>ento inspirador <strong>da</strong> criação ficcional. Não sab<strong>em</strong>os ao certo se to<strong>da</strong> a história é<br />
r<strong>ea</strong>l, se todos os relatos são ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros ou receberam alguns toques pessoais e<br />
existência, colocando <strong>em</strong> evidência sua individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, <strong>em</strong> particular, a história <strong>de</strong> sua<br />
personali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Outro aspecto que caracteriza se a obra é autobiográfica é o autor, o narrador e o<br />
protagonista possuír<strong>em</strong> a mesma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nominal.<br />
33 FIGUEIREDO. Régine Robin: autoficção, bioficção, ciberficção.<br />
Disponível <strong>em</strong>: http://www.revistaipotesi.ufjf.br/volumes/18/cap02.pdf. Acessado <strong>em</strong>: 30 abril 2009<br />
às 14h30.<br />
43
inventivos, mas pod<strong>em</strong>os afirmar que part<strong>em</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> r<strong>ea</strong>l para receber<strong>em</strong> nova<br />
roupag<strong>em</strong> e criações.<br />
No entanto, a autoficção encontra-se pouco trabalha<strong>da</strong> no que diz respeito a<br />
reflexões teóricas, e principalmente no que diz respeito a t<strong>em</strong>as fun<strong>da</strong>mentais sobre<br />
análise <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória <strong>de</strong> pessoas que passaram por experiência <strong>de</strong> violência que,<br />
mesmo sendo ficção, são escritas a partir <strong>de</strong> fatos r<strong>ea</strong>is, <strong>de</strong> m<strong>em</strong>órias existentes,<br />
que foram vividos por seus autores, ficando evi<strong>de</strong>nte que um el<strong>em</strong>ento recebe<br />
<strong>de</strong>staque no processo <strong>da</strong> escrita autoficcional: a m<strong>em</strong>ória recupera o que ficou preso<br />
no passado, retirando-o do esquecimento, trazendo-o ao presente e misturando-o à<br />
ficção.<br />
Antes <strong>de</strong> tudo, a m<strong>em</strong>ória i<strong>de</strong>ntifica a ausência com a promessa <strong>de</strong><br />
preenchê-la, mas esse enchimento está vinculado a interesses <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />
l<strong>em</strong>bra. (RAMOS, 2006, p. 12).<br />
Esse é o caso do romance aqui analisado. Pod<strong>em</strong>os supor que são as<br />
m<strong>em</strong>órias do autor Dai Sijie que contribu<strong>em</strong> para a construção <strong>de</strong> todo o cenário<br />
m<strong>em</strong>orialístico <strong>da</strong> montanha <strong>da</strong> Fênix Celestial, atribu<strong>em</strong> papéis aos personagens,<br />
<strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> as tramas <strong>de</strong> forma seletiva, <strong>de</strong> acordo com seus interesses no<br />
momento <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> obra.<br />
A aproximação entre o texto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e o texto <strong>da</strong> obra se faz evi<strong>de</strong>nte, pois a<br />
narrativa compõe um painel fragmentado do período <strong>de</strong> reeducação cultural vivido<br />
pelo escritor Dai Sijie, fazendo constantes alusões ao mundo oci<strong>de</strong>ntal e oriental<br />
constitutivos <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural, principalmente a partir <strong>da</strong> França – que no<br />
romance aparece nos textos literários - e a China.<br />
Em Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, o enredo se fixa entre o r<strong>ea</strong>l e o<br />
ficcional. O leitor se questiona: ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ou invenção? Isso se reforça quando<br />
analisamos a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> que se apresenta na falta do nome do narrador e na<br />
nom<strong>ea</strong>ção <strong>da</strong> personag<strong>em</strong> Costureirinha. Nenhum dos dois é nom<strong>ea</strong>do e não há<br />
nenhuma i<strong>de</strong>ntificação explícita para que façamos uma relação entre autor e<br />
personag<strong>em</strong>. O que t<strong>em</strong>os são el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> r<strong>ea</strong>l que, ao aproximarmos com a<br />
vi<strong>da</strong> dos personagens e o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, nos auxilia a <strong>de</strong>duzir que a<br />
personag<strong>em</strong> Costureirinha – que talvez não seja nom<strong>ea</strong><strong>da</strong> proposita<strong>da</strong>mente – é<br />
aquela mais correspon<strong>de</strong>nte ao autor, por ter a vi<strong>da</strong> ritma<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong> pela<br />
literatura.<br />
44
Consi<strong>de</strong>rando o romance <strong>em</strong> questão como uma narrativa <strong>de</strong> caráter<br />
m<strong>em</strong>orial, test<strong>em</strong>unhal e autoficcional, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os atentar para o que Michael Pollak<br />
afirma sobre m<strong>em</strong>ória e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social:<br />
A m<strong>em</strong>ória é seletiva. N<strong>em</strong> tudo fica gravado. N<strong>em</strong> tudo fica registrado. A<br />
m<strong>em</strong>ória é, <strong>em</strong> parte, her<strong>da</strong><strong>da</strong>, não se refere apenas à vi<strong>da</strong> física <strong>da</strong><br />
pessoa. A m<strong>em</strong>ória também sofre flutuações que são função do momento<br />
<strong>em</strong> que ela é articula<strong>da</strong>, <strong>em</strong> que ela está sendo expressa. As<br />
preocupações do momento constitu<strong>em</strong> um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> estruturação <strong>da</strong><br />
m<strong>em</strong>ória. Isso é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> também <strong>em</strong> relação à m<strong>em</strong>ória coletiva, ain<strong>da</strong><br />
que esta seja b<strong>em</strong> mais organiza<strong>da</strong>. (POLLAK, 1992, p.200)<br />
As questões <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> representação <strong>de</strong> qualquer evento<br />
vivenciado, assim como os limites <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, são fun<strong>da</strong>mentais quando li<strong>da</strong>mos<br />
com escritos autoficcionais. Ou seja, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os refletir sobre até que ponto a<br />
m<strong>em</strong>ória fragmenta<strong>da</strong> <strong>de</strong> alguém, igualmente fragmenta<strong>da</strong> pela violência vivi<strong>da</strong> no<br />
momento <strong>de</strong> reeducação durante a Revolução Cultural na China – no caso do<br />
romance aqui <strong>em</strong> questão - consegue <strong>da</strong>r forma a essa experiência nos seus<br />
test<strong>em</strong>unhos e ser tão fiel aos fatos r<strong>ea</strong>is, porque, como nos aponta Pierre Nora:<br />
Os Lugares <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória nasc<strong>em</strong> e viv<strong>em</strong> do sentimento <strong>de</strong> que não há<br />
m<strong>em</strong>ória espontân<strong>ea</strong>, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter<br />
aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notoriar<br />
atas, porque essas operações são naturais. É por isso que a <strong>de</strong>fesa, pelas<br />
minorias, <strong>de</strong> uma m<strong>em</strong>ória refugia<strong>da</strong> sobre focos privilegiados e<br />
enciuma<strong>da</strong>mente guar<strong>da</strong>dos na<strong>da</strong> mais faz do que levar à<br />
incan<strong>de</strong>scendência a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os lugares <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória.<br />
(NORA, 1993, p.13)<br />
Também é importante pensarmos sobre como essa m<strong>em</strong>ória ain<strong>da</strong> habita o<br />
presente entre o esquecimento e o silêncio, impostos ou não. Pois mesmo estando<br />
t<strong>em</strong>poralmente vivenciando o momento posterior, não pod<strong>em</strong>os tomar isso como<br />
algo já superado e encerrado, pois suas representações são constantes, seja no<br />
esquecimento ou não. É exatamente nesse momento posterior que se encontra<br />
nosso escritor, ao contar suas histórias durante a reeducação. Muitas foram as<br />
l<strong>em</strong>branças que o marcaram profun<strong>da</strong>mente: “N<strong>em</strong> mesmo o passar dos anos me<br />
fez esquecer um acontecimento <strong>da</strong>quela época que me ficou gravado com<br />
excepcional niti<strong>de</strong>z.” (SIJIE, 2000, p. 95) Outras informações eram trazi<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
m<strong>em</strong>ória com um certo esforço, muitas vezes não sendo l<strong>em</strong>bra<strong>da</strong>s.<br />
45
Na obra Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, Dai Sijie, certamente, reconstrói os<br />
discursos <strong>de</strong> sua m<strong>em</strong>ória que se formam pela manipulação, falsificação,<br />
reconfiguração consciente ou inconsciente do passado. A relação com o passado,<br />
com a m<strong>em</strong>ória, e com a própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> também se interliga aos espaços<br />
urbanos, que são a preferência do narrador-personag<strong>em</strong> e <strong>de</strong> seu amigo Luo.<br />
Como afirma Sandra Pesavento (2002, p. 122), a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é o lugar on<strong>de</strong> os<br />
sujeitos constro<strong>em</strong> as suas relações sociais, materializam articulações e <strong>em</strong>bates<br />
<strong>em</strong> diferentes grupos. Além disso, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se manifesta uma forma varia<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
discursos e olhares que se completam, se compõ<strong>em</strong> e entram <strong>em</strong> contradição:<br />
[...]esse espaço [a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>] sonhado, <strong>de</strong>sejado, trabalhado e/ou imposto<br />
[pelos sujeitos históricos] é, por sua vez, também reformulado, vivido e<br />
<strong>de</strong>scaracterizado pelos habitantes <strong>da</strong> urbe, que, a seu turno, o requalificam<br />
e lhe confer<strong>em</strong> novos sentidos. (PESAVENTO, 2002, p.122)<br />
Ao se distanciar<strong>em</strong> dos centros urbanos para ser<strong>em</strong> reeducados nos campos<br />
<strong>de</strong> trabalhos, Luo e o narrador ve<strong>em</strong> a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> como espaço <strong>de</strong> integração social,<br />
on<strong>de</strong> não são vistos e n<strong>em</strong> tachados como simples reeducandos. É no centro<br />
urbano <strong>de</strong> Chengtu que os dois jovens tornam-se anônimos <strong>em</strong> meio à multidão, se<br />
aproveitando dos múltiplos discursos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, como por ex<strong>em</strong>plo: discurso<br />
cin<strong>em</strong>atográfico, político e social, somando-os a leituras dos textos literários e<br />
utilizando-os como subsídios para a inserção <strong>de</strong> novos valores aos montanheses.<br />
No livro M<strong>em</strong>ória Coletiva (1990), Maurice Habwachs afirma que to<strong>da</strong><br />
m<strong>em</strong>ória é social. Para o autor, nossas l<strong>em</strong>branças s<strong>em</strong>pre têm relação com o meio<br />
social <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os. Ele ressalta que a construção <strong>de</strong>ssa m<strong>em</strong>ória é pessoal e<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong>s nossas relações com a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, tanto no passado quanto no<br />
presente. Segundo Myrian Sepúlve<strong>da</strong> dos Santos:<br />
Se passarmos a compreen<strong>de</strong>r que nossas l<strong>em</strong>branças se relacionam a<br />
quadros sociais mais amplos, compreen<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os também que o passado<br />
só aparece a nós a partir <strong>de</strong> estruturas ou configurações sociais do<br />
presente, e que m<strong>em</strong>órias, <strong>em</strong>bora pareçam ser exclusivamente<br />
individuais, são peças <strong>de</strong> um contexto social que não só nos contém como<br />
é anterior a nós mesmos. (SANTOS, 1998, p.134)<br />
Portanto, assim como o narrador conta a história algum t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-la<br />
vivenciado, Dai Sijie escreve seu romance <strong>em</strong> 2000. Muito mais tar<strong>de</strong>, após vinte e<br />
seis anos <strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> sua reeducação, ele experimenta a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
46
cont<strong>em</strong>plar o período <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> que teve no passado, relacionando as peças <strong>de</strong><br />
um contexto social complexo com sua m<strong>em</strong>ória individual. Essa cont<strong>em</strong>plação já é<br />
feita com um novo olhar, pois <strong>em</strong> 1984, Dai Sijie ganha uma bolsa <strong>de</strong> estudos na<br />
França e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, fica permanent<strong>em</strong>ente lá. É enquanto escritor capaz <strong>de</strong><br />
recuperar as histórias passa<strong>da</strong>s na China que ele conseguirá fazer a travessia entre<br />
duas línguas, entre dois espaços culturais, entre oriente e oci<strong>de</strong>nte, escrevendo seu<br />
romance na língua francesa. É graças à imigração para a França, ao entre-lugar 34 e<br />
à língua que lhe é assegurado o ir e vir criativo, s<strong>em</strong> censuras entre as duas<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os dois mundos.<br />
Eu vivi mais <strong>de</strong> quinze anos na França, mas minhas raízes estão na China.<br />
Minhas dores, elas, estão <strong>em</strong> mim. (Parcours Littéraires Francophones) 35 .<br />
É através <strong>da</strong>s suas raízes fixa<strong>da</strong>s na China que surge o sentimento <strong>de</strong> dor<br />
sentido por Dai Sijie, mas, somente com a presença <strong>de</strong> uma língua estrangeira – a<br />
língua francesa –, que ele consegue exteriorizar tais sofrimentos e l<strong>em</strong>branças que<br />
não po<strong>de</strong>riam ser recupera<strong>da</strong>s <strong>em</strong> man<strong>da</strong>rim, pelo fato <strong>da</strong> língua não ser neutra e<br />
ser investi<strong>da</strong> <strong>de</strong> todo um contexto social, político, econômico e cultural. É na língua<br />
do outro que o autor ganha o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar e <strong>da</strong>r voz a m<strong>em</strong>órias que seriam<br />
censura<strong>da</strong>s <strong>em</strong> sua língua materna, pois <strong>de</strong>nunciam formas <strong>de</strong> violência até há<br />
pouco existentes na China. Portanto, a língua também se torna instrumento <strong>de</strong><br />
libertação.<br />
Por outro lado, não é <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Dai Sijie, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> outros escritores que se<br />
encontram <strong>em</strong> situação s<strong>em</strong>elhante, como : escritores expatriados, exilados e<br />
migrantes, trair sua cultura <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>. No caso <strong>de</strong> Dai Sijie, é a partir <strong>de</strong> sua primeira<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, que o escritor cria seu test<strong>em</strong>unho <strong>em</strong> <strong>torno</strong> dos acontecimentos<br />
ocorridos na Montanha Fênix Celestial. A imponente montanha distante <strong>da</strong><br />
civilização e reduto <strong>da</strong> ignorância humana é apresenta<strong>da</strong> ao mundo, ganhando<br />
status <strong>de</strong> monumento. Segundo o historiador Jacques Le Goff:<br />
34 Situação <strong>de</strong> entre-lugar; entre Oriente e Oci<strong>de</strong>nte, pois Dai Sijie <strong>em</strong>igra <strong>da</strong> China fixando residência<br />
na França e passa a conviver entre duas culturas, duas línguas.<br />
35 J’ai vécu plus <strong>de</strong> quinze ans en France, mais mes racines sont en Chine. Mes douleurs, elles, sont<br />
en moi. (A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>)<br />
Retirado <strong>em</strong> 30 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2009 <strong>de</strong> http://crdp.acparis.fr/parcours/in<strong>de</strong>x.php/category/<strong>da</strong>i<br />
47
O monumento t<strong>em</strong> como característica o ligar-se ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> perpetuação,<br />
voluntária ou involuntária, <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s históricas (é um legado à<br />
m<strong>em</strong>ória coletiva) e o reenviar a test<strong>em</strong>unhos que só numa parcela mínima<br />
são test<strong>em</strong>unhos escritos. (LE GOFF, 2003 p.526)<br />
Perceb<strong>em</strong>os que o gran<strong>de</strong> elo entre passado e presente, entre m<strong>em</strong>ória e<br />
esquecimento está entre esses dois mundos: o vivido no t<strong>em</strong>po presente e o<br />
r<strong>ea</strong>vivado nos test<strong>em</strong>unhos escritos. Ao r<strong>ea</strong>lizar um texto a partir <strong>da</strong>s experiências e<br />
dos conhecimentos adquiridos <strong>em</strong> uma outra cultura (no caso a francesa), Dai Sijie<br />
abor<strong>da</strong> os acontecimentos durante a Revolução Cultural com novos olhos. Os dois<br />
jovens <strong>de</strong>sejosos <strong>da</strong>s leituras oci<strong>de</strong>ntais, os nomes dos escritores oci<strong>de</strong>ntais citados<br />
ao longo do romance, as transformações sofri<strong>da</strong>s pelos personagens, as críticas<br />
feitas ao Presi<strong>de</strong>nte Mao Tse Tung e sua nova campanha, nos apontam para um<br />
escritor chinês que teve seu olhar filtrado pela cultural oci<strong>de</strong>ntal.<br />
O Grupo M<strong>em</strong>ória Popular (2004, p. 286) alerta para o fato <strong>de</strong> que “[...] a<br />
m<strong>em</strong>ória é [...] um termo que chama a nossa atenção não para o passado, mas para<br />
a relação passado-presente. É porque o ‘passado’ t<strong>em</strong> esta existência ativa no<br />
presente que é tão importante politicamente”<br />
Além disso, <strong>de</strong> acordo com François Dosse (2000, p. 290), a m<strong>em</strong>ória<br />
estabelece espaços <strong>de</strong> diálogo com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> social e como significado <strong>da</strong>do ao<br />
passado. Vivendo na França por muitos anos, o olhar do escritor também é<br />
transformado. Ele se torna um autor imigrante que observa sua cultura <strong>de</strong> orig<strong>em</strong><br />
numa outra posição. A partir <strong>de</strong>ste novo ângulo, o olhar se torna estrangeiro sobre a<br />
sua própria cultura, a m<strong>em</strong>ória é revesti<strong>da</strong> por outros el<strong>em</strong>entos culturais exógenos<br />
ao momento <strong>em</strong> que os fatos foram vividos e o presente <strong>em</strong>bute novos valores que<br />
são inseridos nos momentos <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brança.<br />
Segundo Edward Said:<br />
Ver ‘o mundo inteiro como uma terra estrangeira’ possibilita a originali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> visão. A maioria <strong>da</strong>s pessoas t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> uma cultura, um<br />
cenário, um país; Os exilados têm consciência <strong>de</strong> pelo menos dois <strong>de</strong>stes<br />
aspectos, e esta plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> visão dá orig<strong>em</strong> a uma consciência <strong>de</strong><br />
dimensões simultân<strong>ea</strong>s [...] (SAID 2003, p.59)<br />
Utilizando as informações trazi<strong>da</strong>s pelo autor Edward Said sobre a experiência<br />
dos exilados, entend<strong>em</strong>os que tais sentimentos e condições são equivalentes para<br />
os indivíduos migrantes. No distanciamento <strong>da</strong> China, Dai Sijie entra <strong>em</strong> contato<br />
com um novo mundo, com novas i<strong>de</strong>ologias e diferentes modos <strong>de</strong> pensar. É a<br />
48
leitura <strong>de</strong>sses outros mundos e o afastamento do seu país que o aju<strong>da</strong>m a criar<br />
capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber todos os pontos negativos <strong>da</strong> cultura na China. O mesmo<br />
se passa com os personagens do romance criado por ele. Luo, o narrador e a<br />
Costureirinha só começam a questionar o mundo <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong> a partir <strong>da</strong>s leituras<br />
dos romances oci<strong>de</strong>ntais que lhe abr<strong>em</strong> os olhos. E, por que não po<strong>de</strong>ríamos<br />
afirmar que Dai Sijie também teve seus olhos abertos a partir <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong>sses<br />
mesmos livros entre outros?<br />
Pensando no jogo <strong>de</strong> leituras que se forma no romance Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, possivelmente as leituras feitas pelos personagens também<br />
foram feitas por Dai Sijie num momento anterior à escrita <strong>de</strong> seu livro. Assim,<br />
conseguimos evi<strong>de</strong>nciar as primeiras leituras que formam um jogo <strong>de</strong> encaixe com<br />
a existência <strong>da</strong>s outras múltiplas leituras. Essas primeiras leituras dos textos<br />
literários oci<strong>de</strong>ntais se entrelaçam às leituras r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s pelos próprios<br />
personagens do romance. Com a apropriação <strong>de</strong> tais textos por parte do escritor e<br />
dos personagens, surg<strong>em</strong> as narrativas feitas pelos contadores <strong>de</strong> histórias que se<br />
constitu<strong>em</strong> <strong>em</strong> novas leituras feitas pelos al<strong>de</strong>ões montanheses. A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
escrever um novo texto que dialogue com textos já lidos faz parte dos passos<br />
percorridos pelos leitores após estes se apropriar<strong>em</strong> do texto lido através do ato <strong>da</strong><br />
leitura, tornando-o seu texto, valendo-se <strong>de</strong> sua bagag<strong>em</strong> social, histórica e<br />
cultural.<br />
Nesse enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> leituras t<strong>em</strong>os ain<strong>da</strong> a releitura 36 , após dois anos,<br />
do romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, feita pelo próprio escritor. O <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar outras pessoas, que encontramos nos dois jovens amigos, também é<br />
encontrado como intenção do próprio escritor. Com a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ver, ler a<br />
China com um outro olhar e criticá-la, o escritor se posiciona politicamente na<br />
confecção <strong>de</strong> sua obra, pois ele <strong>de</strong>precia a i<strong>de</strong>ologia socialista <strong>chinesa</strong> ao exaltar o<br />
estilo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> burguesa (capitalista) oitocentista e por a reeducação <strong>chinesa</strong> como<br />
algo intelectualmente nocivo para seus conterrâneos. Aqui, entend<strong>em</strong>os que a<br />
nocivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é percebi<strong>da</strong> a partir do novo olhar construído por Dai Sijie enquanto<br />
escritor francês <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> <strong>chinesa</strong>; é o olhar estrangeiro que o faz não só<br />
<strong>de</strong>screver suas m<strong>em</strong>órias e o t<strong>em</strong>po passado num outro lugar, mas também abrir<br />
36 Cf. cap. 2.<br />
49
novas portas. “[...] il est évi<strong>de</strong>nt que la re<strong>de</strong>scription d’un mon<strong>de</strong> est l’étape<br />
nécessaire qui mène à sa transformation.” (1993, p. 24)<br />
Seu livro, publicado <strong>em</strong> 2000, entra <strong>em</strong> contato com gran<strong>de</strong> parte do mundo<br />
oci<strong>de</strong>ntal. Entretanto, somente <strong>em</strong> 2003 o livro t<strong>em</strong> sua tradução para o man<strong>da</strong>rim<br />
e Daí Sijie se aproxima <strong>da</strong>s pessoas que se encontravam na mesma posição que a<br />
<strong>de</strong>le, antes do distanciamento <strong>de</strong> seu país e, por soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> aos que ficaram<br />
pela China, relata as visões <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> também participa <strong>da</strong>quela cultura, mas que a<br />
vê <strong>de</strong> um outro lugar.<br />
Dessa forma, seu romance também po<strong>de</strong> ser el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> transformação.<br />
Assim como os livros <strong>de</strong> Balzac e outros escritores conseguiram transformar muitos<br />
personagens, o do escritor Dai Sijie também po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong><br />
um instrumento <strong>de</strong> transformação para aqueles que não <strong>de</strong>scobriram que suas vi<strong>da</strong>s<br />
pertenc<strong>em</strong> a algo muito maior que a vi<strong>da</strong> na China comunista, seja nos centros<br />
urbanos ou nas al<strong>de</strong>ias montanhosas.<br />
50
3 ENTRE O LEITOR E O ESPECTADOR<br />
51<br />
Assim do livro ao filme não sinto que alguma coisa <strong>de</strong><br />
fun<strong>da</strong>mental se per<strong>de</strong>sse para a intenção com que o<br />
r<strong>ea</strong>lizei - como sinto que alguma coisa <strong>de</strong> novo se criou<br />
para lá <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> <strong>em</strong> que se transfigura.<br />
Vergílio Ferreira<br />
Embora o romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> tenha chegado à China<br />
apenas no ano <strong>de</strong> 2003, ou seja, três anos após sua publicação, pod<strong>em</strong>os supor que<br />
alguns chineses já conheciam aquele enredo que seria apresentado no livro. Isso se<br />
explica porque, <strong>em</strong> 2002, Dai Sijie apresenta uma releitura <strong>de</strong> sua obra para o<br />
cin<strong>em</strong>a. Falamos <strong>em</strong> releitura, porque mesmo as obras literárias já têm orig<strong>em</strong> numa<br />
<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> leitura que o próprio autor faz do mundo, pois segundo Iser:<br />
O texto literário se origina <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>ção <strong>de</strong> um autor ao mundo e ganha o<br />
caráter <strong>de</strong> acontecimento à medi<strong>da</strong> que traz uma perspectiva para o mundo<br />
presente que não está nele conti<strong>da</strong>. Mesmo quando um texto literário não<br />
faz senão copiar o mundo presente, sua repetição no texto já o altera, pois<br />
repetir a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista já é excedê-la.<br />
(ISER, 1996, p.11)<br />
Nesse âmbito, o texto se mostra como processo, não se fechando apenas na<br />
r<strong>ea</strong>ção do autor ao mundo, nas seleções e combinações feitas por este, mas<br />
<strong>de</strong>v<strong>em</strong>os entendê-lo como um processo integral que parte <strong>da</strong> leitura do mundo feita<br />
pelo autor, chegando aos efeitos causados no leitor. Esta última s<strong>em</strong>pre acarreta
modificações à etapa que a prece<strong>de</strong>u, ou seja, no texto já produzido pelo autor<br />
inser<strong>em</strong>-se pontos <strong>de</strong> vista do escritor, e, ao passar pelas experiências do leitor, a<br />
perspectiva já é outra. Chegando ao ponto <strong>de</strong>, como afirma Dai Sijie <strong>em</strong> entrevista<br />
concedi<strong>da</strong> para a parte <strong>de</strong> extras do DVD <strong>de</strong> seu filme, mesmo sendo uma história<br />
que já conhec<strong>em</strong>os muito b<strong>em</strong>, uma vez que terminamos escrever ou ro<strong>da</strong>r um filme<br />
e v<strong>em</strong>os a cena a distância, parece ser a história <strong>de</strong> outro. Isso, Dai Sijie <strong>de</strong>nomina<br />
<strong>de</strong> um efeito muito bizarro.<br />
Visualizamos esses aspectos no romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>.<br />
Num primeiro momento, recuperamos a obra a partir <strong>da</strong> leitura do mundo feita pelo<br />
escritor Dai Sijie. V<strong>em</strong>os no texto as interpretações e imagens <strong>da</strong> China<br />
contrapondo-se com o Oci<strong>de</strong>nte mostrado apenas nos textos literários <strong>de</strong> autores,<br />
como: Balzac, Dumas, Flaubert, Bau<strong>de</strong>laire, Rouss<strong>ea</strong>u, Tostoi, Victor Hugo,<br />
Stendhal, Romain Rolland, Gogol, Dostoievski, Dickens, Kipling, Emily Bronte...<br />
Teriam esses autores sido citados ao acaso? O envolvimento dos<br />
personagens do romance com tais escritores através dos livros, nos mostra que Dai<br />
Sijie, antes <strong>de</strong> seus personagens, também foi leitor <strong>de</strong> todos os textos relacionados<br />
acima. Os efeitos causados <strong>em</strong> Luo, o narrador e a Costureirinha nos leva a crer<br />
que, antes <strong>de</strong> servir<strong>em</strong> <strong>de</strong> conteúdo para o romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong><br />
<strong>chinesa</strong>, foram instrumentos <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> um novo Dai Sijie. Nossa hipótese é<br />
confirma<strong>da</strong> pela seguinte confissão do próprio escritor <strong>em</strong> entrevista concedi<strong>da</strong> para<br />
Revue Delirium:<br />
Eu queria escrever um pequeno romance para homenag<strong>ea</strong>r a literatura que<br />
marcou minha vi<strong>da</strong>. Apenas r<strong>em</strong><strong>em</strong>oro as l<strong>em</strong>branças pelos livros. Ca<strong>da</strong><br />
período <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> é marca<strong>da</strong> por romances que li 37 .(Revue Delirium,<br />
agosto-set<strong>em</strong>bro, 2000)<br />
Ao afirmar que foi a literatura que ritmou sua vi<strong>da</strong>, Sijie nos confirma que o<br />
texto literário é capaz <strong>de</strong> intervir no mundo, nas estruturas sociais e na própria<br />
literatura, ativando um potencial reformulador e transformador <strong>da</strong>s obras literárias.<br />
Também <strong>em</strong> entrevista apresenta<strong>da</strong> na parte <strong>de</strong> extras do DVD do filme, o autor<br />
confirma que a literatura lhe <strong>de</strong>u os maiores prazeres, mais que o cin<strong>em</strong>a.<br />
37 Je tenais à écrire un petit roman pour rendre hommage à la littérature qui a rythmé ma vie. Je ne<br />
me r<strong>em</strong>émore les souvenirs que par les livres. Chaque pério<strong>de</strong> <strong>de</strong> ma vie est marquée par les romans<br />
que j’ai lus. (Revue Delirium août-sept<strong>em</strong>bre 2000 apud Parcours Littéraires Francophones.<br />
Disponível <strong>em</strong>: http://crdp.ac-paris.fr/parcours/in<strong>de</strong>x.php/category/<strong>da</strong>i. Acessado <strong>em</strong>: 20 junho 2009<br />
às 19h54) A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
52
Pensando no romance, centro <strong>de</strong> nossas análises, tais características <strong>da</strong><br />
literatura são abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> trama. A bagag<strong>em</strong> <strong>de</strong> leitura do escritor se<br />
entrelaça à dos três jovens personagens e o enredo nos aponta caminhos para se<br />
pensar uma nova China a partir <strong>da</strong>s leituras <strong>da</strong>s obras proibi<strong>da</strong>s, on<strong>de</strong> os atores<br />
sociais são colocados a refletir sobre seus papéis na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, s<strong>em</strong>pre diante <strong>da</strong><br />
leitura <strong>de</strong> um livro.<br />
Utilizando-nos <strong>da</strong>s palavras <strong>de</strong> Iser:<br />
Não consi<strong>de</strong>ramos o texto aqui como um documento sobre algo, que existe<br />
– seja qual for a sua forma -, mas sim como uma reformulação <strong>de</strong> uma<br />
r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> já formula<strong>da</strong>. Através <strong>de</strong>ssa reformulação advém algo ao mundo<br />
que antes nele não existia. (ISER, 1996, p.16)<br />
Compreend<strong>em</strong>os que as pr<strong>em</strong>issas e interesses do autor ganham espaço na<br />
elaboração <strong>de</strong> sua obra. Dessa mesma forma, no momento <strong>de</strong> leitura, acontece a<br />
interação entre texto e mundo extra-textual, surgindo assim a elaboração <strong>de</strong> um<br />
novo texto naquele que o recebe. Retomando o ex<strong>em</strong>plo do escritor Dai Sijie,<br />
observamos que, ao escrever o romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, o autor já<br />
imprime na narrativa seu modo <strong>de</strong> pensar, sua i<strong>de</strong>ologia, crenças e valores. Ao<br />
produzir o romance para o cin<strong>em</strong>a, surge um novo texto, pois Sijie já está numa<br />
outra posição – a <strong>de</strong> leitor -, a apreensão está num novo contexto, os interesses são<br />
outros e passamos <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>ção <strong>de</strong> um autor ao mundo para a r<strong>ea</strong>ção <strong>de</strong> um leitor ao<br />
texto. Por isso, o próprio autor e produtor, quando mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição para leitor, acha<br />
bizarro o efeito causado, <strong>da</strong>ndo a impressão que a obra é <strong>de</strong> outro.<br />
Vale aqui ressaltar que a sétima arte impulsiona a entra<strong>da</strong> do romance na<br />
China. Enquanto <strong>em</strong> muitos outros lugares do mundo, as pessoas já se encantavam<br />
e pr<strong>em</strong>iavam 38 Dai Sijie pela criação do romance, as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>chinesa</strong>s resistiram<br />
ao contato <strong>da</strong> população <strong>chinesa</strong> com a história que <strong>de</strong>nunciava a violência dos<br />
anos <strong>da</strong> Reeducação Cultural imposta por Mao Tse Tung e a pobreza física e<br />
intelectual, tal como a China é pinta<strong>da</strong> no livro e no filme. A resistência permaneceu<br />
com a versão cin<strong>em</strong>atográfica. Apesar <strong>da</strong> liberação para ro<strong>da</strong>r as filmagens <strong>em</strong><br />
território chinês, Dai Sijie sofreu com a proibição para exibir seu filme.<br />
38 Em 2000, Dai Sijie recebeu o prêmio Roland <strong>de</strong> Jouvenel e o prêmio Relay.<br />
53
Segundo o próprio escritor e produtor, a explicação para tanta censura não<br />
estaria <strong>em</strong> falar sobre a reeducação cultural, mas, sim, <strong>em</strong> mostrar a transformação<br />
<strong>de</strong> um indivíduo a partir <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> textos literários oci<strong>de</strong>ntais.<br />
Não é que eu tenha tocado na Revolução Cultural.<br />
Eles não aceitam que a literatura oci<strong>de</strong>ntal po<strong>de</strong>ria mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong> uma menina<br />
<strong>chinesa</strong>. Expliquei que a literatura clássica é um patrimônio universal, mas<br />
na<strong>da</strong> consegui. (RIDING, 2005) 39<br />
De acordo com ele, outro aspecto não tão ruim quanto o primeiro citado<br />
acima, mas que ajudou a censura <strong>chinesa</strong> a tomar a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> não liberar a<br />
exibição do filme, é o papel do chefe camponês que representa uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />
comunista <strong>de</strong> base e que no filme t<strong>em</strong> um ar idiota. Ele é facilmente enganado pelos<br />
dois amigos. Logo no primeiro momento <strong>da</strong> trama, os dois amigos já se mostram<br />
astuciosos. Ao perceber<strong>em</strong> a raiva do chefe pelo violino, que para ele era símbolo<br />
<strong>da</strong> burguesia, Luo explica que é um instrumento musical e pe<strong>de</strong> para que o amigo<br />
violinista toque uma canção, mais tar<strong>de</strong> intitula<strong>da</strong> <strong>de</strong> Mozart pensa no presi<strong>de</strong>nte<br />
Mao. Ao examinar o objeto <strong>de</strong>sconhecido, o chefe afirma:<br />
_ É um brinquedo burguês, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Gelei apesar do fogo aceso no meio <strong>da</strong> sala. Ouvi o chefe acrescentar:<br />
_É preciso queimá-lo!<br />
A ord<strong>em</strong> provocou <strong>de</strong> imediato forte r<strong>ea</strong>ção no grupo. Todos falavam,<br />
gritavam, <strong>em</strong>purravam-se. Queriam agarrar o “brinquedo” só pelo simples<br />
prazer <strong>de</strong> atirá-lo ao fogo com as próprias mãos.<br />
_Chefe, isso é um instrumento musical – disse Luo com <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraço.<br />
_Meu amigo é um bom músico, s<strong>em</strong> brinca<strong>de</strong>ira.<br />
O chefe pegou <strong>de</strong> novo o violino e, mais uma vez, o revistou para, <strong>em</strong><br />
segui<strong>da</strong>, <strong>de</strong>volvê-lo a mim. (...)<br />
De repente, percebi que Luo me fazia um sinal. Espantado, peguei o violino<br />
e comecei o afiná-lo.<br />
_Vocês vão ouvir uma sonata <strong>de</strong> Mozart, chefe – anunciou Luo, tão<br />
tranqüilo quanto estivera antes.<br />
Fiquei aturdido. Ele estava doido. Há anos to<strong>da</strong>s as obras <strong>de</strong> Mozart, assim<br />
como a <strong>de</strong> qualquer outro autor oci<strong>de</strong>ntal, estavam proibi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> todo o<br />
país.(...)<br />
_Como é que se chama essa canção?<br />
(...)<br />
_Mozart... – hesitei.<br />
(...)<br />
_Mozart pensa no presi<strong>de</strong>nte Mao – completou Luo <strong>em</strong> meu lugar. (SIJIE,<br />
2000, p.6 – 7)<br />
39 It wasn't that I touched the Cultural Revolution. They did not accept that Western literature could<br />
change a Chinese girl. I explained that classical literature is a universal heritage, but to no avail.<br />
(RIDING, Alan, Artistic Odyssey: Film to Fiction to Film. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.nytimes.com/2005/07/27/movies/MoviesF<strong>ea</strong>tures/27balz.html Acessado <strong>em</strong>: 04 julho 2009.<br />
A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
54
A mesma cena se repete no filme, mostrando a facili<strong>da</strong><strong>de</strong> que os dois rapazes<br />
têm <strong>de</strong> burlar as regras <strong>da</strong> reeducação e passar o chefe para trás.<br />
_O que é isso, chefe?<br />
_Um brinquedo. Isso é um brinquedo.<br />
55<br />
_Não é um brinquedo, chefe.<br />
_É um instrumento musical. É chamado <strong>de</strong><br />
violino. T<strong>em</strong> um lindo som. Ma toca muito b<strong>em</strong>. Ele lhe<br />
mostrará.<br />
(...)<br />
_Po<strong>de</strong> tocar uma sonata <strong>de</strong> Mozart para o chefe?<br />
_O que é uma sonata?
56<br />
_É uma canção...uma canção montanhesa –<br />
respon<strong>de</strong>u Luo<br />
(...)<br />
_Mozart está pensando no presi<strong>de</strong>nte Mao.<br />
Essa é uma <strong>da</strong>s muitas cenas literárias e cin<strong>em</strong>atográficas que retratam o<br />
chefe como uma pessoa ignorante e facilmente engana<strong>da</strong>, como, por ex<strong>em</strong>plo, o dia<br />
<strong>em</strong> que os dois amigos, não querendo acor<strong>da</strong>r tão cedo para o trabalho, <strong>de</strong>cid<strong>em</strong><br />
atrasar o relógio, ou para acabar<strong>em</strong> com o dia <strong>de</strong> trabalho mais cedo, adiantam a<br />
hora s<strong>em</strong> que o chefe percebesse.<br />
Um dia, <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>, só <strong>de</strong> pensar nos bal<strong>de</strong>s que nos esperavam,<br />
perd<strong>em</strong>os a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos levantar. (...) Luo teve uma idéia genial. Com o<br />
<strong>de</strong>do mindinho girou os ponteiros do <strong>de</strong>spertador <strong>em</strong> sentido contrário,<br />
fazendo-os retroce<strong>de</strong>r uma hora. Então, voltamos a dormir. Como foi<br />
agradável aquela manhã! Tanto mais que sabíamos que o chefe esperava<br />
do lado <strong>de</strong> fora, an<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> um lado para o outro, fumando seu longo<br />
cachimbo <strong>de</strong> bambu. (SIJIE, 2000, p. 16)
_São 7 horas. O dia acabou.<br />
_Terminamos. Vamos <strong>em</strong>bora!<br />
Fazer o filme, porém, contribuiu para que, mesmo s<strong>em</strong> permissão <strong>da</strong>s<br />
autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>chinesa</strong>s, muitos jovens foss<strong>em</strong> espectadores <strong>de</strong> tantas mu<strong>da</strong>nças<br />
proporciona<strong>da</strong>s pela leitura. Isso foi possível graças a uma outra fama <strong>da</strong> cultura<br />
<strong>chinesa</strong>: maior país fabricante <strong>de</strong> produtos falsificados. Após o romance Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> ganhar sua versão para as telas, a mesma passou a ocupar as<br />
estantes <strong>da</strong>s lojas <strong>de</strong> DVD’s piratas. Segundo matéria do Jornal Folha <strong>de</strong> São Paulo:<br />
A pirataria é algo institucionalizado na China.<br />
As lojas <strong>de</strong> DVDs po<strong>de</strong>riam ser confundi<strong>da</strong>s com negócios que oferec<strong>em</strong><br />
produtos legítimos, não fosse pelo preço que cobram. Os títulos são<br />
57
dispostos <strong>em</strong> estantes e normalmente divididos por gênero. To<strong>da</strong>s as<br />
séries <strong>de</strong> sucesso norte-americanas, <strong>de</strong> "Friends" a "Six Feet Un<strong>de</strong>r",<br />
pod<strong>em</strong> ser encontra<strong>da</strong>s. Nenhuma <strong>de</strong>las é transmiti<strong>da</strong> pela TV local e a<br />
maioria não passaria pela rigorosa censura <strong>chinesa</strong>, mas são acessíveis a<br />
qualquer jov<strong>em</strong> do país. (TREVISAN, 2005) 40<br />
A postura <strong>de</strong> censura ti<strong>da</strong> pelo governo chinês não torna a obra inacessível<br />
aos chineses, assim como não conseguiu, nos t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> reeducação, bloqu<strong>ea</strong>r o<br />
acesso dos jovens personagens aos romances oci<strong>de</strong>ntais. A on<strong>da</strong> <strong>de</strong> vigia que se<br />
constitui até hoje no país não obtém êxito ao proibir completamente a veiculação <strong>da</strong>s<br />
obras censura<strong>da</strong>s, porque mesmo pressiona<strong>da</strong> pelos países <strong>de</strong>senvolvidos a<br />
combater a pirataria, a indústria <strong>em</strong>prega milhares <strong>de</strong> chineses <strong>de</strong>ntro do país e<br />
movimenta muito dinheiro. Diante <strong>de</strong>sse impasse, o governo tolera a pirataria, mas<br />
adota um discurso oficial <strong>de</strong> reprovação <strong>da</strong> prática. Com isso muitas obras<br />
“proibi<strong>da</strong>s” circulam pela China, incluindo a <strong>de</strong> Dai Sijie.<br />
No dia 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2003, o jornal chinês Quotidien du Peuple anuncia que<br />
o romance seria traduzido para a língua <strong>chinesa</strong>. Mas, uma nova censura é imposta.<br />
Na versão <strong>chinesa</strong>, o tradutor <strong>em</strong>itiu algumas reservas sobre o interesse<br />
pelas obras francesas que alimentaram os reeducados. (cf. NRP hors-série<br />
n°6 janvier 2006, p. 3). Alguns romances fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> literatura <strong>chinesa</strong><br />
serão, assim, adicionados à mala dos escritores oci<strong>de</strong>ntais (Parcours<br />
littéraires francophones) 41<br />
Assim, o romance sofre uma nova releitura com a tradução para o chinês. O<br />
tradutor não só traduz o romance, mas faz com que a história tome novos formatos,<br />
criando um outro texto, transpondo, transformando.<br />
natureza positiva <strong>da</strong> aventura dos reeducados (as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos<br />
reeducados e dos al<strong>de</strong>ões são ignorados). A coexistência <strong>da</strong>s culturas<br />
<strong>chinesa</strong> e oci<strong>de</strong>ntal também é visto como positiva, s<strong>em</strong> qualquer menção<br />
40<br />
Disponível <strong>em</strong>: http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/retratos<strong>da</strong>china/ult2830u8.shtml<br />
Acessado <strong>em</strong> 09 julho 2009 às 13h20.<br />
41<br />
Dans la version chinoise, le traducteur émet quelques réserves sur l’intérêt <strong>de</strong>s œuvres françaises<br />
dont se sont repus les rééduqués (cf. NRP hors-série n°6 janvier 2006, p. 3). Certains romans<br />
fon<strong>da</strong>teurs <strong>de</strong> la littérature chinoise seront ainsi « ajoutés » <strong>da</strong>ns la valise aux auteurs occi<strong>de</strong>ntaux.<br />
Parcours Littéraires Francophones. Disponível <strong>em</strong>: http://crdp.acparis.fr/parcours/in<strong>de</strong>x.php/category/<strong>da</strong>i.<br />
Acessado <strong>em</strong>: 20 junho 2009 às 19h54) A tradução é <strong>de</strong><br />
minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
58
ao caráter liberador que a leitura <strong>da</strong>s obras oci<strong>de</strong>ntais adquire nesta<br />
história 42 . (Parcours littéraires francophones)<br />
Dai Sijie parecia já saber que nunca po<strong>de</strong>ria escrever tudo que quisesse <strong>em</strong><br />
sua língua materna, e que a tarefa do tradutor seria muito árdua.<br />
Com algum dinheiro nos últimos três anos, sonhei que eu seria capaz <strong>de</strong><br />
escrever e viver na China ", disse ele," mas não funcionou. Os censores<br />
não aceitariam os meus livros, filmes ou projetos. Meu sonho <strong>de</strong> escrever<br />
na minha própria língua não foi r<strong>ea</strong>lizado. É muito triste. (RIDING, 2005) 43<br />
A partir <strong>de</strong>ssa certeza, é uma outra língua que vai tornar seu sonho r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
É <strong>de</strong> uma língua a outra que o escritor experimenta um exílio no coração <strong>da</strong><br />
linguag<strong>em</strong>. É na língua do outro que ele representa as tradições, as histórias, as<br />
paisagens do passado e o sofrimento <strong>de</strong> seu povo, mas é nessa mesma língua que<br />
t<strong>em</strong>os a representação do futuro, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> alegria. Então, a língua também<br />
aparece como ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque para a representação dos confrontos entre<br />
Oci<strong>de</strong>nte e Oriente.<br />
Numa análise entre a versão cin<strong>em</strong>atográfica feita <strong>em</strong> língua <strong>chinesa</strong> e a<br />
literária <strong>em</strong> francês, pod<strong>em</strong>os afirmar que elas pouco se diferenciam, porque<br />
apresentam mais afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s que dissonâncias. T<strong>em</strong>os as mesmas t<strong>em</strong>áticas do<br />
amor e <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong> entre os personagens Luo, o narrador e a Costureirinha; o difícil<br />
período <strong>da</strong> reeducação vivido pelos dois jovens amigos; o amigo quatro-olhos; a<br />
<strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> valise com as obras proibi<strong>da</strong>s; o sentimento <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> através <strong>da</strong><br />
leitura dos livros; a transformação <strong>da</strong>s personagens a partir <strong>da</strong>s narrações dos filmes<br />
e, principalmente, <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> textos literários; e a mu<strong>da</strong>nça e libertação <strong>da</strong><br />
personag<strong>em</strong> Costureirinha.<br />
42 caractère positif <strong>de</strong> l’aventure <strong>de</strong>s rééduqués (les difficultés <strong>de</strong> la vie <strong>de</strong>s rééduqués et <strong>de</strong>s paysans<br />
sont passées sous silence). La coexistence <strong>de</strong>s cultures chinoise et occi<strong>de</strong>ntale est égal<strong>em</strong>ent perçue<br />
comme positive, sans qu’il soit fait mention du caractère libératoire que la lecture <strong>de</strong>s œuvres<br />
occi<strong>de</strong>ntales revêt <strong>da</strong>ns cette histoire. Parcours Littéraires Francophones. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://crdp.ac-paris.fr/parcours/in<strong>de</strong>x.php/category/<strong>da</strong>i. Acessado <strong>em</strong>: 20 junho 2009 às 19h54) A<br />
tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
43 With some money over the last three y<strong>ea</strong>rs, I had a dr<strong>ea</strong>m that I would be able to write and live in<br />
China," he said, "but it hasn't worked out. The censors won't accept my books, films or projects. My<br />
dr<strong>ea</strong>m of writing in my own language has not been fulfilled. It is very sad. (RIDING, Alan, Artistic<br />
Odyssey: Film to Fiction to Film. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.nytimes.com/2005/07/27/movies/MoviesF<strong>ea</strong>tures/27balz.html Acessado <strong>em</strong>: 04 julho 2009.<br />
A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
59
Os personagens do livro estão quase todos presentes no filme. As <strong>de</strong>scrições<br />
<strong>de</strong> espaços e lugares apresenta<strong>da</strong>s no romance encontram-se fielmente<br />
representa<strong>da</strong>s no filme. Tanto o romance quanto o filme começam com a<br />
apresentação do primeiro dia <strong>de</strong> reeducação dos rapazes. Logo no início do livro<br />
somos apresentados ao chefe camponês e a inspeção <strong>da</strong>s bagagens dos jovens.<br />
O chefe <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia, hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> seus cinqüenta anos, sentado no chão b<strong>em</strong><br />
no meio do cômodo, perto do carvão que ardia num buraco escavado na<br />
terra, revistava meu violino. Na bagag<strong>em</strong> dos dois “rapazes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>” –<br />
pois assim eu e Luo fomos consi<strong>de</strong>rados -, aquele era o único objeto do<br />
qual <strong>em</strong>anava um sabor <strong>de</strong> estranho, um cheiro <strong>de</strong> civilização capaz <strong>de</strong><br />
provocar suspeita aos al<strong>de</strong>ões. Um camponês aproximou um can<strong>de</strong>eiro<br />
para facilitar a i<strong>de</strong>ntificação do objeto. (...) Quase to<strong>da</strong> a al<strong>de</strong>ia estava<br />
presente, <strong>de</strong>baixo <strong>da</strong>quela casa sobre pilotis, perdi<strong>da</strong> no alto <strong>da</strong> montanha.<br />
(...) _É um brinquedo – disse o chefe solen<strong>em</strong>ente. (...) _É um brinquedo<br />
idiota – disse uma mulher <strong>de</strong> voz rouca. _Não – corrigiu o chefe -, é um<br />
brinquedo burguês, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. (...) Ouvi o chefe acrescentar: _É preciso<br />
queimá-lo! (SIJIE, 2000, p. 5 – 6)<br />
Já no filme, a primeira cena evi<strong>de</strong>ncia a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso à montanha <strong>da</strong><br />
Fênix Celestial que, no livro, é relata<strong>da</strong> mais tar<strong>de</strong>.<br />
_Subi estas esca<strong>da</strong>s pela primeira vez <strong>em</strong> 1971.<br />
60<br />
_Eu e Luo an<strong>da</strong>mos dois dias...<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais próximas<br />
até as montanhas Fênix...local <strong>da</strong> nossa reeducação.
Conforme observamos nas figuras retira<strong>da</strong>s do próprio filme, o caminho a<br />
percorrer, apesar <strong>da</strong> beleza natural, é árduo, sendo longo e estreito. Todo o<br />
percurso dos dois amigos à reeducação é guiado por uma melodia suave cuja letra é<br />
a seguinte:<br />
Somos a guar<strong>da</strong> vermelha do presi<strong>de</strong>nte Mao<br />
Que veio <strong>da</strong>s estepes para a Praça Tiananmen<br />
Nossas ban<strong>de</strong>iras vermelhas como um mar <strong>em</strong> chamas<br />
Nossas canções revolucionárias<br />
Ecoam no céu<br />
Nosso gran<strong>de</strong> timoneiro, o presi<strong>de</strong>nte Mao, nos conduz<br />
Nosso amado e respeitado presi<strong>de</strong>nte Mao<br />
Sol vermelho <strong>de</strong> nossos corações<br />
O povo <strong>da</strong>s estepes oferece-lhe<br />
Todo o seu amor<br />
Conduza-nos s<strong>em</strong>pre para a frente.<br />
É importante atentarmos para o significado <strong>da</strong> trilha sonora <strong>em</strong> questão, pois,<br />
analisando a letra musical, parece-nos que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha uma função narrativa. O<br />
filme Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> inicia-se com esta narrativa. Nesse caso, a<br />
música no cin<strong>em</strong>a faz parte importante do universo cin<strong>em</strong>atográfico, servindo como<br />
ponto <strong>de</strong> referência para o momento histórico vivido. Além disso, segundo Simon<br />
Frith:<br />
(...)uma <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> música no cin<strong>em</strong>a é revelar nossas <strong>em</strong>oções como<br />
público(...) Os t<strong>em</strong>as musicais são assim importantes para representar a<br />
comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> (via musical marcial ou nacionalista, por ex<strong>em</strong>plo) tanto no<br />
filme quanto no público. O importante aqui é que como espectadores<br />
somos levados a nos i<strong>de</strong>ntificar não com os personagens do filme, mas<br />
com suas <strong>em</strong>oções, indica<strong>da</strong>s, principalmente pela música, que nos po<strong>de</strong><br />
oferecer a experiência <strong>em</strong>ocional diretamente. A música é fun<strong>da</strong>mental<br />
para o modo como o prazer do cin<strong>em</strong>a é ao mesmo t<strong>em</strong>po individualizado<br />
e compartilhado. (FRITH, 1986, p. 68-69)<br />
Ain<strong>da</strong> sobre as músicas escolhi<strong>da</strong>s para o filme Balzac e a <strong>costureirinha</strong><br />
<strong>chinesa</strong>, a marcha canta<strong>da</strong> para o presi<strong>de</strong>nte Mao é coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> oposição à sonata<br />
<strong>de</strong> Mozart. São as duas canções que serv<strong>em</strong> como trilha sonora, r<strong>em</strong>arcando ain<strong>da</strong><br />
mais a aproximação entre Oriente e Oci<strong>de</strong>nte, mesmo que <strong>de</strong> forma subversiva,<br />
pois, como alerta o personag<strong>em</strong> Ma: “Há anos to<strong>da</strong>s as obras <strong>de</strong> Mozart, assim<br />
como a <strong>de</strong> qualquer outro autor oci<strong>de</strong>ntal, estavam proibi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> todo o país.”<br />
61
A obsessão e a adoração pelo presi<strong>de</strong>nte Mao é percebi<strong>da</strong> a todo o momento.<br />
São muitas as cenas <strong>em</strong> que o cenário proletário apresenta a foto, pintura ou<br />
escultura do presi<strong>de</strong>nte. As imagens abaixo são uma pequena amostrag<strong>em</strong> <strong>de</strong> tal<br />
constatação.<br />
No romance, é <strong>da</strong>do espaço aos personagens para refletir<strong>em</strong> sobre a postura<br />
do presi<strong>de</strong>nte. As críticas estão mais explicitas no romance que no filme. Ao pensar<br />
sobre as atitu<strong>de</strong>s do presi<strong>de</strong>nte Mao, os dois jovens conclu<strong>em</strong>:<br />
A ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira razão que levou Mao Tsé-tung a tomar essa atitu<strong>de</strong><br />
permanece obscura. Estaria querendo acabar com a Guar<strong>da</strong> Vermelha que<br />
começava a escapar <strong>de</strong> seu controle? Ou se tratava apenas <strong>da</strong> fantasia <strong>de</strong><br />
um gran<strong>de</strong> sonhador revolucionário, <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> criar uma nova geração?<br />
Ninguém jamais soube respon<strong>de</strong>r a essa pergunta. Naquela época, eu e<br />
Luo muitas vezes discutimos secretamente o probl<strong>em</strong>a, como dois<br />
conspiradores. Nossa conclusão foi a seguinte: Mao odiava os intelectuais.<br />
(SIJIE, 2000, p. 8)<br />
62
Outra crítica feroz também é coloca<strong>da</strong> na fala <strong>da</strong> mãe <strong>de</strong> Quatro-olhos, mas<br />
com uma pita<strong>da</strong> <strong>de</strong> esperança que a situação mu<strong>de</strong>:<br />
_Eu sei. A situação do pai <strong>de</strong> Quatro-olhos é s<strong>em</strong>elhante. – (Abaixou a voz<br />
e começou a sussurrar.) _Mas não se preocupe. No momento, a mo<strong>da</strong> é a<br />
ignorância, mas um dia a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> precisará <strong>de</strong> bons médicos, e o<br />
presi<strong>de</strong>nte Mao ain<strong>da</strong> precisará <strong>de</strong> seu pai. (SIJIE, 2000, p. 76)<br />
No filme, o mesmo encontro entre Ma e a mãe <strong>de</strong> Quatro-olhos acontece,<br />
mas o texto per<strong>de</strong> o tom <strong>de</strong> critici<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
63<br />
_Você t<strong>em</strong> sotaque dos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
_Estou sendo reeducado.<br />
(...)<br />
_Meu filho também. Deve conhecê-lo. Usa<br />
óculos. O Quatro-olhos. Em breve ele voltará para a<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Uma revista literária <strong>de</strong> Chengdu o contratou.<br />
A conversa <strong>de</strong>spretensiosa entre os dois personagens serve apenas para<br />
alertar aos três jovens que o <strong>de</strong>tentor dos romances proibidos voltará para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Em nenhum momento, a fala <strong>da</strong> poetisa faz referência à mo<strong>da</strong> <strong>de</strong> ignorância que<br />
domina a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>chinesa</strong> <strong>da</strong> época, como o faz no livro.<br />
Além <strong>da</strong>s críticas, o romance nos oferece um <strong>de</strong>talhamento do período<br />
histórico, b<strong>em</strong> maior do que no filme. Questões, como: O que é a reeducação?<br />
Qu<strong>em</strong> eram os reeducados? Como ficou a educação na época? A história <strong>da</strong> família<br />
dos dois rapazes... são trabalha<strong>da</strong>s e explica<strong>da</strong>s apenas no romance. A<br />
contextualização histórica e os motivos que levaram Luo e Ma a ser<strong>em</strong> reeducados<br />
são expostos com maior clareza no texto literário.<br />
Em ambas as produções o personag<strong>em</strong>-narrador permanece o mesmo. Mas é<br />
apenas no texto cin<strong>em</strong>atográfico que ele é nom<strong>ea</strong>do. Na cena do violino<br />
<strong>de</strong>scobrimos que os <strong>de</strong>senhos feitos na caixa do violino representam o nome do<br />
jov<strong>em</strong> Ma Jianling.
64<br />
_O que significam esses <strong>de</strong>senhos?<br />
_Meu nome é Ma Jianling. Eles<br />
representam meu nome.<br />
No romance não é feita nenhuma menção a este nome, o que consi<strong>de</strong>ramos,<br />
no primeiro capítulo <strong>de</strong>ste trabalho, como o indício <strong>de</strong> aproximação entre autor e<br />
personag<strong>em</strong>, pensando num romance autoficcional.<br />
Algumas outras mu<strong>da</strong>nças também são confirma<strong>da</strong>s, como por ex<strong>em</strong>plo: o<br />
pai <strong>da</strong> <strong>costureirinha</strong>, o velho alfaiate, que no filme passa a ser seu avô. Já as cenas,<br />
às vezes, não segu<strong>em</strong> a mesma cronologia e muitas são omiti<strong>da</strong>s, outras inventa<strong>da</strong>s<br />
no universo cin<strong>em</strong>atográfico. Segundo Dai Sijie, <strong>em</strong> entrevista concedi<strong>da</strong> para a<br />
parte <strong>de</strong> extras do DVD, na história narra<strong>da</strong> exist<strong>em</strong> coisas que foram vivi<strong>da</strong>s, mas<br />
que são romanc<strong>ea</strong><strong>da</strong>s.<br />
Também sab<strong>em</strong>os que os cortes <strong>de</strong> cenas são inevitáveis, pois os filmes têm<br />
uma média <strong>de</strong> duração menor. Ao contrário do romance, este <strong>de</strong>ve ser mais curto,<br />
com um movimento <strong>de</strong> ações mais rápido. Nesse ponto, t<strong>em</strong>os novamente as<br />
escolhas, seleções e combinações feitas pelo próprio leitor <strong>da</strong> obra. O que entra na<br />
versão cin<strong>em</strong>atográfica, o que fica <strong>de</strong> fora e o que acrescentamos? As opções são<br />
coloca<strong>da</strong>s pela relação dialética entre texto, leitor e a sua interação.<br />
No confronto entre o texto literário e o cin<strong>em</strong>atográfico, perceb<strong>em</strong>os que no<br />
filme é <strong>da</strong><strong>da</strong> mais ênfase à importância <strong>da</strong> literatura na formação <strong>de</strong> indivíduos mais<br />
conscientes, críticos e lúcidos. A personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> Costureirinha não sabe ler, afirma<br />
ser uma analfabeta. Na cena <strong>em</strong> que o grupo <strong>de</strong> meninas está espionando com<br />
curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> o galo que habita o pequeno <strong>de</strong>spertador <strong>de</strong> Luo e o <strong>de</strong>ixam cair no<br />
chão, os dois jovens entram no local e tentam consertá-lo. Nesse momento, o<br />
narrador pergunta se a Costureirinha sabe ler, ela diz que não, explicando que sua<br />
mãe era a única pessoa alfabetiza<strong>da</strong> <strong>da</strong> montanha e morreu muito nova. Logo <strong>em</strong>
segui<strong>da</strong>, Luo comenta: _É, está faltando uma peça. A frase dita por Luo enquanto<br />
tentava consertar seu <strong>de</strong>spertador faz alusão à falta do saber ler na personag<strong>em</strong>.<br />
_Cadê o <strong>de</strong>spertador?<br />
_Você s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>strói tudo.<br />
_Perdi uma peça. Droga!<br />
_Eu pagarei pelo seu <strong>de</strong>spertador.<br />
_Deixe pra lá, Luo. Consertar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> casa.<br />
_Sabe ler?<br />
65<br />
_Não. Minha mãe era a única professora nesta<br />
montanha...mas morreu antes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r me ensinar.
não.<br />
_Falta uma peça.<br />
_Vou ensinar você a ler.<br />
_Não. Não tenho t<strong>em</strong>po.<br />
66<br />
_Você não <strong>de</strong>via recusar. Pense antes <strong>de</strong> dizer
Enquanto no romance t<strong>em</strong>os: “_Você sabe ler? – perguntei-lhe. _Não muito –<br />
respon<strong>de</strong>u-me, s<strong>em</strong> nenhum complexo.” (SIJIE, 2000, p. 25), mas era capaz <strong>de</strong><br />
redigir uma carta.<br />
O diálogo <strong>de</strong> culturas é ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, tanto na narrativa literária quanto<br />
na cin<strong>em</strong>atográfica. Em ambas, t<strong>em</strong>os a presença dos dois amigos, que pertenc<strong>em</strong><br />
à classe intelectual, privilegiados pelo acesso à educação. Os jovens nutr<strong>em</strong> o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transformar a Costureirinha <strong>em</strong> um ser civilizado. Na palavra <strong>de</strong> Luo, no<br />
texto literário, t<strong>em</strong>os uma avaliação do que foi possível fazer por ela.<br />
Do que me l<strong>em</strong>bro? Se ela na<strong>da</strong> b<strong>em</strong>? Sim, maravilhosamente b<strong>em</strong>. Agora<br />
na<strong>da</strong> como um golfinho. Antes? Não, na<strong>da</strong>va como os camponeses, s<strong>em</strong><br />
usar as pernas, só os braços. Antes <strong>de</strong> ter aprendido comigo o nado <strong>de</strong><br />
peito, na<strong>da</strong>va como os cachorros. [...] Agora ela sabe na<strong>da</strong>r, até o<br />
borboleta. [...] O que <strong>de</strong>scobriu sozinha foram os saltos perigosos.<br />
(SIJIE, 2000, p. 123)<br />
A mesma avaliação é feita no filme <strong>de</strong> forma diferente.<br />
67<br />
_Você l<strong>em</strong>bra? Você jurou curá-la <strong>de</strong> sua ignorância.<br />
Você conseguiu.<br />
_Até o sotaque <strong>de</strong>la melhorou. (...) Ler romances para<br />
ela foi útil.
O relato <strong>de</strong> Luo nos r<strong>em</strong>ete para o campo <strong>da</strong> leitura e os aprendizados <strong>da</strong><br />
personag<strong>em</strong> através dos textos literários. Assim como o nado, no início, era pobre,<br />
feito apenas com o uso dos braços, o que dificulta a locomoção na água, <strong>de</strong>pois,<br />
com o ensino passa a ter outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a leitura era feita a partir <strong>da</strong>s<br />
imagens, <strong>de</strong>pois ganha vi<strong>da</strong> associando-se à palavra com a leitura <strong>em</strong> voz alta feita<br />
pelos dois amigos. O ápice <strong>da</strong> conquista v<strong>em</strong> com as <strong>de</strong>scobertas individuais. Com<br />
as leituras, “[...] n<strong>em</strong> a maldita vi<strong>da</strong> n<strong>em</strong> o maldito mundo po<strong>de</strong>riam ser como antes.”<br />
(SIJIE, 2000, p. 96)<br />
A cena que mais nos causa estranhamento está no final do filme. No livro, a<br />
<strong>costureirinha</strong> alça voo como um pássaro, abandonando sua al<strong>de</strong>ia, seu pai e os dois<br />
amigos, além do seu amor por Luo.<br />
Luo ficou <strong>de</strong> pé, e ela, num salto, <strong>de</strong>sceu o rochedo. Em vez <strong>de</strong> se atirar nos<br />
braços do amante <strong>de</strong>sesperado, ela pegou a trouxa e se foi, num passo <strong>de</strong>cidido.<br />
_Espera! – gritei, agitando a batata-doce.<br />
_V<strong>em</strong> comer uma batata! Eu preparei para você.<br />
Meu primeiro grito a fez correr pelo caminho, meu segundo a impeliu ain<strong>da</strong><br />
mais longe, e meu terceiro a transformou <strong>em</strong> pássaro que alçou vôo s<strong>em</strong><br />
se <strong>da</strong>r um minuto <strong>de</strong> trégua. Então, foi ficando ca<strong>da</strong> vez menor e<br />
<strong>de</strong>sapareceu. (SIJIE, 2000, p. 164)<br />
Esse final <strong>da</strong> história causa <strong>em</strong> nós, leitores, certo impulso imaginativo. É<br />
como se tivéss<strong>em</strong>os uma página <strong>em</strong> branco para construirmos o <strong>de</strong>stino que tiveram<br />
aquelas vi<strong>da</strong>s. Já no filme, é o próprio Dai Sijie que assume a página <strong>em</strong> branco ao<br />
final do romance. T<strong>em</strong>os a impressão que Sijie quis nos contar mais, quis <strong>da</strong>r uma<br />
vi<strong>da</strong> mais longa àquelas personagens. O <strong>de</strong>sfecho é outro. São apresenta<strong>da</strong>s as<br />
conseqüências que tiveram aquelas vi<strong>da</strong>s. Mais uma vez há referência entre a vi<strong>da</strong><br />
r<strong>ea</strong>l e a ficcional, pois um dos personagens acaba indo viver na França, o que<br />
acontece com Dai Sijie <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser reeducado.<br />
68<br />
_Naquela época nós não fazíamos idéia do que<br />
iria acontecer conosco.
69<br />
_Eu me tornei violinista. Nos últimos 15 anos<br />
na França, primeiro toquei <strong>em</strong> Lyon e Toulouse.<br />
Depois formei um quarteto <strong>em</strong> Paris com amigos...para<br />
tocar Mozart e Beethoven, meus compositores<br />
favoritos.<br />
_Da China, chegou a notícia <strong>de</strong> que um<br />
represa...seria construí<strong>da</strong> no rio Yang Tse. Ela<br />
inun<strong>da</strong>ria to<strong>da</strong> uma ár<strong>ea</strong> montanhosa e a transformaria<br />
num gran<strong>de</strong> reservatório para fornecer eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
para 200 milhões <strong>de</strong> pessoas. Os 234 distritos <strong>de</strong>ssa<br />
região serão apagados do local <strong>em</strong> duas inun<strong>da</strong>ções<br />
separa<strong>da</strong>s para <strong>da</strong>r lugar a um vasto lago <strong>de</strong> 960<br />
quilômetros quadrados localizado a 525 pés acima do<br />
nível do mar.<br />
_Olá, Mi Shen. Estou vendo uma reportag<strong>em</strong><br />
sobre o lugar on<strong>de</strong> fui reeducado. To<strong>da</strong> a minha<br />
juventu<strong>de</strong>.
70<br />
_Passageiros<br />
Airways...<br />
para Pequim <strong>da</strong> Oriental<br />
_Pois não? Preten<strong>de</strong> <strong>da</strong>r um perfume? Para<br />
que tipo <strong>de</strong> mulher?<br />
_Para uma <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>.<br />
_Ótimo.
O narrador, que agora conhec<strong>em</strong>os como Ma, se torna um gran<strong>de</strong> violinista e<br />
vai viver na França. Luo construiu uma família, mas ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong> boas l<strong>em</strong>branças<br />
<strong>da</strong> <strong>costureirinha</strong>, seu amor no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> reeducação. A montanha Fênix é visita<strong>da</strong><br />
por Ma que, ao saber que tudo seria perdido nas águas <strong>de</strong> uma barrag<strong>em</strong>, resolve<br />
registrar as últimas imagens do local. O chefe <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia não t<strong>em</strong> mais o <strong>de</strong>nte<br />
obturado pelos jovens, mas continua com o <strong>de</strong>spertador, mesmo com este<br />
marcando a hora erra<strong>da</strong>. A casa sobre pilotis continuava lá e a <strong>da</strong> <strong>costureirinha</strong><br />
guar<strong>da</strong>va seu instrumento <strong>de</strong> trabalho. Ao final do filme, tudo termina <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />
gran<strong>de</strong> turbilhão formado pela força <strong>da</strong>s águas <strong>da</strong> barrag<strong>em</strong> que se rompe. Os bens<br />
materiais são perdidos, e, mais uma vez, é a m<strong>em</strong>ória que impera.<br />
O ví<strong>de</strong>o feito por Ma é mostrado para Luo <strong>em</strong> sua casa. O reencontro dos<br />
amigos suscita o sentimento <strong>de</strong> nostalgia, que para Sijie é algo muito mais fácil <strong>de</strong><br />
ser passado pelo cin<strong>em</strong>a do que pela literatura.<br />
Esse final acrescenta nostalgia, tanto para a nossa juventu<strong>de</strong> e para a<br />
literatura que eu amava, que salvou a minha vi<strong>da</strong>, que mudou a minha vi<strong>da</strong>.<br />
Acho que isso funciona mais no cin<strong>em</strong>a do que na literatura. A nostalgia<br />
po<strong>de</strong> flutuar através <strong>da</strong>s cenas. É mais romântico. 44 (RIDING, 2005)<br />
Aeroporto <strong>de</strong> Xangai<br />
44 This ending adds nostalgia, both for our youth and for that literature than I loved, that saved<br />
my life, that changed my life. I think this works in cin<strong>em</strong>a more than in literature. Nostalgia<br />
can float through the scenes. It is more romantic. (RIDING, Alan, Artistic Odyssey: Film to<br />
Fiction to Film. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.nytimes.com/2005/07/27/movies/MoviesF<strong>ea</strong>tures/27balz.html Acessado <strong>em</strong>: 04 julho<br />
2009. A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
71
É com esse pensamento e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> novo aquilo que já tinha<br />
relatado no romance, que o escritor chinês, imigrante na França nos anos 80, se<br />
72
torna produtor do filme homônimo. Nesse redimensionamento <strong>da</strong> obra t<strong>em</strong>os a<br />
construção <strong>de</strong> mais um jogo <strong>de</strong> leitura. No entrelaçamento <strong>da</strong>s leituras surg<strong>em</strong> três<br />
textos. O primeiro é formado pelas obras oci<strong>de</strong>ntais li<strong>da</strong>s pelas personagens e,<br />
anteriormente, pelo próprio Dai Sijie. O segundo trata <strong>da</strong> criação do próprio romance<br />
Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>. E o terceiro texto, o filme <strong>de</strong> mesmo nome,<br />
produzido por Sijie.<br />
Nessa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> leituras e escrituras, t<strong>em</strong>os a concepção <strong>de</strong> Calvino (1999,<br />
p. 198) “on<strong>de</strong> há um leitor, está também ali o ato do escritor.” Portanto, a prática <strong>de</strong><br />
leitura implica na <strong>de</strong> escrita. Além <strong>da</strong> relação entre leitor e autor, o leitor assume<br />
papel ativo e se torna coprodutor <strong>de</strong> um texto a partir <strong>de</strong> suas leituras. Quando<br />
Balzac po<strong>de</strong>ria imaginar que faria parte <strong>da</strong>s páginas <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> DaiSijie e<br />
participar do próprio título Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>? Po<strong>de</strong>ria Dumas ter<br />
escrito uma obra, imaginando que estaria nas páginas <strong>de</strong> um romance, que seria<br />
lido por personagens e que influenciaria na confecção <strong>da</strong>s vestimentas <strong>de</strong> um velho<br />
alfaiate chinês? Tais questionamentos nos levam a afirmar que nós, leitores, somos,<br />
sim, coautores, produzimos um novo texto ao lermos. Ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> acordo com Calvino:<br />
E quanto ao verbo ler? Po<strong>de</strong>r-se-á dizer “hoje lê” tal como se diz “hoje<br />
chove”? Pensando b<strong>em</strong>, a leitura é um ato necessariamente individual,<br />
muito mais do que o escrever. Admitindo que a escrita consegue superar<br />
as limitações do autor, ela apenas continuará a ter sentido quanto for li<strong>da</strong><br />
por uma pessoa singular e atravessar os seus circuitos mentais. Somente o<br />
fato <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser lido por um indivíduo <strong>de</strong>terminado prova que aquilo que é<br />
escrito participa do po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> escrita, um po<strong>de</strong>r bas<strong>ea</strong>do <strong>em</strong> algo que está<br />
para além do indivíduo. O universo exprimir-se-á a si mesmo até que<br />
alguém possa dizer: “Leio, logo ele escreve”. (CALVINO,1999, p. 198)<br />
73
3.1. A TAREFA DO RECEPTOR-RECRIADOR ENQUANTO SUJEITO ATIVO NO<br />
PROCESSO DE LEITURA<br />
Ler e escrever são dois lados <strong>de</strong> uma mesma moe<strong>da</strong>, cabendo ao leitor<br />
consoli<strong>da</strong>r o que está escrito. T<strong>em</strong>os a recepção como lugar <strong>de</strong> produção <strong>de</strong><br />
sentidos a partir do intercâmbio entre os organismos <strong>em</strong>issores e o próprio suporte<br />
<strong>de</strong> informação, os receptores e os contextos <strong>em</strong> que as mensagens circulam.<br />
Rompendo com a noção <strong>de</strong> texto enquanto objeto estanque e colocando a<br />
leitura como processo <strong>de</strong> reconstrução do texto, dissolv<strong>em</strong>-se as antigas motivações<br />
<strong>de</strong> fazer a interpretação certa, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir o que o autor quis dizer com<br />
<strong>de</strong>terminado texto, as quais passam a ser mais pessoais, livres do objetivo <strong>de</strong><br />
alcançar a leitura correta. No caso <strong>da</strong>s personagens do romance e do filme Balzac e<br />
a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, observamos que o texto é posto <strong>em</strong> movimento por seus<br />
leitores.<br />
Nossa <strong>costureirinha</strong>, ao entrar <strong>em</strong> contato com as obras balzaquianas,<br />
conhece os el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> cultura civiliza<strong>da</strong>, sendo o sutiã o maior símbolo <strong>da</strong><br />
civilização. Ela é a primeira mulher <strong>da</strong> montanha Fênix a ter um. O mo<strong>de</strong>lo foi criado<br />
a partir <strong>da</strong> sua <strong>de</strong>scrição num romance do escritor Balzac. Outro marco <strong>de</strong><br />
civilização está nas palavras pronuncia<strong>da</strong>s pela <strong>costureirinha</strong> referentes à leitura <strong>de</strong><br />
uma outra obra balzaquiana: “Os homens selvagens têm sentimentos. Os homens<br />
civilizados têm sentimentos e idéias.” Os conhecimentos gerados através <strong>da</strong> leitura<br />
eram diss<strong>em</strong>inados entre os al<strong>de</strong>ões.<br />
_Sab<strong>em</strong> o que é isso?<br />
_Uma camiseta.<br />
_Não, não é. É outra coisa. Pens<strong>em</strong> outra vez.<br />
_Uma peça curta?<br />
_Vocês gostam?<br />
_É lindo.<br />
74
75<br />
_Chama-se “sutiã”. É como chamam nos livros. Em<br />
to<strong>da</strong> a Montanha Fênix sou a primeira a ter um.<br />
_Mas, pra que serve? Diz...<br />
_Sutiã serve para r<strong>ea</strong>lçar os seios.<br />
_E o que é gente civiliza<strong>da</strong>?<br />
_”O selvag<strong>em</strong> só t<strong>em</strong> sentimentos. O civilizado t<strong>em</strong><br />
sentimentos e idéias.”<br />
O ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para os sentidos atribuídos ao texto <strong>de</strong> Balzac pela<br />
Costureirinha são suas vivências e conhecimento <strong>de</strong> mundo. É através do texto que<br />
ela mantém seu primeiro contato com um sutiã e <strong>de</strong>scobre que há diferenças entre<br />
os homens selvagens e os civilizados.<br />
Interessa à Estética <strong>da</strong> Recepção o confronto entre a construção do autor e<br />
esses tipos <strong>de</strong> reconstruções provenientes do receptor e inimagináveis na mente do<br />
autor, atentando para os significados e seus locais <strong>de</strong> construção, suas<br />
interpretações, observando as diferenças heurísticas à luz <strong>de</strong> mediações históricas e<br />
sociais.<br />
De acordo com Umberto Eco :<br />
um texto postula o próprio <strong>de</strong>stinatário como condição indispensável não só<br />
<strong>da</strong> própria capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> concreta <strong>de</strong> comunicação, mas também <strong>da</strong> própria<br />
potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> significativa. Em outros termos, um texto é <strong>em</strong>itido por<br />
alguém que o atualize – <strong>em</strong>bora não se espere (ou não se queira) que esse<br />
alguém exista concretamente e <strong>em</strong>piricamente. (ECO, 1994, p.37)
Em outras palavras, um texto postula o seu próprio <strong>de</strong>stinatário como<br />
condição imprescindível <strong>da</strong> pontenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> significação. Um<br />
texto é feito para que o leitor o renove. Uma espécie <strong>de</strong> leitor virtual, que é s<strong>em</strong>pre<br />
solicitado a executar sua parte no próprio trabalho <strong>de</strong> leitura e construção <strong>de</strong><br />
sentido. O texto é composto por espaços <strong>em</strong> branco a ser<strong>em</strong> preenchidos pelo leitor<br />
e vive <strong>da</strong> valorização <strong>de</strong> sentido que o receptor ali colocou. Por outro lado, para que<br />
o leitor assuma esse traço ativo, é preciso que o texto proponha uma imag<strong>em</strong> do<br />
leitor mo<strong>de</strong>lo que ele prevê. Assim,<br />
Por enquanto, só quero dizer que qualquer narrativa <strong>de</strong> ficção é necessária<br />
e fatalmente rápi<strong>da</strong> porque, ao construir um mundo que inclui uma<br />
multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acontecimentos e <strong>de</strong> personagens, não po<strong>de</strong> dizer tudo<br />
sobre esse mundo. Alu<strong>de</strong> a ele e pe<strong>de</strong> ao leitor que preencha to<strong>da</strong> uma<br />
série <strong>de</strong> lacunas. Afinal (como já escrevi), todo texto é uma máquina<br />
preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte <strong>de</strong> seu trabalho. Que<br />
probl<strong>em</strong>a seria se um texto tivesse <strong>de</strong> dizer tudo que o receptor <strong>de</strong>ve<br />
compreen<strong>de</strong>r – não terminaria nunca. (ECO, 1994, p. 9)<br />
O texto <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar ao leitor a iniciativa interpretativa, <strong>em</strong>bora isso não<br />
signifique total liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretações, pois esta também invoca limites. De<br />
acordo com Umberto Eco, o texto <strong>de</strong>ve portar instruções <strong>de</strong> orientação que<br />
permitam ao leitor r<strong>ea</strong>lizar inferências necessárias, autorizando o processo<br />
interpretativo. Estas pistas <strong>de</strong>v<strong>em</strong> guiar o leitor a interpretar. Se para Eco a<br />
interpretação traduz-se num processo criativo, essas dicas, solicitações, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser<br />
forneci<strong>da</strong>s pela própria obra, que <strong>de</strong>ve ser vista como um mo<strong>de</strong>lo aberto e não<br />
restritivo, constituído por um manancial <strong>de</strong> cultura codifica<strong>da</strong>, não representável na<br />
prática.<br />
Esta construção po<strong>de</strong> ser elabora<strong>da</strong> com um mero título, como, por ex<strong>em</strong>plo:<br />
Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>. No título criado por Dai Sijie, t<strong>em</strong>os o nome do<br />
escritor Honoré <strong>de</strong> Balzac, símbolo <strong>da</strong> literatura francesa e mesmo oci<strong>de</strong>ntal, e a<br />
presença <strong>da</strong> simples e selvag<strong>em</strong> <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, mostrando o lado oriental.<br />
No título, Oriente e Oci<strong>de</strong>nte caminham juntos.<br />
Ou, po<strong>de</strong> ser elabora<strong>da</strong> por armadilhas que faz<strong>em</strong> o leitor cair, como o final<br />
surpreen<strong>de</strong>nte, on<strong>de</strong> a expectativa do leitor é rompi<strong>da</strong>. Ao abandonar Luo, a<br />
Costureirinha nos guia para um outro caminho <strong>em</strong> nossa leitura. Passamos a atribuir<br />
um novo sentido para aquela relação amorosa, e entend<strong>em</strong>os que o triângulo<br />
76
amoroso formado por Luo, o narrador e a Costureirinha não era o enfoque central do<br />
texto. São numerosas as estratégias narrativas que um texto po<strong>de</strong> oferecer.<br />
Umberto Eco (1994, p.9) chega a afirmar que: “Diria que um texto é um jogo <strong>de</strong><br />
estratégias mais ou menos como po<strong>de</strong> ser a disposição <strong>de</strong> um exército para uma<br />
batalha.”<br />
A criação <strong>de</strong> uma obra traduz-se na elaboração <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong> que<br />
faz<strong>em</strong> parte as previsões dos movimentos dos outros, ou seja, um texto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
sua geração, <strong>de</strong>ve prever as atitu<strong>de</strong>s do seu leitor- mo<strong>de</strong>lo. Sobre o leitor-mo<strong>de</strong>lo,<br />
Eco (1994, p. 14-15) faz questão <strong>de</strong> diferenciá-lo do leitor <strong>em</strong>pírico.<br />
O leitor <strong>em</strong>pírico é você, eu, todos nós, quando l<strong>em</strong>os um texto. Os leitores<br />
<strong>em</strong>píricos pod<strong>em</strong> ler <strong>de</strong> várias formas, e não existe lei que <strong>de</strong>termine como<br />
<strong>de</strong>v<strong>em</strong> ler, porque <strong>em</strong> geral utilizam o texto como um receptáculo <strong>de</strong> suas<br />
próprias paixões, as quais pod<strong>em</strong> ser exteriores ao texto ou provoca<strong>da</strong>s<br />
pelo próprio texto. (ECO, 1994, p.14-15)<br />
Um texto, mesmo provocando inúmeras interpretações, <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
seu próprio corpo um processo <strong>de</strong> seleção. Daí, a interpretação impor seus limites.<br />
Ela não po<strong>de</strong> ser entendi<strong>da</strong> como um mero ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação, mas como um<br />
espaço <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> sentido para o qual um signo na literatura ou no cin<strong>em</strong>a<br />
exprime uma organização <strong>de</strong> significantes, que, além <strong>de</strong> ter como função <strong>de</strong>signar<br />
um objeto-significado, <strong>de</strong>signam também instruções para produção <strong>de</strong> um<br />
significado.<br />
Já o conceito <strong>de</strong> leitor implícito, <strong>de</strong>senvolvido por Wolfgang Iser, representa<br />
uma conquista importante para as teorias do efeito estético. Em O ato <strong>de</strong> ler, Iser<br />
afirma que “o conceito <strong>de</strong> leitor implícito é, portanto, uma estrutura textual prevendo<br />
a presença <strong>de</strong> um receptor (...) s<strong>em</strong> necessariamente <strong>de</strong>fini-lo” Saber <strong>da</strong> existência<br />
do leitor é fato, mas ter consciência do que ele fará com o texto <strong>em</strong> mãos, nunca um<br />
autor conseguirá prever. Balzac iria prever que a leitura <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus textos levaria<br />
à construção do primeiro sutiã numa al<strong>de</strong>ia <strong>da</strong> montanha Fênix? Jamais o autor<br />
po<strong>de</strong>ria prever tal atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua leitora, que foi capaz <strong>de</strong> confeccionar a peça,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição feita pelo escritor Balzac.<br />
Jauss parte <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> concretização que se traduz <strong>em</strong> duas vertentes: a do<br />
horizonte implícito <strong>de</strong> expectativas, lança<strong>da</strong> pela obra, <strong>de</strong> caráter (intra)literário. Isso<br />
77
configuraria o efeito, pre<strong>de</strong>terminado pelo texto que transmite orientações prévias,<br />
inalteráveis sob certo aspecto, pois a obra mantém-se a mesma para o leitor. De<br />
outro lado t<strong>em</strong>os a recepção, <strong>de</strong> cunho (extra)literário, condiciona<strong>da</strong> pelo leitor que<br />
colabora com suas experiências pessoais para fornecer vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> à obra e manter<br />
com ela uma relação dialógica. Jauss afirma:<br />
a pessoa que recebe a obra, atualiza-a com sua leitura. Pautado nas<br />
experiências passa<strong>da</strong>s — tanto estéticas, quanto nas experiências <strong>de</strong><br />
mundo — o leitor dialoga com a obra, quando busca hipóteses,<br />
confirmações; enfim busca sentido (por meio <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos extralingüísticos:<br />
seu conhecimento prévio, e lingüístico: pistas <strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo autor) e constrói<br />
uma significação para ela, que po<strong>de</strong> corroborar ou não com o que o autor<br />
pretendia inicialmente.(JAUSS, 1994, p.106)<br />
Esta noção <strong>de</strong> concretização, segundo Iser, refere-se à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do leitor,<br />
responsável pelo preenchimento dos espaços <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação contidos na obra.<br />
O texto já preveria um leitor implicitamente, que seria mais a<strong>de</strong>quado para <strong>de</strong>finir as<br />
estruturas <strong>de</strong> pré-compreensão. Iser vai acentuar um dos pontos teóricos básicos <strong>da</strong><br />
estética <strong>da</strong> recepção, salientando que a obra literária é comunicativa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua<br />
estrutura, pois supõe o leitor, para a constituição <strong>de</strong> seu sentido. O mesmo vale para<br />
a obra cin<strong>em</strong>atográfica.<br />
Segundo Turner:<br />
A complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> produção cin<strong>em</strong>atográfica torna essencial a<br />
interpretação, a leitura ativa <strong>de</strong> um filme. Inevitavelmente precisamos<br />
examinar minuciosamente o quadro, formar hipóteses sobre a evolução <strong>da</strong><br />
narrativa, especular sobre seus possíveis significados, tentar obter algum<br />
domínio sobre o filme à medi<strong>da</strong> que ele se <strong>de</strong>senvolve. O processo ativo <strong>da</strong><br />
interpretação é essencial para a análise do cin<strong>em</strong>a e para o prazer que ele<br />
proporciona. (TURNER, 1997, p.69)<br />
O teórico faz cair por terra a crença comum <strong>de</strong> que a leitura midiática,<br />
incluindo a cin<strong>em</strong>atográfica, é uma leitura passiva que, <strong>em</strong> doses homeopáticas,<br />
manipula o espectador. Na<strong>da</strong> impe<strong>de</strong> que o cin<strong>em</strong>a seja capaz <strong>de</strong> imprimir, forjar,<br />
maquinar situações e contribuir para o funcionamento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais e crenças, formando<br />
ou <strong>de</strong>formando opiniões. No entanto,<br />
O espectador é ativo, assim como o aluno ou o cientista. Ele observa,<br />
seleciona, compara, interpreta. Conecta o que observa com muitas outras<br />
78
coisas que ele observou <strong>em</strong> outros palcos, <strong>em</strong> outros tipos <strong>de</strong> espaços.<br />
Faz o seu po<strong>em</strong>a com o po<strong>em</strong>a que é feito diante <strong>de</strong>le. Participa do<br />
espetáculo se for capaz <strong>de</strong> contar a sua própria história a respeito <strong>da</strong><br />
história que está diante <strong>de</strong>le. 45 (RANCIÈRE, Jacques. O espectador<br />
<strong>em</strong>ancipado.)<br />
Sobre a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do espectador, pod<strong>em</strong>os afirmar que o mesmo acontece<br />
com qualquer leitor, seja ele um leitor <strong>de</strong> um texto literário ou um leitor <strong>de</strong> um texto<br />
cin<strong>em</strong>atográfico. Em relação ao receptor, o conceito <strong>de</strong> leitor- mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>fendido por<br />
Umberto Eco e o <strong>de</strong> leitor implícito evocado pela teoria do efeito estético <strong>de</strong>ixam<br />
claro que não se trata <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r <strong>em</strong>piricamente a enti<strong>da</strong><strong>de</strong> leitor, mas falam <strong>de</strong> um<br />
ser virtual, imprescindível para <strong>da</strong>r constituição e sentido à obra que, isola<strong>da</strong>, não<br />
possui significado algum, torna-se inerte.<br />
As leituras <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> recepção <strong>de</strong> Jauss, <strong>da</strong> teoria do efeito <strong>de</strong> Iser e os<br />
conceitos trabalhados por Umberto Eco contribu<strong>em</strong> para o esclarecimento <strong>de</strong><br />
fenômenos comunicativos na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que atribu<strong>em</strong> ao conceito <strong>de</strong> recepção uma<br />
dimensão produtiva contrária às <strong>de</strong> natureza instrumental <strong>em</strong> que a comunicação<br />
seria uma conseqüência mecânica <strong>de</strong> ações entre o <strong>em</strong>issor e o receptor.<br />
Essas leituras, além <strong>de</strong> contribuír<strong>em</strong> para discutir o campo <strong>da</strong> recepção na<br />
literatura, tornam-se relevantes quando o eixo é <strong>de</strong>slocado para a recepção dos<br />
textos cin<strong>em</strong>atográficos. Da<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>stes textos, cuja<br />
matéria-prima constuitui-se <strong>de</strong> imagens, não se po<strong>de</strong> negar que existe uma relação<br />
<strong>de</strong> comunicação entre espectador e imag<strong>em</strong>. Pod<strong>em</strong>os até dizer que o texto<br />
cin<strong>em</strong>atográfico também prevê seu espectador. Dirige-se a ele, não só através do<br />
discurso, mas principalmente pelos apelos visuais e sonoros. De algum modo o<br />
espectador participa <strong>de</strong>ssa ação e a experiência estética resultaria <strong>de</strong>ssa relação<br />
interativa entre sujeito e imagens. A comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>da</strong>ria na experiência<br />
estética.<br />
A obra cin<strong>em</strong>atográfica promove um processo comunicativo que guia<br />
indivíduos que se <strong>de</strong>dicam a sentar numa poltrona por horas, a executar um trabalho<br />
interpretativo e atribuir significação ao que ve<strong>em</strong>. O espectador que vivencia os<br />
efeitos <strong>de</strong>ssa expressão i<strong>de</strong>ntifica-se <strong>de</strong> algum modo com o texto, e assume um<br />
papel produtivo, assim como o leitor <strong>de</strong> textos literários. Ex<strong>em</strong>plo disso são as<br />
45 RANCIÈRE, Jacques. O espectador <strong>em</strong>ancipado. Disponível <strong>em</strong><br />
http://www.questao<strong>de</strong>critica.com.br/conteudo.php?id=186 Acessado <strong>em</strong> 14 agosto 2009 às 9h15.<br />
79
sessões <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a assisti<strong>da</strong>s por Luo e o narrador, que reconstro<strong>em</strong> o texto<br />
cin<strong>em</strong>atográfico <strong>em</strong> narrativas apresenta<strong>da</strong>s aos al<strong>de</strong>ões, que por sua vez também<br />
atribu<strong>em</strong> significado ao texto, não mais lido n<strong>em</strong> visto, mas ouvido, e se <strong>em</strong>ocionam<br />
com as histórias.<br />
_Compr<strong>em</strong> minhas flores! Flores Bonitas! (<strong>em</strong> off)<br />
80<br />
_A Coréia é um dos países mais frios do mundo. (<strong>em</strong><br />
off)<br />
_Apesar dos apelos <strong>da</strong> pequena ven<strong>de</strong>dora <strong>de</strong><br />
flores...ninguém entraria no lago congelado para pegar<br />
as lesmas que curariam a sua mãe. Naquele dia<br />
red<strong>em</strong>oinhos <strong>de</strong> neve caíram <strong>em</strong> Pyongyang.<br />
_A neve que os meninos faz<strong>em</strong> é mais bonita que a<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira.<br />
_Olhe. São cascas <strong>de</strong> arroz!
81<br />
_A ven<strong>de</strong>dora <strong>de</strong> flores faz um furo no gelo e pula<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> água. Uma, duas, três vezes (...) Encontra<br />
três lesmas. (...)<br />
_ Depressa! A mãe <strong>de</strong>la está esperando! Conte o<br />
resto! (<strong>em</strong> off, o público se manifesta)<br />
_Desculpe. Estou pensando <strong>em</strong> minha mãe.<br />
_A mãe <strong>de</strong>la está <strong>de</strong>ita<strong>da</strong> na cama. (...) Ela já <strong>de</strong>ixou<br />
esse mundo. Neste momento ouvimos uma voz que diz<br />
o provérbio: “Um coração sincero faz uma flor nascer<br />
<strong>da</strong> pedra.” E o coração <strong>de</strong>ssa garota era<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente sincero.
Pensando nos textos feitos para o cin<strong>em</strong>a, inicialmente, pod<strong>em</strong>os até concluir<br />
que, como espectadores, não v<strong>em</strong>os a matéria-prima, mas informações prontas,<br />
plenamente r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s. Mas a imag<strong>em</strong> seqüencial t<strong>em</strong> mais que um sentido, t<strong>em</strong> um<br />
significado, <strong>da</strong>do a ela pelo papel que <strong>de</strong>senvolve no mundo "imaginário",<br />
representacional, que o produtor do texto elabora, edifica, assim como as histórias<br />
b<strong>em</strong> conta<strong>da</strong>s pelos contadores <strong>de</strong> histórias.<br />
O importante é ressaltar que o nível <strong>de</strong> significação está s<strong>em</strong>pre associado à<br />
narrativa. O espectador confere ao texto uma or<strong>de</strong>nação, ao inter-relacionar os<br />
objetos que seus sentidos lhe constro<strong>em</strong>. O trivial fato <strong>de</strong> agregar uma série <strong>de</strong><br />
imagens invoca que procur<strong>em</strong>os um motivo, e o espectador, <strong>de</strong> acordo com seu<br />
próprio <strong>de</strong>sejo e afeto, tenta <strong>da</strong>r a essas imagens algum tipo <strong>de</strong> significação. As<br />
imagens, <strong>em</strong> si mesmas, não possu<strong>em</strong> significado algum, só adquir<strong>em</strong> sentido no<br />
contato com o espectador, <strong>da</strong> mesma forma que o faz<strong>em</strong> os leitores <strong>de</strong> textos<br />
literários. Assim, consi<strong>de</strong>ramos o espectador como um parceiro ativo <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> e<br />
seu papel seria o <strong>de</strong> perceber e compreen<strong>de</strong>r a imag<strong>em</strong>, fazê-la existir. Bom<br />
ex<strong>em</strong>plo disso é a opinião <strong>em</strong>iti<strong>da</strong> pela Costureirinha <strong>em</strong> sua primeira i<strong>da</strong> ao cin<strong>em</strong>a.<br />
No primeiro contato com a sétima arte, a personag<strong>em</strong> mostra preferência pelas<br />
contações <strong>de</strong> história, o que nos leva a pensar que os filmes <strong>da</strong> época, veículos <strong>de</strong><br />
propagan<strong>da</strong> política, não <strong>de</strong>spertavam interesse na jov<strong>em</strong>.<br />
82<br />
_Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não é tão bom como quando vocês<br />
contam as histórias.<br />
O receptor, no seu papel ativo, constrói, cria a imag<strong>em</strong>. A percepção visual<br />
mostra-se como um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> perspectivas que t<strong>em</strong> como base nosso<br />
conhecimento prévio do mundo e <strong>da</strong>s imagens. Ao acionar seu saber prévio, o<br />
espectador <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> preenche, portanto, o não-representado, as lacunas <strong>da</strong>
epresentação, <strong>da</strong> mesma forma que os leitores preench<strong>em</strong> os espaços vazios nos<br />
textos literários.<br />
Essas consi<strong>de</strong>rações nos auxiliam no propósito do texto apresentado e<br />
resgatam o traço ativo do espectador confluente com as observações <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>s<br />
por Umberto Eco, Iser e Jauss, <strong>em</strong> relação ao leitor. A partir <strong>de</strong>sses conceitos<br />
expostos acima, torna-se relevante caracterizar, tanto o texto cin<strong>em</strong>atográfico<br />
quanto o literário, como formas <strong>de</strong> comunicação que <strong>de</strong>pend<strong>em</strong> do receptor para<br />
<strong>da</strong>r<strong>em</strong> significação à narrativa.<br />
O texto cin<strong>em</strong>atográfico, assim como o texto literário, possui estratégias,<br />
apelos formais e t<strong>em</strong>áticos que levam o receptor a conferir este ou aquele sentido à<br />
obra. O próprio processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o que se passou num texto cin<strong>em</strong>atográfico,<br />
contá-lo, como faz<strong>em</strong> os jovens Luo e Ma, já é interpretá-lo, pois isso é, <strong>de</strong> certo<br />
modo, um processo <strong>de</strong> reconstrução. Contudo, retomando Umberto Eco, l<strong>em</strong>bramos<br />
<strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> estabelecer limites à interpretação. A interpretação s<strong>em</strong>ântica<br />
está liga<strong>da</strong> aos processos pelos quais o receptor confere sentido ao que lê, ou vê e<br />
ouve.<br />
Parec<strong>em</strong>-nos bastante eluci<strong>da</strong>tivas as contribuições <strong>de</strong> Umberto Eco, Iser e<br />
<strong>de</strong> Jauss para a probl<strong>em</strong>atização do fenômeno <strong>da</strong> recepção, tanto do leitor, quanto<br />
do espectador. Este, sendo aquele que experimenta os efeitos <strong>da</strong> expressão literária<br />
ou cin<strong>em</strong>atográfica, nunca se porta como um ser inerte, passivo. Ele reúne<br />
capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produção e partilha <strong>de</strong> sentido pelo seu acesso ao campo simbólico,<br />
i<strong>de</strong>ntifica-se com os textos, po<strong>de</strong> se reconhecer num gesto r<strong>ea</strong>lizado por algum<br />
personag<strong>em</strong>, alguma situação, como o narrador <strong>de</strong> Balzac e a <strong>costureirinha</strong> que, por<br />
alguns momentos, se confun<strong>de</strong> com a personag<strong>em</strong> Úrsula, do livro “Ursule Mirouet”<br />
<strong>de</strong> Balzac.<br />
Mas, ponto consensual na evolução dos estudos literários, o receptor<br />
alcançou certo potencial <strong>de</strong> autonomia <strong>em</strong> relação aos textos cin<strong>em</strong>atográficos,<br />
superando as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e manipulação, mesmo que estas ain<strong>da</strong><br />
permaneçam evi<strong>de</strong>ntes no senso comum.<br />
A partir <strong>de</strong>sses estudos, entend<strong>em</strong>os que o leitor passa a ser compreendido<br />
como um sujeito que evolui com a história e essa evolução está presente no<br />
momento <strong>da</strong> leitura, a qual passa a ser construí<strong>da</strong> pelo leitor e não apenas<br />
<strong>de</strong>sven<strong>da</strong><strong>da</strong> pacificamente, ou constata<strong>da</strong>. Retornando ao caso do sutiã, este<br />
processo é visualizado quando a <strong>costureirinha</strong> se apropria do texto <strong>de</strong> Balzac e<br />
83
confecciona uma peça já existente no vestuário f<strong>em</strong>inino, mas <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
to<strong>da</strong>s as al<strong>de</strong>ãs.<br />
84
4 CINEMA, LITERATURA E RECEPÇÃO<br />
85<br />
Na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>, todo leitor, quando lê, é o leitor <strong>de</strong> si<br />
mesmo. A obra do escritor não passa <strong>de</strong> uma espécie<br />
<strong>de</strong> instrumento óptico que ele oferece ao leitor a fim <strong>de</strong><br />
permitir que este distinga aquilo que, s<strong>em</strong> o livro, talvez<br />
não pu<strong>de</strong>sse ver <strong>em</strong> si mesmo.<br />
Marcel Proust<br />
O cin<strong>em</strong>a surgiu <strong>em</strong> 1895 com os irmãos Louis e Auguste Lumière. A<br />
apresentação pública do cin<strong>em</strong>atógrafo marca oficialmente o início <strong>da</strong> história do<br />
cin<strong>em</strong>a. A princípio, t<strong>em</strong>os o cin<strong>em</strong>a mudo, e o som v<strong>em</strong> três déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong>pois, no<br />
final dos anos 20, com o cin<strong>em</strong>a falado.<br />
A primeira exibição pública <strong>da</strong>s produções dos irmãos Lumière ocorreu <strong>em</strong> 28<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1895, no Grand Café, <strong>em</strong> Paris. A saí<strong>da</strong> dos operários <strong>da</strong>s usinas<br />
Lumière, A chega<strong>da</strong> do tr<strong>em</strong> na estação, O almoço do bebê e O mar são alguns dos<br />
filmes apresentados. As produções são rudimentares, <strong>em</strong> geral documentários<br />
curtos sobre a vi<strong>da</strong> cotidiana, com cerca <strong>de</strong> 50 minutos a dois minutos <strong>de</strong> projeção,<br />
filmados ao ar livre que retratavam cenas costumeiras <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, paisagens,...<br />
Nessa época, os filmes não eram comercializados. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira intenção dos irmãos<br />
Lumière era explorar mais seu invento, enviando-o com operadores para diversas<br />
partes do mundo com o intuito <strong>de</strong> recolher e exibir “retratos <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.<br />
Mesmo com seu surgimento na França, com o recesso do cin<strong>em</strong>a europeu<br />
durante a Primeira Guerra Mundial, a produção <strong>de</strong> filmes concentra-se <strong>em</strong><br />
Hollywood, na Califórnia, on<strong>de</strong> surg<strong>em</strong> os primeiros gran<strong>de</strong>s estúdios. E <strong>de</strong> lá para
cá tudo mudou na história cin<strong>em</strong>atográfica. A gramática do cin<strong>em</strong>a passou a ser<br />
feita com imagens <strong>em</strong> movimentos, som, luz, fala <strong>de</strong> personagens e, com a era <strong>da</strong><br />
informática, os efeitos especiais tomaram conta <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s telas.<br />
Enquanto o cin<strong>em</strong>a passa por tamanha evolução e a ca<strong>da</strong> dia ganha uma<br />
nova roupag<strong>em</strong>, a literatura acabou per<strong>de</strong>ndo lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque e prestígio numa<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong> audiovisual midiatiza<strong>da</strong>. São poucos aqueles que hoje <strong>em</strong> dia perceb<strong>em</strong><br />
a literatura como distração, momento <strong>de</strong> lazer e prazer, assim como o faziam, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, as mulheres do século XVIII.<br />
Atualmente, <strong>em</strong> nossa socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, ver filmes se <strong>torno</strong>u uma prática social tão<br />
importante quanto ler textos literários. São milhões <strong>de</strong> pessoas que t<strong>em</strong> acesso aos<br />
meios <strong>de</strong> comunicação. Em se tratando do cin<strong>em</strong>a, também são muitos os sujeitos<br />
sociais que ficam horas a frente <strong>de</strong> uma tela, fascinados pela imag<strong>em</strong> e pelo som. O<br />
público do cin<strong>em</strong>a se <strong>torno</strong>u muito maior do que o <strong>da</strong> leitura. Isso é explicável pelo<br />
fato <strong>de</strong>:<br />
Diferente <strong>da</strong> escrita, cuja compreensão pressupõe domínio dos códigos e<br />
estruturas gramaticais convencionados, a linguag<strong>em</strong> do cin<strong>em</strong>a está ao<br />
alcance <strong>de</strong> todos e não precisa ser ensina<strong>da</strong>, sobretudo <strong>em</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
audiovisuais, <strong>em</strong> que a habili<strong>da</strong><strong>de</strong> para interpretar os códigos e signos<br />
próprios <strong>de</strong>ssa arte <strong>de</strong> narrar é <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo. A maior<br />
parte <strong>de</strong> nós apren<strong>de</strong> a ver filmes pela experiência, ou seja, vendo (na<br />
telona ou na telinha) e conversando sobre eles com outros espectadores.<br />
(DUARTE, 2002, p. 38)<br />
Nossa protagonista, Costureirinha, e seu pai 119 , o velho alfaiate, não estão<br />
n<strong>em</strong> nessa mesma categoria n<strong>em</strong> dos que têm acesso aos livros, por apresentar<strong>em</strong><br />
uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> limitação, ou não dominar<strong>em</strong> os códigos <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>. Ambos<br />
são ótimos ex<strong>em</strong>plos para pensarmos <strong>em</strong> modos <strong>de</strong> driblamos as barreiras entre os<br />
não-escolarizados e os textos literários. As histórias conta<strong>da</strong>s por Luo e o narrador<br />
já garant<strong>em</strong>, um pouco, que tais personagens sejam tocados <strong>de</strong> alguma forma pelos<br />
textos. Eles le<strong>em</strong> os livros com os olhos <strong>de</strong> outros.<br />
Já na experiência com o cin<strong>em</strong>a, “B<strong>em</strong> no meio <strong>da</strong> sessão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> meia<br />
hora <strong>de</strong> filme, ela virou-se e me sussurrou uma frase que me <strong>de</strong>ixou todo <strong>de</strong>rretido:<br />
_Fica muito mais interessante quando você conta.” (SIJIE, 2000, p. 72) Ao afirmar o<br />
gosto pelas sessões <strong>de</strong> narração, ficam evi<strong>de</strong>ntes as diferentes sensações<br />
119 No filme, ele é apresentado como avô <strong>da</strong> Costureirinha<br />
86
experimenta<strong>da</strong>s pela Costureirinha. Os filmes assistidos, no cin<strong>em</strong>a improvisado na<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mais próxima <strong>da</strong> montanha Fênix, refletiam a i<strong>de</strong>ologia dominante <strong>da</strong> época,<br />
eram filmes <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> partidária do presi<strong>de</strong>nte Mao Tse Tung.<br />
As situações r<strong>ea</strong>is representa<strong>da</strong>s na gran<strong>de</strong> tela do cin<strong>em</strong>a não<br />
impressionavam tanto a Costureirinha quanto as releituras <strong>de</strong> tais filmes feitas pelos<br />
dois amigos. Ao narrar os filmes para os al<strong>de</strong>ões, Luo e o narrador incorporavam às<br />
histórias suas percepções do mundo, críticas, sentimentos e <strong>de</strong>sejos. Talvez, por<br />
isso, encantasse tanto a Costureirinha, por ser<strong>em</strong> novos olhares, pensamentos e<br />
i<strong>de</strong>ias que nunca antes foram compartilhados. Este é um ex<strong>em</strong>plo do papel <strong>da</strong><br />
interpretação.<br />
Segundo Sidney Leite (2003, p. 6), “o cin<strong>em</strong>a é capaz <strong>de</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />
imprimir formas, forjar e manipular situações e contribuir para o funcionamento <strong>de</strong><br />
um conjunto <strong>de</strong> idéias e crenças. A rigor, os filmes são po<strong>de</strong>rosos formadores e<br />
<strong>de</strong>formadores <strong>de</strong> opinião.” S<strong>em</strong> saber disso, o chefe camponês envia os dois jovens<br />
para as sessões <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mais próxima <strong>da</strong> montanha Fênix. Para ele, ir<br />
ao cin<strong>em</strong>a era uma missão política.<br />
Um dia, informou-se sobre a <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> projeção mensal <strong>em</strong> Yong Jing, e<br />
<strong>de</strong>cidiu que Luo e eu iríamos àquela ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Na volta, <strong>de</strong>veríamos contá-lo,<br />
do princípio ao fim, ao chefe e a todos os al<strong>de</strong>ões, mantendo-se fieis ao<br />
t<strong>em</strong>po exato <strong>da</strong> projeção. (SIJIE, 2000, p. 19)<br />
O chefe apreciava o talento dos jovens ao contar as histórias, mas jamais<br />
po<strong>de</strong>ria imaginar que se expondo e expondo todos os al<strong>de</strong>ões àquelas narrativas<br />
estaria entrando <strong>em</strong> contato, não com a leitura do filme com i<strong>de</strong>ias partidárias, mas,<br />
com uma leitura do filme feita por dois jovens intelectuais burgueses, filhos <strong>de</strong><br />
inimigos do povo. Algo inaceitável para os proletariados. As <strong>em</strong>oções passa<strong>da</strong>s ao<br />
narrar as historias dos filmes já não eram mais as dos próprios filmes e, sim,<br />
sentimentos <strong>de</strong>spertados durante a leitura do texto cin<strong>em</strong>atográfico. Eram as<br />
<strong>em</strong>oções dos dois jovens ao ler<strong>em</strong> o filme e interpretá-lo.<br />
Como perceb<strong>em</strong>os, os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa, no geral, são<br />
entendidos como mo<strong>de</strong>ladores <strong>de</strong> opiniões políticas e comportamentos sociais. Há<br />
uma crença comum <strong>de</strong> que “a relação do espectador com produtos audiovisuais<br />
(cin<strong>em</strong>a e tevê, principalmente) atua <strong>de</strong> modo negativo na formação <strong>de</strong> leitores [...]”<br />
(DUARTE, 2002, p. 20) Mas a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> está longe <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong>sses gêneros<br />
87
textuais. É até possível perceber a imitação <strong>de</strong> alguma mo<strong>da</strong> veicula<strong>da</strong> por um filme<br />
ou <strong>de</strong> um comportamento <strong>de</strong> um personag<strong>em</strong> por algumas pessoas. No entanto, tais<br />
constatações não são suficientes para afirmamos que “[...] o receptor é alguém que<br />
recebe passivamente os conteúdos <strong>da</strong>s mensagens transmiti<strong>da</strong>s naqueles artefatos<br />
e que t<strong>em</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual bloqu<strong>ea</strong><strong>da</strong> pela sutileza e pela complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
linguag<strong>em</strong> audiovisual.” (DUARTE, 2002, p. 64)<br />
Pois se assim fosse, <strong>de</strong>veríamos constatar, por meio <strong>da</strong>s imitações <strong>de</strong> como<br />
se vestir e se comportar como certos personagens, que os textos literários também<br />
se val<strong>em</strong> <strong>da</strong> passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do leitor, fazendo com que abandon<strong>em</strong> sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
cultural para adotar a <strong>de</strong> outros. No romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, o<br />
velho alfaiate reinventa a mo<strong>da</strong> na montanha Fênix a partir <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong><br />
Dumas.<br />
[...] motiva<strong>da</strong>s pela influência do romancista francês, começaram a<br />
aparecer nas roupas dos al<strong>de</strong>ões, sobretudo el<strong>em</strong>entos marítimos. Dumas<br />
seria o primeiro a se espantar, se tivesse visto nossos montanheses<br />
usando camisa <strong>de</strong> marinheiro, <strong>de</strong> ombros caídos e golas largas, retas nas<br />
costas e pontu<strong>da</strong>s na frente, estalando ao vento. Era quase possível<br />
respirar o Mediterrâneo. (SIJIE, 2000:112)<br />
88<br />
_Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte Cristo nos manteve acor<strong>da</strong>dos por nove<br />
noites segui<strong>da</strong>s. O velho alfaiate era infatigável. À noite,<br />
ele me ouvia. De dia, ele trabalhava. Inspira<strong>da</strong>s por<br />
Dumas...<br />
_ As fantasias apareciam nas roupas que ele criava.<br />
Pequenos <strong>de</strong>talhes franceses <strong>de</strong> repente adornavam as<br />
roupas <strong>da</strong>s nossas camponesas.
89<br />
_Quase s<strong>em</strong>pre símbolos marítimos. Naquele ano, uma<br />
brisa mediterrân<strong>ea</strong> soprou <strong>em</strong> nossa montanha.<br />
_Jaquetas <strong>de</strong> marinheiro, calças boca-<strong>de</strong>-sino... Dumas se<br />
surpreen<strong>de</strong>ria com o resultado.<br />
_Ele também havia <strong>de</strong>scrito roupas mais refina<strong>da</strong>s:<br />
corpetes bor<strong>da</strong>dos com flores-<strong>de</strong>-lis, vestidos ren<strong>da</strong>dos <strong>de</strong><br />
Merce<strong>de</strong>s.<br />
_Só a Costureirinha conhecia o nosso b<strong>em</strong> guar<strong>da</strong>do<br />
segredo
Não se trata <strong>de</strong> uma simples imitação, o leitor se vale <strong>de</strong> suas experiências<br />
culturais para r<strong>ea</strong>gir com rejeição ou aproximação <strong>em</strong> relação às informações<br />
conti<strong>da</strong>s no texto, imprimindo nas novas informações seus saberes e conhecimentos<br />
anteriores. É importante questionar, nesse caso, por que n<strong>em</strong> tudo que é veiculado<br />
<strong>em</strong> filmes ou livros vira mo<strong>da</strong>, são imitados pelos receptores?<br />
Tudo indica que, antes <strong>de</strong> sermos leitores, somos sujeitos sociais, ou seja,<br />
somos “dotados <strong>de</strong> valores, crenças, saberes e informações próprios <strong>de</strong> sua(s)<br />
cultura(s), que interage, <strong>de</strong> forma ativa, na produção dos significados <strong>da</strong>s<br />
mensagens.” (DUARTE, 2002, p. 65) Todos esses aspectos intrínsecos ao leitor<br />
interfer<strong>em</strong> no modo <strong>de</strong>le ver e interpretar conteúdos literários ou cin<strong>em</strong>atográficos.<br />
O fato <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar ser um <strong>de</strong>terminado herói <strong>de</strong> uma história, querer ser um<br />
<strong>de</strong>terminado personag<strong>em</strong> e ter a mesma vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele personag<strong>em</strong> faz<strong>em</strong> parte <strong>de</strong><br />
algo muito comum, que po<strong>de</strong> ocorrer durante a leitura. O receptor, normalmente, se<br />
i<strong>de</strong>ntifica com <strong>de</strong>terminado personag<strong>em</strong> ou modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> ou até mesmo com o<br />
próprio autor, com é o caso <strong>da</strong> personag<strong>em</strong> Costureirinha.<br />
_Amanhã, lerei Lun Xun para você.<br />
90
91<br />
_ Depois, você vai pensar que todos saíram dos livros<br />
<strong>de</strong>le.<br />
_Prefiro Balzac.<br />
_O tradutor <strong>de</strong>le é bom escritor. T<strong>em</strong> um estilo incrível.<br />
_O estilo não me importa. Prefiro Balzac. Não posso<br />
fazer na<strong>da</strong>
A i<strong>de</strong>ntificação é, como disse Freud, uma <strong>da</strong>s formas que o hom<strong>em</strong><br />
encontra para representar um laço afetivo com outra pessoa, e uma <strong>da</strong>s<br />
formas que o ego utiliza para aten<strong>de</strong>r ao <strong>de</strong>sejo pulsional. Transforma-se<br />
assim no objeto do <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> modo que o próprio indivíduo possa<br />
representar tanto o <strong>de</strong>sejante quanto o <strong>de</strong>sejado. (FREITAS,1987, p. 38)<br />
As horas <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s à leitura do romance Úrsula Mirouet, “Fiquei na cama até<br />
o cair <strong>da</strong> tar<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> comer, s<strong>em</strong> fazer na<strong>da</strong> além <strong>de</strong> mergulhar naquela história<br />
francesa <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> milagres.” (SIJIE, 2000, p. 49)<br />
_Quase 5 <strong>da</strong> manhã. Balzac pren<strong>de</strong>u sua atenção.<br />
_Estou quase acabando. Só faltam 20 páginas.<br />
_Me chame <strong>de</strong>pois. Vou lê-lo para a Costureirinha<br />
92
_”Ursula Mirouet”. Nome engraçado .<br />
E, por fim, o encantamento do narrador, no romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong><br />
<strong>chinesa</strong>, pela persong<strong>em</strong> Úrsula, <strong>de</strong> Balzac, “Queria ser como ela[...]” (SIJIE, 2000,<br />
p. 51) ex<strong>em</strong>plificam o efeito que o texto po<strong>de</strong> produzir no leitor.<br />
Da mesma forma, os espectadores <strong>de</strong> um filme são capazes <strong>de</strong> saír<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />
uma sessão <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a, sonhando <strong>em</strong> ser um <strong>de</strong>terminado personag<strong>em</strong>, se<br />
<strong>em</strong>ocionam e choram com algumas cenas, se apaixonam com trilhas sonoras. São<br />
muitas as r<strong>ea</strong>ções que um texto po<strong>de</strong> suscitar no leitor. Tudo vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>da</strong><br />
interação estabeleci<strong>da</strong> entre autor – texto – leitor ou produtor – texto – leitor, muito<br />
mais do que a imposição <strong>de</strong> sentidos <strong>de</strong> um sobre o outro.<br />
Em ambas as situações, os receptores dialogam com os textos e constro<strong>em</strong><br />
suas próprias interpretações. Porém, <strong>em</strong> que medi<strong>da</strong>, a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação<br />
dos fatos po<strong>de</strong> ser credita<strong>da</strong> aos probl<strong>em</strong>as comuns como à débil cultura dos<br />
receptores por conta <strong>da</strong>s diferenças <strong>de</strong> classe social? Certamente, ter<strong>em</strong>os<br />
respostas a um texto <strong>de</strong> formas diferentes pelo simples fato dos grupos sociais<br />
pertencer<strong>em</strong> a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s interpretativas 120 diferentes.<br />
Cabe aqui relatar um fato interessante que Carrière 121 <strong>de</strong>screve no livro A<br />
linguag<strong>em</strong> secreta do cin<strong>em</strong>a. Conta-nos o autor que para escrever roteiros dos<br />
filmes <strong>de</strong> Luis Buñuel, muitas vezes, ambos iam para uma casa <strong>de</strong> campo e ficavam<br />
dias discutindo sobre as possíveis r<strong>ea</strong>ções dos espectadores, mesmo sabendo que<br />
o significado que <strong>de</strong>sejavam imprimir iria variar <strong>de</strong> acordo com os interpretações<br />
feitas pelos leitores do filme.<br />
120 O conceito surgiu <strong>em</strong> 1976 num artigo <strong>de</strong> Fish, intitulado "Interpreting the Variorum". A teoria <strong>de</strong><br />
Fish enuncia que um texto não possui significado fora <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> pressuposições que diz<strong>em</strong><br />
respeito tanto ao que os caracteres significam e como <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser interpretados. Este contexto cultural<br />
freqüent<strong>em</strong>ente inclui intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> autoral, <strong>em</strong>bora não esteja limitado a isso. Fish afirma que<br />
interpretamos textos porque somos parte <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> interpretativa que nos fornece uma<br />
forma particular <strong>de</strong> ler um texto.<br />
121 J<strong>ea</strong>n-Clau<strong>de</strong> Carrière nasceu na França, <strong>em</strong> 1931. Roteirista pr<strong>em</strong>iado, trabalhou com alguns dos<br />
maiores diretores <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a, sobretudo com Luis Buñuel.<br />
93
No mesmo livro, o autor nos fala <strong>de</strong> uma interessante interpretação feita por<br />
um espectador do filme A bela <strong>da</strong> tar<strong>de</strong> 122 . A obra <strong>de</strong> Carrière foi exibi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />
diversos países e, num <strong>de</strong>terminado dia, ele recebeu um telefone <strong>de</strong> um morador do<br />
país Laos 123 que havia assistido ao filme. O espectador estava curioso <strong>em</strong> saber<br />
como Carrière e Buñuel adquiriram um conhecimento tão antigo <strong>da</strong>quele país<br />
expresso numa <strong>da</strong>s cenas do filme, on<strong>de</strong> um cor<strong>ea</strong>no, <strong>de</strong> passag<strong>em</strong> pelo lugar,<br />
chega ao bor<strong>de</strong>l e mostra às moças o interior <strong>de</strong> uma caixa doura<strong>da</strong> que ele<br />
preten<strong>de</strong> usar. Na cena, não é possível i<strong>de</strong>ntificar o conteúdo <strong>da</strong> pequena caixa,<br />
v<strong>em</strong>os apenas a recusa <strong>da</strong>s prostitutas que estão indigna<strong>da</strong>s com a proposta. Entre<br />
elas está Séverine, que resolve aceitar o convite e se dirige ao quarto com o<br />
cor<strong>ea</strong>no <strong>de</strong>sconhecido. O espectador laosiano explicou que senhoras laosianas<br />
sofistica<strong>da</strong>s, nos t<strong>em</strong>pos antigos, “costumavam atar um gran<strong>de</strong> besouro com uma<br />
fina corrente <strong>de</strong> ouro e colocá-lo no clitóris, durante o ato sexual” (CARRIÈRE, 1995,<br />
p. 93) Esse costume servia para <strong>da</strong>r mais prazer ao ato sexual.<br />
O mais interessante para nossa discussão é que n<strong>em</strong> Carrière n<strong>em</strong> Buñuel<br />
conheciam tal costume. A caixinha presente na cena representava, segundo eles, o<br />
<strong>de</strong>sejo secreto, a perversão sexual conti<strong>da</strong> <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> pessoa. No episódio narrado<br />
acima t<strong>em</strong>os mais uma ex<strong>em</strong>plificação <strong>de</strong> que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o autor ou produtor<br />
consegu<strong>em</strong> prever as possíveis interpretações que os leitores farão <strong>de</strong> suas obras.<br />
Rosália Duarte, no livro Cin<strong>em</strong>a e Educação, também conta essa história para<br />
apontar que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o que o espectador vê é aquilo que o r<strong>ea</strong>lizador <strong>da</strong> obra<br />
esperava, <strong>de</strong>sejava. Segundo a autora, <strong>em</strong> relação aos diferentes olhares que se<br />
po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong> uma mesma obra:<br />
Não parece que seja assim: o olhar do espectador nunca é neutro, n<strong>em</strong><br />
vazio <strong>de</strong> significados. Ao contrário, esse olhar é permanent<strong>em</strong>ente<br />
informado e dirigido pelas práticas, valores e normas <strong>da</strong> cultura na qual ele<br />
está imerso. Quantas vezes, ao comentar um filme com alguém que<br />
também o viu, perceb<strong>em</strong>os, surpresos, que ele ou ela teve uma<br />
interpretação muitíssimo diferente <strong>da</strong> nossa. Em alguns casos, chegamos a<br />
duvi<strong>da</strong>r <strong>de</strong> que estamos falando do mesmo filme. (DUARTE, 2002, p. 68-<br />
69)<br />
122 O filme conta a história <strong>de</strong> Séverine (Catherine Deneuve), jov<strong>em</strong>, rica, casa<strong>da</strong> com um cirurgião <strong>de</strong><br />
sucesso e infeliz, que procura um discreto bor<strong>de</strong>l para r<strong>ea</strong>lizar suas fantasias sexuais e conseguir o<br />
prazer que seu marido não consegue lhe <strong>da</strong>r. Curiosa, Séverine termina acostumando-se a uma vi<strong>da</strong><br />
dupla. Até o aparecimento <strong>de</strong> Marcel, um <strong>de</strong>linquante que se enamora <strong>da</strong> mulher, e complica a<br />
cômo<strong>da</strong> situação <strong>da</strong> protagonista.<br />
123 O Laos é um país asiático, localizado na Indochina e limitado a norte pela China, a leste pelo<br />
Vietname, a sul pelo Camboja, a sul e oeste pela Tailândia e a oeste por Myanmar.<br />
94
As mesmas afirmativas são direciona<strong>da</strong>s ao campo <strong>da</strong> leitura literária.<br />
Quantas vezes os livros não parec<strong>em</strong> ter o mesmo final para um <strong>de</strong>terminado leitor e<br />
para outro? Ca<strong>da</strong> leitor, exposto ao mesmo texto, r<strong>ea</strong>ge <strong>de</strong> diferente forma. Fazendo<br />
com que aquele nunca seja um único texto, mas sim plural e dinâmico.<br />
Portanto, mesmo que literatura e cin<strong>em</strong>a sejam expressões artísticas<br />
diferentes, on<strong>de</strong> a primeira se apropria <strong>da</strong> palavra, <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> verbal escrita e a<br />
segun<strong>da</strong> abre espaço para uma linguag<strong>em</strong> audiovisual, os signos e apelos são<br />
diferentes, a leitura é muito mais abstrata e subjetiva; o cin<strong>em</strong>a, concreto. Mas,<br />
ambas são precedi<strong>da</strong>s, antes <strong>de</strong> qualquer leitura, <strong>da</strong> leitura do mundo. T<strong>em</strong>os no<br />
texto literário e midiático, no sentido <strong>de</strong> tessitura narrativa, uma forma <strong>de</strong> mediação<br />
que permite o espectador, assim como o leitor, produzir e partilhar sentidos na<br />
interação texto-leitor.<br />
Ao pensarmos nas práticas leitoras e <strong>em</strong> leitores que interag<strong>em</strong> com o texto,<br />
colocando-o <strong>em</strong> movimento, é inevitável questionarmos sobre o po<strong>de</strong>r transformador<br />
<strong>da</strong> leitura. Seria isso possível? De que forma? Há na leitura uma po<strong>de</strong>r r<strong>ea</strong>lmente<br />
transformador?<br />
Em Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, a leitura e as conseqüências gera<strong>da</strong>s<br />
por ela são reforça<strong>da</strong>s no filme. Muitas cenas, que não estão inseri<strong>da</strong>s no romance,<br />
são coloca<strong>da</strong>s no texto cin<strong>em</strong>atográfico. O que nos leva a crer que o autor Dai Sijie<br />
também acredita na leitura como instrumento <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ador <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças no<br />
sujeito-leitor, mu<strong>da</strong>nças essas que por muitas vezes pod<strong>em</strong> acarretar<br />
transformações no espaço e no t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que esses sujeitos estão inseridos.<br />
Traz<strong>em</strong>os, novamente, à tona, o i<strong>de</strong>ário do teórico Iser, que tanto se preocupou com<br />
o papel <strong>da</strong> leitura e a função do leitor como peça fun<strong>da</strong>mental para a concretização<br />
<strong>da</strong> obra literária. Segundo ele (1996, p. 197), “A estrutura do texto e o ato <strong>de</strong> leitura<br />
são, portanto, compl<strong>em</strong>entares para <strong>da</strong>r lugar à comunicação. Isso ocorre quando o<br />
texto se torna o correlato <strong>da</strong> consciência do leitor. 124 ”<br />
O estudo <strong>de</strong> Iser acerca do efeito estético do texto literário mostra-se<br />
primordial para o reconhecimento do po<strong>de</strong>r transformador <strong>da</strong> leitura. Bas<strong>ea</strong><strong>da</strong> na<br />
idéia <strong>de</strong> que o leitor, diante <strong>da</strong>s disposições materiais <strong>da</strong> obra, interpreta e<br />
concretiza o objeto estético a partir <strong>de</strong> um repertório pessoal, t<strong>em</strong>os a obra literária<br />
124 La structure du texte et celle <strong>de</strong> l’acte <strong>de</strong> lecture sont donc complémentaires pour donner lieu à la<br />
communication. Celle-ci se produit lorsque le texte <strong>de</strong>vient le corrélat <strong>de</strong> la conscience du lecteur.<br />
(ISER, 1996, p. 197) A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
95
construí<strong>da</strong> na convergência entre leitor e texto. Sua concretização requer a<br />
participação do imaginário do receptor. O mesmo po<strong>de</strong> valer para os textos<br />
cin<strong>em</strong>atográficos. Nesse sentido, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os pensar <strong>de</strong> que forma tais textos<br />
po<strong>de</strong>riam trazer contribuições significativas ao leitor, não apenas tornando-os mais<br />
atentos aos fatores lingüísticos, imagéticos, marcas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s pelo autor, enfim,<br />
diversas marcas que auxiliam na interpretação, mas também <strong>de</strong> que maneira o leitor<br />
é tocado por esse texto a ponto <strong>de</strong> se transformar.<br />
Os efeitos causados pela obra são essenciais para a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> seu<br />
significado, já que esta não t<strong>em</strong> existência efetiva fora <strong>da</strong> consciência do leitor.<br />
Assim, to<strong>da</strong> percepção é uma leitura, sendo o texto uma produção <strong>de</strong> sentido<br />
através <strong>de</strong> linguagens, sejam elas verbal, não-verbal, misto <strong>de</strong> verbal e não-verbal,<br />
linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> movimento e sons.<br />
Começamos a verificar tais efeitos nos personagens <strong>de</strong> Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>. É no confronto do romance com o filme, que perceb<strong>em</strong>os na<br />
obra cin<strong>em</strong>atográfica o quanto o velho alfaiate t<strong>em</strong>ia por sua neta, que ouvia as<br />
histórias narra<strong>da</strong>s nos livros proibidos.<br />
96<br />
_Nós dois já nos conhec<strong>em</strong>os. Então, pod<strong>em</strong>os falar<br />
francamente.<br />
_Estou ouvindo.<br />
_Minha neta mudou recent<strong>em</strong>ente.<br />
_Mudou? Em que sentido?<br />
_No outro dia, quando cheguei <strong>em</strong> casa...<br />
_Sab<strong>em</strong> o que é isto?<br />
_Uma camiseta.<br />
_Não, não é. É outra coisa.<br />
(...)
_Chama-se “sutiã”. É como chamam nos livros.<br />
97<br />
_T<strong>em</strong>i tanto por ela que minhas mãos tr<strong>em</strong>eram. Às<br />
vezes, um livro po<strong>de</strong> afetar sua vi<strong>da</strong> inteira.<br />
_Avô! É isso que o senhor veio me dizer.<br />
_Pare <strong>de</strong> ler romances para ela. Eles não diz<strong>em</strong> a<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apren<strong>da</strong> coisas úteis.<br />
A fala do avô sugere um enorme pavor pela leitura e as consequências<br />
trazi<strong>da</strong>s por ela. O velho alfaiate parecia já prever o que aconteceria, caso a<br />
<strong>costureirinha</strong> se envolvesse num mundo <strong>de</strong> ficção, que reflete o nosso e nos inspira.<br />
No romance, o alerta <strong>da</strong>do pelo personag<strong>em</strong> não é apresentado. Pelo contrário,<br />
t<strong>em</strong>os uma recepção muito boa por parte do alfaiate <strong>em</strong> ouvir histórias estrangeiras.<br />
Agora, não é mais o avó qu<strong>em</strong> fala e, sim, o pai.
_Prefiro que me cont<strong>em</strong> uma história – pediu-nos num longo bocejo.<br />
_Minha filha me disse que vocês eram contadores formidáveis. Foi por isso<br />
que me hospe<strong>de</strong>i com vocês. (...) _An<strong>da</strong>, vai! – encorajou-me. _Conte-nos<br />
alguma coisa que eu ain<strong>da</strong> não conheça.<br />
Aceitei, hesitando <strong>em</strong> exercer o papel <strong>de</strong> contador <strong>da</strong> meia-noite. (...)<br />
Po<strong>de</strong>ria ter escolhido um filme chinês, norte-cor<strong>ea</strong>no, ou até albanês, se<br />
ain<strong>da</strong> não tivesse experimentado o fruto proibido, a valise secreta <strong>de</strong><br />
Quatro-olhos. Mas, agora, aqueles filmes <strong>de</strong> agressivo r<strong>ea</strong>lismo proletário,<br />
parte <strong>de</strong> minha reeducação cultural, pareciam-me tão distantes dos <strong>de</strong>sejos<br />
humanos, do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sofrimento e, sobretudo, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que não via<br />
interesse <strong>em</strong> me <strong>da</strong>r ao trabalho <strong>de</strong> contá-los assim tão tar<strong>de</strong> <strong>da</strong> noite. De<br />
repente, l<strong>em</strong>brei-me <strong>de</strong> um romance que acabara <strong>de</strong> ler. Tinha certeza <strong>de</strong><br />
que Luo ain<strong>da</strong> não o conhecia, já que só se encantava por Balzac. (...)<br />
_Estamos <strong>em</strong> Marselha, no ano <strong>de</strong> 1815.<br />
A história que se iniciará será do escritor Dumas, intitula<strong>da</strong> O Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte<br />
Cristo. O narrador se <strong>de</strong>tém aos pormenores <strong>da</strong> narrativa, passando nove noites<br />
segui<strong>da</strong>s <strong>em</strong> claro. Apesar <strong>de</strong> querer interferir no contato <strong>da</strong> neta com os livros, o<br />
avô, no filme, assim como o pai, no romance, se mantém acor<strong>da</strong>do por nove noites.<br />
É ao ouvir a obra <strong>de</strong> Dumas que percebe-se que se a leitura <strong>da</strong> ficção existe é<br />
também porque o leitor é capaz <strong>de</strong>, por seu intermédio, ter acesso a t<strong>em</strong>as, idéias,<br />
valores, i<strong>de</strong>ologias, culturas que diretamente lhes interessam e favoreçam seu<br />
autoquestionamento, assim acontecendo a conexão entre textos literários e a<br />
transformação do sujeito leitor. Resultado disso é perceptível nos trabalhos criados<br />
pelo alfaiate, pois el<strong>em</strong>entos marítimos foram incorporados as suas criações,<br />
diferentes bor<strong>da</strong>dos, mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> calças que antes não faziam parte <strong>da</strong> cultura<br />
<strong>chinesa</strong>.<br />
Eram aspectos do mediterrâneo que saiam <strong>da</strong>s páginas do livro <strong>de</strong> Dumas e<br />
se configuravam na consciência do leitor, mostrando que as estruturas textuais e os<br />
atos <strong>de</strong> compreensão são dois pólos do processo <strong>de</strong> leitura, que obtém êxito no<br />
momento que sai <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra e ganha vi<strong>da</strong> na ativação mental do<br />
leitor. S<strong>em</strong> perceber, el<strong>em</strong>entos do romance lido são inseridos na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />
al<strong>de</strong>ões, instituindo, assim, a criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> no ato <strong>da</strong> recepção.<br />
98
4.1. OUTRAS TRANSFORMAÇÕES PELA LEITURA<br />
A seqüência <strong>da</strong> fílmica analisa<strong>da</strong> anteriormente, tanto do romance quanto do<br />
filme, é apenas uma <strong>da</strong>s muitas que traduz<strong>em</strong> para a ficção o po<strong>de</strong>r que a leitura<br />
t<strong>em</strong> <strong>de</strong> transformar, ou, ao menos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar pensamentos e novos <strong>de</strong>sejos. É<br />
nítido que todos aqueles al<strong>de</strong>ões, participantes <strong>da</strong>s sessões <strong>de</strong> narração <strong>de</strong><br />
histórias, ou melhor, <strong>de</strong> filmes que viravam narrativas com os dois jovens,<br />
contadores <strong>de</strong> histórias, passaram a conhecer outros sentimentos, a se<br />
<strong>em</strong>ocionar<strong>em</strong> mais.<br />
O chefe também não escapou <strong>de</strong>sse efeito transformador. Apesar <strong>de</strong><br />
continuar arredio e durão do inicio ao fim, ele também é tocado, <strong>de</strong> uma certa forma,<br />
pelas narrativas. Cabe l<strong>em</strong>brar que é ele qu<strong>em</strong> instaura as sessões <strong>de</strong> contação <strong>de</strong><br />
histórias, sendo consi<strong>de</strong>rado no romance como o único hom<strong>em</strong> no mundo capaz <strong>de</strong><br />
apreciar o talento <strong>de</strong> Luo para contar histórias. Caracterizado como amante <strong>da</strong>s<br />
belas histórias, o chefe parece gostar <strong>de</strong> viver na tría<strong>de</strong> entre r<strong>ea</strong>l, fictício e<br />
imaginário.<br />
No entanto, os maiores ícones representativos do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformação<br />
pela leitura são os três jovens protagonistas <strong>de</strong> Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>.<br />
Luo e Ma são dois rapazes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, filhos <strong>de</strong> intelectuais que tiveram<br />
oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> estudo, enquanto a Costureirinha é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> selvag<strong>em</strong>, pouco<br />
civiliza<strong>da</strong>. Ao conhecer<strong>em</strong>-na, os dois amigos se encantam, mas o preconceito é<br />
nítido: “_Você está apaixonado? _Ela não é bastante civiliza<strong>da</strong>, pelo menos para<br />
mim!” (SIJIE, 2000, p. 26) Mesmo com as diferenças, os três se tornam cúmplices <strong>de</strong><br />
um crime: roubar<strong>em</strong> e ler<strong>em</strong> romances estrangeiros.<br />
Na ocasião do roubo, t<strong>em</strong>os o encantamento ao abrir<strong>em</strong> a valise secreta <strong>de</strong><br />
Quatro-olhos.<br />
_É lindo! Olha o vestido <strong>de</strong>la. Nunca vi na<strong>da</strong> igual.<br />
99
100<br />
_Deixe-me ver.<br />
_O que está escrito?<br />
_”Combinar beleza com inteligência é muito raro.” O<br />
que é isso? “A Prima Bette”, <strong>de</strong> Balzac.<br />
_”Balzac...” Eu queria saber ler. Só sei olhar os<br />
<strong>de</strong>senhos.<br />
_Ouça esta frase: “No dia <strong>de</strong> hoje...348 anos, 6 meses<br />
e 19 dias atrás...os parisienses acor<strong>da</strong>ram com o som<br />
<strong>de</strong> todos os sinos tocando.”<br />
_E o título <strong>de</strong>ste!? “O vermelho e o negro” Só pelo<br />
título, já adorei.<br />
_On<strong>de</strong> fica Paris?
_Num país chamado França<br />
_On<strong>de</strong> fica a França?<br />
_Na Europa.<br />
(Risos provocados pela leitura dos títulos)<br />
O exame do episódio acima oferece as sensações dos personagens ao<br />
entrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> contato com os textos literários. Os próprios títulos já <strong>de</strong>spertam algo<br />
que os atra<strong>em</strong> para a leitura. No caso <strong>da</strong> Costureirinha, é a linguag<strong>em</strong> não-verbal<br />
que exerce esse papel <strong>de</strong> motivacional.<br />
Os leitores se posicionam frente à obra e o papel <strong>da</strong> leitura é, portanto, o <strong>de</strong><br />
promover sínteses que constituirão correlatos que impulsionarão expectativas,<br />
fazendo com que, através <strong>de</strong>sse processo contínuo, o receptor atualize e modifique<br />
o objeto, <strong>de</strong>senvolvendo novas expectativas. Desse modo, o leitor está na<br />
interseção entre retenção e propensão. Nesse momento,<br />
101
102<br />
A posição do leitor no texto está no ponto <strong>de</strong> interseção entre pretensão e<br />
retenção. É nesse ponto que a seqüência <strong>de</strong> frases se organiza e o<br />
horizonte interno do texto se abre. Ca<strong>da</strong> correlação individual <strong>de</strong> frases<br />
prefigura um certo horizonte 125 . (ISER, 1993, p. 203)<br />
Essa nova correlação respon<strong>de</strong>rá a algumas expectativas, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />
<strong>em</strong> que estimulará outras. Tais correlações terão efeito nas sínteses anteriores,<br />
possibilitando alterações e novas conexões. Em resumo, ca<strong>da</strong> sentença prefigura<br />
um horizonte que logo se transforma no pano <strong>de</strong> fundo para o correlato seguinte,<br />
para, então, ser modificado. Ex<strong>em</strong>plo disso é a m<strong>em</strong>ória do que já foi lido<br />
anteriormente ser altera<strong>da</strong>, interagindo com os novos correlatos.<br />
Ao finalizar a leitura <strong>de</strong> Ursula Mirouet, Ma ilustra claramente o que seria a<br />
percepção <strong>de</strong>ste processo no seguinte momento:<br />
_Que tal?<br />
_Incrível! Sinto que o mundo mudou. O céu, as estrelas,<br />
os sons, a luz, até o cheiro dos porcos. Tudo mudou!<br />
_Ursula Mirouet!<br />
125 La position du lecteur <strong>da</strong>ns le texte se situe au point d’intersection entre protention et rétention.<br />
C’est en ce point que la suite <strong>de</strong>s phrases s’organize et que l’horizon interne du texte s’ouvre. Chaque<br />
corrélation individuelle <strong>de</strong> phrases préfigure un certain horizon. (ISER, 1996, p. 203) A tradução é <strong>de</strong><br />
minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.
O personag<strong>em</strong> Ma mostra ter consciência do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformação que a<br />
leitura t<strong>em</strong>. Na leitura atenta, o leitor age como um co-criador do texto na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />
que supre a porção que não está escrita, mas apenas implícita, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo a forma<br />
<strong>de</strong> recepção tanto do leitor quanto do texto, sendo o processo <strong>de</strong> leitura inviável,<br />
s<strong>em</strong> a interação dinâmica <strong>de</strong> ambos.<br />
A interpretação consiste, então, no produto <strong>de</strong>sta interação entre texto e leitor,<br />
sendo impossível, <strong>de</strong> acordo com a concepção <strong>de</strong> Iser, se <strong>da</strong>r a partir <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stes<br />
el<strong>em</strong>entos isolados. Neste aspecto, a função do leitor é a <strong>de</strong> preencher o que está<br />
implícito na estrutura <strong>da</strong> obra, tendo papel <strong>de</strong> relevância na sua concretização na<br />
medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que este é convocado a participar no processo criativo do texto como<br />
<strong>de</strong>codificador dos signos que são os <strong>de</strong>tentores dos correlatos.<br />
Essa participação do leitor na concretização <strong>da</strong> obra literária requer o<br />
acionamento <strong>de</strong> seu imaginário. Assim, entend<strong>em</strong>os que ca<strong>da</strong> leitor irá preencher as<br />
porções não escritas do texto, suas lacunas e in<strong>de</strong>terminações, <strong>de</strong> modo particular,<br />
uma vez que o repertório <strong>de</strong>ste imaginário é único.<br />
Para comprovar que o texto é ativado e colocado <strong>em</strong> movimento pelo leitor,<br />
ir<strong>em</strong>os nos apoiar numa análise <strong>da</strong> última seqüência do romance e do filme Balzac e<br />
a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>. Após <strong>de</strong>scobrir<strong>em</strong> a valise com os livros proibidos, Luo tinha<br />
um único objetivo: “_Com estes livros, vou transformar a Costureirinha. Ela nunca<br />
mais será uma simples montanhesa.” Assim como o avô <strong>da</strong> jov<strong>em</strong>, que t<strong>em</strong>ia por ela<br />
entrar <strong>em</strong> contato com os livros, Luo também sabia do que os livros eram capazes.<br />
Sabia que ler histórias para ela po<strong>de</strong>ria torná-la uma jov<strong>em</strong> educa<strong>da</strong> e sofistica<strong>da</strong>,<br />
acabaria com to<strong>da</strong> a ignorância que reinava nos al<strong>de</strong>ões <strong>da</strong> montanha Fênix. Porém,<br />
algo lhe escapa do controle. A mu<strong>da</strong>nça vai do corte <strong>de</strong> cabelo ao calçado. A jov<strong>em</strong><br />
que antes era <strong>de</strong>scrita como:<br />
103<br />
A princesa <strong>da</strong> montanha <strong>da</strong> Fênix Celestial usava sapatos <strong>de</strong> lona rosaclaro,<br />
ao mesmo t<strong>em</strong>po flexíveis e resistentes, sob os quais podíamos<br />
acompanhar os movimentos dos <strong>de</strong>dos, to<strong>da</strong>s as vezes que ele acionava o<br />
pe<strong>da</strong>l <strong>da</strong> máquina <strong>de</strong> costura.(...) Uma trança grossa, <strong>de</strong> três ou quatro<br />
centímetros <strong>de</strong> diâmetro, começava <strong>da</strong> nuca, <strong>de</strong>scia-lhe pelas costas,<br />
ultrapassava os rins e terminava presa por um laço <strong>de</strong> cetim(...) (SIJIE,<br />
2000, p. 21)
Agora, <strong>de</strong>pois do contato com os livros, se transforma.<br />
_Espera!<br />
_Por que cortou o cabelo?<br />
_Me <strong>de</strong>u vonta<strong>de</strong>.<br />
_Qu<strong>em</strong> lhe comprou esse tênis?<br />
_Foi o Ma.<br />
_Resolvi partir.<br />
104
Depois dos livros ter<strong>em</strong> abertos os olhos, ensinando outros sentimentos,<br />
<strong>de</strong>sejos, conduzindo-os por caminhos nunca antes visitados, mesmo s<strong>em</strong> sair do<br />
lugar, não se po<strong>de</strong> negar que através do texto algo acontece ao leitor, que<br />
aparent<strong>em</strong>ente não pod<strong>em</strong>os nos separar <strong>da</strong>s ficções, tendo como função a<br />
constituição humana. Além disso, segundo Umberto Eco (2003, p. 21),<br />
105<br />
A função dos contos “imodificáveis” é precisamente esta: contra qualquer<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r o <strong>de</strong>stino, eles nos faz<strong>em</strong> tocar com os <strong>de</strong>dos a<br />
impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mudá-lo. E assim fazendo, qualquer que seja a história<br />
que estejam contando, contam também a nossa, e por isso nós os l<strong>em</strong>os e<br />
os amamos. T<strong>em</strong>os necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sua severa lição “repressiva”. A<br />
narrativa hipertextual po<strong>de</strong> nos educar para a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e para a<br />
criativi<strong>da</strong><strong>de</strong>. É bom, mas não é tudo. Os contos “já feitos” nos ensinam<br />
também a morrer Creio que esta educação ao Fado e à morte é uma <strong>da</strong>s<br />
funções principais <strong>da</strong> literatura. Talvez existam outras, mas não me vêm à<br />
mente agora.<br />
O leitor ativo costuma ler <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e não somente passar a vista, s<strong>em</strong><br />
compreen<strong>de</strong>r o que lhe está sendo dito na leitura. E consegue ler nas "entrelinhas"<br />
do texto o subtendido, fazer inferências, ampliar sua visão <strong>de</strong> mundo, amadurecer,<br />
libertar sua consciência <strong>da</strong> ignorância, refletir acerca <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> que vive,<br />
projetar-se para o passado, presente, futuro, <strong>de</strong>senvolver pensamento crítico, se<br />
autoquestionar ou questionar o outro, entre outros. E quando esses conhecimentos<br />
adquiridos através <strong>da</strong> leitura não ficam só na cabeça, mas são repassados para o<br />
coração, ocorre a transformação. Daí, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, torna-se um ser humano b<strong>em</strong><br />
melhor para a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, capaz <strong>de</strong> construir e somar para si e com outros.
Sobre as projeções que são feitas <strong>da</strong> ficção para a vi<strong>da</strong> r<strong>ea</strong>l a partir <strong>da</strong><br />
interação entre texto e leitor, é importante retomarmos a fala <strong>de</strong> Marcel Proust, que<br />
serve como epígrafe <strong>de</strong>sse capítulo.<br />
106<br />
Na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>, todo leitor, quando lê, é o leitor <strong>de</strong> si mesmo. A obra do<br />
escritor não passa <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> instrumento óptico que ele oferece<br />
ao leitor a fim <strong>de</strong> permitir que este distinga aquilo que, s<strong>em</strong> o livro, talvez<br />
não pu<strong>de</strong>sse ver <strong>em</strong> si mesmo. (PROUST, 1958, p. 153)<br />
Então, nos jogos <strong>de</strong> leituras constituídos no romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong><br />
<strong>chinesa</strong> e no filme homônimo, o pensamento <strong>de</strong> Proust é facilmente reconhecido no<br />
<strong>de</strong>sfecho <strong>da</strong> narrativa, on<strong>de</strong> a <strong>costureirinha</strong> lê os textos literários, principalmente do<br />
autor Balzac, relendo a si mesma a todo instante. Nesse ponto, as transformações<br />
sofri<strong>da</strong>s pela personag<strong>em</strong> converg<strong>em</strong> <strong>em</strong> direção ao próprio autor e produtor Dai<br />
Sijie, porque, lendo o romance para o cin<strong>em</strong>a, ele, no processo <strong>de</strong> escrita e leitura,<br />
constrói a leitura <strong>de</strong> si mesmo. Ambos conhec<strong>em</strong> a transformação pela leitura, e a<br />
transformação sofri<strong>da</strong> pela Costureirinha é aquela que também mais se aproxima <strong>da</strong><br />
sofri<strong>da</strong> pelo autor.<br />
_Qu<strong>em</strong> a transformou?<br />
_Balzac.
No romance, a afirmativa também acontece.<br />
107<br />
_Ela se foi – disse-lhe.<br />
_Ela <strong>de</strong>seja viver numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> gran<strong>de</strong>. Ela me falou <strong>de</strong> Balzac.<br />
_E aí?<br />
_Ela me disse que Balzac fez com que compreen<strong>de</strong>sse uma coisa: a<br />
beleza <strong>de</strong> uma mulher é um tesouro que não t<strong>em</strong> preço.<br />
(SIJIE, 2000, p. 164)<br />
Ao final do romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong>, t<strong>em</strong>os na personag<strong>em</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>costureirinha</strong> um novo sujeito social, construído a partir <strong>da</strong> leitura do pequeno<br />
livro <strong>de</strong> Balzac, Ursule Mirouët, entre outras. Os efeitos causados pela leitura e<br />
expostos neste trabalho, esclarec<strong>em</strong> pod<strong>em</strong>os esclarecer <strong>de</strong> on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> o sentido <strong>da</strong><br />
análise. A resposta é <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>em</strong> duas vias, pois o sentido v<strong>em</strong> do leitor/espectador <strong>em</strong><br />
contribuição e interação com o texto, sendo o receptor qu<strong>em</strong> dá significação ao texto<br />
(literário/cin<strong>em</strong>atográfico) a que se refer<strong>em</strong> seus próprios sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> compreensão,<br />
valores e afetos. Os textos pod<strong>em</strong> suscitar as mais diversas interpretações<br />
<strong>de</strong>seja<strong>da</strong>s ou não pelo autor, produzi<strong>da</strong>s por um texto literário ou cin<strong>em</strong>atográfico<br />
cujo mecanismo <strong>de</strong> funcionamento interno se presta aos mais variados percursos e<br />
são constituí<strong>da</strong>s pela ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> interpretativa do leitor/espectador, que nelas projeta<br />
suas visões <strong>de</strong> mundo, aspectos culturais, <strong>de</strong>sejos, afetos e interesses.
5 CONCLUSÃO<br />
108<br />
[...] ler significa sair <strong>de</strong> si mesmo, estar aberto ao outro,<br />
estar disponível.<br />
É o leitor que faz o papel <strong>de</strong> receptor, <strong>de</strong> discriminador<br />
e <strong>de</strong> co-produtor.<br />
Maria Elizabeth Chaves <strong>de</strong> Mello 126<br />
Nos capítulos prece<strong>de</strong>ntes, procuramos observar e analisar, a partir do<br />
romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> e do filme homônimo, <strong>de</strong> que forma se<br />
constitui a relevância do leitor no processo <strong>de</strong> construção e significação <strong>da</strong> obra<br />
literária. Interessou-nos também avaliar o <strong>de</strong>slocamento do eixo literário para o<br />
cin<strong>em</strong>atográfico, verificando até que ponto o espectador, assim como o leitor, é um<br />
agente ativo no momento <strong>de</strong> atribuições <strong>de</strong> sentido e interpretações <strong>da</strong> obra.<br />
O <strong>de</strong>slocamento <strong>em</strong> questão se faz necessário, pois, vivendo numa<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong> midiatiza<strong>da</strong>, perceb<strong>em</strong>os que a imag<strong>em</strong> fílmica e até mesmo a televisiva<br />
possu<strong>em</strong> um apelo muito forte na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, fazendo com que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mundo<br />
pragmático, imediatista e consumista, os textos literários tenham um espaço<br />
reduzido, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser uma prática social, sendo consi<strong>de</strong>rados s<strong>em</strong> função e<br />
tornando-se uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mecânica, uma vez que muitos indivíduos só le<strong>em</strong> por<br />
obrigação.<br />
Mesmo que, a princípio, d<strong>em</strong>onstr<strong>em</strong> tantas diferenças, sendo expressões<br />
artísticas que se apropriam <strong>de</strong> diferentes instrumentos para <strong>de</strong>spertar interesse,<br />
126 C’est le lecteur qui joue le rôle du récepteur, du discriminateur et du co-producteur <strong>de</strong> l’oeuvre.<br />
(MELLO, 2001, p. 338) A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.
acreditamos ser possível estabelecer uma correlação entre cin<strong>em</strong>a e literatura.<br />
Ambos necessitam receptor para que tenham existência. S<strong>em</strong> a presença <strong>de</strong>ste e<br />
s<strong>em</strong> o texto se manifestar <strong>em</strong> sua consciência, o mesmo passa a ser um na<strong>da</strong>. Para<br />
que a obra ganhe vi<strong>da</strong> é necessário, como afirma Iser (1985, p. 72), “[...] que o leitor<br />
se instale forçosamente no texto ou no mundo do texto 127 ”, assumindo, <strong>de</strong> acordo<br />
com Mello (2001, p. 338), o papel <strong>de</strong> “receptor, discriminador e <strong>de</strong> co-produtor 128 ”.<br />
É esse leitor que t<strong>em</strong>os na personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> <strong>costureirinha</strong> e que pod<strong>em</strong>os<br />
esten<strong>de</strong>r ao próprio escritor Dai Sijie. A primeira parece-nos chegar ao final do livro<br />
ao avesso, pois são imensas as transformações pelas quais passou após manter<br />
contato com os livros “proibidos”. As histórias que habitavam livros oci<strong>de</strong>ntais e que<br />
eram narra<strong>da</strong>s por Luo ou por Ma fluíam na leitura <strong>da</strong> Costureirinha para além dos<br />
limites <strong>da</strong> página, sofrendo seleção, combinação ou associação com um mundo já<br />
conhecido e que <strong>de</strong>veria ser modificado, direcionando-nos para uma concepção <strong>de</strong><br />
leitura, segundo Manguel (1997, p. 54): “Ler, então, não é um processo automático<br />
<strong>de</strong> capturar um texto como um papel fotossensível captura a luz, mas um processo<br />
<strong>de</strong> reconstrução <strong>de</strong>sconcertante, labiríntico, comum e, contudo, pessoal.”<br />
Nesse sentido <strong>de</strong> leitura, abor<strong>da</strong>mos o posicionamento do autor Dai Sijie,<br />
inicialmente como escritor do romance. Em segui<strong>da</strong>, como receptor do próprio texto,<br />
on<strong>de</strong> experimenta a <strong>de</strong>sconcertante tarefa <strong>de</strong> leitor ativo, que numa interação com o<br />
texto necessita preencher os vazios, completando-os com <strong>de</strong>sejo, experiência,<br />
questionamentos, r<strong>em</strong>orso, gostos e i<strong>de</strong>ologias do próprio receptor. Assim, Dai Sijie,<br />
agora leitor, se torna também co-produtor, relendo o romance Balzac e a<br />
<strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> no cin<strong>em</strong>a, constituindo um novo texto, inserindo novas<br />
perspectivas sobre o mundo.<br />
E, finalmente, quando t<strong>em</strong>os contato com os dois textos, o literário e o<br />
cin<strong>em</strong>atográfico, perceb<strong>em</strong>os que exist<strong>em</strong> muitos pontos <strong>de</strong> contato entre eles, mas<br />
nós, receptores, também inserimos <strong>em</strong> nossas leituras outras influências – sociais,<br />
culturais, situacionais – recriando aquele texto, pois como explica Boff, o leitor t<strong>em</strong><br />
alguns passos a percorrer durante o ato <strong>de</strong> ler.<br />
127 “[...] le lecteur s’installe forcément <strong>da</strong>ns le texte ou <strong>da</strong>ns le mon<strong>de</strong> du texte” (ISER, 1985,p. 72)<br />
A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
128 Cf. Epígrafe no início <strong>de</strong>ste capítulo. A tradução é <strong>de</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
109
110<br />
Ler significa reler e compreen<strong>de</strong>r, interpretar. Ca<strong>da</strong> um lê com os olhos que<br />
t<strong>em</strong>. E interpreta a partir <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os pés pisam. Todo ponto <strong>de</strong> vista é a<br />
vista <strong>de</strong> um ponto. Para enten<strong>de</strong>r como alguém lê, é necessário saber<br />
como são seus olhos e qual é sua visão <strong>de</strong> mundo. Isso faz <strong>da</strong> leitura<br />
s<strong>em</strong>pre uma releitura. A cabeça pensa a partir <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os pés pisam. Para<br />
compreen<strong>de</strong>r é essencial conhecer o lugar social <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> olha. Vale dizer:<br />
como alguém vive, com qu<strong>em</strong> convive, que experiência t<strong>em</strong>, <strong>em</strong> que<br />
trabalha, que <strong>de</strong>sejos alimenta, como assume os dramas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />
morte e que esperanças o animam. Isso faz <strong>da</strong> compreensão s<strong>em</strong>pre uma<br />
interpretação. Sendo assim, fica evi<strong>de</strong>nte que ca<strong>da</strong> leitor é co-autor.<br />
Porque ca<strong>da</strong> um lê e relê com os olhos que t<strong>em</strong>. Porque compreen<strong>de</strong> e<br />
interpreta a partir do mundo que habita. (BOFF, 2000, p. 9)<br />
Boff coloca a leitura como fenômeno social, on<strong>de</strong> o sujeito leitor interpreta<br />
com os olhos que t<strong>em</strong>, a partir <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> perspectiva e <strong>de</strong> sua<br />
experiência pessoal. Nesse sentido, a leitura ganha um caráter individual e singular.<br />
Observamos que tanto na experiência com o texto impresso quanto com o<br />
texto áudio-visual, exist<strong>em</strong> apelos que d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>m a participação do receptor. Os<br />
anseios do autor estão implícitos no texto e se entrecruzam com os do receptor.<br />
Somente na cooperação e interação entre eles é que se dá a interpretação e<br />
significação do texto, ocorrendo a efetiva produção <strong>de</strong> efeitos estéticos no receptor.<br />
Mas, o que não pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> apontar é o fato do texto literário ain<strong>da</strong><br />
fazer com que esse mesmo receptor participe muito mais <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> obra do<br />
que ocorre no cin<strong>em</strong>a. Pod<strong>em</strong>os ex<strong>em</strong>plificar tal afirmação com uma análise <strong>da</strong><br />
última cena do romance Balzac e a <strong>costureirinha</strong> <strong>chinesa</strong> e do filme homônimo. Em<br />
ambos os textos, t<strong>em</strong>os a confirmação <strong>da</strong> Costureirinha <strong>de</strong> que Balzac a<br />
transformou.<br />
No filme, a cena prossegue com o reencontro dos dois amigos reeducados, o<br />
sentimento <strong>de</strong> nostalgia e o rumo que ca<strong>da</strong> um seguiu <strong>em</strong> suas vi<strong>da</strong>s. Chegamos ao<br />
final satisfeitos, s<strong>em</strong> a inquietação <strong>de</strong> imaginarmos, encaixarmos as peças <strong>de</strong> um<br />
jogo para <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>rmos o que aconteceu.<br />
Já no romance, o narrador <strong>de</strong>screve os momentos finais <strong>em</strong> contato com a<br />
Costureirinha: “Meu primeiro grito a fez correr pelo caminho, meu segundo a impeliu<br />
ain<strong>da</strong> mais longe, e meu terceiro a transformou <strong>em</strong> pássaro que alçou voo s<strong>em</strong> se<br />
<strong>da</strong>r um minuto <strong>de</strong> trégua. Então, foi ficando ca<strong>da</strong> vez menor e <strong>de</strong>sapareceu.” (SIJIE,<br />
2000, p. 164) O romance termina com a seguinte fala: “_Ela me disse que Balzac fez<br />
com que compreen<strong>de</strong>sse uma coisa: a beleza <strong>de</strong> uma mulher é um tesouro que não<br />
t<strong>em</strong> preço.” (SIJIE, 2000, p. 164).
No texto literário, t<strong>em</strong>os a impressão <strong>de</strong> que algo ain<strong>da</strong> ficou por ser dito.<br />
Esse ain<strong>da</strong> não era o final. É como se o leitor tivesse uma página <strong>em</strong> branco para<br />
<strong>da</strong>r fim à obra ou <strong>de</strong>svelar o não-dito. Neste contexto, Umberto Eco (2003, p.12)<br />
explica: “As obras literárias nos convi<strong>da</strong>m à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> interpretação, pois<br />
propõ<strong>em</strong> um discurso com muitos planos <strong>de</strong> leitura” (ECO, 2003, p.12).<br />
A gran<strong>de</strong> lição, no final, é <strong>de</strong> que a leitura possui um po<strong>de</strong>r transformador e<br />
nos serve como instrumento <strong>de</strong> construção e elaboração do sujeito. O que falta para<br />
isso ficar mais evi<strong>de</strong>nte <strong>em</strong> nossa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é as pessoas se conscientizar<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />
que o sentido do texto não está pre<strong>de</strong>terminado nele mesmo, não <strong>de</strong>vendo o leitor<br />
ser um mero receptáculo. O que falta é o texto ser visto como um palimpsesto,<br />
sendo necessário o leitor ir além <strong>da</strong>s marcas linguísticas para perceber aquilo que<br />
está implícito.<br />
O ato <strong>de</strong> ler outorga ao leitor o direito <strong>de</strong> acesso ao outro, ocasionando o<br />
contato com a plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural, como acontece <strong>em</strong> Balzac e a Costureirinha<br />
Chinesa. O encontro com o outro permite ao leitor se compreen<strong>de</strong>r e reconhecer o<br />
seu en<strong>torno</strong>, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhando um melhor entendimento do lugar que assume<br />
socialmente, ou questionando essa posição.<br />
Sendo assim, a leitura é uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para um trabalho <strong>de</strong> comparação<br />
entre o “eu” e o “outro”, exercendo uma função transformadora, pois possibilita que o<br />
leitor recrie, transgri<strong>da</strong> e <strong>de</strong>sconstrua os padrões já existentes na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
contribuindo para a formação <strong>de</strong> um ci<strong>da</strong>dão crítico e lúcido.<br />
É com essas características muito peculiares <strong>de</strong> abstração e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />
tessitura narrativa que os textos literários <strong>de</strong>rrubam pare<strong>de</strong>s entre r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> e ficção,<br />
sugam seus leitores para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si mesmos, fazendo com que, num processo <strong>de</strong><br />
ruminação, estes se reelabor<strong>em</strong>, se reconstruam a ca<strong>da</strong> leitura.<br />
111
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