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A importância da dança na formação do cidadão - Cultura é Currículo

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A <strong>importância</strong> <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça <strong>na</strong> <strong>formação</strong> <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão<br />

Ival<strong>do</strong> Bertazzo1<br />

Como surgiu o conceito de “ci<strong>da</strong>dão <strong>da</strong>nçante”<br />

Espetáculo Oper Árias, no Teatro S<strong>é</strong>rgio Car<strong>do</strong>so em 1989.<br />

Durante 27 anos, desde 1976, reuni, em montagens teatrais, grupos corais<br />

de “ci<strong>da</strong>dãos <strong>da</strong>nçantes” (chamo assim os indivíduos que se dispõem a<br />

conhecer melhor as possibili<strong>da</strong>des de movimento <strong>do</strong> seu próprio corpo).<br />

Al<strong>é</strong>m desses “ci<strong>da</strong>dãos <strong>da</strong>nçantes”, recorri tamb<strong>é</strong>m a atores e cantores<br />

profissio<strong>na</strong>is para compor 28 espetáculos, com elencos sempre<br />

numerosos. Para as carreiras de muitos desses artistas, a integração a<br />

chorus line generosos constituiu experiência única.<br />

A extensão e diversi<strong>da</strong>de desses elencos me permitiu criar ver<strong>da</strong>deiras<br />

“arquiteturas huma<strong>na</strong>s”, à maneira <strong>do</strong> que fizeram nos anos 20/30 o<br />

coreógrafo alemão Ru<strong>do</strong>lf Laban, os musicais <strong>da</strong> Broadway norteamerica<strong>na</strong><br />

e alguns filmes de Hollywood. Mais: a construção desses<br />

“cenários vivos” teve a proprie<strong>da</strong>de de aguçar minha visão para as<br />

admiráveis nuances que modelam a identi<strong>da</strong>de racial brasileira.<br />

Um leque tão abrangente de tipos me sugeriu utilizar livremente, e at<strong>é</strong><br />

mesmo fundir, várias escolas de movimento e estruturas rítmicas <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> inteiro: estilos clássicos indianos, <strong>da</strong>nças de ro<strong>da</strong> brasileiras, teatro<br />

de máscaras orientais, rituais indíge<strong>na</strong>s, flamenco, hulla havaia<strong>na</strong>, valsas,<br />

baila<strong>do</strong>s, tribais africanos e passos caucasianos...<br />

Nessa <strong>é</strong>poca, percebi que as artes plásticas, a música, a fotografia, o<br />

teatro, etc. eram utiliza<strong>do</strong>s por “ci<strong>da</strong>dãos comuns” em espetáculos


ama<strong>do</strong>res e exposições. Isso não ocorria com a <strong>da</strong>nça, ela não se<br />

flexibilizava aos diferentes interesses de consumo desses ci<strong>da</strong>dãos. A<br />

<strong>da</strong>nça determi<strong>na</strong>va um rígi<strong>do</strong> olhar sobre o bailarino profissio<strong>na</strong>l,<br />

solicitan<strong>do</strong> dele uma t<strong>é</strong>cnica acadêmica de movimento para que<br />

funcio<strong>na</strong>sse especificamente como instrumento <strong>do</strong> coreógrafo.<br />

Ao “ci<strong>da</strong>dão comum”, desejoso de experiência <strong>da</strong>nçante, restavam os<br />

espaços <strong>da</strong>s escolas de samba, festas folclóricas, discotecas, etc. Não<br />

existia para ele uma outra “t<strong>é</strong>cnica” que o introduzisse à <strong>da</strong>nça, à<br />

experiência <strong>do</strong> palco, colocan<strong>do</strong>-o sob o olhar <strong>do</strong> público. Foi necessário<br />

elaborar um outro m<strong>é</strong>to<strong>do</strong> de movimento, condicio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> o “ci<strong>da</strong>dão” a<br />

investir dias e horas sema<strong>na</strong>is <strong>na</strong> prática <strong>do</strong>s “movimentos”. Claro está<br />

que não pensamos utilizar o bal<strong>é</strong> clássico ou a <strong>da</strong>nça contemporânea para<br />

fun<strong>da</strong>mentar esse m<strong>é</strong>to<strong>do</strong>, pois o “eixo” e gestos de um ci<strong>da</strong>dão pedem<br />

formas de expressão mais populares e próximas <strong>do</strong> seu cotidiano, <strong>da</strong> sua<br />

funcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Pois foi justamente essa prática – a utilização de expressões culturais tão<br />

varia<strong>da</strong>s – que forneceu uma pista fun<strong>da</strong>mental para meu processo de<br />

trabalho: existe uma estrutura de base no gesto humano, presente em<br />

to<strong>da</strong>s as raças e biótipos. Esse reconhecimento veio fun<strong>da</strong>mentar os<br />

ensi<strong>na</strong>mentos recebi<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s mestras Suzanne Piret e Madeleine B<strong>é</strong>ziers,<br />

sistematiza<strong>do</strong>ras de ciências <strong>do</strong> funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> aparelho locomotor e<br />

<strong>da</strong> biomecânica huma<strong>na</strong>.<br />

O movimento possui “identi<strong>da</strong>de própria”<br />

Palco, Academia e Periferia, 1997, no Sesc Pomp<strong>é</strong>ia.


Para a construção dessa nova t<strong>é</strong>cnica de <strong>da</strong>nça, penetramos no universo<br />

<strong>do</strong> desenvolvimento psicomotor humano, <strong>da</strong> específica forma de<br />

locomoção <strong>da</strong> esp<strong>é</strong>cie huma<strong>na</strong>. A esse ci<strong>da</strong>dão <strong>da</strong>nçarino <strong>é</strong> <strong>da</strong><strong>do</strong> o<br />

conhecimento <strong>da</strong>s matrizes <strong>do</strong> “movimento fun<strong>da</strong>mental” que, vez por<br />

outra, não está consoli<strong>da</strong><strong>do</strong> em suas sensações.<br />

Nossos movimentos voluntários são constantemente realiza<strong>do</strong>s em<br />

decorrência de uma motivação, de um desejo. BÉZIERS & PIRET (1992)<br />

observam que “nossos gestos são inevitavelmente carrega<strong>do</strong>s de<br />

psiquismo”. Isto <strong>é</strong>, os movimentos que realizamos habitualmente têm<br />

sempre um clima emocio<strong>na</strong>l atrás de si. Movemo-nos em decorrência<br />

deste ou <strong>da</strong>quele desejo, impulsio<strong>na</strong><strong>do</strong>s por tal ou qual motivação, e a raiz<br />

desse fenômeno está em razões primordiais de sobrevivência e <strong>na</strong> procura<br />

de prazer.<br />

Al<strong>é</strong>m <strong>do</strong> contexto em que surge, repleto de estímulos e motivações, o<br />

movimento possui uma dinâmica própria, uma identi<strong>da</strong>de que se encontra<br />

subjacente às nossas motivações. Desenha-se nele uma “inteligência” que<br />

manifesta suas proprie<strong>da</strong>des independentemente <strong>do</strong> quadro <strong>do</strong>s nossos<br />

impulsos emocio<strong>na</strong>is. Essa <strong>é</strong> uma mecânica que se encontra <strong>na</strong> base de<br />

to<strong>do</strong> o movimento humano, o movimento em si, denomi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />

“movimento fun<strong>da</strong>mental” por B<strong>é</strong>ziers e Piret.<br />

Entre os fatores que levaram o homem a desenvolver seu intelecto, ocupa<br />

posição essencial o desenvolvimento de sua mecânica bastante particular.<br />

A estrutura motora <strong>do</strong> homem possibilitou-lhe autonomias muito<br />

peculiares em face <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza e <strong>do</strong>s outros semelhantes. Ele avançou em<br />

sua evolução atrela<strong>do</strong> <strong>na</strong> motrici<strong>da</strong>de. Dentro dessa ótica <strong>é</strong> que<br />

concebemos o gesto <strong>do</strong> “ci<strong>da</strong>dão <strong>da</strong>nçante”, exercitan<strong>do</strong> as estruturas<br />

básicas <strong>do</strong> movimento humano. Utilizamos suas mecânicas fun<strong>da</strong>mentais<br />

como base para exercícios que vão elaborar o desenho <strong>do</strong> “ci<strong>da</strong>dão<br />

<strong>da</strong>nçante”.<br />

Estruturar as sensações para definir os espaços interno e externo<br />

O corpo <strong>é</strong> um volume muscular organiza<strong>do</strong> e o movimento <strong>é</strong> a<br />

modificação progressiva de sua forma. Ca<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> corpo participa <strong>do</strong><br />

equilíbrio <strong>do</strong> conjunto: seja para executar o gesto efetivamente, seja para


servir de ponto de apoio ao braço de alavanca, seja para ajustar a potência<br />

(força) muscular. A organização própria <strong>do</strong> movimento acontece sempre<br />

dentro de um equilíbrio e de um senti<strong>do</strong> resultante <strong>da</strong> coorde<strong>na</strong>ção:<br />

partin<strong>do</strong> <strong>da</strong> cabeça ele vai mostrar eficácia <strong>na</strong> mão ou no p<strong>é</strong>. É sobre essa<br />

estrutura orgânica de movimento que se constrói o esquema corporal.<br />

To<strong>do</strong> movimento está organiza<strong>do</strong> para uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de no mun<strong>do</strong> exterior.<br />

Ele recorrerá então a to<strong>do</strong>s os elementos de condicio<strong>na</strong>mento, e <strong>é</strong> a esse<br />

conjunto que vai se dirigir a motivação. Quan<strong>do</strong> o indivíduo deseja<br />

executar um gesto, ele o constrói no mesmo senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> organização<br />

motora: seja imagi<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-o globalmente no nível mental (c<strong>é</strong>rebro), seja<br />

como gesto executa<strong>do</strong> pela mão ou pelo p<strong>é</strong>. Vemos então que uma<br />

uni<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental preside a organização <strong>do</strong> movimento: ele desenrolase<br />

sempre no mesmo senti<strong>do</strong>, qualquer que seja o seu aspecto: <strong>da</strong> cabeça<br />

às mãos ou <strong>da</strong> cabeça aos p<strong>é</strong>s, numa relação de uni<strong>da</strong>de, este <strong>é</strong> o<br />

princípio <strong>da</strong> coorde<strong>na</strong>ção motora huma<strong>na</strong>, fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong> por B<strong>é</strong>ziers e<br />

Piret.<br />

O gesto acontece atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> ação <strong>da</strong>s uni<strong>da</strong>des de coorde<strong>na</strong>ção,<br />

construí<strong>da</strong>s por ossos, articulações e músculos. Estes cruzam to<strong>da</strong>s as<br />

articulações <strong>do</strong> corpo, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos a sensação <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>do</strong> esqueleto. O<br />

braço inteiro <strong>é</strong> uma uni<strong>da</strong>de; a per<strong>na</strong> inteira <strong>é</strong> outra uni<strong>da</strong>de, assim como<br />

o tronco. Após a construção de ca<strong>da</strong> uma dessas uni<strong>da</strong>des, passamos a<br />

estabelecer a relação entre to<strong>da</strong>s elas em movimentos que acontecem de<br />

forma elíptica, revelan<strong>do</strong>-se no espaço em gestos de torção. O ci<strong>da</strong>dão<br />

<strong>da</strong>nçante executa exercícios que estimulam nele essas “sensações<br />

estruturantes”. São gestos em torção, que dão ao corpo a possibili<strong>da</strong>de de<br />

ocupar os planos <strong>do</strong> espaço, sentin<strong>do</strong>-se como uni<strong>da</strong>de integra<strong>da</strong>,<br />

qualquer que seja sua orientação, posição e veloci<strong>da</strong>de.


Tronco, cruzamento <strong>do</strong> movimento entre mãos e p<strong>é</strong>s.<br />

a) A organização <strong>é</strong> sim<strong>é</strong>trica<br />

b) A organização <strong>é</strong> cruza<strong>da</strong>: mão e p<strong>é</strong> são opostos<br />

Enquanto elaborava coreografias para ele, meu desejo não era enquadrar<br />

meu <strong>da</strong>nçarino no contexto de massificação <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des,<br />

traduzin<strong>do</strong> seus gestos em fragmentos, e sim, desenhar algumas <strong>da</strong>quelas<br />

bases de movimento que permitiram ao homem destacar-se<br />

diferencia<strong>da</strong>mente <strong>da</strong>s outras esp<strong>é</strong>cies. O movimento ofereceu, durante o<br />

processo evolutivo <strong>da</strong> esp<strong>é</strong>cie huma<strong>na</strong>, tanto a função como a forma que<br />

possuímos <strong>na</strong> presente etapa, possibilitan<strong>do</strong>-nos sobreviver e construir<br />

nossas identi<strong>da</strong>des.<br />

O homem diferencian<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s outros mamíferos<br />

Foram as modificações <strong>da</strong> tensão muscular que nos levaram a estruturar<br />

essas sensações e formas, fazen<strong>do</strong>-nos primeiramente perceber o espaço<br />

interno e o espaço externo que poderíamos ocupar de diferentes<br />

maneiras. Essas sensações acontecem primordialmente no tronco, como a<br />

expressão de enrolamento e endireitamento e as oposições de suas<br />

cinturas, quadris e ombros. O enrolamento e o endireitamento <strong>é</strong> que<br />

fornecem as sensações <strong>do</strong> que está à nossa frente e atrás de nós. As<br />

torções <strong>da</strong> cintura nos informam sobre o la<strong>do</strong> direito e o la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>.<br />

No desenvolvimento psicomotor, nossos braços e per<strong>na</strong>s dão<br />

continui<strong>da</strong>de a essas modificações de tensão muscular, levan<strong>do</strong>-nos


fi<strong>na</strong>lmente à locomoção bípede. O homem consegue deslocar-se sem<br />

utilizar as mãos, ou apoiar-se somente sobre um p<strong>é</strong>. Essas são atitudes<br />

que recrutam to<strong>da</strong>s as “uni<strong>da</strong>des de coorde<strong>na</strong>ção”. O movimento, atrav<strong>é</strong>s<br />

de suas complexi<strong>da</strong>des, pouco a pouco deu ao homem at<strong>é</strong> mesmo a<br />

condição de realizá-lo simbolicamente – este <strong>é</strong> o movimento pelo<br />

movimento, o movimento expressivo. Acredito que o potencial de realizar<br />

o gesto desvincula<strong>do</strong> de suas funções utilitárias levou-nos a perceber to<strong>do</strong><br />

o universo e mesmo a nos imagi<strong>na</strong>r como centro dele.<br />

Chega-se ao movimento atrav<strong>é</strong>s <strong>do</strong> movimento, a partir <strong>do</strong> desejo de<br />

realizá-lo, passan<strong>do</strong> por sua execução mental para chegar à realização<br />

efetiva. Quero dizer, com isso, que relaxar retrações musculares aqui e ali<br />

ou colocar o aluno em posturas de alongamento segmentar ou global – e<br />

outras terapias que poderíamos chamar “<strong>do</strong> homem deita<strong>do</strong>” ou “<strong>do</strong><br />

homem estático” – não levam necessariamente ao movimento<br />

coorde<strong>na</strong><strong>do</strong>. O homem <strong>é</strong> uma estrutura vertical em constante movimento.<br />

Nosso aparelho locomotor, ou “órgão <strong>do</strong> movimento”, como gosto de<br />

chamá-lo, possui identi<strong>da</strong>de própria, assim como acontece com os órgãos<br />

<strong>da</strong> visão, olfato, audição, etc. É exclusivo <strong>da</strong> esp<strong>é</strong>cie huma<strong>na</strong>, fruto<br />

complexo e refi<strong>na</strong><strong>do</strong> de to<strong>do</strong> o seu processo evolutivo. Negligenciar o<br />

desenvolvimento e a utilização de to<strong>da</strong>s as suas particulari<strong>da</strong>des e<br />

potenciali<strong>da</strong>des equivale a subestimar o <strong>do</strong>m <strong>da</strong> palavra, outro privil<strong>é</strong>gio<br />

<strong>da</strong> esp<strong>é</strong>cie. É, pois, quase uma obrigação <strong>do</strong> ser humano conhecer esse<br />

órgão, maximizar e otimizar a sua utilização. Al<strong>é</strong>m disso, <strong>é</strong> possível retirar<br />

dele grande prazer, assim como fazemos com os outros senti<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>ns.<br />

Esse propósito, aparentemente simples, de orientar-se globalmente pela<br />

forma correta <strong>do</strong> movimento e, sobretu<strong>do</strong>, de levar o aluno para o<br />

movimento, tem para mim um alcance bastante maior que o<br />

propriamente motor. Penso <strong>na</strong> possibili<strong>da</strong>de de abor<strong>da</strong>r algumas <strong>da</strong>s<br />

aflições huma<strong>na</strong>s, mesmo aquelas provenientes de outras esferas que não<br />

o aparelho locomotor, inician<strong>do</strong> tal trabalho pela recuperação de to<strong>da</strong>s as<br />

possibili<strong>da</strong>des de uso e fruição <strong>da</strong> mecânica huma<strong>na</strong> por parte <strong>do</strong><br />

praticante, para que ele se coloque inteiro e capaz diante <strong>do</strong>s problemas e<br />

opções que deve enfrentar. É dentro dessa ordem de preocupações que<br />

eu relembro a conheci<strong>da</strong> frase <strong>do</strong> filósofo empiricista inglês David Hume:<br />

“Nenhuma filosofia que não aquela a que chegamos pela reflexão sobre o<br />

nosso cotidiano seria capaz de nos conduzir para al<strong>é</strong>m dessas mesmas<br />

experiências cotidia<strong>na</strong>s” (GAARDER, 1998).


O gesto como instrumento de comunicação<br />

O mo<strong>do</strong> como ca<strong>da</strong> esp<strong>é</strong>cie animal se movimenta está liga<strong>do</strong> à sua<br />

maneira de absorver elementos <strong>do</strong> meio ambiente e estabelecer trocas<br />

com ele e com os semelhantes. Para passar <strong>da</strong> posição horizontal para a<br />

vertical, o homem junta e traz as mãos à sua frente, <strong>do</strong>bra seu eixo<br />

vertebral, senta-se e traz as per<strong>na</strong>s ao encontro <strong>do</strong> tronco, <strong>do</strong>bran<strong>do</strong> os<br />

joelhos, e, fi<strong>na</strong>lmente, apoian<strong>do</strong> os p<strong>é</strong>s no solo, passa pela posição de<br />

cócoras e chega à posição ereta, sem precisar voltar o corpo para o la<strong>do</strong><br />

ou recorrer à aju<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mãos.<br />

Passagem <strong>da</strong> posição deita<strong>da</strong> à posição em p<strong>é</strong><br />

Desloca-se por meio <strong>da</strong> marcha bípede, conseguin<strong>do</strong> apoiar-se num p<strong>é</strong> só,<br />

enquanto a outra per<strong>na</strong> alcança o solo mais à frente, ao mesmo tempo<br />

que suas mãos podem ocupar-se com a manipulação de objetos. Seu olhar<br />

consegue abranger uma grande extensão <strong>do</strong> espaço, graças à altura em<br />

que se encontram seus olhos e à facili<strong>da</strong>de em girar a cabeça e a metade<br />

superior <strong>do</strong> tronco para olhar para trás.<br />

A conquista <strong>da</strong> posição vertical está associa<strong>da</strong> à abertura <strong>do</strong> ângulo de<br />

suas virilhas (<strong>na</strong> posição fetal, ou <strong>na</strong> posição quadrúpede, o ângulo entre<br />

coxas e bacia <strong>é</strong> bem mais fecha<strong>do</strong>). A maior abertura <strong>do</strong> ângulo entre as<br />

coxas e a bacia foi, com certeza, fator determi<strong>na</strong>nte para a verticalização<br />

<strong>da</strong> colu<strong>na</strong> vertebral e para a liberação <strong>da</strong>s mãos, para o aumento <strong>da</strong> massa<br />

cefálica e comparativa diminuição <strong>da</strong> projeção <strong>do</strong> rosto para a frente. Isso<br />

ampliou o olhar humano e, em conseqüência, o grau de experimentação<br />

acessível ao homo sapiens.<br />

A organização <strong>do</strong> universo motor humano inicia-se com o instinto<br />

individual de sobrevivência, quan<strong>do</strong> o bebê se encontra ain<strong>da</strong> em<br />

simbiose com a mãe, viven<strong>do</strong> no seio de uma globali<strong>da</strong>de única, onde <strong>é</strong><br />

tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s. Após essa fase, o bebê lança-se incessantemente à<br />

manipulação <strong>do</strong>s objetos, à sucção, à agitação de braços e per<strong>na</strong>s, a uma<br />

contínua troca de pequenos movimentos nos seus espaços internos para<br />

fi<strong>na</strong>lmente conseguir, pela elaboração de suas sensações, diferenciar-se


<strong>do</strong> que o cerca, descobrin<strong>do</strong> sua individuali<strong>da</strong>de. O movimento <strong>é</strong> que<br />

permite ao bebê separar e classificar as diversas sensações provenientes<br />

de ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s elementos <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s exterior e interior.<br />

O movimento coorde<strong>na</strong><strong>do</strong> aumenta a capaci<strong>da</strong>de de concentração<br />

Os diferentes tipos de contração muscular associa<strong>do</strong>s à atitude vertical<br />

aju<strong>da</strong>ram-nos a conceituar o tempo e o espaço, definin<strong>do</strong> gra<strong>da</strong>tivamente<br />

autonomias e identi<strong>da</strong>des, intrinsecamente liga<strong>da</strong>s à experiência<br />

psicomotora. Infelizmente, os sistemas de ensino não aproveitam o gesto<br />

como base para a educação – movimento tamb<strong>é</strong>m <strong>é</strong> linguagem, assim<br />

como os sons provoca<strong>do</strong>s pelo corpo. Submetemos o “ci<strong>da</strong>dão <strong>da</strong>nçante”<br />

a uma relação constante com o desequilíbrio corporal e com as possíveis<br />

formas de reequilibração. Fazemos vibrar seus ossos, provocamos novos<br />

estímulos, levan<strong>do</strong> seu corpo a assumir posições e realizar movimentos<br />

que o façam lutar com a gravi<strong>da</strong>de, condição fun<strong>da</strong>mental para a<br />

alimentação <strong>do</strong> seu sistema nervoso central.<br />

O homem talvez não possuísse <strong>na</strong> sua origem as mesmas noções de<br />

conforto e prazer como as entendemos hoje. À medi<strong>da</strong> que essas<br />

sensações se construíram, ele tamb<strong>é</strong>m refinou seus gestos. A construção<br />

<strong>da</strong> moradia, al<strong>é</strong>m de muitas coisas, permitiu-lhe perceber o espaço<br />

interno <strong>do</strong> seu próprio corpo; vestir-se modificou a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua pele<br />

e, conseqüentemente, <strong>do</strong> seu sistema nervoso; calçar-se transformou seus<br />

p<strong>é</strong>s, de <strong>do</strong>is cascos duros, em p<strong>é</strong> humano, levan<strong>do</strong>-o a um imenso salto <strong>na</strong><br />

sua evolução. Chegamos, de salto em salto, at<strong>é</strong> o momento em que o<br />

homem ritualiza suas transformações, <strong>da</strong>nçan<strong>do</strong>-as.<br />

O ci<strong>da</strong>dão que trabalha no escritório, que utiliza meios de transporte<br />

coletivos que cruzam a ci<strong>da</strong>de, que estabelece diferentes relações com<br />

objetos e pessoas no seu cotidiano possui uma gestuali<strong>da</strong>de mais<br />

complexa <strong>do</strong> que os outros mamíferos. Exercita cotidia<strong>na</strong>mente o que<br />

chamamos de psicomotrici<strong>da</strong>de fi<strong>na</strong> (abotoar a camisa, <strong>da</strong>r laço no sapato,<br />

pintar as unhas, digitar ao mesmo tempo que atende ao telefone, ler<br />

enquanto pe<strong>da</strong>la uma bicicleta, etc.).<br />

Se já desenvolvemos to<strong>da</strong>s essas quali<strong>da</strong>des de movimento, isso não quer<br />

dizer que não precisamos ain<strong>da</strong> de repeti<strong>da</strong>s experimentações com os


“gestos fun<strong>da</strong>mentais”. Autonomia não significa ape<strong>na</strong>s ligar o corpo no<br />

piloto automático. Rever periodicamente as bases <strong>da</strong> própria mecânica<br />

nos protege de lesões e desgastes excessivos.<br />

Pressio<strong>na</strong>r o p<strong>é</strong> no solo, sentir <strong>na</strong> palma <strong>da</strong> mão diferentes texturas e<br />

volumes, expandir o volume <strong>do</strong> tórax em to<strong>da</strong>s as direções, perceber a<br />

distância existente entre quadris e ombros, etc. – <strong>é</strong> assim que o “ci<strong>da</strong>dão<br />

<strong>da</strong>nçante” se exercita nos movimentos estruturantes. Apoian<strong>do</strong>-nos em<br />

nossos gestos construímos uma identi<strong>da</strong>de. Amplian<strong>do</strong> esses<br />

micromovimentos no espaço, o corpo vira linguagem.<br />

Esses princípios motores deveriam ser básicos <strong>na</strong> <strong>formação</strong> <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r e<br />

<strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l de saúde; e deveriam estar presentes em to<strong>da</strong>s as<br />

ativi<strong>da</strong>des que necessitam de concentração, seja no aprendiza<strong>do</strong> ou <strong>na</strong><br />

experimentação com o mun<strong>do</strong> exterior.<br />

Nossos músculos flexores, aqueles situa<strong>do</strong>s principalmente à frente <strong>do</strong><br />

corpo, são os que possibilitam essa atitude de concentração e análise,<br />

esse envolvimento de to<strong>do</strong> o ser numa ação específica ou diante de uma<br />

nova in<strong>formação</strong> ou conhecimento a ser adquiri<strong>do</strong>. São os músculos<br />

flexores que controlam o impulso de dispersar-se no exterior. São eles que<br />

levam o corpo a experimentar sensações motoras mais profun<strong>da</strong>s, mais<br />

intensas, construin<strong>do</strong> e refi<strong>na</strong>n<strong>do</strong> o universo de referências interiores.<br />

Dança Comuni<strong>da</strong>de, Sesc Belenzinho – 2003<br />

Projeto de Ival<strong>do</strong> Bertazzo em an<strong>da</strong>mento<br />

O conhecimento sobre o funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> aparelho locomotor humano<br />

poderia ser introduzi<strong>do</strong> nos programas de educação, com grande<br />

vantagem para o desenvolvimento intelectual, com redução <strong>do</strong> estresse e


<strong>do</strong> desconforto, economizan<strong>do</strong> recursos reserva<strong>do</strong>s à saúde num mun<strong>do</strong><br />

excessivamente populoso e de baixa ren<strong>da</strong>.<br />

O sonho <strong>do</strong> ensino integra<strong>do</strong><br />

Um <strong>do</strong>s grandes sonhos <strong>da</strong>s últimas d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s tem si<strong>do</strong> a possibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

ensino integra<strong>do</strong>. Entretanto, quan<strong>do</strong> vemos cursos de música, teatro,<br />

<strong>da</strong>nça no currículo de boas escolas, isso não indica que estejam<br />

efetivamente utilizan<strong>do</strong> essas artes integra<strong>da</strong>s ao projeto de ensino <strong>da</strong><br />

escola.<br />

Muito poucas escolas aplicam o curso de teatro em conjunto com os<br />

professores de português, melhoran<strong>do</strong> a construção <strong>da</strong>s dissertações e<br />

interpretações de texto.<br />

Música <strong>é</strong> matemática por excelência. Por que não uni-la ao ensino dessa<br />

mat<strong>é</strong>ria, associan<strong>do</strong> exercícios de subdivisões rítmicas, levan<strong>do</strong> o aluno<br />

<strong>na</strong>turalmente às abstrações necessárias?<br />

A <strong>da</strong>nça poderia aprimorar as possibili<strong>da</strong>des psicomotoras no<br />

desenvolvimento <strong>do</strong> estu<strong>da</strong>nte, diminuin<strong>do</strong> sua hiperativi<strong>da</strong>de e levan<strong>do</strong>o<br />

a níveis de concentração mais profun<strong>da</strong> em conseqüência de exercícios<br />

estruturantes. É muito desgastante exigir <strong>do</strong> aluno uma psicomotrici<strong>da</strong>de<br />

fi<strong>na</strong>, <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> escrita, lógica, etc., manten<strong>do</strong>-o dentro de uma<br />

“morbidez motora”.<br />

Exige-se muito de uma criança, quatro ou cinco horas senta<strong>da</strong> <strong>na</strong> sala de<br />

aula, solicitan<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s seu sistema cognitivo. A coorde<strong>na</strong>ção motora <strong>é</strong> a<br />

base que nos dá a possibili<strong>da</strong>de de transitarmos entre nossos ritmos<br />

interiores e o mun<strong>do</strong> que nos cerca – respiração, circulação, contração<br />

muscular.<br />

Rosto, olhos, boca, <strong>na</strong>riz, ouvi<strong>do</strong>s estão volta<strong>do</strong>s para a nossa frente,<br />

assim como as mãos e os p<strong>é</strong>s. São as ferramentas que nos levarão a<br />

perceber, a entender e a agir. Por outro la<strong>do</strong>, o olhar sem foco, a<br />

respiração bucal, a má coorde<strong>na</strong>ção <strong>da</strong>s mãos, o sentar-se sobre as costas<br />

e não sobre a bacia, etc. atrapalham a concentração e o desenvolvimento<br />

<strong>do</strong> estu<strong>da</strong>nte.


Nossa capaci<strong>da</strong>de de concentração depende de uma boa organização<br />

articular, <strong>do</strong> adequa<strong>do</strong> encaixe <strong>do</strong>s ombros sobre as costelas, <strong>do</strong> sentar-se<br />

com um bom apoio <strong>da</strong> bacia sobre o banco, <strong>da</strong> respiração <strong>na</strong>sal e não pela<br />

boca. Os músculos faciais devem organizar o olhar permitin<strong>do</strong> o foco, a<br />

aproximação <strong>da</strong>s mãos ao centro <strong>do</strong> corpo funcio<strong>na</strong>liza e coorde<strong>na</strong> o seu<br />

uso com as exigências <strong>da</strong> situação de aprendiza<strong>do</strong>.<br />

A expressão artística como estrat<strong>é</strong>gia para envolver o aluno no<br />

aprendiza<strong>do</strong><br />

O aprimoramento <strong>da</strong>s “uni<strong>da</strong>des de coorde<strong>na</strong>ção” modifica nossa<br />

expressão e <strong>é</strong> isso o que desejo mostrar ao público nos espetáculos. No<br />

meu entendimento, esse <strong>é</strong> um <strong>do</strong>s objetivos <strong>da</strong>s artes cênicas: modificar o<br />

olhar <strong>do</strong> público sobre as quali<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s. A arte transforma<br />

indiscutivelmente o indivíduo. Ela informa, ela nos diferencia uns <strong>do</strong><br />

outros, ela modifica nossos desejos.<br />

Refi<strong>na</strong>n<strong>do</strong> suas sensações, o indivíduo vai pouco a pouco diferencian<strong>do</strong>-se<br />

<strong>da</strong> “massa bruta”. Isso o tor<strong>na</strong> mais exigente e ele passa a reivindicar um<br />

meio ambiente funcio<strong>na</strong>l e harmonioso, decoran<strong>do</strong>-o com testemunhas<br />

de seu universo simbólico.<br />

A arte tem o poder de nos levar al<strong>é</strong>m <strong>do</strong> ciclo inevitável <strong>da</strong> sobrevivência.<br />

Ela nos possibilita existirmos de outras formas, para al<strong>é</strong>m <strong>da</strong>s<br />

necessi<strong>da</strong>des de comer, <strong>do</strong>rmir, elimi<strong>na</strong>r dejetos, etc. Ela nos proporcio<strong>na</strong><br />

a certeza de que somos seres refi<strong>na</strong><strong>do</strong>s e especiais, capazes de ir al<strong>é</strong>m <strong>da</strong><br />

simples reprodução material. Por isso, sempre me surpreen<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> me<br />

perguntam como a arte pode interferir no nosso entendimento de<br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. A massificação deformou nossos olhos, já não percebemos as<br />

matrizes de movimento, somente os identificamos quan<strong>do</strong> caem em<br />

disfunções patológicas.<br />

Creio que tais preocupações poderiam ter um espaço dentro <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça<br />

contemporânea. Venho insistin<strong>do</strong> que o ensino desse meu m<strong>é</strong>to<strong>do</strong><br />

deveria acontecer em salas amplas, razoavelmente silenciosas, e não em<br />

espaços abertos e poluí<strong>do</strong>s. A construção <strong>do</strong> movimento pede uma<br />

viagem ao espaço interno <strong>do</strong> corpo, em concentração e conscientização.


É interessante encontrar nos centros urbanos, em certas ONGs, essa visão,<br />

esse entendimento. Mesmo que intuitivamente, elas recorrem à ação<br />

transforma<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> arte e sabiamente utilizam a música, o canto, a <strong>da</strong>nça,<br />

as artes plásticas, o teatro, agregan<strong>do</strong> o jovem <strong>da</strong> periferia a seus núcleos,<br />

<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe mais conhecimento, possibili<strong>da</strong>des de relação, troca, criação e<br />

tamb<strong>é</strong>m aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o adulto a modificar o espaço familiar.<br />

Surpreende-me e me encanta encontrar em núcleos de periferia a<br />

preocupação em introduzir a arte, talvez porque desejem complementar<br />

um ensino precário, ou por não estarem presos aos conceitos rígi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />

órgãos de ensino.<br />

É nesses núcleos que temos consegui<strong>do</strong> realizar um trabalho bastante<br />

significativo com os jovens, a exemplo <strong>do</strong> nosso projeto em conjunto com<br />

o CEASM – Centro de Estu<strong>do</strong>s e Ações Solidárias <strong>da</strong> Mar<strong>é</strong>: criamos o grupo<br />

de <strong>da</strong>nça <strong>do</strong> Complexo <strong>da</strong> Mar<strong>é</strong>, no Rio de Janeiro, e durante três anos<br />

trabalhamos com os mesmos jovens, de 12 a 20 anos de i<strong>da</strong>de, com o<br />

objetivo de desenvolver o m<strong>é</strong>to<strong>do</strong> “ci<strong>da</strong>dão <strong>da</strong>nçante”. Atualmente,<br />

desenvolvemos o m<strong>é</strong>to<strong>do</strong> por interm<strong>é</strong>dio <strong>do</strong> Projeto Dança Comuni<strong>da</strong>de,<br />

no Sesc Belenzinho, com sete ONGs <strong>da</strong> periferia paulista<strong>na</strong>. Nossa meta <strong>é</strong><br />

ampliar a capaci<strong>da</strong>de de concentração <strong>do</strong>s jovens e levá-los a passar um<br />

tempo maior de envolvimento com as “id<strong>é</strong>ias”.<br />

Experimentar o movimento abre fronteiras aos jovens<br />

Monumento às Bandeiras


Introduzimos gestos e <strong>da</strong>nças de outras culturas no m<strong>é</strong>to<strong>do</strong> “ci<strong>da</strong>dão<br />

<strong>da</strong>nçante”, pois essas diferentes quali<strong>da</strong>des de movimento conduzem o<br />

aprendiz a outras lógicas e formas de raciocínio. O ser humano possui os<br />

mesmos padrões de movimento, seja a qual parte <strong>do</strong> globo pertença.<br />

Entretanto, desenvolveu mo<strong>do</strong>s muito diferentes de <strong>da</strong>nçar, mais uma<br />

prova de que, ao consoli<strong>da</strong>r os padrões motores <strong>da</strong> esp<strong>é</strong>cie, o homem<br />

consegue tamb<strong>é</strong>m criar a diferenciação cultural.<br />

Conduzimos nossos jovens ao entendimento de que estu<strong>da</strong>r <strong>é</strong> um<br />

processo lento, cotidiano, uma soma de si<strong>na</strong>is e sensações. E, para que<br />

esse caminho não seja árduo, desinteressante, eles deverão encontrar<br />

mecanismos de conforto e prazer no seu percurso. Introduzir a <strong>da</strong>nça, o<br />

teatro, a música, etc. no processo de educação pode ser uma estrat<strong>é</strong>gia<br />

eficaz.<br />

Focamos esse trabalho no a<strong>do</strong>lescente pois <strong>é</strong> nesse perío<strong>do</strong> que aflora e<br />

se define sua sexuali<strong>da</strong>de. Conseqüentemente, sua agressivi<strong>da</strong>de <strong>é</strong> mais<br />

presente e seu corpo necessita urgentemente de padrões organiza<strong>do</strong>res<br />

para ca<strong>na</strong>lizar suas diferentes formas de expressão. Podemos e devemos<br />

introduzir essas bases tamb<strong>é</strong>m no adulto.<br />

O jovem precisa <strong>do</strong> movimento. As transferências de tônus de um la<strong>do</strong><br />

para o outro <strong>do</strong> corpo, de cima para baixo, promovem o deslocamento<br />

<strong>da</strong>s tensões musculares. Essa mobilização, <strong>do</strong> meu ponto de vista, distribui<br />

a libi<strong>do</strong>, que deixa de se concentrar somente no “pipi”, decorrente <strong>do</strong><br />

exercício mais constante <strong>da</strong> masturbação. É preciso dizer que temos muita<br />

dificul<strong>da</strong>de de li<strong>da</strong>r com o erotismo, principalmente com o <strong>do</strong><br />

a<strong>do</strong>lescente. Freqüentemente prescrevemos o esporte e a luta marcial.<br />

Isso pode aju<strong>da</strong>r quanto à agressivi<strong>da</strong>de; já o gesto <strong>da</strong>nçante poderia<br />

aju<strong>da</strong>r no amadurecimento <strong>do</strong> seu erotismo, distribuin<strong>do</strong>-o por to<strong>do</strong> o<br />

corpo.<br />

Acredito que, introduzin<strong>do</strong> no processo educacio<strong>na</strong>l de nossas crianças<br />

condições práticas de experimentação e mesmo de reflexão intelectual<br />

sobre o universo <strong>do</strong> gesto humano, poderemos estabelecer as bases de<br />

uma “ecologia pessoal” que poderá ampliar-se para a socie<strong>da</strong>de. O<br />

conhecimento de nossa trajetória, de to<strong>do</strong>s os fatores <strong>do</strong>s quais<br />

dependemos – seja qual for nossa classe social –, a consciência de si e <strong>do</strong>s<br />

outros, a consciência de tu<strong>do</strong> o que nos cerca, dependem<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente de nossas experimentações psicomotoras, sem


deixarmos de associá-las sempre às noções de bem-estar e prazer pelas<br />

quais nosso psiquismo anseia.<br />

Motivação, realização e satisfação acontecem atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> densi<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

“ser”<br />

Para a satisfação <strong>da</strong> motivação, o gesto <strong>é</strong> constantemente controla<strong>do</strong><br />

durante sua realização. To<strong>da</strong>s as sensações que ele provoca, as que vêm<br />

<strong>do</strong> corpo ou as que vêm de fora, transformam-se em percepções e vão<br />

indican<strong>do</strong> paulati<strong>na</strong>mente ao c<strong>é</strong>rebro que o desejo está sen<strong>do</strong><br />

progressivamente satisfeito. Quan<strong>do</strong> o gesto tiver chega<strong>do</strong> a seu fim, no<br />

lugar <strong>do</strong> desejo terá surgi<strong>do</strong> a satisfação, pois o gesto projeta<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />

imagi<strong>na</strong>ção terá assumi<strong>do</strong> uma forma própria <strong>na</strong> memória, no esquema<br />

corporal (em sua totali<strong>da</strong>de psicomotora: espaço, tempo, etc.). O gesto<br />

terá passa<strong>do</strong> a existir, o desejo terá si<strong>do</strong> satisfeito.<br />

O indivíduo, em sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, estará enriqueci<strong>do</strong> de mais esse gesto,<br />

<strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que ele terá se mostra<strong>do</strong> sensível às nuanças que seu corpo<br />

e, atrav<strong>é</strong>s dele, seu espírito terão <strong>da</strong><strong>do</strong> a uma ou a outra <strong>da</strong>s<br />

características desse gesto.<br />

BÉZIERS & PIRET (1992), com simplici<strong>da</strong>de, observam algo muito mais<br />

profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> que nossa razão pode entender:<br />

Não seguramos a caneta <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> para escrever um poema e para<br />

fazer um dever de casa. Mas em ca<strong>da</strong> caso to<strong>do</strong> ser concentra a densi<strong>da</strong>de<br />

interior de seu c<strong>é</strong>rebro em sua mão e a exprime <strong>na</strong> ponta <strong>da</strong> caneta.<br />

É assim que o gesto se desenvolve quan<strong>do</strong> o abor<strong>da</strong>mos sob o seu aspecto<br />

geral.<br />

Bibliografia<br />

BERTAZZO, Ival<strong>do</strong>. Ci<strong>da</strong>dão corpo: identi<strong>da</strong>de e autonomia <strong>do</strong> movimento.<br />

3. ed. São Paulo: Summus, 1998.


BÉZIERS, Marie-Madeleine; HUNSINGER, Yva. O bebê e a coorde<strong>na</strong>ção<br />

motora. Tradução de Lúcia Campello Hahn. 2. ed. São Paulo: Summus,<br />

1992.<br />

BÉZIERS, Marie-Madeleine; PIRET, Suzanne. A coorde<strong>na</strong>ção motora:<br />

aspecto mecânico <strong>da</strong> organização psicomotora <strong>do</strong> homem. Tradução de<br />

Ângela Santos. Revisão t<strong>é</strong>cnica de Lúcia Campello Hahn. 2. ed. São Paulo:<br />

Summus, 1992.<br />

GAARDER, Jostein. O mun<strong>do</strong> de Sofia. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1998.<br />

VARELLA, Drauzio; BERTAZZO, Ival<strong>do</strong>; JACQUES, Paola Berenstein. Mar<strong>é</strong>,<br />

vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> favela. Rio de Janeiro: Casa <strong>da</strong> Palavra, 2002.<br />

Reprodução <strong>da</strong>s imagens<br />

Imagens 3 e 4<br />

BÉZIERS, Marie-Madeleine; PIRET, Suzanne. La coordi<strong>na</strong>tion motrice:<br />

aspect m<strong>é</strong>canique de l´organisation psycho-motrice de l´home. Paris:<br />

Masson & Cie., 1971, respectivamente p. 58 e 6.<br />

1. Ival<strong>do</strong> Bertazzo <strong>é</strong> coreógrafo e terapeuta corporal. Desde 1974 dirige a<br />

Escola de Reeducação <strong>do</strong> Movimento Ival<strong>do</strong> Bertazzo, em São Paulo. Em<br />

1976 criou o conceito de ci<strong>da</strong>dãos-<strong>da</strong>nçantes – bailarinos nãoprofissio<strong>na</strong>is<br />

que, por meio <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça, reavaliam seu posicio<strong>na</strong>mento no<br />

convívio social.

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