Hannah Arendt: Legitimidade e Política - Programa de Pós ...

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16.04.2013 Views

esperança de atingir-se o verdadeiro conhecimento.” 128 Conforme a autora, a idéia de transmissão dos padrões e medidas da tradição estava baseada na “tradicional confiança incondicional no que foi dado e aparece em seu verdadeiro ser à razão e aos sentidos humanos.” 129 A este pressuposto, é demonstrado em A Condição Humana, articulava-se a questão de que a transmissão dos padrões e medidas da tradição valera-se do fato de que os sentidos humanos predispõem e integram o homem à realidade que o rodeia, permitindo-lhe ascender e transmitir à verdade . Para a filósofa, o acolhimento da veracidade dos padrões e medidas enraizados na transmissão da tradição era a tarefa do senso comum cujo objetivo era adequar “as sensações... [dos] cinco sentidos estritamente privados – tão privados que as sensações, em sua qualidade e intensidade meramente sensoriais, são incomunicáveis – a um mundo comum compartilhado pelos outros.” 130 Neste caso, posto que o ser das coisas não estava desvencilhado da sua manifestação aparente – na medida em que o senso comum integrava o homem a sua realidade circundante –, a tradição podia assegurar a razoabilidade da sua consistência porque os homens se adequavam à recepção dos padrões e medidas transmitidos por esta tradição. “A época moderna começou quando o homem, com auxílio do telescópio, voltou seus olhos corpóreos rumo ao universo, acerca do qual especulara durante longo tempo – vendo com os olhos do espírito, ouvindo com os ouvidos do coração e guiado pela luz interior da razão – e aprendeu que seus sentidos não eram adequados para o universo, que sua experiência quotidiana, longe de ser capaz de constituir o modelo para a recepção da verdade e a aquisição do conhecimento, era uma constante fonte de erro e ilusão.” O esgarçamento das tradições na época moderna implica a quebra da razoabilidade dos padrões metafísicos em informarem a realidade, implicando assim na perda da mediação dos opostos em cuja tensão a tradição foi ganhando sua consistência. Para Arendt, padrões e medidas que ao longo da tradição avaliaram as ações, os juízos e pensamentos humanos, seriam continuamente desvalorizados por uma modernidade assentada na funcionalidade destes padrões. No ensaio A Tradição e a Época Moderna, Arendt afirma que o 128 H. ARENDT, CHM, p. 345-346. [Trad. bras. p. 287]. 129 H. ARENDT, A Tradição e a Época Moderna, In EPF, p. 59. 130 Para a noção de senso comum em Arendt, cf. H. ARENDT, CHM, p. 346 [Trad. bras. p. 287]. Idem, O Pensar, In VE, p. 36-42. Para uma análise da dupla noção de senso comum em Arendt, cf. B. ASSY, Sensus communis: exercício da condição humana – Para uma concepção de sensibilidade civilizadora, In A. CORREIA (org.), Hannah Arendt e a Condição Humana, p. 78.

esgarçamento das tradições na época moderna resultou em duas conseqüências para os padrões metafísicos que informaram a tradição: “Primeiro, tornaram-se aquilo que haviam sido para Platão apenas em relação ao domínio público: padrões e medidas, ou as forças limitativas e reguladoras da mente raciocinante do homem, como em Kant. A seguir, após a prioridade da razão sobre o agir e da prescrição mental de regras sobre as ações dos homens ter sido precedida na transformação de todo o mundo pela Revolução Industrial (...), essas idéias tornaram-se, finalmente, meros valores cuja validade é determinada não por um ou muitos homens, mas pela sociedade como um todo em suas sempre mutáveis necessidades funcionais.” 131 Com o esgarçamento dos padrões constitutivos das tradições na época moderna, “o fio da continuidade histórica foi o primeiro substituto para a tradição; por seu intermédio, a avassaladora massa dos valores mais divergentes, dos mais contraditórios pensamentos e das mais conflitantes autoridades, todos os quais haviam sido, de algum modo, capazes de funcionar conjuntamente, foram reduzidos a um desenvolvimento unilinear e dialeticamente coerente, na verdade, não para repudiar a tradição como tal, mas a autoridade de todas as tradições.” 132 Para Arendt, o esgarçamento das tradições seria o móbil dos processos de constituição da época moderna. Este fato assinala, com efeito, que a antiga distinção metafísica entre sensível e supra-sensível que Arendt apreende como um pressuposto fundante e ordenador da consistência da tradição chegou ao fim. Posto que, para a autora, “qualquer pensamento que se construa em termos de dois mundos já implica que esses dois mundos estejam inseparavelmente ligados entre si” 133 , a quebra do equilíbrio tênue entre os dois mundos através da recusa da distinção entre sensível e supra-sensível com o advento da ciência moderna, implica que o quadro de referência da tradição seria progressivamente exaurido. Na época moderna, observa Hannah Arendt no ensaio Compreensão e Política – as dificuldades da compreensão, as tradições transformam-se em costumes. Costumes, para a filósofa, são gestos inveterados que advêm do contato com a durabilidade e a permanência do mundo, visando reatar os homens ao mundo das coisas fabricadas. Hábitos e costumes, para a autora, predispõem os homens ao contato com o mundo dos artefatos mundanos 131 H. ARENDT, A Tradição e a Época Moderna, In EPF, p. 68. 132 Idem, CHM, p. 55. [grifo meu] 133 H. ARENDT, O Pensar, In VE, p. 11.

esperança <strong>de</strong> atingir-se o verda<strong>de</strong>iro conhecimento.” 128 Conforme a autora, a idéia <strong>de</strong><br />

transmissão dos padrões e medidas da tradição estava baseada na “tradicional confiança<br />

incondicional no que foi dado e aparece em seu verda<strong>de</strong>iro ser à razão e aos sentidos<br />

humanos.” 129 A este pressuposto, é <strong>de</strong>monstrado em A Condição Humana, articulava-se a<br />

questão <strong>de</strong> que a transmissão dos padrões e medidas da tradição valera-se do fato <strong>de</strong> que os<br />

sentidos humanos predispõem e integram o homem à realida<strong>de</strong> que o ro<strong>de</strong>ia, permitindo-lhe<br />

ascen<strong>de</strong>r e transmitir à verda<strong>de</strong> .<br />

Para a filósofa, o acolhimento da veracida<strong>de</strong> dos padrões e medidas enraizados na<br />

transmissão da tradição era a tarefa do senso comum cujo objetivo era a<strong>de</strong>quar “as<br />

sensações... [dos] cinco sentidos estritamente privados – tão privados que as sensações, em<br />

sua qualida<strong>de</strong> e intensida<strong>de</strong> meramente sensoriais, são incomunicáveis – a um mundo<br />

comum compartilhado pelos outros.” 130 Neste caso, posto que o ser das coisas não estava<br />

<strong>de</strong>svencilhado da sua manifestação aparente – na medida em que o senso comum integrava<br />

o homem a sua realida<strong>de</strong> circundante –, a tradição podia assegurar a razoabilida<strong>de</strong> da sua<br />

consistência porque os homens se a<strong>de</strong>quavam à recepção dos padrões e medidas<br />

transmitidos por esta tradição.<br />

“A época mo<strong>de</strong>rna começou quando o homem, com auxílio do telescópio, voltou seus olhos corpóreos rumo<br />

ao universo, acerca do qual especulara durante longo tempo – vendo com os olhos do espírito, ouvindo com<br />

os ouvidos do coração e guiado pela luz interior da razão – e apren<strong>de</strong>u que seus sentidos não eram a<strong>de</strong>quados<br />

para o universo, que sua experiência quotidiana, longe <strong>de</strong> ser capaz <strong>de</strong> constituir o mo<strong>de</strong>lo para a recepção da<br />

verda<strong>de</strong> e a aquisição do conhecimento, era uma constante fonte <strong>de</strong> erro e ilusão.”<br />

O esgarçamento das tradições na época mo<strong>de</strong>rna implica a quebra da razoabilida<strong>de</strong> dos<br />

padrões metafísicos em informarem a realida<strong>de</strong>, implicando assim na perda da mediação<br />

dos opostos em cuja tensão a tradição foi ganhando sua consistência. Para <strong>Arendt</strong>, padrões<br />

e medidas que ao longo da tradição avaliaram as ações, os juízos e pensamentos humanos,<br />

seriam continuamente <strong>de</strong>svalorizados por uma mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> assentada na funcionalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>stes padrões. No ensaio A Tradição e a Época Mo<strong>de</strong>rna, <strong>Arendt</strong> afirma que o<br />

128 H. ARENDT, CHM, p. 345-346. [Trad. bras. p. 287].<br />

129 H. ARENDT, A Tradição e a Época Mo<strong>de</strong>rna, In EPF, p. 59.<br />

130 Para a noção <strong>de</strong> senso comum em <strong>Arendt</strong>, cf. H. ARENDT, CHM, p. 346 [Trad. bras. p. 287].<br />

I<strong>de</strong>m, O Pensar, In VE, p. 36-42. Para uma análise da dupla noção <strong>de</strong> senso comum em <strong>Arendt</strong>,<br />

cf. B. ASSY, Sensus communis: exercício da condição humana – Para uma concepção <strong>de</strong><br />

sensibilida<strong>de</strong> civilizadora, In A. CORREIA (org.), <strong>Hannah</strong> <strong>Arendt</strong> e a Condição Humana, p. 78.

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