Hannah Arendt: Legitimidade e Política - Programa de Pós ...
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Não obstante, a ênfase do cristianismo na imortalidade da alma e na perecibilidade de todas as coisas terrenas era contrastada pela Igreja Cristã, a única instituição reconhecida como durável para a qual os impulsos políticos dos cristãos poderiam ser levados e a única herdeira do legado político romano. A propósito desta contradição – dos postulados cristãos que não reconheciam nada de durável e da assunção da Igreja enquanto instituição durável –, Arendt afirma que ela foi resolvida através da romanização da Igreja Cristã. Segundo a autora, a influência romana na Igreja Cristã imprimiu transformações substanciais no Cristianismo, resultando que os dogmas que serviam de base à Igreja não fossem mais a fé cristã na ressurreição – embora esta fé permanecesse como o conteúdo dos credos cristãos – ou a obediência hebraica aos mandamentos de Deus, mas sim o testemunho do nascimento, morte e ressurreição de Cristo. Neste caso, a legitimidade da Igreja enquanto instituição durável estava no fato de esta instituição ser a portadora inquebrantável da mensagem deste evento fundamental, herdeira do legado de Cristo 92 . Do ponto de vista teórico, conforme Arendt, esta contradição foi respondida por meio de Santo Agostinho, que, retomando o caráter político essencial que a vida adquiriu para os romanos, asseverava que uma vida calcada na pluralidade humana seria uma condição para a vida pecadora e mesmo para uma vida levada na pura inocência e santidade 93 . Se foi na base desta transformação que o Cristianismo pôde contrastar suas fortes tendências antipolíticas, por outro lado, a ascensão da Igreja enquanto instituição que se tornou herdeira da autoridade política do Império Romano impunha-lhes responsabilidades que deveriam se traduzir na imposição de padrões e medidas as quais justificassem o seu domínio sobre as coisas mundanas. A partir desta análise, Arendt demonstra como a Igreja Cristã passou a utilizar-se da doutrina do inferno com a finalidade de justificar sua dominação política na esfera secular 94 . Surgindo concomitantemente com o desaparecimento da esfera secular radicada no Império Romano, a doutrina do Inferno não tem suas origens nos ensinamentos de Jesus ou nas fontes hebraicas, mas sim nos diálogos platônicos, onde o mito do Inferno com seus castigos físicos e gradações é introduzido com a finalidade de obrigar a multidão a acreditar nas verdades invisíveis reveladas aos poucos que se dedicam à vida 92 H. ARENDT, O que é Autoridade? In EPF, p. 168. 93 H. ARENDT, O Conceito de História – Antigo e Moderno, In EPF, p. 107-108. 94 H. ARENDT, Religião e Política, In CP, p. 275.
contemplativa. Com a assunção da Igreja enquanto instituição dotada de obrigações políticas, a doutrina do Inferno passaria a ser utilizada pela Igreja com a finalidade de justificar seu domínio na esfera secular, caracterizado pela relatividade e ausência de padrões desde que a autoridade de Roma não era mais reconhecida. Com esta imposição, a autoridade religiosa – utilizando tal doutrina toda vez que os dogmas da Igreja fossem transgredidos – podia sair vitoriosa em qualquer contenda com o poder secular, salvaguardando a sua autoridade no domínio político com a introdução explícita de um elemento de violência contido na ameaça do fogo eterno 95 . Para Arendt, a secularização significa que este elemento de violência contido nas ameaças do fogo do inferno perdeu sua força política vinculativa. “Politicamente, a secularidade significa apenas que os credos e instituições religiosos não têm qualquer autoridade publicamente vinculativa e que, em contrapartida, a vida política não é religiosamente sancionada. O que levanta a grave questão da fonte da autoridade dos nossos ‘valores’ tradicionais, das nossas leis, costumes e critérios de juízo, que durante tantos séculos receberam da religião o seu caráter sagrado.” 96 Com a secularização moderna, a autoridade política da Igreja derivada da imposição de castigos eternos finda sua existência. Esta perda, segundo Arendt, é irreparável, assinalando que, se de um ponto de vista histórico a secularização trouxe a especificidade própria para a religião e a política, salvaguardando ambos os domínios da interferência um do outro, também uma vez mais os negócios humanos perderam sua autoridade tradicional e encontravam-se desguarnecidos 97 . Para a filósofa, a emergência de uma esfera secular autônoma colocava novamente em voga a possibilidade de a imortalidade vir a realizar-se através de ações e feitos – tal como na Antigüidade clássica –, uma vez admitida à mortalidade da vida individual e o fato de a esfera político-secular voltar a pretender estabilizar-se por meio de seus fundamentos próprios. Entretanto, o que de fato sucederia no curso da época moderna seria que o dilema clássico da mortalidade da vida contrastada com a permanência do mundo ou o dilema da imortalidade da vida em oposição à perecibilidade do mundo, tal como formulado no Cristianismo, manifestar-se-ia na época moderna através da perecibilidade de um e outro. 95 H. ARENDT, O que é Autoridade?, In EPF, p. 176-178. Idem, Religião e Política, In CP, p. 276- 278. 96 Idem, “Religião e Política, In CP, p. 264. 97 H. ARENDT, O que é Autoridade? In EPF, p. 177.
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Não obstante, a ênfase do cristianismo na imortalida<strong>de</strong> da alma e na perecibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
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cristã na ressurreição – embora esta fé permanecesse como o conteúdo dos credos cristãos –<br />
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<strong>Arendt</strong>, esta contradição foi respondida por meio <strong>de</strong> Santo Agostinho, que, retomando o<br />
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Se foi na base <strong>de</strong>sta transformação que o Cristianismo pô<strong>de</strong> contrastar suas fortes<br />
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Surgindo concomitantemente com o <strong>de</strong>saparecimento da esfera secular radicada no<br />
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92 H. ARENDT, O que é Autorida<strong>de</strong>? In EPF, p. 168.<br />
93 H. ARENDT, O Conceito <strong>de</strong> História – Antigo e Mo<strong>de</strong>rno, In EPF, p. 107-108.<br />
94 H. ARENDT, Religião e <strong>Política</strong>, In CP, p. 275.