Hannah Arendt: Legitimidade e Política - Programa de Pós ...

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16.04.2013 Views

Hitler, apesar dos seus comentários sobre pessoas que ‘têm medo de pular sobre a própria sombra’, estava perfeitamente disposto a continuar a usar essas sombras, embora em outra função 35 . De outro lado, esse expediente organizacional fazia da questão constitucional, do direito e de sua positivação em leis escritas, uma questão sem significado prático, pois o desprezo pela legalidade positiva levada a cabo pelos governos totalitários caminhava junto com o discurso da organização ostensiva que recobria a diferença entre os sujeitos e a exterioridade da lei, entre os sujeitos empiricamente determinados e a lei enquanto representação referenciadora do espaço social 36 . Isto significa que do ponto de vista concreto, a lei dos governos totalitários é o curso indicado pelo ímpeto do movimento na pretensão do domínio total. Deste modo, o objetivo das leis totalitárias é minar qualquer estrutura legal ou governamental, para que não seja estorvado o curso determinado pela direção do movimento. Neste caso, o que está em questão nesta forma organizacional é a denegação da divisão entre a lei e o poder, da diferença entre as leis enquanto conjunto de regras transcendentes que ajuízam as ações humanas e a ação que manifesta a contingência singular e irredutível dos indivíduos 37 . Esta diferença é encoberta através das organizações totalitárias que, para Arendt, “não só não está fora do âmbito da lei, mas ela é a própria encarnação da lei e a sua respeitabilidade está acima de qualquer suspeita.” 38 O advento dos movimentos totalitários no poder, a fusão estabelecida entre instituições ostensivas e invisíveis, o denegamento instituído na divisão do partido e do Estado, entre o poder político e o administrativo, tem como resultado que as diversas burocracias do Estado perdem seu estatuto definido em lei e passam a ser solapadas pelo ímpeto dos movimentos. A relevância das massas atomizadas na constituição dos movimentos e a primazia dos movimentos sobre as estruturas políticas, inscrevem a lógica do domínio total num movimento que posiciona as massas atomizadas e as dispõe segundo sua mobilização, eliminando toda exterioridade sócio-política ao poder total, toda diferença em que a manifestação global do poder totalitário não se encontre reafirmada. Na esteira de Hannah Arendt, Claude Lefort assinala que a edificação de uma sociedade instituída sem divisões, que disporia de um domínio completo de sua vida social e se relaciona com todas as suas partes à medida que ela se edifica enquanto tal, é o que define a lógica organizacional do totalitarismo 39 . Na sua análise do totalitarismo, Arendt demonstra que através da instituição de pólipos de domínio em toda sociedade e sua inscrição nos expedientes organizacionais dos movimentos, os governos totalitários procedem a uma homogeneização de todo o espaço social, imprimindo nos agentes da edificação do domínio total as virtudes de um ativismo fanático 40 . Este expediente organizacional tinha por objetivo imprimir na 35 Ibidem, p. 451. 36 C. LEFORT, Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas, In As formas da história, p. 329. 37 Ibid, p. 329 38 H. ARENDT, Totalitarismo, In OT, p. 479. As leis totalitárias se instituem sobre aqueles que a ela estão subjugados como um “órgão executivo que fazia cumprir uma lei que tacitamente já existia para todos.” ibid, p. 466. 39 C. LEFORT, A Invenção democrática – Os Limites do totalitarismo, p. 83. Miguel ABENSOUR, Duas interpretações do totalitarismo na obra de Claude Lefort, Kriterion, 90 : 103-108. 40 H ARENDT, “ ... onde vemos todos passarem subitamente a se comportar como se fossem

textura das relações sociais uma transparência na qual se estabelece, conforme afirma Claude Lefort, “a representação de uma ordem ‘natural’, mas esta ordem é [simultaneamente] suposto social-racional não tolera[ando] divisões nem hierarquias aparentes” 41 . Homogeneização e transparência do espaço social ao qual a idéia do fora, do inimigo objetivo, vai constantemente atualizar identitariamente o movimento, de modo que a eliminação e a sucessiva redefinição dos “inimigos objetivos” impulsionavam o ímpeto terrorista do movimento 42 . Este caráter impetuoso dos governos totalitários manifesto na execução do terror como instituição do regime, repousa ainda em um decisionismo 43 que encarna toda estrutura do poder, decisionismo figurado na ‘vontade’ do líder, no arbítrio do seu desejo que se transmite voluvelmente através de seus agentes pela hierarquia flutuante do regime, prevalecendo através da relação entre o arbítrio do líder e a descartabilidade dos súditos que não dispõem de um estatuto garantido. A partir destes termos, Arendt articula a dupla relação entre a experiência das massas fora de qualquer estrutura de governo e de sua estabilidade com a volubilidade do totalitarismo no poder, articulação que é expressa quando indivíduos desarraigados e supérfluos restabelecem seu estatuto perdido amalgamando-se nas leis férreas da dominação total. A este último ponto, Paul Ricoeur deu a seguinte expressão: “Com efeito, o conceito de sistema totalitário reenvia à invenção de uma ficção, que serve para a propaganda e o terror, a ficção de uma submissão integral às leis da Natureza, no nazismo, ou àquelas da História, no estalinismo. Encontramos estas antecipações de uma ou outra ficção nos pensadores, escritores, nos propagandistas da era pré-totalitária. Falta a cristalização que transforma as pseudociências em lógica demente. O ponto cego evocado no mais alto grau, está no encontro entre a coerência da ficção e o rigor da organização.” 44 Mais ainda: na sua análise, Arendt destaca que o caráter sem precedentes do totalitarismo está ligado à eliminação da liberdade no seu último reduto que é a espontaneidade humana - experimentação que será levada a efeito nos campos de concentração 45 ; E, simultaneamente, articula a questão de que o totalitarismo se membros de uma única família, cada um manipulando e prolongando a perspectiva do vizinho” 40 CHM, p. 98-99 [Trad. bras. p. 67]. 41 C. LEFORT, Ibid, p. 83. 42 C. LEFORT. “A campanha contra os inimigos do povo vê-se posta sob o signo da profilaxia social: a integridade do corpo dependendo da eliminação de seus parasitas.” Ibid p. 84 e p. 115. 43 H. ARENDT, “A política totalitária (...) é totalmente sujeita ao desejo do Líder, que é o único a decidir quem será o próximo inimigo potencial e, como o fez Stálin, pode dizer até quais os escalões da própria política secreta devem ser liquidados.” Totalitarismo, In OT, p. 476. C. LEFORT, Esboço da de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas, In As Formas da história, p. 330. Para a relação de contigüidade entre a soberania e exceção no Estado totalitário, cf. G. AGAMBEN, Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua, p. 23-36. Sobre a relação do conceito de soberania com o de vontade no âmbito político, cf. H. ARENDT, O que é Liberdade?, In EPF, p. 188-220. 44 Preface, In CHM, p. 6. [ grifo meu]. 45 Para a análise dos campos de concentração, cf. Totalitarismo, In OT, p. 499-504.

Hitler, apesar dos seus comentários sobre pessoas que ‘têm medo <strong>de</strong> pular sobre a própria sombra’, estava<br />

perfeitamente disposto a continuar a usar essas sombras, embora em outra função 35 .<br />

De outro lado, esse expediente organizacional fazia da questão constitucional, do direito e <strong>de</strong> sua<br />

positivação em leis escritas, uma questão sem significado prático, pois o <strong>de</strong>sprezo pela legalida<strong>de</strong> positiva<br />

levada a cabo pelos governos totalitários caminhava junto com o discurso da organização ostensiva que<br />

recobria a diferença entre os sujeitos e a exteriorida<strong>de</strong> da lei, entre os sujeitos empiricamente <strong>de</strong>terminados e a<br />

lei enquanto representação referenciadora do espaço social 36 . Isto significa que do ponto <strong>de</strong> vista concreto, a<br />

lei dos governos totalitários é o curso indicado pelo ímpeto do movimento na pretensão do domínio total.<br />

Deste modo, o objetivo das leis totalitárias é minar qualquer estrutura legal ou governamental, para que não<br />

seja estorvado o curso <strong>de</strong>terminado pela direção do movimento. Neste caso, o que está em questão nesta<br />

forma organizacional é a <strong>de</strong>negação da divisão entre a lei e o po<strong>de</strong>r, da diferença entre as leis enquanto<br />

conjunto <strong>de</strong> regras transcen<strong>de</strong>ntes que ajuízam as ações humanas e a ação que manifesta a contingência<br />

singular e irredutível dos indivíduos 37 . Esta diferença é encoberta através das organizações totalitárias que,<br />

para <strong>Arendt</strong>, “não só não está fora do âmbito da lei, mas ela é a própria encarnação da lei e a sua<br />

respeitabilida<strong>de</strong> está acima <strong>de</strong> qualquer suspeita.” 38<br />

O advento dos movimentos totalitários no po<strong>de</strong>r, a fusão estabelecida entre instituições ostensivas e<br />

invisíveis, o <strong>de</strong>negamento instituído na divisão do partido e do Estado, entre o po<strong>de</strong>r político e o<br />

administrativo, tem como resultado que as diversas burocracias do Estado per<strong>de</strong>m seu estatuto <strong>de</strong>finido em lei<br />

e passam a ser solapadas pelo ímpeto dos movimentos. A relevância das massas atomizadas na constituição<br />

dos movimentos e a primazia dos movimentos sobre as estruturas políticas, inscrevem a lógica do domínio<br />

total num movimento que posiciona as massas atomizadas e as dispõe segundo sua mobilização, eliminando<br />

toda exteriorida<strong>de</strong> sócio-política ao po<strong>de</strong>r total, toda diferença em que a manifestação global do po<strong>de</strong>r<br />

totalitário não se encontre reafirmada. Na esteira <strong>de</strong> <strong>Hannah</strong> <strong>Arendt</strong>, Clau<strong>de</strong> Lefort assinala que a edificação<br />

<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> instituída sem divisões, que disporia <strong>de</strong> um domínio completo <strong>de</strong> sua vida social e se<br />

relaciona com todas as suas partes à medida que ela se edifica enquanto tal, é o que <strong>de</strong>fine a lógica<br />

organizacional do totalitarismo 39 .<br />

Na sua análise do totalitarismo, <strong>Arendt</strong> <strong>de</strong>monstra que através da instituição <strong>de</strong> pólipos <strong>de</strong> domínio em<br />

toda socieda<strong>de</strong> e sua inscrição nos expedientes organizacionais dos movimentos, os governos totalitários<br />

proce<strong>de</strong>m a uma homogeneização <strong>de</strong> todo o espaço social, imprimindo nos agentes da edificação do domínio<br />

total as virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um ativismo fanático 40 . Este expediente organizacional tinha por objetivo imprimir na<br />

35<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p. 451.<br />

36<br />

C. LEFORT, Esboço <strong>de</strong> uma gênese da i<strong>de</strong>ologia nas socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, In As formas da<br />

história, p. 329.<br />

37<br />

Ibid, p. 329<br />

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H. ARENDT, Totalitarismo, In OT, p. 479. As leis totalitárias se instituem sobre aqueles que a ela<br />

estão subjugados como um “órgão executivo que fazia cumprir uma lei que tacitamente já existia<br />

para todos.” ibid, p. 466.<br />

39<br />

C. LEFORT, A Invenção <strong>de</strong>mocrática – Os Limites do totalitarismo, p. 83. Miguel ABENSOUR,<br />

Duas interpretações do totalitarismo na obra <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Lefort, Kriterion, 90 : 103-108.<br />

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