o livreto “Leituras de Cinema” - Uesb
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LEITURAS<br />
DE CINEMA<br />
Filmes para o Vestibular <strong>Uesb</strong> 2011
Apresentação..............................................................pág.04<br />
Filmes Exibidos........................................................... pág.05<br />
Leituras ..................................................................... pág.09<br />
Linha <strong>de</strong> Passe.............................................................pág.10<br />
A Onda.........................................................................pág.22<br />
Pro Dia Nascer Feliz.....................................................pág.29<br />
Créditos.......................................................................pág.39<br />
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO<br />
4<br />
Em 2004, o vestibular da Universida<strong>de</strong> Estadual do Sudoeste da Bahia teve,<br />
como uma novida<strong>de</strong>, questões sobre obras cinematográficas. A proposta foi<br />
feita pelo programa Janela Indiscreta Cine-Ví<strong>de</strong>o <strong>Uesb</strong>, abraçada pela Pró-<br />
Reitoria <strong>de</strong> Graduação e pela Comissão Permanente do Vestibular, que<br />
organizam o processo seletivo, e apoiada pela Pró-Reitoria <strong>de</strong> Extensão. E,<br />
incluindo a seleção e sugestão dos filmes, surgiu o projeto “Cinema: Eis a<br />
Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular”, que promove, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então,<br />
sessões comentadas das obras, nas três cida<strong>de</strong>s-se<strong>de</strong>s da universida<strong>de</strong>, Vitória<br />
da Conquista, Jequié e Itapetinga.<br />
A cada ano, são três filmes, criteriosamente escolhidos no rol da produção<br />
cinematográfica nacional e internacional, observando-se as críticas, a<br />
relevância dos temas abordados, a qualida<strong>de</strong> estética e narrativa e a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso, uma vez que as obras po<strong>de</strong>m facilmente ser<br />
encontradas em locadoras. Mas o diferencial do projeto não está na exibição<br />
dos filmes, e sim nas diferentes leituras que são feitas, após as exibições, por<br />
professores e/ou pesquisadores da área <strong>de</strong> cinema ou das temáticas<br />
abordadas nas obras. Cada obra é comentada por três pessoas, que<br />
apresentam as suas reflexões e estimulam as leituras dos vestibulandos.<br />
A experiência tem sido extremamente exitosa. O projeto soma, este ano, 21<br />
filmes exibidos, comentados por 63 pessoas, para um público <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 22<br />
mil vestibulandos. É gratificante chegar à sétima edição sabendo que, para<br />
muitos, houve a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong> olhares por meio do cinema. E<br />
também são olhares que esta publicação traz: reflexões sobre os filmes do<br />
Vestibular <strong>Uesb</strong> 2011: “Linha <strong>de</strong> Passe”, “A Onda” e “Pro Dia Nascer Feliz”. São<br />
distintas leituras, feitas pelos convidados para comentar os filmes nas sessões<br />
e por outras pessoas que aceitaram, gentilmente, colaborar com a proposta.<br />
Que esta seja mais uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r, apren<strong>de</strong>r e discutir<br />
questões da vida que nos são trazidas pela sétima arte.<br />
Raquel Costa<br />
Coor<strong>de</strong>nadora-executiva do Programa Janela Indiscreta Cine-Ví<strong>de</strong>o <strong>Uesb</strong>
A cada ano, a equipe <strong>de</strong> trabalho do Janela Indiscreta Cine-Ví<strong>de</strong>o <strong>Uesb</strong><br />
seleciona, a partir <strong>de</strong> alguns critérios, dois filmes brasileiros, <strong>de</strong><br />
preferência uma ficção e um documentário, e um filme estrangeiro<br />
reconhecido pela crítica e que se a<strong>de</strong>que aos propósitos do projeto.<br />
Confira as obras exibidas e comentadas em todas as edições.<br />
2010<br />
Filme: "A Onda”<br />
Direção: Dennis Gansel<br />
Duração/Ano/País: 106 min., 2008, Alemanha<br />
Filme: “Linha <strong>de</strong> Passe”<br />
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas<br />
Duração/Ano/País: 113 min., 2008, Brasil<br />
Filme: "Pro Dia Nascer Feliz"<br />
Direção: João Jardim<br />
Duração/Ano/País: 88 min., 2007, Brasil<br />
FILMES EXIBIDOS<br />
5
FILMES EXIBIDOS<br />
6<br />
2009<br />
Filme: "Mutum"<br />
Direção: Sandra Kogut<br />
Duração/Ano/País: 95 min., 2007, Brasil<br />
Filme: "Encontro com Milton Santos ou<br />
O mundo global visto do lado <strong>de</strong> cá”<br />
Direção: Sílvio Tendler<br />
Duração/Ano/País: 87 min., 2007, Brasil<br />
Filme: "Ensaio Sobre a Cegueira"<br />
Direção: Fernando Meirelles<br />
Duração/Ano/País: 120 min., 2008,<br />
Brasil/Canadá/Japão<br />
2008 Filme: "Zuzu Angel"<br />
Direção: Sérgio Rezen<strong>de</strong><br />
Duração/Ano/País: 110 min., 2006, Brasil<br />
Filme: "Babel"<br />
Direção: Alejandro González Iñarritu<br />
Duração/Ano/País: 142 min., 2006, EUA<br />
Filme: "Estamira"<br />
Direção: Marcos Prado<br />
Duração/Ano/País: 115 min., 2006, Brasil
2007<br />
Filme: "Macunaíma"<br />
Direção: Joaquim Pedro <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Duração/Ano/País: 108 min., 1969, Brasil<br />
Filme: "Anjos do Sol"<br />
Direção: Rudi Lagemann<br />
Duração/Ano/País: 90 min., 2006, Brasil<br />
Filme: "Balzac e a Costureirinha Chinesa"<br />
Direção: Dai Sijie<br />
Duração/Ano/País: 116 min., 2002,<br />
China/França<br />
2006 Filme: "A Marvada Carne"<br />
Direção: André Klotzel<br />
Duração/Ano/País: 77 min., 1985, Brasil<br />
Filme: "Hotel Ruanda"<br />
Direção: Terry George<br />
Duração/Ano/País: 121 min., 2004,<br />
Itália/África do Sul/Estados Unidos Unidos<br />
Filme: "Terra em Transe"<br />
Direção: Glauber Rocha<br />
Duração/Ano/País: 115 min., 1967, Brasil<br />
FILMES EXIBIDOS<br />
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FILMES EXIBIDOS<br />
8<br />
2005<br />
Filme: "Deus e o Diabo na Terra do Sol"<br />
Direção: Glauber Rocha<br />
Duração/Ano/País: 115 min., 1964, Brasil<br />
Filme: "Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus"<br />
Direção: Fernando Meirelles<br />
Duração/Ano/País: 135 min., 2002, Brasil<br />
Filme: "A Excêntrica Família <strong>de</strong> Antônia"<br />
Direção: Marleen Gorris<br />
Duração/Ano/País: 102 min., 1995,<br />
Bélgica/Inglaterra/Holanda<br />
2004 Filme: "Cinema Paradiso"<br />
Direção: Giuseppe Tornatore<br />
Duração/Ano/País: 123 min., 1988, Itália<br />
Filme: "Abril Despedaçado"<br />
Direção: Walter Salles<br />
Duração/Ano/País: 95 min., 2001, Brasil<br />
Filme: "Bicho <strong>de</strong> Sete Cabeças"<br />
Direção: Laís Bodanzky<br />
Duração/Ano/País: 80 min., 2000, Brasil
A leitura <strong>de</strong> filmes é uma prática cotidiana do Programa Janela Indiscreta, ao<br />
longo <strong>de</strong> muitas e muitas sessões realizadas, numa trajetória que completa 18<br />
anos em novembro <strong>de</strong> 2010. Com o projeto “Cinema: Eis a Questão” não<br />
po<strong>de</strong>ria ser diferente, ainda mais com um público tão especial, que são os<br />
vestibulandos.<br />
.<br />
Nas sessões <strong>de</strong> exibição dos filmes do Vestibular <strong>Uesb</strong>, três professores e/ou<br />
pesquisadores da área <strong>de</strong> cinema ou das temáticas abordadas comentam<br />
cada uma das três obras apresentadas. Esses “leitores-guias”, que refletem<br />
sobre distintos aspectos abordados nos filmes, foram convidados também a<br />
escrever suas leituras para esta publicação. Assim, temos a contribuição <strong>de</strong><br />
Adriana Camargo, Rafael Carvalho e Rogério Luiz Oliveira (“Linha <strong>de</strong> Passe”);<br />
Tatiana Fantinatti e Veruska Anacirema da Silva (“A Onda”) e Sara Martin (“Pro<br />
Dia Nascer Feliz”). Além <strong>de</strong>les, temos outras pessoas, que, embora não<br />
estejam participando dos comentários nas sessões, aceitaram, gentilmente,<br />
elaborar uma reflexão, como Macelle Khouri e Izabel <strong>de</strong> Fátima Melo (“Linha<br />
<strong>de</strong> Passe”), Laura Bezerra (“A Onda”) e Inês Teixeira (“Pro Dia Nascer Feliz”), ou<br />
ce<strong>de</strong>r para a publicação uma crítica já escrita, como Chico Fireman e Ruy<br />
Gardnier (“Pro Dia Nascer Feliz”).<br />
.<br />
Que essas reflexões sejam profícuas, ao lançar diferentes olhares sobre as<br />
obras e incentivar cada vestibulando a fazer suas próprias leituras.<br />
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10<br />
LINHA DE PASSE<br />
Filme: “Linha <strong>de</strong> Passe”<br />
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas<br />
Duração/Ano/País: 113min./2008/Brasil<br />
Sinopse: São Paulo. Reginaldo (Kaique <strong>de</strong> Jesus Santos) é um jovem que procura<br />
seu pai obsessivamente. Dario (Vinícius <strong>de</strong> Oliveira) sonha se tornar jogador <strong>de</strong><br />
futebol, mas, aos 18 anos, vê a i<strong>de</strong>ia cada vez mais distante. Dinho (José Geraldo<br />
Rodrigues) <strong>de</strong>dica-se à religião. Dênis (João Baldasserini) enfrenta dificulda<strong>de</strong>s<br />
em se manter, sendo também pai involuntário <strong>de</strong> um menino. Os quatro são<br />
irmãos, tendo sido criados por Cleuza (Sandra Corveloni), sua mãe, que<br />
trabalha como empregada doméstica e está mais uma vez grávida, <strong>de</strong> pai<br />
<strong>de</strong>sconhecido. Eles precisam lidar com as transformações religiosas pelas quais<br />
o Brasil passa, assim como a inserção no meio do futebol e a ausência <strong>de</strong> uma<br />
figura paterna.<br />
.<br />
Prêmios: Sandra Corveloni ganhou o prêmio <strong>de</strong> Melhor Atriz no Festival <strong>de</strong><br />
Cannes.<br />
.<br />
Elenco: Vinícius <strong>de</strong> Oliveira (Dario), João Baldasserini (Dênis), José Geraldo<br />
Rodrigues (Dinho), Kaique <strong>de</strong> Jesus Santos (Reginaldo), Sandra Corveloni<br />
(Cleuza).<br />
.
Pelo meio do caminho<br />
Rafael Carvalho*<br />
Uma mulher grávida e seus quatro filhos, na periferia <strong>de</strong> São Paulo. Através <strong>de</strong>sse<br />
núcleo familiar, os diretores Walter Salles e Daniela Thomas realizam um filme <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> observação, marcado pela individualida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> os personagens<br />
possuírem uma gran<strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> entre si. O filme se constrói pela soma das<br />
partes para alcançar um todo maior ainda.<br />
Num primeiro momento, po<strong>de</strong> incomodar a forma como a história <strong>de</strong> cada um se<br />
entrecruza, sem uma ligação direta, quase como blocos narrativos separados.<br />
Mas cada trajetória ganha consistência à medida que eles se fortalecem na tela<br />
como personagens principais (e são cinco). Embora Cleuza, como mãe, seja o<br />
centro da família, cada qual possui seus próprios dilemas e um núcleo particular<br />
on<strong>de</strong> se apresenta um conflito narrativo distinto. O filme se equilibra pela<br />
consistência <strong>de</strong> cada segmento e consegue sustentá-los todos muito bem.<br />
Nesse estudo <strong>de</strong> personagens, nota-se como todos eles são pessoas falhas e, por<br />
isso mesmo, mais complexas e interessantes. A mãe, grávida, surge várias vezes<br />
com um cigarro na mão e solta palavrões o tempo todo, principalmente contra os<br />
próprios filhos, que apanham <strong>de</strong>la, embora também recebam o carinho materno<br />
no momento certo. Para ser admitido em algum clube, Dario falsifica a carteira <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a fim <strong>de</strong> parecer mais novo. Dênis, na malandragem, passa a roubar<br />
os motoristas dos carros que ficam parados no sinal. Mas, mesmo assim, não há<br />
julgamento dos personagens por seus atos tortos. E o filme transmite um carinho<br />
tão gran<strong>de</strong> por eles que talvez nem o espectador se sinta tentado a con<strong>de</strong>ná-los.<br />
Ao mesmo tempo, o filme foge da i<strong>de</strong>ia tão comum no cinema contemporâneo <strong>de</strong><br />
lidar com uma família disfuncional. Os problemas dos personagens não se<br />
encontram entre si, mas consigo mesmos. Não estamos diante <strong>de</strong> um núcleo<br />
familiar em pedaços. Eles brigam muito, é evi<strong>de</strong>nte, mas a gran<strong>de</strong> força do filme é<br />
traçar a trajetória <strong>de</strong> cada um, acentuando acertos e erros no percurso que eles<br />
precisam seguir. Talvez por isso, uma fotografia escura e pesada muitas vezes põe<br />
os personagens na penumbra total, <strong>de</strong>ixando transparecer somente suas<br />
silhuetas, fortalecendo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pessoas ro<strong>de</strong>adas por dificulda<strong>de</strong>s. Mas elas<br />
persistem, tendo na família um ponto <strong>de</strong> apoio, a base <strong>de</strong> sustentação nessa<br />
“caminhada”.<br />
E é com esses percursos múltiplos que o filme aproveita ainda para fazer uma<br />
espécie <strong>de</strong> investigação social, através <strong>de</strong> pequenos <strong>de</strong>talhes inseridos na<br />
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narrativa. Daí, vislumbramos a própria questão racial como miscigenação existente<br />
na família brasileira, a (im)possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cura e salvação através da religião, ou<br />
então o embate entre classes sociais distintas, seja pela relação <strong>de</strong> distanciamento<br />
entre o motoboy e os clientes para quem faz suas entregas, seja no choque entre<br />
Cleuza e a patroa <strong>de</strong> classe alta.<br />
No entanto, o filme faz isso <strong>de</strong> maneira bastante sutil e nunca soa forçado ou com<br />
ares <strong>de</strong> cinema “socialmente engajado”, um mal terrível e cada vez mais presente<br />
<strong>de</strong>ntro do cinema brasileiro. Por essa perspectiva, notamos facilmente o que há <strong>de</strong><br />
documental no filme, como o retrato dos torcedores aflitos no estádio, as centenas<br />
<strong>de</strong> garotos que tentam uma oportunida<strong>de</strong> para serem jogadores <strong>de</strong> futebol, a<br />
crença dos fiéis diante da pregação na igreja. E o filme nunca julga esses grupos ou<br />
mesmo confere maior ou menos importância a eles, como no momento em que as<br />
mãos erguidas dos torcedores no estádio se confun<strong>de</strong>m com as mãos dos fiéis na<br />
igreja. Eles se complementam.<br />
Além disso, a narrativa <strong>de</strong> “Linha <strong>de</strong> Passe” é toda marcada pela naturalida<strong>de</strong> com<br />
que os atores compõem seus personagens. Ajuda muito o fato <strong>de</strong> a maioria <strong>de</strong>les<br />
serem <strong>de</strong>sconhecidos do gran<strong>de</strong> público; são caras novas que trazem renovação<br />
para o cinema brasileiro e auxiliam ainda mais nessa composição naturalista do<br />
filme, ajudada por uma trilha sonora discreta e sem gran<strong>de</strong>s interferências.<br />
O final em aberto, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagradar muita gente, pega os personagens em<br />
momentos <strong>de</strong>cisivos (e o gran<strong>de</strong> público apren<strong>de</strong>u, através da narrativa do cinema<br />
clássico, a sempre ter respostas prontas e finais concretos). Mas aqui é diferente,<br />
porque esta parece ser a tônica <strong>de</strong> todo o filme: a existência <strong>de</strong> um longo caminho<br />
ainda a percorrer, apesar dos pesares (que são muitos).<br />
O título do filme, num primeiro momento, evoca, no futebol, a troca <strong>de</strong> passes<br />
entre os jogadores sem que o adversário tome a bola, nos fazendo refletir sobre a<br />
perseverança daqueles personagens em continuar no “jogo”. Para além disso,<br />
“linha” expressa trajetória, percurso, e, no caso <strong>de</strong>ssa família, a linha parece<br />
tortuosa e ainda bastante comprida. Os obstáculos hão <strong>de</strong> continuar pelo caminho.<br />
Basta aos personagens andar, andar, andar...<br />
* Rafael Carvalho é graduado em Comunicação Social – Jornalismo (<strong>Uesb</strong>) e crítico<br />
<strong>de</strong> cinema.
Linha <strong>de</strong> Passe: caminhos e <strong>de</strong>scaminhos do eu-nós<br />
Macelle Khouri*<br />
No futebol, a expressão linha <strong>de</strong> passe <strong>de</strong>signa a passagem da bola <strong>de</strong> um jogador a<br />
outro. É com esse sentido, passando <strong>de</strong> uma vida a outra, que Walter Salles e Daniela<br />
Thomas costuram a complexa narrativa <strong>de</strong> “Linha <strong>de</strong> Passe”, um dos filmes mais belos e<br />
emocionantes do cinema brasileiro.<br />
O longa nos apresenta o contexto da vida <strong>de</strong> quatro irmãos, que vivenciam os seus<br />
<strong>de</strong>sejos e conflitos, em meio ao cotidiano agitado e individualista da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo. Dario sonha ser jogador <strong>de</strong> futebol; Reginaldo quer conhecer o pai, que é<br />
motorista <strong>de</strong> ônibus; Dênis, o mais velho, é motoboy e já tem um filho; e Dinho<br />
encontra na religião a fuga para um passado cheio <strong>de</strong> problemas. À espera do quinto<br />
membro da prole está Cleuza, uma empregada doméstica que luta sozinha para criar<br />
os filhos e manter a união da família.<br />
O filme é marcado pela complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um dos seus personagens e pela sutileza<br />
com que diversos problemas sociais são trazidos à reflexão. A ausência da paternida<strong>de</strong><br />
é uma <strong>de</strong>ssas questões, já que os irmãos, além <strong>de</strong> não serem filhos do mesmo pai,<br />
também não mantêm contato com eles. Nesse contexto, não é <strong>de</strong> se estranhar que<br />
Dênis estabeleça uma relação distante com o filho pequeno, que mora com a mãe e<br />
espera pela ajuda financeira do pai para comprar remédios, e que Dario encontre no<br />
seu treinador a referência <strong>de</strong> apoio, incentivo e orientação.<br />
A maternida<strong>de</strong> também encontra lugar nessa história, pois, mesmo com todas as<br />
dificulda<strong>de</strong>s, Cleuza, uma corintiana fanática, não se <strong>de</strong>scuida dos filhos e procura, na<br />
medida do possível, acompanhar as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>les. Sabe ser dura e até agredir, mas<br />
consegue também dá um abraço carinhoso, uma palavra <strong>de</strong> incentivo. Já Dona Estela, a<br />
sua patroa, que aparentemente também não é casada, não parece se preocupar muito<br />
com o filho adolescente, que vive nas baladas com os amigos e se envolve com drogas.<br />
.<br />
De maneira sutil, os diretores vão trazendo o universo conflituoso <strong>de</strong> cada um dos<br />
irmãos, por meio <strong>de</strong> planos que <strong>de</strong>stacam as expressões faciais e movimentos<br />
corporais. Reginaldo é uma criança negra no meio <strong>de</strong> adolescentes brancos, que passa<br />
horas nos ônibus coletivos, dirigidos por motoristas negros, alimentando a expectativa<br />
<strong>de</strong> encontrar, entre eles, o seu pai. A sensação <strong>de</strong> isolamento que ele tem como<br />
membro da família se reflete nas viagens solitárias que faz pela cida<strong>de</strong>. Mas, mesmo se<br />
sentido um estranho no ninho familiar, a sua percepção infantil o aproxima dos irmãos,<br />
seja para aten<strong>de</strong>r aos seus interesses pessoais, como quando “compra” o sofá na mão<br />
<strong>de</strong> Dênis, ou para auxiliá-los, quando passa para Dario as informações sobre um treino<br />
<strong>de</strong> futebol. Treino esse que será <strong>de</strong>cisivo para a vida do irmão, que, após atingir a<br />
.<br />
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maiorida<strong>de</strong>, não tem mais como buscar aprovação nas “peneiras” dos times paulistas.<br />
Como tantos adolescentes brasileiros, Dario vê no futebol a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ascensão<br />
social e <strong>de</strong> uma carreira <strong>de</strong> sucesso. O aniversário <strong>de</strong> 18 anos, para ele, se configura,<br />
portanto, como um fim <strong>de</strong> linha, já que o tempo é cruel com os atletas.<br />
.<br />
Dinho, por sua vez, traz à tona a questão da religiosida<strong>de</strong> como forma <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong><br />
vida. Seu envolvimento com a igreja representa a fuga <strong>de</strong> um passado que trouxe tantas<br />
preocupações para a sua mãe e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um recomeço cheio <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
quem trabalha e ajuda nas <strong>de</strong>spesas da casa. Embora a fé religiosa seja tratada <strong>de</strong><br />
maneira muito respeitosa no longa-metragem, sem cinismos ou gozações, os fracassos<br />
dos lí<strong>de</strong>res religiosos são atribuídos à falta <strong>de</strong> fé dos fiéis. E essas quedas e fraquezas<br />
também fazem parte dos conflitos <strong>de</strong> Dinho, a quem vemos, em uma cena, se<br />
masturbando e, em outra, cometendo um crime violento, por ser chamado<br />
injustamente <strong>de</strong> ladrão. Injustiça fundamentada na imagem <strong>de</strong> displicência <strong>de</strong> Dênis,<br />
que, por ser ainda muito imaturo e não conseguir se <strong>de</strong>svincular <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> farras,<br />
estava sempre atrás do irmão para pedir dinheiro.<br />
.<br />
“Linha <strong>de</strong> Passe” é uma ficção que <strong>de</strong>seja ser documental. Traz a veracida<strong>de</strong> do<br />
cotidiano <strong>de</strong> tantos jovens e <strong>de</strong> tantas famílias invisíveis aos olhos da socieda<strong>de</strong><br />
paulistana. É um filme que fala do Brasil e que revela a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se reconhecer no<br />
outro e ser por ele reconhecido; que mostra a luta diária por melhores condições <strong>de</strong> vida<br />
ou por um espaço na socieda<strong>de</strong>; que fala da busca pela libertação da alma ou pelo<br />
encontro do afeto paternal.<br />
A fotografia urbana, mais escura e triste, leva a um mergulho no universo <strong>de</strong> cada um<br />
dos personagens, que, em meio à indiferença social e à escassez <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, só<br />
po<strong>de</strong>m contar uns com os outros, para enfrentar suas angústias e incertezas.<br />
Novamente, a narrativa apresenta, nesse contexto, um elemento reflexivo, quando<br />
traça um paralelo entre as mãos que se levantam no estádio, numa vibração positiva dos<br />
torcedores, com as que se erguem no templo religioso, numa <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> fé.<br />
.<br />
Sutilmente <strong>de</strong>marcada pela cena da água limpa que escorre pelo ralo da pia, antes<br />
entupido, a fase final do filme se compõe <strong>de</strong> imagens mais claras e límpidas, que<br />
<strong>de</strong>notam uma sensação <strong>de</strong> alívio e <strong>de</strong>signam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nova fase na vida<br />
da mãe e dos irmãos. Cada personagem encontra a libertação daquilo que tanto os<br />
oprime; cada um percebe, então, o brilho do sol, apontando novos caminhos.<br />
.<br />
“Linha <strong>de</strong> Passe” <strong>de</strong>ixa para o espectador o exercício <strong>de</strong> reflexão sobre essas novas<br />
possibilida<strong>de</strong>s, esses novos caminhos. Salles e Thomas reservam, assim, a grata<br />
surpresa <strong>de</strong> perceber que a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses personagens só po<strong>de</strong> ser<br />
compreendida olhando-se para além da narrativa cinematográfica.<br />
.<br />
* Macelle Khouri é mestre em Jornalismo (UFSC) e professora da Uneb.<br />
.
“E a luz há <strong>de</strong> chegar aos corações”: Linha <strong>de</strong> Passe ou<br />
Com quantos conflitos sociais se faz um filme brasileiro<br />
Izabel <strong>de</strong> Fátima Cruz Melo*<br />
Uma pia sempre entupida. Ônibus cheios. Muito trabalho. Pouco dinheiro.<br />
Uma família da periferia <strong>de</strong> São Paulo formada <strong>de</strong> uma mãe grávida <strong>de</strong> pai<br />
<strong>de</strong>sconhecido e quatro filhos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s e trajetórias variadas. Cleuza, Dinho,<br />
Dênis, Dario e Reginaldo. Empregada doméstica; frentista evangélico; um<br />
motoboy; uma jovem promessa do futebol; e uma criança negra em busca do<br />
pai. Em todos eles, po<strong>de</strong>mos enxergar “representantes” <strong>de</strong> sujeitos sociais e<br />
questões emergentes no Brasil contemporâneo, e, entre todos eles, o futebol<br />
como analogia das relações sociais.<br />
“Linha <strong>de</strong> Passe” lida com um tema habitual do cinema brasileiro, mas com<br />
uma leitura e construção que são bastante próprias da dita Retomada. Ou seja,<br />
temos um filme que fala, mais uma vez, das classes subalternas, das suas<br />
angústias e dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobrevivência, mas aqui eles são construídos com<br />
percepções, atitu<strong>de</strong>s e necessida<strong>de</strong>s muito singulares, ainda que pese sua<br />
participação numa mesma família. São cinco trajetórias diferentes, nas quais a<br />
paixão pelo futebol, em especial pelo Corinthians funcionaria como a gran<strong>de</strong><br />
liga i<strong>de</strong>ntitária.<br />
Imiscuída nesses fluxos contínuos e aparentemente <strong>de</strong>sconexos das<br />
trajetórias <strong>de</strong>ssas personagens, existe uma linha que é, simultaneamente,<br />
tênue e dura – a que divi<strong>de</strong> os “pobres” e a “classe média”. E, nessa partida,<br />
cada um sabe bem qual o seu lado, embora existam as permeabilida<strong>de</strong>s,<br />
aproximações e pequenas misturas. Esta questão se coloca, sobretudo, nas<br />
sequências do jogo em que Dinho participa no time do filho <strong>de</strong> Estela, patroa<br />
<strong>de</strong> Cleuza, e no momento da “balada”, no qual ele se torna um espectador e<br />
volta para casa sozinho e “chapado”, sendo ajudado pelos seus irmãos.<br />
O que se mostra como uma das gran<strong>de</strong>s características do filme é a urgência do<br />
movimento. Durante todo o tempo, as personagens transitam – <strong>de</strong> ônibus, a<br />
pé, <strong>de</strong> moto, correndo pelo campo <strong>de</strong> futebol ou até mesmo pela<br />
transcendência da fé. Contudo, as injunções do cotidiano agem <strong>de</strong> modo a<br />
refrear esse trânsito, assim como a água que insiste em não escoar ralo abaixo,<br />
apesar dos insistentes esforços <strong>de</strong> Cleuza, algumas vezes regados a cerveja,<br />
outras entremeados por xingamentos e reclamações.<br />
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E, na ânsia/necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar e construir novos caminhos para<br />
extrapolar a estagnação imposta, é preciso insistir e andar. Na maior parte<br />
das vezes, a caminhada é feita <strong>de</strong> percalços, <strong>de</strong> “maus” passos. Entretanto,<br />
na perspectiva trazida por Walter Salles <strong>de</strong> Daniela Thomas, os equívocos, os<br />
“jeitinhos”, também po<strong>de</strong>m ser uma trajetória para a realização, para que a<br />
água siga o seu caminho e escoe ralo abaixo, liberando o movimento. E é<br />
justamente a partir daí que a vida das personagens parecem tomar outro<br />
rumo, prenhe <strong>de</strong> esperanças representadas no nascimento do próximo bebê<br />
<strong>de</strong> Cleuza, no gol <strong>de</strong> Dario, na confirmação da fé <strong>de</strong> Dinho, no assalto mal<br />
sucedido <strong>de</strong> Dênis e, especialmente, na alegria <strong>de</strong> Reginaldo em dirigir o<br />
ônibus. A cada um, o seu caminho, mas, sobre todos eles, pesa a<br />
responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não parar jamais.<br />
* Izabel <strong>de</strong> Fátima Cruz Melo é mestre em História Social do Brasil (Ufba) e<br />
professora da Uneb.
.<br />
Costuras e tessituras:<br />
relações face a face entre realida<strong>de</strong>s e<br />
ficções no movimento <strong>de</strong> passe<br />
Adriana Camargo*<br />
Atualmente, instaura-se um conflito entre o que é reconhecido e pertence ao<br />
universo do que se pensa comum e as novas construções i<strong>de</strong>ntitárias na<br />
socieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> é cada vez mais compreensível a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
reconhecimento <strong>de</strong> novos referentes, que, por vezes, trazem, atrás <strong>de</strong> si,<br />
concepções particulares do mundo, diversas formas <strong>de</strong> interações e novas<br />
orientações <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>-se dizer que esse processo está ligado ao<br />
conceito <strong>de</strong> globalização.<br />
Com isso, a <strong>de</strong>sterritorialização das relações sociais instaura outras formas <strong>de</strong><br />
ser e estar. Hoje, as interações sociais face a face são pouco experienciadas no<br />
cotidiano, <strong>de</strong>vido principalmente à produção exacerbada <strong>de</strong> bens simbólicos,<br />
ao culto e à prática das relações midiatizadas e virtualizadas, que nos<br />
<strong>de</strong>stituem da convivência e das trocas presenciais.<br />
Na história-estória <strong>de</strong> “Linha <strong>de</strong> Passe”, <strong>de</strong> Walter Salles e Daniela Thomas, a<br />
presença e o convívio entre os personagens ganham notorieda<strong>de</strong> e trazem,<br />
com legitimida<strong>de</strong>, o confronto e os sintomas das subjetivida<strong>de</strong>s dos mesmos.<br />
No diário da rotina <strong>de</strong>ssa família, a subjetivida<strong>de</strong> do outro é expressivamente<br />
próxima, diferentemente das outras formas <strong>de</strong> interações mediadas, às quais<br />
nos habituamos no contemporâneo.<br />
“Linha <strong>de</strong> Passe” se <strong>de</strong>svela entre o visível e o legível, em movimentos<br />
alternados, calcados em fé, <strong>de</strong>sejo, coragem e vonta<strong>de</strong>, na trajetória <strong>de</strong> cada<br />
personagem apresentado. As relações enca<strong>de</strong>adas no roteiro, mesmo<br />
situadas em um universo distinto ao do espectador, refletem leituras e<br />
memórias <strong>de</strong> repertórios pessoais, e, <strong>de</strong> alguma forma, o espectador é<br />
conduzido ao reconhecimento e/ou pertencimento, no discorrer da trama.<br />
“Corinthians, corinthians minha vida, corinthians minha história, corinthians<br />
meu amor...”. Quem, como Cleuza, não torce para um time <strong>de</strong> futebol e sofre<br />
com as perdas e ganhos do mesmo e ainda se nutre a partir do <strong>de</strong>sejo do time<br />
<strong>de</strong> vencer e ganhar o título? Isso se reflete no seu próprio <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> também<br />
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vencer e continuar com o seu trabalho reconhecido e valorizado, na a<strong>de</strong>quada<br />
criação dos filhos e na esperança <strong>de</strong> uma nova vida com a criança que espera<br />
no ventre.<br />
Dario, a uma semana <strong>de</strong> fazer 18 anos: ida<strong>de</strong> tão aguardada pelos<br />
adolescentes, que, no caso <strong>de</strong>ste rapaz, reflete frustração <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo<br />
pessoal e, ao mesmo tempo, coletivo, pois o êxito como jogador profissional é<br />
a promessa <strong>de</strong> uma vida mais digna para si próprio e, como consequência, para<br />
a família. Assim como o <strong>de</strong>sejo feminino <strong>de</strong> ser uma mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sucesso e<br />
ganhar fama, em ambos os casos o tempo se instaura como maior inimigo: um<br />
gran<strong>de</strong> jogador <strong>de</strong> futebol, assim como uma mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> renome, inicia a sua<br />
carreira realmente muito jovem ou até mesmo na infância e, nesse caso, 18<br />
anos já po<strong>de</strong> ser muito tar<strong>de</strong>, fatal.<br />
“Agra<strong>de</strong>ço a Deus pelo período que passei triste, que passei perdido, que<br />
passei sozinho... Aleluia, Senhor”. Dinho, em uma busca pessoal, recorre à fé<br />
(perdida ou adquirida) e ao trabalho como aconchego e “remissão” por seus<br />
comportamentos e atitu<strong>de</strong>s mal sucedidas no passado. Ao partilhar <strong>de</strong> uma<br />
cólera social <strong>de</strong>vido ao individualismo, retraimento e dissociação das relações<br />
face a face, em <strong>de</strong>terminados momentos, como o do personagem, o indivíduo<br />
se encontra carente e necessitado da palavra, do retorno, do afago, e, nesse<br />
caso, vale lembrar aqui o quanto a igreja evangélica dispõe <strong>de</strong> um interlocutor,<br />
mesmo com fins para além da religião – ouvir, dar atenção e importância ao<br />
outro.<br />
Poucas pistas, mas muita vonta<strong>de</strong> atravessa o caminho <strong>de</strong> Reginaldo, que, nas<br />
viagens <strong>de</strong> ônibus, sai em investigação <strong>de</strong> sua paternida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: a<br />
rebeldia comum para a ida<strong>de</strong>, ora criança, ora adolescente, conflitando, ainda,<br />
com questões <strong>de</strong> raça, cor e preconceito. A figura do pai se instaura como<br />
representação e mo<strong>de</strong>lo a ser seguido. Lembramos que, a todo o momento,<br />
criamos mo<strong>de</strong>los e <strong>de</strong>sejamos segui-los, nos reconhecemos primeiramente na<br />
imagem da “família”, até instituirmos as nossas noções e escolhas<br />
particulares.<br />
Dênis é o motoboy, pai solteiro e o menos compromissado consigo mesmo e<br />
com o outros, se revela o personagem mais polêmico e, ao mesmo tempo,<br />
mais reconhecido pelo espectador, no que compete à prática da
marginalida<strong>de</strong> e da irresponsabilida<strong>de</strong> retratada diariamente pelos meios <strong>de</strong><br />
comunicação <strong>de</strong> massa e potencializada pelo mesmo. Contudo, Dênis é o<br />
personagem que transita entre os universos do visível e do sensível <strong>de</strong> forma<br />
mais viril e obstinada.<br />
É sabido que a realida<strong>de</strong> vivida por cada indivíduo é um construto<br />
compartilhado, mas que se funda mesmo na particularida<strong>de</strong> histórica: meio<br />
on<strong>de</strong> está inserido, relações e interações com o ambiente, consigo e com o<br />
outro. Nessa relação <strong>de</strong> costura e <strong>de</strong>bate, os personagens se <strong>de</strong>frontam com o<br />
seu universo particular <strong>de</strong> construção da realida<strong>de</strong>, a partir da experiência<br />
calcada na relação face a face com o outro e do outro, culminando na<br />
dimensão <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> e recriação <strong>de</strong> si próprio. Nesse movimento <strong>de</strong><br />
tessitura, entre realida<strong>de</strong>s e ficções, o espectador é convidado a participar <strong>de</strong><br />
universos paralelos, que também formam e constroem a sua trajetória<br />
pessoal, mesmo dissociada, em gran<strong>de</strong> parte, da experiência relacional no<br />
mundo hodierno.<br />
O espectador se reconhece como sujeito, que, inserido nessa construção<br />
social da realida<strong>de</strong> particular, <strong>de</strong>seja se reconhecer ou edificar uma<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, se superar, encontrar singularida<strong>de</strong> e legitimida<strong>de</strong> nas suas<br />
interações pessoais e sociais, mesmo que, para isso, tenha que travar<br />
embates, superar limitações ou lidar com as suas potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> forma<br />
positiva e coletiva. No movimento, “a bola está viajando <strong>de</strong> um personagem<br />
para o outro” (Daniela Thomas), o espectador viaja junto com os personagens,<br />
em oscilação <strong>de</strong> idas e vindas, que provocam sensações <strong>de</strong> memória e<br />
apropriação, em diálogo e citação do passado: a sua história privada refletida<br />
no espelho da linha <strong>de</strong> passe.<br />
*Adriana Camargo é especialista em Comunicação: Novas Tecnologias e<br />
Hipermídia (Centro Universitário <strong>de</strong> Belo Horizonte) e professora da <strong>Uesb</strong>.<br />
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Linha <strong>de</strong> Passe<br />
Rogério Luiz Oliveira*<br />
Começo por dar um exemplo que emana do próprio cinema: o documentário<br />
“Conte Comigo Mengão – Carioca 2007”, dirigido por Pedro Asbeg e Raphael<br />
Vieira, revela os bastidores do título carioca conquistado pelo Flamengo. O filme<br />
mostra a vibração da torcida, a preleção feita no vestiário pelo treinador da<br />
equipe, lances da partida e, acima <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> jogadores. É uma<br />
história contada por aqueles que protagonizaram aquele capítulo vitorioso da<br />
história do time. Nada chamou tanto a minha atenção no filme como uma frase<br />
dita por um jogador, imaginando o que seria fazer um gol na final, com o estádio<br />
do Maracanã lotado: “Acho que eu me jogo no fosso da geral!”<br />
Fama, riqueza, adoração, a sensação <strong>de</strong> ter o mundo diante dos próprios pés, uma<br />
multidão gritando o seu nome... São alguns dos elementos que levam, em “Linha<br />
<strong>de</strong> Passe”, o jovem Dario, que sonhava com a carreira <strong>de</strong> jogador <strong>de</strong> futebol, a<br />
passar por peneiras, a alterar a própria ida<strong>de</strong>, a se frustrar e a usar drogas numa<br />
balada com jovens ricos que conheceu por ser filho da empregada doméstica da<br />
casa <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les.<br />
Por essas e outras, “Linha <strong>de</strong> Passe” se mostra, por vezes, como uma busca pela<br />
re<strong>de</strong>nção. A história do menino que queria ser astro do futebol; o drama do jovem<br />
errante convertido ao protestantismo e que precisa ouvir os <strong>de</strong>saforos do patrão;<br />
a insatisfação <strong>de</strong> um motoboy, que, <strong>de</strong> tanto trabalhar honestamente, sente a<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experimentar o alto preço da subversão; a persistência <strong>de</strong> uma<br />
criança cuja única certeza é uma fotografia rasgada.<br />
Estes po<strong>de</strong>riam ser, respectivamente, os resumos <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> Dario, Dinho, Dênis e<br />
Reginaldo. Quatro irmãos unidos pelo fato <strong>de</strong> serem filhos <strong>de</strong> uma mesma mãe,<br />
Cleuza. Quatro homens que buscam novas perspectivas, a partir <strong>de</strong> distintos<br />
caminhos. O primeiro quer, a todo custo, passar num teste para uma equipe<br />
profissional <strong>de</strong> futebol; o segundo busca esquecer, com a prática religiosa, o<br />
passado; o outro quer encontrar um modo <strong>de</strong> ganhar uma grana fácil, usando a<br />
moto como ferramenta; o último quer encontrar o pai, que nunca viu nem por<br />
foto, entrando em todos os ônibus coletivos, apenas sabendo que ele é negro.<br />
Não é a primeira vez que Walter Salles retrata a saga <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> uma mesma<br />
família. “Abril Despedaçado”, dirigido em 2002, é prova disso. Uma família que<br />
vive no sertão baiano, por volta <strong>de</strong> 1910, abriga três irmãos. São três trajetórias e
três finais bem diferentes. Numa guerra entre famílias, morre Inácio, o mais velho.<br />
Era costume se vingar a morte <strong>de</strong> um ente querido. Tonho, o irmão do meio, é<br />
escolhido para matar um membro da família inimiga e, tendo sucesso em sua<br />
empreitada, passa a ser o alvo da vingança. Como se verá em “Abril Despedaçado”,<br />
Tonho é salvo da morte pelo amor ou, em últimas consequências, pela arte. É que<br />
certo dia, Menino, o caçula, é abordado, no terreiro <strong>de</strong> casa, por um casal <strong>de</strong> um<br />
circo mambembe. A moça, Clara, presenteia Menino com um livro, que traz<br />
histórias <strong>de</strong> sereia, que são, no mínimo, uma janela para o mundo da imaginação<br />
do garoto. Acompanhado <strong>de</strong> Tonho, o caçula vai assistir à estreia do circo, e Tonho<br />
se apaixona por Clara. O <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong>ssa história é que Menino, por sensibilizar-se<br />
diante daquele sentimento que nasce entre o irmão e Clara, morrerá,<br />
propositalmente, no lugar <strong>de</strong> Tonho.<br />
Um pequeno evento na rotina dos dois irmãos mudou, <strong>de</strong>cisivamente, a história da<br />
família. Talvez o que tenha faltado a Cleuza, a mãe dos filhos paulistanos, cuja<br />
rotina incluía o trabalho intenso ou a ida, religiosa e <strong>de</strong>vota, ao estádio para ver o<br />
Corinthians jogar. Ausentaram-se, quem sabe, opções mínimas para seus filhos,<br />
impossibilitados <strong>de</strong> ver o mundo, por conta <strong>de</strong> anseios repetitivos e inalcançáveis,<br />
pelo menos do modo como eram perseguidos.<br />
Faltou a Dario, por exemplo, a <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ria não dar certo ser<br />
jogador <strong>de</strong> futebol e que seria necessário pensar outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
sobrevivência; Dinho não percebeu que a recuperação da dignida<strong>de</strong> requer<br />
insistência e que os preceitos religiosos <strong>de</strong>vem ser acompanhados <strong>de</strong> muitos<br />
outros valores; <strong>de</strong>veria Denis enten<strong>de</strong>r que, para se diferenciar em meio a tantos<br />
motoboys idênticos, no modo <strong>de</strong> ver a vida, era preciso um esforço bem maior do<br />
que criar coragem para empunhar uma arma; ao caçula Reginaldo, não foi possível<br />
o direito <strong>de</strong> ter uma referência paterna <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, um problema sentido na<br />
pele por milhares e milhares <strong>de</strong> filhos.<br />
Entre o que é oferecido e o que é <strong>de</strong>sejado pelos personagens e por milhões <strong>de</strong><br />
jovens brasileiros, tem-se que, na ausência <strong>de</strong> ambientes on<strong>de</strong> a dignida<strong>de</strong>, a<br />
educação, a sensibilida<strong>de</strong>, o amor, o respeito ou a sensatez possam florescer, age o<br />
acaso, brutal e cruelmente.<br />
* Rogério Luiz Oliveira é graduado em Comunicação Social – Jornalismo (<strong>Uesb</strong>) e<br />
professor da <strong>Uesb</strong>.<br />
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A Onda<br />
Filme: “A Onda”<br />
Direção: Dennis Gan<br />
Duração/Ano/País: 106 min./ 2008/ Alemanha<br />
Sinopse: Rainer Wegner, professor <strong>de</strong> ensino médio, <strong>de</strong>ve ensinar seus alunos<br />
sobre autocracia. Devido ao <strong>de</strong>sinteresse <strong>de</strong>les, propõe um experimento que<br />
explique na prática os mecanismos do fascismo e do po<strong>de</strong>r. Wegner se<br />
<strong>de</strong>nomina o lí<strong>de</strong>r daquele grupo, escolhe o lema "força pela disciplina" e dá ao<br />
movimento o nome <strong>de</strong> A Onda. Em pouco tempo, os alunos começam a<br />
propagar o po<strong>de</strong>r da unida<strong>de</strong> e ameaçar os outros. Quando o jogo fica sério,<br />
Wegner <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> interrompê-lo. Mas é tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, e A Onda já saiu <strong>de</strong> seu<br />
controle. Baseado em uma história real, ocorrida na Califórnia, em 1967.<br />
Prêmios: O filme ganhou o prêmio <strong>de</strong> Melhor Ator Coadjuvante para Fre<strong>de</strong>rick<br />
Lau, no German Film Awards, assim como, na mesma premiação, o produtor<br />
Christian Becker levou o bronze na categoria <strong>de</strong> Melhor Filme. Venceu o 13º<br />
Festival <strong>de</strong> Cinema Judaico <strong>de</strong> São Paulo e ainda foi indicado no Festival <strong>de</strong><br />
S u n d a n c e , n a c a t e g o r i a “ W o r l d C i n e m a – D r a m a t i c ”.<br />
Elenco: Max Riemelt (Marco), Dennis Gansel (Martin), Jürgen Vogel (Rainer<br />
Wenger), Fre<strong>de</strong>rick Lau (Tim Stoltefuss), Jennifer Ulrich (Karo), Christiane Paul<br />
(Anke Wenger), Jacob Matschenz (Dennis).<br />
.
A Onda<br />
Laura Bezerra*<br />
Alemanha, tempo atual. Uma escola <strong>de</strong> ensino médio como tantas outras: professores<br />
cansados, professores engajados; alunos interessados, alunos <strong>de</strong>smotivados;<br />
grupinhos fechados; estórias <strong>de</strong> amor; conflitos e tensões; esperanças; grafitti e hiphop.<br />
Apesar da distância geográfica, tudo nos parece conhecido.<br />
O professor Rainer Wegner, numa semana <strong>de</strong> projetos, <strong>de</strong>ve ensinar seus alunos sobre a<br />
autocracia(1). Aqui, já temos a primeira contradição, das muitas que enriquecem o<br />
filme: Wegner é um professor “diferente” e representa o que há <strong>de</strong> mais rebel<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<br />
daquela escola. Na verda<strong>de</strong>, o tema escolhido por ele para a semana foi a anarquia, mas<br />
um outro professor, mais velho e conservador, se apropria <strong>de</strong>ste tema – muito a<br />
contragosto <strong>de</strong> Wegner. Com um tema que não escolheu, nem lhe agrada, e uma turma<br />
<strong>de</strong> alunos <strong>de</strong>sinteressados, o professor é confrontado com um <strong>de</strong>safio: explicar à classe<br />
como funcionam os governos totalitários. Ele começa com o que está mais próximo: a<br />
ditadura <strong>de</strong> Hitler seria imaginável hoje? Ao ouvir dos alunos que o nazismo não seria<br />
possível na Alemanha dos dias atuais, ele propõe um experimento: durante uma<br />
semana, os alunos têm que participar <strong>de</strong> um grupo, cujo lema é a “força pela disciplina”.<br />
E assim, meio que por acaso, surge o movimento A Onda. Diversos rituais são criados<br />
para dar unida<strong>de</strong> ao grupo, normas <strong>de</strong> conduta são <strong>de</strong>finidas, obediência torna-se uma<br />
palavra fundamental. Alguns (poucos) alunos reagem, questionam a atmosfera<br />
<strong>de</strong>spótica que se formou e se afastam. Outros, apesar <strong>de</strong> sentirem algum <strong>de</strong>sconforto,<br />
permanecem no grupo – seja por causa dos amigos, seja para não ter o trabalho <strong>de</strong><br />
trocar <strong>de</strong> turma. Em muito pouco tempo, porém, o “po<strong>de</strong>r da unida<strong>de</strong>” conquista a<br />
maioria dos alunos, que passa a agir <strong>de</strong> acordo com o espírito coletivo. O grupo torna-se<br />
um bem maior, que <strong>de</strong>ve ser propagado e <strong>de</strong>fendido; quem não é d'A Onda, é contra<br />
ela. Não há mais espaço para discordância. A Onda se transforma em um movimento<br />
real, que sai dos muros da escola e alcança toda a cida<strong>de</strong>. Ao percebê-lo, Wegner <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />
interromper o jogo, mas A Onda já saiu <strong>de</strong> seu controle – com consequências trágicas.<br />
Seguramente, o filme <strong>de</strong>ve ser pensado no contexto alemão do Nacional-Socialismo e<br />
do Holocausto. Mas, na medida em que problematiza o surgimento do totalitarismo, na<br />
medida em que mostra os mecanismos que tornam possível a manipulação <strong>de</strong> grupos,<br />
ele supera a carga histórica do nazi-fascismo e passa a dizer respeito a todos nós. Dennis<br />
Gansel, o diretor do filme, disse, numa entrevista, que preten<strong>de</strong>u enten<strong>de</strong>r os<br />
mecanismos que possibilitaram o nazismo, sem, entretanto, transformar os fascistas<br />
em antagonistas. Este é um ponto <strong>de</strong> partida muito produtivo, pois nos confronta com o<br />
<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r uma situação tão perversa quanto complexa. É fácil pensar nos<br />
nazistas como “monstros”; um monstro é algo distante, não tem nada a ver comigo<br />
1<br />
Segundo o Dicionário Michaelis Online, autocracia é: “1 Governo exercido por um só, com po<strong>de</strong>res<br />
absolutos e ilimitados. 2 Sociol Dominação política discricionária, exercida por uma pessoa ou um<br />
pequeno grupo <strong>de</strong> pessoas; po<strong>de</strong> assumir as formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>spotismo, tirania, ditadura e oligarquia,<br />
autarquia.”<br />
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(monstros são sempre os outros, não é verda<strong>de</strong>?). Pensar nos nazistas como<br />
“monstros” é se ren<strong>de</strong>r ao incompreensível – e é exatamente isso que o filme não faz.<br />
“A Onda” torna compreensível que um indivíduo abra mão <strong>de</strong> sua autonomia em troca<br />
do sentimento <strong>de</strong> pertencimento a um grupo; mostra a fascinação pelo “po<strong>de</strong>r da<br />
unida<strong>de</strong>”, pela sua força. Este não é apresentado como um processo simples e linear,<br />
mas como algo cheio <strong>de</strong> contradições. Se, por um lado, vemos como a massificação, a<br />
irracionalida<strong>de</strong>, o fanatismo e a intolerância vão entrando nas vidas dos jovens, vemos<br />
também que eles estão motivados como nunca e passam a trabalhar conjuntamente<br />
(até o aluno turco, antes excluído, torna-se um membro efetivo do grupo); como<br />
alguns <strong>de</strong>les se sentem valorizados pela primeira vez na vida; como os “<strong>de</strong>slocados” e<br />
os “perdidos” parecem encontrar um lugar no mundo. O filme tem a coragem <strong>de</strong><br />
mostrar que, para aquela turma, há, também, ganhos. Enten<strong>de</strong>r este processo nos<br />
possibilita olhar nos olhos do totalitarismo e abrir o <strong>de</strong>bate. Nosso po<strong>de</strong>r contra o<br />
<strong>de</strong>spotismo é exatamente a discussão e o embate; a melhor forma <strong>de</strong> combater o<br />
fascismo é reafirmar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o direito <strong>de</strong> ser diferente.<br />
O gran<strong>de</strong> mérito do filme <strong>de</strong> Dennis Gansel é nos mostrar que a manipulação <strong>de</strong><br />
grupos não acaba com o fim dos governos totalitários, nem foi superado nos dias<br />
atuais. É trazer a problemática para bem perto <strong>de</strong> nós. Neste sentido, é uma ótima<br />
i<strong>de</strong>ia que o experimento seja proposto por um professor libertário e rebel<strong>de</strong>; é<br />
excelente que aquele professor crítico e anarquista caia, ele próprio, nas malhas do<br />
autoritarismo; que ele se empolgue com a nova dinâmica da classe, com a<br />
participação ativa <strong>de</strong> alunos que antes não se interessavam por nada. Se as i<strong>de</strong>ias<br />
totalitárias po<strong>de</strong>m funcionar com ele, elas po<strong>de</strong>m funcionar com qualquer pessoa. É<br />
verda<strong>de</strong>. “A Onda”, inclusive, se baseia em fatos reais; o experimento foi realizado em<br />
1967, numa escola <strong>de</strong> Palo Alto (Califórnia, Estados Unidos).<br />
A teórica política judia-alemã, Hannah Arendt(2), refere-se à “banalida<strong>de</strong> do mal”:<br />
foram pessoas “comuns”, como você e eu, que executaram o Holocausto. Se<br />
pensarmos adiante esta i<strong>de</strong>ia, po<strong>de</strong>mos dizer que foram pessoas “comuns” as<br />
responsáveis pelo genocídio <strong>de</strong> Ruanda ou o massacre <strong>de</strong> Sarajevo, ambos<br />
acontecidos em 1994. Foram pessoas comuns, jovens da classe média <strong>de</strong> Brasília, que,<br />
em 1997, tocaram fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. Com isso, a<br />
autocracia (o fascismo, o racismo, o machismo, a homofobia, a discriminação dos<br />
pobres, a exclusão dos gordos, dos feios, dos “outros”, dos “diferentes”) fica bem<br />
próxima a nós. É algo que po<strong>de</strong>ria acontecer com você, comigo – o que significa<br />
também que é algo que po<strong>de</strong>mos superar. A responsabilida<strong>de</strong> é toda nossa.<br />
* L a u ra B e ze r ra é m e s t r e e m L i t e ra t u ra e C i ê n c i a d a M í d i a<br />
(Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tréveris, Alemanha) e pesquisadora da área <strong>de</strong> cinema.<br />
2<br />
No seu livro “Eichmann em Jerusalém. Um Relato sobre a Banalida<strong>de</strong> do Mal”. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2009. O original foi publicado em Londres, em 1963.
FIOS DE MEMÓRIAS E DE SENTIDOS EM “A ONDA”<br />
Veruska Anacirema*<br />
É como um fantasma que o nazismo apresenta-se, no século XXI, para muitos<br />
indivíduos e grupos situados no marco da socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal. Passados 65 anos<br />
do fim do regime alemão que instaurou tal barbárie, relatos, imagens, objetos e,<br />
sobretudo, lembranças/esquecimentos, estão ainda a nos informar sobre a<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>strutiva do homem sobre o próprio homem. A memória <strong>de</strong> tal<br />
experiência persiste, incomodando e incomodada, a trazer à tona os limites do<br />
processo civilizatório mo<strong>de</strong>rno que, se, <strong>de</strong> um lado, é capaz <strong>de</strong> produzir avanços<br />
nas mais diversas áreas, do outro, não consegue eliminar a dor, o sofrimento e o<br />
irracionalismo do percurso da humanida<strong>de</strong>.<br />
O cinema é um dos domínios socioculturais por meio dos quais essa memória se<br />
expressa e faz pensar. Ao atualizar os temas do po<strong>de</strong>r, da disciplina e da<br />
superiorida<strong>de</strong>, tão característicos do nazismo, na vivência <strong>de</strong> uma classe <strong>de</strong> jovens<br />
estudantes, “A Onda” apresenta aos espectadores uma espécie <strong>de</strong> metáfora do<br />
nazi-fascismo e <strong>de</strong> outros regimes totalitários. Baseado em um fato real, ocorrido<br />
em uma escola secundária norte-americana do estado da Califórnia, em 1967, o<br />
filme favorece uma discussão sobre o emprego e a aceitação da violência como<br />
ferramentas legítimas <strong>de</strong> luta e significação social tanto em pequenas quanto em<br />
gran<strong>de</strong>s escalas.<br />
“A Onda” conta a história <strong>de</strong> um professor, que, para mostrar aos seus alunos o real<br />
significado da ascensão e do genocídio nazistas, na Alemanha, realiza uma<br />
arriscada experiência pedagógica, que consiste em reproduzir, na sala <strong>de</strong> aula,<br />
alguns elementos do regime: rituais, doutrinamento, estímulo à pertença <strong>de</strong><br />
grupo, adoração a um lí<strong>de</strong>r, entre outros. A classe se torna, então, um tipo <strong>de</strong><br />
microcosmos <strong>de</strong> experiência autoritária, revelando o potencial inscrito em<br />
<strong>de</strong>terminadas formações sociais para práticas <strong>de</strong> intolerância e para o uso da força.<br />
O <strong>de</strong>scontrole é tanto maior quanto mais se apela a sentimentos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scontentamento, insegurança, ressentimento, numa espiral <strong>de</strong> caráter<br />
sócioafetivo, com consequências funestas.<br />
No filme, que tem uma narrativa linear, a experiência ganha contornos trágicos,<br />
levando o professor a pensar sobre as implicações do movimento d'A Onda. O<br />
espectador também é instigado a pensar sobre o tema para além do filme,<br />
tocando, então, a “realida<strong>de</strong>”. Entre as tantas vias possíveis <strong>de</strong> abordagem da obra,<br />
está a da existência <strong>de</strong> uma memória dos terrores <strong>de</strong> regimes totalitários, expressa<br />
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na permanência <strong>de</strong> temores diante da sempre presente possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retorno<br />
<strong>de</strong>ssas experiências não apenas nos constructos mais amplos que são as Nações,<br />
mas também no cotidiano <strong>de</strong> grupos e estratos sociais. “A Onda”, então, torna-se,<br />
a partir <strong>de</strong>sse viés <strong>de</strong> análise, um alerta para os fenômenos <strong>de</strong> fanatismo e <strong>de</strong><br />
intolerância do ser humano e para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> formação<br />
continuada <strong>de</strong> sujeitos críticos, perpassada por valores humanistas, como<br />
respeito, solidarieda<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong>, rumo à construção <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s mais<br />
harmoniosas.<br />
Há também outro ponto possível <strong>de</strong> discussão a partir da história contada em “A<br />
Onda”: a do vazio e a da busca <strong>de</strong> sentido que marcam a socieda<strong>de</strong><br />
contemporânea. Os jovens da escola representada no filme parecem perdidos,<br />
<strong>de</strong>smotivados, sem metas sólidas ou importantes para suas vidas. O movimento<br />
aparece, então, como um elemento integrador das vivências, ocupando o tempo<br />
e os pensamentos, dando sentido à vida, ainda que eles não perguntem sobre<br />
que sentido é esse. Se levarmos essa questão para nossa realida<strong>de</strong>, algo que<br />
quase sempre é favorecido pelo cinema – pelos menos pelos bons filmes –, não é<br />
difícil percebermos que os nossos “jovens reais” e, também, muitos adultos,<br />
experimentam esse vazio socioexistencial; buracos imensos, seja na dimensão do<br />
“eu” ou nas relações tecidas com outras pessoas e grupos. Um vazio que nem a<br />
parafernália tecnológica, nem os itens <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m disponíveis para o<br />
consumo, nem os avanços médicos e terapêuticos são capazes <strong>de</strong> preencher.<br />
Infelizmente, muitas pessoas buscam no exercício da opressão e da violência<br />
sobre o outro os significados <strong>de</strong> vida.<br />
O cinema, esta mo<strong>de</strong>rna modalida<strong>de</strong> artística e intelectual, oferece boas<br />
oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reflexão sobre diversas situações/questões, pois, como forma<br />
<strong>de</strong> expressão humana, são os temas da vida social que dão substância às<br />
narrativas cinematográficas. Nesses termos, “A Onda”, mesmo sem efeitos ou<br />
recursos estilísticos especiais, nos apresenta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discutir sobre<br />
<strong>de</strong>terminadas características da socieda<strong>de</strong> contemporânea; sobre essa tão<br />
propalada falta <strong>de</strong> sentido; sobre o que nos motiva para a vida; sobre a<br />
necessida<strong>de</strong> inesgotável <strong>de</strong> praticarmos nosso senso <strong>de</strong> justiça, respeito e<br />
tolerância para com o próximo. Às vezes, diante <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong> impotência<br />
com relação a tantos atos e acontecimentos violentos ou <strong>de</strong>srespeitosos que<br />
acontecem nos mais diversos espaços sociais, discutir, refletir e dialogar são,<br />
muitas vezes, o caminho para que as pessoas possam repensar posturas e tentar<br />
maneiras mais felizes <strong>de</strong> viver a vida.<br />
* Veruska Anacirema é mestre em Memória: Linguagem e Socieda<strong>de</strong> (<strong>Uesb</strong>) e<br />
professora da Re<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Vitória da Conquista.
O que há por trás da imagem? Analogias em “A Onda”<br />
Tatiana Fantinatti*<br />
Ao menos quatro realida<strong>de</strong>s são convocadas quando se revisita o filme “A<br />
Onda” (“Die Welle”), <strong>de</strong> Dennis Gansel, ambientado na Alemanha atual: a<br />
primeira é o fato propulsor, o nazismo em si; as outras três, consequências da<br />
primeira, suce<strong>de</strong>ram-se uma <strong>de</strong>corrente da outra: a história acontecida numa<br />
escola da Califórnia, em 1967, com o professor Ron Jones e seus alunos; o filme<br />
“The Wave”, <strong>de</strong> Alex Grasshoff, rodado e ambientado nos Estados Unidos, em<br />
1981 (com base no referido episódio); e o livro <strong>de</strong> Morton Ruhe, “The Wave”,<br />
que também conta a história <strong>de</strong>ssa escola. Nas três experiências<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas pela primeira – o nazismo –, a principal questão é: haveria a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um regime autocrático tornar a se instaurar na Alemanha – e,<br />
por extensão, no mundo?<br />
Nos primeiros momentos do filme, a resposta é positiva. Respondamos com<br />
analogias subjacentes na obra <strong>de</strong> Gansel. No colégio, o professor foi<br />
ironicamente obrigado, compelido, a mudar o tema que ministraria:<br />
autocracia. Por trás <strong>de</strong>sta imagem, repousa, latente, o po<strong>de</strong>r que oprime sem<br />
possibilitar o diálogo, a troca, a <strong>de</strong>fesa, o posicionamento.<br />
Nos Jogos Olímpicos <strong>de</strong> 1936, em Berlim, o führer Adolf Hitler, lí<strong>de</strong>r do<br />
nazismo, tinha a certeza <strong>de</strong> que a raça ariana ganharia a maior parte das<br />
medalhas no Atletismo, tido como o principal esporte. O jogo <strong>de</strong> Pólo Aquático<br />
mostra os membros do movimento A Onda – time e torcida – entusiasmados<br />
com a segurança da superiorida<strong>de</strong> e da conseguinte vitória. Nem os arianos <strong>de</strong><br />
1936 ganharam o primeiro lugar nas medalhas <strong>de</strong> Atletismo, nem o<br />
movimento A Onda logrou bom êxito no jogo. Há uma diferenciação que<br />
precisamos, no entanto, marcar: não se dá, no filme, uma repulsa a qualquer<br />
raça ou condição social, pois a repulsa ocorre com relação àqueles que não<br />
aceitaram o movimento.<br />
Mais uma analogia, guardadas as <strong>de</strong>ssemelhanças: o professor teria vergonha<br />
<strong>de</strong> seus estudos numa faculda<strong>de</strong> pública, o que é posto em questão quando a<br />
esposa o alerta da sensação <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> que a experiência lhe<br />
proporciona. Adolf Hitler se constrangia <strong>de</strong> sua vida humil<strong>de</strong> – distorcida no<br />
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livro Mine kampf – e inclusive provinha <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us. O vislumbre<br />
da ascensão po<strong>de</strong> sequestrar os sentidos, <strong>de</strong>ixando-os reféns da utopia.<br />
Por sua vez, todos os alunos enfraquecidos <strong>de</strong> algum modo – <strong>de</strong>scaso da<br />
família, rechaço dos colegas – vêem que o pertencimento ao grupo os<br />
fortalece, conferindo-lhes aparente igualda<strong>de</strong>. Dentre os mesmos, estão Tim<br />
– o alijado que levava droga a um grupo <strong>de</strong> colegas para conseguir aceitação –<br />
e o menino turco. Seguiam-se, <strong>de</strong>ssa forma, as condições essenciais para o<br />
nascimento e fortalecimento do nazismo, como insatisfações várias:<br />
<strong>de</strong>semprego, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sinformação.<br />
Então, ainda é possível controlar as subjetivida<strong>de</strong>s e lograr o controle das<br />
massas? O <strong>de</strong>senrolar da experiência respon<strong>de</strong>u aos questionamentos<br />
iniciais do professor e dos alunos, os quais constataram que um retorno à<br />
autocracia não só era possível como acabara <strong>de</strong> acontecer com eles, não<br />
obstante alguns alertas dos que estavam <strong>de</strong> fora, que já viam O Ovo da<br />
Serpente, como a esposa do professor ou Karo e a família. Compreen<strong>de</strong>u-se<br />
também como uma gran<strong>de</strong> massa <strong>de</strong> incautos irreflexivos e manipulados <strong>de</strong>u<br />
força ao 3º Reich. A obra cinematográfica respon<strong>de</strong>u, igualmente, aos<br />
objetivos que parecia buscar junto ao público, alertando-o contra prováveis<br />
recidivas autocráticas. Ron Jones, professor real do experimento, reconheceu<br />
seus alunos daquele tempo no filme, cuja mensagem é clara: pequenas<br />
células totalitárias po<strong>de</strong>m exsurgir em instituições <strong>de</strong> ensino, grupos<br />
diversos, empresas, famílias, posto que a insondável psiquê talvez<br />
surpreenda, mesmo em nossos dias.<br />
* Tatiana Fantinatti é doutora em Letras Neolatinas (UFRJ).
Pro Dia Nascer Feliz<br />
Filme: Pro Dia Nascer Feliz<br />
Direção: João Jardim<br />
Duração/Ano/País: 88 min./2007/ Brasil<br />
Sinopse: Definido pelo próprio diretor como "um diário <strong>de</strong> observação da vida<br />
do adolescente no Brasil em seis escolas", Pro Dia Nascer Feliz flagra o dia-a-dia<br />
e a<strong>de</strong>ntra a subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alunos e professores <strong>de</strong> Pernambuco, São Paulo e<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro. As entrevistas são intercaladas com seqüências <strong>de</strong> observação<br />
do ambiente das escolas – meio, por sinal, bem pouco freqüentado pelo<br />
documentário. Sem exercer interferência direta, a câmera flagra salas <strong>de</strong> aula,<br />
esquadrinha corredores, pátios e banheiros, testemunha uma reunião <strong>de</strong><br />
conselho <strong>de</strong> classe (on<strong>de</strong> os professores <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m o <strong>de</strong>stino curricular dos<br />
alunos "difíceis") e momentos <strong>de</strong> relativa intimida<strong>de</strong> pessoal.<br />
Premiações: “Pro Dia Nascer Feliz“ foi eleito, pelo júri popular do Festival <strong>de</strong><br />
Gramado/2006, como o Melhor Filme. O mesmo festival conce<strong>de</strong>u ao longa o<br />
prêmio <strong>de</strong> Melhor Trilha Sonora e o prêmio Especial do Júri. O título também<br />
conquistou o prêmio <strong>de</strong> Melhor Fotografia <strong>de</strong> Documentário, pela Associação<br />
Brasileira <strong>de</strong> Cinematografia, e o prêmio Especial do Júri, na décima edição do<br />
Cine <strong>de</strong> Pernambuco.<br />
.<br />
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Pro Dia Nascer Feliz<br />
(ou Pro Mundo Inteiro Acordar?)<br />
Ana Lúcia Azevedo Ramos* e Inês A. Castro Teixeira**<br />
Inspirando-se em verso <strong>de</strong> Cazuza e originado nas inquietações <strong>de</strong> um jovem<br />
e talentoso diretor do cinema brasileiro contemporâneo, o documentário<br />
“Pro Dia Nascer Feliz”, <strong>de</strong> João Jardim, nos move e nos comove. Lançado em<br />
2007, após longa e cuidadosa pesquisa por ele realizada, mediante a<br />
montagem <strong>de</strong> imagens e <strong>de</strong>poimentos contun<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> garotos e garotas <strong>de</strong><br />
nossas escolas e <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong> suas professoras, essa obra fílmica expõe um<br />
conjunto <strong>de</strong> problemas relativos à juventu<strong>de</strong> e à escola no Brasil. Confirma<br />
também, na tela, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as questões da educação se associam aos<br />
processos sócio-históricos, às estruturas e dinâmicas sociais do país, <strong>de</strong> que<br />
não po<strong>de</strong>m ser separadas para as compreen<strong>de</strong>rmos.<br />
No documentário, estão, portanto, colocados <strong>de</strong> forma respeitosa, terna e<br />
cuidadosa, problemas que dizem respeito à socieda<strong>de</strong> brasileira em seu<br />
conjunto e não apenas à educação e à escola ou aos jovens, como também<br />
não são problemas pertinentes somente aos educadores e famílias. No<br />
documentário, estão questões que dizem respeito a todos nós, sobretudo os<br />
adultos, às gerações mais velhas e aos que <strong>de</strong>têm o po<strong>de</strong>r econômico e<br />
político. Na tela, estão questões que nos atingem e nos interpelam, sobre as<br />
quais precisamos pensar e discutir, sobre as quais é necessário “o mundo<br />
inteiro acordar”, outra expressão da canção <strong>de</strong> Cazuza, a<strong>de</strong>quada para<br />
intitular o documentário.<br />
Nas sequências e planos do roteiro do documentário, a obra fílmica expõe,<br />
em imagens e palavras, as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais que constituem a socieda<strong>de</strong><br />
brasileira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a colonização, e suas consequências em nosso sistema<br />
educacional e escolas. Ao trazer à tela situações relativas às famílias, ao<br />
trabalho e à vida cotidiana <strong>de</strong> alguns daqueles jovens alunos e grupos juvenis,<br />
o documentário coloca em pauta <strong>de</strong>safios e dificulda<strong>de</strong>s que eles enfrentam<br />
em seu dia-a-dia.<br />
Embora estejam localizados em classes sociais e tenham pertencimentos<br />
étnico-raciais diferentes, os jovens e suas angústias estão presentes tanto nas<br />
escolas públicas quanto nas particulares, como, por exemplo, seus
sofrimentos originados na ausência dos pais (do pai, em especial) e a questão<br />
das perspectivas e projetos <strong>de</strong> futuro, ao lado das dificulda<strong>de</strong>s materiais ou<br />
não-materiais presentes.<br />
A <strong>de</strong>satenção do po<strong>de</strong>r público para com a precarieda<strong>de</strong> material das escolas<br />
públicas no interior do país; professores <strong>de</strong>sestimulados e <strong>de</strong>sestimulantes; a<br />
ausência <strong>de</strong> respeito entre colegas, docentes e discentes, professores e<br />
alunos; as aulas muitas vezes entediantes para os garotos e garotas; a falta <strong>de</strong><br />
perspectiva <strong>de</strong> futuro estão lá, nas histórias pessoais contadas pelos<br />
educadores e educandos <strong>de</strong> diversas classes sociais, <strong>de</strong> diferentes regiões e<br />
lugares do Brasil trazidos à tela.<br />
Destaca-se também, entre outras tomadas e elementos da linguagem fílmica<br />
do documentário, as imagens <strong>de</strong> estradas. Esses caminhos a que somos<br />
levados pela câmera os percorremos pensativos, seja porque nos indagamos<br />
sobre o que virá adiante, seja porque nos perguntamos sobre os caminhos da<br />
vida presente e futura daqueles jovens: quais serão seus percursos, para on<strong>de</strong><br />
irão e para o que estão sendo conduzidos? O que os espera e o que estamos<br />
construindo com eles, os adultos, quando não os <strong>de</strong>ixamos à <strong>de</strong>riva? Como<br />
seus caminhos e estradas estão sendo pavimentados?<br />
Visto <strong>de</strong> um modo geral, po<strong>de</strong>-se dizer que “Pro Dia Nascer Feliz” traça um real,<br />
<strong>de</strong>nso e tenso quadro do que hoje se passa com inúmeros jovens nas escolas<br />
brasileiras e em sua vida do dia-a-dia. É também uma <strong>de</strong>scrição dos alentos e<br />
<strong>de</strong>salentos, das oportunida<strong>de</strong>s e impossibilida<strong>de</strong>s que afetam e inquietam,<br />
que interpelam e constrangem milhares <strong>de</strong> jovens brasileiros, parte dos quais<br />
são levados à transgressão e ao crime, sobretudo alguns garotos das classes<br />
populares, que estudam em nossas escolas públicas do Ensino Fundamental II<br />
e Médio. Para eles, não faltam as dificulda<strong>de</strong>s, os <strong>de</strong>safios e os problemas a<br />
enfrentar, que por vezes lhes rouba a calma, a paz, os direitos, a sua própria<br />
juventu<strong>de</strong>.<br />
Costurando os fios das imagens, sequências, cenas, <strong>de</strong>poimentos e diálogos do<br />
filme, vemos uma clara perspectiva temporal, apreensível pela forma como<br />
João Jardim inicia e termina seu documentário. Nos primeiros segundos do<br />
filme, vemos fragmentos <strong>de</strong> reportagem <strong>de</strong> um tempo pretérito – imagens e<br />
cenas dos anos 1960, em que se vê, em branco e preto, dois jovens tentando<br />
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abrir um carro para roubá-lo e algumas estatísticas relativas à escolarização<br />
no Brasil. Essa cena, as perguntas e comentários que as <strong>de</strong>scortinam<br />
compõem o pano <strong>de</strong> fundo mediante o qual o documentário se <strong>de</strong>senrola. Em<br />
sentido oposto, agora em imagens coloridas dos dias atuais, o diretor vai até a<br />
infância, filma o interior <strong>de</strong> uma creche, sugerindo reflexões sobre o presente<br />
e o futuro daquelas crianças.<br />
Depois <strong>de</strong> fixar a câmera em rostos <strong>de</strong> jovens apresentados em close na tela,<br />
aparece, na finalização do trabalho, imagens <strong>de</strong> crianças pobres recebendo<br />
em uma creche seu pratinho <strong>de</strong> sopa para se alimentarem. Num silêncio<br />
comovente e impactante, aqueles frágeis seres infantes parecem nos<br />
interrogar não apenas sobre seu presente, mas sobre seu futuro <strong>de</strong> jovens e<br />
<strong>de</strong> adultos. Qual seja, quando muitos espectadores imaginam que o<br />
documentário terminou, João Jardim nos surpreen<strong>de</strong>, nos impacta, nos<br />
comove com estas cenas <strong>de</strong> crianças na creche. Aqui, ele se afasta dos jovens<br />
nas escolas para focar um outro tempo e questões: da infância.<br />
As crianças nos olham, nos interrogam. Seu silêncio comovente grita,<br />
retunda, nos afeta e incomoda. Seus olhares e gestos nos convocam,<br />
ternamente, a pensarmos nelas, crianças <strong>de</strong> hoje e jovens <strong>de</strong> amanhã, <strong>de</strong>las<br />
nos compa<strong>de</strong>cendo e pensando em seus caminhos. Como serão suas<br />
estradas? Terão as mesmas, tantas e todas as dores e dificulda<strong>de</strong>s dos jovens<br />
pobres que acabamos <strong>de</strong> ver e ouvir na tela? Que futuro juvenil e adulto lhes<br />
espera? Como serão suas vidas?<br />
Com este término totalmente imprevisível para o espectador, João Jardim<br />
fecha o círculo do tempo, perguntando se os jovens <strong>de</strong> hoje e <strong>de</strong> amanhã<br />
continuarão apartados <strong>de</strong> seus direitos a uma vida digna e feliz, como aqueles<br />
das imagens em preto e branco, dos anos 1960, que abriram o documentário?<br />
Ontem, hoje e amanhã, os brasileiros mais pobres prosseguirão pelas<br />
estradas com as mesmas dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sempre, ou seria possível construir<br />
com eles um outro dia, um outro tempo, pro dia nascer feliz?<br />
* Ana Lúcia Azevedo Ramos é mestre em Educação (UFMG) e professora da<br />
Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Belo Horizonte.<br />
** Inês A. Castro Teixeira é doutora em Educação (UFMG) e professora da<br />
UFMG.
Pro Dia Nascer Feliz<br />
Sara Martin*<br />
Sob a direção <strong>de</strong> João Jardim, “Pro Dia Nascer Feliz” informa, provoca e emociona.<br />
Se alguns conseguem resumi-lo como um documentário sobre a situação <strong>de</strong><br />
escolas no Brasil, outros acreditam que essa <strong>de</strong>finição seja extremamente pobre<br />
para uma obra que, olhada mais <strong>de</strong> perto, parece tocar em assuntos que<br />
ultrapassam o problema do funcionamento do sistema <strong>de</strong> ensino escolar<br />
brasileiro.<br />
Não há novida<strong>de</strong> na estética visual: o filme segue sendo costurado por<br />
<strong>de</strong>poimentos e conduzido por personagens. Nada mais clássico para o gênero<br />
documental. A novida<strong>de</strong> parece estar na forma como a narrativa nos apresenta o<br />
tema em questão. Não se trata apenas <strong>de</strong> uma abordagem sobre os problemas<br />
escolares, mas <strong>de</strong> uma reflexão existencial, <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>núncia acerca da corrupção<br />
social e <strong>de</strong> um questionamento que nos coloca frente a um sistema que, apesar <strong>de</strong><br />
ter sido criado por nós mesmos, acabamos não conseguindo dominá-lo, per<strong>de</strong>mos<br />
a ré<strong>de</strong>a, porque, quando pensamos – e se pensamos – em mudanças, não<br />
sabemos por on<strong>de</strong> começar.<br />
Ao narrar múltiplas perspectivas <strong>de</strong> um Brasil diverso na forma <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, ser e<br />
coexistir do jovem em suas premissas sociais, suas vonta<strong>de</strong>s, sonhos e <strong>de</strong>sejos,<br />
“Pro Dia Nascer Feliz” nos conduz a perguntas como: Para que serve nossa escola?<br />
Para além da formação profissional, qual o seu papel na realização <strong>de</strong> vida do<br />
aluno? Como ensinar e educar sem oprimir? Como o professor alcança o respeito<br />
<strong>de</strong> alunos que estão <strong>de</strong>sacreditados da importância da escola em seu futuro?<br />
Diferentemente do que estamos acostumados a ver, João Jardim não coloca a<br />
escola rica e a escola pobre como a luta entre o bem e o mal. Nesse sentido, o<br />
diretor nos traz contradições e inversões <strong>de</strong> valores, a exemplo da estudante<br />
Valéria, que, mesmo vivendo numa pobre cida<strong>de</strong> do sertão nor<strong>de</strong>stino e lutando<br />
contra toda sorte <strong>de</strong> adversida<strong>de</strong> social, <strong>de</strong>senvolveu o gosto pela literatura e a<br />
aptidão em escrever belos poemas.<br />
Assim como para nós, que estamos acostumados a taxar a pobreza como sinônimo<br />
<strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> intelectual, essa situação parece inacreditável também para os<br />
professores <strong>de</strong> Valéria, visto que a menina sempre recebe nota baixa por ser<br />
acusada <strong>de</strong> estar plagiando algum outro autor. Contudo, Valéria não parece<br />
insatisfeita com a vida que tem. Num <strong>de</strong> seus poemas <strong>de</strong>dicados ao lugar on<strong>de</strong><br />
mora, percebemos seu contentamento em viver ali, mesmo que na simplicida<strong>de</strong>.<br />
LEITURAS...<br />
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No extremo oposto da esquizofrênica pirâmi<strong>de</strong> social brasileira, assistimos às<br />
angústias e crises existenciais <strong>de</strong> jovens <strong>de</strong> classe média alta dos tradicionais<br />
colégios do Rio <strong>de</strong> Janeiro e São Paulo, superexigidos por pais, professores, amigos<br />
ou até por si mesmos. Também vemos uma aproximação entre os dois pólos sociais<br />
quando ouvimos, por parte dos jovens ricos, <strong>de</strong>poimentos sobre a falta <strong>de</strong> carinho<br />
paterno que se assemelham aos dos jovens das escolas públicas mais pobres. Um<br />
painel <strong>de</strong> recursos tecnológicos-educacionais abundantes, muita expectativa e<br />
competição, mas, nem por isso, muito afeto.<br />
Por outro lado, somos surpreendidos com a realida<strong>de</strong> mundo-cão das escolas das<br />
favelas das periferias do Rio e São Paulo, largadas a incúria das autorida<strong>de</strong>s<br />
públicas, <strong>de</strong>ntro do tradicional quadro <strong>de</strong> irresponsabilida<strong>de</strong> política e <strong>de</strong> ausência<br />
<strong>de</strong> cidadania, característico <strong>de</strong> nossa cultura <strong>de</strong> impunida<strong>de</strong>. Professores que<br />
fingem ensinar e alunos que fingem apren<strong>de</strong>r, aqueles <strong>de</strong>siludidos da eficiência do<br />
sistema educacional vigente e cativos do medo <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong>linquentes, estes<br />
<strong>de</strong>screntes da importância da escola como propiciadora <strong>de</strong> um futuro melhor e<br />
seduzidos pelo po<strong>de</strong>r ilusório do narcotráfico.<br />
A educação reproduz a socieda<strong>de</strong> em que vivemos: frangalhos <strong>de</strong> escolas e<br />
frangalhos <strong>de</strong> valores. Uma das cenas finais é emblemática nesse sentido. Imagens<br />
<strong>de</strong> prédios luxuosos são acompanhadas por <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> estudantes pobres<br />
ligados ao tráfico e à violência, os quais se comparam aos políticos, com a diferença<br />
<strong>de</strong> que estariam, proporcionalmente em relação estes, numa posição <strong>de</strong> “menos<br />
culpa”.<br />
A corrupção política, segundo os jovens estudantes ladrões e traficantes, é a<br />
precursora <strong>de</strong> todo o mal; o que justificaria a criminalida<strong>de</strong> geral da socieda<strong>de</strong> são<br />
justamente seus políticos. E ainda concluem dizendo que a diferença entre eles é,<br />
além da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dinheiro roubado, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem presos,<br />
enquanto que o mesmo não acontece no caso do crime político.<br />
Se o assunto <strong>de</strong> “Pro Dia Nascer Feliz” é escola e educação, po<strong>de</strong>mos dizer que João<br />
Jardim nos dá uma gran<strong>de</strong> e dura aula a respeito <strong>de</strong> cidadania brasileira. Somos<br />
colocados frente à realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sistemas educacionais, jurídicos e políticos<br />
sucateados e <strong>de</strong>ixados a míngua em nosso país. No círculo vicioso da violação legal<br />
e da violência social, vagueia uma socieda<strong>de</strong> omissa e alienada, que, apesar <strong>de</strong><br />
notar seus problemas, parece ter preguiça <strong>de</strong> tomar iniciativa em meio às<br />
dificulda<strong>de</strong>s.<br />
*Sara Martin é graduada em Comunicação Social - Rádio e TV (Uesc).
Pro Dia Nascer Feliz<br />
Chico Fireman*<br />
“Pro Dia Nascer Feliz” foi tão elogiado que eu já começava a <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong>le<br />
antes mesmo <strong>de</strong> assisti-lo. Como realizar um filme sobre educação no Brasil e<br />
não cair nos maneirismos daquele cinema social que virou padrão numa nova<br />
faceta dos documentários? Minha i<strong>de</strong>ia sobre o primeiro vôo solo <strong>de</strong> João<br />
Jardim na direção <strong>de</strong> um longa-metragem era <strong>de</strong> um cinema chato, em que o<br />
<strong>de</strong>nuncismo fácil – o Brasil é uma seara farta para este tipo <strong>de</strong> filme – dava o<br />
tom da narrativa e os realizadores faturavam em cima da miséria alheia.<br />
.<br />
Eu nunca tive tanta vergonha <strong>de</strong> estar errado sobre um filme. E nunca mais<br />
me percebi tão feliz por estar errado sobre um filme. Em “Pro Dia Nascer<br />
Feliz”, João Jardim dá conta <strong>de</strong> uma missão dificílima: equilibrar a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong><br />
uma educação <strong>de</strong>sigual com os dramas, sonhos e projetos <strong>de</strong> adolescentes<br />
prestes a aterrissar num mundo <strong>de</strong> adultos que po<strong>de</strong> hostilizá-los pela falta<br />
ou pelo excesso. E, num terceiro eixo, Jardim dá a palavra ao professor, a<br />
figura-chave <strong>de</strong> todo o processo, que raramente ganha um fórum correto<br />
para se apresentar.<br />
.<br />
Da primeira cena, em que são mostrados os banheiros <strong>de</strong> uma escola pobre,<br />
até os corredores <strong>de</strong> um dos colégios mais ricos do país, o filme passa por uma<br />
sucessão <strong>de</strong> metamorfoses que, se não fosse bem costurada por roteiro e<br />
montagem, po<strong>de</strong>ria resultar num tiroteio cego que atira para vários lados e<br />
não acerta um alvo sequer. Mas, pelo contrário, abre várias frentes <strong>de</strong><br />
discussão e consegue apresentá-las, dar <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> a elas e discuti-las,<br />
mesmo que rapidamente, num tom bastante acertado.<br />
.<br />
O trabalho <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> personagens foi fundamental para que o filme<br />
funcionasse tão bem. Jardim dá voz a professores, mas nunca ousa classificálos<br />
e nem, como dita o clichê, consagrá-los como heróis populares. O filme é<br />
exato em <strong>de</strong>senhá-los em duas dimensões: ao mesmo tempo em que são<br />
esforçados, estão <strong>de</strong>siludidos com a profissão. É quando o trabalho vira<br />
serviço.<br />
.<br />
O tratamento mais <strong>de</strong>licado, porém, é dado aos estudantes. Jardim tem um<br />
imenso cuidado em <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r cada um <strong>de</strong> seus eleitos como um gran<strong>de</strong> pai,<br />
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mas não abre concessões nessa <strong>de</strong>fesa. Sua câmera e, sobretudo, sua edição<br />
sempre tentam compreen<strong>de</strong>r os sentimentos e as dúvidas dos alunos. Os<br />
<strong>de</strong>poimentos são naturalmente emotivos, como o da menina que abdica <strong>de</strong><br />
seu sonho no jornal da escola <strong>de</strong>pois que ganha um emprego <strong>de</strong> dobrar calças.<br />
O filme ainda sabe relativizar os dramas dos personagens. Nada parecia mais<br />
forte do que a história <strong>de</strong> Valéria, pernambucana do interior cuja vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
estudar e o talento para escrever superam as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> chegar à escola e<br />
a falta <strong>de</strong> aulas. Mas Jardim sabe colocar essa história no mesmo patamar da<br />
<strong>de</strong> Ciça, estudante <strong>de</strong> um colégio caríssimo que se <strong>de</strong>dica tanto aos estudos –<br />
para justificar o investimento <strong>de</strong> seus pais em sua formação – que enche os<br />
olhos <strong>de</strong> água ao lembrar que faz tempo que não namora.<br />
.<br />
Ainda que alguns espectadores da sessão em que eu vi o filme tenham rido<br />
<strong>de</strong>sta cena – riso que <strong>de</strong>veria estar justificado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mazelas tão, a<br />
princípio, mais graves apresentadas até então –, João Jardim selecionou esta<br />
cena para dar as múltiplas dimensões do universo dos adolescentes<br />
brasileiros. O diretor enten<strong>de</strong>u perfeitamente que as lágrimas <strong>de</strong> Ciça são tão<br />
honestas quanto a versão <strong>de</strong> Valéria para a "Canção do Exílio", <strong>de</strong> Gonçalves<br />
Dias.<br />
* Chico Fireman é jornalista e crítico <strong>de</strong> cinema.
Pro Dia Nascer Feliz<br />
Ruy Gardnier*<br />
O nome não <strong>de</strong>ixa muito claro, mas “Pro Dia Nascer Feliz” é um filme sobre<br />
educação no Brasil. E, claro, num país tão socialmente contrastado e <strong>de</strong><br />
dimensões continentais como o Brasil, tudo é questão do recorte que se faz e <strong>de</strong><br />
como se operam as interrelações dos lugares e das situações específicas que se<br />
vai registrar. Nesse primeiro <strong>de</strong>safio, João Jardim se sai formidavelmente bem. A<br />
tentação <strong>de</strong> chamar a atenção para as patentes diferenças geográficas e <strong>de</strong> classe<br />
é tão gran<strong>de</strong> quanto fácil, e a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer um uso "dialético", montando e<br />
integrando lugares e problemáticas heterogêneas cairia rapidamente num<br />
<strong>de</strong>nuncismo confortável e no lugar-comum. E o que “Pro Dia Nascer Feliz” faz?<br />
Analisa cada segmento por si mesmo, criando quatro blocos homogêneos <strong>de</strong><br />
instalação num ambiente, filmando os lugares, tomando <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> alunos<br />
e professores, enfim, criando um esforço <strong>de</strong> compreensão a partir do que se filma,<br />
com um interesse maior no que está diante da câmera do que com a tese que está<br />
embaixo do braço. Assim, vemos inicialmente as precárias condições <strong>de</strong> uma<br />
escola na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manari, em Pernambuco; <strong>de</strong>pois, somos transportados para<br />
uma escola em Duque <strong>de</strong> Caxias, Rio <strong>de</strong> Janeiro; em seguida, vamos para<br />
Itaquaquecetuba, no interior <strong>de</strong> São Paulo; e, por fim, paramos numa escola <strong>de</strong><br />
elite da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Vemos diferenças? Claro. Uma escola <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> pequena enfrenta problemas que<br />
uma escola <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> não enfrenta, as crianças numa cida<strong>de</strong> pobre vivem<br />
dificulda<strong>de</strong>s diferentes daquelas <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> rica. Mas o que o filme mostra,<br />
com extrema competência, é que o dinheiro não faz necessariamente uma<br />
criança mais feliz do que outra, assim como uma educação mais qualificada po<strong>de</strong><br />
ocasionar tantas oportunida<strong>de</strong>s na vida quanto criar pacientes <strong>de</strong> consultórios <strong>de</strong><br />
psicanálise. Assim, vemos a aluna-poeta <strong>de</strong> Manari que consegue construir para<br />
si, com todas as circunstâncias contra, uma vida esclarecida, ao passo que<br />
algumas alunas <strong>de</strong> um colégio rico do Alto <strong>de</strong> Pinheiros lutam para saber o que<br />
querem da vida. Cada segmento é afrontado por seus próprios problemas. Alguns<br />
dizem respeito à falta <strong>de</strong> condições, mas todos são afetados pelo modo <strong>de</strong> vida<br />
das redon<strong>de</strong>zas e pelas circunstâncias específicas dos bairros e cida<strong>de</strong>s em que<br />
estão situados. Assim, a escola <strong>de</strong> Caxias vive o problema da criminalida<strong>de</strong>, e a<br />
escola rica <strong>de</strong> São Paulo não consegue viver com o fato <strong>de</strong> ser um bunker <strong>de</strong><br />
riqueza em meio à pobreza e falta <strong>de</strong> meios da maior parte do país. Cada situação<br />
é respeitada, sem tecer hierarquias ou expor ao ridículo algum dos lados. Claro,<br />
existe a tendência <strong>de</strong> espectador em empatizar com os pobres e minimizar os<br />
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problemas dos ricos, consi<strong>de</strong>rados como fúteis (o que provoca, por vezes, reações<br />
monstruosas por parte da plateia), mas João Jardim consegue orquestrar seu<br />
filme a partir <strong>de</strong> uma estrutura que <strong>de</strong>ixa cada segmento viver sua própria vida,<br />
respirar sua própria respiração.<br />
Numa segunda parte, o filme intercala e integra seus segmentos a partir da<br />
questão da paternida<strong>de</strong> (o que revela pais ausentes tanto em Manari quanto no<br />
Alto <strong>de</strong> Pinheiros, ainda que a ausência se dê por razões diversas) e, em seguida,<br />
para a questão, igualmente paterna, do Estado e dos contrastes sociais (plano<br />
aéreo clichê dos arranha-céus e das favelas horizontais <strong>de</strong> São Paulo), e, ao<br />
mesmo tempo, o filme toca na questão da violência dos jovens, que também se dá<br />
<strong>de</strong> formas heterogêneas em cada ambiente. É nesse momento que o filme<br />
evi<strong>de</strong>ncia uma <strong>de</strong> suas insuficiências, a <strong>de</strong> buscar pronunciadamente alguns casos<br />
<strong>de</strong> exceção, culminando em dois <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong> aluno, ambos em<br />
áudio sem imagem, um ilustrado pela tela preta (meninos falando que roubam<br />
por ódio ou por falta do que fazer) e outro com a chuva batendo nas poças em<br />
câmera lenta (uma menina que narra um assassinato que cometeu no colégio, <strong>de</strong><br />
forma <strong>de</strong>liberada e orgulhosa com o feito, porque a pena para menor é ínfima).<br />
Por mais que seja absolutamente necessário se referir a casos como este, as cenas<br />
– sobretudo a narração do assassinato – se revelam como algo oportunista no<br />
filme, seja pela pieguice das soluções <strong>de</strong> imagem para fazer caber o áudio, seja<br />
porque certas questões muito mais gerais e <strong>de</strong>cisivas da educação acabam sendo<br />
obnubiladas pela força <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>poimentos.<br />
O filme também recorre à empatia com certos personagens como forma um<br />
pouco fácil <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver uma relação calorosa com a plateia – não à toa, faz<br />
retornar a adorável aluna-poeta <strong>de</strong> Manari no fim do filme –, mas, no geral, o<br />
filme consegue mais do que fazer apenas um inventário dos maiores problemas<br />
da educação no Brasil, chegando inclusive a exercitar certos questionamentos<br />
mais teóricos e contemporâneos, como a a<strong>de</strong>quação dos programas escolares às<br />
necessida<strong>de</strong>s da vida dos alunos e à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reformulação completa<br />
do papel entre professor e aluno, uma vez que a relação <strong>de</strong> respeito ao mestre<br />
construída ao longo <strong>de</strong> séculos parece não mais fazer efeito nos dias <strong>de</strong> hoje.<br />
Filme <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s qualida<strong>de</strong>s e alguns evi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>feitos, “Pro Dia Nascer Feliz”<br />
funciona como o ponto <strong>de</strong> partida para um questionamento sobre educação por<br />
parte não só dos professores, mas <strong>de</strong> todos aqueles interessados na importância<br />
da transmissão <strong>de</strong> saber e na extrema necessida<strong>de</strong> que essa transmissão tem na<br />
constituição da cidadania.<br />
* Ruy Gardnier é graduado em Comunicação Social - Jornalismo (UFRJ) e crítico <strong>de</strong><br />
cinema.
Esta é uma publicação especial da Universida<strong>de</strong> Estadual do Sudoeste da<br />
Bahia (<strong>Uesb</strong>), referente ao projeto “Cinema: Eis a Questão – O Janela<br />
Indiscreta no Vestibular”, realizado pelo Programa Janela Indiscreta Cine-<br />
Ví<strong>de</strong>o <strong>Uesb</strong>, em parceria com a Pró-Reitoria <strong>de</strong> Graduação e a Comissão<br />
Permanente do Vestibular, com o apoio da Pró-Reitoria <strong>de</strong> Extensão e<br />
Assuntos Comunitários. Tiragem: dois mil exemplares. Distribuição<br />
gratuita.<br />
ORGANIZAÇÃO<br />
Raquel Costa e Talita Nobre Pessoa<br />
DESENVOLVIMENTO<br />
Agência vOceve Multicomunicação<br />
Projeto Gráfico e Design: Isaque Oliveira e Jamille C. Dias<br />
Atendimento: Adailton Rocha, Marco Antonio J. Melo e Rafael Carvalho<br />
Janela Indiscreta Cine-Ví<strong>de</strong>o <strong>Uesb</strong><br />
Revisão: Raquel Costa<br />
FOTOS<br />
Arquivo Janela Indiscreta Cine-Ví<strong>de</strong>o <strong>Uesb</strong><br />
Divulgação<br />
EQUIPE DO PROJETO<br />
Coor<strong>de</strong>nação Acadêmica: Milene Gusmão<br />
Coor<strong>de</strong>nação Administrativa: Raquel Costa<br />
Produção Executiva: Talita Nobre<br />
Apresentação: Aline Mattos<br />
Assistentes <strong>de</strong> Produção: Rayssa Fernan<strong>de</strong>s e Luciano Marques<br />
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA<br />
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS<br />
PROGRAMA JANELA INDISCRETA CINE-VÍDEO UESB<br />
Estrada do Bem-Querer, km 04 – Campus Universitário<br />
Vitória da Conquista-Bahia – CEP 45.083-900 | Tel.: (77) 3425.9330<br />
E-mail: janelaindiscretacinevi<strong>de</strong>o@gmail.com<br />
Site: www.janelaindiscretauesb.com.br<br />
CRÉDITOS<br />
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Centro Cultura<br />
Camillo <strong>de</strong> Jesus Lima<br />
Centro <strong>de</strong> Cultura<br />
Antônio Carlos Magalhães