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IVASA,Lidia. O ROMANCE DO GENJI NO TEATRO NÔ - WWLivros

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O <strong>ROMANCE</strong> <strong>DO</strong> <strong>GENJI</strong> <strong>NO</strong> <strong>TEATRO</strong> <strong>NÔ</strong>: AS FACES DE<br />

ROKUJÔ <strong>NO</strong> MIYASU<strong>DO</strong>KORO<br />

Lídia H. Ivasa <br />

Andrei dos Santos Cunha <br />

RESUMO: Este trabalho pretende fazer uma análise de duas adaptações da obra literária O Romance do<br />

Genji, de autoria de Murasaki Shikibu para o teatro nô: Aoi no Ue e Nonomiya. Tomando como protagonista<br />

das peças a dama Rokujô no Miyasudokoro, as adaptações mostram comportamentos diferentes para a<br />

mesma personagem, aproveitando sua complexidade psicológica e expandindo o universo da obra literária, já<br />

que as histórias retratadas não são diretamente narradas em O Romance do Genji. Segundo BROOK (1993),<br />

o texto do teatro é uma forma inacabada, dando espaço para interpretação além do que foi narrado nas<br />

páginas de um livro. O teatro nô valoriza esse efeito, com a utilização mínima de recursos cenográficos e<br />

com os movimentos sintéticos dos atores, fazendo com que o espectador imagine a maior parte da ação que<br />

ocorre.<br />

PALAVRAS-CHAVE:Genji Monogatari, teatro nô, Rokujô no Miyasudokoro.<br />

ABSTRACT: This work intends to analyze two plays of Noh Theatre, Aoi no Ue and Nonomiya, based on<br />

Murasaki Shikibu’s novel The Tale of Genji. Although both plays have Rokujo no Miyasudokoro as the main<br />

character, each shows a different behavior of the character, using her psychologic complexity and enriching<br />

the universe of the novel, since the play’s plots are not directly narrated on The Tale of Genji. According to<br />

BROOK (1993), the text of a play is incomplete, which allows an interpretation that surpasses the narrative<br />

of the book. Noh theatre values this, using very few scenic resources and actors’ movements, allowing the<br />

audience to imagine most part of the action.<br />

KEYWORDS: Genji Monogatari, Noh theatre, Rokujo no Miyasudokoro.<br />

Aluna do curso de bacharelado em Letras, habilitação tradutor português-japonês na Universidade Federal<br />

do Rio Grande do Sul. E-mail: ivasalidia@gmail.com.<br />

Professor Assistente de Literatura Japonesa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:<br />

andreicunha@gmail.com.


Introdução<br />

No tradicional teatro nô, é recorrente a utilização de obras da literatura clássica<br />

japonesa para a composição de peças. Este trabalho pretende analisar duas peças de nô,<br />

cuja protagonista é uma das personagens da obra O Romance do Genji, de autoria da<br />

dama da corte Murasaki Shikibu.<br />

O Romance do Genji, escrito em 1008, retrata a vida de Hikaru Genji 1 , nascido filho<br />

de um imperador. Por motivos políticos, Genji é rebaixado ao cargo de funcionário público,<br />

perdendo o direito ao trono. A história tem como pano de fundo a corte imperial japonesa<br />

no Período Heian (794-1192). Este período é caracterizado pelo desenvolvimento de uma<br />

refinada cultura aristocrática no Japão.<br />

A protagonista das peças desta análise é uma das amantes do Genji, Rokujô no<br />

Miyasudokoro 2 , viúva de um Príncipe Herdeiro e dama admirada na corte por sua<br />

educação e refinamento. Dominava a arte da caligrafia, de composição de poemas, da<br />

combinação de incensos e vestes, qualidades indispensáveis para uma dama da época, pois<br />

ritos e cerimônias eram eventos recorrentes e de grande apreciação (saber como portar-se e<br />

apresentar-se em tais ocasiões poderia promover ou arruinar a reputação de uma pessoa<br />

perante o Imperador). Porém, sendo uma das amantes mais velhas do Genji, Rokujô<br />

sente-se atormentada pelo ciúme e pelo orgulho, pois como membro da família imperial,<br />

seu relacionamento com o Genji era mal visto e manchava sua reputação. Além disso,<br />

mostrar sinais de que sentia ciúmes era humilhante para uma pessoa que já havia ocupado<br />

a posição de princesa herdeira. Carregando esse dilema, a paixão que a dama sente pelo<br />

1<br />

Tradução literal do japonês: Genji Resplandescente, sendo Genji o título que recebeu ao sair da linhagem<br />

imperial e ganhou o cargo de funcionário público. Resplandescente por causa de sua beleza física. Em<br />

japonês: 光源氏.<br />

2<br />

Tradução literal do japonês: Dama da Sexta Avenida, por sua residência localizar-se na sexta avenida da<br />

capital imperial. Em japonês: 六条御息所.


Genji se tornará incontrolável e nociva, tanto para a própria Rokujô quanto para as outras<br />

amantes.<br />

No romance, como personagem secundária, Rokujô é uma das personagens mais<br />

marcantes da obra, sendo lembrada como a mulher que sofre pelo ciúme e posteriormente,<br />

pelo abandono do amante.<br />

No teatro, podemos dizer que cada peça retrata uma face dos sentimentos de Rokujô:<br />

em Aoi no Ue, o ciúme doentio da dama é levado ao extremo, com a transformação de seu<br />

espírito em um ogro, que ataca a rival; em Nonomiya, a lembrança e a tristeza pelo<br />

abandono do amante é o motivo pelo qual seu espírito não consegue descansar em paz.<br />

1 O Romance do Genji<br />

No capítulo “Aoi”, o irmão mais velho do Genji é nomeado imperador. Por esse motivo,<br />

a filha da dama Rokujô é nomeada a nova sacerdotisa do Santuário de Ise, localizado fora<br />

da capital. Rokujô fica indecisa se deve acompanhar a filha ou ficar na capital, por causa<br />

do amante. Enquanto isso, o imperador aposentado, pai do Genji, chama a atenção do filho<br />

para o tratamento que ele dispensa à dama Rokujô, alertando-o para não atrair a mágoa das<br />

mulheres:<br />

— Nunca humilhe uma mulher e trate-a sempre com amenidade, senão terá de<br />

suportar o seu ressentimento! [...] Agora que o Imperador aposentado estava ao<br />

corrente da sua relação e o admoestara daquela maneira, ele próprio se arriscava<br />

a passar por frívolo e a reputação da dama também corria o risco de ser<br />

manchada quando a sua elevada posição era merecedora das maiores atenções.<br />

Porém, ele nunca a tratara abertamente como sua esposa; fora ela que,<br />

embaraçada pela diferença de idades, afectara manter-se reservada, atitude que o<br />

intimidara, tornando-o circunspecto; mesmo que o Imperador aposentado e todos<br />

os cortesãos estivessem ao corrente do caso, a Princesa não deixava de se<br />

queixar amargamente da superficialidade de seus sentimentos. (MURASAKI,


2008, p. 226)<br />

Notamos que este aviso cria um clima de suspense, preparando o leitor para os<br />

próximos acontecimentos da narrativa, além de revelar que o caso dos dois é de<br />

conhecimento público, para desespero da dama.<br />

Também há o anúncio da gravidez da dama Aoi, esposa do Genji. As visitas dele a<br />

outras mulheres diminuem ainda mais em frequência, para tristeza de Rokujô. Com a<br />

nomeação da nova sacerdotisa do Santuário de Kamo, o Genji é escolhido como o<br />

mensageiro do imperador na ocasião, desfilando durante a cerimônia. Seu desfile é<br />

esperado por todas as damas da corte, fazendo com que Aoi e Rokujô acabem se<br />

envolvendo em uma disputa por um lugar para vê-lo. Rokujô é afastada do local em que<br />

estava pelos serviçais de Aoi, humilhando-a em público. No desfile, a dama vê o amante<br />

cumprimentar a esposa, mas ela, ao longe, passa despercebida. Neste trecho, fica evidente<br />

a humilhação de Rokujô e a confirmação de sua posição como simples amante do Genji,<br />

enquanto Aoi, além de grávida, ocupa a posição de esposa:<br />

3 Nome do rio que corre no Santuário Kamo.<br />

Por fim, conseguiu distinguir o Genji, mas este não a viu. Como poderia, se ele<br />

passava pela multidão como o rápido reflexo de uma imagem que se desvanece<br />

logo depois de ter sido captada por uma queda de água? Passou a cavalo,<br />

impassível, e vê-lo assim só aumentou o seu tormento.[...] Como os carros da<br />

residência do Ministro não podiam passar despercebidos, tomou um ar de<br />

circunstância ao passar perto deles. Ao ver as suas gentes saudá-lo com grande<br />

respeito, a dama Rokujô sentiu-se ainda mais humilhada e murmurou:<br />

O seu reflexo nas águas<br />

Da cascata de Mitarashi 3<br />

Foi tudo o que pude ver<br />

E pela sua indiferença<br />

Medi o meu infortúnio (MURASAKI, 2008, p. 228)


Posteriormente, Genji toma conhecimento do conflito e visita Rokujô, mas ela se<br />

recusa a recebê-lo. A dama também preocupa-se com sua reputação perante a corte,<br />

sentindo-se atormentada pelo ciúme em relação ao Genji e pelas fofocas que seu caso<br />

despertou entre a classe nobre.<br />

Na casa do Ministro, sogro do Genji, um espírito maligno apossou-se de Aoi, fazendo<br />

com que exorcistas e médiuns fossem chamados, mas esse espírito era persistente. Correm<br />

rumores de que esse espírito fosse o de Rokujô, que ao ouvir a notícia, surpreende-se:<br />

Durante anos sofrera tudo o que é possível sofrer, mas nunca se sentira tão<br />

humilhada como durante aquele grotesco incidente; fora ignorada e desprezada e,<br />

independentemente da sua própria vontade, o seu espírito remexia<br />

constantemente na ferida e não conseguia reencontrar a paz. Era certamente por<br />

isso que, ao dormitar, sonhava que entrava numa casa onde encontrava uma bela<br />

mulher, que devia ser Aoi, e então batia-lhe num assomo de violência e de ódio<br />

que, quando acordada, lhe era totalmente estranho... Que horror! Às vezes<br />

perguntava-se, desconcertada, se o seu espírito podia abandonar o seu corpo e<br />

actuar por conta própria, independentemente dos seus desejos [...] (MURASAKI,<br />

2008, p. 235)<br />

Rokujô, inconscientemente, tornou-se um espírito-vivo 4 , ou seja, tomada pelo ciúme,<br />

seu espírito saía de seu corpo para atacar as rivais. Era um espírito tão violento que seus<br />

ataques eram quase sempre fatais.<br />

Aoi, prestes a dar à luz, chama pelo Genji. Mas na verdade, quem o chama é o espírito<br />

maligno, que o Genji reconhece como sendo o de Rokujô. O espírito acalma com a<br />

presença do Genji e Aoi dá à luz um menino, que é celebrado por todos. Rokujô recebe a<br />

notícia com ironia e percebe que nos últimos dias, suas roupas estavam impregnadas com<br />

um cheiro de incenso; por mais que lavasse o cabelo ou trocasse de roupa, o cheiro não<br />

4 Surgindo em uma das passagens mais assustadoras da obra, o espírito-vivo (ikiryô) é uma entidade que terá<br />

espaço em obras posteriores, muitas vezes relacionado ao ciúme ou ódio de mulheres para com seus amantes.<br />

Em japonês: 生霊.


saía. A partir desse fato, ela tem a convicção de que seus sonhos são reais..<br />

Quando todos pensavam que Aoi estava se recuperando, o espírito ataca-a novamente e<br />

ela falece, para surpresa de todos. A partir de então, o Genji não consegue mais<br />

corresponder-se com Rokujô, ciente de que ela matou Aoi, conforme observamos no<br />

seguinte trecho:<br />

[...] cortar bruscamente relações com ela [Rokujô] e deixá-la sem notícias seria<br />

impiedoso e comprometeria também a sua reputação, pensou, perplexo. Quanto a<br />

Aoi, talvez tivesse sido vítima de um inexorável destino. Se ao menos não<br />

tivesse testemunhado a forma como a sua defunta esposa fora a presa do<br />

demônio dos ciúmes da sua amante! Por muito que se esforçasse, parecia-lhe que<br />

nunca mais poderia retribuir-lhe a sua estima. (MURASAKI, 2008, p. 242)<br />

Os fatos relacionados ao espírito-vivo neste capítulo terminam quando Rokujô percebe<br />

que o amante a reconheceu durante o ataque a Aoi, mencionando o ocorrido numa carta:<br />

Rokujô recebeu a carta numa altura em que estava na sua própria residência,<br />

leu-a às escondidas; não lhe custou muito perceber que, pela imagem a que<br />

aludia, o Genji estava ao corrente de tudo e a acusava da morte de Aoi! Que<br />

crueldade! Não haveria fim para o seu desespero? (MURASAKI, 2008, p. 242)<br />

Continuando no capítulo “Sakaki”, Rokujô decide acompanhar a filha para o Santuário<br />

de Ise, pois o Genji afastava-se cada vez mais dela. Por causa dos ritos de purificação para<br />

assumir o cargo de sacerdotisa, mãe e filha retiram-se para o Templo da Planície, local<br />

retirado da capital. Era outono quando o Genji consegue visitar Rokujô, após enviar várias<br />

cartas pedindo por um encontro. A dama aceitara o pedido, desde que fosse uma visita<br />

discreta. A planície, no outono, tomava ares melancólicos, e a cerca de gravetos e o portal<br />

de madeira bruta do templo reforçavam a austeridade do local. Notamos neste trecho que a<br />

natureza passa a representar os sentimentos das personagens, preparando-se para a<br />

despedida:


Era aproximadamente o dia sete do nono mês e enquanto ele se sentia perturbado<br />

ao pensar na partida de Rokujô, agora iminente, ela por seu lado atormentava-se<br />

de igual modo [...]. Quando o Príncipe se encaminhou pela vasta planície,<br />

sentiu-se invadido por uma imensa melancolia. As folhas do Outono murchavam<br />

e enquanto o lúgubre gemido do vento nos pinheiros se juntava aos gritos<br />

intermitentes dos insectos nos campos de juncos secos, chegavam-lhe<br />

fragmentos de um trecho de música cuja melodia não podia sem dúvida<br />

distinguir, mas que mesmo assim o encantava. (MURASAKI, 2008, p. 262)<br />

Ao revê-la, o Genji percebe que ainda tem sentimentos por ela, apesar do que ocorreu<br />

entre eles; portanto, tenta convencer Rokujô a ficar na capital. Contudo, a dama permanece<br />

impassível. Os dois se despedem pela manhã, após relembrarem o passado juntos:<br />

A lua deitava-se; às brandas recriminações e pedidos que ele lhe endereçava,<br />

olhos perdidos no céu melancólico, Rokujô sentia derreter as censuras que<br />

acumulara no seu coração. Apesar de todos os esforços que fizera para se afastar<br />

dele, pensava, perturbada, que a sua resolução fora novamente abalada, como<br />

tanto receava. [...] Não é possível contar as palavras trocadas por esses dois seres<br />

que tinham passado por todos os tormentos do amor. (MURASAKI, 2008, p.<br />

264)<br />

Após a cerimônia de despedida no palácio, o cortejo da sacerdotisa passa em frente à<br />

residência do Genji, que envia um poema preso a um galho de sakaki 5 , referência ao<br />

santuário, local onde os amantes se despediram e onde Rokujô passará a viver:<br />

Hoje parte e abandona-me<br />

Mas nos oito braços<br />

Do rio Suzuka 6<br />

As suas mangas<br />

Não irão molhar-se (MURASAKI, 2008, p. 267)<br />

5 Planta considerada sagrada na religião xintoísta. Em japonês: 賢木.<br />

6 Rio que passa por Ise.


Ao que a dama responde, certa de que será esquecida com o passar dos anos e pela<br />

distância:<br />

Se nos oito braços<br />

Do rio Suzuka<br />

As mangas se molharem<br />

Quem – até Ise 7<br />

Irá preocupar-se? (MURASAKI, 2008, p. 267)<br />

Estes dois capítulos são a base para as peças Aoi no Ue e Nonomiya, que foram<br />

adaptadas de acordo com as características do teatro nô.<br />

2 O teatro nô<br />

O nô tem origem no sangaku, entretenimento (envolvendo teatro, dança e canto)<br />

trazido da China, ainda no Período Nara (710-784). Era executado em templos e santuários,<br />

entretendo a camada popular. Posteriormente, o sangaku passou a ser conhecido sob duas<br />

formas: o sarugaku no nô e o dengaku no nô. O primeiro tinha como característica a<br />

representação baseada na imitação fiel, enquanto o segundo era centrado na dança,<br />

possuindo uma representação de caráter simbólico. O dengaku no nô foi amplamente<br />

aceito pela classe aristocrática da capital (então Heiankyô, atual cidade de Quioto),<br />

enquanto o sarugaku no nô tornou-se itinerante, com seus grupos apresentando-se em<br />

várias regiões.<br />

Uma grande mudança nas formas teatrais ocorreu no século XIV, quando os atores<br />

Kan’ami Kiyotsugu (1333-1384) e Zeami Motokiyo (1363-1444), introduziram<br />

refinamento e sofisticação ao sarugaku no nô, criando uma nova forma de expressão<br />

artística, chamando-a de nô. Protegido pelo xogum Ashikaga Yoshimitsu (1368-1394),<br />

7 Referência ao Santuário de Ise, localizado na atual província de Mie.


Zeami desenvolveu o teatro nô na forma como é representado hoje, escrevendo inúmeras<br />

peças e vários tratados sobre o assunto.<br />

As peças de nô são divididas conforme o papel que o protagonista exerce, em cinco<br />

gêneros: das divindades, dos guerreiros, das mulheres, dos loucos e dos demônios. Até o<br />

Período Edo (1603-1868), uma apresentação era composta por uma peça de cada gênero,<br />

num total de cinco peças. Atualmente, são apresentadas apenas duas peças, geralmente<br />

uma peça inteira e a dança de outra. Em nossa análise, a peça Aoi no Ue pertence ao quarto<br />

gênero, o dos loucos, por representar o espírito de uma mulher tomada pelo ciúme; já a<br />

peça Nonomiya pertence ao gênero das mulheres, na qual o espírito de uma mulher narra<br />

sua história de amor.<br />

3 As faces de Rokujô: análise<br />

O teatro nô representa um mundo de divindades e espíritos, na qual o espectador<br />

também participa de cada apresentação, sendo transportado para um limiar entre o mundo<br />

dos vivos e dos mortos, onde presencia a visão da divindade ou do espírito que se<br />

manifesta. Sobre essa participação da plateia, SAKAE (1970, p. 141) argumenta:<br />

Se o nô não propiciou modificações é porque modificação significa rompimento<br />

com a tradição e a tradição do nô tem sentido de perfeição. Em seu mundo<br />

harmônico e perfeito, o nô reserva, todavia, uma armadilha para os espectadores<br />

incautos. Porque nele o ideal de perfeição tem que mostrar-se imperfeito.<br />

Imperfeito no sentido de não-acabado. A imperfeição é essa margem de<br />

possibilidade para que o espectador “participe”, do mesmo modo que no jardim<br />

Zen de areia e pedras, ou na pintura em preto e branco da dinastia Sung do Sul<br />

ou da Época Muromachi, em que, com o vazio dos grandes espaços livres de<br />

qualquer elemento supérfluo, o artista convida à participação ativa do espectador<br />

para dar vida à obra de arte [...].


Essa afirmação vai de acordo com BROOK (1993), que diz ser o texto do teatro uma<br />

forma inacabada, dando espaço para interpretar além do que foi narrado nas páginas de um<br />

livro. O nô abre espaço para retratar, ou ainda, dar continuidade a fatos que nas obras<br />

literárias são apenas mencionados. Os acontecimentos das peças em análise não são<br />

narrados diretamente em O Romance do Genji. A peça Aoi no Ue retrata a consequência<br />

do ciúme e da humilhação por que a dama Rokujô passou em relação à esposa de seu<br />

amante, enquanto o romance, correspondente ao capítulo “Aoi”, narra os fatos que<br />

desencadearam o ataque do espírito demoníaco. Já na peça Nonomiya, muitos anos se<br />

passam, e os personagens do romance já estão mortos (o Genji e a dama Rokujô). Contudo,<br />

a lembrança do amante faz com que o espírito da dama fique preso ao local onde se<br />

despediram, ou seja, o Santuário Nonomiya. A despedida dos amantes é narrada no<br />

romance, que corresponde ao capítulo “Sakaki”, mas não se sabe o que ocorre após a morte<br />

dos dois.<br />

Aoi no Ue é dividida em dois atos. No primeiro ato, a filha do Ministro da Esquerda e<br />

esposa do Genji está grávida e sofre por causa de um espírito maligno. O curioso é que ela,<br />

apesar de dar nome à peça, não é representada por um ator, e sim por um quimono. A roupa<br />

fica estendida no palco, representando a enferma que está de cama por causa do espírito.<br />

Uma sacerdotisa é chamada e logo descobre-se quem é a responsável: é o espírito-vivo da<br />

dama Rokujô, que, cheia de ciúmes e sentindo-se humilhada pela briga no Festival Kamo,<br />

sai de seu corpo físico e ataca a rival. Pela intensidade do ódio e do ciúme de Rokujô, um<br />

monge é chamado para exorcizar o espírito.<br />

Inicia, então, o segundo ato: o monge invoca o espírito novamente, que ressurge agora<br />

na forma de um ogro 8 . O monge e o espírito da dama Rokujô começam uma luta,<br />

8 Em japonês, oni (鬼). A figura de um ogro para representar uma mulher que é tomada pelo ciúme e tristeza<br />

é recorrente na literatura japonesa, sendo famosos os casos da dama Rokujô em O Romance do Genji e da<br />

princesa Kiyo, na lenda Dôjôji.


epresentada por uma dança que ocupa todo o palco. O exorcismo é representado pelo som<br />

das contas que o monge sacode e os mantras que são recitados pelo coro. E com o fim do<br />

exorcismo, o espírito desaparece, encerrando a peça. Notamos que as máscaras utilizadas<br />

pelo ator principal durante os dois atos são diferentes: no primeiro ato, a máscara utilizada<br />

chama-se deigan, e representa uma mulher comum. Porém, a máscara possui detalhes<br />

dourados nas pupilas. Esses detalhes são indicadores da sobrenaturalidade da personagem,<br />

o que se confirma no segundo ato, com o uso da máscara han’ya, que possui dois chifres e<br />

os dentes caninos saltados, e representa os sentimentos de ciúme, ódio e tristeza da mulher<br />

que foi abandonada ou traída pelo amado. Sendo o teatro nô repleto de simbolismos, a<br />

transformação da personagem em um ogro não implica em troca de figurino e mudança de<br />

comportamento, pois esses elementos obedecem à estética do yûgen, ou a uma elegância<br />

refinada: por mais que um ogro seja uma figura grotesca e assustadora, sua origem ainda é<br />

a de uma mulher pertencente à nobreza; portanto, seu refinamento é mantido.<br />

Em Nonomiya, também dividida em dois atos, um monge viajante passa próximo ao<br />

Santuário Nonomiya, conhecido por ser o local onde as sacerdotisas designadas para o<br />

Santuário de Ise passam pelos ritos de purificação. Além disso, o santuário também é<br />

conhecido pelas cercas de gravetos e o portal de madeira bruta, que fazem parte do cenário<br />

da peça. Era uma noite de outono e o monge encontra uma mulher do vilarejo. Ela carrega<br />

um ramo de sakaki e pede ao monge para que se retire, pois ela quer relembrar fatos do<br />

passado em tranquilidade. O monge indaga que memórias seriam relembradas e a mulher<br />

responde que certa vez, na mesma estação, o príncipe Hikaru Genji despediu-se da dama<br />

Rokujô neste local. Ela relata também que a filha da dama fora escolhida para ser<br />

sacerdotisa e a mãe a acompanharia, o que significaria a separação do amante. O último<br />

poema que a Rokujô envia ao Genji durante o romance é recitado. Então, a mulher revela<br />

que ela própria é a dama Rokujô e desaparece. Voltando à vila, o monge pergunta a um


morador sobre mais detalhes da história do Genji e Rokujô, e o homem pede que o monge<br />

reze pelo espírito da dama.<br />

No segundo ato, o monge inicia o rito, quando o espírito de Rokujô reaparece, agora<br />

em uma carruagem. Ela relata o episódio da briga na cerimônia de Kamo, e sua<br />

humilhação e tristeza. Relembrando o passado, o espírito de Rokujô inicia uma dança, sob<br />

a luz da lua. Nesse momento, o portal do Santuário Nonomiya representa o limite entre o<br />

mundo dos vivos e dos mortos, e Rokujô expressa sua tristeza e melancolia ao ficar presa<br />

no mundo dos vivos, imersa em lembranças do Genji. Ela pede ao monge para que a liberte<br />

e assim que termina a dança, entra na carruagem e desaparece, encerrando a peça.<br />

A máscara utilizada pelo ator é a mesma nos dois atos, representando uma mulher<br />

refinada, como Rokujô era descrita no romance. A simbologia nesta peça também está<br />

presente, como no ramo de sakaki que a mulher carrega no primeiro ato (que pode fazer<br />

menção ao local sagrado do Santuário Nonomiya ou ao ramo que o Genji envia juntamente<br />

com o poema de despedida), o portal (que representa o santuário assim como o limiar entre<br />

a vida e a morte, local que o espírito vaga) e as vestes de Rokujô (figurino luxuoso e<br />

elaborado, mostra a posição social de Rokujô, pertencente a nobreza). Embora muito<br />

simples, esses elementos carregam forte simbologia, como SAKAI (1970, p. 142) afirma:<br />

O interessante é ver que a poesia dramática do nô existe como arte que combina<br />

o auditivo com o visual, mediante um expressivo simbolismo que se realiza<br />

através da música e de um espetáculo rico em imagens visuais altamente<br />

significativas, simbolismo que guarda estreita afinidade com a pintura, a<br />

arquitetura e as artes aplicadas. Embora em geral o palco seja simples e a<br />

cenografia muito sintética, o vestuário e as máscaras exibem surpreendente<br />

riqueza em variedade e perfeição.<br />

Fazendo um contraste entre as duas peças, observamos que Rokujô é retratada em dois<br />

momentos: em Aoi no Ue ela é um espírito vingativo e ciumento, que ataca a rival por


eceber mais atenção do Genji, enquanto em Nonomiya ela é um espírito melancólico e<br />

conformado, que está preso por lembranças ao mundo dos vivos. O clima nostálgico ganha<br />

mais força com o outono e sua combinação com a austeridade do santuário, além da dança,<br />

executada lentamente, ao contrário da dança que representa a luta entre o ogro e o monge,<br />

em Aoi no Ue, que é rápida e agressiva.<br />

Considerações finais<br />

A análise das duas peças nos mostrou o quão rico pode ser o teatro nô, apesar da<br />

simplicidade cenográfica e dos movimentos contidos e pré-determinados. Simplicidade que<br />

carrega forte simbologia, representando elementos importantes que são citados no romance,<br />

mas não são explicados durante a execução das peças. É interessante observar também que<br />

as peças complementam os fatos narrados no romance, trazendo dramaticidade e o<br />

elemento místico que é característico do teatro nô. Ainda, a introdução de poemas e<br />

citações do romance enriquece o texto teatral, ao trabalhar a intertextualidade.<br />

REFERÊNCIAS<br />

COUTINHO, Ângela Maria da Costa e Silva. “Meu amigo, meu parente...” Guimarães<br />

Rosa cena e prosa. In: IV ENECULT, UFBA, 2008.<br />

MURASAKI, Shikibu. O Romance do Genji. Vol. 1. Tradução de Carlos Correia Monteiro<br />

de Oliveira. Lisboa: Relógio D’Água, 2008.<br />

SAKAI, Kazuya. O Teatro Nô. Revista Afro-Ásia, n.10-11, p.137-157, 1970.<br />

The Noh.com. Disponível em . Acesso em 24 de jul. de 2012.

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