Material didático IV para a disciplina ECO 261 - UFV
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ECO 261 MATERIAL DIDÁTICO IV Prof. José Maria Alves da Silva DER-UFV 2013 0
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<strong>ECO</strong> <strong>261</strong><br />
MATERIAL DIDÁTICO <strong>IV</strong><br />
Prof. José Maria Alves da Silva<br />
DER-<strong>UFV</strong><br />
2013<br />
0
MALTHUS E RICARDO<br />
“O produto da terra ⎯ tudo o que é retirado de sua superfície pelo emprego conjunto do<br />
trabalho, das máquinas e do capital ⎯ se divide entre três classes da sociedade, a saber: o<br />
proprietário da terra, o dono do capital necessário <strong>para</strong> o seu cultivo e os trabalhadores que<br />
entram com o trabalho <strong>para</strong> o cultivo da terra [...] Determinar as leis que regulam essa<br />
distribuição é o principal problema da Economia Política”. 1<br />
Nesta epígrafe que dá início ao livro “Principles of Political Economy and Taxation”, revela-se<br />
uma primeira diferença entre Adam Smith e David Ricardo. Segundo o primeiro, como bem o<br />
indica o título de sua obra prima, o objeto central da economia política era a investigar a natureza<br />
e as causas da riqueza das nações. Portanto, sua ênfase era sobre os fatores que determinam o<br />
crescimento do produto. A ênfase de Ricardo, como mostra a passagem acima, é sobre a<br />
distribuição desse produto entre as três classes sociais clássicas: trabalhadores, capitalistas e<br />
proprietários de terra.<br />
Outras diferenças entre ambos dizem respeito a estilos literários e métodos científicos.<br />
Como bem mostra Simonsen (1994), Smith construiu suas teorias em contato com a história<br />
concreta dos países, influenciado pelos empiristas britânicos desde John Locke, que estavam<br />
mais preocupados em alinhavar observações extraídas da realidade do que construir grandes<br />
edifícios dedutivos a partir de poucas premissas, como foi o caso de Ricardo, pelo que é<br />
considerado o primeiro economista a utilizar rigorosamente o método lógico dedutivo na<br />
construção de um modelo abstrato sobre o funcionamento do capitalismo, e dele deduzir todas<br />
suas implicações lógicas.<br />
Pelas diferenças de método e estilo, diferentemente da “Riqueza das Nações”, que é um<br />
livro fácil de ler, os “Princíples of Political Economy and Taxation” de Ricardo é um livro árido,<br />
como disse Simonsen, que só pode ser bem entendido em leitura acompanhada de lápis e papel.<br />
Entre Smith e Ricardo há também notáveis diferenças de ordem pessoal e estilos de vida.<br />
Enquanto Smith foi basicamente um filósofo e acadêmico, oriundo da pequena burguesia<br />
escocesa, David Ricardo (1772 – 1823) era filho de um rico capitalista inglês de origem judaica,<br />
que angariou fortuna na bolsa de valores de Londres. Ainda muito jovem, ele seguiu os passos do<br />
pai, logrando, segundo consta, ainda mais sucesso que ele, razão pela qual se tornou um homem<br />
1 Ricardo, D. Principles of Political Economy and Taxation. São Paulo: Abril, 1985 (coleção “Os Economistas”), p.<br />
39.<br />
1
muito rico antes dos 30 anos de idade. Aos 27 anos leu “A Riqueza das Nações” e desde então,<br />
até sua morte, passou o tempo estudando e escrevendo sobre questões de Economia Política,<br />
enquanto aumentava a sua fortuna na atividade especulativa.<br />
Ricardo e seu contemporâneo Thomas Malthus (1766 – 1834), viveram numa época<br />
politicamente turbulenta, marcada pelas revoluções francesa e industrial 2 . No entanto, embora os<br />
pensamentos de ambos em economia política apresentem vários pontos em comum, numa série<br />
de questões, em outras revelam grandes diferenças. Por isso, e pela intensa controvérsia escrita<br />
que mantiveram, a obra de Ricardo não pode ser bem examinada sem recorrer a Malthus, a<br />
começar do fato de que a teoria da população do segundo constitui um dos alicerces do sistema<br />
teórico do primeiro. Por outro lado, uma análise da longa controvérsia que mantiveram sobre<br />
sobre a estabilidade do capitalismo, é interessante não só <strong>para</strong> dar os contornos definitivos do<br />
pensamento ricardiano como também <strong>para</strong> antecipar questões que foram retomadas e<br />
aprofundadas por outros grandes pensadores, como Marx e Keynes.<br />
1. A Teoria da População<br />
Thomas Malthus foi um clérigo da igreja anglicana, fato relativamente comum entre os filhos<br />
dos ingleses cultos e abastados. Darwin também havia sido encaminhado <strong>para</strong> a carreira<br />
2 Na medida em que implicava na expansão conjunta de indústrias de bens de consumo e bens de capital, os<br />
primórdios da revolução industrial apresentaram, ao mesmo tempo, alta atividade fabril e vertiginoso crescimento da<br />
população urbana, acompanhados de grandes sacrifícios <strong>para</strong> a classe trabalhadora: marginalização, precarização das<br />
condições de trabalho e de moradia, perda de identidade e autonomia de artesãos e agricultores, que passaram a ter<br />
de conviver com processos de trabalho ditados pela mecanização e a <strong>disciplina</strong> das fábricas. A diferença entre os<br />
membros da classe trabalhadora e os escravos passou a ser apenas uma questão de grau. Enquanto os escravos se<br />
obrigavam a servir seus donos em tempo integral, os operários das fábricas eram obrigados a servir seus patrões<br />
“apenas” cerca de dezesseis horas por dia, de segunda a sábado. Isso levou a muitas revoltas operárias que foram<br />
reprimidas severamente pelo governo, com enforcamentos e deportações. O Estado, como bem previa Smith,<br />
assumiu rapidamente posição favorável aos donos de fábrica. Enquanto o poder econômico passava <strong>para</strong> as mãos<br />
dos capitalistas, as rédeas do poder político se mantinham firmes nas mãos da tradicional classe dos landlords que<br />
controlava o Parlamento Britânico. Isso, por um lado, implicou em leis favoráveis aos capitalistas industriais, como<br />
a Lei de Conluio de 1799, que proibia a formação de sindicatos de trabalhadores e, por outro lado, em leis<br />
protecionistas <strong>para</strong> os proprietários de terra, como a Lei dos Cereais, que só permitia a importação do trigo se o<br />
preço interno ultrapassasse um teto fixado em nível extremamente elevado.<br />
2
eclesiástica, mas decidiu mudar de rumos quando se aventurou na expedição científica do navio<br />
Beagle.<br />
Malthus ficou celebrizado pela publicação dos “An Essays on the Principles of<br />
Population”, cuja primeira edição foi publicada em 1798, seguida de uma segunda versão<br />
publicada em 1803, mas com tantas alterações que praticamente pode ser considerada outra obra.<br />
O grosso do pensamento de Malthus em economia política está contido nesta e na obra<br />
“Principles of Political Economy Considered with a View to their Practical Application”<br />
publicada em 1820.<br />
Apesar das insalubres condições de vida da classe trabalhadora, as primeiras décadas da<br />
revolução industrial (1780 e 1790) registraram significativo declínio da taxa de mortalidade,<br />
acompanhada por aumento também significativo da taxa de natalidade, implicando numa taxa de<br />
crescimento populacional sem precedentes na história inglesa. Mas, curiosamente, isso parece ter<br />
passado despercebido por Malthus, que, conforme informa Blaug (1986) 3 , elaborou sua teoria da<br />
população sem estar consciente de viver numa época de intenso crescimento populacional,<br />
conforme veio mostrar o primeiro censo inglês divulgado apenas três anos após a primeira edição<br />
do “Essays”.<br />
Thomas Malthus, que era filho do aristocrático proprietário de terras, Daniel Malthus,<br />
não negou sua tradição, vindo a tornar-se proeminente porta voz e membro ativo da velha aliança<br />
entre o clero e os landdlords. Conforme mostra Heilbroner (1996), o pai de Thomas, partilhava<br />
uma crença inspirada pelas idéias de Adam Smith, segundo a qual uma grande população era<br />
fator favorável ao progresso econômico dos países. 4 De fato, segundo o que está escrito na<br />
“Riqueza Nações” quanto maior o tamanho do mercado, maior o espaço <strong>para</strong> a ampliação da<br />
divisão do trabalho e, consequentemente, <strong>para</strong> o crescimento da produtividade. Segue-se daí a<br />
idéia de que o crescimento populacional é um pré-requisito ou co-requisito do crescimento<br />
econômico. É por essas e outras que Smith, entrou <strong>para</strong> os anais da história do pensamento<br />
econômico como divulgador de uma visão otimista sobre o futuro da humanidade, enquanto que<br />
Malthus e Ricardo, por razões diversas, como veremos, ficaram mais conhecidos como<br />
descortinadores de uma perspectiva sombria e fatalista do capitalismo.<br />
3 Blaug, M. Theory Ecomic in Retrospect. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.<br />
4 Heilbroner, R. “A História do Pensamento Econômico”. São Paulo: Nova Cultural, 1996.<br />
3
Ao escrever o “Essays”, Malthus tinha por objetivos tanto convencer o próprio pai, com<br />
sólida argumentação, quanto rebater argumentos de Condorcet, Godwin, Owen, entre outros<br />
intelectuais humanistas que acreditavam na política como meio de desenvolvimento social 5 .<br />
Contra eles, Malthus vai lançar a tese determinista segundo a qual a riqueza de poucos tanto<br />
quanto a pobreza de muitos são decorrências naturais que não podem ser amenizadas<br />
politicamente, muito pelo contrário 6 .<br />
A teoria da população se inspira num fato natural, a princípio válido <strong>para</strong> todas as<br />
espécies vivas, segundo a qual as condições de sobrevivência e reprodução são determinadas<br />
pelo meio ambiente. Quando uma espécie encontra condições ambientais propícias sua<br />
população tende a aumentar, e vice-versa. Por sua vez, a taxa de crescimento populacional<br />
depende da combinação de outras duas taxas: a taxa de natalidade e de mortalidade. Entretanto,<br />
<strong>para</strong> condições ambientais dadas, quanto a território, água e fatores climáticos, as populações<br />
tendem <strong>para</strong> um nível de equilíbrio estacionário, ou seja, <strong>para</strong> uma taxa de crescimento<br />
populacional igual a zero. Abaixo desse nível de equilíbrio, a taxa de natalidade excede a taxa de<br />
mortalidade, e vice-versa. Mas, isso pode se dar a um tamanho populacional igual a zero, como<br />
é o caso das espécies que foram extintas e todas as que estão em rota de extinção. 7 .<br />
Ora, o homem é uma espécie animal e como tal também deve estar sujeito a essa lei da<br />
natureza. A diferença é que, diferentemente das outras espécies não-racionais, a espécie humana<br />
desenvolveu uma habilidade pró-ativa, tornando-se capaz de explorar a natureza <strong>para</strong> “produzir”<br />
meios de subsistência, por meio do trabalho e da técnica e de gerar conhecimentos capazes de<br />
alterar as taxas de mortalidade e natalidade. No entanto, também na espécie humana os instintos<br />
naturais da procriação são dominantes, de modo que essa habilidade só pode servir, no máximo,<br />
<strong>para</strong> aumentar o número possível de equilíbrio do tamanho da população humana.<br />
Segundo Malthus, esse nível vai ser atingido inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde<br />
por força de uma lei segundo a qual a população tende a crescer em progressão geométrica,<br />
5 Marie Jean Antoine Nicolas Caritat, marquês de Condorcet (1743 – 1794), filósofo e matemático francês; William<br />
Godwin (1756 – 1836), jornalista, filósofo político e romancista inglês, Robert Owen (1771 – 1858), industrial galês<br />
que se tornou reformista social e foi um dos mais eminentes representantes do que Marx chamou de ‘socialismo<br />
utópico’.<br />
6 É por isso que, como informa Heilbroner, op. cit., o escritor e ensaísta escocês Thomas Carlyle passou a chamar a<br />
economia de ciência “sinistra” e William Godwin chamou Malthus de “fabricante de reacionários”.<br />
7 Segundo a teoria evolucionária de Darwin, as espécies estão em competição umas com as outras, pela<br />
sobrevivência, razão pela qual elas são forçadas a evoluir morfologicamente de acordo com a regra da seleção<br />
natural baseada na “sobrevivência do mais apto”. As espécies bem sucedidas são aquelas de sobrevida mais longa.<br />
4
enquanto que a produção agrícola só pode crescer em progressão aritmética. Essa lei<br />
simplesmente reflete o fato que as pessoas podem se reproduzir, mas a terra não, ou, dito de<br />
outra forma, a população pode crescer em função positiva de seu próprio tamanho, mas a<br />
quantidade de terras cultivadas não 8 .<br />
O argumento pode ser ilustrado por um modelo matemático bastante simples. Quando<br />
uma variável (Y) cresce no tempo em progressão aritmética e outra (X) cresce em progressão<br />
geométrica, a relação entre as respectivas séries no plano (Y, X) apresentará um padrão de<br />
comportamento típico de uma função semi-logarítmica do tipo:<br />
Y = α + βlogX (1)<br />
Sendo Y a produção de alimentos, e X a população humana, a equação (1) expressará a lei<br />
malthusiana.<br />
No entanto, deve-se levar em conta que há limites <strong>para</strong> o crescimento em progressão<br />
geométrica da população. Pode-se imaginar um nível de salário real compatível com uma taxa de<br />
crescimento populacional igual a zero, ou seja, com um estado estacionário da população. Este,<br />
que doravante será chamado de salário mínimo de subsistência é o nível salarial condizente com<br />
uma combinação tal de taxas de natalidade e mortalidade da classe trabalhadora compatível com<br />
uma relação de igualdade entre as taxas de natalidade e mortalidade da população em geral.<br />
Acima desse nível, a população cresce a uma taxa constante, e vice-versa. Denotando a taxa de<br />
salário real por w, formalmente isso pode ser expresso como:<br />
<br />
<br />
(2),<br />
8 Uma série é uma sequência de n termos aj, com j variando de 1 a n, ou seja, a1, a2, a3 ... an. Uma progressão<br />
aritmética (PA) é uma série na qual a diferença entre um termo e seu anterior é uma constante. Essa constante<br />
costuma ser definida como a “razão” da progressão. Designando essa razão por r, tem-se que aj+1 = aj + r. A partir<br />
daí é fácil concluir que, conhecendo-se o termo inicial (a1), a razão (r) e o número de termos (n), qualquer termo<br />
genérico de uma PA pode ser determinado pela fórmula an = a1 + (n – 1)r. A constante r é dita ser a razão da<br />
progressão. A diferença entre a progressão geométricas (PG) e a progressão aritmética é que, na PG a diferença<br />
entre dois termos contíguos não é uma constante, mas sim um múltiplo do primeiro, tal que aj+1 – aj = raj. O que é<br />
constante agora é a variação percentual dos termos contíguos e não sua diferença absoluta. A fórmula<br />
correspondente <strong>para</strong> a determinação de qualquer termo genérico na será então dada por an = a1(1 + r) n-1 . Assim, duas<br />
séries que começam pelo mesmo termo inicial e evoluem pela mesma razão r poderão ter somente dois termos<br />
iguais: o primeiro e o segundo. Seja por exemplo, a1 = 1 e r = 1. Numa PA teríamos a sequência 1, 2, 3, 4, 5 ...,<br />
enquanto que na PG os termos correspondentes, pela ordem, seriam 1, 2, 4, 8, 16 ... Assim, uma PG descreve o<br />
comportamento de uma variável que apresenta taxa de crescimento constante no tempo, na PA os termos são<br />
crescentes em valor absoluto, mas a taxa de crescimento taxa de crescimento da variável representada é decrescente.<br />
5
em que w denota a taxa de salário real corrente e a taxa de salário mínimo de subsistência.<br />
As equações (1) e (2) sintetizam a essência da teoria da população de Malthus: o<br />
crescimento populacional em excesso da produção de alimentos tenderá, mais cedo ou mais<br />
tarde, a levar os salários até o nível mínimo de subsistência. Nesse nível, a população <strong>para</strong>ria de<br />
crescer, mesmo que toda a produção agrícola fosse entregue aos trabalhadores, pela eliminação<br />
de todo lucro e de toda a renda da terra. Segue-se que, conforme representado na Figura 1, um<br />
nível populacional acima ou igual a X * seria algo absolutamente impossível.<br />
Y<br />
<br />
Figura 1<br />
Segue daí uma conclusão fatal: o crescimento populacional acabará sendo <strong>para</strong>lisado, de um jeito<br />
ou de outro. Malthus classificava em dois tipos os “freios” que entrariam ou poderiam entrar em<br />
ação <strong>para</strong> fazer isso: os freios positivos e os preventivos. Os primeiros são os que atuam sobre a<br />
taxa de mortalidade, e têm a ver com a miséria e os vícios humanos. Os últimos são os que atuam<br />
sobre a taxa de natalidade. Incluso nestes estão também vícios humanos como a promiscuidade<br />
sexual, mas os mais importantes são os freios de ordem moral ou de restrição moral, que Malthus<br />
incluíam nas suas pregações em prol da abstinência sexual, prolongamento da idade de<br />
casamentos, etc. No entanto, como bom clérigo, ele condenava medidas de controle da<br />
natalidade por meios artificiais, práticas ‘também incluídas na categoria dos vícios.<br />
X *<br />
Os meios de subsistência eram considerados como o “freio mor”, por trás de todos os<br />
outros. O argumento é que se os salários ficassem muito acima do nível de subsistência, a<br />
condição econômica mais folgada aumentaria a compulsão sexual do “populacho” com<br />
conseqüências expansivas sobre a taxa de natalidade, e vice-versa. O aumento (diminuição) da<br />
6<br />
X<br />
α + βlogX<br />
X
taxa de natalidade, tudo o mais constante, induziria o crescimento da oferta de trabalho, pelo<br />
aumento do número de candidatos a empregos. Os salários tenderiam então a cair, e essa queda<br />
poderia ir abaixo do nível de subsistência. Nesse caso, freios preventivos entrariam naturalmente<br />
em ação <strong>para</strong> frear a taxa de natalidade, na medida em que a fome do estômago acabasse também<br />
inibindo o apetite sexual e as próprias dificuldades de renda e emprego levassem os membros da<br />
classe trabalhadora a adiar casamentos. Por outro lado, com salários abaixo do nível de<br />
subsistência, entrariam em ação os freios positivos suscitados pela condição miserável do povo:<br />
aumento de doenças provocadas pela desnutrição, pragas, assassinatos, etc. Segue daí o vaticínio<br />
sombrio, segundo o qual, na tendência de longo prazo, os salários convergem <strong>para</strong> o nível de<br />
subsistência. Essa é a razão pela qual este era visto como o freio mor do crescimento<br />
populacional.<br />
Em contraste com Smith, que via o crescimento populacional como fator de prosperidade,<br />
Malthus via as coisas de forma oposta. Para ele, melhorias de padrões de vida seriam indícios de<br />
ação dos freios preventivos virtuosos associados à restrição moral, e vice-versa. Nessa<br />
perspectiva, as diferenças econômicas entre as pessoas são determinada fundamentalmente pelas<br />
diferenças de nível moral. Os pobres são tidos como os principais responsáveis pelo seu próprio<br />
infortúnio 9 .<br />
Resultam daí posições totalmente contrárias a qualquer tipo de política pública<br />
assistencialista ou previdenciária. Se vivo estivesse hoje e vivesse no Brasil não há dúvida de que<br />
Malthus estaria engrossando as fileiras dos que atacam o sistema previdenciário brasileiro. Ele<br />
foi o progenitor de um pensamento comum entre os liberais de extrema direita segundo a qual a<br />
melhor coisa que se pode fazer <strong>para</strong> reduzir ou mesmo eliminar a pobreza é evitar qualquer tipo<br />
de ajuda aos pobres.<br />
“Há uma queixa geral entre os proprietários de manufaturas de que os altos salários<br />
empobrecem todos os seus operários, mas é difícil admitir que estes homens não poupariam uma<br />
parte de seus altos salários <strong>para</strong> o futuro sustento de seus filhos, em vez de gastá-la em bebedeira<br />
e esbanjamento, se eles não confiassem na assistência paroquial <strong>para</strong> sustentá-los em caso de<br />
imprevistos. É que o pobre empregado das manufaturas vê essa assistência como um motivo pelo<br />
qual ele pode gastar todo o salário que ganha e se divertir enquanto lhe pode parecer evidente, a<br />
partir do número de filhos que, pela falência de alguma grande manufatura, imediatamente ele<br />
contará com o auxílio paroquial, quando, talvez, os salários ganhos nesta fábrica, enquanto ela<br />
funcionava, estivessem suficientemente acima do preço do trabalho comum do país e lhe tivessem<br />
9 Malthus considerava que os operários chefes de família eram descuidados e lhes faltava o sentido de parcimônia.<br />
Pintava um quadro bastante preconceituoso destes quando dizia que “mesmo quando eles têm a oportunidade de<br />
economizar, raramente o fazem; pelo contrário, tudo o que ganham, além de suas necessidades do momento, é<br />
gasto, de modo geral, nos bares”.<br />
7
permitido poupar o bastante <strong>para</strong> seus sustento até que pudesse encontrar um outro meio <strong>para</strong> o<br />
seu trabalho. [...] O grau de prosperidade do povo não pode senão diminuir, quando um dos<br />
mais fortes obstáculos ao ócio e ao desperdício é então removido e quando os homens são levados<br />
a casar com pouca ou nenhuma perspectiva de poder sustentar uma família com independência<br />
[...] As leis dos pobres da Inglaterra, sem dúvida, foram instituídas com o mais humanitário<br />
propósito, mas há um grande motivo <strong>para</strong> crer que não tiveram sucesso em sua intenção. Essas<br />
leis, certamente, aliviaram alguns casos de miséria muito extrema que poderiam ocorrer em<br />
outras circunstâncias; entretanto, a situação dos pobres que são sustentados pelos auxílios<br />
paroquiais, considerada em todas as suas particularidades, está muito longe de ser livre da<br />
miséria”. Malthus op. cit. p. 300-301.<br />
Não foi Darwin estabeleceu que ficou conhecido como “darwinismo social”; antes o<br />
contrário, tomando contato com a obra de Malthus é que Darwin obteve importantes insights<br />
<strong>para</strong> sua teoria evolucionária das espécies. Portanto não foi Darwin que inspirou Malthus, foi<br />
Malthus que inspirou Darwin.<br />
O “darwinismo social” é uma corrente de adeptos e descendentes diretos do pensamento<br />
malthusiano acima expresso. O principal membro dessa corrente é o filósofo e sociólogo<br />
britânico Herbert Spencer (1820 – 1903). Foi ele e não Darwin, como muitos pensam, que criou<br />
a expressão “sobrevivência do mais apto”, <strong>para</strong> designar o fundamento de um processo evolutivo<br />
de “seleção natural”, segundo o qual as espécies ou indivíduos mais adaptados ao meio ambiente<br />
tinham mais chances de sobreviver e transmitir seus fatores de sucesso aos descendentes. Se no<br />
mundo de liberdade natural em que todas as demais espécies animais essa é uma lei de<br />
sobrevivência e permanência das espécies, o mesmo deveria ocorrer no mundo social dos<br />
homens.<br />
No mundo animal, as espécies em desvantagem diminuem e desaparecem, enquanto que<br />
as populações das espécies mais bem adaptadas aumentam e evoluem. Não há lugar <strong>para</strong><br />
indivíduos que apresentem qualquer tipo de inaptidão. Segundo a analogia biológica dos<br />
sociólogos seguidores de Spencer, na sociedade humana os pobres seriam indivíduos menos<br />
aptos, mas que, por ética, caridade, ou sentimentos morais acabam sendo alvo de filantropias e<br />
ajudas humanitárias. Com isso, os pobres de hoje recebem a ajuda necessária <strong>para</strong> continuar<br />
sendo pobres e transmitir essa “herança maldita” aos descendentes, <strong>para</strong> a formação dos pobres<br />
de amanhã.<br />
É mais ou menos com base nesse tipo de raciocínio que Spencer e outros condenavam as<br />
políticas sociais protecionistas. Segundo eles boas condições de educação, <strong>para</strong> o ensino das<br />
ciências e das profissões, tanto quanto <strong>para</strong> a formação do caráter, era tudo o que seria, a<br />
princípio, necessário <strong>para</strong> o desenvolvimento econômico e <strong>para</strong> a redução da pobreza. Em termos<br />
8
populares, esse tipo de pensamento costuma aparecer em máximas do tipo: “o melhor amigo do<br />
homem não é o que lhe dá o peixe, mas o que o ensina a pescar”, entre outros pensamentos que<br />
sugerem que o pobre é o grande culpado pela sua pobreza.<br />
Malthus adotou a teoria do valor baseada no custo da produção, segundo a qual o preço<br />
natural era a soma dos salários, aluguéis e juros quando cada um destes custos permitia que seus<br />
beneficiários recebessem a taxa de retorno normal sobre seu trabalho, sua terra e seu capital, mas<br />
diferentemente de Smith, que via o lucro como uma dedução do produto do trabalho, Malthus<br />
argumentava que os salários, os aluguéis e os lucros eram todos, igualmente legítimos. Se os três<br />
fatores produtivos são igualmente necessários, argumentava ele, não se pode, a priori,<br />
discriminar a favor ou contra um e outro. Havendo liberdade e concorrência, cada um vai receber<br />
o preço que o mercado determinar 10 .<br />
Segue-se daí uma espécie de pregação moral segundo a qual a condição econômica de<br />
cada um é determinada por uma espécie de “loteria da vida humana”. Alguns foram agraciados<br />
com a terra, outros com o capital e a grande massa só com a força de trabalho.<br />
“não se pode deduzir que o trabalhador ou lavrador que, na loteria da vida humana, não tenha<br />
tirado o prêmio da terra, seja alvo de qualquer injustiça por ser obrigado a dar algo em troca do<br />
uso de algo que pertence a outro”. Malthus, citado por Hunt 11 , p. 101.<br />
Tal pregação moral era especialmente reconfortante <strong>para</strong> os lordes proprietários de terra<br />
que não precisavam trabalhar nem correr riscos empresariais, <strong>para</strong> viverem luxuriosamente,<br />
razão pela qual eram estigmatizados pelos fisiocratas e por Adam Smith como classe ociosa que<br />
“colhia o que não plantava”.<br />
A discussão até agora não levou em conta os efeitos positivos da acumulação de capital e<br />
do desenvolvimento tecnológico sobre a produtividade agropecuária. Em termos da Figura 1, o<br />
efeito disso seria deslocar a curva no sentido ascendente, elevando a taxa de crescimento da<br />
oferta alimentar, <strong>para</strong> qualquer dada taxa de crescimento da população. No entanto, Malthus<br />
achava que isso somente permitiria retardar a convergência <strong>para</strong> o estado estacionário. É aqui<br />
que, ele e Ricardo sofreram o maior desmentido dos fatos, por não terem de modo algum<br />
antecipado o vulto do progresso técnico na agricultura que acabou ocorrendo na história da<br />
humanidade, a ponto de ficar conhecido como a “revolução verde”. Quase duzentos anos já se<br />
10 A partir daí não é difícil, como fez Malthus, argumentar que rendas da terra elevadas não são um mal ou causa de<br />
ruína de outras classes, mas sim sinais de prosperidade geral.<br />
11 Hunt, E. K. História do Pensamento Econômico, Rio de Janeiro: Campus, 1989.<br />
9
passaram desde as mortes de Ricardo e Malthus sem que seus vaticínios pessimistas dessem<br />
algum sinal de vida. Se a qualidade das teorias fosse avaliada pela sua capacidade preditiva, há<br />
muito tempo as teorias de ambos já teriam sido sacrificadas no altar da ciência. Eles ficariam<br />
absolutamente pasmos se, de onde estivessem, pudessem saber agora que menos de 3% da<br />
população no campo consegue gerar um excedente de alimentos suficiente <strong>para</strong> sustentar os 97%<br />
restantes e que, a fome que ainda existe no mundo não se deve absolutamente a nada que possa<br />
ser indício de falta de alimentos ou produção agropecuária insuficiente.<br />
2. Rendimentos Decrescentes e Renda Diferencial da Terr<br />
À dupla Ricardo e Malthus cabe também os créditos principais pelo surgimento da teoria<br />
da renda diferencial da terra, que não só veio ocupar um papel destacado no sistema clássico de<br />
economia política como também exerceu enorme influência no sistema teórico neoclássico-<br />
marginalista que veio depois.<br />
Para melhor entender seus contornos específicos e sua relevância <strong>para</strong> o sistema<br />
ricardiano, que examinaremos na seção seguinte, é interessante fazer um breve retrospecto sobre<br />
a situação política da Inglaterra no início do século 19. Isso é importante também <strong>para</strong> mostrar as<br />
diferenças de perspectiva de Smith, Ricardo e Malthus.<br />
Como vimos, Smith tinha em mente um sistema de liberdade natural no qual a própria<br />
concorrência no interior das três classes (trabalhadores, capitalistas, proprietários de terra) se<br />
incumbiria de fazer com que os valores dos recursos possuídos por cada uma delas (salários,<br />
lucros e rents) convergissem <strong>para</strong> níveis “naturais” condizentes com uma distribuição<br />
harmoniosa da renda, salvaguardada a existência de instituições públicas suficientes <strong>para</strong><br />
assegurar condições necessárias ao livre jogo das forças de mercado, algo sobre o qual, no<br />
entanto, o próprio Smith se mostrava céptico.<br />
Ricardo viu um cenário pouco propenso à harmonia. Quarenta anos depois da publicação<br />
da “Riqueza das Nações”, a Inglaterra presenciou um clima de disputa de poder entre uma classe<br />
capitalista emergente, e a tradicional classe dos landlords. Mas qual era a razão do latente<br />
conflito entre ambas as classes? Como diz Heilbroner op. cit. não era o fato dos “novos ricos”<br />
capitalistas estarem ganhando dinheiro que enraivecia os proprietários de terras, mas sim suas<br />
queixas contra o preço alto dos alimentos. Nos quarenta anos que se passaram entre a publicação<br />
10
de “Riqueza das Nações” e os “Principles” de Ricardo, a Inglaterra que tradicionalmente era<br />
uma nação exportadora de grãos, passou a se tornar progressivamente incapaz de atender<br />
adequadamente sua demanda interna de alimentos. A elevação da taxa de crescimento de uma<br />
população cada vez mais concentrada em espaços urbanos, devido à industrialização crescente,<br />
por um lado, e a necessidade de ter de deslocar a fronteira agrícola na direção de terras menos<br />
propícias ao cultivo, por outro lado, implicavam numa tendência ascendente dos preços dos<br />
cereais, como trigo e milho, de suma importância <strong>para</strong> a cesta alimentar dos trabalhadores.<br />
A elevação dos preços dos alimentos era bem vinda <strong>para</strong> os proprietários de terra, porque<br />
impactava favoravelmente o valor dos arrendamentos, mostrando que havia algo de muito<br />
verdadeiro no pensamento de Smith sobre a relação entre os preços dos alimentos e a renda da<br />
terra, segundo o qual, o “alimento não é caro porque a renda da terra é alta, mas a renda da terra<br />
é alta porque o alimento é caro”. Certamente, os landlords sabiam que seus ganhos dependiam<br />
mais do preço do que da produtividade 12 .<br />
Para os capitalistas, entretanto, quanto mais alto o preço da cesta básica dos<br />
trabalhadores, mais altos os salários que teriam de pagar. Por outro lado, preços muito altos de<br />
produtos agrícolas na “porteira” da fazenda comprimem as margens de lucros dos comerciantes<br />
atacadistas, daí porque esse segmento da classe de capitalista sempre tem grandes incentivos a<br />
negociar com o estrangeiro quando os preços atingem níveis muito elevados no mercado interno.<br />
Estavam assim postas as razões <strong>para</strong> o conflito de interesses entre os tradicionais proprietários de<br />
terra e os capitalistas industriais e comerciais.<br />
O poder econômico estava passando <strong>para</strong> a mão dos capitalistas, mas o poder político<br />
conservava-se nas mãos dos landlords, que ainda dominavam o parlamento britânico 13 . Nesse<br />
embate de forças, Ricardo vai ficar do lado dos capitalistas e Malthus do lado dos proprietários<br />
de terra.<br />
Em 1815 Malthus publicou um panfleto sob o título “An Inquiry into the Nature and<br />
Causes of Rent”, com a qual Ricardo tomou contato logo após sua publicação e três semanas<br />
12 Por simples exercícios com os diagramas marshallianos da oferta e da procura pode-se mostrar que o<br />
deslocamento da demanda de bens de baixa elasticidade-preço, como os alimentos, provoca elevação das receitas do<br />
setor tão maior quanto mais baixa for a elasticidade-preço da oferta ao passo que o deslocamento da oferta, seja por<br />
elevação de produtividade ou importações provoca redução de receitas tão menor quanto maior a elasticidade-preço<br />
da oferta.<br />
13 E assim conseguiam fazer passar leis protecionistas de seus interesses, como a Lei dos Cerais, mediante a qual se<br />
impunham impostos variáveis sobre a importação de grãos e dispositivos que permitiam sua importação somente<br />
depois que os preços internos ultrapassassem um teto extremamente elevado.<br />
11
depois publicou “Essays on the Influence of a Low Price of Corn on the Profits of Stock” 14 . A<br />
teoria da renda diferencial da terra aflorou nesses dois trabalhos e em outros dois trabalhos<br />
publicados no mesmo ano 15 .<br />
Essa teoria assenta-se na proposição de que sucessivas doses homogêneas de capital-<br />
trabalho aplicadas ao cultivo em determinado lote de terra aumentam o produto, porém a<br />
incrementos cada vez menores e, tudo o mais constante, à medida que aumenta a área cultivada<br />
total, o produto da terra aumenta também em quantidades cada vez menores. 16 Isso é o que ficou<br />
conhecido na literatura econômica como “lei dos rendimentos decrescentes”. Ricardo e outros<br />
contemporâneos acreditavam que essa lei aplicava-se somente à agricultura. O apelo em prol da<br />
sua validade era retirado da observação fatual que o crescimento da população exige a expansão<br />
da fronteira agrícola na direção de solos de fertilidades cada vez menores ou pior localizados, em<br />
relação aos centros de consumo 17 .<br />
Para ilustrar, consideremos a tabela abaixo na qual está representada uma situação<br />
hipotética envolvendo a produção de um determinado tipo de cereal em cinco áreas de terra de<br />
igual tamanho e graus diferentes de fertilidade do solo. A área A está em primeiro e a área E está<br />
em último lugar nesse ranking de qualidade do solo.<br />
Tabela 1.<br />
K/L<br />
PRODUTO TOTAL PRODUTO MARGINAL<br />
A B C D E A B C D E<br />
1 180 170 160 150 140 180 170 160 150 140<br />
2 350 330 310 290 270 170 160 150 140 130<br />
3 510 480 450 420 390 160 150 140 130 120<br />
4 660 620 580 540 500 150 140 130 120 110<br />
5 800 750 700 650 600 140 130 120 110 100<br />
14 A influência de Smith sob Malthus se faz notar até na escolha do título, que só difere de Smith pela colocação de<br />
Rent no lugar de Wealth of Nations.<br />
16 Os fatores de produção são três: terra, trabalho e capital, mas <strong>para</strong> simplificar o argumento, o capital e o trabalho<br />
são tratados como se constituíssem um único insumo variável, combinados entre si numa proporção fixa.<br />
17 Essa lei também encontra respaldo no fato de que solos de diferentes graus de fertilidade são, em qualquer tempo<br />
e território, cultivados simultaneamente. Se fosse possível extrair produto adicional a custos constantes de solos de<br />
dada fertilidade, porque se iria recorrer a solos inferiores?<br />
12
A leitura das linhas indica as diferenças de produtividade das cinco áreas. Os números da<br />
primeira linha indicam que uma dose de capital-trabalho gera um valor de produto igual a 180 na<br />
área A, 170 na área B, e assim sucessivamente até chegar a 140, na pior área E. Esses valores<br />
incluem todos os custos de trabalho e capital mais o lucro e a renda da terra. Ricardo definia o<br />
produto líquido como o valor do produto total menos os salários e a reposição do capital usado<br />
na produção (depreciação). Desse modo, o produto líquido é todo o valor excedente criado pelo<br />
trabalho, que poderia ser destinado aos produtores rurais capitalistas, como lucro, ou aos<br />
proprietários da terra, como rent. Supunha-se também que a concorrência tenderia a equalizar as<br />
taxas de lucro, de modo que o que se chama de lucro na verdade não passa de uma remuneração<br />
normal do capital, podendo, portanto, ser considerado como um “custo de capital”, como será<br />
subentendido doravante.<br />
A leitura das colunas mostra como varia o valor do produto líquido obtenível mediante<br />
aplicação de sucessivas doses de capital-trabalho, listadas na primeira coluna (K/L). Os números<br />
indicam que uma dose de capital-trabalho aplicada no lote A gera um valor de produto líquido<br />
igual a 180, duas doses geram 350 e assim, por diante, até chegar a 800, com cinco doses de<br />
capital-trabalho. A diminuição sucessiva dos números, tanto na horizontal (linhas) quando na<br />
vertical (colunas) reflete assim a lei dos rendimentos decrescentes 18 .<br />
A partir daí, vamos supor que o custo de uma dose de capital-trabalho seja 140. Nesse<br />
caso, o custo total varia linearmente de 140, <strong>para</strong> uma dose, até 700, <strong>para</strong> cinco doses. Assim,<br />
com estas cinco doses de capital-trabalho, a área A gera um produto líquido igual a 800, a um<br />
custo total de 700. A diferença é a rent igual a 100. É fácil mostrar que esse é o nível de<br />
produção mais eficiente economicamente. Se mais uma dose de capital-trabalho fosse aplicada<br />
nesta área, o produto líquido aumentaria num valor igual a 130. Uma vez que o custo unitário é<br />
140, se esta sexta dose fosse aplicada, a rent do proprietário da área A, seria reduzida de 100 <strong>para</strong><br />
90. Segue-se, portanto, que o nível de atividade que gera a maior soma de renda total dos fatores<br />
nesta área condiz com um emprego de cinco doses de capital-trabalho.<br />
Pelo mesmo raciocínio conclui-se que o nível de atividade racional na área B é<br />
condizente com o emprego de quatro doses de capital-trabalho, e assim por diante, conforme<br />
indicado pelas demais células sombreadas da tabela. Os números nas colunas de A a E, do lado<br />
18 Por questão de simplicidade, supôs-se que a produtividade diminui linearmente, de dez em dez, tanto na<br />
horizontal quanto na vertical. Isso facilita a exposição sem comprometer as conclusões.<br />
13
direito ilustram a mesma coisa de maneira diferente. Ali estão representadas simplesmente as<br />
variações discretas dos números listados nas colunas de A a E do lado esquerdo. O primeiro<br />
número na coluna A é a diferença entre o valor do produto líquido da área A correspondente a<br />
uma dose de capital-trabalho e um valor de produto igual a zero de uma terra absolutamente<br />
ociosa. A segunda corresponde à diferença entre o valor do produto líquido obtenível com duas<br />
doses de capital-trabalho (350) e o obtenível com apenas uma dose (180), ou seja, (170 = 350 –<br />
180), e assim, por diante. Os números desta e das colunas adjacentes, portanto, mostram como<br />
varia o valor do produto líquido quando sucessivas doses de capital-trabalho são acrescentadas,<br />
em cada área. A quinta dose de capital-trabalho no lote A acrescenta um valor de produto<br />
exatamente igual ao seu custo (140). Isso é o que, pelas razões já mencionadas, caracteriza o<br />
nível de utilização racional, ou o que, em termos neoclássicos, costuma chamar-se de “ótimo”.<br />
Essa é a lógica pela qual o produto líquido só pode ir no máximo até 620 na área B e assim por<br />
diante, até atingir o valor mínimo de 140 na área menos fértil de todas, a área E. Note-se que esta<br />
só é cultivada porque consegue gerar um valor de produto que pelo menos cobre o custo real de<br />
produção correspondente ao emprego de uma dose de capital-trabalho. Esta área, portanto, não<br />
gera nenhuma rent.<br />
Poder-se-ia dizer que, em cada lote de terra, o nível de produção ótimo é o que maximiza<br />
o excedente (rent mais lucro) ou produto líquido (produto total menos salários e reposição de<br />
capital). No entanto, sob o suposto da equalização da taxa de lucro pela concorrência entre os<br />
capitalistas, num determinado nível normal mínimo aceitável, o que acaba sendo maximizado é a<br />
rent. A idéia de Ricardo é que a terra só gera renda quando se torna escassa. Não haveria<br />
nenhuma rent se a terra fértil fosse abundante em relação às necessidades alimentares. Somente<br />
quando é necessário aumentar a produção de alimentos, mediante extensão da fronteira agrícola<br />
<strong>para</strong> terras de qualidade inferior, é que a rent começa a surgir nas terras de qualidade superior,<br />
devido à competição entre os fazendeiros capitalistas pelas terras de melhor qualidade.<br />
“Se todas as terras tivessem as mesmas características, se fossem ilimitadas na quantidade e<br />
uniformes na qualidade, seu uso nada custaria, a não ser que possuíssem particulares vantagens<br />
de localização. Portanto, somente porque a terra não é ilimitada em sua quantidade nem<br />
uniforme em sua qualidade, e porque, com o crescimento da população, terras de qualidade<br />
inferior ou desvantajosamente situadas são postas em cultivo, a renda é paga por seu uso.<br />
Quando, com o desenvolvimento da sociedade, as terras de fertilidade secundária são utilizadas<br />
<strong>para</strong> cultivo, surge imediatamente renda sobre as de primeira qualidade: a magnitude de tal<br />
renda dependerá da diferença de qualidade daquelas duas faixas de terra. Quando uma terra de<br />
terceira qualidade começa a ser cultivada, imediatamente aparece renda na de segunda,<br />
regulando-se, como no caso anterior. Ao mesmo tempo, aumenta a renda da terra de primeira<br />
qualidade, pois esta deve ser sempre superior à renda da segunda. De acordo com a diferença<br />
14
entre as produções obtidas numa e noutra, com uma dada quantidade de capital e trabalho. A<br />
cada avanço do crescimento da população, que obrigará o país recorrer à terra de pior qualidade<br />
<strong>para</strong> aumentar a oferta de alimentos, aumentará a renda de todas as terras mais férteis”. Ricardo,<br />
op. cit. p. 66-67.<br />
No conjunto dos cinco lotes, o valor do produto total líquido é 2300 = (800 + 620 + 450 +<br />
290 + 140) e o custo total das quinze doses de capital-trabalho empregadas é 2100 = (5 x 140). A<br />
diferença é a rent gerada igual a 200. Cinquenta por cento desta vem da área A (100), trinta por<br />
cento da área B (60), quinze por cento da área C (30) e 5% da área D (10).<br />
Podemos interpretar de maneira diferente a tabela, considerando as doses de capital-<br />
trabalho como fator fixo e a terra como fator variável. Nesse caso, em vez de uma leitura<br />
vertical, pelas colunas, como feito acima, fazemos uma leitura horizontal. Esta mostra as<br />
contribuições <strong>para</strong> o produto da utilização de sucessivos lotes iguais de terra <strong>para</strong> uma dada<br />
quantidade de capital-trabalho. Assim, os números da primeira linha nas colunas de A a E, do<br />
lado esquerdo, indicam que uma dose de capital trabalho aplicada no lote A gera um produto<br />
líquido igual de valor igual a 180, uma aplicada no lote B gera um produto igual a 170, e assim<br />
por diante. Verifica-se então que cinco doses de capital-trabalho, numa área de terra<br />
compreendida pela soma de cinco lotes iguais (A, B, C, D e E), geram um valor do produto igual<br />
a 800, sendo 180 no primeiro lote, 170 no segundo, 160 no terceiro, 150 no quarto e 140 no<br />
quinto. Na hipótese de que o custo de cada dose de capital-trabalho é 140, o primeiro lote gera 40<br />
de rent, determinada como resíduo pela diferença entre o valor do produto (180) e o custo da<br />
unidade de capital-trabalho (140); o segundo lote gera 30, o terceiro 20, o quarto 10 e o quinto<br />
não gera nenhuma rent. Na área total compreendida pelos cinco lotes, o custo o valor total do<br />
produto será 800 = (180 + 170 + 160 + 150 + 140), o custo total de capital-trabalho será 700 =<br />
(140 x 5), e a diferença dá o total da rent 100 = (40 + 30 + 20 + 10).<br />
Podemos assim interpretar a coluna A do lado esquerdo da tabela como um modo de<br />
produção no qual a terra é usada intensivamente até o ponto de exaustão de toda a sua<br />
potencialidade econômica, o que, no presente exemplo, se dará com a aplicação de cinco doses<br />
de capital-trabalho. 19 Já a primeira linha representa o caso de um modo de produção baseado no<br />
uso extensivo da terra, no qual a mesma quantidade de capital-trabalho é aplicada a uma área<br />
cinco vezes maior, ou seja, cinco doses de capital-trabalho aplicadas em cinco lotes de áreas<br />
19 Isto define o que, em termos neoclássicos, costuma ser chamada de margem intensiva de cultivo ou produtividade<br />
marginal do fator capital-trabalho.<br />
15
iguais. Assim, essas cinco doses de capital-trabalho alcançarão o ponto de exaustão da<br />
potencialidade econômica desta área na ocupação do lote E, o qual adicionará o valor de 140 ao<br />
produto, que é exatamente igual ao custo de cada uma das cinco doses fixas de capital-trabalho 20 .<br />
O exemplo ilustra um fato inquestionável. Terras diferentes, em termos de fertilidade do<br />
solo ou de localização, geram rendas diferentes. Mas, fundamentalmente essa diferença provém<br />
do fato de que os preços de mercado recebidos por todos os produtores rurais, assim como os<br />
preços pagos pelos fatores de capital e trabalho, são os mesmos, <strong>para</strong> qualquer terra cultivada.<br />
No entanto, eles são determinados pelos custos de produção na “pior” terra, ou seja, na terra que<br />
não gera nenhuma rent. Com efeito, no raciocínio ricardiano, o que vai determinar a ocupação<br />
das terras é a demanda por alimentos. Por sua vez, a demanda alimentar depende do tamanho da<br />
população e é inelástica a preço. Dessa forma, o crescimento populacional força o deslocamento<br />
da fronteira agrícola, levando à ocupação de terras de pior qualidade e/ou mais distantes. Para<br />
que estas terras sejam ocupadas produtivamente é necessário que o preço a ser pago ao produtor<br />
seja pelo menos igual ao custo de produção, em termos de capital e trabalho.<br />
Imaginando que cada um dos lotes de terra de A a E, na nossa ilustração, fossem de<br />
proprietários diferentes, teríamos de ver o proprietário da área A como um privilegiado, o que se<br />
apropriaria da maior rent, simplesmente por, como diz Ricardo, ter direitos de propriedade sobre<br />
o “uso das forças originais e indestrutíveis do solo”. Por outro lado, veríamos o proprietário da<br />
área E, como alguém que está na condição de ter de ceder gratuitamente sua terra <strong>para</strong> o cultivo<br />
com apenas uma dose de capital-trabalho. Longe da condição privilegiada do proprietário A, este<br />
teria de trabalhar <strong>para</strong> viver. Naturalmente se é <strong>para</strong> ceder a terra gratuitamente, é melhor que ele<br />
o faça a si próprio. Assim, empregando seu próprio trabalho e seu próprio capital, ele seria<br />
simplesmente remunerado pelo valor de mercado desses fatores. Tal situação parece difícil, mas,<br />
na verdade, é até confortável considerando o que ocorre no segmento da agricultura familiar<br />
onde muitos pequenos proprietários têm de aceitar remunerações até abaixo dos preços de<br />
20 O lote E demarca assim a margem extensiva de cultivo e sua contribuição <strong>para</strong> o produto define a produtividade<br />
marginal da terra, em termos neoclássicos. Pode-se demonstrar, nesse ponto, a rent da terra é igual a esta<br />
produtividade. Para isso, suponha que retirássemos de uso um dos cinco lotes de terra, digamos o lote B. O produto<br />
total irá cair então em 620. As quatro doses liberadas de capital-trabalho podem agora ser empregadas nas margens<br />
intensivas A, C, D e E onde gerariam um valor de produto igual a 520 = (130 x 4), donde se conclui que o produto<br />
marginal do lote B é 100 = (620 – 520). Isso é maior que o valor da rent do lote B calculado anteriormente. Mas essa<br />
diferença se deve ao fato de estarmos trabalhando com variações discretas, envolvendo grandes números. Pode ser<br />
provado que, <strong>para</strong> uma função de produção contínua e diferenciável, o valor da produtividade marginal, medida pela<br />
derivada primeira, será exatamente igual à renda da terra.<br />
16
mercado, <strong>para</strong> continuar mantendo a tradição de seus antepassados. Essa é situação, que John<br />
Kenneth Galbraith caracterizou como de “auto-exploração”, na passagem abaixo transcrita, não é<br />
incomum no meio rural brasileiro. 21<br />
“Nada regula as horas de trabalho do empreendedor individual, e nada regula a intensidade de<br />
seu esforço. Ele pode assim ficar em condições de compensar a maior produtividade técnica do<br />
trabalhador mais bem equipado do setor organizado, porém regulamentado da economia,<br />
trabalhando mais horas, com mais intensidade [...] ao fazê-lo, ele reduz sua remuneração por<br />
unidade de esforço eficaz e útil. Colocando as coisas de uma maneira diferente, ele tem quase<br />
toda a liberdade, ao contrário do que ocorre na organização, de explorar sua própria força de<br />
trabalho, pois sua força de trabalho é ele mesmo. O termo exploração, devemos salientar, é usado<br />
aqui em seu sentido preciso, <strong>para</strong> descrever uma situação na qual o indivíduo é induzido, por sua<br />
falta relativa de poder econômico, de trabalhar por uma remuneração menor do que a geralmente<br />
concedida pela economia em função do esforço empregado [...] A auto-exploração é<br />
extremamente importante <strong>para</strong> a sobrevivência da pequena empresa. E é vital na agricultura”.<br />
Galbraith op. cit. p. 71 (grifo nosso).<br />
As implicações da teoria da renda diferencial da terra no sistema Ricardiano podem ser<br />
bem entendidas mediante exercícios bastante simples, a partir dos números da Tabela 1. Para<br />
isso, vamos considerá-los agora como se fossem representativos da área agricultável total de um<br />
país. Nesse caso, a área A representaria o conjunto das propriedades com as terras de qualidade<br />
superior, a área B o conjunto das propriedades de segunda categoria e assim por diante até a área<br />
E, representando o conjunto das terras de pior qualidade. À medida que a demanda alimentar<br />
aumenta, impulsionada pelo crescimento populacional, o aumento da produção agrícola induzido<br />
se processa a custos crescentes, por duas razões. Primeiro pela ação da lei dos rendimentos<br />
decrescentes nas margens intensivas de cultivo das áreas ocupadas, e segundo pelo deslocamento<br />
da fronteira agrícola no sentido da ocupação de terras de menor qualidade (menos férteis e/ou<br />
pior localizadas). Conforme ilustrado na Tabela 1, nas margens intensivas e na margem<br />
extensiva de cultivo, o custo de produção vai ser maior do que o das áreas “intra-marginais”.<br />
Mas, o aumento da produção só será realizado se o valor do produto alcançado “nas margens”<br />
for pelo menos igual ao custo, o que só será possível se o nível de preços dos itens cultivados<br />
aumentar numa proporção correspondente. Portanto, é, de fato, a elevação de preços induzida<br />
pelo excesso de demanda sobre a oferta pré-existente que viabiliza o aumento da produção a ser<br />
alcançado pelo deslocamento das margens intensivas e da margem extensiva, no sentido da<br />
ocupação das terras de rent zero.<br />
Para deixar as coisas tão claro quanto possível, vamos realizar outro exercício. Para isso,<br />
vamos modificar a situação retratada na Tabela 1, de forma a representar uma elevação nos<br />
21 Galbraith, J. K. A economia e o interesse público. São Paulo: Pioneira, 1988.<br />
17
valores dos produtos. Os proprietários de terra bem sabiam que isso não se daria por elevação da<br />
produtividade devido a inovações tecnológicas. Na verdade, eles estavam bem cientes de que tais<br />
elevações de produtividade aumentariam a oferta, o que, <strong>para</strong> mercadorias de demanda<br />
inelástica, como é o caso dos bens alimentares, levaria a uma redução de preços. Há assim<br />
ganhos e perdas decorrentes de dois efeitos sobre a receita: o efeito do aumento da produção e o<br />
da queda dos preços. O resultado final depende das combinações de elasticidade de preços da<br />
demanda e da oferta, mas no caso de itens tão inelásticos quanto alimentos essenciais, a exemplo<br />
de milho e trigo, é bem provável que o efeito líquido seja negativo. Nesse caso, qualquer<br />
mudança técnica favorável ao aumento da produtividade teria o efeito de reduzir os ganhos dos<br />
proprietários de terra. Havia assim bons motivos <strong>para</strong> eles adotarem atitudes conservadoras.<br />
Isto posto, vamos admitir então que os números da Tabela 2, mais altos que os<br />
apresentados na Tabela 1, sejam devidos a elevação dos preços 22 . Na hipótese de que o custo de<br />
cada dose de capital-trabalho continuasse em 140, as margens intensivas de cultivo nos lotes de<br />
A a E seriam agora estendidas, passando de cinco <strong>para</strong> seis doses no lote A, de quatro <strong>para</strong> cinco,<br />
no lote, A e assim por diante, conforme pode ser constatado por análise com<strong>para</strong>tiva das células<br />
hachuradas das Tabelas 1 e 2. Pela Tabela 2 verifica-se também, que sob essas novas condições,<br />
a extensão do cultivo <strong>para</strong> um sexto lote F, o qual representa áreas antes não aproveitáveis, mas<br />
que, nas novas condições de preço, tornam viável a aplicação de uma dose de capital-trabalho.<br />
Tabela 2.<br />
K/L<br />
PRODUTO TOTAL PRODUTO MARGINAL<br />
A B C D E F A B C D E F<br />
1 194 184 173 162 151 140 194 184 173 162 151 140<br />
2 378 356 335 313 292 270 184 173 162 151 140 130<br />
3 551 518 486 454 421 389 173 162 151 140 130 119<br />
4 713 670 626 583 540 497 162 151 140 130 119 108<br />
5 864 810 756 702 648 594 151 140 130 119 108 97<br />
6 1004 940 875 810 745 680 140 130 119 108 97 86<br />
22 Em relação aos da Tabela 1, os números da tabela 2 foram obtidos a partir de uma simulação de preços agrícolas<br />
cerca de 8% mais altos.<br />
18
A partir de análise com<strong>para</strong>tiva dos números de ambas as tabelas podemos verificar que a<br />
rent total na situação representada na Tabela 2 (situação 2) é 93% mais elevada do que na<br />
situação representada na Tabela 1 (situação 1). Na situação 1, o valor do produto total gerado na<br />
soma dos cinco lotes de terra é 2300, a partir da aplicação de quinze doses de capital-trabalho, ao<br />
custo total de 2100. A diferença é uma rent total igual a 200. Na situação 2, o valor do produto<br />
total gerado agora na soma de seis lotes de terra passa <strong>para</strong> 3326, do qual 1004 é gerado no lote<br />
A, 810 no lote B, 626 no lote C, 454 no lote D, 292 no lote E e 140 no lote F. O custo total dos<br />
fatores capital e trabalho passa <strong>para</strong> 2940, sendo de 840 no lote A (correspondente à aplicação de<br />
seis doses no valor de 140 cada), 700 no lote B (cinco doses), 560 no lote C (quatro doses), 420<br />
no lote D (três doses), 280 no lote E (duas doses) e 140 no lote F (uma dose). As diferenças dão<br />
as rents geradas em cada lote, a saber, 164 no primeiro (1004 – 840), 110 no segundo (810 –<br />
700), 66 no terceiro (626 – 560), 34 no quarto (454 – 420), 12 no quinto (292 – 280) e 0 no sexto<br />
(140 – 140). A rent total na situação 2, portanto, passa <strong>para</strong> 386 = (164 + 110 + 66 + 34 + 12 +<br />
0), que corresponde exatamente à diferença entre o valor do produto total gerado no conjunto dos<br />
seis lotes (3326) menos o custo total das doses de capital-trabalho ali aplicadas (2940).<br />
Com<strong>para</strong>ndo a situação 2 com a situação 1, verifica-se que enquanto o valor do produto<br />
total aumenta em cerca de 44,6% e o custo total dos fatores capital e trabalho, que aqui<br />
representa a renda apropriada pelos produtores rurais capitalistas e trabalhadores agrícolas,<br />
aumenta em 40%, a rent total aumenta em 93%. O exemplo mostra assim que, em face de<br />
rendimentos decrescentes dos fatores de produção aplicados na agricultura, a pressão sobre os<br />
preços de alimentos, decorrente do crescimento populacional, é especialmente vantajosa <strong>para</strong> os<br />
proprietários de terra, haja vista que sua participação na distribuição total da renda aumenta em<br />
relação às outras classes 23 . Na medida em que a expansão da demanda força a utilização de terras<br />
anteriormente consideradas imprópria <strong>para</strong> cultivo, os preços agrícolas têm de subir o suficiente<br />
<strong>para</strong> cobrir o maior custo de produção destas terras, relativamente aos das terras de qualidade<br />
superior. Mas, como o preço de mercado dos produtos é o mesmo, não importa de onde ele<br />
venha, isso dá uma vantagem “diferencial” <strong>para</strong> os proprietários mais bem agraciados pelo fator<br />
terra. Esse é o ponto essencial da teoria da renda diferencial da terra.<br />
23 Entre a situação 2 e a situação 1, a parcela da rent no valor do produto sobe de 9% <strong>para</strong> 12% e a parcela conjunta<br />
dos produtores rurais e trabalhadores agrícolas, expressa aqui como custo total do capital-trabalho, cai de 91% <strong>para</strong><br />
88%.<br />
19
O exercício da Tabela 2 mostra que uma elevação dos preços de cerca de 8% é suficiente<br />
<strong>para</strong> elevar a rent diferencial da terra de qualidade superior de 110, na situação 1, <strong>para</strong> 164, na<br />
situação 2, em relação à terra que não gera nenhuma rent.<br />
A partir da teoria da renda diferencial da terra Ricardo, há quase duzentos anos, já havia<br />
vislumbrado algo que o homem do campo brasileiro demonstra ainda não saber, quando<br />
ingenuamente apóia tudo o que vem contribuir <strong>para</strong> a expansão da oferta agropecuária, como é o<br />
caso do “novo” Código Florestal brasileiro. De acordo com Ricardo e teorias estruturalistas bem<br />
mais recentes, essencialmente o que determina a renda da terra é o preço do que é nela cultivado.<br />
Assim, o que favorece os produtores rurais, como um todo, é a expansão da demanda. A<br />
expansão da oferta tende a exercer efeito contrário. Essa é a razão pela qual ainda hoje, depois de<br />
tantas revoluções tecnológicas que aumentaram a produtividade e a eficiência da produção<br />
agrícola e depois de tantos desmatamentos feitos <strong>para</strong> expandir a fronteira agrícola e legislações<br />
de natureza semelhante à do “novo” Código Florestal brasileiro, com negativos impactos<br />
ambientais incomensuráveis, o homem que efetivamente trabalha no campo ainda se caracteriza<br />
pelo estoicismo. Pequenos e médios produtores rurais vivem a duras penas, tendo de se esforçar<br />
cada vez mais só <strong>para</strong> se manter na mesma situação.<br />
Há fortes evidências em favor da tese de que tudo o que contribui <strong>para</strong> elevar<br />
incessantemente a oferta agropecuária vai no sentido de atender mais interesses de outros grupos<br />
socialmente muito distantes dos pequenos e médios produtores rurais. Estes, de fato, só servem<br />
como pretexto, como procuramos mostrar em outro trabalho do qual, <strong>para</strong> ilustrar, destacamos as<br />
seguintes passagens 24 .<br />
“Esse Código Florestal [...] é a repetição de uma velha e surrada prática política que só consegue<br />
vingar em contextos sociais atrasados. Ele irá contribuir <strong>para</strong> piorar a sorte dos que efetivamente<br />
trabalham e enfrentam os riscos da atividade agropecuária, em condições adversas. Não será um<br />
pouco mais de área desmatável, em pequenas e médias propriedades, que irá minorar o quadro<br />
de dificuldade das famílias que labutam no meio rural brasileiro. Ao contrário, [...] tudo o que<br />
contribui <strong>para</strong> aumentar a oferta agropecuária tem efeito nulo ou desprezível sobre a renda<br />
agregada gerada no meio rural, servindo mais <strong>para</strong> aumentar os ganhos em outros setores da<br />
economia. O que impulsiona a renda no meio rural é a expansão da demanda [...] Aplica-se<br />
novamente o velho truque de grupos direitistas que se valem de pretextos sociais <strong>para</strong> justificar<br />
ações governamentais que lhes são favoráveis [....] manter os juros na estratosfera <strong>para</strong> isentar o<br />
povo do imposto inflacionário; conceder bilhões a bancos em apuros <strong>para</strong> salvar economias de<br />
viúvas e órfãos; perdoar dívidas de indústrias que se deram mal com especulações malfeitas <strong>para</strong><br />
manter o emprego de chefes de família e assim por diante. A história se repete com esse<br />
malfadado Código Florestal. Os pretextos agora são a salvação dos pequenos agricultores e a<br />
segurança alimentar do trabalhador brasileiro”.<br />
24 Silva, J. M. A. Novo Código não serve ao campo, mas a outros setores da economia. Jornal OTempo, Belo<br />
Horizonte, 23/07/2011.<br />
20
No exercício realizado com os dados fictícios da Tabela 2 pressupôs-se uma elevação do<br />
preço dos alimentos, tudo o mais constante. Assim foi feito só <strong>para</strong> melhor ilustrar a teoria da<br />
renda diferencial da terra, mas, naturalmente, não condiz com a teoria ricardiana, a qual previa<br />
corretamente que pelo menos uma variável não poderia ficar constante após tal evento. Esta é a<br />
taxa de salário, por uma razão muito simples. Quando o preço do trabalho está no seu nível<br />
natural, condizente com algum padrão de subsistência dos trabalhadores, a elevação do preço da<br />
comida teria que necessariamente ser compensada por uma elevação correspondente da taxa de<br />
salário. Vale dizer, os capitalistas empregadores de mão-de-obra teriam de obrigatoriamente<br />
pagar um salário correspondentemente mais elevado <strong>para</strong> manter a força de trabalho necessária.<br />
Isto sugere que enquanto os proprietários de terra seriam beneficiados pela elevação do preço dos<br />
alimentos, os negócios dos capitalistas tenderiam a ser prejudicados, e, por tabela, a classe<br />
trabalhadora, conforme será mostrado na seção seguinte.<br />
3. Teoria da distribuição e Convergência <strong>para</strong> o Estado Estacionário<br />
A Tabela 3 abaixo difere da Tabela 2 apenas por apresentar o produto médio em vez do<br />
produto total nas colunas de A a F do lado esquerdo. Os valores do produto médio (PME) são<br />
obtidos por mera divisão dos valores dos produtos totais pelas respectivas doses de capital (K/L)<br />
da primeira coluna. Verifica-se que os valores de PME, como o de produto marginal (PMG) são<br />
decrescentes, mas o PME é sempre maior que o PMG 25 .<br />
Tabela 3.<br />
K/L<br />
PRODUTO MÉDIO PRODUTO MARGINAL<br />
A B C D E F A B C D E F<br />
1 194 184 173 162 151 140 194 184 173 162 151 140<br />
2 189 178 168 157 146 135 184 173 162 151 140 130<br />
3 184 173 162 151 140 130 173 162 151 140 130 119<br />
4 178 168 157 146 135 124 162 151 140 130 119 108<br />
5 173 162 151 140 130 119 151 140 130 119 108 97<br />
25 Se uma função absoluta Y = f(X) é continuamente decrescente, então a função média (Y/X) também o será. Uma<br />
vez que Y cai continuamente os valores (Y/X) sempre serão maiores que os valores (∆Y/∆X).<br />
21
6 167 157 146 135 124 113 140 130 119 108 97 86<br />
Imaginando os números da Tabela 3 como pontos discretos de funções contínuas, é fácil<br />
perceber que, tanto os valores de cada linha de A a F quanto as médias desses valores são<br />
consistentes com as linhas retas PME e PMA representadas na Figura 2. A partir daí, vamos<br />
supor que, num dado sistema econômico, o grau de utilização da terra seja condizente com o<br />
emprego de L doses de capital trabalho relacionadas no eixo horizontal desta figura.<br />
A<br />
B C<br />
RENT<br />
D E<br />
LUCROS<br />
w N<br />
O<br />
SALÁRIOS<br />
L<br />
PMG<br />
Figura 2<br />
A projeção do ponto E até o ponto C, sobre a linha do PME, serve <strong>para</strong> determinar<br />
graficamente o valor do produto total como a área OLCB. Como vimos anteriormente, o ponto L<br />
será consistente com a igualdade entre o custo de cada dose de capital-trabalho envolvida e o<br />
22<br />
PME<br />
K/L
valor do produto marginal, determinado pelo ponto E sobre a linha da PMG. Segue-se, portanto,<br />
que a área OLED representa graficamente o valor da soma de salários e lucros. A partir daí,<br />
representando a taxa de salários por w, teríamos que a área OLNw daria o total dos salários, a<br />
área wNED daria o total dos lucros e a área DECB daria o total da rent. Uma vez que o valor do<br />
produto total pode também ser representado pela integral da função PMG, a área OLED, que é a<br />
integral definida da PMG no intervalo de O a L, é identicamente igual ao valor do produto total,<br />
de modo que a área OLEA é igual à área OLCB e, portanto, o retângulo DECB é igual ao<br />
triângulo DEA. Verificamos assim que a linha PME não é necessária <strong>para</strong> a representação gráfica<br />
da distribuição da renda entre as três classes sociais envolvidas. Tiramos partido disso, na<br />
construção da Figura 3, <strong>para</strong> a exposição que se segue da teoria ricardiana da distribuição.<br />
A<br />
B C<br />
w’ Z’<br />
N<br />
w<br />
Z<br />
O<br />
L<br />
Figura 3<br />
23<br />
L’<br />
PMG<br />
K/L
Com referência à Figura 3, admitamos que, num determinado sistema econômico, o grau<br />
de utilização da terra agricultável coincidisse com o emprego de L doses de capital-trabalho.<br />
Nesse caso, a área OLCA representaria o valor do produto total e a área ABC representaria o<br />
valor total da rent. Denotando a taxa de salário mínima de subsistência por w, a área OLNw<br />
representaria a renda total dos trabalhadores condizente com uma taxa de crescimento da<br />
população igual a zero e a área wNCB representaria o total do lucro correspondente a esta<br />
situação. Admitamos, entretanto que, ao nível L de emprego de capital-trabalho, a taxa de<br />
salários estivesse num nível mais elevado, tal como o representado por w’. Segundo Ricardo e<br />
Malthus, essa “folga salarial” da classe trabalhadora deveria implicar numa taxa positiva de<br />
crescimento populacional que estaria forçando a expansão da fronteira agrícola. Para Ricardo,<br />
isso era sintoma de prosperidade devida a acumulação de capital. Quando os capitalistas lucram<br />
e investem, eles criam demanda por mão-de-obra. É isso que acaba fazendo os salários ficarem<br />
acima do nível mínimo de subsistência. Entretanto, atrás disso vinha o aumento da população.<br />
Enquanto os capitalistas continuassem tendo lucro e investindo, o processo de acumulação de<br />
capital e criação de empregos estaria em marcha, e o nível dos salários estaria acima do nível<br />
mínimo de subsistência. Mas, a expansão da fronteira agrícola, na direção de terras de menor<br />
qualidade, forçada pela necessidade de atender a demanda alimentar de uma população<br />
crescente, tenderia a elevar a participação dos proprietários de terra na distribuição da renda<br />
entre as três classes sociais. A conseqüência disso seria a corrosão dos lucros devido a<br />
necessidade dos capitalistas terem de ter pagar salários mais altos, por causa do encarecimento<br />
da cesta alimentar dos trabalhadores. Inevitavelmente chegaria um tempo em que o processo de<br />
acumulação de capital seria <strong>para</strong>lisado pela insuficiência de lucros. Esse era o ponto de chegada<br />
<strong>para</strong> o estado estacionário, pois sem acumulação de capital não haveria novos empregos e nem<br />
salários acima do nível mínimo de subsistência; a população, portanto, não teria como crescer<br />
mais e a humanidade sofreria as conseqüências trágicas do acionamento dos freios malthusianos<br />
positivos.<br />
Traduzindo em termos da Figura 3, isso quer dizer que a partir do ponto C, haveria um<br />
movimento sobre a linha da PMG no sentido descendente, representando a tendência decrescente<br />
da taxa de lucro concomitantemente com a acumulação de capital, aumento do emprego de mão-<br />
de-obra e o deslocamento da fronteira agrícola na direção de terras de produtividade mais baixa.<br />
O ponto Z representa a chegada <strong>para</strong> uma situação na qual a fonte de lucro teria secado<br />
24
completamente. No entanto, antes de chegar aí, haveria alguma sobrevida <strong>para</strong> o processo de<br />
acumulação de capital, caso a taxa de salários caísse abaixo de w’. Por falta de acumulação<br />
capital a geração de empregos cessaria, de modo que a taxa de salários poderia mesmo vir a cair<br />
abaixo do mínimo de subsistência, fazendo retornar a atratividade do investimento capitalista.<br />
Com isso haveria uma recuperação do nível de emprego, revertendo a tendência de queda dos<br />
salários, e assim por diante.<br />
Mas, a Figura 3 não é muito propícia <strong>para</strong> descrever essa dinâmica. Com ela o máximo<br />
que podemos dizer é que, antes de chegar ao ponto Z, a acumulação de capital seria <strong>para</strong>lisada<br />
por insuficiência de lucros e os salários estariam num nível condizente com crescimento<br />
populacional zero. Vale dizer, a economia teria chegado finalmente ao “estado estacionário”.<br />
Para descrever a dinâmica de convergência <strong>para</strong> o estado estacionário, sugerida pela<br />
teoria ricardiana, o diagrama da Figura 4 é mais apropriado.<br />
Y<br />
O<br />
<br />
P<br />
X<br />
R<br />
P’<br />
R’<br />
Figura 4<br />
Z<br />
X ’<br />
No eixo vertical está grafado o produto menos rent (Y), ou seja, a soma de salários e<br />
lucros, enquanto que, no eixo vertical, está grafado o tamanho da população (X), a qual se supõe<br />
ser estritamente proporcional ao tamanho da força de trabalho. Vamos supor que ao nível<br />
populacional OX, a taxa de salários esteja no nível de subsistência, definida pela relação entre a<br />
folha de salários total e o tamanho da população , de modo que /. Nesse ponto<br />
o lucro total é dado por PR. Se esse for um nível de lucro acima do mínimo aceitável, como se<br />
25<br />
L<br />
População
espera ser o caso, quando os salários estão no nível de subsistência, haverá incentivos a mais<br />
investimento. Uma vez que o investimento aqui implica em acumulação de parte do lucro como<br />
capital circulante necessário <strong>para</strong> empregar mais trabalhadores, a demanda de trabalho deverá<br />
aumentar. Esse aumento da demanda eleva o nível dos salários <strong>para</strong> um nível acima de RX. Por<br />
um lado, isso atua no sentido de arrefecer o investimento, na medida em que reduz a taxa de<br />
lucro, e, por outro, no sentido de aumentar a taxa de crescimento da população e da força de<br />
trabalho, na medida em que contribui <strong>para</strong> aumentar a taxa de natalidade, a qual supõe-se ser<br />
uma função diretamente proporcional da diferença entre a taxa de salários corrente e a taxa de<br />
salário de subsistência. Assim, o crescimento da força de trabalho tende a trazer o nível dos<br />
salários de mercado de volta <strong>para</strong> o salário natural, de modo que o nível do lucro tende <strong>para</strong><br />
P’R’. Se esse nível for ainda compatível com uma da taxa de lucro acima da taxa mínima<br />
requerida, isso dará origem a mais investimento. Assim por diante, esse movimento se repente<br />
numa tendência dinâmica convergente <strong>para</strong> o estado estacionário Z 26 .<br />
4. Sobre o Método de Ricardo<br />
Inicialmente as conclusões analíticas acima são extraídas de um modelo simplificado,<br />
também conhecido como “o modelo do cereal”, uma abstração que trata o sistema econômico<br />
como se fosse uma grande fazenda que só produz um único cereal, mediante emprego de capital-<br />
trabalho sob o império da lei dos rendimentos decrescentes 27 . Nesta “grande fazenda” existem<br />
três classes sociais: trabalhadores agrícolas, fazendeiros capitalistas e os proprietários de terra, e<br />
apenas um produto cereal, que é ao mesmo tempo o único bem de consumo, servido como<br />
26 Subjacente à dinâmica de convergência <strong>para</strong> o estado estacionário está a idéia de que enquanto a taxa de lucros<br />
superar um determinado nível mínimo, os capitalistas são induzidos investir. Quanto maior esse nível mínimo, mais<br />
rápido se chega ao estado estacionário. Entretanto, há atenuantes e agravantes. O progresso técnico é um fator<br />
atenuante, na medida em que contribua <strong>para</strong> aumentar a produtividade do trabalho. Mas, por outro lado, os salários<br />
de subsistência também podem aumentar no tempo, caso os trabalhadores incorporem como padrão de vida normal o<br />
padrão mais alto alcançado quando os salários de mercado estavam acima do preço natural do trabalho. Vale dizer, a<br />
taxa de salários de subsistência, a qual condiz com crescimento populacional zero, pode estar também subindo no<br />
tempo até que se atinja o estado estacionário. A acumulação de capital está continuamente elevando ‘preço de<br />
mercado’ do trabalho acima de seu ‘preço natural’; isso induz o crescimento populacional, que leva o salário de<br />
mercado novamente <strong>para</strong> o salário natural. O processo cessa quando o lucro esbarrar no limite do mínimo aceitável.<br />
27 A identificação desse modelo simplificado é devida a Piero Sraffa, como interpretação da linha de raciocínio<br />
contida num trabalho de Ricardo anterior aos “Principles”, o já citado “Essays on the Influence of a Low Price of<br />
Corn on the Profits of Stock” (1815). Sraffa foi editor das obras completas de David Ricardo e o principal<br />
responsável por um movimento teórico do século XX, que ficou conhecido como neo-ricardianismo.<br />
26
alimento, e o único insumo produzido, usado como semente. Considerando como produto líquido<br />
a quantidade de cereal produzido menos a quantidade necessária <strong>para</strong> voltar à terra, como<br />
semente, enquanto que o capital não passa de adiantamento de cereais necessários <strong>para</strong> prover os<br />
meios de subsistência dos trabalhadores, ou seja, é apenas um “fundo de salários”. Nesse caso,<br />
taxa de lucro (r) será aproximada pela expressão:<br />
<br />
100%<br />
<br />
A demanda por cereais é perfeitamente inelástica a preços, uma vez que se trata da única<br />
fonte alimentar, e diretamente proporcional ao tamanho da população, pois quando a força de<br />
trabalho aumenta, mais cereais são necessários <strong>para</strong> alimentar mais bocas, o que só pode ser<br />
conseguido pela extensão da fronteira de cultivo na direção de terras menos férteis, ou por<br />
aplicação de capital-trabalho adicional <strong>para</strong> as terras já em cultivo com retornos decrescentes. A<br />
diferença entre o produto por trabalhador na terra menos fértil e a quantidade de cereal<br />
necessária <strong>para</strong> a subsistência do trabalhador é apropriada pelo fazendeiro capitalista, como<br />
lucro. As forças da competição entre os produtores rurais capitalistas levam a taxa de lucro a um<br />
nível normal, compatível com a taxa de juros mais alguma recompensa pelo risco, o que poderia<br />
ser também interpretado como condizente com o preço natural do “fator capital”. Assim,<br />
enquanto os trabalhadores recebem o preço natural do trabalho, determinado pelas condições de<br />
subsistência da classe, os capitalistas recebem o preço natural do capital, determinado pelas<br />
condições de concorrência entre eles. Enquanto isso, os proprietários de terra se apropriam das<br />
rents determinadas residualmente em função direta das diferenças de qualidade entre as áreas de<br />
cultivo, conforme a discussão feita na seção 2.<br />
Quanto maior a ocupação de terra necessária <strong>para</strong> atender a demanda alimentar de uma<br />
população crescente, menor o produto líquido por trabalhador, devido à lei dos rendimentos<br />
decrescentes. O conseqüente encarecimento dos meios de subsistência dos trabalhadores<br />
aumenta o investimento necessário dos fazendeiros capitalistas, que neste modelo simplificado é<br />
constituído pelos adiantamentos em quantidades de cereais aos trabalhadores. Assim, enquanto<br />
esses investimentos aumentam, a taxa de lucro declina, <strong>para</strong> um dado nível de lucro normal pré-<br />
existente. Mas, uma vez que a taxa de lucro é a variável que fornece o incentivo ao investimento,<br />
estabelece-se uma dinâmica determinada pelo embate de forças em direções contrárias. Por um<br />
27
lado, os capitalistas são compelidos a investir, mas, por outro lado, isso tem por conseqüência a<br />
redução das taxas de lucros. Chega um ponto em que não resta mais nenhuma razão <strong>para</strong><br />
qualquer investimento adicional. O modelo retrata assim uma trajetória dinâmica convergente<br />
<strong>para</strong> um estado estacionário no qual tanto o crescimento da população quanto o processo de<br />
acumulação de capital chega ao fim, conforme mostrado ao final da seção 3.<br />
Ao utilizar conclusões extraídas de um modelo simplificado, <strong>para</strong> fazer proposições<br />
políticas <strong>para</strong> a Inglaterra de sua época, Ricardo tornou-se o primeiro grande economista a<br />
utilizar o método lógico dedutivo “em abstrato”, com finalidades políticas. Sua influência nesse<br />
sentido foi enorme, instaurando nas futuras gerações de economistas, o que Joseph Schumpeter<br />
chamou de ‘vício ricardiano’, ou seja, a mania de fazer recomendações de ordem prática, propor<br />
planos ou estratégias de ação em matéria de política econômica tendo com base nas predições de<br />
modelos teóricos abstratos.<br />
De fato, com uma construção teórica difícil de refutar, devido a sua lógica rigorosa,<br />
Ricardo saia em defesa da classe capitalista emergente, no embate de forças que se travava entre<br />
esta e a tradicional classe dos lordes proprietários de terra. Com a teoria acima discutida, ele<br />
tentava influenciar o governo e o parlamento visando à revogação da Lei dos Cereais, que, como<br />
vimos, protegia os landlords contra a concorrência estrangeira. Segundo as predições do modelo<br />
ricardiano, a proibição de importação de cereais forçava inexoravelmente a expansão da fronteira<br />
agrícola na Grã-Bretanha na direção de terras cada vez menos férteis e distantes, tendo por<br />
conseqüência, a elevação da rent, <strong>para</strong> alegria dos landlords, e a diminuição dos lucros e a<br />
interrupção do crescimento econômico britânico, <strong>para</strong> infortúnio dos capitalistas e trabalhadores.<br />
A liberalização do comércio agrícola seria assim uma medida de ordem prática <strong>para</strong> levar à<br />
redução do preço dos alimentos essenciais, mediante importação de cereais de outros países onde<br />
ainda havia abundância de terras férteis. Isso levaria a uma contenção dos salários e<br />
consequentemente elevação dos lucros, mantendo as oportunidades lucrativas necessárias à<br />
continuidade do processo de acumulação de capital e a industrialização da economia britânica.<br />
Isso não poderia evitar a chegada ao estado estacionário, previsto pelo modelo, mas serviria <strong>para</strong><br />
aumentar o tamanho da estrada e a duração da viagem que leva a ele.<br />
Conforme mostrou Blaug (1999) 28 , a ciência econômica fundada na teoria de Ricardo,<br />
consolidada e difundida pelos “Principles of Political Economy” de John Stuart Mill 29 , que se<br />
28 Blaug, M. Metodologia da Economia. São Paulo: Edusp, 1999.<br />
28
tornou o livro mais utilizado de sua época no ensino da ciência econômica, previa o crescimento<br />
do preço do trigo e dos aluguéis, o declínio da taxa de lucro e a constância dos salários, na<br />
tendência de longo prazo. Como bela demonstração do problema que Schumpeter chamou de<br />
“vício ricardiano”, nenhuma dessas predições se confirmou. As leis do trigo somente foram<br />
revogadas em 1846 e as evidências estatísticas disponíveis nos anos 30 e 40 falsearam todas as<br />
previsões ricardianas. De fato, por força das inovações tecnológicas ocorridas na agricultura, os<br />
preços do trigo caíram em relação ao patamar atingido em 1818, ano de publicação dos<br />
“Principles” de Ricardo. Entre a data da morte de Ricardo em 1823 e a publicação dos<br />
“Principles” de Mill, em 1848, os aluguéis ficaram praticamente congelados e os salários reais<br />
subiram. Mill reconheceu esses fatos e manteve o sistema ricardiano, sem qualificações, apesar<br />
do abismo ente a teoria e os fatos.<br />
5. Ricardo e a Teoria do Valor Trabalho<br />
No início dos “Principles” Ricardo reitera as considerações feitas por Smith sobre os<br />
conceitos de valor de uso e valor de troca. Segundo ele, uma mercadoria só pode ter valor de<br />
troca se antes tiver valor de uso, caso contrário, nem sequer seria levada ao mercado. Atendida<br />
essa condição necessária, o valor de troca provém de duas fontes: a escassez e a quantidade de<br />
trabalho incorporada na produção. Mais adiante, entretanto, ele afirmou que a escassez era<br />
importante <strong>para</strong> o valor de troca especialmente no caso de artigos que não podem ser<br />
reproduzidos livremente, como, por exemplo, obras de arte (quadros, estátuas, etc.), raridades de<br />
colecionadores (selos, moedas antigas, etc.), entre outras coisas cujo valor é largamente<br />
independente da quantidade de trabalho inicialmente utilizada na sua confecção. Aqui se pode<br />
dizer que há uma teoria do valor-utilidade. Mas, <strong>para</strong> ele essas coisas não tinham importância,<br />
sendo vistas como exceções à regra das mercadorias que podiam ser produzidas mediante<br />
emprego de fatores de produção ordinários. Para estas, vale a teoria do valor trabalho. Ricardo<br />
não encarava as excentricidades de alto valor de troca sem trabalho ordinário incorporado como<br />
pedras no seu caminho de busca das leis que governam a distribuição do produto entre as três<br />
classes sociais.<br />
29 Mill, J. S. Princípios de Economia Política, São Paulo: Abril, 1984.<br />
29
A teoria do valor utilidade não contribuía em nada <strong>para</strong> o entendimento dos<br />
determinantes da acumulação de capital. Ao passo que a teoria do valor trabalho fornece uma<br />
explicação dos preços das mercadorias que podem ser produzidas livremente pelo emprego de<br />
capital e trabalho, sob condições dadas de recursos naturais. Por isso, na medida em que se<br />
concentra nos aspectos sociais da produção e da troca de mercadorias, esta se torna uma<br />
autêntica teoria de economia política, diferentemente da teoria do valor-utilidade, que se<br />
restringe aos aspectos individuais e psicológicos da troca.<br />
Na formulação de Ricardo, a teoria do valor trabalho é primeiro apresentada numa versão<br />
simplificada que pressupõe uma relação de proporcionalidade entre os preços das mercadorias e<br />
a quantidade de trabalho incorporada nelas. Posteriormente, ele cuidou de mostrar como esse<br />
princípio simples teria de ser modificado numa variedade de casos especiais, os quais, entretanto,<br />
ele via como ressalvas e não sérias objeções à teoria.<br />
Diversamente de Smith, <strong>para</strong> o qual, como vimos, a teoria do valor trabalho aplicava-se<br />
integralmente apenas numa sociedade primitiva sem capital e sem propriedade da terra, Ricardo<br />
fez questão de generalizá-la <strong>para</strong> toda e qualquer sociedade, inclusive a capitalista. A diferença<br />
entretanto é que nesta a proposição de proporcionalidade entre preços e quantidades de trabalho<br />
incorporadas nas mercadorias tinha de ser revista e qualificada.<br />
Para isso, ele teve primeiro de refutar duas objeções à teoria do valor trabalho levantadas<br />
desde Adam Smith, mas que são invocadas até hoje, daí porque é interessante discuti-las aqui. A<br />
primeira apela <strong>para</strong> o fato de que o trabalho não é uma categoria homogênea. Há trabalhos<br />
manuais que exigem mais ou menos habilidades ou perícia do que outros. Porque os encanadores<br />
geralmente ganham mais por hora de trabalho do que os ajudantes de construção civil? A<br />
diferença de salários entre diferentes categorias de trabalhadores é utilizada assim como apoio<br />
evidente à tese de que, se o trabalho não é uma categoria homogênea, ele não pode servir como<br />
padrão de medida do valor das mercadorias.<br />
Ricardo evidentemente reconhecia que os salários diferem entre diferentes categorias de<br />
trabalhadores em função das habilidades requeridas, mas minimizou a implicação disso <strong>para</strong> a<br />
teoria do valor trabalho, argumentando que a “estrutura geral” dessas habilidades se mantinha no<br />
tempo de forma pouco variável 30 .<br />
30 Há vários tipos de trabalho que não requerem muitas habilidades e há os que requerem certo tempo de<br />
treinamento. Em certas versões da teoria do valor trabalho, como a de Marx, considera-se que o tempo de trabalho<br />
30
“Qualquer que tenha sido a engenhosidade, a habilidade ou o tempo necessário <strong>para</strong> adquirir<br />
certa destreza num tipo de trabalho manual mais do que em outro, tal desigualdade se mantém<br />
aproximadamente a mesma de uma <strong>para</strong> outra geração; ou pelo menos é muito pequena de um<br />
ano <strong>para</strong> outro, e portanto pode afetar muito pouco, em curto prazo, o valor relativo das<br />
mercadorias”. Ricardo op. cit. p. 48.<br />
A segunda objeção é que a teoria do valor trabalho não leva em conta as contribuições <strong>para</strong> a<br />
produtividade dos outros fatores de produção, terra e capital. Na réplica a essa objeção Ricardo<br />
deu talvez sua mais importante contribuição <strong>para</strong> o debate, apresentando um argumento sempre<br />
invocado pelos adeptos dessa teoria. O argumento é que o capital produtivo constituído de<br />
mercadorias: máquinas, ferramentas, estoques de produtos acabados, etc., também é produzido<br />
mediante emprego de trabalho e outras mercadorias, as quais, por sua vez, também são<br />
produzidas pelo trabalho, e assim por diante. Assim, por um raciocínio de regressão no tempo,<br />
chega-se à conclusão que toda a produção não passa de um processo presente e passado de uso e<br />
transformação de recursos naturais por meio de trabalho humano. Mas, os recursos naturais são<br />
como uma dádiva da natureza, “que dão sua contribuição gratuitamente”:<br />
“nada se dá em troca do uso do ar e da água e de quaisquer outros bens naturais existentes em<br />
quantidades ilimitadas”. Ricardo, op. cit. p. 66<br />
.<br />
Segue daí a idéia de que a contribuição que os recursos naturais dão <strong>para</strong> a produtividade nada<br />
acrescenta ao valor de troca. O fato de se pagar renda aos proprietários de recursos naturais (solo,<br />
água, florestas, etc.) não passa de uma forma de apropriação humana daquilo que esses recursos<br />
fazem gratuitamente.<br />
Com as considerações acima, Ricardo não só afasta duas pedras no caminho da teoria do<br />
valor trabalho, como também procura recuperá-la exatamente no ponto em que Adam Smith a<br />
havia abandonado.<br />
Como vimos, Smith dizia que a teoria do valor trabalho aplica-se integralmente apenas a<br />
uma sociedade primitiva em que não há capital e nem propriedade de terra. Fora isso, o valor ou<br />
o preço natural das mercadorias não poderia ser reduzido a quantidades de trabalho, posto que<br />
envolveria uma soma de três parcelas relativas à remuneração do trabalho (salários), do capital<br />
(lucros) e da propriedade da terra (rent).<br />
necessário <strong>para</strong> o treinamento de trabalhadores de maior qualificação deveria ser incorporado ao valor das<br />
mercadorias. Assim, os trabalhos de diferentes qualificações poderiam ser considerados como determinados<br />
múltiplos de trabalho não qualificado.<br />
31
Valendo-se da sua teoria da renda diferencial da terra, Ricardo desconsidera a rent como<br />
parte do custo e, portanto, como elemento na formação do preço natural das mercadorias.<br />
Segundo essa teoria, conforme discutido anteriormente, o preço das commodities agrícolas é<br />
determinado pelo custo de produção na terra de pior qualidade, ou seja, aquela que não gera<br />
nenhuma rent. Portanto, a rent não conta <strong>para</strong> a determinação do preço natural, somente salários<br />
e lucros. Assim, Ricardo safa-se das ambigüidades envolvidas nas considerações de Smith sobre<br />
a equação de preço das três parcelas (p = wn + lk + rt) , discutida no capítulo 3.<br />
A partir daí, o problema consiste em mostrar como os preços naturais, conquanto soma de<br />
salários e lucros, são determinados pelas quantidades de trabalho incorporadas na produção.<br />
Entretanto, esse caminho revelou-se muito tortuoso. Várias dificuldades teóricas surgiram no que<br />
ficou conhecido na literatura como o famoso problema da “transformação de valores em preços”.<br />
Todavia, esta questão, que ainda hoje é objeto de investigações teóricas avançadas, foge ao<br />
escopo desse trabalho.<br />
5. Ricardo versus Malthus<br />
A famosa controvérsia entre Ricardo e Malthus em economia política antecipa uma<br />
questão que consagrou Keynes no desenvolvimento da macroeconomia, qual seja, o princípio da<br />
demanda efetiva, e, a partir daí, a concepção da economia capitalista como um sistema<br />
inerentemente instável, propenso a crises e depressões cíclicas.<br />
No tempo do debate entre Ricardo e Malthus, a história econômica inglesa já havia<br />
registrado vários episódios de depressões econômicas. Uma delas teve início apenas um ano após<br />
a publicação dos “Principles” de Ricardo, em 1818.<br />
Malthus tinha consciência de que as depressões não só podiam acontecer, como de fato<br />
aconteciam, numa economia capitalista; também estava ciente do perigo das sublevações dos<br />
trabalhadores que as crises econômicas poderiam detonar. Por isso é que seu principal objetivo,<br />
ao escrever os “Principles”, era promover o entendimento de tais crises e propor políticas contra<br />
elas. Como veremos, suas recomendações iam ao encontro do interesse da classe dos<br />
proprietários de terra.<br />
Para Malthus, na origem das crises e depressões econômicas estava o excesso geral de<br />
oferta de bens, não como problema conjuntural, mas sim como tendência permanente decorrente<br />
32
da frugalidade natural da classe capitalista. Todas as três classes procuravam gastar sua renda,<br />
mas os capitalistas preferiam gastar seus lucros na compra de mais capital, em vez de consumi-<br />
los. Segundo ele, no processo de crescimento econômico, uma parcela crescente da renda seria<br />
apropriada pelos capitalistas, mas, como estes relutam em gastar seus lucros na compra de bens<br />
de consumo, chega um momento em que haveria uma insuficiência geral da demanda de bens,<br />
em relação à oferta pré-existente. Assim, quanto maior a acumulação de capital e maior a renda<br />
apropriada pelos capitalistas, na forma de lucro, maior tenderia a ser o hiato entre a produção e o<br />
consumo 31 .<br />
É aqui que as classes improdutivas e ociosas, no sentido fisiocrático, mostram sua<br />
utilidade. Se, por um lado, elas não agregam nada ao excedente, como consumidores eles ajudam<br />
a manter girando a roda da economia. Sua importância econômica reside assim no fato de serem<br />
agentes sustentadores da demanda. Nesse quadro, os proprietários de terra têm uma posição de<br />
destaque como consumidores pródigos e empregadores de serviçais improdutivos, e as leis dos<br />
cereais mostravam um lado positivo, na medida em que contribuíam <strong>para</strong> aumentar a renda da<br />
classe.<br />
Para Malthus, além de ser um ganho seguro dos proprietários de terra, sob a Lei dos<br />
Cereais, a rent seria uma variável com tendência crescente e não sujeita a grandes flutuações.<br />
Assim, não haveria motivos <strong>para</strong> que os proprietários de terra fossem frugais, como os<br />
capitalistas, de modo que quanto maior a participação dos landlords na distribuição da renda,<br />
menor o risco de crises econômicas provocadas por insuficiência geral da demanda. Sua posição<br />
favorável à manutenção da Lei dos Cereais, estava assim atrelada tanto ao propósito de frear a<br />
acumulação de capital como de encorajar o consumo improdutivo dos proprietários de terra.<br />
Nesses pontos Ricardo discordava totalmente. Para ele, o sistema capitalista não era<br />
propenso a desequilíbrio entre oferta e procura geral de bens, a não ser transitoriamente, por<br />
força de transformações estruturais nos padrões de preferências e gastos 32 . Sua posição nesse<br />
31 O argumento malthusiano do excesso de poupança é somente uma variedade de teoria do subconsumo, entre<br />
várias outras. Para os socialistas o capitalismo era propenso a crises de subconsumo porque, <strong>para</strong> eles, o crescimento<br />
econômico se faria acompanhar de queda da parcela dos salários na renda total. No modelo Keynes – Hansen, a<br />
estagnação é o resultado das declinantes taxas de retorno do investimento. Mas, no coração de todas essas versões,<br />
está na idéia de que não se pode esperar que o consumo e o investimento aumentem indefinidamente à taxas<br />
proporcionais de crescimento constantes.<br />
32 Ricardo sabia que a década anterior ao aparecimento da terceira edição de seus “Principles” tinha testemunhado<br />
condições econômicas de depressão geral e de desemprego generalizado. A explicação que ele deu <strong>para</strong> o fenômeno<br />
era parecida com a que seria dada nos 150 anos que se seguiram, pelos apologistas do capitalismo: “Um grande país<br />
industrial está particularmente exposto a reveses e contingências temporárias, provocadas pelo deslocamento do<br />
33
sentido apela <strong>para</strong> um argumento que ficou conhecido como Lei de Say, sintetizada pelo<br />
aforismo: “a oferta cria sua própria procura”. 33<br />
O argumento parte do principio de que os capitalistas produzem o que pretendem vender<br />
lucrativamente no mercado, mas o que conseguem obter como lucro pela venda, só faz sentido<br />
econômico <strong>para</strong> eles se for gasto em outras mercadorias, de acordo com seus objetivos de<br />
consumo ou acumulação de capital. Na economia capitalista, o dinheiro é mero intermediário das<br />
trocas, não sendo desejado por si só. No final das contas mercadorias são trocadas por<br />
mercadorias, sendo o dinheiro apenas uma ponte que desassocia a troca em duas operações: a<br />
compra e a venda. Assim, os gastos necessários com a aquisição das mercadorias necessárias à<br />
produção criam rendas monetárias suficientes <strong>para</strong> permitir a completa aquisição do produto<br />
resultante, a preços de mercado. Poderia haver um excesso de oferta, caso os capitalistas<br />
deixassem de gastar parte do lucro. Mas eles não fariam isso só <strong>para</strong> conservar o dinheiro<br />
“entesourado”, uma vez que isso não passaria de forma não racional de poupar. Se um capitalista<br />
racional não deseja gastar em bens de investimento a parte do lucro que excede seu consumo,<br />
<strong>para</strong> aumentar sua capacidade de produzir e lucrar futuramente, ele irá usar o dinheiro <strong>para</strong><br />
comprar outros ativos rentáveis (títulos, letras, obrigações, ações de outras companhias, etc),<br />
atraído pela recompensa de juros ou dividendos. Quando faz isso, ele transfere seu poder de<br />
compra <strong>para</strong> que seja usado por outros. Segundo essa lógica, o que um não gasta outro acaba<br />
gastando em seu lugar, de modo a haver sempre uma tendência à igualdade entre a oferta e a<br />
demanda geral de bens.<br />
A polêmica entre Ricardo e Malthus antecipa o debate entre suscitado pela publicação da<br />
“General Theory of Employment, Interest and Money” de John Maynard Keynes, nos anos 1930,<br />
que juntamente com os desenvolvimentos na metodologia de apuração das contas nacionais<br />
estabeleceu a macroeconomia, como área específica de conhecimento. Malthus também<br />
antecipou Keynes na recomendação de gastos governamentais em obras públicas como remédio<br />
<strong>para</strong> o desemprego, em épocas de depressão econômica.<br />
capital de um emprego a outro [...] A procura de qualquer mercadoria está sujeita não só aos gostos e ao capricho<br />
das compras [...] Quando a procura de uma mercadoria diminui, os que se dedicam à sua fabricação enfrentam<br />
muitas aflições e, sem dúvida, algum prejuízo; isto se faz sentir não só por ocasião da mudança mas durante todo o<br />
intervalo em que eles estejam deslocando seus capitais e o trabalho que possam empregar de um <strong>para</strong> outro<br />
emprego”.<br />
33 Jean Batista Say, economista político francês altamente influenciado pela obra de Adam Smith.<br />
34
Por influência de Malthus, Ricardo acrescentou o capítulo 31 na terceira edição dos<br />
“Principles”, no qual examinou as implicações da maquinaria poupadora de mão-de-obra sobre a<br />
situação dos trabalhadores. Demonstrando acreditar inicialmente que isso levaria a maiores<br />
níveis e produção e menores preços, via redução de custos, e que a redução de emprego<br />
decorrente da substituição do homem pela máquina seria compensada pela elevação de emprego<br />
resultante do acréscimo da produção, ele concluiu que haveria um benefício <strong>para</strong> a sociedade<br />
como um todo.<br />
“O fabricante [...] que [...] pudesse utilizar uma máquina [...] (diminuirá os custos) gozaria de<br />
vantagens especiais se pudesse continuar cobrando o mesmo preço por seus produtos. No entanto,<br />
[...] ele seria obrigado a reduzir o preço de suas mercadorias, ou o capital fluiria <strong>para</strong> o seu setor<br />
até que os lucros baixassem na nível geral. Assim, portanto, o público fica beneficiado pela<br />
maquinaria”. Ricardo op. cit. p. 58.<br />
No entanto, seus debates com Malthus serviram <strong>para</strong> convencê-lo que poderia não ser bem<br />
assim. Na terceira edição dos princípios, ele iniciou o novo capítulo 31 nos seguintes termos:<br />
“Desde que, inicialmente voltei pela primeira vez minha atenção <strong>para</strong> as questões de Economia<br />
Política, tenho sido de opinião que [...] a introdução de maquinaria a qualquer ramo de<br />
produção, que tivesse pó efeito poupar trabalho, constituiria um benefício <strong>para</strong> todos, embora<br />
acarretasse alguns inconvenientes que geralmente acompanha a maior parte das transferências<br />
de capital e trabalho, de uma atividade <strong>para</strong> outra. Parecia-me que [...] os proprietários de terra<br />
[...] seriam beneficiados pela redução dos preços de algumas mercadorias nas quais essa renda<br />
era gasta [...] Eu julgava que o capitalista eventualmente seria beneficiado da mesma maneira.<br />
Ele que, na realidade, descobrira a máquina ou fora o primeiro a empregá-la teve a idéia de<br />
introduzir a máquina utilmente gozaria de uma vantagem adicional, realizando grandes lucros,<br />
durante algum tempo. Mas, à medida que a máquina entrasse em uso generalizado, o preço da<br />
mercadoria produzida baixaria até o seu custo de produção devido a concorrência, quando então<br />
o capitalista teria os mesmos lucros em dinheiro que antes, e ele somente participaria das<br />
vantagens gerais como consumidor [...]. Eu julgava também que a classe dos trabalhadores seria<br />
igualmente beneficiada pelo uso da maquinara, na medida em que dispusesse dos meios <strong>para</strong><br />
comprar mais mercadorias com o mesmo salário em dinheiro. Julgava ainda que nenhuma<br />
redução de salários ocorreria, uma vez que o capitalista teria o poder de demandar e de<br />
empregar a mesma quantidade de trabalho que antes, embora tivesse necessidade de utilizá-lo na<br />
produção de uma mercadoria nova ou, pelo menos diferente”. Ricardo, op. cit. p. <strong>261</strong>.<br />
Mas posteriormente ele fez uma ressalva manifestando achar que a substituição de<br />
trabalho humano por maquinaria, poderia eventualmente ser muito prejudicial aos trabalhadores.<br />
No argumento apresentado <strong>para</strong> justificar essa mudança de posição, Ricardo demonstrava<br />
concordar com Malthus, quanto à susceptibilidade do capitalismo a crises e depressões. No<br />
entanto, deixava claro que isso não abalava sua simpatia pela classe capitalista nem a crença de<br />
que a introdução de maquinaria poupadora de mão-de-obra traria mais benefícios do que<br />
malefícios <strong>para</strong> a sociedade como um todo.<br />
35
Por último, cabe comentar uma diferença entre ambos os autores que explica bem porque<br />
Ricardo entrou <strong>para</strong> a história da ciência econômica de forma muito mais destacada do que<br />
Malthus. Como vimos na seção 4, Ricardo primava pelo bom uso da lógica, com seu método<br />
hipotético-dedutivo. Em contraste, a abordagem de Malthus, embora fosse em vários aspectos<br />
mais realista, tinha contra si o fato de incorrer em erros lógicos. É por essas e outras que Robert<br />
Torrens, um economista contemporâneo de Ricardo e Malthus, citado por Blaug (1985) 34 , se<br />
referiu a ambos nos seguintes termos:<br />
“Quando apresentada pelo senhor Ricardo, a Economia Política possui uma regularidade e uma<br />
simplicidade além do que existe na natureza; quando exibida pelo senhor Malthus, ela é um caos<br />
de elementos originais e desarticulados”. Blaug op. cit. p. 175.<br />
34 Blaug, M. Economic Theory in Retrospect. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.<br />
36