Investindo no Futuro: O Programa Jovens Pesquisadores - Fapesp

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As trocas se intensificaram, as cidades começaram a se formar. E, no esforço de transformar aquelas terras inóspitas num paraíso lucrativo equivalente às Índias, Portugal passou a trazer em seus navios, de forma constante, árvores, sementes, estacas e sábios conhecedores dos segredos das plantas. A historiadora Márcia Moisés Ribeiro, ligada ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), estuda esse tempo de mudança, quando ocorreram na América portuguesa as tentativas de plantar as especiarias do Oriente: o cravo, o gengibre, a canela, a pimenta. Afreqüência de contatos entre as colônias portuguesas do mundo, e mais especificamente entre o Brasil e o Oriente, tornou-se mais intensa a partir do fim do século 17. Como a viagem do Oriente até Portugal era longa, a escala de alguns dias no Brasil era inevitável. Mesmo assim as autoridades de Lisboa tentavam proibir a parada para evitar o contrabando, que acabava acontecendo de qualquer maneira”, diz Márcia. Em 1672 uma ordem do rei passou a permitir a escala em Salvador, na Bahia. Com isso aumentou a freqüência dos navios que, vindos do Oriente, paravam no Brasil para desembarcar alguma carga, quase sempre ilegalmente, e receber mercadorias para serem transportadas à Europa. “Foi esse trânsito intenso de navios que possibilitou a entrada de plantas, especiarias e gêneros úteis às boticas brasileiras”, conta a pesquisadora. As trocas entre os continentes começaram poucos anos depois de os portugueses desembarcarem no Brasil. “O coqueiro chegou aqui por volta de 1553 a bordo de embarcações vindas de Cabo Verde, mas procedentes do Leste Asiático. Hoje a árvore tornou-se um dos símbolos do país”, explica a historiadora. No rastro da palmeira, aportaram no Brasil a manga, a jaca, a canela, o açúcar, o 90 ■ AGOSTO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 102 Coco (por Eckout): símbolo nacional só chegou aqui em 1553, em embarcações procedentes do Leste Asiático algodão. Mas, para além do anedotário de quais plantas vieram para cá, a pesquisa de Márcia está preocupada em analisar o papel do Estado português como mediador das atividades científicas relativas ao aproveitamento dos recursos naturais das vastas regiões do império ultramarino. Estudo da natureza - “Durante o século 18, o estudo da natureza passou a ser justificado na medida em que esta foi geradora de benefícios às sociedades. O governo metropolitano buscava conhecer todas as espécies botânicas, não só da América portuguesa como também de outros domínios com o fim O PrOjEtO Jornadas no Ultramar, a Circulação do Conhecimento Científico no Império Colonial Português 1650-1800 MOdAlIdAdE Programa Jovem Pesquisador/ FAPESP BOlSIStA Márcia Moisés ribeiro – Instituto de Estudos Brasileiros/USP MUSEU NACIONAL DA DINAMARCA, COPENHAGUE de classificá-las dentro do sistema de Lineu e, principalmente, descobrir seus usos medicinais, tecnológicos e alimentares”, analisa Márcia. Paulatinamente, o governo português passou a incentivar de maneira explícita a troca de plantas entre os continentes numa tentativa de diversificar as culturas e salvar a balança comercial, que já começava a preocupar os governantes portugueses. Márcia recupera um estudo pioneiro da historiadora Maria Odila da Silva Dias, editado em 1969, que ficou escondido na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Intitulado “Aspectos da ilustração no Brasil”, o trabalho conta que em 1796 d. Rodrigo de Sousa Coutinho, absolutista ilus- trado e ministro de dona Maria I, começou uma política de renovação da agricultura e da introdução de novas técnicas rurais. Pedia aos governadores das capitanias relatórios sobre os processos empregados no preparo e cultivo dos gêneros exportáveis; ordenava que se procedessem a levantamentos de plantas nativas a serem remetidas para o reino e a explorações mineralógicas; prometia prêmios aos lavradores mais industriosos; tratava de promover a introdução do arado e a cultura de novos gêneros. E não apenas isso. Dentro dessa política oficial de promover trocas de plantas e conhecimentos, o governador da capitania de São Paulo recebia “folhetos e memórias sobre as árvores açucareiras em geral, sobre os tipos de açúcar fabricados no Rio, sobre a cultura da batata, do anil, do café, da canela de Goa, do cravo Girofle, da urumbeba; sobre o algodoeiro, a cultura do linho e do cânhamo; sobre as variedades da quina, a respeito de álcalis fixos e iluminados; sobre os métodos agrícolas usados na América do Norte e livros de natureza mais técnica sobre processos de estamparia, construção de prédios rurais, e preparo do queijo Roquefort; a arte de fazer cola; o preparo do fumo; tratados de mineralogia e sobre o extrato e preparo de salitre; estudos de botânica, tratados de medicina”, escreveu Maria Odila. Peritos orientais - “Embora o tema da natureza venha recebendo uma maior atenção por parte dos historiadores brasileiros e portugueses nas últimas décadas, ela nunca esteve ausente das preocupações da historiografia de cunho mais tradicional”, diz a pesquisadora. Contudo, a maior parte dos estudos volta-se com maior intensidade para as décadas de 70 e 80 do setecentos, quando então se deu a fundação da Academia das Ciências de Lisboa, ficando o período que antecede este fato carente de análises mais aprofundadas. E é justamente nesse período que Márcia foca sua atenção. De pouco adiantaria o envio das plantas para o Brasil se junto não fosse importada a tecnologia de cultivo. “Ciente da falta de pessoal habilitado ao manejo na América portuguesa, o governo metropolitano cuidou de mandar ao Brasil diversos peritos orientais”, conta a pesquisadora. Em uma dessas viagens, na mesma nau que trazia d. Pedro de Almeida de Portugal, que acabara de deixar o cargo de vice-rei da Índia, embarcou um grupo de goenses com a missão de cumprir as ordens reais de difundir entre os habitantes do Brasil técnicas de cultivo de plantas orientais. Em outra ocasião, mais precisamente em 1692, uma correspondência anônima dirigida ao vice-rei da Índia comenta a multiplicação das caneleiras na Bahia e afirma que elas não eram tão boas quanto as da Índia, pois no Brasil faltavam indivíduos especializados no cultivo daquela planta. Outro exemplo da importação de técnicas agrícolas da Índia aparece na correspondência trocada em 1694 entre o governo português e o governador do Maranhão, Francisco de Sá Mene zes. Otimista com as plantações de cravo-daíndia no Maranhão, o rei de Portugal ordena ao governador o plantio de mais cem pés de cravo e determina que siga à risca os conselhos dos peritos indianos. Especiarias (por Eckout): investindo na América para compensar a perda das especiarias do Oriente Márcia descobriu inclusive quanto ganhavam os canarins (termo usado em Portugal para designar os habitantes de Goa vindos para o Brasil). “Eles recebiam um ordenado de oito vinténs por dia para realizar muitas tarefas, entre elas ensinar o modo correto de semear o linho de diversas qualidades, repassar as técnicas de beneficiamento e cuidar do plantio das amoreiras, que não davam frutos”, diz a pesquisadora. As amoreiras eram importantes para que o bichoda-seda começasse a produzir. Preocupado com a baixa produção das amoreiras, Diogo de Mendonça Corte Real, então governador da Bahia, mencionou o problema ao vice-rei do Brasil, conde de Atouguia, e atribuiu aquela situação também à falta de indivíduos especializados no Brasil, o que só poderia ser resolvido com o auxílio de pessoas que tivessem “inteligência na cultura dessas árvores”. Embora o governo de d. João V (1706-1750) tenha sido marcado pelas importações de espécies asiáticas para a América portuguesa, foi d. José (1750-1777) quem mais incentivou esse tipo de prática. Adaptação - Para que as plantas pudessem ser adaptadas no Brasil o governo português contou com um aliado poderoso: a Igreja Católica. Por todo território brasileiro existiam fazendas experimentais, em que os jesuítas adaptavam as plantas. Uma delas ficou mais conhecida, tanto pela quantidade de cartas que recebia de fazendeiros preocupados com pragas e formigas como pela quantidade de jesuítas sábios que ali habitavam. Era chamada de Quinta do Tanque e ficava no interior da Bahia. “Os jesuítas foram agentes importantes no processo de transmissão do saber médico e botânico pelos diversos pontos do Império português. Através das cartas, espécie de relatório das atividades desenvolvidas pelos inacianos, e das farmacopéias, coleção de receitas de remédios, a Companhia de Jesus funcionou como um elo entre os diversos povos do Império colonial português no que diz respeito à cultura e à prática científica”, explica a pesquisadora. Ao investir na América, Portugal estava tentando compensar economicamente a perda das especiarias no Oriente. Mas o país acabou acertando num alvo em que não mirou. Graças a esse incentivo comercial, o cultivo de drogas da Índia no Brasil contribuiu para promover a circulação de uma cultura científica entre seus diferentes domínios do ultramar, a aventura das plantas pelo mundo, como costuma falar a pesquisadora. “O espírito expansionista assentava-se sob princípios contraditórios. Por um lado estava ele ávido por novidades, ansioso em desvendar a diversidade do mundo, mas por outro era dominado pela tradição que o conduzia a enquadrar o desconhecido nos padrões já familiares”, explica Márcia. Desvendar esses saberes nos ajuda a entender a mentalidade científica da época e a compreender o papel fundamental assumido pelos portugueses, como transportadores primários e secundários, na difusão global de plantas. • MUSEU NACIONAL DA DINAMARCA, COPENHAGUE PESQUISA FAPESP 102 ■ AGOSTO DE 2004 ■ 91

TEc no lo gIA Óp ti ca con tro le fino das on das lu mi no sas Equipe da USP ganha prêmio internacional com pesquisa inédita Brasil começa a desempe­ O nhar um papel relevante na pesquisa em óptica difrativa. Esse segmento da Física usa técnicas que modificam um feixe de luz para criar uma nova fonte luminosa. com isso é possível desenvolver tecnologias para fabricar novos microcircuitos optoeletrônicos, como foto detectores de câmaras fotográficas digitais, além de confeccionar ho logramas im pressos em cartões de crédito, por exemplo, ou ainda criar imagens artísticas e publicitárias. O reconhecimento internacional nessa área foi para um trabalho em conjunto de dois grupos de pesquisadores, um da Escola de Engenharia Elétrica de São carlos (EESc) e outro da Escola politécnica, ambos da Universidade de São paulo (USp). Eles ganharam, em junho, o primeiro lugar na categoria Divisão artística da versão 2000 do Diffractive Beauty Contest (concurso de Beleza Difrativa), realizado em Quebec, no canadá, e promovido pela Optical Society of america (OSa). O trabalho intitulado Elemento Óptico Difrativo com Modulação de Amplitude Complexa foi coordenado pelo professor Luiz Gonçalves Neto, docente das duas escolas. Os dois grupos estudam os Elementos Ópticos Difrativos (EODs), que são superfícies ópticas com microrrelevos capazes de modificar as propriedades de um feixe de luz por meio do atraso de sua propagação no 44 • JULHO DE 2000 • PESQUISA FAPESP miguel boyAyAn espaço. O controle da luz, nesse caso, é realizado pelos microrrelevos gravados na superfície do EOD que funcionam como obstáculos para o feixe luminoso. Essa é a principal diferença entre elas e as lentes comuns que têm superfícies lisas produzidas por abrasão ou polimento. O dispositivo mostrado no canadá proporcionou as melhores imagens geradas até aquele evento com essa tecnologia, além de a equipe ter de­ A qua li da de des sa ima gem apre sen ta da no Ca na dá foi iné di ta e va leu um pri mei ro lu gar monstrado capacidade intelectual e tecnológica para elaborar os EODs. No evento, o grupo também apresentou novas propostas de cálculos para a confecção desses dispositivos. Entre filas e patentes - a inovadora técnica desenvolvida e reconhecida no concurso da OSa foi materializada na projeção de duas imagens, uma borboleta e uma cabeça de águia, com a utilização de um feixe de luz laser. Elas chamaram a atenção do público especializado presente na mostra, provocando até a formação de uma fila para a observação das imagens. Depois desse sucesso no canadá, Gonçalves começou a preparar um pedido de patente para os novos EODs e a publicação dos resultados nas revistas Op tics Photonics News e Applied Optics, editadas pela Optical Society of america. O desenvolvimento de todo esse processo conta com recursos da Fa­ pESp para o projeto Implementação de Miroelementos Ópticos Difrativos, que se desenvolve no âmbito do programa Jovens pesquisadores, com o aporte financeiro de R$ 32 mil e US$ 33 mil. Esse programa oferece financiamento para auxílio de infraestrutura e bolsas para pesquisadores recém­saídos do doutorado que demonstrem competência para conduzir projetos de pesquisa. Outra função do programa é abrir novas áreas de pesquisa e ajudar a inserir o novo pes­ miguel boyAyAn quisador nas tradicionais instituições acadêmicas. com isso o programa possibilita a criação de novos núcleos de estudo, como os dois grupos que estudam óptica difrativa em São carlos e na poli, em São paulo. Gonçalves chefia há três anos o Grupo de Microóptica, da EESc. ali, sob sua orientação, um grupo de pesquisadores iniciou, há dois anos, projetos de pós­graduação nessa área. Entre eles, patrícia cardona e Giu seppe cirino. par ticipam também como coordenadores os professores Ronaldo Do mingues Manzzano e patrick Ver donck, do Laboratório de Sistemas integráveis da poli­USp. A luz la ser (à es quer da) atra ves sa os ele men tos Óp ti cos Di fra ti vos (à di rei ta) onde ela é mo di fi ca da para for mar ima gens de se ja das Alumínio nas placas - Foi trabalhando com técnicas e ferramentas que possibilitam o controle dessas ondas que Gonçalves chegou à formulação de algo novo. “Elementos Ópticos Difrativos são conhecidos há pelo menos 25 anos. a novidade que descobrimos foi a formulação de um jeito novo de aplicar alumínio nas placas dos EODs. Essa inovação provocou uma grande diferença com as tecnologias existentes até aqui. conseguimos uma forma de controlar não apenas a modulação da fase de uma frente de luz, mas também, de forma simultânea, a modulação de sua amplitude (modulação da intensidade luminosa)”, informa Gonçalves. Frente de luz ou frente de onda é um conceito em óptica que descreve as superfícies formadas pela junção de pontos no espaço com uma mesma fase (atraso da luz em relação a uma referência no espaço). Já a difração é a interação (desvio) das frentes de onda com obstáculos, que são os microrrelevos existentes na superfície dos EODs, de dimensões próximas a um comprimento de onda. Uma aplicação potencial desses conceitos que se materializam nas pesquisas dos dois grupos da USp é a possibilidade de miguel boyAyAn melhorar a qualidade dos telescópios ópticos. a ampliação do estudo e da aplicação da óptica difrativa no desenvolvimento tecnológico industrial tem causado uma procura crescente por pesquisadores e por projetos saídos de núcleos avançados de pesquisa. Uma grande empresa multinacional, por exemplo, procurou o Laboratório do Grupo de Óptica da EESc­USp para estudar possíveis aplicações dos novos métodos de difração das ondas de luz. Uma boa idéia nessa área é capaz de economizar alguns milhares de dólares. “a óptica difrativa contém tecnologias novas que eliminam etapas no processo de construção de elementos ópticos”, afirma o professor. Razão estratégica - O primeiro trabalho nesse campo foi publicado, em 1965, pelo norte­americano alfred Lohman, que utilizou esses princípios na realização de hologramas por computador. Mais tarde, o governo americano decidiu investir recursos nessa área por razões estratégicas, sobretudo bélicas, na adoção de visão artificial mais precisa para a interceptação de alvos por meio de mísseis. “Hoje, a indústria óptica e a eletrônica de uma maneira geral começam a utilizar essa tecnologia”, diz patrícia. Detectores de distância a laser e até “visão de robôs” estão sendo implementados com essa tecnologia. Há centenas de usos para as técnicas de difração, explica Gonçalves. todas dependem de um Elemento Óptico Difrativo. Na forma bruta, esse dispositivo parece uma bolacha redonda de vidro. Mas são muito mais do que aparentam conter. São lâminas redondas de dióxido de silício, com espessura de 1 milímetro, sobre as quais são gravadas informações em medidas extremamente reduzidas, que obedecem a especificações determinadas em mícrons, proporcionais ao comprimento de onda utilizado. “por ser necessário introduzir apenas um atraso de fase em cada região da frente de luz incidente, os Elementos Ópticos Difrativos são mais finos e leves do que todo material com característica refrativa, como as lentes co­ PESQUISA FAPESP • JULHO DE 2000 • 45

As trocas se intensificaram,<br />

as cidades começaram a se<br />

formar. E, <strong>no</strong> esforço de<br />

transformar aquelas terras<br />

inóspitas num paraíso<br />

lucrativo equivalente às<br />

Índias, Portugal passou a<br />

trazer em seus navios, de<br />

forma constante, árvores,<br />

sementes, estacas e sábios<br />

conhecedores dos segredos<br />

das plantas. A historiadora<br />

Márcia Moisés Ribeiro,<br />

ligada ao Instituto de<br />

Estudos Brasileiros da<br />

Universidade de São Paulo<br />

(IEB/USP), estuda esse<br />

tempo de mudança, quando<br />

ocorreram na América<br />

portuguesa as tentativas de<br />

plantar as especiarias do<br />

Oriente: o cravo, o gengibre,<br />

a canela, a pimenta.<br />

Afreqüência de<br />

contatos entre<br />

as colônias portuguesas do<br />

mundo, e mais especificamente<br />

entre o Brasil e o<br />

Oriente, tor<strong>no</strong>u-se mais<br />

intensa a partir do fim do século 17.<br />

Como a viagem do Oriente até Portugal<br />

era longa, a escala de alguns dias <strong>no</strong><br />

Brasil era inevitável. Mesmo assim as<br />

autoridades de Lisboa tentavam proibir<br />

a parada para evitar o contrabando, que<br />

acabava acontecendo de qualquer<br />

maneira”, diz Márcia. Em 1672 uma<br />

ordem do rei passou a permitir a escala<br />

em Salvador, na Bahia. Com isso<br />

aumentou a freqüência dos navios que,<br />

vindos do Oriente, paravam <strong>no</strong> Brasil<br />

para desembarcar alguma carga, quase<br />

sempre ilegalmente, e receber mercadorias<br />

para serem transportadas à Europa.<br />

“Foi esse trânsito intenso de navios que<br />

possibilitou a entrada de plantas, especiarias<br />

e gêneros úteis às boticas brasileiras”,<br />

conta a pesquisadora.<br />

As trocas entre os continentes começaram<br />

poucos a<strong>no</strong>s depois de os portugueses<br />

desembarcarem <strong>no</strong> Brasil. “O<br />

coqueiro chegou aqui por volta de 1553<br />

a bordo de embarcações vindas de Cabo<br />

Verde, mas procedentes do Leste Asiático.<br />

Hoje a árvore tor<strong>no</strong>u-se um dos símbolos<br />

do país”, explica a historiadora. No<br />

rastro da palmeira, aportaram <strong>no</strong> Brasil<br />

a manga, a jaca, a canela, o açúcar, o<br />

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Coco (por Eckout): símbolo nacional<br />

só chegou aqui em 1553, em embarcações<br />

procedentes do Leste Asiático<br />

algodão. Mas, para além do anedotário<br />

de quais plantas vieram para cá, a pesquisa<br />

de Márcia está preocupada em<br />

analisar o papel do Estado português<br />

como mediador das atividades científicas<br />

relativas ao aproveitamento dos<br />

recursos naturais das vastas regiões do<br />

império ultramari<strong>no</strong>.<br />

Estudo da natureza - “Durante o século<br />

18, o estudo da natureza passou a<br />

ser justificado na medida em que esta<br />

foi geradora de benefícios às sociedades.<br />

O gover<strong>no</strong> metropolita<strong>no</strong> buscava<br />

conhecer todas as espécies botânicas,<br />

não só da América portuguesa como<br />

também de outros domínios com o fim<br />

O PrOjEtO<br />

Jornadas <strong>no</strong> Ultramar,<br />

a Circulação do Conhecimento<br />

Científico <strong>no</strong> Império Colonial<br />

Português 1650-1800<br />

MOdAlIdAdE<br />

<strong>Programa</strong> Jovem Pesquisador/<br />

FAPESP<br />

BOlSIStA<br />

Márcia Moisés ribeiro – Instituto<br />

de Estudos Brasileiros/USP<br />

MUSEU NACIONAL DA DINAMARCA, COPENHAGUE<br />

de classificá-las dentro do<br />

sistema de Lineu e, principalmente,<br />

descobrir seus<br />

usos medicinais, tec<strong>no</strong>lógicos<br />

e alimentares”, analisa<br />

Márcia. Paulatinamente, o<br />

gover<strong>no</strong> português passou a<br />

incentivar de maneira explícita<br />

a troca de plantas entre<br />

os continentes numa<br />

tentativa de diversificar as<br />

culturas e salvar a balança<br />

comercial, que já começava<br />

a preocupar os governantes<br />

portugueses.<br />

Márcia recupera um<br />

estudo pioneiro da historiadora<br />

Maria Odila da Silva<br />

Dias, editado em 1969, que<br />

ficou escondido na revista do<br />

Instituto Histórico e Geográfico<br />

Brasileiro. Intitulado<br />

“Aspectos da ilustração <strong>no</strong><br />

Brasil”, o trabalho conta que<br />

em 1796 d. Rodrigo de Sousa<br />

Coutinho, absolutista ilus-<br />

trado e ministro de dona Maria I, começou<br />

uma política de re<strong>no</strong>vação da agricultura<br />

e da introdução de <strong>no</strong>vas<br />

técnicas rurais. Pedia aos governadores<br />

das capitanias relatórios sobre os processos<br />

empregados <strong>no</strong> preparo e cultivo<br />

dos gêneros exportáveis; ordenava que<br />

se procedessem a levantamentos de<br />

plantas nativas a serem remetidas para<br />

o rei<strong>no</strong> e a explorações mineralógicas;<br />

prometia prêmios aos lavradores mais<br />

industriosos; tratava de promover a<br />

introdução do arado e a cultura de<br />

<strong>no</strong>vos gêneros.<br />

E não apenas isso. Dentro dessa<br />

política oficial de promover trocas de<br />

plantas e conhecimentos, o governador<br />

da capitania de São Paulo recebia<br />

“folhetos e memórias sobre as árvores<br />

açucareiras em geral, sobre os tipos de<br />

açúcar fabricados <strong>no</strong> Rio, sobre a cultura<br />

da batata, do anil, do café, da canela<br />

de Goa, do cravo Girofle, da urumbeba;<br />

sobre o algodoeiro, a cultura do<br />

linho e do cânhamo; sobre as variedades<br />

da quina, a respeito de álcalis fixos<br />

e iluminados; sobre os métodos agrícolas<br />

usados na América do Norte e<br />

livros de natureza mais técnica sobre<br />

processos de estamparia, construção<br />

de prédios rurais, e preparo do queijo<br />

Roquefort; a arte de fazer cola; o preparo<br />

do fumo; tratados de mineralogia<br />

e sobre o extrato e preparo<br />

de salitre; estudos de botânica,<br />

tratados de medicina”,<br />

escreveu Maria Odila.<br />

Peritos orientais - “Embora<br />

o tema da natureza venha<br />

recebendo uma maior atenção<br />

por parte dos historiadores<br />

brasileiros e portugueses<br />

nas últimas décadas,<br />

ela nunca esteve ausente<br />

das preocupações da historiografia<br />

de cunho mais<br />

tradicional”, diz a pesquisadora.<br />

Contudo, a maior<br />

parte dos estudos volta-se<br />

com maior intensidade para<br />

as décadas de 70 e 80 do<br />

setecentos, quando então<br />

se deu a fundação da Academia<br />

das Ciências de Lisboa,<br />

ficando o período que<br />

antecede este fato carente de<br />

análises mais aprofundadas.<br />

E é justamente nesse<br />

período que Márcia foca sua atenção.<br />

De pouco adiantaria o envio das<br />

plantas para o Brasil se junto não fosse<br />

importada a tec<strong>no</strong>logia de cultivo.<br />

“Ciente da falta de pessoal habilitado ao<br />

manejo na América portuguesa, o gover<strong>no</strong><br />

metropolita<strong>no</strong> cuidou de mandar ao<br />

Brasil diversos peritos orientais”, conta<br />

a pesquisadora. Em uma dessas viagens,<br />

na mesma nau que trazia d. Pedro de<br />

Almeida de Portugal, que acabara de<br />

deixar o cargo de vice-rei da Índia,<br />

embarcou um grupo de goenses com a<br />

missão de cumprir as ordens reais de<br />

difundir entre os habitantes do Brasil<br />

técnicas de cultivo de plantas orientais.<br />

Em outra ocasião, mais precisamente<br />

em 1692, uma correspondência anônima<br />

dirigida ao vice-rei da Índia comenta a<br />

multiplicação das caneleiras na Bahia e<br />

afirma que elas não eram tão boas quanto<br />

as da Índia, pois <strong>no</strong> Brasil faltavam<br />

indivíduos especializados <strong>no</strong> cultivo<br />

daquela planta. Outro exemplo da importação<br />

de técnicas agrícolas da Índia aparece<br />

na correspondência trocada em 1694<br />

entre o gover<strong>no</strong> português e o governador<br />

do Maranhão, Francisco de Sá Mene zes.<br />

Otimista com as plantações de cravo-daíndia<br />

<strong>no</strong> Maranhão, o rei de Portugal<br />

ordena ao governador o plantio de mais<br />

cem pés de cravo e determina que siga à<br />

risca os conselhos dos peritos india<strong>no</strong>s.<br />

Especiarias (por Eckout): investindo<br />

na América para compensar<br />

a perda das especiarias do Oriente<br />

Márcia descobriu<br />

inclusive quanto<br />

ganhavam os canarins<br />

(termo usado<br />

em Portugal para<br />

designar os habitantes<br />

de Goa vindos para o Brasil).<br />

“Eles recebiam um ordenado de oito<br />

vinténs por dia para realizar muitas<br />

tarefas, entre elas ensinar o modo<br />

correto de semear o linho de diversas<br />

qualidades, repassar as técnicas de<br />

beneficiamento e cuidar do plantio<br />

das amoreiras, que não davam frutos”,<br />

diz a pesquisadora. As amoreiras<br />

eram importantes para que o bichoda-seda<br />

começasse a produzir.<br />

Preocupado com a baixa produção<br />

das amoreiras, Diogo de Mendonça<br />

Corte Real, então governador da<br />

Bahia, mencio<strong>no</strong>u o problema ao<br />

vice-rei do Brasil, conde de Atouguia,<br />

e atribuiu aquela situação também à<br />

falta de indivíduos especializados <strong>no</strong><br />

Brasil, o que só poderia ser resolvido<br />

com o auxílio de pessoas que tivessem<br />

“inteligência na cultura dessas árvores”.<br />

Embora o gover<strong>no</strong> de d. João V<br />

(1706-1750) tenha sido marcado<br />

pelas importações de espécies asiáticas<br />

para a América portuguesa, foi d.<br />

José (1750-1777) quem mais incentivou<br />

esse tipo de prática.<br />

Adaptação - Para que as<br />

plantas pudessem ser adaptadas<br />

<strong>no</strong> Brasil o gover<strong>no</strong><br />

português contou com um<br />

aliado poderoso: a Igreja Católica.<br />

Por todo território<br />

brasileiro existiam fazendas<br />

experimentais, em que os<br />

jesuítas adaptavam as plantas.<br />

Uma delas ficou mais<br />

conhecida, tanto pela quantidade<br />

de cartas que recebia<br />

de fazendeiros preocupados<br />

com pragas e formigas como<br />

pela quantidade de jesuítas<br />

sábios que ali habitavam. Era<br />

chamada de Quinta do Tanque<br />

e ficava <strong>no</strong> interior da<br />

Bahia. “Os jesuítas foram<br />

agentes importantes <strong>no</strong> processo<br />

de transmissão do saber<br />

médico e botânico pelos<br />

diversos pontos do Império<br />

português. Através das cartas,<br />

espécie de relatório das<br />

atividades desenvolvidas pelos<br />

inacia<strong>no</strong>s, e das farmacopéias, coleção<br />

de receitas de remédios, a Companhia<br />

de Jesus funcio<strong>no</strong>u como um<br />

elo entre os diversos povos do Império<br />

colonial português <strong>no</strong> que diz respeito<br />

à cultura e à prática científica”, explica<br />

a pesquisadora.<br />

Ao investir na América, Portugal<br />

estava tentando compensar eco<strong>no</strong>micamente<br />

a perda das especiarias <strong>no</strong><br />

Oriente. Mas o país acabou acertando<br />

num alvo em que não mirou. Graças a<br />

esse incentivo comercial, o cultivo de<br />

drogas da Índia <strong>no</strong> Brasil contribuiu<br />

para promover a circulação de uma<br />

cultura científica entre seus diferentes<br />

domínios do ultramar, a aventura das<br />

plantas pelo mundo, como costuma<br />

falar a pesquisadora. “O espírito expansionista<br />

assentava-se sob princípios<br />

contraditórios. Por um lado estava ele<br />

ávido por <strong>no</strong>vidades, ansioso em desvendar<br />

a diversidade do mundo, mas<br />

por outro era dominado pela tradição<br />

que o conduzia a enquadrar o desconhecido<br />

<strong>no</strong>s padrões já familiares”,<br />

explica Márcia. Desvendar esses saberes<br />

<strong>no</strong>s ajuda a entender a mentalidade<br />

científica da época e a compreender o<br />

papel fundamental assumido pelos<br />

portugueses, como transportadores<br />

primários e secundários, na difusão<br />

global de plantas. •<br />

MUSEU NACIONAL DA DINAMARCA, COPENHAGUE<br />

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