Tese de doutorado - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - UFF
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1 88 cabos portugueses que libertaram o Brasil da invasão holandesa”, mas o “verdadeiro fundador” do Ceará (ALENCAR, 1980, p.12 e p. 13), posto que semeia, para além de uma nova territorialidade, a miscigenação, o primeiro cearense. O legado mais precioso de Martim não é, entretanto, Moacir, seu filho e o primeiro brasileiro (porque fruto da miscigenação), mas a lenda de Iracema, índice ficcional da fundação da identidade pátria: Que deixara ele [Martim] na terra do exílio?Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares. (ALENCAR; 1980) Outra imagem alusiva à ruína é a construída em torno da personagem Maranguab, o “sabedor da guerra” (ALENCAR, 1980, p. 62), avô de Peri e guardião da memória da tribo. Sua sabedoria o tornaria não só guardião do passado, mas também do futuro, ao profetizar a destruição da raça indígena pelos colonizadores, reforçada pelo autor nas notas explicativas à fala do ancião sobre o encontro do neto com o representante do grupo responsável pela ruína de seu povo: “Tupã quis que estes olhos vissem, antes de se apagarem, o gavião branco junto da narceja” (ALENCAR, 1980, p. 63). A nota explica que, ao afirmar isto, Maranguab “profetiza nesse paralelo a destruição de sua raça pela raça branca”. O caráter catastrófico da colonização fica patente no encontro entre Martim, instrumento da colonização, e Maranguab, signo da memória e da honra indígena, alocado em um tempo intocado pelo domínio português. A ruína física do velho índio alegoriza o massacre de seu povo 37 . 37 Personagem construída de modo similar a Maranguab é o índio Abaré. Movido pela possibilidade de vingança, o ancião revelara a Robério Dias o segredo das minas de prata; assiste, em seus últimos dias, a decadência de sua raça: “Oh! dor! Seus filhos, os valentes, os fortes, a quem ele transmitia outrora as palavras de Tupã, renegaram das cenças de seus pais, e são agora conduzidos, como um bando de capivaras, pelo homem negro, abaruna, que serve ao Deus dos brancos!” (ALENCAR, s.d., p. 463).
1 89 Os restos de Maranguab jazem em um camucim, em uma oca abandonada, protegida por urtigas. A imagem revela o abandono da memória dos povos indígenas, mas ao mesmo tempo traz o alento da possibilidade de restauração, já que não foi destruída, mas apenas silenciada. Àqueles que com sensibilidade artística lerem este silênc io, nos resíduos da tradição oral, a recompensa será dada. Lenda tecida e modulada por Alencar, de acordo com a perspectiva do que reconhecemos como uma poética da restauração, Iracema alegoriza a tensão presente no par cultura / barbárie, reconstruindo literariamente o choque, a violência e o desejo presentes no tempo da conquista. A tessitura de uma literatura que se propõe a restaurar as ruínas do passado não se restringe aos textos indianistas, entretanto. Lendas urbanas e histórias, que remetem à modulação das cicatrizes do corpo da cidade, são lidas como pistas a serem desveladas nas imagens literárias e estão presentes em textos como Alfarrábios, Guerra dos Mascates e As minas de prata. Em As minas de prata, a tradição oral reveladora do mito do Eldorado é o mote para um romance capaz de descortinar um rico e complexo painel da Salvador colonial. É contado em várias versões, sob o ponto-de-vista de vários personagens em um emaranhado alinhavado pela busca do protagonista Estácio do roteiro das minas de prata descobertas por seu pai. Os documentos sobre a localização das minas de prata eram insuficientes para fazer Estácio encontrá-las: para exumar o passado, é necessário ir além da palavra escrita; mesmo quando encontra o local das minas de prata, o protagonista ilude-se ao deparar-se com as pedras eram falsas, sem saber do tesouro escondido no sub solo. O resgate do tesouro, da essência, é interditado, como em Iracema, ao indicar o túmulo de Maranguab protegido por
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