Tese de doutorado - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - UFF

Tese de doutorado - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - UFF Tese de doutorado - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - UFF

bdtd.ndc.uff.br
from bdtd.ndc.uff.br More from this publisher
15.04.2013 Views

1 82 guardiães da memória. Esta postura resgata as tradições populares do rótulo de irracionalistas a elas imprimidas pelo Iluminismo. A remissão a estas imagens liga-se à tentativa de valorização da cultura popular; latentes de resíduos à espera de uma leitura que os ressignifiquem, estas referência revelam a missão tomada por Alencar de restaurar – na perspectiva da restauração – quadros da memória coletiva. Resgate intranqüilo e áporo pois, como vimos, a poética da restauração modela no desejo de leitura dos cacos da memória perdida a imaginação de uma ponte com o presente, simulando artificialmente a idéia de uma tradição contínua e depositada em núcleos capazes de mantê-la inviolável pela experiência, pelo isolamento ou pela ingenuidade. A fundamentação de uma identidade forjada na tensão entre um passado imaginado e o presente que o imagina revela-se ainda na remissão ao topos do manuscrito. O pergaminho contém a experiênc ia das gerações passadas; o autor é aquele que o salva da transitoriedade da memória, tornando a experiência pública ao passá-la para frente através do suporte da escrita. Signo da sobrevivência, pela escrita, da lembrança frente ao esquecimento, ele chega em ruínas às mãos do narrador, como já aludido, em O Guarani: ...quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa, quando a comprei. Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim...(ALENCAR, 1995, p.10) A simulação pela voz narrativa da descoberta do texto em ruínas constrói-se como metonímia de uma memória coletiva fragmentada como o manuscrito. As ruínas da

1 83 memória / manuscrito são pistas a serem decifradas pelo escritor na construção de imagens do passado, sempre filtradas pelo olhar coevo. O resgate da memória é possibilitado pela palavra, que a salva e a “remoça”, elevando o texto para além da mera cópia e o autor à condição de restaurador, capaz de criar nos interditos provocados pela destruição deste texto-memória. Memória e imaginação dialogam entre si: ao jogo da memória (em torno da encenação, pela voz narrativa, do encontro do manuscrito em ruínas, o que pode ser lido como analogia da memória coletiva brasileira) articula-se o papel fulcral da imaginação, a capacitar a mediação entre passado e presente, proposta pelo narrador, e percebida como peça chave no exercício de leitura do passado. Como restaurador, o escritor pinta com cores ficcionais a penumbra deixada pela História. A relação entre a ruína e o trágico emerge na narrativa na irrisão das relações entre colonizador e colonizado, resolvidas ficcionalmente no grande incêndio sofrido pela Casa de Mariz 33 , e no final em aberto, após o dilúvio do qual Peri e Ceci escapam (?) em uma palmeira. Água e fogo, signos a carregar a ambigüidade da destruição e da salvação, instauram a dúvida sobre a possibilidade de sobrevivência da memória coletiva face à lábil identidade brasileira e indicam a leitura da história como catástrofe: as ruínas anunciadas no manuscrito retornam ao final do romance. É a catástrofe – tanto o incêndio, quanto o dilúvio – que, paradoxalmente, aprofunda e limita a relação entre Peri e Ceci; aproxima, ao fazer de Ceci “uma verdadeira americana” e ao permiti-la enxergar Peri não mais como amigo, mas como “um herói”: potencializado no 33 Em As minas de prata reaparece a personagem Diogo de Mariz, como único sobrevivente da catástrofe: “ D. Diogo de Mariz teria cerca de trinta e cinco anos; mas os últimos cinco decorridos depois da catástrofe que lhe roubara de um só golpe toda a família, haviam assolado aquela mocidade robusta e viçosa...recordava-se com desespero que fora ele, inconsciente é verdade, a causa primeira da calamidade que o isolara do mundo”. (ALENCAR, s.d., p. 343).

1 82<br />

guardiães da memória. Esta postura resgata as tradições populares do rótulo <strong>de</strong><br />

irracionalistas a elas imprimidas pelo Iluminismo.<br />

A remissão a estas imagens liga-se à tentativa <strong>de</strong> valorização da cultura popular;<br />

latentes <strong>de</strong> resíduos à espera <strong>de</strong> uma leitura que os ressignifiquem, estas referência revelam<br />

a missão tomada por Alencar <strong>de</strong> restaurar – na perspectiva da restauração – quadros da<br />

memória coletiva. Resgate intranqüilo e áporo pois, como vimos, a poética da restauração<br />

mo<strong>de</strong>la no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> leitura dos cacos da memória perdida a imaginação <strong>de</strong> uma ponte com<br />

o presente, simulando artificialmente a idéia <strong>de</strong> uma tradição contínua e <strong>de</strong>positada em<br />

núcleos capazes <strong>de</strong> mantê-la inviolável pela experiência, pelo isolamento ou pela<br />

ingenuida<strong>de</strong>.<br />

A fundamentação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> forjada na tensão entre um passado imaginado<br />

e o presente que o imagina revela-se ainda na remissão ao topos do manuscrito. O<br />

pergaminho contém a experiênc ia das gerações passadas; o autor é aquele que o salva da<br />

transitorieda<strong>de</strong> da memória, tornando a experiência pública ao passá-la para frente através<br />

do suporte da escrita.<br />

Signo da sobrevivência, pela escrita, da lembrança frente ao esquecimento, ele<br />

chega em ruínas às mãos do narrador, como já aludido, em O Guarani:<br />

...quero aproveitar as minhas horas <strong>de</strong> trabalho em copiar e<br />

remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário<br />

<strong>de</strong>sta casa, quando a comprei.<br />

Estava abandonado e quase todo estragado pela umida<strong>de</strong> e<br />

pelo cupim...(ALENCAR, 1995, p.10)<br />

A simulação pela voz narrativa da <strong>de</strong>scoberta do texto em ruínas constrói-se como<br />

metonímia <strong>de</strong> uma memória coletiva fragmentada como o manuscrito. As ruínas da

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!