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1 76 A escrita alencarina reescreve determinadas facetas do discurso historiográfico em um momento em que escrita e memória formavam um par intrinsecamente relacionado: segundo o historicismo, os povos sem escrita não possuíam história. A visão do aborígene era a apresentada pelos textos coloniais. Estes textos servirão de contraponto à tessitura da ficção alencarina, como falamos, sendo reelaborados em torno de uma nova concepção das relações entre civilização e barbárie, invertendo por vezes a lógica desta relação, em um possível intertexto com Rousseau e Montaigne 30 (este último citado nas notas de Ubirajara): Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se não de todo o período colonial, devem ser lidos à luz de uma crítica severa. É indispensável sobretudo escoimar os fatos comprovados das fábulas a que serviam de mote, e das apreciações a que os sujeitavam espíritos acanhados, por demais embuídos de uma intolerância ríspida. ( ALENCAR, s.d., p. 65) As estratégias poéticas de Ubirajara reavaliam os textos coloniais e deslocam a relação colonizador/colonizado ao denunciar a barbárie da conquista: Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por longo trato de séculos, queriam esses forasteiros achar nos indígenas de um mundo novo e segregado da civilização universal uma perfeita conformidade de idéias e costumes. Não se lembravam, ou não sabiam, que eles mesmos provinham de bárbaros ainda mais ferozes e grosseiros do que os selvagens americanos. Foi depois da colonização, que os portugueses assaltando-os como feras e caçando-os a dente de cão, ensinaram-lhes a traição que não conheciam. A raça invasora buscava justificar suas cruezas rebaixando aborígenes à condição de feras, que era forçoso montear. (ALENCAR, Ubirajara, s.d., pp.65, 69 e 78). 30 Alguns cronistas, viajantes e autores de textos produzidos no período colonial citados por José de Alencar nas notas de O Guarani, Ubirajara e Iracema: Gabriel Soares de Sousa, Antonio Vieira, Carl Friedrich Von Martius, Jean de Lé ry, Simão de Vasconcelos, Ives d´Evrèux. O autor vale -se também de estudos de seu contemporâneo, Gonçalves Dias.

1 77 A narrativa indianista de Alencar não se restringe, portanto, a uma recuperação da instância mítica como modo de exclusão da historicidade, tampouco resolve de forma tranqüila os conflitos entre colonizador e colonizado. Se em O Guarani, de 1857, interesses contrários em diversos níveis são conciliados (mas não todos, tensão que encontrou a solução no trágico), em Ubirajara, de 1874, estes conflitos emergirão com mais vitalidade nas notas 31 da narrativa, demonstrando um refinamento da reflexão alencariana sobre as questões da cultura e da barbárie. O suporte lendário apresenta esta tensão, e a presença mítica conecta a narrativa aos discursos circulantes na sociedade sobre a fundação de suas origens, inventando tradições, já que Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de regras práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente: uma continuação com o passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.(HOBSBAWN, 1997, p.9) Poderíamos assim dizer que há nestas narrativas a produção de uma mitologia ficcional sobre a própria mitologia indígena passível de ser percebida como uma mitologia de segundo grau, conceito que emprestamos de Barthes. A idéia de uma mitologia segunda, que visa à naturalização de imagens artificiais, 31 As notas de Ubirajara não devem ser lidas à margem da narrativa; nelas, o esforço reflexivo sobre os textos coloniais chega ao seu ápice, pela voz de um narrador capaz de mediar o processo de leitura das ruínas da memória indígena, reelaborando-a a partir de sua própria identidade e visão de mundo. Não só em Ubirajara , mas em outros textos alencarinos, as notas são valorizadas, de acordo com a proposta estética romântica, como a via de compreensão do processo autoral e relacionadas à expressão da subjetividade, dentro da relação leitor / autor. São um importante instrumento na construção da verossimilhança narrativa, revelando a erudição do autor e os seus intertextos. Nas notas alencarinas há muito mais a elaboração de hipóteses do que a indicação de certezas.

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A narrativa indianista <strong>de</strong> Alencar não se restringe, portanto, a uma recuperação da<br />

instância mítica como modo <strong>de</strong> exclusão da historicida<strong>de</strong>, tampouco resolve <strong>de</strong> forma<br />

tranqüila os conflitos entre colonizador e colonizado. Se em O Guarani, <strong>de</strong> 1857, interesses<br />

contrários em diversos níveis são conciliados (mas não todos, tensão que encontrou a<br />

solução no trágico), em Ubirajara, <strong>de</strong> 1874, estes conflitos emergirão com mais vitalida<strong>de</strong><br />

nas notas 31 da narrativa, <strong>de</strong>monstrando um refinamento da reflexão alencariana sobre as<br />

questões da cultura e da barbárie.<br />

O suporte lendário apresenta esta tensão, e a presença mítica conecta a narrativa aos<br />

discursos circulantes na socieda<strong>de</strong> sobre a fundação <strong>de</strong> suas origens, inventando tradições,<br />

já que<br />

Por “tradição inventada” enten<strong>de</strong>-se um conjunto <strong>de</strong> regras<br />

práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou<br />

abertamente aceitas; tais práticas, <strong>de</strong> natureza ritual ou<br />

simbólica, visam inculcar certos valores e normas <strong>de</strong><br />

comportamento através da repetição, o que implica<br />

automaticamente: uma continuação com o passado. Aliás,<br />

sempre que possível, tenta-se estabelecer continuida<strong>de</strong> com<br />

um passado histórico apropriado.(HOBSBAWN, 1997, p.9)<br />

Po<strong>de</strong>ríamos assim dizer que há nestas narrativas a produção <strong>de</strong> uma mitologia<br />

ficcional sobre a própria mitologia indígena passível <strong>de</strong> ser percebida como uma mitologia<br />

<strong>de</strong> segundo grau, conceito que emprestamos <strong>de</strong> Barthes.<br />

A idéia <strong>de</strong> uma mitologia segunda, que visa à naturalização <strong>de</strong> imagens artificiais,<br />

31 As notas <strong>de</strong> Ubirajara não <strong>de</strong>vem ser lidas à margem da narrativa; nelas, o esforço reflexivo sobre<br />

os textos coloniais chega ao seu ápice, pela voz <strong>de</strong> um narrador capaz <strong>de</strong> mediar o processo <strong>de</strong> leitura das<br />

ruínas da memória indígena, reelaborando-a a partir <strong>de</strong> sua própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e visão <strong>de</strong> mundo.<br />

Não só em Ubirajara , mas em outros textos alencarinos, as notas são valorizadas, <strong>de</strong> acordo com a<br />

proposta estética romântica, como a via <strong>de</strong> compreensão do processo autoral e relacionadas à expressão da<br />

subjetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro da relação leitor / autor. São um importante instrumento na construção da<br />

verossimilhança narrativa, revelando a erudição do autor e os seus intertextos.<br />

Nas notas alencarinas há muito mais a elaboração <strong>de</strong> hipóteses do que a indicação <strong>de</strong> certezas.

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