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1 54 liberdade de reinventar o real, a fotografia inaugurava um compromisso do imagético com a descrição objetiva da realidade. A fotografia coadunava-se a uma vontade de verdade, presente na historiografia historicista. Este, em sua procura de reconstrução absoluta do passado, reafirma a supremacia do documento escrito como fonte da interpretação objetiva. Tal postura reflete a autoridade conferida ao ofício do historiador, ao mesmo tempo em que indica uma tendência que assume seu ápice no século XIX: o desejo do efeito do real pela sociedade oitocentista. Roland Barthes aponta este desejo como o responsável pela voga do romance realista, do diário íntimo, da literatura documental, dos museus históricos, das exposições de antiguidade, que tanto ganham força naquela época. Entre estes instrumentos que poderiam servir de pontes para o alcance da realidade, a fotografia ocupa um lugar especial. Com olhos inscritos no século XX, Roland Barthes anunciou o impacto exercido pela fotografia, ainda em nossos dias, ao descrever a sua reação ao ver o retrato do irmão de Napoleão Bonaparte: “Eu me disse então com um espanto que jamais pude reduzir: ‘Vejo os olhos que viram o Imperador’” (BARTHES, 1984a, p. 11). As fotografias revelam “os olhos que viram”, já que vemos através do olhar do outro a cena, nunca imortalizada, em sua condição de suporte para novas leituras sentidos. O olhar-visão testemunha e testemunhou ao mesmo tempo a sua época, pois “uma foto não pode ser transformada (dita) filosoficamente, ela está inteiramente lastreada com a contingência de que ela é o envoltório transparente e leve.” (BARTHES, 1984, p. 14). A fotografia seria necessariamente real; a pintura facultativamente. Enquanto é franqueado à pintura simular uma realidade, mesmo que não tenha sido vista, a fotografia (em que pese a manipulação e as estratégias de edição de cena) tem como referente não a

1 55 remissão à imagem ou ao signo, “mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia”.(BARTHES, 1984, p. 114 e 115). Mesmo a pintura que se queira a mais realista possível diverge do efeito fotográfico, já que o que é visto na fotografia não é lembrança, nem imaginação, mas “o real no estado passado: a um só tempo o passado e o real” (BARTHES, 1984, p.124), constituindo-se “nem imagem, nem real, um ser novo, verdadeiramente: um real que não se pode mais tocar” (BARTHES, 1984, p. 130). A presença do objeto não é metafórica, a fotografia anuncia-se ruína no sentido mais profundamente benjaminiano, já que é a imagem viva de uma coisa morta. (BARTHES, 1984, p. 118). Uma arte desejosa de reconstruir fielmente a realidade: assim poderíamos caracterizar a fotografia oitocentista. A partir deste desejo, as fotografias são transformadas em documentos. Assim, a representação fotográfica aproximar-se-ia mais do factual, enquanto a literatura por poder liberar-se do referencial desta realidade, ligar-se-ia à pintura. Em Sonhos d’ouro, enquanto o protagonista Ricardo – simples, artista e com força moral - pinta aquarelas, Guida, a mocinha capitalista e caprichosa, coleciona cartões- postais. Ricardo cria, Guida compra; Ricardo lê o mundo com olhos de poeta e Guida , como boa burguesa, exibe um bem, que a transporta a um espaço não conhecido e civilizado: a Europa. Os álbuns de Guida circulam entre as visitas da casa: a apropriação simbólica do desejo de civilização, traduzido nas imagens congeladas e justapostas, forma o mosaico da civis ideal e denota o desejo burguês de exposição, capaz de reificar o que há de mais sagrado: a imagem da pessoa amada (BENJAMIN, 1994). Perda aurática da imagem já possível de ser apreendida na fala de Aurélia, em Senhora:

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remissão à imagem ou ao signo, “mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante<br />

da objetiva, sem a qual não haveria fotografia”.(BARTHES, 1984, p. 114 e 115).<br />

Mesmo a pintura que se queira a mais realista possível diverge do efeito fotográfico,<br />

já que o que é visto na fotografia não é lembrança, nem imaginação, mas “o real no estado<br />

passado: a um só tempo o passado e o real” (BARTHES, 1984, p.124), constituindo-se<br />

“nem imagem, nem real, um ser novo, verda<strong>de</strong>iramente: um real que não se po<strong>de</strong> mais<br />

tocar” (BARTHES, 1984, p. 130). A presença do objeto não é metafórica, a fotografia<br />

anuncia-se ruína no sentido mais profundamente benjaminiano, já que é a imagem viva <strong>de</strong><br />

uma coisa morta. (BARTHES, 1984, p. 118).<br />

Uma arte <strong>de</strong>sejosa <strong>de</strong> reconstruir fielmente a realida<strong>de</strong>: assim po<strong>de</strong>ríamos<br />

caracterizar a fotografia oitocentista. A partir <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sejo, as fotografias são transformadas<br />

em documentos. Assim, a representação fotográfica aproximar-se-ia mais do factual,<br />

enquanto a literatura por po<strong>de</strong>r liberar-se do referencial <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>, ligar-se-ia à<br />

pintura.<br />

Em Sonhos d’ouro, enquanto o protagonista Ricardo – simples, artista e com força<br />

moral - pinta aquarelas, Guida, a mocinha capitalista e caprichosa, coleciona cartões-<br />

postais. Ricardo cria, Guida compra; Ricardo lê o mundo com olhos <strong>de</strong> poeta e Guida ,<br />

como boa burguesa, exibe um bem, que a transporta a um espaço não conhecido e<br />

civilizado: a Europa.<br />

Os álbuns <strong>de</strong> Guida circulam entre as visitas da casa: a apropriação simbólica do<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> civilização, traduzido nas imagens congeladas e justapostas, forma o mosaico da<br />

civis i<strong>de</strong>al e <strong>de</strong>nota o <strong>de</strong>sejo burguês <strong>de</strong> exposição, capaz <strong>de</strong> reificar o que há <strong>de</strong> mais<br />

sagrado: a imagem da pessoa amada (BENJAMIN, 1994). Perda aurática da imagem já<br />

possível <strong>de</strong> ser apreendida na fala <strong>de</strong> Aurélia, em Senhora:

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