Tese de doutorado - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - UFF
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1 42 Os latinos designam a memória por memoria quando ela reúne a percepção dos sentidos, e por reminiscentia quando os restitui. Mas designavam da mesma forma a faculdade pela qual formamos imagens, a que os gregos chamavam phantasia, e nós imaginativa, e os latinos memorare (...) Os gregos contam também na sua mitologia que as Musas, as virtudes da imaginação, são filhas da memória. (MICHELET APUD LE GOFF, 1997, p. 37). Ao tomarmos como base a multiplicidade de conceitos produzidos em torno da idéia de memória em tempos e espaços diferentes, podemos apontar essas concepções, presentes nas narrativas de Michelet e Alencar, como parte da própria visão romântica sobre as relações entre memória e imaginação, pois o Romantismo reencontraria “de um modo mais literário que dogmático a sedução da memória”. (LE GOFF, 1997, p.463.). Não seria exagerado aferir na dicção poética de Alencar a presença de uma concepção de memória articulada à produzida pelo romantismo europeu. Isto significa pensar a memória como elemento que se faz presente através da imaginação. Assim, a memória opor-se-ia à noção de verdade, que por sua vez estaria coadunada ao discurso da História e aos documentos e / ou manuscritos, vinculada à percepção empírica e à emoção: o que é verdade é o que eu posso sentir e perceber; o que eu lembro é o que eu posso imaginar. 8 Como suporte de memória, o discurso literário permite o recorte de determinadas visões a orientar formas de pensar o mundo. Neste processo, a literatura brasileira arvora-se em sua capacidade de nutrir uma tradição cultural e dotar, nas palavras de Antonio Candido, a um “país de mestiços o álibi duma raça heróica, e a uma nação de história curta, a profundidade do tempo lendário”. (CANDIDO, 1993, p. 203). 8 Como postulamos ao analisar o prólogo de O Guarani neste capítulo.
1 43 Dentro deste quadro, imagem, imaginação e memória dialogam em torno da escritura ficcional. A narrativa de Alencar propõe o artesanato da memória via ficção, tarefa em que se lança justamente em um momento no qual a memória espontânea apresenta-se de forma precária. Podemos perceber este discurso como um lugar de memória não só por ser construção artificial, mas por sua condição livre, independente de referentes da realidade, como toda ficção: Diferentemente de todos os objetos da história, os lugares de memória não tem referentes na realidade...Não que não tenham conteúdo, presença física ou história, ao contrário. Mas o que os fazem lugares de memória é aquilo pelo que exatamente escapam da História...Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos...Há locais de memória porque não há mais meios de memória. (NORA, 1993, pp.6 – 28) A literatura de Alencar faz-se lugar de memória ao apresentar personagens receptáculos de memória – como o índio, mas também o sertanejo e até mesmo, dentro de uma perspectiva mais subjetiva, a personagem urbana - e ao se construir também como tal, na medida em que seus textos simulam dialogar com um passado reatualizado no cotidiano, Ao se tornar público discurso da memória, o texto ganha a chance de ser divulgado: a literatura é uma via de espargimento de discursos, silenciados por uma memória oficial e passíveis de serem ficcionalmente reordenados. Esta divulgação pode garantir a sobrevivência da palavra escrita ou, ao menos, a promessa de disseminação das imagens circulantes no texto, que poderão atuar na geração e expansão de outras imagens, em outros textos. Nos textos de Alencar circularam imagens que se converteram em sinais instigantes para se pensar os labirintos do país. A alusão ao topos do manuscrito, por exemplo,
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reúne a percepção dos sentidos, e por reminiscentia quando<br />
os restitui. Mas <strong>de</strong>signavam da mesma forma a faculda<strong>de</strong><br />
pela qual formamos imagens, a que os gregos chamavam<br />
phantasia, e nós imaginativa, e os latinos memorare (...)<br />
Os gregos contam também na sua mitologia que as Musas, as<br />
virtu<strong>de</strong>s da imaginação, são filhas da memória. (MICHELET<br />
APUD LE GOFF, 1997, p. 37).<br />
Ao tomarmos como base a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos produzidos em torno da idéia<br />
<strong>de</strong> memória em tempos e espaços diferentes, po<strong>de</strong>mos apontar essas concepções, presentes<br />
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literário que dogmático a sedução da memória”. (LE GOFF, 1997, p.463.).<br />
Não seria exagerado aferir na dicção poética <strong>de</strong> Alencar a presença <strong>de</strong> uma<br />
concepção <strong>de</strong> memória articulada à produzida pelo romantismo europeu. Isto significa<br />
pensar a memória como elemento que se faz presente através da imaginação. Assim, a<br />
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o que é verda<strong>de</strong> é o que eu posso sentir e perceber; o que eu lembro é o que eu posso<br />
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Como suporte <strong>de</strong> memória, o discurso literário permite o recorte <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas<br />
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em sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nutrir uma tradição cultural e dotar, nas palavras <strong>de</strong> Antonio<br />
Candido, a um “país <strong>de</strong> mestiços o álibi duma raça heróica, e a uma nação <strong>de</strong> história curta,<br />
a profundida<strong>de</strong> do tempo lendário”. (CANDIDO, 1993, p. 203).<br />
8 Como postulamos ao analisar o prólogo <strong>de</strong> O Guarani neste capítulo.