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1 38 simplesmente um romance, mas que ele a torna um. Antes ainda, anuncia o porque desta impossibilidade: ...quando se conta aquilo que nos impressionou profundamente, o coração é quem fala; quando se exprime aquilo que os outros sentiram ou podem sentir, fala a memória, a imaginação. Esta pode errar, pode exagerar-se; o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu; e o sentimento, qualquer que ele seja, tem a sua beleza. (ALENCAR, 1995, p. 10). Ou seja, a voz narrativa tece uma correlação entre verdade, memória e sentimento (“coração”, na metonímia alencarina). Assim, relaciona a vivência empírica às emoções profundas; a memória, por sua vez, relacionar-se-ia à imaginação, ao risco do erro e do exagero. A memória é o excesso (ou a falta), a expressão do possível, do que “os outros sentiram ou podem sentir ” (ALENCAR, 1995, p. 10). Assim, Alencar seduz o leitor convidando-o a ler uma história (com h minúsculo) que ilusoriamente não seria forjada nem pela verdade (já que não teria sido vivida, mas apenas compilada), tampouco pela memória e conseqüentemente pela imaginação, já que, segundo o álibi ficcional, não teria sido inventada. Pelo diálogo ficcional entre o narrador e o narratário é gerada a ilusão de um entrelugar para este discurso a articular a razão à subjetividade e à imaginação. Segundo Lukács, o romance surge em um momento em que o curso histórico aponta para uma profunda melancolia: o tempo age, revelando a falência da idéia de perenid ade, uma vez que a “forma romanesca é a imagem especular de um mundo que saiu dos trilhos” (LUKÁCS, 2000, p. 14). Um mundo no qual o divórcio entre idéia e realidade é patente e expressa na própria percepção do tempo como a durée bergsoniana na constituição

1 39 romanesca. Assim, o romance é capaz do que Lukács chama de recordação criadora, que ao invés de cristalizar e fossilizar o objeto, o capta e o subverte. Isto torna possível a percepção da forma romanesca como expressão capaz de lidar com a mudança na me ntalidade oitocentista em relação ao significado da memória, compreendida como uma forma de subversão continuamente reelaborada em seu atrito com a percepção do tempo enquanto duração. Cabe apontar, porém, que as relações entre tempo e memória nos romances de José de Alencar ainda não se coadunam à perspectiva da durée, embora já compartilhem de uma abordagem diferente acerca da questão temporal em sua relação com a memória. Em A pata da gazela, por exemplo, o jovem Leopoldo, absorto em suas reminiscências, abstrai-se em relação ao ambiente que o cerca; a lembrança é representada, sobretudo, como um mergulho tão profundo na subjetividade que pressupõe o abandono do mundo exterior: (...) Leopoldo, sentado à janela de peitoril de sua casa, fumava um charuto com os olhos engolfados no azul diáfano do céu, onde cintilava a primeira estrela. A seus pés desdobrava-se a baía plácida e serena como um lago, com a sua graciosa cintura de montanhas, caprichosamente recortadas. O espírito do moço não se embebia decerto na perspectiva dessa encantadora natureza, sempre admirada e sempre nova. Ao contrário, abandonava-se todo às recordações de seu encontro pela manhã e aos enlevos que lhe deixava a contemplação da linda moça. Passava e repassava em sua memória, como em um cadinho, todas as circunstâncias mínimas deste grande e importante acontecimento... (ALENCAR, 1995, p. 22). Da mesma forma, neste texto, a memória não pressupõe a verdade, não se assume como a reconstrução fiel do que foi vivido, mas, ao lado da imaginação, reconstrói a experiência subjetiva, projetando-se mais como o desejo e o sonho, como a leitura deste outro trecho de A pata da gazela nos permite inferir:

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simplesmente um romance, mas que ele a torna um. Antes ainda, anuncia o porque <strong>de</strong>sta<br />

impossibilida<strong>de</strong>:<br />

...quando se conta aquilo que nos impressionou<br />

profundamente, o coração é quem fala; quando se exprime<br />

aquilo que os outros sentiram ou po<strong>de</strong>m sentir, fala a<br />

memória, a imaginação.<br />

Esta po<strong>de</strong> errar, po<strong>de</strong> exagerar-se; o coração é sempre<br />

verda<strong>de</strong>iro, não diz senão o que sentiu; e o sentimento,<br />

qualquer que ele seja, tem a sua beleza. (ALENCAR, 1995,<br />

p. 10).<br />

Ou seja, a voz narrativa tece uma correlação entre verda<strong>de</strong>, memória e sentimento<br />

(“coração”, na metonímia alencarina). Assim, relaciona a vivência empírica às emoções<br />

profundas; a memória, por sua vez, relacionar-se-ia à imaginação, ao risco do erro e do<br />

exagero. A memória é o excesso (ou a falta), a expressão do possível, do que “os outros<br />

sentiram ou po<strong>de</strong>m sentir ” (ALENCAR, 1995, p. 10).<br />

Assim, Alencar seduz o leitor convidando-o a ler uma história (com h minúsculo)<br />

que ilusoriamente não seria forjada nem pela verda<strong>de</strong> (já que não teria sido vivida, mas<br />

apenas compilada), tampouco pela memória e conseqüentemente pela imaginação, já que,<br />

segundo o álibi ficcional, não teria sido inventada. Pelo diálogo ficcional entre o narrador e<br />

o narratário é gerada a ilusão <strong>de</strong> um entrelugar para este discurso a articular a razão à<br />

subjetivida<strong>de</strong> e à imaginação.<br />

Segundo Lukács, o romance surge em um momento em que o curso histórico aponta<br />

para uma profunda melancolia: o tempo age, revelando a falência da idéia <strong>de</strong> perenid a<strong>de</strong>,<br />

uma vez que a “forma romanesca é a imagem especular <strong>de</strong> um mundo que saiu dos trilhos”<br />

(LUKÁCS, 2000, p. 14). Um mundo no qual o divórcio entre idéia e realida<strong>de</strong> é patente e<br />

expressa na própria percepção do tempo como a durée bergsoniana na constituição

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